DA COERÇÃO AO CONSENSO: os mecanismos de expropriação dos territórios dos povos tradicionais caiçaras da Península da Juatinga, Paraty-RJ

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IX Simpósio Nacional Estado e Poder (ISBN: 978-85-63735-25-6)

ANAIS DO IX SIMPÓSIO NACIONAL ESTADO E PODER: Gramsci na Pesquisa Histórica

Niterói Núcleo de Pesquisas sobre Estado e Poder no Brasil 2016 1

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ISBN: 978-85-63735-25-6 IX SIMPÓSIO NACIONAL ESTADO E PODER: Gramsci na Pesquisa Histórica Gragoatá – Niterói 04 a 06 de outubro de 2016

COMISSÃO ORGANIZADORA Profª Drª Sonia Regina de Mendonça (UFF/CNPQ) Prof. Dr. Rodrigo Lamosa (UFRRJ) Prof. Dr. André Guiot (SEDC) Profª Ms. Melissa Miranda Natividade (UFF) Profª Ms. Nathalia dos Santos Nicolau Profª Ms. Camila Fernandes Pinheiro Profª Ms. Camila Pizzolotto (UFF)

COMISSÃO CIENTÍFICA Profª Drª Sonia Regina de Mendonça (UFF/CNPQ) Prof. Dr. Rodrigo Lamosa (UFRRJ) Prof. Dr. André Guiot (SEDC) Profª Drª Dilma Andrade de Paula (UFU) Prof. Dr. Antonio Claudio Rabello (UNIR) Prof. Dr. Pedro Marinho (MAST/UNIRIO)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

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MESAS REDONDAS

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MESAS DE COMUNICAÇÕES COORDENADAS

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Apresentação

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12 ANOS DE SIMPÓSIO NACIONAL ESTADO E PODER

Desde 2004, o SNEP tem se constituído em espaço dedicado a reflexões e trabalhos relacionados às diversas áreas de estudo e pesquisa do campo marxiano de uma forma geral e da matriz gramsciana em particular. Todas as edições tiveram temáticas específicas, ao mesmo tempo em que giraram em torno da questão conceitual sobre o Estado no Brasil e as apropriações e reapropriações das formulações revolucionárias de Antonio Gramsci. Em uma década de existência, o SNEP, iniciativa do Núcleo de Pesquisas sobre Estado e Poder no Brasil da Universidade Federal Fluminense, (NUPEP/UFF), coordenado pela professora Sonia Regina de Mendonça, vem tomando o arcabouço gramsciano como plataforma de referência para abordagens de temática como: • 2004 - Agências e Agentes (Universidade Federal Fluminense, UFF); • 2005 - Historiografia (Universidade Federal Fluminense, UFF); • 2006 - Conflitos Intraestatais (Universidade Federal de Goiás, UFG); • 2007 - Intelectuais (Universidade Estadual do Maranhão, UEMA); • 2008 - Hegemonia (Universidade Federal Fluminense, UFF); • 2010 - Cultura (Universidade Federal de Sergipe, UFS); • 2012 - Sociedade Civil (Universidade Federal de Uberlândia, UFU); • 2014 - Educação, Política e Movimentos Sociais (Universidade Federal do Vale do São Francisco, UNIVASF).

Iniciado e mantido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Estado e Poder, sediado no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, em associação com grupos de pesquisa das sedes, esta nona edição do SNEP, retorna o evento para a cidade de Niterói.

Entre as atividades do IX SNEP haverá mesas redondas, formadas por palestrantes convidados, e mesas de comunicação coordenada, através das quais pesquisadores poderão apresentar suas pesquisas em sessões que reunirão de três a quatro pesquisadores (um pesquisador coordenador e três ou dois outros pesquisadores), totalizando três ou quatro trabalhos por sessão.

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Mesas Redondas

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MESA I – Gramsci, Estado e Educação no Brasil A NOVA OFENSIVA DO CAPITAL: uma análise a partir do referencial teóricometodológico gramsciano Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa1 RESUMO: A Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), entidade nacional fundada em Brasília, em 1993, realiza, por intermédio da sua entidade coirmã, situada em Ribeirão Preto, o Programa Educacional Agronegócio na Escola, desde 2001, nas escolas públicas. Em mais de uma década, o programa já se inseriu em dezenas de redes de ensino, centenas de escolas, envolvendo docentes e milhares de alunos com o propósito de valorizar a imagem do agronegócio, inclusive como protagonista de um desenvolvimento sustentável garantido pela “modernização” do campo e uso de tecnologias de ponta. O objetivo do presente artigo foi analisar a inserção do Programa Educacional Agronegócio na Escola nas redes públicas municipais e o papel dos professores participantes, destacando o processo de adesão desses profissionais da educação ao projeto da associação em reproduzir a imagem do agronegócio associada à sustentabilidade. A necessidade de compreender os nexos entre os interesses da ABAG e a atuação dos docentes exigiu uma intensa agenda de pesquisa na região em que se desenvolve o programa, envolvendo observações de campo, reuniões e entrevistas com docentes inseridos no projeto pedagógico, com o intuito de compreender a adesão das comunidades escolares à proposta da ABAG, sem desprezar as tensões oriundas desse processo. Foi possível identificar que o Programa Educacional Agronegócio na Escola produz, entre os professores participantes, um consenso sobre o modelo agrário dominante. E esses profissionais, uma vez aderindo ao projeto de valorização desse modelo, tornam-se intelectuais orgânicos da hegemonia do agronegócio. Diferentemente da camada dirigente dos intelectuais que organizam o projeto político que unifica as diversas frações da classe dominante na mesma entidade, os docentes da escola pública atuam no interior do projeto da ABAG, realizando a mediação com os futuros trabalhadores formados nas instituições públicas de ensino. Neste artigo, concluímos que a ABAG assumiu a tarefa histórica de “Partido do Agronegócio” no Brasil, articulando, na sociedade civil, a formação dos intelectuais orgânicos e a difusão da autoimagem associada à responsabilidade socioambiental, e na sociedade política, a ocupação de cargos e inserção dos seus interesses particulares, apresentados como demandas de toda a sociedade. Introdução A Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), entidade nacional fundada em Brasília, em 1993, realiza, por intermédio da sua entidade coirmã, situada em Ribeirão Preto, o Programa Educacional Agronegócio na Escola, desde 2001, nas escolas públicas. Do ponto de vista do ideário ambiental, o discurso de sustentabilidade anunciado pela entidade e promovido em suas ações educativas, propõe a possibilidade de uma sociedade 1

Doutor em Educação, Professor do programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); [email protected]

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sem conflitos, baseada nas parcerias público-privadas, na responsabilidade individual e na racionalização no uso dos recursos naturais. Em mais de uma década, o programa já se inseriu em dezenas de redes de ensino do estado de São Paulo, centenas de escolas, envolvendo docentes e milhares de alunos com o propósito de valorizar a imagem do agronegócio, inclusive como protagonista de um desenvolvimento sustentável garantido pela “modernização” do campo e uso de tecnologias de ponta. O objetivo do presente artigo foi analisar a inserção do Programa Educacional Agronegócio na Escola nas redes públicas municipais e o papel dos professores participantes, destacando o processo de adesão desses profissionais da educação ao projeto da associação em reproduzir a imagem do agronegócio associada à sustentabilidade. A necessidade de compreender os nexos entre os interesses da ABAG e a atuação dos docentes exigiu uma intensa agenda de pesquisa na região em que se desenvolve o programa, envolvendo observações de campo, reuniões e entrevistas com docentes inseridos no projeto pedagógico, com o intuito de compreender a adesão das comunidades escolares à proposta da ABAG, sem desprezar as tensões oriundas desse processo. 1. A Associação Brasileira do Agribusiness: o Partido do Agronegócio Na década de 1980, a crise de hegemonia na classe dominante no Brasil foi desencadeada, por um lado, pela crise da representação e, por outro, pela correlação de forças em relação a classe trabalhadora. No campo brasileiro esta crise de representação tem sua origem nas transformações oriundas do processo de segmentação da agricultura brasileira. Esta segmentação não operou mudanças apenas na base técnica da produção agrícola. Segundo Sônia Mendonça (2010), dois desdobramentos “não-econômicos” resultaram deste processo: “a emergência de novas posições sociais” e a “redefinição dos papéis desempenhados. ” (Ibidem, p.26) Neste contexto, o patronato rural se reorganizou também, assumindo novas formas, discurso e sujeitos, muitos dos quais representantes do capital industrial e financeiro. Entretanto, se por um lado a representação patronal estava muito fracionada, por outro a organização política deste patronato ainda estava longe de empreender alianças com outras frações da classe dominante. Isto só seria superado na década de 1990, quando a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) conseguiu reunir todas as frações que “direta ou indiretamente encontram-se envolvidos com a atividade agroindustrial.” (BRUNO, 1998, p.36)

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Historicamente a disputa pela representação da fração agrária da classe dominante, tanto na sociedade civil, quanto no interior do estado estrito, antagonizou duas entidades patronais durante todo o século XX: a tradicional Sociedade Nacional da Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB). A fragmentação da representação patronal e a difusão de diversas representações patronais agrárias aumentou na medida em que a segmentação da agricultura foi responsável por uma ampla diferenciação de interesses entre as frações da classe dominante no campo. Segundo Mendonça (2010), os efeitos da crise econômica da década de 1970, sobretudo a escassez de recursos públicos para o financiamento da agricultura, aprofundaram a crise de representação patronal. As frações agrárias da classe dominante, divididas em inúmeras associações, com o acirramento das disputas pelo fundo público aumentavam ainda mais o acirramento político. Foi neste contexto em que se desenvolveu a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). A OCB foi fundada em 1969 por lideranças cooperativas de diferentes ramos da atividade econômica e distintas regiões de todo o país. Segundo Mendonça (2010), a parti da análise sobre a composição de seus quadros dirigentes, é possível afirmar que o empresariado agrário sempre foi a fração mais expressiva representada no interior da entidade. A criação desta agência da sociedade civil resultou da demanda de suas bases sociais por uma representação nacional. Neste aspecto, a entidade reuniu, desde sua origem, grandes cooperativas como a Cooperativa Central dos Produtores de Leite do Rio de Janeiro, liderada por Alfredo Lopes Martins Junior, diretor da OCB entre 1979 e 1983; Cooperativa dos Produtores Rurais de Minas Gerais, representada por José Pereira Campos (presidente da OCB entre 1979 e 1983). Além disto, a entidade manteve sempre uma relação de grande proximidade com a SRB, através de Ney Araújo Bittencourt de Araújo, diretor do Departamento de Insumos Modernos da SRB, entre 1981 e 1983, e Roberto Rodrigues, diretor da Política Cafeeira da SRB, entre 1984 e 1986. No fim da década de 1980, a OCB, principalmente através de Roberto Rodrigues, conclamava à adoção um regime econômico liberal, para que os investimentos privados fossem maciços. Neste momento, segundo Mendonça (2012), “se afirmaria o novo projeto hegemônico emanado da OCB: a consolidação do agronegócio no Brasil.” (Ibidem, p.76). A OCB, a despeito de ser a mais nova “representação legal-formal”, passou a ter a hegemonia entre as demais representações a partir da década de 1980. O fortalecimento da organização representou uma reviravolta na crise de representação do patronato rural, resultando na vitória desta organização no período entre as acaloradas 9

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discussões e disputas em torno do PNRA e a aprovação final do texto constitucional de 1988. A OCB reuniu diferentes perfis de cooperativas, sobretudo, associações de grandes proprietários, havendo também a participação de pequenos proprietários, em associação às frações industriais e financeiras. No entanto, somente na década de 1980, no auge da segmentação da representatividade patronal das frações agrárias da classe dominante, a OCB passou a ter um papel protagonista, sendo sua a liderança na criação, em 1993, da Associação Brasileira do Agribusiness, anos depois renomeada como Associação Brasileira do Agronegócio (BRUNO, 1997). Em 1990, por iniciativa de Ney Bittencourt de Araújo, foram criadas duas instâncias de interlocução entre o empresariado rural e o meio acadêmico: o Instituto Brasileiro do Agribusiness (IBA) e o Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial (PENSA). O IBA, inicialmente presidido por Roberto Rodrigues, foi o principal organismo de difusão da base ideológica constituída pelo tripé: autogestão, segurança alimentar e competitividade (PINTO, 2010). O PENSA foi elaborado a partir da influência que Ney Bittencourt Araújo teve ao frequentar os seminários, congressos e conferências organizados no Programa de Agribusiness da Universidade de Harvard, coordenado por Ray Goldberg. A Associação Brasileia do Agronegócio (ABAG), constituída por representantes dos segmentos produtivos que compõem o agronegócio brasileiro, foi fundada em 1993, em um evento no congresso nacional, com o objetivo de unifica-los em uma mesma representação patronal. A associação criou, ao longo de duas décadas, um braço pedagógico, responsável por formar os dirigentes de seus associados, difundir seus interesses e valorizar a imagem do agronegócio no país, defendido enquanto o meio mais moderno de desenvolvimento econômico no campo, superior, portanto, ao latifúndio e às práticas produtivas de camponeses e demais trabalhadores rurais, vistas como resquícios de um passado a ser superado. Do ponto de vista do ideário ambiental, este é um discurso com apelo junto a amplos setores sociais que reproduzem o senso comum ambientalista, uma vez que o sentido de moderno posto pelo agronegócio indica ideologicamente uma associação direta com a urgência de se promover um tipo de desenvolvimento sustentável, que não é exequível, para o capital, com base em setores e formas de organização da produção classificadas por estes como “arcaicas” e de baixa capacidade tecnológica (LOUREIRO, 2012). Com isso, o mito da modernização ecológica, de uma sociedade sem conflitos, que aponta para a parceria, a racionalização no uso dos recursos naturais

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com aplicação de tecnologia limpa e de ponta (ALIER, 2009), se constitui em um eixo discurso poderoso do agronegócio brasileiro. A ABAG é um tipo novo de organização da classe dominante, difundido no país a partir dos anos 1990, no processo de reorganização do Estado (adoção do modelo de Estado gerencial) e liberalização da economia, com forte transferência das responsabilidades pelas políticas públicas e sociais para setores privados. Enquanto a forma de representação tradicional se restringia a organizar apenas um segmento da cadeia produtiva, o novo tipo de organização passou a mobilizar, organizar e representar diferentes frações do capital: agrária, comercial, industrial e financeira. Esse modelo de organização passou a desempenhar o papel de partido (GRAMSCI, 2011), no sentido de organizar e dar a direção moral e política à classe dominante no Brasil. 2. A camada dirigente dos intelectuais orgánicos do Partido do Agronegócio O partido do agronegócio reivindica o número diverso de frações da classe dominante que representam, segundo o site oficial da ABAG, cerca de 30% do PIB, 40% das exportações, mais de 60% do fluxo de caixa interno, 40% de toda a força de trabalho do país e 70% do consumo das famílias brasileiras. A proposta da ABAG é ter o reconhecimento deste peso político, sendo sua agenda de interesses encaminhada pelas agências do estado estrito. (ABAG, 2008) Em sua criação, a ABAG se definiu como “a instituição representativa dos interesses comuns aos agentes das cadeias agronômicas, de modo que possam expressarse de maneira harmônica e coesa nas questões que lhes são comuns. ” (ABAG, 1993, p.18) Estiveram presentes no lançamento da entidade, diversas lideranças do patronato rural, parlamentares da bancada ruralista, membros do governo, além da imprensa que cobriu a cerimônia. A nova associação reivindicou para si a missão de valorizar a imagem do agribusiness brasileiro, estratégia para superar a crise, unificando sob este mesmo conceito diversas frações do capital. O conceito de agronegócio ou agribusiness foi, desde o início, utilizado pela ABAG visando homogeneizar sob um mesmo código a economia brasileira, apresentando-se como dirigente de um “novo pacto político do conjunto do empresariado brasileiro em torno da definição de novas alternativas para o desenvolvimento.” (BRUNO, 1998:39) É justamente neste ponto em que a ABAG assume seu papel de Moderno Príncipe do agronegócio, agindo no sentido de unificar as diversas frações,

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sobretudo as financeiras, industriais, comerciais e agrárias sob uma mesma bandeira. Segundo Gramsci (2011), este é um movimento próprio das classes sociais: “A unificação das tropas de muito partidos sob a bandeira de um único partido, que representa melhor e sintetiza as necessidades de toda a classe, é um fenômeno orgânico e normal, ainda que seu ritmo seja muito rápido e quase fulminante em relação aos tempos tranqüilos: representa a fusão de todo um grupo social sob uma só direção, considerada a única capaz de resolver um problema vital dominante e de afastar um perigo mortal.” (Ibidem, p. 304) A função assumida pela ABAG, no entanto, só poderia ter sucesso mediante a organização de uma poderosa capacidade dirigente, formação de intelectuais orgânicos responsáveis por dar vida às estratégias de hegemonia e, por fim, representar a articulação campo-cidade no interior da classe dominante, através da unidade entre as frações agrária, industrial e financeira do capital. As novas organizações da classe dominante, entre estas a ABAG, se caracterizam pelo alto poder de formação e difusão de seus interesses. O braço pedagógico deste tipo de representação é formado por organizações que se dividem entre as tarefas de formar os intelectuais orgânicos da classe e difundir a autoimagem do Agronegócio. O braço pedagógico da ABAG se divide entre a formação dos intelectuais orgânicos dirigentes do agronegócio e a assimilação de intelectuais que formam uma camada “não dirigente”, ou como são chamados neste trabalho “subalternos, sobretudo, professores e jornalistas”. Enquanto os intelectuais orgânicos dirigentes são formados para atuarem como dirigentes na organização produtiva das empresas associadas, os professores e jornalistas são fundamentais na tarefa de disseminar um ideário que valorize as novas organizações. Ambas as categorias, professores e jornalistas, são recrutadas em eventos de premiação que afirmam a autoimagem do agronegócio como setor produtivo responsável social e ambientalmente. A ABAG teve ao longo dos seus vinte anos de existência seis presidentes: Ney Bittencourt (1993-1996), Arturo José Furlong (1996), Luiz Alberto Garcia (1996-1999), Roberto Rodrigues (1999-2002), Carlo Lovatelli (2002-2011) e Luiz Carlos Corrêa Carvalho (2011-2013). Cada presidente cumpriu um mandato de três anos, com exceção de Arturo José Furlong que ficou apenas seis meses no cargo, tendo substituído Ney Bittencourt após sua morte, e Carlo Lovatelli que permaneceu por três gestões. O fundador da ABAG, Ney Bittencourt de Araújo (in memorian), nasceu em 1936, em Viçosa (MG). Filho de Antônio Secundino de São José, o fundador da Agroceres. 12

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Formou-se em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa e graduou-se pela American Management Association, em Nova York, no Curso Avançado de Administração. Como presidente da Agroceres, foi também diretor, conselheiro ou presidente de 21 entidades nacionais e internacionais ligadas ao Agribusiness. Foi membro do Conselho Técnico do Industry Council for Development (órgão ligado ao Banco Mundial, em Nova York), e ao International Board daIama, em Boston. A ABAG formou, ao longo das últimas duas décadas, uma intensa atuação na área da pesquisa agropecuária, com articulação com a EMBRAPA, o Instituto PENSA, localizado na Universidade de São Paulo (USP), o ARES e, mais recentemente, a partir do Centro de Estudos do Agronegócio (GV Agro), localizado na Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), além da Esalq, tradicional escola de formação do patronato paulista (MENDONÇA, 1999). A atuação nas políticas públicas é fundamental na produção de pesquisas para o agronegócio. As pesquisas servem tanto como suporte técnico-científico para os associados da ABAG, quanto para divulgação dos benefícios sociais e ambientais do agronegócio. As pesquisas são divulgadas em cursos produzidos por estes institutos, tanto em suas sedes, quanto nas sedes dos próprios associados. O PENSA, segundo Pinto (2010), enquanto aparelho privado de hegemonia conseguiu unificar, embasar e fortalecer o discurso das frações agroindustriais que criariam a ABAG “visando reforçar e ampliar seu espaço político de atuação e sua legitimidade também junto às agências da sociedade política.” (Ibidem, p. 16). A criação do Programa de Estudo e Negócios do Sistema Agroindustrial (PENSA) foi resultado da parceria entre um grupo de intelectuais (a maioria engenheiros agrônomos) formados na Esalq, o Instituto Brasileiro do Agribusiness (IBA), presidido pelo próprio Roberto Rodrigues, a OCB e professores da Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP). O PENSA possui um histórico de vinte anos de trabalhos no auge de sua capacidade de formulação, formação e divulgação de pesquisas científicas de interesse do agronegócio, em relação estreita com a ABAG, possuindo diretores em comum. O PENSA, desde sua criação, esteve situado fisicamente no interior da FEAUSP e recebeu verbas de empresas privadas e organizações do agronegócio brasileiro. O financiamento de suas pesquisas, cursos e edições é realizado por meio de um conjunto de fundações que atuam no interior da USP: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), Fundação para a Pesquisa e Desenvolvimento da Administração, Economia e Contabilidade (FUNDACE) e, destacadamente, a Fundação Instituto de Administração (FIA). Estas fundações são fundamentais para as parcerias público-privadas entre o 13

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programa, situado em uma instituição pública, e o financiamento de empresas de direito privado e entidades do agribusiness, brasileiras e estrangeiras. O programa se dedicou desde a origem tanto a programas regulares de ensino, quanto à formação continuada, com destaque para os cursos dirigidos às empresas associadas, incluindo várias associações e cooperativas organizadas na ABAG, como a Cooperativa Agropecuária Holambro, Cooperativa Batavo, Frunorte, Dinamilho, Associação dos Viticultores de São Miguel Arcanjo (AVITI) e Cooperativa Central Agropecuária (SUDCOOP). O programa se especializou em pesquisas organizadas por professores com a participação de alunos e intelectuais das empresas interessadas através de estudos de caso. Os projetos desenvolvidos pelo PENSA, segundo Zylberstajn2, visam se dedicar a “[...] situações-problema enfrentados por empresas reais e que são ilustrativos do momento por que passa o agribusiness brasileiro e internacional.” (ZYLBERSTAJN, 1993, p.23) A atividade do PENSA não pode ser percebida apenas como uma mera instrumentalização de frações agrárias que passaram a ter assistência na inovação tecnológica. A produção dos intelectuais associados ao PENSA ou formado por este instituto foram responsáveis por organizar e uniformizar o discurso do agronegócio brasileiro. Isto foi fundamental para a conjuntura de criação da ABAG. Além das pesquisas e cursos, o programa editou ao longo dos anos diversos trabalhos acadêmicos que visam produzir este discurso. Além de Décio Zylbersztajn, o programa publicou livros organizados por Elizabeth Farias, economista, professora da FEA/USP e presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE); Ney Bittencourt de Araújo, organizador de diversos trabalhos; Luiz Antônio Pinazza, gerente da Área de Estudos de Economia e Planejamento da “Semente Agroceres S.A.”; e Ivan Wedekin, diretor comercial da “Semente Agroceres” (PINTO, 2010). O pensamento pedagógico produzido pela ABAG, a partir de seus aparelhos privados de hegemonia, se baseava no binômio: competitividade internacional e segurança alimentar. A competitividade seria garantida pela inserção definitiva do agronegócio brasileiro no mercado mundial. Para organizar esta estratégia, a ABAG criou o Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE). A segurança alimentar foi o tema que difundido internacionalmente, pelos intelectuais coletivos do capital (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional, UNESCO), e nacionalmente 2

Décio Zylbersztajn é engenheiro agrônomo, professor titular do departamento de administração da Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP), coordenador-geral e um dos fundadores do PENSA.

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pela ABAG. Para organizar a difusão da “responsabilidade social” e o compromisso do agronegócio com a “sustentabilidade”, foi criado, em 2008, o instituto para o Agronegócio Responsável (ARES). Desde 2001, na região conhecida como “Capital do Agronegócio” foi organizada pela ABAG uma entidade “co-irmã” com o objetivo de difundir a nova imagem do empresariado brasileiro produzida pela associação e seus aparelhos privados de hegemonia. Diferente de outras entidades representativas da classe dominante, a ABAG não constituiu um departamento ou uma secretaria para um setor educacional. A iniciativa do partido do agronegócio foi criar uma entidade co-irmã com o único intuito de reproduzir a imagem do agronegócio formulada a partir da relação da ABAG com o meio acadêmico. Em Ribeirão Preto, a entidade co-irmã vem assegurando a difusão desta imagem, através de inúmeras atividades, dentre as quais se destaca o Programa Educacional Agronegócio na Escola, responsável por valorizar o agronegócio na região. 3. A escola pública e a formação da camada subalterna dos intelectuais orgânicos do Partido do Agronegócio O Programa Educacional Agronegócio na Escola que já existe há quinze anos sofreu ao longo da sua história alterações que visaram ampliar a ação pedagógica da associação no sentido proposto de melhorar a imagem o agronegócio e adaptar a proposta diante das dificuldades impostas. Entre 2001 e 2008, o programa foi realizado em parceria com a Secretaria Estadual da Educação e desenvolvido em escolas pertencentes a dez Diretorias de Ensino da macrorregião de Ribeirão Preto. O programa foi destinado, segundo o site oficial da ABAG, aos estudantes do ensino médio, com o objetivo de “levar os conceitos fundamentais do agronegócio para as salas de aula, de forma multidisciplinar.” (site oficial da ABAG). No entanto, segundo as representantes da ABAG, as exigências do vestibular trouxeram muitas dificuldades para a realização do programa. Após este período inicial, a associação passou a trabalhar exclusivamente com as redes municipais da macrorregião de Ribeirão Preto que possuem escolas com o segundo segmento do ensino fundamental. A estratégia de inserir nas escolas um programa de educação ambiental do Agronegócio visa promover a valorização da imagem do agronegócio”, segundo o próprio site da ABAG. O programa objetiva educar jovens, filhos de trabalhadores, apresentando o ideário da responsabilidade social e ambiental do agronegócio, enquanto caminho moderno e viável para a sustentabilidade, em uma região marcada pelo conflito social e ambiental. Em seu site oficial, a ABAG justifica o investimento no programa 15

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Agronegócio na escola, pois entende que um dos instrumentos mais eficazes para promover a valorização da imagem do Agronegócio é a educação. A valorização da imagem do Agronegócio deve ser feita pelo programa, através da ampliação da consciência dos estudantes sobre as atividades agroindustriais da região (LAMOSA, 2016). O Programa Educacional Agronegócio na Escola está inserido no projeto de hegemonia da ABAG. Por um lado o partido do agronegócio organizou seu braço pedagógico, formado pelo PENSA (USP), GV Agro (FGV-SP), ARES e ICONE, visando operar à formação de seus intelectuais orgânicos. Através do programa Agronegócio na escola a ABAG incorporou em seu projeto de hegemonia os profissionais de educação básica, associados ao sistema público de educação. A ABAG, através da entrevista com a diretora executiva em Ribeirão Preto, “garante que entende o seguinte: cada um trabalha a sua maneira e nós fornecemos este material de apoio” (LAMOSA, 2014, p. 371). A ABAG, segundo a coordenadora do programa, “não entra em sala de aula”. De fato, nenhum dos professores entrevistados identificou que qualquer profissional da associação tenha entrado no interior da sala de aula. Este é um dos elementos centrais no processo através do qual os professores tornamse responsáveis pela difusão da concepção de mundo do Partido do Agronegócio no Brasil. Neste sentido, os professores que passam a difundir a concepção de mundo da ABAG tornam-se intelectuais orgânicos, ocupando uma camada subalterna do partido. É assim que toda a produção pedagógica formulada no interior das escolas, através do trabalho docente e dos discentes, torna-se propriedade imaterial da associação que a utiliza em seus materiais de propaganda e divulgação, distribuídos entre seus associados e à sociedade em geral. O Programa Educacional Agronegócio na escola, diferente da maioria dos projetos empresariais que se inserem atualmente nas escolas públicas, não impõe um único formato de projeto a ser desenvolvido. Isto restringiria muito as possibilidades de ação do programa. O programa da forma como é executado garante aos professores uma autonomia limitada que permite que estes executem a proposta de divulgação da ABAG sem se sentirem funcionários do agronegócio. Como disse uma professora em Dourado: “Eu não sou funcionária da ABAG” (LAMOSA, 2014), mas seu projeto irá divulgar a mensagem da associação, através de um jornal com tiragem de mil exemplares em uma cidade com cinco mil pessoas e um programa na rádio local.

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A autonomia relativa que o programa da ABAG permite aos professores oferece a associação ter acesso a toda produção criativa do espaço escolar. Sem engessar o trabalho docente em um único formato, a associação expropria o conhecimento produzido nas escolas públicas O “prêmio professor” avalia aqueles profissionais em seu processo de formação, que envolve palestras e visitas as unidades produtivas das empresas associadas da ABAG, e os projetos desenvolvidos nas escolas. Os professores vencedores ganham computadores e um passeio na feira Agrishow, organizada pela ABAG em Ribeirão Preto. O apoio dos educadores é fundamental para o sucesso da entrada do empresariado na escola pública. A principal forma de assimilação dos profissionais da educação pelas empresas ocorre através da formação continuada que ocorre de forma diferenciada, podendo variar de acordo com o projeto. A formação pode ser realizada de forma direta pela empresa responsável pelo projeto ou terceirizada por outra empresa ou organização social, como organizações não governamentais. O papel dos profissionais da educação nos projetos empresariais é de mediação entre os interesses privados das empresas e os alunos das escolas públicas. Neste sentido, muda o local da produção de conhecimento, deixando de ser a escola o espaço central desta produção. Os temas geradores, por exemplo, trabalhados nas escolas passam a ter correspondência direta com o projeto empresarial, assim como muitos conceitos e categorias trabalhados em sala de aula e apresentados aos alunos pelos materiais didáticos formulados pelas empresas. O protagonismo dos profissionais que trabalham nas escolas desaparece e estes passam a ter o papel de mediação na difusão dos interesses empresariais. O Prêmio Professor é mais uma ação do Programa Educacional Agronegócio na Escola que tem como objetivo mobilizar os professores e fazer uso dos projetos desenvolvidos por estes nos espaços escolares. Nem todas as escolas e professores envolvidos no programa se inscrevem no Prêmio Professor. Em 2012, foram dezesseis professores inscritos e, em 2013, este número aumentou para dezessete inscrições de propostas de projetos. Os professores inscritos devem lecionar no 8º /9º anos do Ensino Fundamental nas escolas inscritas no programa. Segundo o regulamento, a proposta deverá ser entregue em nome de um único professor por escola e deverá ter o tema da edição. A proposta deverá detalhar como o tema será trabalhado com os conteúdos e destacar os conceitos que serão transmitidos aos alunos.

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A avaliação dos docentes no Prêmio Professor ocorre em duas etapas. Na primeira etapa são avaliadas a participação do professor no período de formação continuada e o projeto elaborado. Na segunda parte, os seis melhores projetos que entregam o relatório final são selecionados e apresentados no encontro de encerramento. Cada projeto é apresentado por dez minutos e julgado por uma equipe. Os três primeiros são premiados com computadores. Segundo o regulamento do Prêmio Professor, a entrega dos trabalhos, sejam eles redação, frases ou desenhos, significa a transferência dos direitos autorais que passam a ser propriedade da ABAG-RP: . “A remessa dos trabalhos significará a aceitação plena das normas contidas no presente regulamento. Os trabalhos não serão desenvolvidos e poderão ser utilizados, na condição de cessão dos direitos autorais, para fins de produção editorial e replicação dentro do Programa Educacional Agronegócio na Escola.” (LAMOSA, 2016, p. 193). A avaliação é realizada a partir de critérios divididos em três partes: capacitação do professor, entrega do projeto final e a qualidade geral do projeto apresentado. A primeira parte, relativa a capacitação dos professores, equivale a trinta por cento da avaliação geral, dividida entre a presença na palestra e a presença na visita aos associados. A segunda parte é dividida em duas questões: os objetivos do prêmio professor foram atingidos? O projeto é criativo e contribui para a inovação no desenvolvimento do tema com os alunos? Já a terceira parte avalia a qualidade dos projetos em todas as suas etapas: introdução, objetivos, metodologia, resultados e conclusão. Os critérios de avaliação do prêmio Professor dizem muito sobre as formas de assimilação dos docentes pelo programa. Para serem bem sucedidos no concurso, os docentes precisam participar de todas as etapas da capacitação e cumprir com os objetivos do Prêmio, lembrando que o primeiro, entre outros, é valorizar a imagem do agronegócio. As duas tarefas equivalem a cinquenta por cento de toda a avaliação, trinta por cento localizados na capacitação e vinte por cento na fidelidade aos objetivos da ABAG-RP. Os demais cinquenta por cento da avaliação, vinte por cento estão localizadas no aspecto “criatividade/inovação do tema agronegócio com os alunos” e os demais trinta por cento no próprio projeto. O prêmio professor é concluído no mesmo momento de finalização do programa em uma grande culminância, quando alunos e professores são premiados pela participação na edição. É importante notar que esta premiação tem um valor muito mais simbólico do que material. Os prêmios não possuem grande valor agregado. Com exceção do primeiro e do segundo lugar que são premiados com máquina fotográfica e pen drive, 18

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os demais recebem bonés e camisas da associação. No dia da culminância os alunos e professores apresentam para um auditório lotado os projetos realizados durante o ano, passando à associação o patrimônio imaterial e material dos mesmos. Conclusão Neste artigo, concluímos que a ABAG assumiu a tarefa histórica de “Partido do Agronegócio” no Brasil, articulando, na sociedade civil, a formação dos intelectuais orgânicos e a difusão da autoimagem associada à responsabilidade socioambiental, e na sociedade política, a ocupação de cargos e inserção dos seus interesses particulares, apresentados como demandas de toda a sociedade. A inserção da ABAG nas instituições públicas de ensino e pesquisa visa difundir a ideologia do “agronegócio” em pelo menos dois sentidos: em relação aquelas instituições do Ensino Superior e, especificamente, à Embrapa a ideologia do “agronegócio” cumpriu o papel em organizar a consciência de classe; enquanto que o trabalho ideológico nas escolas públicas da Educação Básica nos municípios da região de Ribeirão Preto objetiva escamotear as contradições das relações sociais. Referências bibliográficas Associação Brasileira do Agronegócio. Metamorfose do Estado brasileiro. 1993. ______________. 10 anos ABAG: em defesa do desenvolvimento do país. São Paulo: ABAG, 2003. ______________. 15 anos ABAG: uma história de realizações em benefício do agronegócio brasileiro. São Paulo: ABAG, 2008. ALIER, M. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Ed. Contexto, 2007. BRUNO, R. Senhores da terra, senhores da guerra: nova face política das elites agroindustriais no Brasil. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1997. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Os intelectuais, O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2000. ___________. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935 / Carlos Nelson Coutinho, organizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. LAMOSA, R. Estado, Classe Social e Educação no Brasil: uma análise crítica da Hegemonia do Agronegócio / Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Rodrigo Lamosa. Rio de Janeiro: UFRJ, 2014. xi, 454f. : il.

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MESA II – Estado Ampliado: possibilidades de pesquisa O PAPEL DO REFERENCIAL GRAMSCIANO NA COMPREENSÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO DEMOCRACIA CONSENTIDA NO BRASIL (1995-2006) Maria Teresa Cavalcanti de Oliveira1 “A economia é o método. O objetivo é mudar a alma” (Margareth Thatcher).

Partindo do pressuposto de que a construção do conhecimento científico não se dá de maneira abstrata é de significativa importância refletir sobre o processo de sua construção, com destaque para o papel a ser desempenhado pelo referencial teórico assumido – algo considerado por grande parte dos pesquisadores, a alma da pesquisa. Em se tratando de tema complexo e pouco trabalhado no universo das produções acadêmicas, o registro analítico da maneira pela qual uma pesquisa é construída é desafiador. Tal intento deve expressar uma séria preocupação tanto didática quanto pedagógica, levandose em conta as dificuldades existentes no âmbito das ciências sociais no que se refere à apreensão do binômio teoria/prática – algo que se evidencia no grau de deslegitimidade e desvalorização que a reflexão teórica tem sido vítima no seu espaço de referência, ou seja, na formação universitária e acadêmica em geral. O texto que ora se apresenta tem por objetivo descrever e analisar a maneira pela qual se deu o processo de apropriação do referencial teórico-metodológico gramsciano no âmbito de uma construção coletiva de conhecimento centrada na temática das políticas públicas de educação contextualizadas a partir do advento do neoliberalismo mundializado que, no Brasil, se inicia nos anos de 1990. Em se tratando de um estudo desenvolvido a partir da lógica dialética, seu encaminhamento conjugou múltiplos movimentos de idas e vindas, de construções e desconstruções, resultando num conjunto de análises de difícil registro. O desafio que se coloca nesse texto é conseguir evidenciar a função, o sentido e a materialidade do trabalho intelectual crítico que, através do ferramental teórico-metodológico (no caso, gramsciano) problematiza um determinado fenômeno social, potencializando uma determinada compreensão até então não explicitada.

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Doutora em Educação; Professora Adjunta do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia, FEBF/UERJ. Email: [email protected]

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E no caso da pesquisa em questão, o uso do referencial teórico crítico com ênfase no ideário gramsciano se fez presente de maneira orgânica no conjunto do trabalho, envolvendo

sempre

dialeticamente

mudanças/permanências,

os

binômios

da

totalidade/especificidade,

diferenças/similaridades,

capital/trabalho,

estrutura/superestruturas, dentre outros. Tais questões se fizeram presentes de várias formas no âmbito macro e micro do trabalho, influenciando desde o planejamento geral do estudo desenvolvido, a delimitação do objeto de estudo, a escolha da empiria e as fontes a serem trabalhadas, etc. Sob o título inicial “A formação para o trabalho simples no Brasil contemporâneo: da Educação para Todos para Todos pela Educação”, a pesquisa referenciada se voltou à análise das políticas de educação escolar com ênfase na maneira pela qual vem se dando a “formação para o trabalho simples” no Brasil. O conjunto de entendimentos gerados ao longo do estudo vivenciado ao longo de 4 anos de pesquisa, pelo Coletivo de Estudos de Políticas Educacionais2 se materializaram no livro “Educação Básica: tragédia anunciada? ” - uma análise construída a partir de um trabalho coletivo envolvendo leituras, debates e reflexões, referenciada num grande volume de fontes documentais e bibliográficas. Para efeito do presente relato, a reflexão sobre no uso do referencial teórico gramsciano se concentrará num dos capítulos do referido livro, intitulado “Mudanças nas estratégias de implantação da reforma da escolarização básica”. O objetivo pretendido no presente texto se explicitará a partir de 3 momentos. Após uma introdução inicial situando a questão a ser trabalhada, o segundo momento se concentrará nas principais apropriações assumidas do ideário gramsciano; num terceiro momento, será apresentada uma reflexão sobre o processo de construção crítica elaborado a partir do uso do referencial teórico gramsciano, tendo como recorte algumas das análises desenvolvidas no capítulo acima referenciado. Sobre o legado teórico-metodológico de Antonio Gramsci

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No momento dessa pesquisa (2012-2015), o Coletivo de Estudos de Política Educacional contava com 4 núcleos de pesquisa: o Núcleo de Alagoas, situado na Universidade Federal de Alagoas (Ufal); o núcleo de Campina Grande, situado na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); o núcleo de Juiz de Fora, situado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); e o Riocoletivo, que se reúne regularmente com a professora Lucia Neves no Rio de Janeiro. Ao longo de seus 15 anos de existência, o coletivo esteve localizado primeiramente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF); em seguida, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV / Fiocruz), sob a coordenação de Lucia Maria Wanderley Neves; e atualmente está localizado na UFJF, sob a coordenação de André Silva Martins.

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Um adequado movimento de apropriação do pensamento de Antonio Gramsci se inicia inexoravelmente no entendimento tanto do contexto histórico no qual o pensador se situava (a Europa da primeira metade do século XX), quanto no papel no qual ele se colocava e como o desempenhava na conjuntura daquele mundo, ou seja, sendo um típico intelectual orgânico da classe trabalhadora. Nos primeiros anos de sua atuação, como um teórico e político marxista, seu empenho se concentrava numa reflexão voltada à criação das condições da ação revolucionária na Europa, tendo como fonte inspiradora o fato da Revolução Russa de 1917 ter provado que “a vontade humana organizada (e não os fatos econômicos brutos) seria o verdadeiro motor da história” (COUTINHO, 2011; p. 15). Tais questões nos levam a entender o destaque que, naquela nova fase do capitalismo, Gramsci atribuía ao papel a ser desempenhado pela batalha das ideias e pela luta cultural na criação das condições subjetivas da ação revolucionária; um posicionamento que o distanciava da ideia de que a revolução socialista se daria fundamentalmente pelo amadurecimento das condições estruturais então defendidas por outras lideranças do Partido Socialista Italiano. Fica claro que o “jovem Gramsci” assume um posicionamento que se coloca para além do determinismo economicista característico do marxismo ortodoxo majoritariamente defendido pelo então PSI. Mas é após sua prisão, executada em novembro de 1926, pelo governo fascista de Mussolini, que Gramsci amadurece e aprofunda suas ideias iniciais. Se os escritos da juventude evidenciavam a presença da realidade do dia a dia das possibilidades da luta revolucionaria, os escritos do cárcere, desenvolvidos nas condições reflexivas da prisão, resultaram no aprofundamento das mudanças geradas pela passagem para uma etapa superior do desenvolvimento das relações capitalistas de produção e as novas formas de dominação do capital, com destaque para o advento do Imperialismo teorizado por Lenin. Estamos nos referindo à passagem de um capitalismo concorrencial característico do século XIX, ao denominado capitalismo monopolista de Estado típico do século XX. Dentre as transformações que se colocam na maneira pela qual passam a funcionar o conjunto de práticas econômicas e relações sociais de produção e de existência em geral, destacam-se novas formas e estratégias de exercício do poder e da dominação, que passam por um processo de intensa socialização da política, “a partir da categoria de subjetividade, que não se restringe a uma dimensão individual, mas compreende também a sua constituição e expressão social mais ampla” (ROSAR, 2008; p. 171). Ou seja, “Gramsci aprofunda o tema das formas de organização da dominação, e se sua reflexão incide diretamente sobre a organização da dominação, o faz incorporando o processo da 23

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luta de classes, de conquistas democratizantes e de suas limitações no âmbito do Estado capitalista” (FONTES, 2010; p. 133). Complementando, “Nesse período [final do século XIX], nos países capitalistas desenvolvidos, houve um crescimento da sociedade civil contrário aos interesses e desejos da burguesia. (...) Tal contestação ao poder da burguesia obrigou-a a reestruturar seu “padrão de hegemonia” no que diz respeito à crise irrecuperável da relação entre Estado e sociedade civil como havia sido proposta pelo liberalismo. (...) As lutas das massas populares, de forma lenta mas incessante, obtiveram a extensão dos direitos de cidadania e fizeram os grupos dominantes compreenderem que o Estado já não podia continuar sendo interpretado, pelo resto da sociedade, como “comitê administrativo da burguesia” (ACANDA, 2006; p. 170, 171). E no âmbito dessas novas formas de organização da dominação, Gramsci identifica a necessidade de compreender a natureza e o sentido do conjunto de mudanças expressas no amplo processo de socialização da política em distintos âmbitos da sociedade. “[uma socialização da política] resultante da conquista do sufrágio universal, da criação de grandes partidos políticos de massa, da ação afetiva de poderosos sindicatos operários. (...). Neste contexto, a luta política já não se trava apenas entre uma burguesia entrincheirada no Estado e as vanguardas ativas, mas restritas da classe operária. Todo um tecido complexo de organizações sociais e políticas, envolvendo também as camadas médias e a própria burguesia, espalha-se agora pelo conjunto da sociedade capitalista. Entre os aparelhos executivos (civis e militares) do Estado e o mundo das relações sociais de produção – entre o que Gramsci chamou, respectivamente, de “sociedade política” e de “sociedade econômica” -, criou-se progressivamente uma rede de organizações com um papel efetivo na vida política, na medida em que estas organizações são peças decisivas nos mecanismos de reprodução da sociedade como um todo” (COUTINHO, 2011; p. 24; grifos meus) Diante das transformações em curso, a questão a ser respondida por Gramsci é a seguinte: “porque, apesar da crise econômica aguda e da situação revolucionária existente, na Itália e em boa parte da Europa no início dos anos 1920, não foi possível repetir a vitoriosa experiência da Revolução Russa? ” (COUTINHO, 2011; p. 20). Seu entendimento de tal situação resultará na concepção de uma nova teoria marxista do 24

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Estado e da revolução, que, distanciada do economicismo radical se apoiava numa filosófica da práxis, levando em conta as mudanças geradas pelo amplo processo de socialização da política e da explosão da sociedade civil, expressos no crescimento acelerado do tecido associativo concomitante a uma maior complexidade da estruturação social e política. (ACANDA, 2008). No conceito de filosofia da práxis concebido por Gramsci, a dimensão filosófica problematiza a relação existente entre “economia e política” e entre “estrutura e superestruturas”, nos moldes como haviam sido concebidas por Marx no século XIX; para o pensador sardo, no século XX, a relação entre economia e política passa a se dar de maneira mais complexa, adquirindo novas determinações em função da ampliação do papel da ação humana em geral que, para além da produção imediata da existência (estrutura), passa a desenvolver novas formas de dominação/submissão ao capital, materializadas fundamentalmente em novas estratégias políticas e ideológicas (superestruturas). Tal percepção gramsciana se constitui o pano de fundo de seu referencial

teórico-metodológico

explicitado

em

seus

principais

conceitos:

americanismo/fordismo; bloco histórico; oriente/ocidente; guerra de posição/guerra de movimento; hegemonia; intelectuais orgânicos; pequena política/grande política; a concepção de “catarse”, etc. E nesse complexo universo conceitual, destaca-se o conceito de Estado ampliado ou Estado integral e a categoria de “sociedade civil” que não deixam de potencializar a abordagem marxista ao evidenciar o movimento e as mudanças presentes nas novas determinações do ideário capitalista – um ideário que, para continuar fortalecendo sua lógica central de acumulação da riqueza, muda e se adapta a novas conjunturas. Estado ampliado e Sociedade civil O desafio assumido por Gramsci de refletir sobre as novas estratégias da luta revolucionária naquele contexto da primeira metade do século XX na Europa, o levou a conceber um novo paradigma da dominação burguesa, do papel do Estado capitalista e consequentemente da política em geral. Assim, Gramsci vai além da formulação marxista de Estado, e desenvolve uma concepção ampliada desse conceito; um estudo que “(...) leva a certas determinações do conceito de Estado, que, habitualmente, é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um dado momento), e não como 25

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um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais” (GRAMSCI apud COUTINHO, 2011; p. 267; grifos nossos). Assim, a ampliação gramsciana da teoria do Estado é uma ampliação dialética tendo em vista que o Estado se constitui numa totalidade que se estabelece a partir de duas esferas superestruturais distintas (“unidade na diversidade”): a sociedade política e a sociedade civil. A sociedade política, também entendida como o governo e/ou máquina do Estado, conjuga os mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da coerção; já a sociedade civil se apresenta como “a nova esfera do ser social que surge com os processos de socialização da política”. Ao definir o Estado em sentido amplo como “sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção” (GRAMSCI apud COUTINHO, 2011; p. 26), Gramsci trabalha uma articulação dialética de “identidade-distinção” entre as duas esferas. Sociedade política e sociedade civil efetivamente se identificam na ação de conservação/promoção de determinada base econômica, ou seja, exercem uma mesma função na vida social, mais especificamente na articulação e reprodução das relações de poder” (COUTINHO, 2011), voltadas à manutenção e/ou construção de uma dada hegemonia. Mas a função de conservação/promoção é exercida de maneira diferenciada pelas duas esferas, no que tange às estratégias adotadas e aos atores que as implementam. “Nos Cadernos, Gramsci distingue dois momentos da superestrutura que estão em permanente relação dialética: de um lado a “sociedade política”, de outro a “sociedade civil”. A sociedade política está constituída pelos órgãos das superestruturas encarregados de implementar a função de coerção e domínio, ao passo que a sociedade civil é conformada pelo conjunto de organismos, usualmente considerados “privados”, que possibilitam a direção intelectual e moral da sociedade, mediante a formação do consenso e a adesão das massas. A trama da sociedade civil é formada por múltiplas organizações sociais de caráter cultural, educativo e religioso, mas também político e, inclusive econômico. Por seu intermédio, difundem-se a ideologia, os interesses e os valores da classe que domina o Estado, e se articulam o consenso e a direção moral e intelectual do conjunto social. Nela se forma a vontade coletiva, se articula a estrutura material da cultura e se organiza o 26

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consentimento e a adesão das classes dominadas” (ACANDA, 2006; p. 175; grifos meus). Em se tratando da sociedade política sua atuação se dá através de uma dominação apoiada em estratégias coercitivas; “e por coerção não se deve entender apenas a violência pura e simples, mas todos os atos governamentais que sou obrigado a cumprir, ainda que não concorde com eles, como por exemplo, pagar impostos, prestar serviço militar, etc.” (COUTINHO, 2011; p. 26). Os atores da sociedade política agem através de estratégias de dominação e coerção através da chamada burocracia executiva e militar do Estado (poder executivo, poder judiciário, poder legislativo, poder militar e demais órgãos de Estado e de Governo). Já a atuação da sociedade civil voltada à conservação/promoção da base econômica se dá através de outras estratégias. Por não deterem o poder legal especifico da sociedade política, a centralidade das atuações dos atores sociais e grupos organizados que compõem a sociedade civil se dá pela estratégia do convencimento, pela busca de aliados “para suas posições através da direção político-intelectual e do consenso”. Assim, se a conservação/promoção de determinada base econômica é a dimensão comum às duas esferas, o que as diferenciam são as estratégias utilizadas e os atores que as implementam: no âmbito da sociedade política, se fazem presentes são utilizadas as estratégias de dominação e coerção e, no âmbito da sociedade civil, se fazem presentes as estratégias centradas na construção do consenso e da hegemonia. No âmbito da sociedade civil os atores sociais que executam tais estratégias atuam de maneira organizada, sendo denominados por Gramsci de “aparelhos privados de hegemonia ou organismos sociais relativamente autônomos em face do Estado em sentido estrito” (COUTINHO, 2011; p. 26). Dessa forma, o desenvolvimento do capitalismo conduziu à uma aproximação dos limites entre o “público” e o “privado”. “No capitalismo, a burguesia se vê obrigada a buscar e a organizar ativamente o consenso – ainda que passivo – dos dominados. E consegue organizá-lo por sua capacidade de disseminar normas políticas, culturais e sociais através das instituições “privadas” da sociedade civil. O Estado é a combinação, em proporções variáveis, de momentos de consenso e momentos de força” (ACANDA, 2006; p. 180).

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Segundo Gramsci, a política é “a arte de governar os homens, de buscar seu consenso permanente e, por conseguinte, a arte de fundar os “grandes Estados”” (Gramsci apud ACANDA, 2006; p. 176); diante da gradual complexidade do capitalismo, o poder exercido pela política que inicialmente se expressava por uma lógica de imposição, passa a ser complementada, no século XX, pela lógica do consenso. “O poder não é exercido apenas por meio da repressão. É necessário que suas instituições de coerção detenham o monopólio do uso da violência e que a pretensão a esse monopólio seja aceita por toda a sociedade. Por conseguinte, é imprescindível que o poder também controle a produção, a difusão e a aceitação de valores e normas de comportamento. O poder se apoia, essencialmente, no controle das instituições que conferem sentido: aqueles que definem e justificam o indivíduo, ensinam-no a pensar de certa maneira e não de outra, indicam-lhe os valores que devem compartilhar, as aspirações permitidas e as fobias imprescindíveis. A família, a Igreja, a escola, o idioma, a arte, a moral sempre foram objetivos do poder, que tentou instrumentalizá-los em benefício próprio” (ACANDA, 2006; p. 176) O legado gramsciano, ao conceber uma “teoria da hegemonia como complemento da teoria do Estado-força e como forma atual da doutrina da revolução permanente (...) [entendida] não como assalto ao aparelho de poder político-coercitivo, mas principalmente como produção de contra-hegemonia” (ACANDA, 2006; p. 173; grifos meus), possibilita uma chave de compreensão que abre novas possibilidades de entendimento das formas de dominação do capital e novas estratégias de transformação das sociedades capitalistas. Daí a necessidade de se ter uma visão pormenorizada da hegemonia, que leva em conta a “valorização do fato cultural, da atividade cultural ao lado daqueles [objetivos] meramente econômicos e meramente políticos” (DÍAZSALAZAR apud ACANDA, 2006; p. 177). Isso explica o fato de que “em muitas ocasiões, a resposta para a direção política que o Estado exerce na sociedade não deve ser procurada nas instituições governamentais e oficiais, mas nas diversas organizações “privadas” que controlam e dirigem a sociedade civil” (ACANDA, 2006; p. 177). Tais mecanismos expressam o sentido da hegemonia exercido pelos grupos dominantes que, para além de serem capazes de impor uma determinada dominação, fazem com que os demais grupos aceitem tal dominação como legítima. Nesse sentido, para Gramsci a hegemonia é, ao mesmo tempo, direção ideológico-política da sociedade civil e 28

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combinação de força e consenso para obter o controle social. Assim, na medida em que o componente essencial da hegemonia é justamente a sociedade civil, Gramsci a analisa elaborando um projeto voltado para a sua transformação, já que a força “do Estado capitalista reside na complexidade e solidez da sociedade civil na qual ele se enraíza” (ACANDA, 2006; p. 178; grifos meus). “O conceito de hegemonia em Gramsci ressalta a capacidade da classe dominante de obter e manter seu poder sobre a sociedade pelo controle que mantém sobre os meios de produção econômicos e sobre os instrumentos de repressão, mas, principalmente, por sua capacidade de produzir e organizar o consenso e a direção política, intelectual e moral dessa sociedade” (ACANDA, 2006; p. 177, 178). Ao apontar tais mecanismos, Gramsci também nos alerta para o fato de que a sociedade civil não é homogênea nem uniforme: além de se tornar o palco das contradições que se dão entre a ideologia dominante e as ideologias contra hegemônicas evidenciando a formas ideológicas que a desafiam, a sociedade civil expressa os múltiplos interesses de grupos sociais distintos. Assim, a hegemonia nada mais é que a habilidade exercida por parte do grupo que detém o poder na implementação de estratégias de cooptação ao seu projeto global de condução do conjunto social. E nesse contexto, a dialética da contradição abre espaços fundamentais para a estruturação da luta contrahegemônica já que “a sociedade civil faz parte do aparato de dominação [do capital], mas é também seu mais poderoso antagonista” (ACANDA, 2006; p. 182). Nesse sentido, as transformações rumo a uma sociedade civil crítica e problematizadora, tão necessária ao maior equilíbrio entre a lógica hegemônica do capital e a lógica submetida do trabalho, tem dentre suas múltiplas determinações uma forte relação com o projeto de educação expresso nas políticas e estratégias de implementação da escolarização básica pública e obrigatória, lócus fundamental de formação da grande massa dos trabalhadores. Partindo do ideário gramsciano acima apontado, a pesquisa aqui referenciada, analisou as mudanças quantitativas e qualitativas presentes na política de formação para o trabalho simples no Brasil contemporâneo, sistematizadas em 3 momentos históricos que resultam dos ajustes que vem se dando no projeto político neoliberal e da política educacional em curso no país: o primeiro momento vai de 1986 a 1994 e agrega os antecedentes da implantação do projeto político neoliberal de Terceira Via; o segundo momento vai de 1995 a 2006; e o terceiro momento (ainda não trabalhado numa pesquisa) 29

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envolve o período de 2007 a 2014. As análises aqui apresentadas se apoiam no segundo momento que conjuga os 2 governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e o primeiro governo de Lula da Silva (2003-2006). “Mudanças nas estratégias de implantação da reforma da escolarização básica” reflexões a partir de uma apropriação do ideário gramsciano Nas últimas décadas do século XX, o projeto hegemônico de dominação política da burguesia brasileira, inserido no contexto do capitalismo neoliberal mundializado apresentou, ao longo de dinâmicas atualizações, uma preocupação central em relação a novas e eficientes estratégias políticas voltadas ao consenso do conjunto dos sujeitos sociais. Significativamente, tal contexto tem se materializado de maneira contraditória: um discurso oficial de exaltação do aumento de participação dos distintos grupos sociais nas decisões políticas convive com uma classe trabalhadora em processo de desarticulação que presencia um efetivo ataque a direitos duramente conquistados através de lutas históricas. A compreensão de tal contradição nos remete aos anos de 1990 no Brasil, um contexto marcado pelo advento do projeto político neoliberal de Terceira Via - a mais recente versão do ideário capitalista -, centrado numa hegemonia apoiada em estratégias de consenso ressignificadas, que se configuram numa “nova pedagogia da hegemonia”3. Ou seja, para se fazer viável e aceito junto ao conjunto da sociedade, o projeto político neoliberal implantado pelo Estado brasileiro, precisou repensar as múltiplas estratégias de dominação do capital até então adotadas, dentre elas as políticas públicas de educação voltadas à reforma da escolarização básica em curso nos anos de 1995 a 2006. As análises geradas no estudo sobre as mudanças nas estratégias políticas de implantação da reforma da escolarização básica no Brasil no período de 1995 a 2006, evidenciam o uso orgânico do referencial gramsciano ao levar em conta a lógica dialética dos 3

binômios

da

totalidade/especificidade,

mudanças/permanências;

“A nova pedagogia da hegemonia (NPH) materializou-se com ações efetivas na aparelhagem estatal e na sociedade civil nos anos finais do século XX e nos anos iniciais do século XXI, configurando uma nova dimensão educativa do Estado Capitalista. Sua principal característica é assegurar que o exercício da dominação de classe seja viabilizado por meio de processos educativos positivos. Sua efetividade justifica-se em parte pela força de sua fundamentação teórica, que legitima iniciativas políticas de organizações e pessoas baseadas na compreensão de que o aparelho de Estado não pode estar presente em todo tempo e espaço e que é necessário que a sociedade civil e que cada cidadão se tornem responsáveis pela mudança da política e pela definição de formas alternativas de ação social” (MARTINS e NEVES, 2010; p. 24). Ou seja, a NPH é um conceito síntese que se apoia no conjunto do referencial gramsciano; sua concepção teve por objetivo principal dar conta do processo de redefinição dos fundamentos e das práticas de consenso e coerção do Estado brasileiro no sentido da consolidação e do aprofundamento do projeto neoliberal burguês na atualidade.

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diferenças/similaridades;

estrutura/superestruturas,

etc.

Tendo

por

objetivo

a

compreensão do sentido da reforma da escolarização básica no período em questão, tal desafio se operacionalizou empiricamente a partir da análise de alguns fenômenos políticos considerados marcos, na medida em que, gramscianamente, evidenciavam um sentido oculto e não explicitado sobre as reais intenções colocadas no jogo da dominação do capital. Assim, as análises elaboradas contemplaram inicialmente o novo sentido da lógica democrática (que resultou numa “democracia consentida) para, em seguida, serem analisados os fenômenos vinculados ao Estado em sentido estrito ou sociedade política e à sociedade civil que, direta e/ou indiretamente, impactaram as novas estratégias políticas no campo da educação: a Reforma do Aparelho de Estado, 1995; a implementação do Programa Comunidade Solidária (PCS), 1995; e o sentido da criação de inúmeros novos Conselhos, com destaque para o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), 2003. Em se tratando dos fenômenos situados no âmbito da sociedade civil, foram trabalhados grupos de intelectuais coletivos politicamente diferenciados quanto ao sentido da educação no Brasil: o Movimento Todos Pela Educação (MTPE), criado em 2006, que reforça as práticas políticas da direita para o social; a Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTE), reestruturada em 1990; e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), criada em 1999, que atua no reforço de práticas políticas de uma esquerda para o capital4. Para efeito do presente texto, será analisada a presença e o uso do referencial gramsciano como ferramenta metodológica em alguns desses fenômenos: no sentido e na efetividade da atual “democracia consentida”; no papel da Reforma do Estado Brasileiro e na nova lógica de dominação efetivada pelo Programa Comunidade Solidária; e no novo e singular papel de organismos da sociedade civil, tais como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Denominado “democracia participativa”, na prática, o projeto oficial de participação política, tem se efetivado como uma “democracia consentida”, nos moldes da lógica do consenso trabalhada por Gramsci, se viabilizando através de instrumentos e práticas do bloco no poder e dos diferentes sujeitos políticos coletivos da sociedade civil”

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Para aprofundamento das categorias “direita para o social” e “esquerda para o capital” ver MARTINS e NEVES, 2010) que explicita a noção de “pororoca do novo mundo”: “uma alegoria utilizada por nós, do Coletivo de Estudos de Política Educacional, para simbolizar o encontro de correntes políticas distintas, a direita para o social e a esquerda para o capital, a fim de construer na prática social o neoliberalismo da Terceira Via (p. 36).

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(BARROS e OLIVEIRA, 2015; p. 159). Partindo da não existência do confronto entre os distintos projetos societários - capital e trabalho -, a nova “democracia consentida” defende um novo padrão da sociabilidade burguesa que tem por objetivo articular: “o apassivamento dos instrumentos fundamentais da luta dos trabalhadores, a atuação cada vez mais orgânica dos intelectuais singulares e coletivos das classes dominantes internas e internacionais, a subordinação dos aparelhos privados de hegemonia historicamente contra-hegemônicos aos interesses do bloco no poder, a construção de uma sociedade de bem-estar e a ampla reorganização da aparelhagem estatal” (BARROS e OLIVEIRA, 2015; p. 159, 160). O mundo neoliberal, legitimado pelos organismos internacionais centrados na defesa da retomada do crescimento com mecanismos de alívio à pobreza, legitima uma democracia consentida onde a “grande política” é reduzida à pequena política, tendo em vista que os debates e as discussões envolvendo um projeto de desenvolvimento não mais se colocam no conjunto dos distintos grupos sociais; os novos “debates” que passam a se colocar na lógica política se caracterizam pela fragmentação e imediatismo que resultam em políticas focadas e isoladas que não levam em conta um amplo projeto de existência humana. Tal estratégia de atuação, não só favorece significativamente a alienação e despolitização das massas e sujeitos sociais, como reforça e facilita mecanismos de tomadas de decisão vindas de cima, sem a participação do conjunto da população que, sem a compreensão dos encaminhamentos em jogo, fica a mercê de encaminhamentos muitas vezes contrários aos seus próprios anseios. “A democracia consentida é, portanto, uma relação social que se constrói através de princípios, práticas, estratégias e precisa da colaboração da classe trabalhadora nessa construção. Esse processo pressupõe o alargamento da participação e o estímulo ao colaboracionismo e à responsabilidade social, na tentativa de acabar com as tensões e disputas entre classes. Essa participação, entretanto, é limitada, na acepção gramsciana à pequena política (MARTINS, 2007; p. 217). A grande política operada pela burguesia é “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política” (GRAMSCI, 2003; p. 21). (BARROS e OLIVEIRA, 2015; p. 160; grifos meus). No Brasil, a construção de uma democracia consentida se inicia em 1995 (1º governo de Fernando Henrique Cardoso) com a Reforma do Estado que estabeleceu 32

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juridicamente uma nova relação entre a aparelhagem estatal e a sociedade civil baseada em: ações “interdependentes e distintas” envolvendo a legitimidade de mecanismos de privatização, terceirização e “publicização”; a busca de uma governabilidade pautada no aumento da capacidade do governo via ajustes fiscais coercitivos (envolvendo uma administração pública gerencial que atua na separação da formulação/execução das políticas públicas); a criação de novas instituições na aparelhagem estatal que atuam na garantia da intermediação tendo em vista governos aparentemente legítimos e democráticos. Gradualmente, delineia-se um Estado que passa a gerenciar sua governabilidade, se apoiando fundamentalmente na articulação com os grupos organizados da sociedade civil; o conjunto se completa com o ideário neoliberal da “descentralização, focalização e privatização”, um discurso hegemônico que afirma não haver outras opções no horizonte de funcionamento do Estado. Assim, “as chamadas “entidades públicas não estatais” foram concebidas pela reforma como entidades que não faziam parte do aparelho estatal, não eram subordinadas ao governo, nem seus quadros eram de funcionários públicos; tais organizações foram também denominadas “entidades do terceiro setor”, “entidades sem fins lucrativos”, “organizações não governamentais” ou “organizações voluntárias” (BARROS E OLIVEIRA, 2015; p. 163, 164). Ainda compondo esse contexto, é criado o Programa Comunidade Solidária (PCS), marco do novo projeto de políticas sociais no Brasil, diretamente vinculado à Presidência da República. Concebido pela então primeira-dama, a antropóloga e professora, Ruth Cardoso, o PCS se voltou à concepção de estratégias voltadas ao enfrentamento dos problemas da pobreza e da exclusão social. Seu objetivo principal era “coordenar as ações governamentais voltadas para o atendimento das parcelas da população que não [dispunham] de meios para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate à fome e à pobreza” (BRASIL, 1995). Sua atuação se dá através de uma Secretaria Executiva e do Conselho da Comunidade Solidária, entendido como o espaço de “encontro” entre aparelho de estado e sociedade civil; uma estrutura voltada à lógica de parcerias, solidariedade e descentralização. Naquele contexto, o PCS se destacou por implementar de maneira exitosa os mecanismos necessários aos novos papéis do aparelho de Estado e à transferência dos serviços governamentais diretamente para a sociedade civil através de eficientes “termos 33

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de parcerias”, envolvendo a participação dos novos sujeitos políticos coletivos – as Organizações Sociais e Ong´s, os grupos sociais organizados e o setor privado – na provisão de serviços públicos e na introdução de novas formas de gestão nas organizações estatais. “(...) legitimadas pelo ideário gerencial e empreendedor da lógica privatista, as estratégias de participação desenvolvidas e adotadas promoveram uma despolitização da participação reduzindo-a à mera prática da gestão; “a ênfase gerencialista e empreendedorista transit[ou] da área da administração privada para o âmbito da gestão estatal com todas as implicações despolitizadoras delas decorrentes”” (BARROS e OLIVEIRA, 2015; p. 167). Mas, em se tratando das políticas voltadas à formação para o trabalho simples, foram com os programas inovadores e focais de desenvolvimento social com ênfase nos jovens das camadas populares - Alfabetização Solidária, Capacitação Solidária e Universidade Solidária – que efetivamente as parcerias começaram a se efetivar e se expandir. Assim, em nome da nova “democracia ativa”, o PCS neutralizou conquistas orgânicas trabalhadas desde 1988 ao atuar diretamente no esvaziamento do campo político no qual essas conquistas vinham se processando. Assim, o legado do PCS foi a construção de uma “sociedade civil ativa”, marcadamente despolitizada, possibilitada pela nova relação entre a aparelhagem estatal e a sociedade civil. “Segundo Lima e Martins (2005, p. 52), o projeto do neoliberalismo de Terceira Via considera que os canais tradicionais não dão conta das tarefas de obtenção do consenso ao projeto burguês, que requer uma “sociedade civil ativa”, não imbuída dos nexos teóricos e históricos ligados ao “velho mundo das polaridades”, e sim por uma coesão social baseada na “restauração das solidariedades danificadas”, através de posturas harmônicas, dialógicas e cooperativas. Neste sentido, identificamos quatro estratégias para a construção desse novo espaço de participação: a “descentralização da participação”, que não se restringe mais aos aparelhos do Estado; a “renovação das antigas instituições democráticas”, que precisam ser adequadas ao novo modelo de participação; a “criação de novas possibilidades de participação”, que traduzam as novas relações, e a “pulverização dos espaços de participação, cuja amplitude dificulta a organização e a síntese da classe trabalhadora em torno de assuntos mais relevantes para a classe. Essas quatro estratégias foram determinantes para a redefinição da 34

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participação social, bandeira importante da classe trabalhadora, que foi reduzida a uma participação no limite do consentimento ativo aos propósitos oficiais, aspecto central da democracia consentida. Essas quatro estratégias foram determinantes para a redefinição da participação social, bandeira importante da classe trabalhadora, que foi reduzida a uma participação no limite do consentimento ativo aos propósitos oficiais, aspecto central da democracia consentida” (BARROS e OLIVEIRA, 2015; p. 169). Nesse encaminhamento, o ápice da democracia consentida se deu em 2003, através da então Secretaria-Geral da Presidência da República do primeiro governo Lula da Silva – marco da construção de um Sistema de Democracia Participativa que consolidou a lógica da participação a partir de uma profusão de conselhos, conferências, ouvidorias, mesas de diálogo, fóruns e audiências públicas (BRASIL, 2011). Em se tratando de estratégias adotadas pela democracia consentida na sociedade civil nesse contexto, o exemplo a ser analisado no presente texto será a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, um sujeito político coletivo com significativa influência na promoção da formação de intelectuais orgânicos da nova pedagogia da hegemonia e na disseminação do projeto educacional em desenvolvimento. Criada em 1999, no Rio de Janeiro, constitui-se numa “articulação de mais de 200 movimentos e organizações da sociedade civil que atua para que todo cidadão e toda cidadã tenham garantido seu direito a uma educação pública, gratuita e de qualidade em todo o território brasileiro” (CNDE, 2002)5. Tendo por objetivo fomentar a aproximação de grupos da sociedade civil até então historicamente identificados com a luta dos trabalhadores no âmbito da formação escolar, a Campanha vem se destacando nas estratégias de

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Dentre as entidades que constituem o Comitê Diretivo da Campanha, destacam-se a Ação Educativa e a Actionaid. A Ação Educativa foi fundada em 1994 como uma ONG centrada na promoção dos direitos educativos e da juventude, voltados à justiça social, à democracia participativa e ao desenvolvimento sustentável no Brasil, além de defender a participação da sociedade em processos locais, nacionais e globais com vistas à construção de um país mais justo. Atuava na primeira conjuntura do capitalismo neoliberal de Terceira Via na formação e assessoramento tanto de grupos, escolas e comunidades quanto na pesquisa e produção de conhecimento voltado à intervenção nas políticas públicas. A Actionaid é uma ONG com atuação em mais de 40 países, que se identifica com questões ligadas à erradicação da pobreza e garantia do acesso das populações pobres aos direitos básicos como alimentação, saúde, moradia, educação, igualdade entre homens e mulheres, raças e etnias. Ao longo dessa conjuntura, outras entidades se aproximaram da Campanha: o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará - Cedeca-CE, criado em 1994; a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, criada em 1990; o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil - MIEIB; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST; a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação - UNCME; e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação - Undime, criada em 1986.

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consolidação “do engajamento e participação da sociedade civil na formulação, implementação e monitoramento de estratégias para o desenvolvimento da educação” (UNESCO, 2000; p 2), além de incentivar, articular e potencializar o protagonismo de grupos organizados da sociedade civil. No âmbito da educação básica no Brasil, seu foco estratégico é “somar diferentes forças políticas, priorizando ações de mobilização, pressão política e comunicação” (CNDE, 2008), uma evidente estratégia de conciliação de classe. “Atuando no sentido de garantir o acesso de todas as crianças, adolescentes, jovens e adultos à educação pública, gratuita e de qualidade, na perspectiva hegemônica das condições mínimas de aprendizagem, a Campanha iniciou sua atuação convocando a todos para que fossem cumpridos os direitos educativos estabelecidos na Constituição, defendendo “uma educação para a vida, para o desenvolvimento humano e social (...) onde a participação significava educar-se para o exercício da cidadania” (CNDE, 1999; p. 37 apud BARROS e OLIVEIRA, 2015; p. 187). Evidencia-se assim, o quanto esses novos sujeitos políticos coletivos gerados no contexto do ideário neoliberal tiveram papel fundamental no aprofundamento das práticas de concertação social onde a participação passou a ser viabilizada por estratégias de uma democracia consentida que se consolida a partir de 2007, a partir do 2º. governo de Lula da Silva. Ou seja, o “conjunto da obra”, analisado a partir do referencial gramsciano, evidencia a construção de uma progressiva democracia consentida – que ao misturar as estratégias de dominação presentes na sociedade política e civil – se legitima a partir “de arranjos democráticos preestabelecidos de modo a serem validados sob a coordenação de governos e/ou organizações da sociedade civil, nacionais e internacionais, credenciadas pelo capitalismo neoliberal de Terceira Via” (FALLEIROS, MARTINS, MELO, NEVES E SOUZA, 2015; p. 35). Referências Bibliográficas ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006. BARROS, Vanja; OLIVEIRA, Maria Teresa Cavalcanti. Mudanças nas estratégias políticas de implantação da reforma da escolarização básica in: MARTINS, André; NEVES, Lucia Maria (orgs.). Educação Básica: tragédia anunciada? São Paulo: Xamã, 2015. 36

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CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÂO. Direito à Educação: Pernambuco celebra os 15 anos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação: o que é a campanha. São Paulo, 2002. Disponível em: Acessado em 22 / Novembro / 2012. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. RJ: FGV-CPDOC. s.d. – Versão Multimídia. DINIZ, Eli. Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil, 1930-1945. RJ: Paz e Terra, 1978. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. – 27a ed. SP: Companhia Editora Nacional: Publifolha, 2000 – (Grandes nomes do pensamento brasileiro). 535

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GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. – 4ª Ed. RJ: Civilização Brasileira, 2011. Vol. 3. LEME, Marisa Saenz. A ideologia dos industriais brasileiros, 1919 – 1945. Petrópolis: Vozes, 1978 (Coleção História brasileira; 2). LEOPOLDI, Maria Antonieta Parahyba. Política e Interesses na Industrialização Brasileira: as associações industriais, a política econômica e o Estado. SP: Paz e Terra, 2000. MARGALHO, Maurício Gonçalves. Indústrias Klabin do Paraná de celulose: a sociogênese do projeto político-empresarial (1930-1940). Revista História & Perspectivas.

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26.

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48

/

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ESTADO, PODER E FINANÇAS NO BRASIL: A TRAJETÓRIA DAS PRINCIPAIS FAMÍLIAS EMPRESARIAIS DO SETOR BANCÁRIO BRASILEIRO Rafael Vaz da Motta Brandão1 RESUMO: A história dos grandes bancos brasileiros está intimamente relacionada à trajetória das dinastias familiares. Entre as principais famílias de banqueiros brasileiros, podemos mencionar os Safra (Safra), os Aguiar (Bradesco), os Vidigal (Mercantil de São Paulo), os Andrade Vieira (Bamerindus), os Calmon (Econômico), os Paula Machado (Boavista), os Magalhães Pinto (Nacional), os Andrade Faria (Real), entre outros. Contudo, nenhuma outra dinastia está tão fortemente associada à história dos bancos brasileiros quanto às famílias Moreira Salles, Setúbal e Villela. O objetivo deste artigo é o de discutir a trajetória destas três principais famílias empresariais do setor bancário, destacando sua organização no âmbito da sociedade civil e suas demandas e inserções junto ao aparelho de Estado, e relacionando suas estratégias de crescimento às políticas públicas para o setor financeiro, sobretudo durante a ditadura empresarial-militar e o governo neoliberal de FHC do qual, em nosso entendimento, foram amplamente beneficiadas. Os Moreira Salles foram donos do Unibanco. Na segunda década do século XX, a partir dos investimentos no café, chegaram à atividade bancária. Desde então, passaram a diversificar os seus negócios e a controlar um complexo de empresas com importantes vínculos com o capital estrangeiro. Os Setúbal e os Villela, por sua vez, chegaram ao ramo bancário devido aos laços familiares que possuíam com Alfredo Egydio de Souza Aranha, fundador do Banco Central de Crédito, instituição que daria origem ao Itaú. Olavo Setúbal e Eudoro Villela, respectivamente, sobrinho e sogro de Alfredo Egydio, herdaram a direção do banco e foram os responsáveis pelo intenso processo de expansão a partir de fusões, aquisições e incorporações que transformariam o Itaú em um dos mais poderosos e influentes grupos empresariais do país. Os Moreira Salles: poder e finanças do Brasil

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Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor visitante do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

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“Um país é o que os seus banqueiros são”. Esta frase, do então ministro da Fazenda, Delfim Netto, em um almoço na Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), em 1971, exemplifica o poder exercido pelos financistas no capitalismo contemporâneo. No caso do capitalismo brasileiro, tal poder é exercido por um reduzido grupo, na qual se destacam aqueles controlados pelas três famílias que pretendemos discutir neste breve artigo. A história da família Moreira Salles na atividade bancária começou em 1924, quando a Casa Moreira Salles, fundada por João Moreira Salles, recebeu uma carta patente do governo federal autorizando o funcionamento de uma seção bancária dentro de seu estabelecimento comercial. Em 1931, a concessão de uma nova carta patente levou à criação da Casa Bancária Moreira Salles. Em 1940, a Casa Bancária Moreira Salles associou-se ao Banco Machadense e à Casa Bancária de Botelhos, dando origem ao Banco Moreira Salles. Na daquela década, Walther Moreira Salles passou a assumir a direção dos negócios bancários da família, sendo o responsável por um processo de expansão que, dentro de pouco mais de três décadas, iria transformar a Casa Bancária Moreira Salles em União de Bancos Brasileiros e os próprios Moreira Salles em um dos maiores e mais poderosos grupos empresariais do país. Entre as décadas de 1950 e 1960, diversos diretores do banco passaram a ocupar importantes cargos no aparelho de Estado brasileiro, entre eles o próprio Walther Moreira Salles, entre eles, o de diretor da Sumoc, ministro da Fazenda e embaixador nos EUA. Em 1948, durante o governo Dutra, foi indicado para dirigir a Carteira de Crédito Geral do Banco do Brasil, então ocupada por Guilherme da Silveira. Com a posse de Getúlio Vargas em janeiro de 1951, Horácio Lafer, nomeado ministro da Fazenda, convidou-o para ser diretorexecutivo da Sumoc. No primeiro ano de sua gestão, criou a Inspetoria de Bancos e o Departamento Econômico e participou, como conselheiro de Lafer, da reunião anual dos diretores do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Ainda em 1951, no âmbito dos projetos elaborados pela Comissão Mista Brasil - Estados Unidos, Walther Moreira Salles integrou a delegação brasileira que participou, em Washington, da IV Conferência de Consulta aos Chanceleres Americanos. Ao deixar a Sumoc, em 1952, foi nomeado embaixador nos Estados Unidos por Vargas, sendo incumbido da missão de renegociar a dívida externa brasileira. Um ano depois, ao terminar a negociação de créditos para liquidação dos atrasados comerciais do país com o Eximbank, deixaria o cargo. Durante o governo JK, entre 1959 e 1960, foi novamente convidado a assumir o posto de embaixador nos EUA, também com a missão de renegociar a dívida externa brasileira, desta vez com o FMI. No governo Jânio Quadros ocupou o cargo pela 538

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terceira vez, agora como embaixador extraordinário. Durante o governo parlamentar de João Goulart, entre setembro de 1961 e junho de 1962, assumiu o ministério da Fazenda. Segundo René Dreifuss, em seu clássico estudo sobre o golpe de 1964, no início dos anos 1960, com as crescentes demandas nacionalistas e reformistas, "tornava-se imperativo para os interesses multinacionais e associados ter o comando político da administração do Estado". Assim, segundo o autor, "uma situação radical e altamente desfavorável desdobrouse para o bloco multinacional e associado que lançou uma campanha, para conseguir um novo arranjo político que expressasse os seus interesses então bloqueados" (DREIFUSS, 1987, p. 37-38). A articulação desse novo arranjo político que pudesse restabelecer a taxa de lucro, acelerando a acumulação capitalista no país, englobou as diferentes frações da classe dominante brasileira, incluindo a burguesia financeira. Tal movimento teve como consequência a derrubada do governo João Goulart, "condenando na prática a sua alternativa sócio-econômica distributiva e nacionalista e ajudando, a despeito de sua própria condição, a ancorar firmemente o Estado brasileiro à estratégia global das corporações multinacionais" (DREIFUSS, 1987, p. 38). Importantes documentos produzidos pela embaixada norte-americana no Brasil, nos meses que antecederam a queda de Goulart, revelaram que muito empresários brasileiros repassavam ao embaixador Lincoln Gordon, um dos principais articuladores internacionais do golpe, informações e opiniões sobre o governo brasileiro. Entre estes empresários estava Walther Moreira Salles, também ligado ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Em um almoço com Gordon, em 22 de novembro de 1963, cujo conteúdo fora repassado em telegrama ao Departamento de Estado dos EUA, Walther Moreira Salles contou ter recusado um convite de Goulart para assumir, pela quarta vez, a embaixada brasileira em Washington. O motivo da recusa de Walther Moreira Salles teria sido um suposto alinhamento à esquerda do governo janguista. Ainda segundo o relato do diplomata norte-americano, o banqueiro brasileiro previa uma cenário catastrófico para a economia brasileira, caso o governo não implementasse reformas urgentes. Na segunda semana de dezembro de 1963, em um novo encontro com Gordon, Walther Moreira Salles reafirmaria a sua preocupação com a instabilidade política e econômica do país e com a alta da inflação. Na ocasião, criticou novamente as ações "hostis" do governo Jango em relação ao capital estrangeiro. O modelo econômico implantado logo após o golpe orientou-se a partir de um conjunto de reformas estabelecidas pelo Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), 539

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elaborado durante o governo Castello Branco pelos ministros Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos. Dentre elas estavam: 1) a reforma trabalhista, orientada a partir de uma política de arrocho salarial, além de instituir o fim da estabilidade de emprego e de uma ação repressora contra as organizações sindicais; 2) a reforma fiscal, que instituía um sistema tributário regressivo, penalizando, sobretudo, as classes trabalhadoras (GORENDER, 1981, p. 104); 3) a reforma financeira, com a abertura da economia ao capital internacional através da flexibilização para que instituições financeiras e empresas pudessem captar recurso fora do país -, a revogação da lei de controle da remessa da taxa de lucro para o exterior e a política de estímulo à conglomeração bancária. Com a reforma financeira, foram criados o Banco Central e o Conselho Monetário Internacional (CMN), agências que extinguiriam a Sumoc e estabeleceriam novas formas de organização e subordinação das instituições financeiras públicas e privadas. Segundo Ary Minella, o CMN "reforçava um entrelaçamento entre a burguesia no poder e seus representantes diretos, consolidando a articulação entre os grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros” (MINELLA, 1988, p. 81). Assim como o Banco Central, a composição do CMN, ao longo de sua história, contava com a participação de diversos banqueiros e representantes de bancos, muitos deles, inclusive, ligados ao Unibanco e ao Itaú2. No mercado de capitais, a reforma financeira estabeleceu a criação dos bancos de investimentos. O objetivo era dinamizar o mercado financeiro do país, ampliando as funções desempenhadas pelos bancos comerciais. Dessa forma, as instituições financeiras poderiam captar recursos, inclusive no exterior, além de operar em várias modalidades do mercado de ações. O estímulo à centralização de capitais no sistema bancário, levando à formação de grandes conglomerados financeiros, foi justificado pelo governo pela necessidade de expandir a capacidade do setor de movimentar capitais e oferecer financiamentos de longo prazo para obras de infraestrutura que marcaram a ditadura. Para os Moreira Salles, iniciavase um intenso período de fusões e aquisições. Entre 1964, ano da derrubada do governo Goulart, e 1975, quando passaria a se chamar Unibanco, além da criação de um banco de investimentos (Banco de Investimentos do Brasil - BIB), foram incorporadas pelo grupo,

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Entre os nomes ligados ao Unibanco e que fizeram parte do CMN estão: Marcílio Marques Moreira, Pedro Malan, Pérsio Arida, Francisco Gros, Armínio Fraga e Roberto Konder Bornhausen. Entre os nomes que integraram o CMN ligados ao Itaú estão: Ruy Aguiar da Silva Leme, Fernão Bracher, Pérsio Arida, Paulo Egydio Martins e José Carlos Moraes Abreu.

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seis instituições financeiras: Banco da Cidade de Juiz de Fora; IBEC e DELTEC, instituições financeiras do mercado de capitais; Banco Agrícola e Mercantil – Agrimer; Banco Predial do Rio de Janeiro; e Bansulvest - Banco de Investimentos, instituição financeira do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo em que se expandiam na atividade bancária, os Moreira Salles também realizavam investimentos em várias outras áreas. A diversificação envolveu a atuação do grupo nos setores de energia, siderurgia, químico e petroquímico, máquinas e equipamentos, mineração, agrícola, alimentos, turístico, além de negócios na área cultural. Essa ramificação dos negócios teve início em 1954, quando Walther Moreira Salles tornou-se um dos principais acionistas da Refinaria União de Petróleo. Em 1961, passou a atuar também na Carbocloro. Oito anos depois, associou-se ao grupo Soares Sampaio na União de Indústria Petroquímica. Em 1971, o grupo Moreira Salles adquiriu de um grupo de investidores ingleses o controle acionário da mina de ouro de Morro Velho. Em 1980, venderiam a empresa para o Anglo American Corporation, a maior mineradora de ouro do mundo. Contudo, o grupo Moreira Salles ainda manteve-se no setor de mineração com a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), na qual até hoje realizam a exploração de nióbio. Mineral raro e com altíssimo valor de mercado, o nióbio é utilizado na produção de aços especiais. O Brasil detêm atualmente cerca de 98% das reservas de nióbio conhecidas no mundo e responde por mais de 90% do volume do metal comercializado internacionalmente. A maior parte das jazidas de nióbio em solo brasileiro encontram-se em Minas Gerais e pertencem à CBMM, a empresa controlada pelos Moreira Salles. Hoje, o grupo Moreira Salles produz 85% do nióbio no mundo, possuindo um lucro anual superior a US$ 600 milhões. Os Moreira Salles possuem, ainda, fazendas e empresas agrícolas, como a Cambuhy Agrícola, que administra grandes plantações de laranja. Outra fazenda do grupo é a Fazenda Bodoquena que, nos anos 50, teve como sócio Nelson Rockfeller.

Os interesses da

família Moreira Salles se estendem também à área cultural. Dois filhos de Walther Moreira Salles trabalham na produção de filmes e documentários. O seu filho mais velho, Fernando Roberto, além de presidir a CBMM, é também o representante da família na editora Companhia das Letras. A família é também responsável por um centro cultural, o Instituto Moreira Salles. Além da ramificação dos negócios, envolvendo investimentos em diversos setores não bancários, outra importante característica do grupo é a estreita vinculação com o capital estrangeiro, o que faz dos Moreira Salles a mais internacionalizada família de banqueiros 541

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brasileiros. Segundo Ary Minella, em 1980, incluindo o Unibanco, "a família Moreira Salles controlava um complexo de empresas e empreendimentos em estreito vínculo com o capital internacional" (MINELLA, 1988, p. 221). Ao longo dos anos, os vínculos com o capital estrangeiro se intensificaram de tal forma que o Banco Central classificava o Unibanco como "banco privado nacional com participação estrangeira". Em 2002, por exemplo, o Unibanco estava inserido em uma complexa rede de participações acionárias: a família Moreira Salles controlava a E. Johnston Participações Ltda., que detinha 85,52% da E. Johnston Representação e Participação S/A, que, por sua vez, controlava 66,72% da Unibanco Holding. Esta última contava com uma significativa participação de capital estrangeiro (Caixa Brasil SGPS, de Portugal, 10%; Commerzbank Aktiengesellschaft, da Alemanha, 8,98%; e The Daí-Ichi Kangyo Bank, do Japão, 6,16% – totalizando 25,14%) (MINELLA, 2006, p. 20). O início da década de 1990 seria marcado pela consolidação do Unibanco como um dos maiores bancos privados do país, sobretudo após as aquisições dos bancos Nacional através do Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) - e Bandeirantes. O Proer foi instituído, em 1995, pelo governo FHC, e tinha como principal objetivo recuperar bancos privados em crise, mediante intervenção do Banco Central. Segundo Carlos Augusto Vidotto, o Proer representou “um instrumento a favor do fortalecimento e concentração do capital bancário” (VIDOTTO, 2005, p. 2). Estima-se que ao todo, o custo total do programa, entre 1995 e 1997, tenha chegado a R$ 20,4 bilhões, o que corresponderia a 2,7% do PIB brasileiro. Além do Nacional, ao todo seis instituições foram salvas com recursos do Proer e tiveram o seu controle acionário transferido para outras instituições: Econômico, Crefisul, Banorte, Mercantil, Pontual e Bamerindus. O Nacional, instituição fundada em 1944 e que pertencia à tradicional família Magalhães Pinto, era um dos maiores bancos privados no país na primeira metade dos 90, quando sofreu intervenção do Banco Central. A aquisição do Nacional transformou o Unibanco em um dos três maiores bancos do Brasil. No ano 2000, o Unibanco comprou o Bandeirante, banco fundado por Gilberto de Andrade Faria e que desde 1998 pertencia à Caixa Geral de Depósitos, o maior grupo financeiro de Portugal. A partir deste negócio, o banco português passou a fazer parte do bloco de acionistas estrangeiros do Unibanco, juntamente com o alemão Commerzbank AG e o japonês Mizuho Financial Group. Com a aquisição do Bandeirantes, o Unibanco ultrapassaria os estrangeiros HSBC e o ABN-Amro/Real em número de agências. 542

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Cabe destacar que, durante o governo FHC, diversos diretores do Unibanco também ocuparam cargos importantes em agências estatais. Pedro Malan, negociador da dívida externa brasileira, presidente do Banco Central e ministro da Fazenda nos oito anos do governo FHC, assim que deixou o governo, tornou-se presidente do conselho de administração do banco e vice-presidente da Fundação Unibanco. Atualmente, preside o conselho consultivo internacional do Itaú Unibanco. André Lara Resende foi diretor do Banco Central e também negociador chefe da dívida externa, além de ser um dos integrantes da equipe econômica que elaborou o Plano Real. Antes de atuar no governo, foi funcionário do Unibanco. Hoje, é membro do conselho consultivo internacional do Itaú Unibanco, presidido por Malan. Diretor-gerente do Soros Fund Management, fundo de investimentos pertencente a George Soros, Armínio Fraga foi presidente do Banco Central no final do governo FHC. Ao deixar o cargo, tornou-se presidente do conselho de administração da Bovespa e integrante do conselho de administração do Unibanco. Em novembro de 2008, os Moreira Salles anunciariam fusão entre o Unibanco e o Itaú, consolidando ainda mais a sua posição monopolista no sistema bancário brasileiro. Na época, o Itaú era o maior banco privado do país, com ativos de R$ 440,9 bilhões, ficando atrás apenas do Banco do Brasil. O Unibanco era o quarto banco privado do país, atrás do próprio Itaú, do Bradesco e do espanhol Santander. O banco da família Moreira Salles possuía, na época da fusão, ativos de R$ 176,8 bilhões. Segundo comunicado oficial dos dois bancos envolvidos na operação, o negócio viria à tona "em momento de grandes mudanças e oportunidades no mundo, particularmente no setor financeiro". Com a fusão, foi criado o maior banco privado da América Latina e a 16º maior instituição financeira do mundo em valor de mercado à época, com mais de R$ 600 bilhões em ativos. O novo banco detinha, ainda, um patrimônio líquido de R$ 51,7 bilhões, contando com cerca de 4.800 agências e mais de 14,5 milhões de clientes. Em volume de crédito, representava, sozinho, 19% do sistema bancário brasileiro. Os Setúbal e os Villela: duas famílias na direção de um banco As origens do Itaú remontam ao ano de 1943, quando Alfredo Egydio de Souza Aranha e seu sócio, Aloysio Ramalho Foz, fundam, na cidade de São Paulo, o Banco Central de Crédito. Pertencente à tradicional família Souza Aranha, ligada à economia cafeeira na região de Campinas, Alfredo Egydio era bisneto de Joaquim Bonifácio do Amaral, visconde de 543

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Indaiatuba, e de Maria Luiza Souza Aranha, viscondessa de Campinas. Seu avô, Francisco Antônio de Sousa Queiroz, o barão de Sousa Queiroz, além de grande proprietário rural, foi deputado provincial, deputado geral, presidente interino da província de São Paulo e senador do Império do Brasil. Mas não era só à economia cafeeira que estavam ligados os Souza Aranha. Em 1889, o tio-avô de Alfredo Egydio, Joaquim Egydio de Souza Aranha, marquês de Três Rios, foi um dos fundadores do Banco do Commercio e Indústria de São Paulo. A relação da família Souza Aranha com a atividade bancária, portanto, já se fazia presente desde o final do século XIX. Olavo Egydio de Souza Aranha, pai de Alfredo Egydio, foi também o fundador, em 1909, de uma instituição bancária: o Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola do Estado de São Paulo. Bacharel formado pela Faculdade de Direito do Recife, foi deputado, senador e principal acionista das companhias Estrada de Ferro Paulista e Estrada de Ferro Mogiana. Ao final da década de 1950 e com a saúde debilitada, Alfredo Egydio de Souza Aranha passaria a administração do banco para o seu genro, Eudoro Villela, e para o seu sobrinho, Olavo Setúbal. Assim como o Unibanco, o Itaú foi um dos principais grupos beneficiados pela reforma do sistema financeiro empreendida pela ditadura empresarial-militar e que estimularia a expansão do capital monopolista no setor. Tal política permitiria um crescimento extraordinário ao banco controlado pelas famílias Setúbal e Villela a partir de fusões, aquisições e incorporações de outros bancos. No ano do golpe, o então Banco Federal de Crédito ainda era um banco basicamente de atuação regional, possuindo 58 agências, a maior parte delas no estado de São Paulo. Uma década depois, já transformado em Itaú, possuía agências em várias regiões do país e figurava entre os grandes bancos brasileiros. A primeira importante fusão da história do ainda Banco Federal de Crédito ocorreu justamente em 1964. Tratava-se do banco Itaú, braço financeiro da Companhia de Cimento Portland Itaú, de Minas Gerais, instituição bancária fundada em 1944 por José Balbino Siqueira. Ocupava a 47ª posição do ranking dos bancos do Brasil e possuía uma importante rede de 76 agências. Proporcionada pelo processo de financeirização da economia brasileira empreendida pela ditadura civil-militar, através da lei de reforma do mercado de capitais, o grupo Itaú obteve a primeira carta patente para a abertura de um banco de investimentos no país, o Banco Federal Itaú de Investimentos - Bankinvest.

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Em 1966, uma segunda fusão era realizada, desta vez, com o Banco Sul-Americano. Três anos depois, era a vez da fusão com o Banco da América, a terceira na história do grupo, passando o banco a se chamar Itaú América. As aquisições e incorporações prosseguiram ao longo da década de 1970, a partir da compra, em 1973, do Banco Português do Brasil. No ano seguinte à compra do Banco Português do Brasil, o Itaú América realizou outra importante operação, com a incorporação do Banco União Comercial (BUC), ocorrida logo após a quebra do Banco Halles. As sucessivas crises bancárias ocorridas após o golpe de 1964 mostram que a solução para a sua superação quase sempre envolveria a participação de recursos públicos. O Halles, uma das instituições favorecidas pela política de conglomeração bancária da ditadura, vinha tendo problemas em relação à política monetária do ministro Mário Henrique Simonsen para conter os riscos de inflação gerados pelo choque do petróleo de 1973. A intervenção no Halles se deu em 1974 e o governo financiou a sua incorporação pelo Banco do Estado da Guanabara. Estima-se que os custos do governo com a crise do Halles tenham atingido US$ 1,2 bilhões. No ano seguinte à incorporação do BUC, Olavo Setúbal foi nomeado prefeito de São Paulo, entregando a diretoria do banco para José Carlos Moraes de Abreu. Ainda em 1975, o banco passava a adotar o nome de Itaú, situando-se entre os 500 maiores do mundo. As relações do grupo Itaú com a ditadura empresarial-militar são evidentes. Em 1967, Eudoro Villela tornou-se presidente da Associação Nacional de Programação Econômica e Social (Anpes), a versão paulista do IPES. Ambos foram órgãos dedicados à conspiração civil no golpe de 1964. A presença de Eudoro Villela na direção da Anpes é mais um importante elemento demonstrativo do apoio e financiamento de banqueiros à ditadura civil-militar. No período em que presidiu a entidade, Eudoro Villela trouxe, para uma conferência na instituição, o economista norte-americano Milton Friedman, um dos mais principais intelectuais orgânicos do neoliberalismo e notório apoiador da ditadura chilena de Pinochet. Em meados da década de setenta, Olavo Setúbal ocupou importantes cargos em agências estatais. Entre 1974 e 1975, foi nomeado membro do Conselho Monetário Nacional. Na mesma época, foi diretor da Investimentos Brasil, órgão do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE). Em 1975, foi indicado pelo governador paulista Paulo Egydio Martins, para ocupar a prefeitura de São Paulo. A relação entre o Itaú e a ditadura civil-militar tornara-se cada vez mais estreita, a ponto de seu presidente à época ocupar o cargo executivo mais importante da maior cidade do país.

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A década de 1990 foi marcada por um novo ciclo de aquisições e incorporações pelo Itaú, impulsionadas pelas reformas neoliberais do governo FHC, que incluiriam as privatizações dos bancos estaduais, resultando em uma das mais importantes transformações do sistema financeiro brasileiro na segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000. O principal programa de privatização do setor consistiu no Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (Proes). Com o programa foram criadas duas linhas de crédito voltadas para a renegociação dos passivos dos bancos estaduais. A primeira previa um financiamento de 100% do total das dívidas caso o banco estadual fosse privatizado, transformado em agência de fomento ou extinto; a segunda previa um financiamento de 50% do total das dívidas caso o governo estadual optasse pelo saneamento de sua instituição financeira3. Quando o Proes foi criado, 35 instituições financeiras eram controladas pelos estados brasileiros. Até o ano de 2002, com exceção de Mato Grosso do Sul e Tocantins (que não possuíam instituições financeiras) e da Paraíba e Distrito Federal (que não manifestaram interesse em participar do programa), todos os demais governos estaduais aderiram ao Proes. O programa foi inteiramente financiado com recursos públicos, mediante a emissão de títulos pelo Tesouro Nacional. Ao todo, o Proes consumiu mais de R$ 73 bilhões, quase quatro vezes mais do que o Proer (BRANDAO, 2009, p. 8). A privatização dos bancos estaduais atendeu exclusivamente aos interesses de grandes grupos financeiros nacionais e estrangeiros. Até o ano de 2002, sete passaram para o controle de bancos privados nacionais (Banerj, Credireal, Bemge, Baneb, Banestado, BEG, BEA e BEC) e três foram adquiridos por bancos estrangeiros (Bandepe, Banespa e Paraiban, este último, privatizado fora do Proes). Assim, o Proes não somente contribuiu para o processo de centralização bancária, como também intensificou a desnacionalização do setor, tendo em vista que dois grandes grupos financeiros estrangeiros (ABN-Amro e Santander) participaram das privatizações dos bancos estaduais tendo, inclusive, assumido o controle do maior deles (Banespa). Diversos mecanismos foram adotados para “estimular” a participação dos grupos financeiros nos leilões de privatização como a retirada das dívidas previdenciárias e trabalhistas dos passivos dos bancos estaduais, a possibilidade de utilização dos certificados 3

BANCO CENTRAL DO BRASIL. Resolução nº 2.365. “Institui Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária (PROES), no âmbito dos mecanismos estabelecidos na Medida Provisória nº 1.5567, de 13.02.97”. Brasília, DF, 28 fev. de 1997.

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de privatização, também chamados de "moedas podres", a isenção do depósito compulsório e a manutenção das contas do Estado e do funcionalismo nas instituições adquiridas. O Itaú foi o maior beneficiado pelas privatizações dos bancos estaduais, adquirindo quatro instituições financeiras, três delas de grande porte: Banerj, Bemge e Banestado, além do Banco do Estado de Goiás (BEG). Embora o Bradesco tenha adquirido cinco instituições, todas elas, com exceção Credireal, eram bancos de médio e pequeno porte (Baneb, BEA, BEM e o BEC). Conclusão Neste breve artigo, procuramos discutir a trajetória das famílias Moreira Salles, Setúbal e Vilella. Destacamos, assim, a sua estreita vinculação com o Estado brasileiro, principais dinastias empresariais do setor bancário brasileiro, um dos setores mais dinâmicos do capitalismo brasileiro. Procuramos, assim, relacionando suas estratégias de crescimento às políticas públicas para o setor financeiro, sobretudo durante a ditadura empresarialmilitar, a partir de política de conglomeração bancária das décadas de 1960 e 1970, e o governo FHC, em que as reformas neoliberais dos anos 90, como o Proer e o Proes, beneficiaram enormemente estes grupos, reforçando a sua posição monopolista no setor. Quadro 1: Principais fusões, aquisições e incorporações do grupo Unibanco

Ano 1940 1940 1965 1966 1966 1967 1970 1974 1981 1991 1995 1998 2000 2000 2004 2008

Instituição bancária Banco Machadense Casa Bancária de Botelhos Banco da Cidade de Juiz de Fora IBEC DELETC Banco Agrícola e Mercantil (Agrimer) Banco Predial do Rio de Janeiro Bansulvest - Banco de Investimentos S.A. Banco Mineiro Banco Pão de Açúcar Banco Nacional Banco Dibens Credibanco Bandeirante Banco BNL do Brasil Itaú

Tipo Fusão Fusão Aquisição Incorporação Incorporação Fusão Fusão Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Fusão

Quadro 2: Principais fusões, aquisições e incorporações do grupo Itaú 547

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Ano Instituição bancária 1961 Banco Paulista de Comércio 1964 Banco Itaú 1966 Banco Sul Americano do Brasil 1969 Banco da América 1970 Banco Aliança 1973 Banco Português do Brasil 1974 Banco União Comercial 1985 Banco Pinto Magalhães 1995 Banco Francês e Brasileiro 1997 Bamerindus Luxembourg 1997 Banco do Estado do Rio de Janeiro - Banerj 1998 Banco do Estado de Minas Gerais - Bemge 1998 Banco Del Buen Ayre 2000 Banco do Estado do Paraná - Banestado 2001 Banco do Estado de Goiás - BEG 2002 BBA Creditanstalt 2003 Banco Fiat 2003 Banco AGF 2003 AGF Vida e Previdência 2006 BankBoston do Brasil 2006 Santander Banespa Japão 2008 Unibanco Referências bibliográficas:

Tipo Compra de seis agências Fusão Fusão Fusão Aquisição Incorporação Incorporação Incorporação Controle acionário Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Associação Controle acionário Aquisição Aquisição Aquisição Aquisição Fusão

BANDEIRA, Luiz Alberto Vianna Moniz. Cartéis e desnacionalização: a experiência brasileira (1964/1974). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. BORTONE, Elaine. O Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) na construção da Reforma do Estado autoritário (1964-1968). In: Tempos Históricos, Volume 18, 2014. BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. O Proes e a privatização dos bancos estaduais: o caso do Banco do Estado do Rio de Janeiro. Polis: Texto para Discussão nº 17. Niterói, 2009. DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis, Vozes, 1981. GORENDER, Jacob. A Burguesia Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981. LANDES, David. Dinastias: esplendores e infortúnios das grandes famílias empresariais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. LAZZARINI, Sérgio. Capitalismo de Laços: os donos do Brasil e suas conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

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MARTINS, Ana Luiza. Itaú Unibanco 90 Anos: uma história muito além dos números. São Paulo: Editora Itaú Unibanco, 2014. MINELLA, Ary Cesar. Banqueiros: organização e poder político no Brasil. São Paulo: ANPOCS, 1988. __________. Grupos financeiros no Brasil: um perfil econômico e sociopolítico dos maiores credores privados. In: V Workshop Empresa, Empresários e Sociedade: o mundo empresarial e a questão social. Porto Alegre, 2006. VIDOTTO, Carlos Augusto. O PROER no centro da reestruturação bancária dos anos 90. In: Texto para Discussão UFF/Economia nº 172, 2005.

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ROBERTO CAMPOS EM DEFESA DO “PRODUTIVISMO” E DO PRIVATISMO NA EDUCAÇÃO DA DITADURA Wanderson Fabio de Melo1 RESUMO: O presente texto tem como objetivo analisar a visão de Roberto Campos sobre a educação, tomando como referência os seus textos no período da ditadura, momento em que o intelectual defendeu o ensino tecnocrático e o privatismo. Roberto Campos foi ministro do Planejamento e da Coordenação Econômico no Governo de Castello Branco e destacou-se enquanto polemista na imprensa em defesa da ditadura imposta com o golpe de Estado desde 1964 no Brasil. Com vistas a justificar as suas propostas, Campos assumiu lugar na disputa social, sendo portador de uma interpretação sobre a educação brasileira e ascensão do movimento estudantil na segunda metade dos anos 60 do século XX. Pretende-se demonstrar as posições do autor e explicitar o núcleo social em que se sustentou, por meio de suas relações na sociedade civil e na sociedade política, objetivando a maior compreensão da história da educação brasileira e a particularidade da proposta do ensino produtivista, bem como das políticas educacionais tecnocráticas durante a ditadura. Considera-se a observação de Ernest Mandel acerca da transição da organização universitária dos pós-II Guerra, com o advento do “capitalismo tardio”, isto é, o trânsito da universidade tradicional para a universidade tecnocrática. As fontes são compostas pelos artigos de Roberto Campos veiculados na imprensa de grande circulação e textos publicados nos anais de encontros Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES). Em relação às categorias de análises, considera-se as reflexões de A. Gramsci tais como sociedade civil, sociedade política, intelectual orgânico, entre outras. O procedimento metodológico utilizado é a análise imanente.

Campos influenciou decisivamente no período de Castello Branco, o primeiro governo após o golpe de Estado em 1964, haja vista que foi o principal formulador do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg), responsável pela implementação de uma série de medidas “modernizadoras” na economia brasileira. Sendo assim, o autor em questão foi um dos

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Doutor em História Social pela PUC-SP e professor na UFF Campus de Rio das Ostras. E-mail: [email protected]

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ideólogos que sistematizou a “consciência social prática” do bloco civil-militar, ancorado sempre nos grupos proprietários que advogavam as reformas financeira e da estrutura produtiva. Ademais, veiculou uma proposta de educação que corroborou a Reforma Universitária (lei 5.540/68) e as Leis de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional 5.692/71, marcada pela concepção tecnicista2. Com vistas a justificar as suas propostas, Campos assumiu lugar na disputa social. Portador de uma interpretação sobre a educação brasileira, o intelectual sentiu-se convocado a responder a ascensão do movimento estudantil dos anos 60 do século XX. Destarte, pretendeu implantar o seu programa por meio da ação na sociedade política e atuou na persuasão da sociedade civil através da imprensa escrita, portanto, almejou a construção de um discurso hegemônico. Sua defesa explícita do “produtivismo educacional” endereçou-se à confrontação aos estudantes organizados, visto que estes últimos discordavam da modernização capitalista em curso no país, sobretudo, no que se referia ao decurso da questão educacional no pós-64. Nos anos 60 do século XX verificou-se uma nova etapa no capitalismo mundial, trata-se da terceira revolução industrial, dito de outro modo, foi o momento da revolução técnico-científica, a partir do advento da telemática e da micro-eletrônica. Assim, constata-se o pano de fundo das transformações exigidas no campo educacional, isto é, a transição da Universidade Tradicional para a Universidade Tecnocrática. A formação universitária tradicional esteve pautada na constituição das “elites” dirigentes, quadros que desempenhariam as funções de mando no Estado ou na administração. Tal propositura educativa correspondeu aos anseios dos grupos dominantes desde a formação dos estados nacionais até o período entre guerras. Entretanto, situado em um contexto distinto, ou seja, no pós-Segunda Guerra Mundial, o ensino superior tecnocrático buscou atender, por um lado, a necessidade de “mão-de-obra” especializada para indústria e o aparelho estatal em crescimento. Por outro, considerou a necessidade de responder à crescente procura de estudos superiores por setores expressivos da população que visavam obter ascensão social (MANDEL, 1979, p. 42). No início da década de 60, os movimentos sociais saem às ruas e, de certo modo, apoiam os anseios de construção das Reformas de Base, que previa em seus itens a “Reforma Educacional” e a “Reforma Universitária”. No entanto, o golpe civil militar de abril de 64 impôs a derrota à proposta reformista. Doravante, ao invés da educação com preocupações e 2

A esse respeito, conferir Germano (2000) e Melo (2002).

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compromissos sociais, a pauta nos assuntos do ensino se viu dominada pela “qualificação da mão-de-obra”, além do questionamento dos gastos estatais com a educação. Destaca-se que boa parte dos escritos de Roberto Campos sobre a educação foram produzidos no ano de 1968, resultado de seu engajamento na temática. Naquele ano, os movimentos estudantis vivenciaram uma histórica ascensão. Com o intuito de enfrentar os estudantes, as camadas dirigentes se debruçaram a “encontrar soluções contra a perturbação da ordem social”, sendo organizado o Fórum de Educação do IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais). Segundo Maria Souza, da “organização do fórum participou diretamente o ex-ministro Roberto Campos, a quem foram submetidos esquemas e títulos das conferências e os nomes dos conferencistas e debatedores” (1981, p. 80). A despeito das divergências no bloco de poder civil-militar quanto à condução política e econômica do país, no que se refere às questões educacionais verifica-se o consenso tecnicista, haja vista que as frações dominantes concordavam sobre a pertinência do acordo MEC (Ministério da Educação e Cultura) do Brasil e a USAID (United State Agence International Development) dos Estados Unidos. Desse modo, os propósitos do presente texto serão responder às seguintes questões: Qual a visão de Roberto Campos sobre a função da educação? Quais as singularidades de sua proposta de “produtivismo” educacional nos anos 60? Como as posições defendidas por Roberto Campos se relacionaram com a educação na ditadura? Pretende-se objetar a essas perguntas por meio da análise que capture a gênese e a função social do pensamento do economista, desvendando suas determinações sócio-históricas e revelando a sua lógica interna, assim, permite-se fazer o autor explicitar os seus próprios pressupostos. Nesse sentido, almeja-se problematizar a visão de Campos sobre a educação a partir de uma perspectiva histórica, cuja função principal, de acordo com Hobsbawm, “além de relembrar o que os outros esqueceram ou querem esquecer, é tomar distância, tanto quanto possível, dos registros da época contemporânea e vê-los em um contexto amplo e com uma perspectiva mais longa” (2007, p. 9). Expressão de um projeto ideopolítico para a educação Após estudar os artigos e discursos de Roberto Campos nos anos 60, pode-se observar que o núcleo de sua proposição se adequava às políticas aplicadas no período de Castello 552

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Branco, uma vez que o economista dirigiu críticas ao sistema de ensino público e gratuito e à Lei de Diretrizes e Bases para Educação aprovada em 1961. Nas proposições do autor, notouse a defesa da transferência de atribuições para o Ministério do Planejamento e da Coordenação Econômica que antes eram do Conselho Federal de Educação. Segundo Campos, os temas da “educação” deveriam considerar a melhoria da qualidade da mão-de-obra – como investimento não menos importante que a máquina, a estrada e a represa. Ou como dizia Adam Smith: “Esses talentos... a melhoria do adestramento de um trabalhador pode ser equiparada a uma ou a um instrumento de comércio”. (1968b, p. 92)

É possível desprender do fragmento acima a visão de educação do autor, visto que defendeu a “melhoria da mão-de-obra” e investimento em recursos humanos para a produção capitalista. Desse modo, o ministro expressou uma concepção de educação tecnicista, concebendo-a enquanto nível de “treinamento técnico” para a execução de tarefas, ao invés da produção de conhecimento científico. Portanto, é lídimo afirmar que o economista entendeu a educação como meramente formação do capital humano. Em outras palavras, subordinou-se o processo educativo aos anseios de valorização do capital, tomando o conhecimento enquanto insumo de potencialização de lucro na medida em que se incrementa a produtividade do trabalho. Para o autor Luís Pereira, a prática dessa visão de educação não é para se cuidar de “homens, mas de força de trabalho; não se trata da constituição de homens historicamente determinados, mas da elaboração de um fator de produção necessário – força de trabalho nos vários níveis e tipos de qualificação técnica” (1978, p. 163). Neste sentido, tal unilateralidade na educação estabelece a práxis que desconsidera a perspectiva da realização do humano em suas potencialidades. É lídimo observar que as propostas educacionais da ditadura confrontaram as reivindicações dos movimentos estudantis em ascensão. Ao se debruçar na “explicação” das mobilizações universitárias, o economista declarou: “Diria que a inquietação estudantil, certamente, se alicerça bastante nesta constatação, pelo aluno, da futilidade do seu treinamento face ao mercado de trabalho.” (CAMPOS, 1969, p. 79). Sendo assim, para o autor, o processo educativo referenciado no “mercado de trabalho” minaria a rebeldia estudantil. Em relação ao sistema público de ensino superior, Roberto Campos elencou suas críticas ao sistema público de Ensino Superior gratuito por: a) “tirar recursos” do ensino básico e

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técnico, b) por atender a classe média para cima e c) por desconsiderar as exigências do mercado de trabalho (1968b, p. 93-95). A proposta aparente equitativa e necessária explicitou que não estava em questão o processo de democratização real no ensino, na medida em que se perpetuou o “elitismo” das universidades tirando da estrutura de competição aos que não podem arcar com os custos da educação superior, o que, de efeito, dificultou e restringiu a mobilidade social. Sobre o segundo aspecto de sua crítica, no tocante à questão da composição social dos alunos nas universidades públicas, torna-se necessário lembrar a pesquisa da socióloga Marialice Foracchi sobre a USP (Universidade de São Paulo), a mais tradicional e tida como a melhor e mais concorrida universidade do país. De acordo com a pesquisa, em 1963, 59% dos estudantes trabalhavam (sendo que 33% do total da amostragem freqüentavam cursos noturnos); 36% eram mantidos pela família; 3% tinham bolsa de estudos. Dos 59% que trabalhavam, 34% o faziam em atividades que consideravam relacionadas com o curso e, por outro lado, 25% exerciam funções que não eram assim relacionadas. Além disso, 76% dos estudantes entrevistados correspondiam à primeira geração universitária de sua família. Do total dos estudantes da USP, 26% estavam dentre os que foram chamados de pertencentes ao “estado socioeconômico A” (1977, p. 124). Partindo dos dados acima, percebe-se que aquela instituição já não era reduto apenas da antiga “aristocracia”, mas que em sua composição contava também elementos vindos das famílias das classes média, trabalhadora e assalariada. Ao prosseguir o seu raciocínio, Campos defendeu a necessidade da Escola Superior Pública formar para o “mercado de trabalho”, priorizando o aperfeiçoamento técnico e a absorção de conhecimento. Além disso, ao criticar o sistema de ensino público, de certa forma, seus argumentos já se direcionavam a uma solução privatizante, haja vista que defendeu a cobrança de mensalidades nas universidades públicas e o fortalecimento do ensino privado em todos os níveis. Vale destacar que a política educacional da ditadura possibilitou, pela primeira vez na história brasileira, o educação universitária em um setor para investimentos capitalistas privados extremamente rentáveis, de modo que a educação superior se transformou num grande negócio. Em consequência, segundo as informações analisadas por Bárbara Freitag (1986), em 1964 as matrículas no ensino superior público representavam 75% do total, em 1984 elas correspondiam 554

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apenas a 25%, no tocante a expansão constatou-se que entre 1968 e 1973, a oferta de vagas cresceu 210% na rede pública enquanto na rede particular a ampliação foi de 410%. Cabe ressaltar que a privatização, em casos muito significativos, foi protagonizada por grupos econômicos com prévia atuação no ensino primário e secundário, como pode ser atestada pela trajetória do Colégio Piedade à Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Deve-se observar a participação de civis no golpe de Estado de 1964 que originou a ditadura que teve a direção do poder executivo na figura militar. Além disso, a participação de civis na esfera de poder foi relevante, como se observa na formulação da proposta educacional3. Em consequência, nomeia-se o período ditatorial como sendo o da ditadura civil-militar com o intuito de melhor desvendar as relações entre a sociedade e a forma de poder instituído. Ressalta-se que essa ponderação preliminarmente foi realizada por René Dreyfuss (1981), em sua monumental pesquisa na qual apontou a participação da sociedade civil na deflagração do golpe. Contudo, Dreifuss ressaltou o fato de que a parte civil golpista era composta pelos proprietários do capital, de modo que também se pode definir a ditadura como empresarialmilitar. No tocante às dificuldades nos assuntos educacionais, Roberto Campos tratou de suas propostas para a educação afirmando que os problemas vinham do período anterior, pois nos anos 60 entendeu que o país não conseguiu mobilizar recursos para alfabetizar mais que 40% da população, onde a educação média atinge pouco mais de 11% da população escolarizável (12-18 anos), e onde os estudantes que conseguem chegar à escola superior representam pouco mais de 2% da população escolarizável (19-25 anos)! (1968a, p. 3)

É importante destacar que Campos citou os desafios dos analfabetos adultos, mas não pôs no horizonte qualquer política pública para atacar a questão em seu período no governo, simplesmente abandonou esse enorme contingente4. Assim, nota-se que o economista protagonizou a modernização excludente ao não programar o enfrentamento do analfabetismo.

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Sobre o engajamento de empresários na formulação da política educacional da ditadura, conferir Souza (1981). Vale lembrar que o Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) direcionado ao combate do analfabetismo de adultos iniciou as suas atividades em 1969. Além disso, o insucesso do Mobral foi comprovado pelos dados, segundo Cunha “Se a taxa de analfabetismo de 1970 era de 33,6% para a população de 15 anos e mais, dez anos depois tinha baixado para 25,4%, ou seja, uma diferença de apenas 8,2%. Para uma barulhenta cruzada alfabetizadora, que esperava uma taxa residual de analfabetos em 1980 inferior a 10%, era o fracasso proclamado aos quatro ventos. Ventos que sopravam ainda mais forte quando se via que o número absoluto de analfabetos de 15 anos e mais aumentou, naquele período, de 540 mil pessoas, que foram somar-se aos 18,2 milhões de iletrados que havia em 1970” (1985, p. 59-60).

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Desde o governo de Juscelino Kubitschek vinham-se intensificando as campanhas para a alfabetização. No governo Jânio Quadros foi assinado um convênio com a Igreja Católica criando o MEB (Movimento de Educação Básica). Após a conturbada renúncia de Quadros, o governo João Goulart continuou com o MEB e lançou o Movimento Nacional contra o Analfabetismo. No governo deste último, foram incentivadas várias experiências de alfabetização de adultos, tendo destaque os trabalhos do educador Paulo Freire, cuja metodologia parte da realidade do educando, entendendo o analfabeto como “sujeito” e a educação propiciadora da “práxis verdadeira para o oprimido” (FREIRE, 1987). Na perspectiva das Reformas de Base os movimentos sociais aderiram de maneira militante ao trabalho de alfabetização de adultos. No Recife, formou-se o Movimento de Cultura Popular (MCP), militantes da esquerda da JUC (Juventude Universitária Católica) atuaram no MEB e a UNE (União Nacional dos Estudantes), por meio do Centro Popular de Cultura (CPC), também desenvolveu trabalhos nesse sentido. Na fase presidencialista, João Goulart oficializou o Plano Nacional de Alfabetização (decreto 53465, de janeiro de 1964), com a previsão em acrescentar cinco milhões de eleitores ao corpo votante, nos escrutínios de 1965, a fim de desequilibrar o poder da oligarquia em favor do movimento popular. Paralelamente às políticas de governos, lançou-se o debate da LDBEN (Leis de Diretrizes e Bases Educação Nacional) em 1948, que foi promulgada Lei 4024, em dezembro de 1961. Nesse debate havia duas posições: a privatista, defendida pelas escolas privadas, e outra, defendida pelos educadores: escola pública, gratuita e laica. A LDB acabou sendo uma conciliação dos dois projetos, de modo que após a aprovação da Lei, o ensino no Brasil é direito tanto do poder público quanto da iniciativa privada. Mas tal legislação abria a possibilidade do estado financiar as escolas privadas. A LDBEN consagrava a descentralização, isto é, estabelecia o Conselho Federal de Educação, tirando as políticas educacionais da dependência do poder executivo, ao passo que expressava a compreensão profissional, democrática e pluralista nos temas educacionais. Esta atribuição da lei recebeu crítica de Roberto Campos, pois em seu entendimento a Lei de Diretrizes e Bases revelou irrealismo ao atribuir ao Conselho Federal de Educação a responsabilidade de planejamento do sistema federal de educação e de transferência, aos Estados, dos ‘Fundos Federais de Ensino’. De um lado, o planejamento da educação não pode ser tarefa exclusiva de educadores e homens de letras, pois envolve a fixação de prioridades no rateio de recursos, a análise do mercado de trabalho e o cálculo de custo, tarefas do economista. (1968b, p. 101)

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Assim, a “tarefa do economista” seria “racionalizar” os gastos com educação, tirando a autonomia do setor educacional no encaminhamento de suas prioridades, de modo que o planejamento (ou falta de planejamento) do ensino universitário no Brasil tem subordinado o dispêndio federal a dois critérios: o político-geográfico e o demográfico. De acordo com o primeiro deles, universidades e faculdades são criadas ou encampadas à luz de pressões políticas regionais, sem previa análise do custo previsível por aluno, ou das exigências do mercado de trabalho, a fim de se classificarem as prioridades de investimento. (1968b, p. 100-1)

Observa-se que o economista entendeu o problema educacional no tocante às adequações de recursos, além disso, ao ressaltar a “necessidade de conter os gastos”, propôs mudanças na montagem do ensino superior no país, rompendo, dessa maneira, com a legislação de caris liberal-democrata e progressista que àquela época se relacionava à plataforma nacionaldesenvolvimentista e ao liberalismo da Constituição de 1946. A proposta de Campos estava nucleada na tecnocratização das decisões tendo como eixo articulador a economia de recursos, o atendimento às demandas do mercado e o favorecimento da rede particular de ensino. Destarte, a crítica de Campos à primeira LDB expressou a sua concepção de planejamento para a educação, haja vista que O sistema de planejamento deve partir da análise do mercado de trabalho, atual e potencial, e não de critérios geográficos ou demográficos, a fim de se evitar gastar dinheiro para produção de advogados, onde se necessitam agrônomos; engenheiros, onde se precisam mecânicos; economistas, onde se precisam contadores ou administradores de negócios (1968b, p. 102).

Assim, a autonomia da educação foi rompida, uma vez que passou-se a programação educacional, na fase de Castello Branco, para o Ministério do Planejamento, que realçou as exigências do “mercado de trabalho” e não os “critérios geográficos ou demográficos”. Nota-se que a concepção de planejamento educacional do ministro relevou o “mercado de trabalho” uma vez estabelecido, não fez referências ao mundo do trabalho, isto é, às novas possibilidades de relações profissionais e o desenvolvimento econômico e social que emerge a partir de novos conhecimentos construídos na coletividade e nas universidades. Dito de outro modo, impôs uma visão estática e não considerou a possibilidade de transformação do próprio processo de trabalho. Vale destacar que uma das características das reformas educacionais nos estados autocráticos “que se pretende sempre inovadoras”, segundo a historiadora Vera Lúcia Vieira, é o intento de resolver o “acesso ao mercado de trabalho” (2005, p. 17). Nota-se, assim, que 557

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Roberto Campos se inseriu nessa tradição, uma vez que desempenhou a função de ministro de Estado e defendeu a primazia do “mercado de trabalho” nos temas educacionais. Campos aderiu à proposta de Reforma Universitária da ditadura empresarial-militar. Esta era muito diferente das bandeiras defendidas por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro no governo Goulart, que consistia na expansão do ensino superior público e na democratização das decisões. Ao contrário, a contrarreforma da ditadura possibilitou a promoção do sistema privado de ensino superior e a autocratização das decisões. Contudo, é importante destacar que tanto a reforma democrática propalada pela dupla progressista quanto à reforma da ditadura empresarial-militar recusaram o ensino tradicional elitista bacharelesco de outrora, visto que aquela prática se mostrava descompromissada com as novas necessidades sociais. A Universidade Tradicional se expressava no regime de cátedra dos professores desvinculado da produção científica. É possível considerar que as proposituras do ministro Roberto Campos visaram enfrentar, a partir do ponto de vista capitalista, o aumento das matrículas no ensino superior e a redução do custo médio por aluno. Doravante, suas posições sustentavam o decreto-lei 53/66, que determinou os princípios e as normas de organização para as universidades federais, os quais, segundo Luiz Antonio Cunha, eram “vedava a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes; determinava a unidade entre ensino e pesquisa; obrigava a concentração do ensino e da pesquisa básicos, de modo a formarem um sistema comum para toda a universidade” (2000, p. 179). Assim, a reforma se pautou pela abolição das cátedras que perpetuavam um ensino magistral e unifuncional não articulado à lógica produtivista e tecnicista, ao passo que iniciou a instauração da forma organizativa departamental. Neste sentido, Campos corroborou a mudança do antigo padrão brasileiro de ensino superior, defendendo que: “a implantação do princípio de produtividade no ensino é a abolição das cátedras vitalícias” (1968a: 3). Compreende-se que Campos se opôs ao sistema de cátedras na Universidade, visto que tal procedimento não se relacionava à ampliação da produtividade, além de atrapalhar o enlace entre educação e mercado. Nota-se que as propostas de Roberto Campos para a educação superior ressaltavam que o espaço universitário deveria preencher uma função diferente da educação tradicional. No horizonte da faculdade constariam as inovações tecnológicas, formação de peritos tecnocráticos 558

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e a exigência da especialização. Para tanto, a atitude neopositivista substituiu o liberalismo clássico, atendendo a demanda da sociedade capitalista que emergiu no pós-Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, na concepção de ensino proferida pelo economista constata-se a preponderância da especialização sobre a formação, uma vez que a estrutura organizativa por meio dos departamentos universitários cumpriria a nova função. O processo educativo é entendido como “treinamento” para a “melhoria de mão-de-obra”, portanto, não seriam necessários recursos para grandes infra-estruturas e viabilização de pesquisas originais. A fim de encaminhar as suas proposições, Roberto Campos defendeu o acordo MEC/USAID no governo de Costa e Silva, uma vez que no seu entendimento: [o acordo] visava simplesmente a transmitir a experiência norte-americana – e até mesmo a experiência comparada de outros países – em confronto com a realidade brasileira, para que livremente escolhêssemos o que houvesse de útil ou relevante para o melhoramento de nossos padrões universitários. Uns poucos dados indicam a probabilidade de termos algo que aprender e muito que economizar (1968c, p. 54).

É possível inferir que o autor enfatizou uma vez mais a necessidade de “economizar” recursos com a educação, portanto os conselhos dos técnicos educacionais norte-americanos seguiam o “critério” a máxima produtividade do ensino em relação a um mínimo de custo. As sugestões concretas visavam maior rentabilidade no ensino: a criação do sistema departamental e, em consequência, a extinção de cátedras, além da criação de cursos básicos. As mudanças deveriam, ainda, pautar os currículos, métodos didáticos e programas de pesquisa, com o intuito de se obter o aumento da produtividade e da eficiência com menor custo para as instituições de ensino superior. Pode-se mencionar o saldo da “economia de recursos” com a educação liberados para investimentos em áreas monopolísticas, haja vista que, segundo Cunha, “A participação do MEC no orçamento da União, que oscilou entre 8,5% e 10,6% no período 1960-1965, desabou para a metade desses níveis nos anos 70, chegando a 4,3% em 1975” (1985, p. 51-52). Além disso, em 1974 as despesas representavam apenas 2,8% do Produto Nacional Bruto, o que deixava o país em 77° lugar no mundo. Em síntese, “este é um dos países em que, relativamente ao PNB, o Estado menos gasta em educação” (CUNHA, 1985, p. 52). Campos posicionou-se contrariamente à tendência de se buscar o conhecimento a partir do modelo autônomo de desenvolvimento nacional. Em suma, o ministro preferiu a subordinação tecnológica do Brasil em relação aos Estados Unidos, que avaliou como a “maior 559

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civilização que o mundo já conheceu” (1968b, p. 54). Logo, a educação brasileira deveria inspirar-se no modelo americano [que] conseguiu harmonizar várias características: (a) democratizar o ensino universitário, aproximando-os das massas; (b) avançar com certo equilíbrio, em todo o leque de conhecimentos humanos; (c) conjugar a ciência e a tecnologia, associando a universidade à industria e à tarefa do governo (1968b, p. 55).

Como se observa, reservou ao Brasil o papel de aperfeiçoador de tecnologia produzida nos países capitalistas hegemônicos, sobretudo, da produção científica estadunidense. Campos foi ministro do governo Castello Branco, de acordo com a observação do historiador Rodrigo P. Sá Motta: “Castello Branco presidiu o governo mais pró-americano do regime militar, e talvez de toda a história brasileira, por isso, nos meses imediatamente posteriores ao golpe, vários convênios, acordos e contratos foram estabelecidos entre os dois países” (2014, p. 76). Ao tomar o modelo abstratamente, Campos não contextualizou a forma de desenvolvimento trilhado pelos Estados Unidos e suas diferenças com o capitalismo brasileiro da década de 19605. A privatização do ensino superior em um país subdesenvolvido acarreta maiores dificuldades para propiciar o desenvolvimento das forças produtivas, uma vez que as principais invenções ocorreram fora do nexo privatista. O computador e a espaçonaves, por exemplo, foram concebidos para propósitos públicos (embora militares), a partir de maciços investimentos estatais e, portanto, não para enriquecer acionistas privados. Pode-se destacar que a Reforma Universitária da ditadura empresarial-militar incorporou duas consignas dos professores e estudantes que lutavam pelo aperfeiçoamento do ensino superior brasileiro: a extinção da cátedra vitalícia e a universidade como padrão de organização do ensino superior. Entretanto, Florestan Fernandes notou que sob a pressão constante de tendências modernizadoras que partiam do interior do país, dos Estados Unidos e de organismos econômicos, educacionais e culturais internacionais, e sob o desafio da rebelião estudantil, a reação conservadora preferiu tomar a liderança política da “reforma universitária”. Iria, portanto, modernizar sem romper com as antigas tradições, nem ferir interesses conservadores. Ao mesmo tempo, iria controlar a inovação. (1979, p. 58).

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Embora no presente texto não seja possível aprofundar a discussão acerca da especificidade das formas do capitalismo estadunidense e brasileiro, é válido mencionar que o desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos foi tratado por Gramsci em Americanismo e fordismo (2001), ao passo que o capitalismo na América Latina e, por conseguinte, no Brasil, foi tema de estudos de Ruy Mauro Marini (2000).

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Desse modo, a reforma educacional da ditadura operou a refuncionalização do sistema de ensino em sintonia à modernização excludente que se processou na estrutura social brasileira. Em outras palavras, a educação na ditadura foi enquadrada no processo de privilegiamento do grande capital. É importante observar que os governos da ditadura empresarial-militar no tocante a educação não seguiram integralmente as posições de Campos, uma vez que não se estabeleceu o pagamento de mensalidades nas universidades públicas, e houve a expansão do ensino público de 1º e 2º grau, bem como do ensino superior; embora tenha ocorrido o crescimento abissal do ensino privado em todos os níveis. Entretanto, constata-se a ocorrência da degradação do padrão de trabalho intelectual com a concepção educacional tecnicista assentada no produtivismo acadêmico, prática de trabalho intelectual restrito ao fazer acadêmico nos limites da academia; o que inviabilizou o projeto de Universidade democrática e a formação do conhecimento socialmente referenciado na perspectiva da humanidade social. Roberto Campos em defesa do ensino tecnocrático e produtivista É lídimo observar que Roberto Campos expressou o projeto educacional implementado pela ditadura empresarial-militar, visto que defendeu as reformas do ensino superior, do ensino secundário e a desarticulação das propostas de Reformas de Base e do Plano Nacional de Alfabetização elaborado no período de João Goulart. A reforma universitária advogada pelo economista ressaltou a adaptação da educação superior brasileira à nova etapa da formação capitalista, isto é, o ensino foi refuncionalizado no contexto de aprofundamento das inovações tecnológicas para os novos processos de trabalho. Nesse sentido, Campos entendeu o estudo universitário como sendo o momento de qualificação intelectual e profissional administrado como formação de capital, ou seja, um momento de realização do “capital humano”. A formação educacional deveria ser avaliada pela eficácia e “produtividade”, tomando como parâmetro a subordinação dos conhecimentos universitários à lógica capitalista de incremento do lucro privado. Por fim, o planejamento autônomo universitário foi questionado por não expressar a exigência do capital no que se refere à oferta e a procura de qualificações intelectuais com o objetivo de atender as empresas privadas. Tais proposições revelaram a defesa da Universidade Tecnocrática na educação brasileira.

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No tocante ao ensino secundário, de acordo com o entendimento de Roberto Campos, deveria possuir caráter terminal e uma formação técnica. Por fim, a proposta educacional do ministro e de Castello Branco não atendeu a alfabetização de adultos. Em concomitância ao ensino tecnocrático para treinar a força de trabalho, o economista bateu pelo fortalecimento da educação particular, de modo a favorecer os grupos econômicos que se dedicavam ao negócio educacional. Em síntese, verifica-se que Campos defendeu o planejamento educacional relacionado ao mercado e às exigências das empresas privadas no sentido de treinamento da força de trabalho. Além disso, a sua concepção de educação tecnicista e produtivista revelou-se coerente com o projeto de subordinação ao capitalismo estadunidense, de modo que justificou a adaptação e a reprodução de conhecimentos produzidos no país imperialista. Referências bibliográfica CAMPOS, Roberto. In: INSTITUTO DE PESQUISA E ESTUDOS SOCIAIS. A educação que nos convém. Rio de Janeiro: IPES-GB/APEC, 1969. ___________ . O investimento humano, ou os insumos invisíveis. In: O Globo. Rio de Janeiro, 13 de fev. 1968a. ___________ . Ensaios Contra a Maré. 2a. ed., Rio de Janeiro: APEC, 1968b. ___________ . Do Outro Lado da Cerca. 2a. ed., Rio de Janeiro: APEC, 1968c. CUNHA, Luiz Antônio. Ensino Superior e universidade no Brasil. In: LOPES, E. M. T. (Org.) 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. ___________ . Roda-viva. In: ___________; GOÉS, Moacyr. O golpe na educação. 5ª. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. DREYFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis/RJ: Vozes, 1981. FORACCHI, Marialice. O Estudante e a Transformação de Sociedade Brasileira. 2ª ed., São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1977. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 7a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FREITAG, Bárbara. Escola, estado e sociedade. São Paulo: Moraes, 1986. GERMANO, José Willington. Estado militar e educação no Brasil (1964-1985). 3.ed. São Paulo: Cortez, 2000. 562

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MESA 10: ANTONIO GRAMSCI E A FILOSOFIA HISTORICISTA EM EDUCAÇÃO Coordenação: Gestine Cássia Trindade (UFSC) RESUMO: Este trabalho situa-se na área do conhecimento de Fundamentos e Política da Educação e na temática "Gramsci e a filosofia historicista em educação". Reúne quatro professores-pesquisadores de universidades e institutos públicos de diferentes regiões do Brasil – Sul, Sudeste e Nordeste – que se dedicam ao comum enredo do estudo e da investigação do campo da educação pelo referencial teórico e metodológico da filosofia historicista preconizada pelo pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937). O objetivo geral é debater o legado histórico-filosófico, político-pedagógico e metodológico gramsciano na educação escolar do Brasil, atualizando, em especial, os conceitos de historicismo, dialética, práxis, crítica, futuro, intelectuais e hegemonia. Para tanto, os pesquisadores utilizam como fontes de estudo as obras clássicas de Gramsci – Escritos Políticos, Cartas do Cárcere e Cadernos do Cárcere – nas tiragens nacionais da Editora Civilização Brasileira. A primeira pesquisadora revisita a filosofia historicista de Gramsci nos escritos de educação reconhecendo o aporte particular dos conceitos de crítica e de futuro na elaboração dos fundamentos da pedagogia escolar na contemporaneidade. Ao discorrer sobre a política da Educação Profissional e Tecnológica no Brasil, o segundo pesquisador examina o conceito de dialética na relação entre trabalho e educação como travessia para sua articulação no ensino médio e profissional. A terceira pesquisadora produz uma leitura historicista da política pública da Educação Especial no Brasil, validando os conceitos de intelectual e hegemonia na organização coletiva da vida cultural das instituições educacionais especializadas. Com propriedade, o quarto pesquisador desenvolve uma crítica à apropriação do conceito de historicismo de Gramsci na pedagogia marxista brasileira, apontando para a necessidade de uma outra pedagogia crítica revolucionária. Tratase, por fim, de um trabalho cooperado que emana da luta ideológica em educação pela formulação da pedagogia marxista-gramsciana que contribua valorativamente para a revolução brasileira.

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A FILOSOFIA HISTORICISTA DE ANTONIO GRAMSCI E A EDUCAÇÃO ESCOLAR CONTEMPORÂNEA: contribuições para a crítica e para o futuro1 Gestine Cássia Trindade2

RESUMO: O estudo otimiza uma reflexão sobre a temática da educação escolar contemporânea na matriz teórica da filosofia historicista inaugurada pelo pensador italiano Antonio Gramsci (1891-1937). Desde o industrialismo e a maquinaria, a escola é reconhecida como a instituição social mais desenvolvida em matéria de educação. Seu fim-último se sustenta "na luta contra […] todas as sedimentações tradicionais de concepções de mundo" (GRAMSCI, 1932) e em defesa de "uma concepção […] como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro" (GRAMSCI, 1932). Nesta proposição, a história das obras humanas (ciências, filosofia e artes) desponta como a unidade mediadora para o trabalho educativo na escola. A premissa confere à educação escolar um objetivo geral de cunho mais historicista do que antropológico ou político. A reflexão revigora, assim, os principais postulados da pedagogia marxista-gramsciana, a saber: a relação entre educação e instrução, o trabalho (atividade teóricaprática) como princípio educativo, a formação humana na ótica da integralidade, o diretivismo na relação pedagógica e, em particular, a ideia da crítica e do futuro. Sob essa configuração, a escola tem a potencialidade para ser pensado no futuro. E vice-versa: o futuro não é legítimo de ser pensado sem uma escola que abarque a natureza e a especificidade próprias da educação. Para tanto, o desafio maior é um trabalho educativo da mais contemporânea cultura científica e histórica, isto é, da ciência da história. O debate permite, logo, o enfrentamento ao avanço do pós-modernismo, responsável por um profundo questionamento dos referenciais teóricoconceituais da cultura escolar, bem como a formulação de indicativos pedagógicos para um quadro teórico comum que contribua, tanto para a universalidade da formação humana como para a superação da sociedade do capital. Introdução: a problemática da relação entre sociedade e educação escolar contemporânea Desde a modernidade os homens têm produzido mudanças inauditas na sociabilidade. Seus mais impressionantes símbolos são, sem dúvidas, a cidade, o industrialismo, a maquinaria, a ciência (enquanto potência material) e a escola. Saviani apresenta uma síntese geral das transformações estruturais e da necessidade educacional demandada, sobretudo no que se refere

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Texto elaborado a partir de um capítulo da tese: TRINDADE, Gestine Cássia. O trabalho de ofício no pensamento pedagógico contemporâneo. São Carlos/SP, 2012. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de São Carlos. 2 Doutora em Educação (Área de Concentração: Fundamentos da Educação) pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Professora Adjunta na área de Filosofia da Educação no Departamento de Licenciaturas na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC/Campus Blumenau. E-mail: [email protected]

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ao domínio do conhecimento sistemático, científico e da cultura universal. Conforme suas palavras: [...] o eixo do processo produtivo deslocou-se do campo para a cidade, da agricultura para a indústria, a qual converteu o saber, de potência espiritual (intelectual) em potência material, isto é, transformou o saber (a ciência) em meio de produção. Assim, a estrutura da sociedade deixa de se fundar em laços naturais para se basear em laços propriamente sociais, isto é, produzidos pelos próprios homens. Daí a sociedade contratual baseada no direito positivo e não mais no direito natural ou consuetudinário. Ora, o direito positivo assim como o saber sistemático, científico supõem registros escritos, o que faz com que se incorporem à nova estrutura organizacional dessa nova sociedade, centrada na cidade e na indústria, as características da linguagem escrita. Em consequência, o domínio de uma cultura intelectual, cujo componente mais elementar é o alfabeto, se impõe como exigência generalizada de participação ativa na referida sociedade. E a escola é erigida, então, como o instrumento por excelência para viabilizar o acesso a essa cultura. (SAVIANI, 1991, p. 86)

No Brasil, onde a economia pré-industrial não fez pressão a fim de que o país se afirmasse na era tecnológica da produção, o sistema educacional não apenas pouco se associou à realidade industrial e maquinal, mas a ela resistiu e até a ela se contrapôs. Esse aspecto da formação social credita a tão necessária correlação entre economia e educação para a formulação do pensamento pedagógico amarrado ao seu tempo. Fernandes (1960 [2008]) corrobora na explicação: A economia pré-industrial brasileira não fez nenhuma pressão no sentido de colocar o Brasil na era tecnológica. Esses fatos estão associados à incompreensão da importância do ensino básico e da ciência para a urbanização, a renovação das técnicas agrícolas e, em particular, para a industrialização. Na verdade, os industriais brasileiros quase não fizeram pressão alguma para alterar o sistema educacional brasileiro e para expandir a produção de conhecimentos científicos no país. (FERNANDES, 1960 [2008], p. 86-87)

O fato de o conhecimento se converter em potência material, logo, a ciência em meio de produção, criou uma nova e objetiva exigência para a formação humana: o domínio da cultura letrada, intelectual, universal. Aqui está a origem da escola, enquanto uma instituição de educação sistemática que possibilita às gerações o acesso e a apropriação da cultura acumulada pelo gênero humano. A começar daí a escola se tornou “uma agência educativa complexa” (GRAMSCI, 2006b [1932]), a principal e a maior expressão do modelo educativo do tipo formal de todas as sociedades. 566

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A nova época careceu da elaboração de outra concepção pedagógica, própria para as determinações históricas. No pensamento pedagógico antigos problemas são insuficientemente abordados ou não são tratados com a devida propriedade. Nesse sentido, a pedagogia de orientação marxista-gramsciana3 tem a qualidade requerida e o vigor essencial para conferir inteligibilidade àquilo que é desconhecido, pouco visível ou ignorado em matéria de educação. Eis o que será abordado neste estudo. Fundamentos filosóficos da pedagogia marxista-gramsciana para a educação escolar Apesar do desenvolvimento técnico-científico que requer que todos os indivíduos se integrem à instrução e aos processos de atualização, a escola reproduz (com certa naturalidade) traços particulares dos velhos tempos da organização do trabalho e da educação. Quando o conteúdo de ensino é disperso no currículo, a experiência individual (prática) se antepõe às obras da cultura (teoria), o espontaneísmo direciona a relação pedagógica e a formação humana se desloca para o campo da fragmentação, da estratificação e da precarização colocando em risco a unitariedade da escola, a universalidade da ciência e a integralidade do desenvolvimento das gerações. O pensamento pedagógico parece não compreender ou pouco se colocar a categoria do trabalho como atividade humana vital, visão de mundo agregadora, unificada e coerente ao seu tempo. Também, a escola não tem sido um espaço privilegiado da ciência, da filosofia e da arte. A pedagogia de orientação marxista-gramsciana que “vê o homem de modo concreto, em um lugar determinado do mundo e da história; o vê na intersecção da incessante luta daquilo que é novo contra aquilo que é velho, da luta conduzida pelas massas e que o indivíduo se engaja” (JOVINE, 1977 [1957], p. 69-70) (tradução da autora), corrobora para esse discernimento. Isso porque ela não se limita a pensar a educação na noção superficial de preparação do homem para a vida, objetiva, sim, abraçar o ser humano em sua totalidade, penetrando no mais profundo da sua inteligência e personalidade e concorrendo para o seu desenvolvimento integral. Sendo

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No Brasil, a pedagogia marxista-gramsciana tem sido difundida através da particular denominação “pedagogia históricocrítica”. Essa vertente pedagógica foi idealizada por Dermeval Saviani, na década de 1980, em contraposição à pedagogia burguesa de orientação liberal, determinada pelo modelo industrial e urbano em plena expansão no país naquela época. Na perspectiva da educação marxista podemos dizer que essa pedagogia é a maior referência que os professores brasileiros têm a respeito dessa abordagem teórica.

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assim, pedagogia marxista-gramsciana se funda no trabalho como princípio educativo, na formação humana na ótica da integralidade, no diretivismo na relação pedagógica e na ideia de crítica e de futuro. 1 O trabalho como princípio educativo e a formação humana integral O primeiro e principal fundamento filosófico da pedagogia marxista-gramsciana é a relação entre trabalho e educação. Essa relação é, antes de qualquer coisa, uma prerrogativa delineada no movimento do real. O trabalho – a atividade vital do homem, a sua “atividade teórico-prática” (GRAMSCI, 2006b [1932]) –, não obstante pouco difuso no debate da educação, é categoria universal imprescindível para a compreensão orgânica do nexo entre sociedade e educação. Cambi (1999 [1995], p. 395) realça: a “relação entre escola e produção [...] é um problema real e urgente tanto para a escola quanto para a sociedade”. E mais: Ora foi o trabalho que se afirmou como elemento primário da formação ora isso ocorreu com a instrução, mas sempre se sublinhou uma estreita simbiose entre os dois elementos numa sociedade articulada e complexa, produtivamente avançada como a atual [...]. Essa face a face não era ignorada pela pedagogia dos séculos anteriores ao XVII, mas só na contemporaneidade é que ela se tornou um problema estrutural e urgente. (CAMBI, 1999 [1995], p. 394)

A discussão em torno dessa questão é recente e ainda efêmera, outrossim, atrasada e de vagarosa vazão no campo da Pedagogia. Há razões econômicas e políticas para essa ausência de hegemonia. Zago (2003), no que tange à economia, menciona certo conteúdo latente da atividade produtiva das sociedades tradicionais na sociedade atual, dentre ele: o trabalho enquanto atividade inferior, a divisão entre trabalho intelectual e manual, e a separação entre homens de ócio e de negócio. Manacorda (1989 [1982]) introduz o dispositivo político à análise. Para ele, o liberalismo como ideologia oficial dos Estados e a burguesia enquanto classe predominante, se confirmam como elementos que entravam a proposta do trabalho como princípio educativo e a formação do homem onilateral. Por outro lado, o século 20 energizou essa perspectiva teórica, à medida que o industrialismo, a classe trabalhadora e a ideia do socialismo foram presentes. Independente do conceito do capitalismo ou do socialismo, do liberalismo ou da democracia, o que designa a projeção da junção entre trabalho e educação no pensamento 568

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pedagógico para o “nosso tempo” é o industrialismo e a organização da produção por ele suscitada. Essa projeção tem a pretensão de que as gerações se apropriem da história do trabalho e dos trabalhadores e da sua respectiva ciência numa visão de totalidade, da atividade individualartesanal (antiga) à atividade coletiva-industrial (nova). Cabe uma consideração de Marx e Engels sobre o conceito de totalidade. Para os pensadores: [...] as coisas chegaram agora a um ponto tal que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade das forças produtivas existentes não só para concretizar sua auto-atividade, mas também meramente para salvaguardar sua própria existência. Essa apropriação é determinada, em primeiro lugar, pelo objeto a ser apropriado, as forças produtivas, que foram desenvolvidas em uma totalidade e que só existem dentro de um intercâmbio universal [...]. A apropriação dessas forças é, em si, apenas o desenvolvimento das capacidades individuais que correspondem aos instrumentos materiais da produção. A apropriação de uma totalidade de instrumentos de produção é, por essa mesma razão, o desenvolvimento de uma totalidade de capacidades dos próprios indivíduos. Essa apropriação é ainda determinada pelas pessoas que se apropriam. Só os proletários de hoje [...] estão em condições de realizar uma auto-atividade completa e não mais restrita, que consiste na apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no desenvolvimento de uma totalidade de capacidades a ela vinculadas. (MARX; ENGELS, 2007 [1845], p. 3) (grifos do original)

O trabalho não é algo vago, é sempre um trabalho determinado. Nesse sentido, a matéria da pedagogia atual não diz respeito a toda ou qualquer concepção de trabalho, e, sim, a um trabalho determinado, ou seja, ao trabalho industrial. Do mesmo modo, a sua matéria diz respeito à educação escolar, não à educação em âmbito geral. Marx (1989 [1844], p. 176-177) enfatiza: “Vê-se como a história da indústria e a existência objetiva constituída da indústria são o livro aberto das potências essenciais do homem, a psicologia humana presente sensorialmente com a essência do homem” (grifos do original). O trabalho industrial é a categoria excepcional, o fundamento primeiro e mais importante da hegemônica estrutura da educação na sociabilidade, a escola. Esse foi o argumento ideal, o caminho delineado pela modernidade que permanece como desafio ao sistema da educação escolar contemporâneo. Porém, como tudo na dinâmica da sociedade real, as condições objetivas, os interesses econômicos e políticos e a tradição, não somente impossibilitaram a sua efetiva materialidade, como, também, parece claro, alteraram e até arruinaram seu fundamento de origem. A história da indústria e o exame do seu conteúdo não foram apropriados pelo pensamento pedagógico no nexo crítico entre sociedade e educação 569

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e entre trabalho e ciência, antes, foram rejeitados ou vinculados sinonimamente ou, ainda, apresentados em oposição ao capital. Na sociedade capitalista a exploração dá-se na expropriação da mais valia, não no emprego da maquinaria e da ciência na produção. Portanto “não é a força produtiva da maquinaria que enfraquece a espécie humana, mas a maneira pela qual ela é empregada nas relações capitalistas” (BRAVERMAN, 1987 [1974], p. 197). Tal procedimento do pensamento pedagógico coisifica e fetichiza as relações pedagógicas e, por conseguinte, a matéria e o caráter da educação escolar sofrem, por vezes, inflexões e inversões de sentido e de objetivo. 2 A crítica e o diretivismo pedagógico Não raro, os pedagogos e os professores se comportam como se a relação entre sociedade e educação não existisse ou fosse um acessório dispensável para a inteligibilidade do fenômeno da educação. É como se existissem dois simulacros sem algum nexo: um, a realidade social; o outro, a realidade educacional. Essa verdade não corresponde a um problema filosófico em si, mas a uma situação histórica que se alongou no pensamento pedagógico do século 20 adentrando ao pensamento do século 21. Jovine alerta: Se na sociedade perpetuam formas obsoletas de vida, estruturas que não respondem mais ao desenvolvimento da história; se essa é injusta e corrupta não se trata de adequar-se a ela, mas de colocar-se contra aquilo de deteriorado existe nessa, a educação deve suscitar na criança não somente o senso crítico mas também a capacidade do esforço e do sacrifício. (JOVINE, 1977 [1957], p. 418-419) (tradução da autora)

A educação escolar é a maior mediação entre sociedade, produção e cultura inventada pelos homens. Ela tem vigor para lutar contra o espontaneísmo da vida cotidiana e o depósito da tradição das gerações que comprime o cérebro humano e, ao mesmo tempo, é ponto de partida para o desenvolvimento da concepção historicista de mundo. Na definição de Gramsci: Com seu ensino, a escola luta contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepções de mundo, a fim de difundir uma concepção mais moderna [...]. O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórica-prática) é o princípio educativo imanente à escola [...] cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórico, dialética, do mundo, para a compreensão do movimento e do devir, para a 570

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avaliação da soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro. (GRAMSCI, 2006b [1932], p. 42-43)

É por meio da educação escolar que as gerações participam e se apropriam do mundo da cultura em suas manifestações mais elaboradas e, pontua Gramsci (2004 [1916], p. 58), fixam a “disciplina do próprio eu interior, apropriação da própria personalidade, conquista de consciência superior: e é graças a isso que alguém compreende o próprio valor histórico, sua própria função na vida, seus próprios direitos seus próprios deveres”. Aqui está uma premissa fim que dispensa interpelação. O pensamento pedagógico se perde podendo, em última instância, tornar-se inútil quando acolhe velhos hábitos e modos de pensar, não raro, enraizado no primitivismo (da educação primeira) e provincianismo (das tradições locais) ou, ainda, quando busca conforto e conformação no passado sem nenhuma crítica. “Crítica quer dizer cultura” (GRAMSCI, 2004 [1916], p. 60). Na mesma medida, quando atrasa e, até, aniquila a proposição da formação humana para o tempo atual, o pensamento pedagógico inibe, fragmenta e negligencia níveis de vida intelectualmente mais elevados, revelando a própria incapacidade de autonomia histórica. Essa chamada de atenção foi percebida na bibliografia educacional. Nosella, Buffa (2002) e Duarte (2006) sinalizam para essa questão. Os primeiros reiteram que o industrialismo questionou toda a tradição tendo como fundamento uma concepção universal de homem e cultura que elege a atividade produtiva como prerrogativa para o futuro da humanidade, para a ciência e para a estrutura de classes. Eis a premissa na íntegra: O industrialismo moderno, na sua acepção mais ampla e complexa, introduzindo o trabalho como princípio de uma nova cultura e de uma nova escola, põe em xeque toda a concepção do humanismo tradicional, oferecendo uma nova concepção de homem e de valores universais. A dimensão universal e desinteressada da nova cultura moderna e industrial subverte a concepção antiga da cultura, elegendo a atividade produtiva como base da nova ciência, cultura e política, privilegiando a perspectiva futura, no intuito de transformar a pirâmide social do passado. (NOSELLA; BUFFA, 2002, p. 106)

É importante ressaltar a condição posta não apenas para o momento presente das gerações, mas para o seu futuro dimensionada no raciocínio de Nosella e Buffa, o que, segundo eles, concorreria para a superação dos antagonismos de classe. A premissa aproxima-se da ideia

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de Marx (2005 [1848]) de que somente a classe trabalhadora tem o potencial criador para orientar a roda da história. Para ele: De todas as classes que hoje em dia se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes degeneram e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é seu produto mais autêntico. As camadas médias [...] combatem a burguesia porque esta compromete sua existência como camadas médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando se tornam revolucionárias, isto se dá em consequência de sua imanente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado. (MARX, 2005 [1848], p. 49)

O pensamento de Duarte (2006) objetiva-se nessa relação enfatizando a necessidade da ciência e do trabalho da educação escolar para a superação das contradições da sociedade capitalista. A apropriação da riqueza cultural acumulada na história do gênero humano é prérequisito indispensável para a superação do passado na perspectiva da continuidade da sociedade e do desenvolvimento integral das gerações. Dessa forma, enfatiza o autor, [...] afirmo que o intelectual crítico em educação não pode rejeitar em bloco a ciência, a cultura burguesa clássica e a educação escolar também em sua forma clássica, apenas porque elas tenham sido produzidas por meio da divisão social do trabalho e no âmbito da sociedade regida pela lógica reprodutiva do capital. Se assim fosse então deveríamos rejeitar também a cultura grego-romana, pois ela foi produzida em meio da escravidão. A apropriação universal da riqueza intelectual produzida em meio às profundas contradições geradas pelas relações capitalistas é parte necessária do processo de socialização dos bens de produção, sem o qual não pode haver superação do capitalismo. (DUARTE, 2006, p. 96)

O desenvolvimento do homem como ser histórico dotado de inteligência e vontade criticamente liberado dos resíduos do passado é uma necessidade e vontade superior que somente a “segunda natureza” tem o potencial para idealizar e realizar. Essa é a causa fundamental e um resultado imprescindível para o avanço do pensamento pedagógico atual. Na contemporaneidade, a pedagogia de orientação marxista-gramsciana não pode conformar o conceito do homem a-histórico, do trabalho não determinado e da realidade circunscrita na formação das gerações. Em tese, a dissociação entre concepção e execução na atividade vital (trabalho), o avanço da técnica e da tecnologia industrial e a apropriação da riqueza imensurável da ciência, não concorrem para o dilaceramento do ser humano. Podem, sim, por constituírem572

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se possibilidades reais criadas pela sociedade, quando reconhecidas e submetidas ao controle propriamente social, potencializar o desenvolvimento do gênero humano em direção ao particular enriquecimento material e intelectual. Nesse sentido, [...] a juventude tornar-se-á melhor ou pior consoante o modo como seremos capazes de organizar as suas actividades concretas no meio em que vive, conforme a ajuda que lhe facultarmos para que se torne apta a realizar as tarefas futuras e conforme o que soubermos fazer para facilitar o desenvolvimento interior dos jovens. (SUCHODOLSKI, 1992 [1977], p. 130)

O desafio a ser enfrentado reside na crítica à direção implicitamente cotejada até então pelo pensamento pedagógico e na proposição afirmativa da formação humana e da educação escolar voltada ao “nosso tempo”. Temos, assim, a saída: deflagrar o trabalho como princípio educativo. A reflexão pedagógica aglutina ideias sobre a relação entre sociedade e educação. Como as ideias têm existência social objetiva, o pensamento pedagógico adquire força material como um elemento essencial no processo de desenvolvimento do homem e da sociedade – “esse mundo está em contínuo desenvolvimento e, em sua fase atual, se é que é nova, luta contra o que é velho” (JOVINE, 1977 [1957], p. 66) (tradução da autora). A educação consiste exatamente no desenvolvimento do indivíduo mediante a sua participação no mundo do trabalho, da ciência e da cultura, levando-o a escolher entre as duas forças contrastantes (o velho e o novo) no presente. Esse é o centro do debate, a luta ideológica e epistemológica a ser feita no campo da Pedagogia. Para tanto, “não basta saber como nós devemos conduzir, é fundamental compreender também qual a razão” (SUCHODOLSKI, 1992 [1977], p. 133). E acrescento: querer fazê-la. Os conceitos de totalidade e universalidade obrigam o pensamento pedagógico a incluir em si as relações que o ligam à atividade vital do homem e o faz desvelar os mecanismos pelos quais se processa o atraso de que é vítima. Como sintetizou Gramsci: Destruir é muito difícil, exatamente tão difícil quanto criar. Porque não se trata de destruir coisas materiais, trata-se de destruir “relações” invisíveis, impalpáveis, ainda que se escondam em coisas materiais. É destruidor-criador quem destrói o velho para trazer à luz, fazer aflorar o novo que se tornou “necessário” e urge implacavelmente no limiar da história. Por isto, pode-se dizer que se destrói na medida em que se cria. Muitos pretensos destruidores nada são além de “promotores de abortos”, passíveis de sanção pelo código penal da história. (GRAMSCI, 2007 [1930-1932], p. 105)

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Destruir relações seculares e invisíveis das sociedades anteriores na atividade pedagógica é complexo e difícil, contudo não apenas necessário, imprescindível, diante da barbárie social e educacional dos tempos atuais. É na destruição do pouco visível que a pedagogia contemporânea poderá se constituir efetivamente. Essa é a possibilidade histórica, ainda que a possibilidade não remeta diretamente à realidade, caminha para tornar-se um valor quando compreendida criticamente, quando se quer mudar e sabe-se como proceder à mediação entre os homens e as obras da cultura, objetivo primeiro da educação escolar para atingir a sua proposição fim, a apropriação da vida genérica do homem. Em outras palavras, conforme Marx e Engels (1978 [1869], p. 224) expressam: “Por um lado, é preciso uma mudança das condições para criar um sistema de instrução novo; por outro lado, é preciso um sistema de instrução já novo para poder mudar as condições sociais. Por conseguinte, é preciso partir da situação atual”. Na tradição marxista o homem é concebido como “síntese das relações sociais” e o conhecimento como meio de produção no que tange à materialidade da existência. Para a formação societária, a relação homem e conhecimento tem valor único. Nesse processo, o desenvolvimento humano está condicionado à apropriação dos resultados produzidos pelo gênero humano na história da sociedade. O desenvolvimento não acontece enquanto o indivíduo não se apropria materialmente da produção, da ciência e da cultura. É apropriando-se das obras do gênero humano que o indivíduo objetiva a si mesmo. O conhecimento – tido como um meio de produção, uma potência material – orienta para objetivar essa apropriação. Se, na sociedade capitalista, os meios de produção estão sob a posse da propriedade privada e deixam de ser socializados, o conhecimento será reproduzido na mesma direção. Assim, à medida que a escola assume a sua proposição fim, possibilitando o acesso e a difusão do conhecimento acumulado pelas obras humanas para as gerações, estará contribuindo efetivamente para a formulação de uma nova hegemonia que não será viabilizada sem ampla e geral elevação intelectual e cultural dos indivíduos. A abertura para esse debate é urgente. O pano de fundo da disputa “se trata de decidir se o filho do homem deva ser rousseaunianamente deixado na espontaneidade do seu desenvolvimento, em uma aparência de liberdade, ou em vez ser forçado a crescer adequandose aos modos mais avançados e dinâmicos da sua época” (MANACORDA, 1997, p. 98) (tradução da autora). Estamos diante de dois projetos de homem e de sociedade: do velho e do

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novo, do pré-industrial e do industrial, da nostalgia e da realidade. O pensamento pedagógico deve proceder a uma escolha. 3 A ideia de futuro O desafio maior é o da escola da mais contemporânea cultura científica e histórica. A combinação entre ciência e história proporciona às gerações o instrumental para que possam ser capazes de produzir por si mesmas a crítica e, equivalente, de orientar as próprias ações intencionais. Primeiro de tudo, “a ciência [...] que é verificação do verdadeiro, transformação que é de uma verdade passivamente aceita, em certo documentado, testado e transferido para a concretude da atividade humana” (JOVINE, 1977 [1961], p. 410) (tradução da autora) (grifos do original). A ciência vincula-se organicamente à “história considerada como progressiva transformação da condição humana quando a criança deverá inserir a sua ação pessoal” (JOVINE, 1977 [1961], p. 410) (tradução da autora) (grifos do original). Posto isso, não me abstenho em concordar com a tese de que a escola de hoje é uma instituição que pertence ao futuro e vice-versa reciprocamente. Eis uma proposta afirmativa para a formação humana e para a educação escolar. Na estrutura do sistema escolar, os fins, os conteúdos e o método de ensino relacionamse ao amanhã, contudo, definidos com base na escola de hoje. Ou melhor: quando indagamos em qual direção a atividade produtiva se desenvolverá e que tipo de homem a sociedade do futuro próximo – 20 ou 30 anos – demandará, visualizamos dois requisitos da educação escolar, o técnico e o político. Quanto ao quesito técnico, de acordo com a ótica de Radice: [...] o caráter da produção num futuro [...] pode ser resumindo sinteticamente da seguinte maneira: (a) Rápida (e até rapidíssima) prevalência do trabalho intelectual-criativo sobre o trabalho manual-executivo; (b) a qualificação cultural do trabalhador médio da sociedade do próximo futuro será (deverá ser) não inferior à do cientista médio de hoje, de modo que a tendência será a de se fazer de cada trabalhador um cientista; (c) o fim do período de aprendizado (aliás, escola) que talvez possa ser reduzido em sua duração, não significará absolutamente o fim da instrução, a aquisição de um “patrimônio definitivo” que se usa para toda a vida. (RADICE, 1968 [1961], p. 8) (grifos do original)

No que se refere ao quesito político, o pensador argumenta: Minha resposta ao quesito político sobre o futuro próximo [...] é: “socialismo + liberdade”. Acrescento algumas palavras: (a) abolição em todos os países do mundo da propriedade privada da terra, dos bancos, das fábricas, dos meios de produção; (b) abolição, por conseguinte, em todos os países, da divisão da sociedade em proprietários e proletários, capitalistas e assalariados, exploradores e explorados; (c) à base do socialismo, desenvolvimento da 575

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democracia direta, além da representativa, o que significa participação livre, responsável e constante de cada trabalhador no poder para as decisões políticas parciais e globais, locais e gerais. (RADICE, 1968 [1961], p. 8) (grifos do original)

Igualmente, na organização de cada atividade pedagógica o professor deve formular para si a pergunta: “este conhecimento, esta capacidade, esta qualidade de caráter que estou procurando ministrar hoje, que importância terá no momento em que forem utilizados, isto é, daqui a dez, vinte, trinta anos ou mais?” (RADICE, 1968 [1961], p. 5-6) (grifos do original). E completando o autor diz: A escola de hoje é pensada no futuro. E vice-versa: o futuro não me parece possível de ser pensado sem escola. Ouso afirmar que a escola pode ser considerada uma instituição que caracteriza a espécie homo sapiens. O homem é o único animal que produz e, de uma geração para outra, transmite os resultados adquiridos na sua produção. [...]. Podemos muito naturalmente dizer, no entanto, que a condição para ter uma história é ter uma escola: uma instituição cujo objetivo seja a transmissão da produção e da capacidade produtiva paulatinamente conquistadas e acumuladas. (RADICE, 1968 [1961], p. 5-6) (grifos do original)

A educação dos homens para uma sociedade futura sugere capacidade para produzir e compreender o significado da produção, que possa levar avante um trabalho especializado e enxergar claramente a estrutura geral dentro da qual se insere tal trabalho. A conjugação entre estudos técnico-especializados e dos fenômenos globais e estudo da sociedade, da história, das estruturas econômicas e políticas, alavancará uma nova concepção de educação escolar ligada à crítica e ao futuro. Considerações Finais Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado frequentemente bastante remoto e superado? Se isto ocorre, significa que somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, que somos fósseis e não seres que vivem de modo moderno. Ou, pelo menos, que somos bizarramente “compósitos”. (GRAMSCI, 2006a [1932-1933], p. 95)

A tentativa de resolver os problemas educacionais pelo método empirista do pragmatismo relativiza (fragmenta) a universalidade e a objetividade do conhecimento produzindo ilusões à atividade pedagógica e outorgando à escola caráter utilitarista (imediato) 576

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que corrobora para o esvaziamento da sua proposição fim. As “escolas tornaram-se um vácuo, cada vez mais vazias de conteúdo e reduzidas a pouco mais que sua própria forma” (BRAVERMAN, 1987 [1974], p. 372). Nelas, quanto mais as gerações de futuros trabalhadores têm para aprender, “tanto menos razão há para os professores ensinarem e para os alunos aprenderem. Nisto mais que em qualquer outro fator isolado – o despropósito, a futilidade, as formas vazias do sistema educacional – temos a fonte que ameaça explodir as escolas” (BRAVERMAN, 1987 [1974], p. 372). Programas educacionais descolam a existência humana das suas tarefas históricas. Hoje, é a história da indústria e da atividade industrial que permitem explicar a natureza essencial do homem. Lidamos com o industrialismo, a maquinaria, a ciência e a tecnologia, que exigem o domínio da cultura letrada de modo amplo e generalizado. Essa é a realidade objetiva e efetiva. A reversão do cenário, na visão de Radice, requer fundamentalmente cultura e instrução. Do seu ponto de vista: [...] cultura e instrução representam hoje, objetivamente, um dos elementos que com maior eficácia revelam e fazem explodir as contradições entre o velho e o novo, entre o que é digno de morrer e o que aspira à vida, em todo o mundo, ou melhor, em todos os mundos. (RADICE, 1968 [1961], p. 38) (grifos do original)

As ideias e os hábitos que compõem a tradição de todas as gerações “costumam permanecer muito tempo após o desaparecimento das condições que os originaram” (HUBERMAN, 1986 [1936], p. 62). Eles comprimem a subjetividade e a objetividade humana. Sucede que “a lógica íntima necessária e inelutável da cultura e da educação (como de qualquer atividade humana produtiva) é a crítica, é a proposição de hipóteses novas, é a liberdade, é o futuro” (RADICE, 1968 [1961], p. 38) (grifos do original). Tudo isso poderá ser superado na ação direta e intencional do sistema cultural que age sobre o sistema educacional. Para tanto, “a escola é por sua natureza, e hoje mais do que nunca um terreno de luta em prol do novo e contra o velho” (RADICE, 1968 [1961], p. 38-39). Investir na educação escolar é, sem dúvidas, a aposta mais acertada que a sociedade pode fazer à formação humana e ao desenvolvimento das gerações em todos os tempos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A NOÇÃO DE TRAVESSIA COMO DIALÉTICA CONCEITUAL Vagno Emygdio Machado Dias1 RESUMO: O presente ensaio analisa o sentido que se atribui à noção de travessia na literatura nacional referente à área de Educação Profissional e Tecnológica, especificamente na educação profissional técnica de nível médio ou educação profissional técnica integrada ao ensino médio, isto é, a modalidade educacional que propõe a articulação entre o ensino profissional, exigências técnicas e profissionais do mercado de trabalho, e o ensino médio, exigências de formação geral, inerente ao mundo do trabalho e à formação omnilateral. A noção de travessia salienta ser este o único caminho possível, necessário e provisório, isto é, concreto, para construção da sociedade socialista; os adeptos desta noção de travessia postulam assumir a dialética marxiana, especialmente gramsciana no sentido de compreender o processo histórico concreto e “providenciar” ainda sob o contexto da sociedade capitalista a construção do socialismo, mediado pelo ensino profissional. A ideia é pensar numa educação capaz de formar o sujeito histórico em sua plenitude, conforme os preceitos de Karl Marx, em que por educação entende o conjunto entre educação intelectual, formação tecnológica e educação física. Nesse sentido, o objetivo fundamental deste ensaio é apresentar uma reflexão do conceito de Dialética no pensamento de Antonio Gramsci para se compreender alguns conceitos como de revolução e os processos históricos de transformação social e tentar realizar algumas considerações a determinadas análises de categorias marxistas presentes nos escritos de pensadores marxistas da educação no Brasil, da área denominada de trabalho e educação e que pesquisam sobre educação politécnica, também denominada por alguns autores de educação ou formação omnilateral. Com estas reflexões pretendem-se discutir o papel da educação na transformação social, especificamente na relação entre trabalho e educação, ensaiada na articulação entre ensino médio e profissional, discutindo suas possibilidades e limites no processo histórico de construção de uma nova ordem social, mediada pela categoria trabalho. Primeira Parte – A dialética na Travessia A palavra travessia aparece na literatura da Educação Profissional e Tecnológica justificando o ensino profissional e se adequando tanto às exigências do mercado de trabalho quanto às do mundo do trabalho, como único caminho, necessário e provisório, para a construção da sociedade socialista. Esta noção de travessia é justificada com base na dialética marxista e no processo histórico concreto com o fim de “providenciar”, sob o contexto da sociedade capitalista, a construção do socialismo.

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Sociólogo e Doutor em Educação. Professor de Filosofia e Sociologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais – IFSULDEMINAS/Campus Poços de Caldas. Email.:[email protected]

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A Educação Integrada ou Ensino Médio Integrado (Educação Profissional Técnica de Nível Médio Articulada com o Ensino Médio na Modalidade Integrada) apresentada no Documento Base (2007) representa um momento na esfera educacional de transição, de média e longa duração, a um novo patamar de ensino. Obviamente, o objetivo não pode estar realmente no meio do caminho, apenas no fim almejado, por isso tem de ser de fato transitório. O que está colocado na educação integrada é a possibilidade histórica de associar a formação geral ao ensino profissional como momento transitório para a criação de uma educação politécnica ou tecnológica, portanto, não é o próprio ensino politécnico. Nesse sentido, consequentemente, não se garante uma formação geral e plena para todos, nem uma escola única do trabalho e nem uma formação omnilateral, que somente seria possível numa sociedade pós-capitalista, depois do período de transição. Se esse fosse realmente o objetivo, estar-se-ia garantindo uma ampla formação tecnológica, associada a uma ampla formação geral, como regra geral de todo o sistema de ensino brasileiro. Todavia, acontece que a travessia é enfatizada como “meio termo”, uma maneira viável, na verdade, mais um acordo ou concessão mútua, que, sob um determina do contexto desfavorável, como “desemprego”, “jovens ociosos”, “dura realidade socioeconômica do país” etc., configurar-se-ia uma saída viável pelo espaço escolar. Assim, o que se denomina de politecnia na integração continua sendo apenas escola profissional, adicionada uma pitada de formação geral. Essa reflexão sobre a travessia como algo transitório requer que, ao sinalizar em determinado objetivo, tenham sido calculados com alguma precisão os meios necessários para se alcançar o resultado planejado, mesmo que o devir histórico seja indefinido. O Decreto no 5.154/2004 que estabelece a educação integrada é na verdade uma profunda reforma do ensino profissional, a criação de um curso técnico integrado de nível médio, ou seja, a reforma proposta pelo decreto não é a do ensino médio, mas do profissional. Assim, é até compreensível ou plausível que a preparação profissional seja uma necessidade imperiosa da realidade, mas não a atrelada/integrada ao ensino médio. Por conseguinte, se a educação integrada,segundo nossa tese,não se confunde com o ensino médio, unitário e politécnico por excelência, o problema é a distorção do pressuposto de que a conjuntura econômica exige uma intervenção escolar profissionalizante. Em todo caso, a travessia se converte em demagogia porque conclui que a escola somente é inteiramente progressista numa sociedade socialista, não mais capitalista, cuja consequência é afirmar que numa sociedade capitalista cabe apenas uma educação integrada, 581

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reconhecendo, portanto, que a educação integrada oferece e representa apenas o gérmen da educação socialista. Nessa perspectiva assume-se mecanicamente a tese da oposição profissionalizante como parte integrante da antítese socialista, da educação omnilateral e da formação pelo trabalho. A travessia toma o ensino profissionalizante como fundamento da educação politécnica. Não é compreensível o argumento de que os filhos da classe operária devem precocemente se preparar para o mercado de trabalho quando cresce o desemprego e o exército industrial de reserva de pessoas adultas. O que a realidade impõe em termos de educação e formação deve ser analisado com cautela e, em primeira instância, com mais profundidade, antes de se pronunciar sobre o dever ético e político da educação. Se a preparação profissional no ensino médio é uma imposição da realidade, admitir legalmente essa necessidade é um problema ético. Não obstante, se o que se persegue não é somente atender a essa necessidade, mas mudar as condições em que ela se constitui, é também uma obrigação ética e política garantir que o ensino médio se desenvolva sobre uma base unitária para todos. Portanto, o ensino médio integrado ao ensino técnico, sob uma base unitária de formação geral, é uma condição necessária para se fazer a “travessia” para uma nova realidade. [...] O ensino médio integrado ao ensino técnico, conquanto seja uma condição social e historicamente necessária para construção do ensino médio unitário e politécnico, não se confunde totalmente com ele porque a conjuntura do real assim não o permite. Não obstante, por conter os elementos de uma educação politécnica, contém também os germens de sua construção (Saviani, 1997). [...]. O ensino médio integrado é aquele possível e necessário em uma realidade conjunturalmente desfavorável – em que os filhos dos trabalhadores precisam obter uma profissão ainda no nível médio, não podendo adiar este projeto para o nível superior de ensino – mas que potencialize mudanças para, superando-se essa conjuntura, constituir-se em uma educação que contenha elementos de uma sociedade justa (FRIGOTTO, CIAVATTA & RAMOS, 2006).

A travessia acredita na unitariedade do trabalho com a profissionalização precoce de jovens e adolescentes. É preciso problematizar se é possível dar passos à frente em direção a outra “realidade” que, aliás, parece mais um projeto utópico, realizável no futuro, ou seja, se realmente leva à emancipação humana ou se apenas permite a conservação social. Assim, a emancipação humana não permite a priori concessões essenciais em sua bandeira de luta, ao contrário, exige uma resistência intransigente que vai permitir uma efetiva luta pela emancipação e humanização, em direção ao fim da exploração de classes. Segundo Moura,“a questão fundamental que se coloca é: é possível dar passos nessa direção, mesmo em uma sociedade capitalista e periférica como a do nosso país?”(MOURA, 2013, p. 707). 582

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Com efeito, realmente não há forma de se chegar ao socialismo sem o confronto contínuo e cotidiano, devendo-se tratar sempre de uma travessia. A travessia como todo percurso deveria partir, certamente, do momento histórico real e não existem duas estradas, pois a realidade é única e o caminho sempre sinuoso e espinhoso. A sociedade capitalista é uma totalidade e sua existência dualista é apenas um momento de abstração, um recurso didático de compreensão ou uma consequência prática. Apenas do ponto de vista metodológico é possível afirmar a existência dualista da sociedade, pois não há possibilidade de propostas de superação social que não combatam a unitário sistema do capital. É perfeitamente correto, por outro lado, afirmar que as classes sociais e a educação são dualistas e que a sociedade está dividida em classes sociais antagônicas, mas não mecanicamente como se antevê, já que a contradição, fruto da unitariedade (não unicidade), é parte inerente do movimento histórico. Assim, a travessia somente faz sentido se a dialética for seu conceito fundamental, se a concessão for uma conquista da luta; em si, abstratamente, a travessia é desnecessária e não tem expressão conceitual própria. Se, de imediato, se parte do princípio de que a dualidade é o ponto de partida e que o mundo é fragmentado, composto de facetas e etapas lineares e evolutivas, não se compreende a realidade tal como realmente é, não podendo esse tipo interpretação ser tributário do marxismo. Em decorrência de um problema conceitual, o uso da expressão “travessia” serviu para compor um rol de justificativas para legitimar a profissionalização no ensino médio. Há outra falsa dicotomia: mercado de trabalho e mundo do trabalho, enfatizando que a profissionalização é um caminho legítimo para efetivar o “trabalho como princípio educativo”. Desta dicotomia propõem-se a unidade, mas uma unidade fundada nos ditames da produção capitalista, negligenciando a luta imediata e radical com o sistema, ao assumir que é preciso partir dele para dar um passo à frente. A travessia busca a participação adaptativa às regras do jogo.De fato, são exigências concretas das quais se devem partir e que devem servir de parâmetro para as políticas educacionais. A questão, entretanto, deve ser a maneira adequada de se inserir nesse contexto sem ser apropriado e engolido por ele. Logo, partiu-se equivocadamente da dualidade da categoria trabalho, consequentemente, também da sociedade, configurando uma dialética domesticada em que da concessão mútua se alcança a síntese, ou seja, para contrapor-se à tese, integrou-se a ela. A compreensão simplificada a-histórica da dialética (da fórmula tese, antítese e síntese) fez deste pensamento igualmente uma concepção dualista, uma dialética dualista, deixando de ser dialética para tornar-se travessia, e a escola unitária para tornar-se “escola 583

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integrada”. As próprias noções de “integrado” e “integração” são em si mesmas expressões que não podem dar o sentido complexo de unitariedade, apenas de justaposição de partes, ratificando a concepção dualista de escola, educação e sociedade, evidenciando uma participação harmoniosa e adaptativa. Nesse caso, cabe outro questionamento: pensar de forma coerente com o materialismo histórico-dialético não é compreender essa realidade socioeconômica e tentar arrancar do capital concessões que contribuam para a formação integral da classe trabalhadora, mesmo que, inicialmente, não seja na plenitude do conceito de politecnia para todos, mas que se garanta para todos a indissociabilidade entre formação intelectual, física e tecnológica sem, com isso, abandonar a denúncia e o combate a todas as atrocidades cometidas contra essas crianças, adolescentes e jovens? Não foi isso o que fizeram Marx e Engels em relação ao trabalho infantil na Inglaterra do século XIX? (MOURA, 2013, p. 715).

A travessia não compreende que no processo não há a priori possibilidades de concessões numa sociedade dividida em classes, já que a lógica que impera é outra, muito mais perversa que envolve poder e força. O que Marx em Maquinaria e Grande Indústria tratou na questão do trabalho infantil foi uma análise meticulosa da realidade e sua denúncia à legislação inglesa, que ao regulamentar o trabalho infantil, permitia sua exploração em patamares capitalistas, não mais vinculados à outras formas de produção ou exploração como as realizadas pelas próprias famílias. A “concessão” foi um meio de dar continuidade ao trabalho infantil. No entanto, as melhores condições de vida e trabalho infantil conquistada pela legislação não são concessões da burguesia, mas uma conquista arrancada também à força pela luta dos operários. O que Marx percebeu foi o caráter contraditório da legislação inglesa que, ao mesmo tempo em que permitia a exploração capitalista, avançava no sentido de eliminar outras formas tradicionais de exploração da força de trabalho infantil, liberando-a para a indústria. Também não se pode sugerir que houve concessões pelos trabalhadores que levou à continuidade da exploração do trabalho infantil, embora os pais estivessem acostumados, dadas as precárias condições de vida, a empregar seus próprios filhos nessa degradação. A concessão também nunca é o resultado imediato e momentâneo do embate, é na verdade, o resultado histórico de uma luta e não uma tática da luta. Marx não concorda com a manutenção do trabalho infantil capitalista, apenas reconhece que o trabalho produtivo, não aos moldes capitalista, é um meio de elevar a educação a outros patamares. Nenhuma educação pode estar atrelada a exploração do trabalho infantil com a desculpa de ser necessária para se avançar nos objetivos socialistas. Do contrário, seria 584

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assumir o direito à exploração (mesmo provisória, sem saber por quanto tempo), segundo a tese do “quanto pior melhor”, isto é, aceitar a escravidão como parte da libertação. É claro que para ser livre não se pode ser escravo e para se libertar é preciso estar nessa condição, entretanto, a escravidão não é fator de libertação, ou seja, não se resolve o problema da dualidade escolar simplesmente com a unidade. A dualidade conceitual (abstrata) como ponto de partida torna-se a finalidade primordial a ser combatida na travessia. Por outro lado, tal dualidade não tem expressão concreta na realidade, senão de forma empírica expressa na dualidade escolar em nível individual e pessoal. O objetivo de alcançar o socialismo se distancia cada vez mais quando não se compreende a própria sociedade capitalista em sua totalidade ou quando a entende como totalidade composta de partes integrantes, didaticamente justapostas. A essência da sociedade e suas múltiplas determinações, a dialética entre identidade e diversidade, perdem o sentido da “liga” enquanto as relações sociais que a permeiam, aquilo que une contraditoriamente o todo e que dá o sentido ao movimento contraditório, assumem importância secundária. Uma das consequências é a educação escolar se elevar a campo privilegiado da transformação social. A supressão da dualidade escolar pela integração da escola profissional com a do ensino médio é a saída sugerida pela travessia, na denominação de educação integrada. Daí se conclui que não há unitariedade, mas justamente o contrário, a manutenção da dualidade de classes sociais, pois com a junção de ensino médio com ensino profissional se faz apenas uma precária unidade. O “único” e “unidade” não são opostos de “duo” e “dualidade”, ou seja, acredita-se que se resolve o problema da dualidade com unidade. A solução da dualidade entre ensino médio e ensino profissional se daria com o ensino integrado, como se a transformação social se desse com a integração entre classe burguesa e classe operária. O que transparece é a ideia subtendida de “harmonia” e “equilíbrio” como conceitos e leis do movimento histórico. Assim, ao se partir de uma mera ilusão, o desfecho não pode deixar de ser também outra ilusão. Essa concepção antinômica de “partes” e relações entre “partes” forma uma concepção de “dialética conceitual” que apenas na lógica formal parece bem coerente e verdadeira. A integração do ensino médio com o ensino técnico é uma necessidade conjuntural – social e histórica – para que a educação tecnológica se efetive para os filhos dos trabalhadores. A possibilidade de integrar formação geral e formação técnica no ensino médio, visando a uma formação integral do ser humano é, por essas determinações concretas, condição necessária para a travessia em direção ao ensino médio politécnico

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e à superação da dualidade educacional pela superação da dualidade de classes (FRIGOTTO, CIAVATTA& RAMOS, 2005, p. 45).

Algumas contradições: a integração é considerada uma necessidade conjuntural (social e histórica), todavia, não se revela efetivamente essa própria necessidade conjuntural, social e histórica, que se mostra um problema incognoscível. Do mesmo modo, em seguida, a possibilidade de integração é, nessa visão, a determinação concreta, a condição necessária para o ensino politécnico. Não há dúvida de que a integração é uma possibilidade, na medida em que a legislação escolar a permite; entretanto, o entendimento de determinação concreta é reduzido a uma análise conjuntural, momentânea, de um governo e suas leis educacionais, mas não necessariamente, do ponto de vista social e histórico, permanecendo ainda um problema incognoscível. E se o objetivo é o ensino politécnico, então realmente houve uma determinação concreta, e a finalidade proposta foi satisfeita; mas se o ensino politécnico é apenas um processo mediador de um propósito maior, do mesmo modo não é possível afirmar que a possibilidade de integração seja uma determinação concreta. A determinação concreta precisa estar associada a um complemento sobre onde se deseja chegar partindo-se de uma realidade real. O pressuposto implícito é que o ensino é a finalidade última, um fim em si mesmo; mas dado que a pauta é o fim da dualidade de classes, a própria tarefa torna-se dualista, com dois rumos e objetivos, pois não se sabe exatamente se a “formação integral do ser humano” é travessia ou finalidade da travessia; ou seja, se essa formação vai promover a superação da dualidade escolar ou se a superação da dualidade de classes vai superar a dualidade escolar. Se a formação integral leva à superação da dualidade educacional, como a dualidade educacional vai ser superada pela superação da dualidade de classes? A dificuldade de interpretação não está necessariamente no jogo de palavras, mas justamente em não explicitar a realização da supressão das classes sociais. A travessia se alinha, de um lado, ao projeto de profissionalização da educação brasileira, especialmente, do ensino médio, de outro, diretamente, aos condicionantes da produção capitalista, sem nenhuma proposição efetiva sobre a superação dessa realidade por este caminho. Cabe assinalar ainda que o foco da travessia é o ensino médio e não a educação geral em si; nos outros níveis educacionais o trabalho realmente está livre para assumir o princípio educativo, sem o estorvo do discurso da dualidade escolar e sem a necessidade de unificar as formações gerais e específicas. Entre as várias finalidades que não mais o socialismo, destacase, por exemplo, a própria formação como finalidade em si mesma: “travessia para a formação 586

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humana integral”, “travessia para uma nova realidade”, “travessia para a organização da educação brasileira”. Após indefinidas as finalidades últimas(não mais o socialismo), o termo travessia perde sentido e importância histórica alinhada ao socialismo. O simples deslocamento dos objetivos do mercado de trabalho para as necessidades do trabalhador é uma conta de soma zero, pois não há nenhuma diferença substantiva entre ambos, já que estão ligados a um mesmo sistema. Ou seja, o sujeito é definido por sua condição de força de trabalho, pela sua condição de produtor de mais-valor, independentemente da formação. O que se coloca é possibilidade da formação omnilateral assumir a responsabilidade pela transformação da própria condição pessoal do trabalhador, consequentemente, da transformação social. Ainda que possível (dialeticamente), a consequência é o homem supostamente (omnilateral) conviver com um modo de produção que não apenas o explora como conserva sua alienação (inclusive, intelectual), em função da atual divisão social e técnica do trabalho, articulada com essa finalidade; como se diz, se o homem plenamente desenvolvido (omnilateral) for apenas uma situação a ser resolvida numa sociedade futura, então, teoricamente, também não faria sentido falar em formação omnilateral no capitalismo e, portanto, nem de travessia. É preciso que se defina antes de tudo o que significa a educação integrada possuir o gérmen da educação do futuro. No fundo, o discurso da travessia não consegue dar conta das contradições inerentes ao capitalismo, sem se mesclar a ele; há um problema a ser resolvido entre a contradição e a dialética. A educação integrada deslocada da realidade da produção moderna e da análise das determinações concretas, não vislumbra a complexidade do sentido de escola unitária na sociedade capitalista. Segundo Moura, “Não obstante, tal qual Marx e Engels se referem à politecnia em seu sentido pleno como uma perspectiva educacional futura, Gramsci também considera a escola unitária dessa forma”(MOURA, 2013, p. 712-713). O sentido que se atribui ao termo “contradição” também sofre com a mesma deturpação inicial da concepção de mundo dualista. A contradição não é uma brecha, uma porta semiaberta, portanto, uma possibilidade de que os revolucionários se aproveitam para construir a antítese. A contradição é uma síntese provisória, um devir permanente e representa a trinca aberta pela luta de classes. A contradição inerente ao próprio modo de produção gera continuamente seus próprios coveiros; entretanto, a existência da contradição é independente da luta de classes, embora seja fundada e latente com as classes sociais. O que reforça mais uma vez a necessidade de se assumir soldado perante a guerra, ciente de que o oponente é o seu oposto mortal e que a 587

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trégua não é nenhuma concessão para o oponente respirar, mas uma estratégia de sobrevivência mútua. Haveria de fato um dilema ético se realmente houvesse um embate e uma disputa no seio da travessia, quando os ônus da participação no mercado de trabalho elevassemas perspectivas reais e concretas de vitória no combate ou na guerra. Sendo assim, a travessia não é um momento diferenciado ou especial do processo dialético, como se a dialética necessitasse de uma bengala da transformação social. O movimento histórico realiza-se apenas e tão somente com um percurso histórico concreto, inserido num contexto específico, em certas condições históricas, mediada pela ação dos sujeitos históricos. A teoria da travessia é desnecessária à dialética e satisfaz interesses conciliatórios momentâneos. Segunda Parte – A travessia na Dialética Então, o que é a dialética em Gramsci? É o conhecimento do devir e das leis do movimento histórico, que não se confunde com a previsibilidade deste devir. A dialética não é um capítulo da lógica formal, é, ao contrário, uma lógica própria, oriunda da filosofia da práxis, uma filosofia integral e original, que, em vez de negar, se apropria da lógica formal, como parte inerente da dialética. É, portanto, uma teoria do conhecimento e da ação humana, uma “técnica” do pensar e do agir. O que significa que também a técnica do pensar da dialética, portanto, da própria filosofia da práxis deve assumir a responsabilidade na criação de uma visão de mundo sobre a realidade, tal como a matemática e as ciências naturais contribuíram para abrir caminho para a revolução científica e tecnológica na modernidade; portanto, a dialética é uma revolução social na criação de “programas didáticos” capazes de alavancar as relações entre homem e natureza e não ficar apenas a reboque daquelas ciências, que se baseiam na lógica formal, ou das diretrizes do modo de produção capitalista. Por isso, outro aspecto da dialética é sua relação íntima não apenas com a história, mas também com a natureza. As ciências naturais que concebem a realidade pela lógica formal não se dão conta, completamente, de que a relação da ciência com a natureza é de ordem histórica e que a visão de mundo da ciência interfere diretamente na visão de mundo natural e, dialeticamente, na visão de mundo humana sobre a natureza e na relação homem e natureza. O ensino técnico e tecnológico, formalizado pela profissionalização, ainda demasiadamente restrita à lógica formal e à ciência natural, tem limites intransponíveis enquanto não se apropriar da técnica de pensar da dialética sobre o homem e a natureza. Por isso, em Gramsci, “a unidade é dada pelo desenvolvimento dialético das 588

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contradições entre o homem e a matéria (natureza – forças materiais de produção)” (GRAMSCI, 2011a, Cadernos 11, miscelâneos, p. 237). A questão é que “... após as inovações trazidas pela filosofia da práxis, permanece a velha filosofia, entre outras coisas, a lógica formal” (GRAMSCI, 2011a, p. 180), que insiste nas interpretações idealistas e abstratas, que apartam a realidade da interpretação dela e criam idealmente mecanismos de interpretação e ação, que não condizem com as condições concretas da realidade. O principal ponto da unitariedade e da escola unitária é a coerência entre pensamento e realização, entre teoria e prática. É unitária não apenas a escola em si, que é única para todos, mas a concepção político-pedagógica que a permeia. Uma filosofia da lógica formal tende a criar um fosso entre a escola e o mundo ou associar a escola a certa concepção de mundo, compatíveis apenas com as filosofias idealistas e positivistas. Se a dialética é destrinchada em suas partes integrantes com propósito didático, tal como a realizada com a categoria “trabalho” em “trabalho, ciência, tecnologia e cultura”, ela deve guardar a unidade inseparável, o nexo que liga as partes do conjunto e afirmar a preponderância da categoria trabalho. Tais reduções ou simplificações didáticas tendem a facilitar o entendimento, mas tendem igualmente a perder a riqueza do conceito. Em Gramsci, a dialética (GRAMSCI, 2011a, Cadernos 11, p. 143) somente faz sentido com a filosofia da práxis que inaugura uma nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento e na medida em que absorve e supera as filosofias idealistas (Hegel) e os materialismos tradicionais (Feuerbach), tornando-se uma filosofia integral e original. “Se a filosofia da práxis é pensada apenas como subordinada a uma outra filosofia, é impossível conceber a nova dialética, na qual, precisamente, aquela superação se efetua e se expressa” (GRAMSCI, 2011a, Cadernos 11, p. 143), ou seja, a filosofia da práxis elabora e inaugura uma dialética própria. Assim, qualquer forma de pensar a dialética ou uma suposta travessia não pode esquecer que ela está inserida num quadro teórico-metodológico do materialismo histórico e a consequência imediata é considerar que a dialética não pode ser esquematizada didaticamente ou impressa em manuais, pois é expressão e acompanha o ininterrupto movimento da própria história. Assim, a dialética está fundamentada na filosofia da práxis como “metodologia geral da história”. A dialética dos distintos na filosofia crociana é um meio de resolver conflitos e diferenças e se relaciona com os pares, os iguais, na esfera de atuação política. Na dialética há 589

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conflitos, mas nem todo ato conflituoso é antagônico. A política trata dos diversos interesses sociais, conflituosos e antagônicos, mas não é capaz de resolver, em absoluto, todas as situações no âmbito político governamental. A esfera da política, propriamente dita, é mais ampla e se realiza junto ao movimento histórico. A questão é que a simples participação na democracia burguesa não oferece gratuitamente espaço para a luta de classes, portanto, não permitindo a realização plena da dialética. Com isso, não se quer dizer que não seja possível fazer a luta essencial junto ao Estado, mas justamente o contrário, que se pode forçá-lo para arrancar as possibilidades reais de realização histórica; assim, do contrário do se imagina, deve-se apropriar-se dele para superar uma situação e criar as brechas históricas, e não simplesmente partir de suas concessões. Esta é uma exemplificação [oposição entre Cavour e Mazzini] do problema teórico de como devia ser compreendida a dialética, problema apresentado na Miséria da Filosofia: nem Proudhon, nem Mazzini compreenderam que cada membro da oposição dialética deve procurar ser integralmente, ele mesmo, e lançar na luta todos os seus “recursos” políticos e morais, e que só assim se consegue uma superação real. Dir-seá que não compreenderam isso nem Gioberti, nem os teóricos da revolução passiva e da “revolução-restauração”, mas a questão se modifica: neles, a “incompreensão” teórica era a expressão prática das necessidades da “tese” de se desenvolver integralmente, até o ponto de conseguir incorporar uma parte da própria antítese, para não se deixar “superar”, isto é, na oposição dialética somente, a tese desenvolve, na realidade, todas as suas possibilidades de luta, até capturar os supostos representantes da antítese: exatamente nisso consiste a revolução passiva ou revolução-restauração (GRAMSCI, 2011c, Caderno 25, miscelâneos, p. 318).

Dir-se-á que a antítese deve ser criada em “parceria”, vinculada à tese, para se fazer oposição, já que interligada a ela, mas, na verdade, sua gênese ocorre em função de outros interesses, não se encontra no âmbito da tese. Somente depois é possível medir forças com a tese. A antítese não é criada/oferecida pela tese. Há uma confusão no entendimento de que se deve partir do contexto e das condições historicamente dadas para a realização histórica. O que é verdadeiro, desde que se considere a relação entre a necessidade e a liberdade, e que a liberdade não se exclui da necessidade, mas é independente dela, caso contrário, há apenas conservação. A conciliação no caso é o que Gramsci chama de revolução-restauração. O que se desenvolve é a tese, criando uma antítese eclética cuja função é, ao “desenvolvê-la”, fortalecer a sua unidade com a fragmentação e a dispersão do oponente. A teoria da travessia não compreende o sentido exato do historicismo e se torna pura ideologia. As suas dificuldades são apresentadas, de um lado, pela mudança na postura teórica 590

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e política frente ao materialismo histórico, promovendo uma revisão das essências dos pressupostos teórico-metodológicos, frente às condições historicamente dadas; de outro, pela compreensão distorcida da dialética ou desconexa da filosofia da práxis como “metodologia geral da história”. A postura conciliadora, de moderação, produz, na verdade, uma dialética dentro da ordem que, para inovar em alguns aspectos, precisa ceder em outros: “Nessa mediação inteiramente intelectualista, viva apenas no cérebro de poucos intelectuais de estatura menor [...] teóricos mais ou menos inconscientes [...] aparece a preocupação de ceder alguma coisa para não perder tudo” (GRAMSCI, 2011a, Cadernos 10, miscelâneos, p. 450)”.A dialética da filosofia da práxis é, ao contrário, uma forma completamente diferente cuja finalidade é a própria destruição do jogo. O que Gramsci coloca não é apenas a necessidade de conservação em si da totalidade, mas de manter também uma determinada conservação, em que se busca prever no percurso, o que especificamente deve ser conservado. Assim o problema não está na teleologia que supõe um objetivo a ser alcançado, mas na incapacidade de se fazer oposição radical diante a tese oposta, pois não se pode prever com segurança o que deve ser conservado. Aquilo que é concedido não é propriamente na mesma medida aquilo que é conservado. A suposta previsibilidade cai por terra e sua medida depende justamente da radicalidade e efetividade como contraponto (antítese) à tese. A concessão é fruto da estratégia da tese esquivar-se da luta. Segundo Gramsci, “Na luta, “os golpes não são dados de comum acordo”, e toda antítese deve necessariamente colocar-se como antagonista radical da tese, tendo mesmo o objetivo de destruí-la e substituí-la completamente” (GRAMSCI, 2011a, Cadernos 10, p.396).

Na dialética da filosofia da práxis, a história não é feita de concessões arbitrárias ou planejadas e a síntese não é um meio termo, um ponto de equilíbrio em que os sujeitos se apresentam no comércio. A síntese é o resultado da dialética, não pode ser negociada como uma meta predeterminada, como um fim a ser alcançado. Um dos pressupostos da travessia é aproveitar-se das oportunidades como espaço privilegiado, porque doado ou facilitado, em que é possível conquistar avanços aparentemente imediatos e próximos, ajustados às possibilidades (medida) ditadas pelo Estado e pelo mercado de trabalho. O meio termo (brecha, justo meio) acaba sendo aceito pela antítese como processo dialético. A definição do caráter progressista está prevista apenas no avanço em direção à finalidade última concebida pela antítese; ou seja, o ecletismo não é a lógica do processo dialético em que a soma das partes devem compor a totalidade em síntese. O caráter de oposição antagônica impede qualquer tipo de previsão no processo. A arte do político de “ampla perspectiva para o futuro” corresponde à arte de 591

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compreender bem a própria história, de chocar-se por seu programa “extremo””(GRAMSCI, 2011c, Caderno 25, miscelâneos, p. 331). A postura do “meio justo”, como diz Gramsci, tende a enfraquecer a antítese e, em vez de combater, salva um organismo doente. A antítese deve assumir-se conforme sua natureza, ou seja, como “antagonista radical da tese”, cujo objetivo não pode ser outro senão a destruição dela. As atitudes reformistas, para realizar a moderação, negligenciam as finalidades de sua própria ação, omitem-se quanto à sua essência e não reconhecem mais a tese como alvo. Pelo contrário, sem o objetivo político definido (socialismo), toma a travessia (mediação, processo, caminho), por si mesma, como finalidade. A síntese preconcebida como meta deixa de existir e não se sabe mais o que é meio ou fim e nem o que liga um a outro. Sobre a afirmação de Bernstein de que o movimento é tudo e o objetivo final não é nada, Gramsci se questiona: “É possível manter vivo e eficiente um movimento sem a perspectiva de fins imediatos e mediatos?” (GRAMSCI, 2011b, Cadernos 16, p. 75). O erro filosófico (de origem prática!) desta concepção [revolução-restauração] consiste no seguinte: pressupõe-se “mecanicamente” que, no processo dialético, a tese deva ser “conservada” pela antítese a fim de não destruir o próprio processo, o qual, portanto, é “previsto”, como uma repetição ao infinito, mecânica e arbitrariamente prefixada. Na realidade, trata-se de um dos modos de “enquadrar o mundo”, de uma das tantas formas de racionalismo anti-historicista. A concepção hegeliana, mesmo em sua forma especulativa, não permite tais enquadramentos e limitações mutiladoras, mesmo sem com isso dar lugar a formas de irracionalismo e de arbitrariedade, tais como as contidas na concepção bergsoniana. Na história real, a antítese tende a destruir a tese, a síntese será uma superação, mas sem que se possa estabelecer a priori o que será “conservado” da tese na síntese, sem que se possa “medir” a priori os golpes como em um ringue convencionalmente regulado. Que isto ocorra de fato, de resto, é uma questão de “política” imediata, já que, na história real, o processo dialético se fragmenta em inúmeros momentos parciais; o erro consiste em elevar a momento metodológico o que é pura imediaticidade, elevando, precisamente, a filosofia o que é apenas ideologia (GRAMSCI, 2011a, Cadernos 10, p. 292).

A síntese, portanto, é um momento de superação e não de manutenção por meio da junção de partes, de integração de coisas, de tipos de escolas ou modalidades de ensino como a educação integrada. O ecletismo é incompatível com a dialética. Situa-se mais no âmbito da conservação social e da concepção da revolução-restauração, em que o termo justo, como “sociedade justa”, é mais apropriado à política imediata, dos assuntos cotidianos, jurídicos etc., de caráter secundário, mesmo que seja parte integrante e resultado do processo dialético geral. A contradição que caracteriza o processo dialético é reflexo direto das contradições sociais e

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históricas. Assim, qualquer travessia que não tenha como horizonte o movimento histórico concreto, não é expressão real da história e não realiza uma dialética (histórica). A tese da travessia confia no caminho a percorrer e no lugar exato a se chegar porque imagina que o único caminho certo é por dentro, independentemente da rota, certo de que a caminhada por si mesma é a luta de classes. De tal forma que a conciliação e a harmonia criam um ambiente de consenso que impede até mesmo qualquer tipo de desacordo no interior da própria antítese sobre os meios utilizados na batalha ou considera tais conflitos de importância secundária, justamente por estar inserida conjuntamente na esfera da antítese.Considerando, portanto, que a dialética é uma metodologia geral da história, apropriar-se dela e de sua filosofia, é se assumir efetivamente como sujeito histórico, consciente da complexidade da tarefa revolucionária. As instituições e as organizações proletárias fazem parte do processo dialético, e a tática do atravessamento deve reconhecer com exatidão analítica as condições históricas, objetivas e concretas, para saber quais as reais possibilidades da práxis revolucionária em determinados contextos históricos e arranjos políticos e escolher com maior perspicácia os meios e as armas mais adequados para a luta. Referências Bibliográficas DOCUMENTO BASE. Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio.Brasília, SETEC, dezembro de 2007. (Textos de Dante Henrique Moura, Sandra Regina de Oliveira Garcia e Marise Nogueira Ramos). FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. Ensino Médio Integrado: concepção e contradições. São Paulo: Cortez, 2005. FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria; RAMOS, Marise. A gênese do Decreto no 5.154/2004: um debate no contexto controverso da democracia restrita. Ensino Médio Integrado à Educação Profissional. Boletim 07, SEAD/MEC, Maio/junho de 2006. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 5ª Ed., Vol. 1, 2011a. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 3ª Ed., Vol. 4, 2011b. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª Ed., Vol. 5, 2011c.

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MOURA, Dante H. Ensino médio integrado: subsunção aos interesses do capital ou travessia para a formação humana integral? Revista Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 39, n. 3, p. 705720, jul./set. 2013.

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HISTÓRIA E POLÍTICA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL NO BRASIL: BASES TEÓRICO-METODOLÓGICAS E RESULTADOS DE PESQUISA1

Heulalia Charalo Rafante2

RESUMO: O artigo tem dois objetivos: expor como o método dialético marxista, fundamentado nos conceitos de Antônio Gramsci, contribuiu para a análise do desenvolvimento da Educação Especial no Brasil (1932-1973), considerando as ações das Sociedades Pestalozzi; e apresentar os resultados da análise das fontes históricas a partir desse referencial. Na obra de Gramsci foi destacada a formação dos intelectuais e seu papel na construção e manutenção da hegemonia social e do domínio estatal. Esses referenciais ampliaram a análise das instituições para além das suas funções técnicas, considerando, também, sua relação com a sociedade e com o Estado, o que levou à compreensão do seu papel histórico. Nesse sentido, as análises evidenciaram que as ações das Pestalozzi, iniciadas em 1932, exerceram influência significativa para tornar hegemônico um pensamento a respeito da pessoa com deficiência e da proposta para sua educação, articulando a sociedade na reivindicação de políticas públicas para a área e orientando os encaminhamentos das ações educativas destinadas a essa população. Esse processo, articulado com aspectos políticos, econômicos e sociais do país, como os acordos Ministério da Educação - United StatesAgency for International, culminou na criação do Centro Nacional de Educação Especial em 1973. Portanto, as Sociedades Pestalozzi foram basilares para o desenvolvimento da política pública na área da Educação Especial no país, constituindo-se instituições de elaboração coletiva da vida cultural, conforme conceito de Gramsci.

INTRODUÇÃO Este texto tem dois objetivos relacionados entre si: (1) apresentar como o método dialético marxista orientou a pesquisa; e (2) trazer os resultados da análise a partir desse 1

Artigo elaborado a partir da tese de H.C. RAFANTE, intitulada “Helena Antipoff, as Sociedades Pestalozzi e a Educação Especial no Brasil (1930-1973)”. Universidade Federal de São Carlos, 2011; publicado na Revista de Educação da PUC Campinas (RAFANTE, 2016). 2 Historiadora e Doutora em Educação, professora da Universidade Federal do Ceará, email: [email protected]

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referencial no que tange ao desenvolvimento das políticas públicas de Educação Especial no Brasil, considerando as ações das Sociedades Pestalozzi. A opção em destacar o método de análise junto aos resultados da pesquisa vem de uma preocupação em demonstrar o caminho percorrido, visando trazer contribuições para a construção do conhecimento histórico e fomentar outras pesquisas sobre a História da Educação Especial no Brasil. O método dialético marxista engloba a pesquisa e a exposição. A primeira consiste na apropriação, por meio do pensamento, do conteúdo do real, do objeto pelo próprio objeto. Por sua vez, a segunda diz respeito à apresentação crítica do objeto, tendo por base suas contradições (MARX, 1989). Nesse quadro, faz-se necessário compreender a trajetória das instituições a partir da abordagem de suas particularidades, de suas singularidades, no interior de uma relação dialética com o contexto histórico no qual se inserem. Essa relação pressupõe, segundo Nosella e Buffa (2005), que assim como a sociedade condiciona o desenvolvimento e a criação de determinada instituição, esta condiciona a existência da sociedade. A sociedade capitalista é, na perspectiva marxista, marcada pelo antagonismo entre as classes e nela a história se movimenta em um processo de luta pela hegemonia. Assim, as instituições escolares, enquanto elementos integrantes da sociedade, estão inseridas nesse movimento (NOSELLA & BUFFA, 2005). Desse modo, as instituições devem ser compreendidas como organismos privados de hegemonia, os quais compõem, segundo Gramsci (1984), a sociedade civil. Portanto, parte-se dos referenciais desse autor, tendo o Caderno 12 dos Cadernos do Cárcere como a principal referência. Além disso, um aspecto do seu pensamento foi destacado: a formação dos intelectuais e o papel que exercem na construção e manutenção da hegemonia social e do domínio estatal. Nesse sentido, deve-se partir da dimensão do papel político e social das instituições na construção e manutenção dessa hegemonia e desse domínio. Ao contrário da separação entre Estado e sociedade civil apontada por Marx (1996), existe, para Gramsci (2001), uma inter-relação entre ambos (Estado Ampliado). Quanto mais a sociedade civil se afirma no interior do Estado, mais este se despe de seu caráter coercitivo tornando-se ético, sob o pressuposto de que todos os homens são iguais e passíveis de aceitarem as leis de maneira livre, espontânea, sem coerção. Portanto, ao pensar a análise das instituições 596

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privadas envolvidas com a Educação Especial no Brasil, nesse caso, as Sociedades Pestalozzi, foram consideradas as suas relações com o Estado na elaboração, em diferentes períodos históricos, das políticas públicas voltadas para a educação das pessoas com deficiência3. A partir desse pressuposto teórico-metodológico, foi possível proceder uma avaliação crítica dessa atuação, não no sentido de uma valorização positiva ou negativa, mas em um esforço de apreender o significado histórico da sua atuação, evidenciando sua participação no desenvolvimento da educação especial no brasil. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Em suas reflexões sobre os intelectuais, Gramsci (2001) parte da seguinte questão: os intelectuais constituem um grupo social autônomo ou cada grupo social possui sua própria categoria especializada de intelectuais? Desenvolvendo a questão, destaca o processo histórico de formação desses indivíduos, que vai dar origem a dois grupos: o intelectual orgânico e o tradicional. Partindo das transformações no modo de produção, Gramsci (2001) analisa que: [...] cada grupo social originário de uma função no mundo da produção econômica, cria para si ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função (GRAMSCI, 2001, p.15). Essa composição histórica constitui o intelectual orgânico que, no sistema capitalista, pode ser apreendido pela atuação do técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, entre outros intelectuais os quais contribuem para a homogeneidade do capitalismo não só no campo econômico, como também no social e político. Seguindo a mesma premissa, Gramsci (2001) coloca que o intelectual tradicional é uma categoria que se mantém historicamente, resistindo às mais radicais transformações econômicas, sociais e políticas. Para ele, os eclesiásticos materializavam essa categoria na realidade objetiva italiana, monopolizando durante muito tempo a “[...] filosofia e aciência da época com a escola, a instrução, a moral, a justiça, a beneficência, a assistência, etc.” (GRAMSCI, 2001, p.16). No entanto, o autor alerta para o movimento histórico, pelo qual a permanência do monopólio eclesiástico não se fez sem disputas, a partir das quais surgiram outras categorias de intelectuais 3

Terminologia utilizada no Brasil a partir do Decreto 6949, de 25 de agosto de 2009 (Brasil, 2009). No período analisado (1932-1973), utilizava-se o termo “excepcional” que, neste texto, foi mantido quando relacionado àquele período histórico aparecendo, entretanto, entre aspas, por se tratar de um conceito específico e datado, não mais utilizado.

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não eclesiásticos: cientistas, teóricos, filósofos. Essa “ininterrupta continuidade histórica” leva os intelectuais tradicionais a se colocarem como autônomos do grupo dominante, o que conduz a uma “[...] utopia social segundo a qual os intelectuais acreditam ser ‘independentes’, autônomos, revestidos de características próprias” (GRAMSCI, 2001, p. 17). Para uma melhor compreensão dessa análise baseada nessas relações sociais, as leituras de Marx e Engels (1965) são fundamentais para iluminar a composição social capitalista, na qual Gramsci (2001) busca problematizar a história dos intelectuais: [...] A divisão do trabalho implica, ao mesmo tempo, a sua repartição e a de seus produtos, distribuição que é desigual [...], implica, portanto, a propriedade [...]. Cada homem tem sua esfera de atividade exclusiva e determinada, o que lhe é imposta e da qual não pode fugir [...] se não quiser perder seus meios de existência (MARX & ENGELS, 1965, p.16).

Desse processo resulta a divisão da sociedade em duas classes: de um lado, aqueles que detêm os meios de produção, os burgueses; e, de outro, os que possuem apenas sua força de trabalho, os proletários. Essa divisão, originária das relações de produção, não delimita os intelectuais e os não intelectuais, pois, no interior da concepção gramsciana, “[...] todos os homens são intelectuais [...]” (Gramsci, 2001, p.18). Dessa maneira, eliminando a questão ideológica construída em decorrência da divisão do trabalho, que dicotomizou trabalho manual e trabalho intelectual, o autor esclarece que a função do intelectual foi formada historicamente em conexão com os grupos sociais, principalmente os mais importantes (os burgueses e os proletários), sendo que o desenvolvimento mais amplo ocorre em ligação com o grupo social dominante. A ação do intelectual não se efetua diretamente no mundo da produção, mas na superestrutura, considerada em dois planos: a sociedade civil ou o conjunto dos organismos privados; e a sociedade política ou Estado. Esses dois planos correspondem, respectivamente, à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda sociedade e ao domínio direto que se expressa no Estado e no governo jurídico. Nesse cenário social, Gramsci (2001) considera que “[...] os intelectuais são os prepostos do grupo dominante para o exercício das funções subalternas de hegemonia social e do governo político” (GRAMSCI, 2001, p.21).

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Para melhor compreensão da importância atribuída por Gramsci aos intelectuais, faz-se necessário aprofundar a análise do conceito de Estado Ampliado elaborado por ele. Não obstante a concepção gramsciana de sociedade civil seja tributária do pensamento marxista, no que diz respeito à sua compreensão como particular, o retrato traçado por Gramsci (2001) desse conceito é diferente daquele concebido por Marx (1996). Para este, trata-se de um reflexo da sociedade burguesa, marcada pelo individualismo diante da preocupação “[...] com o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses particulares [...]” (MARX & ENGELS, 1996, p.197). Nessa linha, a cada sociedade civil corresponde um determinado Estado, o qual nada mais é do que a “[...] expressão oficial daquela [...]” (MARX, 1996, p.85). Desse modo, embora detentor do poder político e do aparato jurídico, o Estado deve a sua existência às necessidades individuais da sociedade burguesa e, assim, tem um controle limitado sobre a mesma. Porém, na esteira do pensamento gramsciano, a sociedade civil não se restringe ao âmbito das necessidades individuais, mas constitui uma organização complexa, “[...] aparelho hegemônico de um grupo social sobre o resto da população [...], base do Estado compreendido como aparelho governante-coercitivo [...]” (GRAMSCI, 1984, p.151). Esse Estado veilleur de nuit4 tende a desaparecer à medida que os intelectuais forem capazes de criar uma cultura nova, no que tange a uma nova concepção de mundo e de comportamento, com o apoio da sociedade civil e suas instituições particulares, a exemplo da escola. Portanto, esta se organiza por meio dos intelectuais e seus projetos se tornam hegemônicos através do consentimento espontâneo da sociedade como um todo, o caráter coercitivo do Estado tende ao desaparecimento. Ao contrário da ideia de separação entre Estado e sociedade civil apontada por Marx (1996), há, para Gramsci (1984), uma inter-relação entre ambos e, quanto mais a sociedade civil se afirma no interior do Estado, mais este se despe de seu caráter coercitivo, tornando-se ético sob o pressuposto de que todos os homens são iguais e passíveis de aceitarem as leis de maneira livre, espontânea, sem a necessidade de coerção. Nessa perspectiva, o intelectual pode se constituir em “funcionário do consenso” para manutenção do status quo ou assumir uma postura transformadora da realidade. Gramsci (2001) traz a dimensão do papel político, cultural e social dos intelectuais na construção e manutenção da hegemonia social e do domínio estatal ou na

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Guarda-noturno. Essa expressão, que define o Estado Liberal, é de Lassalle (Gramsci, 1984, p.150).

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constituição da contra- -hegemonia, apontando caminhos metodológicos para o estudo dos intelectuais: É preciso fazer deles [dos intelectuais] um prospecto orgânico, sistemático e crítico. Registro das atividades de caráter prevalentemente intelectual. Instituições ligadas a atividades cultural. Método e problemas de método do trabalho intelectual e cultural, quer do criativo, quer do divulgativo. Escola, academia, círculo de diversos tipos como instituições de elaboração coletiva da vida cultural. Revistas e jornais como meios para organizar e difundir determinados tipos de cultura (GRAMSCI, 2001, p.32).

É nesse quadro teórico que foram analisadas as Sociedades Pestalozzi, ou seja, estas instituições foram consideradas enquanto “instituições de elaboração coletiva da vida cultural”, as quais organizam e difundem um tipo de cultura em relação às pessoas com deficiência em diferentes contextos históricos. A partir disso, exercem influência significativa na constituição de um pensamento hegemônico a respeito da pessoa com deficiência, que vai influenciar os encaminhamentos desse campo na realidade brasileira, especialmente na elaboração de políticas públicas para a área. Em relação à política nacional de educação, Shiroma et al. (2007) afirmam que: Uma política nacional de educação é mais abrangente do que a legislação proposta para organizar a área. Realiza-se também pelo planejamento educacional e pelo financiamento de programas governamentais, em suas três esferas, bem como por uma série de ações não-governamentais que se propagam com informalidade, pelos meios de comunicação. Realiza-se para além destes espaços, por meio da difusão de seu ideário pelas publicações oficiais e oficiosas (SHIROMA et al., 2007, p.73).

Na análise da política da Educação Especial no Brasil, as ações de instituições da sociedade civil foram estudadas enquanto parte do processo de elaboração dessas políticas. Para compor esse escopo de investigação, os documentos produzidos pelas Sociedades Pestalozzi, ou seja, as fontes primárias foram fundamentais. AS FONTES PRIMÁRIAS As pesquisas na área da História da Educação Especial no Brasil, que resultaram nesse artigo, tiveram como foco as Sociedades Pestalozzi, desde a criação da primeira instituição em

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Belo Horizonte, em 1932, por Helena Antipoff5, até a criação do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), em 1973. As principais fontes primárias levantadas para a análise dessa instituição na perspectiva supracitada são citadas aqui. Por se tratar de um estudo histórico, privilegiou-se as fontes primárias, as quais apresentaram a dinâmica das ações das Sociedades Pestalozzi, trazendo as relações estabelecidas com outras instituições, públicas e privadas, assim como os instrumentos utilizados para a divulgação dos princípios relacionados à questão do atendimento aos “excepcionais”. Antes da apresentação das fontes, é importante destacar que Helena Antipoff passou a utilizar esse termo na década de 1930 e, em entrevista ao jornal O Estado de Minas, em 26 de outubro de 1934, explicou que estava lançando essa terminologia para atenuar as denominações que tinham sido utilizadas até então, como crianças “anormais”, “retardadas”, “imbecis”, “idiotas”, um tanto pejorativas (ANTIPOFF, 1975). Para a educadora, a categoria “excepcional” incluía “crianças e adolescentes que se desviam acentuadamente para cima ou para baixo da norma de seu grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais, ou quaisquer dessas, de forma a criar um problema essencial com referência à sua educação, desenvolvimento e ajustamento ao meio social” (ANTIPOFF, 1963, p.271). Na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei nº 4.024, de dezembro de 1961) (BRASIL, 1961), o Título X tratava “Da questão dos Excepcionais” e somente a segunda LDB (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) (BRASIL, 1996) revogou esse Título e inseriu o Título V “Da Educação Especial”, retirando essa palavra da legislação. Em relação às fontes, o acervo, que foi sendo construído, juntamente com o desenvolvimento das atividades das Sociedades Pestalozzi, está preservado na Fundação Helena Antipoff, em Ibirité, e no Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff (CDPHA), situado na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A garimpagem nesses acervos fez emergir fontes primárias importantes para cobrir o recorte temporal e os objetivos da pesquisa. Trata-se de um variado corpus documental, do qual fazem parte Estatutos da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais (1933, 1939, 1961) e da Sociedade Pestalozzi do Brasil 5

Helena Wladimirna Antipoff nasceu na Rússia em 1892. Em 1908, mudou-se para a França. No início da década de 1910, participou da padronização dos testes de nível intelectual, elaborada por Alfred Binet e Théodore Simon, em Paris. Em 1914, concluiu o curso de quatro semestres da ÉcoledesSciences de L’Éducation, no Instituto Jean Jacques Rousseau. Entre 1925 e 1929, trabalhou como assistente de Claparède no Laboratório de Psicologia. Nesse momento e devido à sua experiência profissional, foi convidada pelo governo de Minas Gerais para atuar naquele estado. Chegou ao Brasil em 1929, assumindo o cargo de professora de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento (CAMPOS, 2002; RAFANTE, 2011).

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(SOCIEDADE PESTALOZZI DO BRASIL, 1945), publicações do Departamento Nacional da Criança referentes aos Relatório das Atividades da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, publicado pelo Departamento Nacional da Criança e que apresenta o balanço das atividades de 1932 a 1942 e outras ações deste órgão (DEPARTAMENTO NACIONAL DA CRIANÇA, 1944, 1956, 1965), entre outras publicações; o “Boletim da Sociedade Pestalozzi do Brasil” (SOCIEDADE PESTALOZZI DO BRASIL, 1948-1955; 1965-1982); o “Boletim da Secretaria da Educação e Saúde Pública de Minas Gerais" que, de 1929 a 1937, publicou textos monográficos de diferentes autores, tratando de temas relacionados à Psicologia Experimental, à deficiência mental, visual e auditiva e à organização das classes homogêneas. Com exceção dos textos de autoria de Theódore Simon, os demais estão relacionados às pesquisas e atividades realizadas por Helena Antipoff em conjunto com as alunas da Escola de Aperfeiçoamento e colaboradores da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, sendo que nove deles tratam especificamente da questão do “excepcional” (ANTIPOFF, 1930A, 1930B; 1932A,1932B, 1933, 1934, 1937; ANTIPOFF & CUNHA, 1932; ANTIPOFF & RESENDE, 1934; CASTRO, 1933. Finalizando o percurso, foram analisados os documentos oficiais (BRASIL, 1946, 1948, 1957, 1958, 1961, 1962, 1968, 1971, 1974a, 1974b) para verificar quais as perspectivas teóricas e metodológicas adotadas. A intenção era dimensionar o grau de influência exercido pelas proposições das Sociedades Pestalozzi, além de trazer um mapeamento da Educação Especial nas décadas de 1960 e 1970. RESULTADOS A fundamentação nos referenciais gramscianos, aliada a um vasto acervo de fontes primárias e à pesquisa em fontes secundárias relacionadas à História, História da Educação e da Educação Especial, História da Psicologia e da Psicanálise no Brasil, viabilizaram a análise da dimensão histórica das Sociedades Pestalozzi no desenvolvimento da Educação Especial no país. A análise foi além da função técnica desempenhada pela instituição, que elucidou suas referências teóricas e sua prática chegando à sua dimensão política, o que levou aos seguintes caminhos de pesquisa: a metodologia de trabalho adotada em sua trajetória na educação brasileira (RAFANTE & LOPES, 2009); as ações criadoras e divulgadoras das teorias e metodologias para o atendimento aos “excepcionais”; os meios utilizados para fazer circular

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essas informações; e sua relação com a sociedade brasileira do século XX e com o Estado em diferentes cenários históricos (RAFANTE & LOPES, 2013). Foi possível verificar que o início do século XX testemunhou iniciativas as quais visavam à modernização do país (FAUSTO, 1991). Fazia-se necessário um novo homem e, para tanto, uma nova educação (NAGLE, 1991). A educação tradicional passou a ser criticada e, paulatinamente, a Escola Nova foi se consolidando, inserindo novos referenciais para a educação brasileira com fundamentos na biologia e, principalmente, na psicologia (ANTUNES, 2004).Os educadores brasileiros buscaram inspiração nos modelos norte-americanos e europeus e, para fortalecer o grupo de pessoas que iria organizar essa nova cultura, recorreu-se aos intelectuais estrangeiros que vieram para o país. Nesse contexto, foi aberto o caminho para a vinda de Helena Antipoff ao Brasil6, onde desenvolveu intensa atividade na área educacional, incluindo a educação dos “excepcionais”. Essa psicóloga e educadora russa, com formação na Rússia, na França e na Suíça, tornouse professora de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento em agosto de 1929. Em 1932, criou a primeira Sociedade Pestalozzi, em Belo Horizonte, e, em 1934, fundou o Instituto Pestalozzi de Belo Horizonte. Já em 1940, inaugurou a Fazenda do Rosário, em Ibirité (RAFANTE & LOPES, 2009) e, de 1945 a 1949, atuou no Departamento Nacional da Criança (RAFANTE & LOPES, 2008). Também em 1945, criou a Sociedade Pestalozzi do Brasil e, em 1948, a Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro. Na década de 1950, organizou quatro Seminários sobre Infância Excepcional no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em São Paulo, reunindo pessoas vindas de várias partes do Brasil (RAFANTE & LOPES, 2011). Até o final da década de 1940, a educação dos “excepcionais” era realizada quase que exclusivamente pelas iniciativas particulares (BUENO, 2004), que reivindicavam maior subvenção do Estado (RAFANTE, 2011). Os seminários supracitados reuniram pessoas de diversos pontos do país e constituíram elemento de congregação de ideias, as quais tinham algo em comum: viabilizar a educação para esses indivíduos. Essa demanda foi ganhando força

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Helena Antipoff veio para o Brasil em 1929, a convite do governo do estado de Minas Gerais, para participar da formação de professores no contexto da reforma do ensino (1927), elaborada por Francisco Campos, que considerava os “resultados das pesquisas realizadas na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e no Instituto Jean-Jacques Rousseau, na Suíça, soluções definitivas para a educação” (RAFANTE, 2011, P.48).

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gradativamente, desde a criação da primeira Sociedade Pestalozzi, em 1932. Na década de 1940, com a instalação da Sociedade Pestalozzi do Brasil e da Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro, o alcance das suas ações aumentou: os profissionais ligados a essas instituições ministravam cursos de formação de pessoal, disseminando as teorias e métodos dessas organizações em diferentes partes do país, incluindo a instalação de outras filiais, tornando-as cada vez mais conhecidas. Devido a esse movimento, em 1948, a primeira versão do projeto de Lei de Diretrizes e Bases (LDB) incluiu a educação dos “excepcionais” nas Disposições Gerais e Transitórias. É importante enfatizar que o coordenador do grupo responsável pela elaboração desse primeiro projeto foi Lourenço Filho, que tinha conhecimento do trabalho de Helena Antipoff, tendo elaborado um teste para a aferição da maturidade das crianças (Teste ABC) e promovido a homogeneização das classes em São Paulo, criando as classes especiais (MONARCHA, 2001). No primeiro projeto da LDB, a proposta de educação dos “excepcionais” era um reflexo do movimento homogeneizador, inspirado nos princípios da Escola Nova. Helena Antipoff iniciou o processo de homogeneização das classes em Belo Horizonte em 1931 e, ao distribuir os(as) alunos(as) entre as classes A, B, C, D e E de acordo com o resultado nos testes psicológicos, a educadora concluiu que as crianças consideradas “excepcionais” não poderiam permanecer nas escolas regulares e, para cuidar de sua educação, criou a primeira Sociedade Pestalozzi, iniciando o processo de encaminhamento dessas crianças para instituições especializadas (RAFANTE, 2011). Nessa temática, o texto do projeto de lei da primeira LDB indicava que as escolas deveriam identificar aqueles que prejudicassem o rendimento escolar dos demais alunos(as) devido à sua “deficiência”, sendo que as mesmas deveriam ser encaminhadas para instituições especializadas. Tratava-se da mesma dinâmica adotada por Helena Antipoff nos grupos escolares mineiros durante a década de 1930 e que se manteve nas décadas seguintes. A proposta legislativa endossava a organização até então existente: o atendimento especializado em instituições particulares. Essa característica da educação dos “excepcionais” evidencia a influência das ações das Sociedades Pestalozzi na elaboração da legislação brasileira. Além disso, ia ao encontro dos defensores da liberdade de ensino naquele contexto de elaboração da 604

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lei (BUFFA, 1984) e isso fez com que, no substitutivo Carlos Lacerda, a Educação Especial passasse a compor um dos títulos da LDB, promulgada em dezembro de 1961 (Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961) (RAFANTE & LOPES, 2013). Na década de 1960, as ações de Helena Antipoff e das Sociedades Pestalozzi foram fundamentais para a implementação da Campanha Nacional de Educação e Reabilitação de Deficientes Mentais (Cademe). As campanhas direcionadas à educação dos surdos e dos cegos tinham sido instituídas em 1957 e 1958, respectivamente. A Cademe só foi instituída devido à intervenção direta de Antipoff junto a funcionários do Ministério da Educação e ao próprio ministro. Porém, até 1964 a Cademe não tinha saído do papel e, mais uma vez, as ações da educadora foram fundamentais, uma vez que ela buscou se reunir com a esposa do então Ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda, conseguindo a instalação oficial da campanha em agosto daquele ano (CESAR, 1992). A partir disso, foi instituída a Semana Nacional da Criança Excepcional pelo Decreto nº 54.188, “que seria comemorada em todo o território nacional, cabendo ao ministro da Educação solicitar a todos os órgãos vinculados ao Ministério da Educação (MEC) que promovessem a semana do 'excepcional'(Rafante, 2015, p.4).Nesse contexto, foi criado um grupo de trabalho para promover estudos durante a Semana do Excepcional e coordenar a Cademe. Helena Antipoff compunha o grupo que, entre outras atividades, elaborou uma proposta de Lei para criação do Departamento Nacional de Educação Especial (DNEE) (RAFANTE, 2015). Entretanto, a proposta não se concretizou na década de 1960. Somente nos anos 1970, no contexto da reforma educacional7 promovida pela ditadura militar, momento em que a meta do governo federal era universalizar o ensino para a faixa etária de 7 a 14 anos, a educação especial foi considerada prioridade educacional pelas esferas da sociedade política (Estado), recebendo grande influência da política internacionalizada representada pelos acordos do Mec - United StatesAgency for International (Usaid) e pelas determinações da Organização das Nações Unidas (ONU). Não era possível, para o governo brasileiro, cumprir a meta da universalização se a educação básica não contemplasse todos os segmentos da sociedade.

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A reforma da educação foi instituída no ensino superior pela Lei nº 5540, de 28 de novembro de 1968, e dos ensinos primário e secundário pela Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (ROMANELLI, 2010).

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O Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), foi criado em 1973 e, para compreender a sua concretização, faz-se necessário considerar a política de educação e a influência do trabalho desenvolvido pelas Sociedades Pestalozzi na realidade educacional brasileira. A tentativa de criação de um órgão central para tratar da Educação Especial já havia sido empreendida por representantes ligados à instituição, no interior da CADEME. O conceito de “excepcional”, apresentado no projeto de criação do CENESP, foi aquele sistematizado por Helena Antipoff e amplamente divulgado pelas Pestalozzi. Além disso, seus profissionais ocuparam cargos importantes nessa nova organização. Portanto, a análise das fontes primárias evidenciou que as atividades dessas instituições foram basilares para a constituição dos programas governamentais de Educação Especial, os quais começaram a ser organizados nos anos de 1960 e, principalmente, na década de 1970. Porém, para compreensão da criação do CENESP, foi preciso ampliar a análise para educação geral, o que ratifica o pressuposto teórico adotado nesta pesquisa. DISCUSSÃO Indicando os caminhos para a seleção das fontes primárias estão os referenciais gramscianos, os quais problematizam a formação dos intelectuais e o papel econômico, político e social que exercem na construção e manutenção da hegemonia social e do domínio estatal. Estes indicam a necessidade de investigar as atividades de caráter prevalentemente intelectual e, também, a análise das instituições ligadas às atividades culturais e a consideração de escolas, academias, círculos de diversos tipos como instituições de elaboração coletiva da vida cultural. As fontes possibilitaram verificar os processos históricos que levaram à demanda pela educação especializada no país ainda na década de 1930, mais de trinta anos antes de passar a compor a legislação nacional, e a participação das Sociedades Pestalozzi no processo que levou à constituição de um órgão nacional para a área. Foi possível verificar o envolvimento de vários intelectuais brasileiros na questão dos “excepcionais”, a exemplo dos Seminários Sobre a Infância Excepcional organizados por Helena Antipoff na década de 1950. Estes possibilitaram a composição de uma rede de relações que, paulatinamente, foi disseminando a necessidade de atender essa demanda em nível nacional, permitindo considerar as Sociedades Pestalozzi enquanto organismos privados de 606

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hegemonia os quais compõem a sociedade civil e exercem papel decisivo na constituição das políticas públicas no país. Nesse sentido, as ações dessas instituições foram basilares para a inserção da educação dos “excepcionais” na pauta das políticas públicas no Brasil. De um lado, essas políticas atendiam às reivindicações daqueles que eram o público-alvo dessa educação; por outro, faziam parte do processo de adequação da realidade brasileira à ordem capitalista mundial, representado pelas reformas educacionais da ditadura militar. Tratase de um processo que reflete as contradições e as tensões sociais de uma sociedade organizada sob a ordem capitalista: diante das desigualdades geradas pelo sistema, fazem-se necessárias políticas públicas para minimizá-las. Porém, essas políticas não aparecem espontaneamente nos programas de governo; são resultado das ações da sociedade civil que, nesse caso, tiveram na figura de Helena Antipoff e nas Sociedades Pestalozzi um elemento catalisador das demandas e das pressões sociais, enquanto instituições de elaboração coletiva da vida cultural. CONCLUSÃO A partir dos referenciais de Antonio Gramsci, foi possível ampliar a análise das Sociedades Pestalozzi para além das instituições em si mesmas, levando à compreensão da sua importância enquanto componente da sociedade civil na elaboração das políticas públicas referentes à Educação Especial. A demanda pela educação especializada foi constituída no contexto da homogeneização das classes das escolas sob os fundamentos da Escola Nova. Em Minas Gerais, Helena Antipoff participou desse processo a partir de 1929 e classificou, por meio dos testes psicológicos, aqueles que passaram a ser considerados “excepcionais” e que não poderiam permanecer nas escolas existentes. Entretanto, a educação para essas crianças foi organizada pela sociedade civil a partir da criação da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, por iniciativa de Antipoff, em 1932. Nas décadas seguintes, sociedades congêneres foram constituídas em diferentes regiões do país. Suas ações contribuíram para articular intelectuais de distintas áreas em torno da questão da educação dos “excepcionais”, criando uma concepção de deficiência e de educação praticada pelas Pestalozzi e apresentada à sociedade brasileira. Esse fato colocou a questão na pauta das políticas educacionais que, articuladas às demandas do Estado brasileiro da década de 1970 e sob a influência da teoria do capital humano e dos acordos Mec-Usaid, encontrou as 607

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condições para a criação de um órgão específico para a área, o Cenesp.Portanto, as ações de Helena Antipoff e das Sociedades Pestalozzi foram fundamentais para a constituição do campo da Educação Especial no Brasil, notadamente, das políticas públicas. Essa participação condicionou a permanência dos princípios antipoffianos na concepção de deficiência adotada tanto pelo novo órgão quanto por grande parte dos profissionais os quais passaram a atuar no Cenesp, sendo estes oriundos das Sociedades Pestalozzi. Em relação ao método de análise, infere-se que a formulação das políticas públicas deve ser estudada não somente (ou privilegiando) os documentos oficiais, mas sim inseridas em um contexto político, econômico e social, considerando a participação da sociedade civil. Isso porque essas políticas não são meras concessões do Estado ou iniciativas exclusivas deste, mas produto das reivindicações de instituições as quais representam determinados setores da sociedade brasileira e são resultado de processos históricos com múltiplas determinações. REFERÊNCIAS ANTIPOFF, D. Helena Antipoff: sua vida, sua obra. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1975. ANTIPOFF, H. Ideaes e interesses das creanças de Bello Horizonte e algumas sugestões pedagógicas. In: Minas Gerais. Secretaria do Interior. Inspetoria Geral de Instrução. Boletim nº 6. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1930a. p.1-46. ANTIPOFF, H. O desenvolvimento mental das creanças de Bello Horizonte segundo alguns testes de inteligência geral. In: Minas Gerais. Secretaria do Interior. Inspetoria Geral de Instrução. Boletim nº 7. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1930b. p.1-74. ANTIPOFF, H. Organização das classes dos grupos escolares de Bello Horizonte e o controle dos testes. In: Minas Gerais. Secretaria do Interior. Inspetoria Geral de Instrução. Boletim nº 8. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1932a. p.1-75. ANTIPOFF, H. Monografia de uma classe escolar de Belo Horizonte: estudo escolológico de 1931. Minas Gerais. Secretaria do Interior. Inspetoria Geral de Instrução. Boletim nº 9. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1932b. p.1-99. ANTIPOFF, H. Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais - 1932- 1962: notas por Helena Antipoff. Infância Excepcional: Revista semestral da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, ano 1, n.1, p.10-27, 1963. ANTIPOFF, H. Infância excepcional (sub-normais). Boletim do CDPHA, v.1, n.12, 1933, p.1101. 608

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HISTORICISMO GRAMSCIANO E CRÍTICA DA SUA APROPRIAÇÃO PELA PEDAGOGIA MARXISTA BRASILEIRA Alessandro de Melo1 RESUMO: O historicismo gramsciano sintetiza a análise do autor sardo sobre o marxismo, caracterizado por ele como “historicismo absoluto”. Nesta seara de compreensão, as análises gramscianas pautam-se pela radicalização do princípio dialético do movimento da história e da impossibilidade de determinações apriorísticas dos resultados das ações humanas. É famosa sua ideia de que não é possível determinar o que do presente será preservado no futuro revolucionário, ou definir de fato se este ocorrerá. Esta proposição colocou Gramsci na contracorrente do pensamento marxista hegemônico na II Internacional, caracterizado pelo determinismo histórico, em especial contra Bukharin. Sua reivindicação do historicismo, por outro lado, inspira-se em figuras do pensamento filosófico italiano, especialmente do filósofo idealista Benedetto Croce (1866-1952), que foi o maior representante do pensamento de Hegel na Itália. É a partir das contribuições de Croce que Gramsci realiza a crítica da vulgata materialista, que dividia o pensamento de Marx em uma “sociologia” e uma “filosofia”. Daí a cisão gramsciana ao “materialismo histórico” e a sua ideia do marxismo como “filosofia da práxis”. Esta cisão é pouco compreendida por parte dos educadores marxistas brasileiros, com ênfase ao fundador da chamada Pedagogia Histórico-Crítica, Dermeval Saviani, que adota a teoria gramsciana de forma ahistórica, abstrata e formalista (MELO, 2013), transformando-se em categorias pedagógicas abstratas e aplicáveis universalmente (VIEIRA, 1993), como é o caso de suas concepções políticas reformistas, presentes nas suas obras políticas. Assim, a discussão em pauta vincula-se à necessidade de formulação coletiva de uma outra pedagogia crítica revolucionária, que efetivamente seja herdeira da tradição gramsciana e marxiana, vinculada à necessária transformação da realidade.

1. INTRODUÇÃO Este texto tem como finalidade continuar uma necessária discussão sobre as apropriações de Gramsci pela Pedagogia Histórico-Crítica - PHC, para a qual o revolucionário italiano é referência primordial, como assinala Dermeval Saviani em muitas de suas obras (SAVIANI, 2011a; 2008). Um dos fatores que levam a esta necessidade é o fato de que, a nosso juízo, existe neste processo de apropriação um problema importante, que traz consequências de ordem teórica e política para o pensamento educacional crítico: o historicismo que caracteriza a obra de Gramsci não é devidamente levado em consideração, e, em seu lugar, o que ocorre é uma formulação que chamamos de “formalista” e não dialética. Desta forma, mesmo se pretendendo

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Doutor em Educação – UFPR. Professor Adjunto do Departamento de Pedagogia da Universidade Estadual do CentroOeste – UNICENTRO, e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNICENTRO. E-mail: [email protected].

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uma pedagogia crítica, comunista, de fato acaba apelando para a lógica formal e, com isso, compromete este caráter pretensamente revolucionário. Partindo desta premissa e desta necessidade, o artigo está desenvolvido em duas partes: na primeira parte esclarecemos o historicismo em Gramsci; na segunda parte expõe-se como o historicismo não está devidamente presente na PHC, em especial na concepção de política de Dermeval Saviani. 2. O HISTORICISMO EM GRAMSCI A trajetória política de Gramsci é marcada, entre outros momentos e fatos, pela disputa que enfrentou no seio do Partido Comunista Italiano e da 2a e 3a Internacional Comunistas, disputa esta que girava em torno da interpretação teórica e das consequências táticas para a estratégia socialista de uma interpretação marcadamente mecanicista da herança de Marx, para a qual o campo ideológico é considerado como simples reflexo da estrutura, que seria a verdadeira determinante da história. A tendência economicista do marxismo tinha como um de seus alicerces o “previsionismo”, uma concepção determinista, fatalista segundo a qual o movimento histórico, mais cedo ou mais tarde, iria desembocar numa revolução de tipo socialista. Esta concepção não tem nada de ingênua, ao contrário, tem consequências políticas muito sérias, como o imobilismo em nome de uma atuação apenas verbalista, de propaganda, à espera do “dia D” da revolução entre outras (COUTINHO, 2007). Para Buci-Glucksmann (1990, p.283), a crítica de Gramsci ao determinismo da previsão histórica presente na concepção mecanicista se dá em nome “[...] da hegemonia leninista, da dialética entre condições objetivas de uma correlação de forças e condições subjetivas de seu amadurecimento político em relação ao Estado [...]”. Nada no jogo político está dado a priori, não existem determinações de quaisquer espécies no que se refere ao movimento político e revolucionário. O aparecimento ou não de um movimento revolucionário, bem como seu desenrolar, dependem da correlação de forças que o fez surgir, bem como das formas como, no seu interior, irão se desdobrar as forças em presença.

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Outro ponto forte de Gramsci na crítica ao economicismo refere-se ao fato de ter localizado a filosofia marxista no interior dos embates das lutas de classes, superando a separação entre filosofia e política. Para Gramsci, toda filosofia é política. E a filosofia da práxis é a filosofia dos subalternos. “Ela é a expressão dessas classes subordinadas que querem aprender a arte de governar e têm interesse em conhecer todas as verdades, inclusive as mais desagradáveis.” (apud BUCI-GLUKSMANN, 1990, p.287). O exemplo mais importante desta polêmica se deu contra Nicolai Ivanovich Bukharin (1888-1938), analisado por Buci-Glucksmann (1990), que afirma que Gramsci passou por duas fases apreciativas da obra do economista e político russo. A primeira delas, em 1925, refere-se ao momento em que, ao propor uma escola para o partido comunista, Gramsci enfrenta os perigos do sectarismo advindos da sua atividade clandestina, imposta pelo fascismo, e adota como referência, para o curso por correspondência2, a obra de BukharinA teoria do materialismo histórico. Manual popular de sociologia. Buci-Glucksmann explica que tal referência teórica para o curso por correspondência se deveu ao fato de que, naquele período, Bukharin era mais famoso no Partido Comunista Italiano (PCI) do que o próprio Stalin. Para mostrar como Gramsci, de forma entusiástica, toma o livro de Bukharin como referencial teórico do marxismo, a autora se reporta ao seu texto, escrito em 1925, no qual sustenta que: “A classe operária tem sua sociologia proletária, conhecida pelo nome de materialismo histórico, e radicalmente oposta à ciência burguesa.” (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 260). A segunda posição de Gramsci com relação ao “materialismo histórico” fica mais clara nos anos do cárcere, quando ele se opôs acirradamente aos princípios presentes no Manual de Bukharin. No período de 1930-1931, auge dos trabalhos de Gramsci sobre Bukharin, ele realiza uma critica radical à obra do autor russo, destacando o mecanicismo e o economicismo ali presentes. Assim, o que anteriormente ao cárcere era concebido como “sociologia proletária” se transformou em protótipo do que não deveria ser feito sobre o marxismo, pois era um verdadeiro obstáculo teórico e político para a revolução proletária.

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Trata-se de uma proposição de Gramsci, no interior do Partido Comunista Italiano, para a fundação de uma escola do partido, que, dadas as difíceis condições materiais, poderia tomar a forma de cursos por correspondência. Esta formação estaria aliada aos instrumentos já existentes, como o jornal de massas L’Unità e da revista de formação de quadros L’OrdineNuovo. Esta iniciativa poderia ser o gérmen da multiplicação de escolas do partido.

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Buci-Glucksmann (1990, p.261-262) ressalta duas críticas de Gramsci ao Manual: 1. O materialismo histórico não é uma sociologia; 2. A falsidade da teleologia de Bukhárin, que concebia toda a história da filosofia anterior a Marx como uma sucessão de erros. Quando diz que Bukhárin reduziu a filosofia da práxis a uma sociologia, Gramsci explicita que: A redução da filosofia da práxis a uma sociologia representou a cristalização da tendência vulgar, já criticada por Engels (nas cartas a dois estudantes, publicadas no SozialAkademiker), e que consiste em reduzir uma concepção de mundo a um formulário mecânico, que dá a impressão de poder colocar toda a história no bolso (GRAMSCI, 1987, p.152).

Outro autor importante para a formulação do historicismo de Gramsci foi o filósofo italiano Benedetto Croce, com quem manteve um diálogo por toda sua vida, aproveitando-se principalmente das críticas deste filósofo aos marxistas economicistas, criticas estas consideradas de bom senso por Gramsci. “Croce dizia que o economicismo marxista não passa de uma artimanha racionalista que toma os sujeitos históricos concretos como"fantoches puxados por um fio ou acionados por certa mola" (CROCE, 1962, p.17 apud VIEIRA, 1993, p. 39). O estudo aprofundado das críticas de Croce ao materialismo mecanicista foi importante para o enfrentamento destas questões no interior do Partido Socialista Italiano, especialmente das correntes maximalistas e reformistas deste partido, ao qual o jovem Gramsci se filiou e com o qual iria romper anos depois, quando ajudou a fundar o Partido Comunista Italiano. O grupo ordinovista — que Gramsci liderou no interior do PSI e, posteriormente, no PCI - tem sua trajetória de crítica cultural e política marcada pela recusa da visão fatalista do processo revolucionário, que concebia o socialismo como uma realização das leis naturais do desenvolvimento histórico. (VIEIRA, 1993, p.41)

Segundo Dore Soares (2000), a crítica de Gramsci ao pensamento de Croce é do mesmo nível da realizada por Marx sobre a obra de Hegel. Tanto é assim que, tal como Marx, Gramsci primeiramente “bebe na fonte” de Croce, para, depois, superá-lo dialeticamente. A retomada da obra de Croce e sua crítica é a forma pela qual Gramsci acredita ser possível retomar a envergadura da filosofia da práxis, que vinha sendo vulgarizada pelos marxistas economicistas.Na análise de Croce, Marx era reduzido a um autor economicista.

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Croce chegou ao ponto de afirmar que a sua recente e futura crítica à filosofia da práxis está ligada, precisamente, a esta sua preocupação antimetafísica e antiteológica, porquanto a filosofia da práxis seria teologizante e o conceito de “estrutura” não seria senão a representação ingênua do conceito de um “deus oculto”. (GRAMSCI, 1987, p.220)

A crítica de Croce nega à obra de Marx um caráter filosófico, por isso Gramsci destaca os limites especulativos da sua filosofia, ressaltando ser ela mesma teologizante, e apenas menos grosseira que “a grosseira ganga mitológica” (GRAMSCI, 1987, p.220). Croce não separa filosofia e ideologia, religião e superstição, algo que deveria estar presente na sua obra crítica da filosofia da práxis. Ao fazer isso, resulta de sua obra uma pseudoneutralidade política, desmascarada por Gramsci ao afirmar que aquele pensador, fortaleceu e justificou moralmente o fascismo: a obra-prima política através da qual uma determinada classe consegue apresentar e fazer aceitar as condições da sua existência e do seu desenvolvimento de classe como princípio universal, como concepção do mundo, como religião, isto é, descreve em ato o desenvolvimento de um meio prático de governo e de domínio (GRAMSCI, 1987, p.226)

Para afirmar que, em Marx, não existe determinismo entre estrutura e superestrutura, Gramsci realiza uma pesquisa de seus textos e identifica várias passagens nas quais Marx mostra a importância da cultura no movimento histórico. Mostra a clareza dessa perspectiva quando Marx afirma, no famoso Prefácio à Crítica da Economia Política, que é no terreno das ideologias que os homens adquirem consciência das relações sociais em que vivem. Desse modo, as superestruturas são fundamentais tanto para a tomada de consciência quanto para a formação da vontade coletiva. No pensamento de Marx, o campo das ideologias tem papel relevante no processo de transformação social. Não compreender a importância das superestruturas levava os economicistas a reduzi-las a meras “aparências”, favorecendo a crítica de Croce ao marxismo. Mas, como ressalta Gramsci ao recuperar vários textos de Marx, as superestruturas são importantes para “tomar consciência” dos conflitos sociais e, por isso, são fundamentais no plano da luta social. Sobre o historicismo croceano, Gramsci chama a atenção para o seu caráter reformista, advindo da sua filosofia idealista e, consequentemente, da sua posição política liberal. O caráter 617

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reformista aparece na tendência em analisar as mudanças sociais em termos da dialética inovação e conservação, sendo típico daquela forma de pensamento “escolher” determinados elementos do passado para serem conservados, como se fosse possível lidar com o passado tal qual um jogo de cartas marcadas. Apresentando críticas a essa formulação, Gramsci afirma que não se pode arbitrar, a priori, sobre o que deve ou não ser conservado. O historicismo croceano é uma “história com desígnio”, inversamente contrária à concepção da filosofia da práxis. Utilizando a linguagem hegeliana, Gramsci sintetiza assim esta temática: Se é possível afirmar genericamente que a síntese conserva o que ainda é vital na tese, superada pela antítese, não é possível afirmar, contudo, sem cair no arbitrário, o que será conservado, o que a priori se considera como vital, sem com isto cair no ideologismo, na concepção de uma história com desígnio (GRAMSCI, 1987, p.252-253).

A indicação de alguns aspectos da crítica de Gramsci ao marxismo mecanicista de Bukharin e ao idealismo de Croce tem como objetivo mostrar como Gramsci realiza um verdadeiro salto qualitativo na construção teórica marxista, que é o conceito de hegemonia. É a partir da solidificação desse conceito que o autor italiano supera as deficiências analíticas presentes nas correntes teóricas dominantes em seu tempo. O historicismo de Gramsci não é um cânone de interpretação histórica, mas uma maneira original de articular conhecimento histórico e práxis política, tendências objetivas e o exercício da direção política. A história é política à medida que o passado é resultante de projetos que em confronto geram práticas e criam estruturas que permanecem atuando no presente, ainda que se possa distinguir o que é um fato circunscrito ao passado e o que é uma tendência que está atuando na história in fieri, isto é, na história em ato, em vias de realização. (VIEIRA, 1999, p.151)

A filosofia da práxis, derivada da 11a tese sobre Feuerbach de Marx, não é uma demissão da teoria para a prática, mas a ideia de uma filosofia não contemplativa, uma filosofia que se torna história real. Não se trata, portanto, de produzir uma filosofia da ação, mas de constatar historicamente, caso a caso, a eficácia prática da teoria. Em síntese, o historicismo gramsciano é uma importante contribuição do autor sardo para o marxismo, justamente por recuperar a centralidade da história para o pensamento socialista, bem como, com isso, superar toda interpretação formalista do marxismo. Este é pensado como “historicismo absoluto”, já que não considera que apenas os seres humanos são 618

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produtos da história, mas a própria lógica dialética materialista é impensável fora da história. Para Gramsci: “[...] o ser não pode ser separado do pensar, o homem da natureza, a atividade da matéria, o sujeito do objeto; se se faz esta separação, cai-se em uma das muitas formas de religião ou na abstração sem sentido" (GRAMSCI, 1978, p.70 apud VIEIRA, 1993, p.43). 3. PRIMEIROS APONTAMENTOS SOBRE AS CONTRADIÇÕES DA POLÍTICA EM SAVIANI Afirma Gramsci quea o abstrairmos a consistência historicista do marxismo, este se transformaem um "[…] formulário mecânico, que dá a impressão de poder colocar toda a história no bolso" (GRAMSCI, 1987, p.152). O chamado método dialético acaba reduzido a um conjunto de cânones. uma banal caixa de ferramentas que, ao proceder à pesquisa, encontra seus limites concretos na rebeldia da realidade que teima em desobedecer aos modelos explicativos. O logicismo abandona tudo aquilo que escapa à fórmula e incorpora todos os fatos que colaboram com o enunciado teórico, de preferência os mais genéricos, em nome da historicidade do pensamento. É como se o conceito, a lei, a categoria já comportassem a historicidade, determinando assim o ritmo e os contornos do processo histórico (VIEIRA, 1994, p.233).

Uma característica fundamental para interpretar a obra de Gramsci é o seu caráter dialético, ao mesmo tempo inovador e ortodoxo em relação a Marx, Engels e Lenin. Também outra característica é a polêmica que o revolucionário italiano gerou, tanto em vida quanto posteriormente, devido aos seus escritos nos Quaderni del Cárcere. No entanto, Vieira (1994) aponta o fato de que o historicismo foi ignorado pelo pensamento acadêmico na educação brasileira, resultando, segundo pensamos, em uma apropriação indevida, não dialética, do pensamento gramsciano. Sobre o pensamento de Saviani, Fávaro (2014) muito bem aponta o equívoco crucial de separar teoria e prática, enfatizando, na PHC, o momento da teoria como foco da ação pedagógica. Ou seja, caberia à escola preparar o momento teórico para quando as condições objetivas estiverem abertas para a transformação. Cabe ao momento teórico preparar os agentes da prática criando as condições subjetivas para a transformação. Isto possibilitará que, à medida que as oportunidades objetivas se abram, as transformações no campo educacional possam processar-se porque os educadores já estão alertados para essa 619

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possibilidade, já possuem os conhecimentos necessários, assim como já se qualificaram teoricamente para ações transformadoras. É nesse sentido que a difusão da proposta pedagógica histórico-crítica pode contribuir para resolver as dificuldades do ensino no país (SAVIANI, 2011b, p. 120 apud FÁVARO, 2014, p.505).

O formulador da PHC realiza, assim, o desmonte do historicismo gramsciano, trabalhando com elemento de “previsibilidade” sobre o futuro e sobre os elementos que deverão permanecer na síntese entre tese e antítese, para utilizar as palavras de Gramsci. Neste caso, ao antecipar o futuro com a teoria, Saviani acredita nesta previsibilidade que tanto combateu seu autor de referência. E, mais, ao antecipar teoria e prática, separando-as, faz com a dialética um exercício idealista incompatível com o referencial marxiano. Ao mesmo tempo, no final desta citação, fala sobre a aplicabilidade da PHC para a resolução dos problemas da educação brasileira, que, segundo ele, seria resultado desta antecipação. No seu livro sobre o Plano Nacional de Educação (SAVIANI, 1998) o autor inicia a introdução do livro afirmando a existência de duas formas de políticas: as políticas sociais e a política econômica. As políticas educacionais fazem parte, nesta divisão, das chamadas políticas sociais. Para Saviani (1998, p.01): “[...] essa denominação decorre das características da sociedade capitalista cuja forma econômica se centra na propriedade privada dos meios de produção, o que implica a apropriação privada dos bens produzidos coletivamente”. E continua seus argumentos afirmando que a política econômica é “antissocial” por ser uma política de defesa dos interesses privados sobre os interesses coletivos. E, para complementar o argumento, o autor termina com a ideia de que as políticas sociais surgem justamente com o intuito de contrabalançar os efeitos antissociais da política econômica. A concepção marxista de Estado, exposta sobretudo em seu período de chegada na França, em 1844, e pela publicação de seus textos nos Anais Franco-Alemães neste mesmo ano, afirma categoricamente a necessidade da extinção do Estado, da sua parcialidade histórica, por ser ele o ordenamento da sociedade (MARX, 2010, p.59). Na Questão Judaica (MARX, 1991) Marx argutamente vaticina a separação entre as ações do Estado e a emancipação humana. “O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrarse de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre.” (MARX, 1991, p.23). Assim, a 620

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ontogênese do Estado não cabe na separação entre suas políticas econômicas e sociais, que se identificam no limiar da ação estatal isolada dos projetos emancipatórios. Uma consequência desta concepção que separa políticas econômicas e sociais se verifica na crença/ilusão do autor pela luta por incrementar estas últimas com o aumento do orçamento estatal para a educação, como meio de resolução dos problemas, o que, segundo ele mesmo, não é realizado por falta de “vontade política”. Para romper o círculo vicioso que prende as questões sociais, especialmente a educação, à economia, seria preciso que o governo tomasse “[...] a decisão histórica de definir a educação como prioridade social e política número 1, passando a investir imediata e fortemente na construção e consolidação de um amplo sistema nacional de educação.” (SAVIANI, 1998, p.05). Novamente está expressa a previsibilidade dos elementos da síntese, ao apostar que é por meio do Sistema Nacional de Educação que se pode apostar em um projeto educativo nacional, o que também denota a crença no etapismo, ou seja, a crença de que o Sistema Nacional seria uma etapa necessária, etapa democrático-burguesa, para a chegada, no futuro certo, de um projeto educativo socialista. A sua insistência sobre esta etapa é tamanha que não admite sequer que façam parte deste Sistema Nacional de Educação iniciativas de educação popular, cursos livres etc., pois a introdução destes poderia “descaracterizá-lo”. Nas suas palavras: nas sociedades modernas a instância dotada de legitimidade para legislar, isto é, para definir e estipular normas comuns que se impõem a toda a coletividade, é o Estado. Daí que, a rigor, só se pode falar em sistema, em sentido próprio, na esfera pública (SAVIANI, 1999, p. 121).

Está claramente exposta aqui a adesão do autor à tática de luta dentro dos limites da legalidade, dentro da esfera do Estado, por meio de sua ocupação, da tática de “resistência ativa”, pela luta por aumentar o orçamento da educação entre outras.As premissas de Saviani, que se reproduzem em seus textos de toda a vida, é o imperativo das estratégias de desenvolvimento nacional, via ação da burguesia e do Estado, para a qual o papel da educação é fundamental, inclusive para atacar outros problemas nacionais de frente, como o da saúde, segurança, desemprego etc. (SAVIANI, 2010). Parece haver, neste caso, uma linearidade entre o discurso deste teórico e os discursos dominantes sobre o futuro do país. Neste mesmo texto citado, que é uma entrevista, é interessante observar como o autor conclui seus pensamentos. 621

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Está lançado o desafio aos formadores de opinião, dirigentes dos vários níveis e dos mais diferentes ramos de atividade e, em especial, à classe política. Ou assumimos essa proposta, ou devemos deixar cair a máscara e paramos de pronunciar discursos grandiloquentes sobre educação, em flagrante contradição com uma prática que nega cinicamente os discursos proferidos (SAVIANI, 2010, p. 246).

As máscaras da política tradicional sempre estiveram à mostra, e querer aliar uma estratégia hegemônica para a classe trabalhadora aos discursos da burguesia sobre educação e sobre o país, não parece ser compatível com um projeto educativo revolucionário, mas reformista. Ainda sobre o Plano Nacional de Educação, o autor afirma a tese de que ele é determinado pela: forma geral capitalista sobre a política educacional [...] que é tratada separadamente da política econômica e a esta subordinada. Com isso a política social acaba sendo considerada invariável e reiteradamente como um paliativo aos efeitos antissociais da economia, padecendo das mesmas limitações e carências que aqueles efeitos provocam na sociedade como um todo (SAVIANI, 1998, p.03-04).

Assim, a resolução dos problemas parece ser uma certa “vontade política” de que a situação se modifique, como afirma sobre o financiamento da educação no período do FUNDEF: “Trata-se, assim, de um patamar que consagra o estado de miséria da educação nacional, evidenciando a precária vontade política do atual governo3 no enfrentamento dessa questão.” (SAVIANI, 1998, p.42). Por fim, a questão é que as proposições reformistas não levam em conta a subordinação real da esfera da política à esfera da economia no âmbito do Estado burguês, e, com isso, pode levar os trabalhadores a equívocos em suas estratégias de resistência e luta ativa contra o sistema capitalista. Implementar um sistema nacional de educação, por exemplo, é uma forma que historicamente serviu para o incremento capitalista nos países em que este se desenvolveu. Laborar na ideia da relação entre educação e desenvolvimento, ainda que sustentável como

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Trata-se do governo de Fernando Henrique Cardoso. Mas a aposta de Saviani continua com os governos posteriores, como fica claro na leitura dos prefácios deste mesmo livro, escritos já nos anos 2000 (o último em 2010, sob a vigência das discussões em torno da CONAE).

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defende Saviani, também é uma forma de incremento capitalista, e apenas uma visão etapista4 da história, como parece ser o caso de Saviani. Somente por esta via se poderia defender que desenvolvimento capitalista seja uma ferramenta de emancipação, ou, então, que a educação seria o impulsionador da economia do país, como repetidamente defende o fundador da PHC. Tomando-se a educação como o eixo do projeto de desenvolvimento do país, ela será o ponto a partir do qual serão atacados e resolvidos todos os demais problemas. O que está em causa é a mudança do modelo de desenvolvimento econômico. Até agora o modelo vem tendo por eixo o automóvel, o que se evidencia no fordismo, depois substituído pelo toyotismo, [...]. A mudança desse eixo para a educação permitirá um desenvolvimento com maior distribuição da renda e estimulador da igualdade social e, além de não apresentar efeitos colaterais negativos, já traz consigo o antídoto aos efeitos negativos como se constata na educação ambiental, educação para o trânsito etc. (SAVIANI, 2011a, p. 212).

Esta verdadeira inversão formulada por Saviani entre educação e desenvolvimento não parece encontrar eco em seus autores de referência. É, portanto, uma leitura particular deste autor a respeito do marxismo, das teorias do Estado, da ideologia e, em especial, de Gramsci, leitura esta claramente reformista (MELO, 2013; FÁVARO, 2014; LAZARINI, 2010), já que as propostas políticas da PHC se inserem em uma luta dentro do Estado capitalista, por melhorias de “qualidade” educativa, ou por tornar a educação “prioridade nacional”, tendo como veículo o alcance das “consciências” dos políticos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo deste texto foi o de apontar equívocos na apropriação do historicismo de Antonio Gramsci pelo fundador da Pedagogia Histórico-Crítica, Dermeval Saviani, especialmente no que se refere ao pensamento político deste autor, que, consequentemente, se refere à estratégia deste grupo para a superação do capitalismo.

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O etapismo se caracteriza por uma concepção unilinear da história que defende que todas as sociedades devem passar por determinadas fases. No caso da teoria marxista o mais célebre defensor do etapismo foi Stálin, em seu texto Sobre o materialismo histórico e dialético, para o qual se valeu de uma interpretação de determinados textos de F. Engels publicados após a morte de Marx, em 1883, dos quais consta especialmente o Origem da família, da propriedade privada e do Estado, que, por sua vez, foi baseado na obra do antropólogo Lewis H. Morgan e seu livro mais famoso Ancientsociety, publicado em 1877 e que Marx teria lido no ano de 1880. Para Stálin todas as sociedades deveriam cumprir o caminho da comunidade primitiva ao escravismo sem a mediação da forma asiática (ANTUNES, 2007). No caso em pauta não se trata destas etapas mas do fato de que a discussão de Saviani se reporta à necessidade de adoção pelo Brasil de um “Sistema Nacional de Educação”, assim como o fizeram os países mais desenvolvidos, como uma etapa necessária para a democratização da educação, haja vista o papel revolucionário que tem nos argumentos do fundador da PHC.

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Após as discussões aqui formuladas, e sabendo de seu caráter provisório e incipiente, é possível afirmar que, do ponto de vista de uma proposta revolucionária de educação, como se pretendia a PHC em seus inícios, é necessário ter em conta uma leitura adequada dos referenciais teóricos, e, na leitura da realidade hodierna, realizar uma análise de conjuntura que não fique no meio do caminho, ou seja, que não fundamente caminhos reformistas travestidos de revolucionários. O historicismo de Gramsci e a sua conotação de “filosofia da práxis” para o marxismo, não deixa margem à dúvidas e não permite a adoção de táticas estatistas como as pretendidas por Saviani. A hegemonia, que é o conceito mais importante produzido por Gramsci, não pode ser compreendido como mera disputa de ideias na sociedade, e muito menos a consciência uma produção intelectual, separada das relações materiais, como fica evidenciado na PHC de Saviani. Desta forma, faz-se necessário um outro caminho crítico-revolucionário, superando por incorporação os elementos positivos da proposta histórico-crítica, mas avançando para práticas (e táticas) que sejam condizentes com a superação da forma estatal de dominação, e que não a reforce de forma alguma. REFERÊNCIAS ANTUNES, Jair. Marx e a América para além da história do capitalismo. Tese (Doutorado em Filosofia), Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2007. 174p. BUCI-GLUKSMAN, C. Gramsci e o Estado. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. COUTINHO, C.N.Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. FÁVARO, N. O projeto político-estratégico da Pedagogia Histórico-Crítica: uma análise das origens, do desenvolvimento, dos dilemas e da relação entre a escola pública e a luta socialista. Tese (Doutorado em Educação), Florianópolis, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, 2014. 624p. GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1987.

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MESA 11: COMPLEXIFICANDO A CLASSE: gênero e raça em pesquisas marxistas Coordenação: Bárbara Araújo Machado (PPGH/UFF) RESUMO: A presente mesa coordenada propõe uma reflexão sobre a importância de atentar para a interação entre as questões racial e de gênero e as relações de classe social em pesquisas marxistas. Parte-se do entendimento, defendido pela cientista política marxista Abigail Bakan, de que a totalidade a qual se refere o materialismo histórico não necessariamente designa um todo puramente universalista, mas uma totalidade contraditória, cuja existência depende tanto da diferença quanto de sua superação através da solidariedade. Acreditamos que tanto as discussões sobre gênero e relações raciais são fundamentais para complexificar os estudos marxistas, aproximando-os da realidade social como ela é de fato, quanto que o rico e diverso aparato teórico e metodológico do marxismo aprofunda os estudos focados em gênero e raça. Ao tomar parte nos debates sobre racismo, patriarcado e outros eixos de desigualdade social, o marxismo trava combate contra um caráter fragmentário, essencialista e a-histórico (na medida que nega a determinação histórica da realidade) que as reflexões sobre esses temas algumas vezes assumem. Nessa mesa, abordaremos temas variados, bem como recortes temporais e espaciais bastante diversos: os avanços e limites na incorporação da luta pela emancipação das mulheres na Revolução Russa e Governo Soviético; a representação da mulher no realismo soviético no Brasil dos anos 1940; a militância do poeta negro brasileiro Solano Trindade entre 1940 e 1960 e; a formação do movimento de mulheres negras no Brasil entre 1978 e 2000. A partir dessa diversidade temática, buscamos elaborar reflexões sobre de que forma a classe interage com as relações raciais e de gênero, complexificando a desigualdade social. Compreender essa interação é um passo vital para superar a exploração, a opressão e a alienação produzida por ela, visando à emancipação humana como um todo.

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ENTRE RAÇA, GÊNERO E CLASSE: a formação do movimento de mulheres negras no Brasil (1978-2000) Bárbara Araújo Machado1 RESUMO: O presente trabalho está relacionado à minha pesquisa de doutoramento, em estágio inicial, que tem como tema a formação do movimento de mulheres negras no Brasil entre 1978 e 2000. Parto da premissa, afirmada por diversas militantes, de que as mulheres negras fundadoras das primeiras organizações específicas voltadas para suas demandas não se viam plenamente representadas nos movimentos sociais de esquerda, feminista ou negro. O processo histórico que levou essas mulheres a se diferenciarem, de modos diversos, dos sujeitos componentes de tais movimentos, e a se reconhecerem enquanto grupo político, tendo concluído pela necessidade de criação de organizações específicas de mulheres negras, é o objeto de investigação desta pesquisa. O conceito gramsciano de intelectual orgânico(a) é chave para a pesquisa. As militantes de organizações como a Geledés – Instituto da Mulher Negra e a Criola – Organização de Mulheres Negras são aqui entendidas como intelectuais orgânicas organizadas em aparelhos privados de hegemonia. A interação entre classe, raça e gênero está presente tanto em termos teóricos como historicamente no processo de formação das organizações de mulheres negras. Para compreender essa interação, utilizo a noção gramsciana de fração de classe, que complexifica o conceito de classe ao evidenciar uma heterogenia interna aos grupos dominados e dominantes. Essa abordagem é enriquecida por outras reflexões, como as discussões sobre interseccionalidade e consubstancialidade, para aprofundar a compreensão das relações entre classe, raça e gênero. A “formação” que figura no título do trabalho refere-se ao aparato conceitual de E.P. Thompson, inspiração direta para a elaboração do tema desta pesquisa. A experiência das mulheres negras e a formação de sua consciência enquanto grupo social a partir dessa experiência são os objetos investigados.

O presente trabalho apresenta algumas considerações preliminares relativas à pesquisa de doutorado intitulada Entre raça, gênero e classe: a formação do movimento de mulheres

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Doutoranda em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

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negras no Brasil (1978-2000). O objetivo específico do trabalho apresentado é refletir sobre a experiência de militantes negras em relação aos diversos movimentos sociais que ascenderam no cenário brasileiro a partir da década de 1970, bem como sobre o surgimento e as formas de atuação de organizações de mulheres negras, à luz do conceito gramsciano de Estado Ampliado. Estudiosos da obra de Antonio Gramsci afirmam que o conceito de Estado Ampliado – ou "Estado Integral", como escreve o autor (GRAMSCI, 1999: 436) – é o "momento teórico mais denso" de sua obra (LIGUORI apud FONTES, 2010: 132), visto que "permite verificar a estreita correlação existente entre as formas de organização das vontades (singulares e, sobretudo, coletivas), a ação e a própria consciência (sociedade civil) – sempre enraizadas na vida socioeconômica – e as instituições específicas do Estado em sua acepção restrita (sociedade política)" (MENDONÇA, 2014:34). A noção gramsciana de Estado incorpora tanto o Estado no sentido restrito, isto é, o "aparelho governamental encarregado da administração direta e do exercício legal da coerção" (BIANCHI, 2008: 178-179) – quanto a sociedade civil. Autores como Bianchi, Sônia Mendonça e Virgínia Fontes ressaltam o caráter conflituoso da sociedade civil. Mendonça postula que

"a sociedade civil nada tem de “idílica” ou ilusória, uma vez que é em seu seio que se elaboram e se confrontam projetos distintos e até mesmo antagônicos, ficando claro, no pensamento gramsciano, que ela é a arena da luta de classes e da afirmação de projetos em disputa, derivados de aparelhos de hegemonia distintos, ainda que, em muitos casos, pertençam a uma mesma classe ou fração dela" (MENDONÇA, 2014:36).

Compreendemos as mulheres negras como fração de classe subalterna e suas organizações como partidos, no sentido gramsciano, cuja função é a construção de uma contrahegemonia. Em um país como o Brasil, em cujas classes dirigentes – as elites brancas – atuaram historicamente na construção e perpetração do mito da democracia racial, a realização de uma reforma intelectual e moral passa também pela questão racial. Diante de tal quadro, a atuação do movimento negro tem se dado no sentido de construir um discurso contra-hegemônico que denuncie o racismo como um fator estruturante das relações sociais no Brasil. O movimento de mulheres negras aprofunda essa crítica na medida em que traz em seu seio uma denúncia não apenas do racismo, mas do machismo e da exploração de classe, incorporados na experiência histórica dessa fração de classe. 628

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Disputas entre frações de classe nos movimentos sociais brasileiros dos anos 1970-1980

Virgínia Fontes desenvolve o seguinte comentário acerca das lutas sociais que ascenderam no Brasil a despeito do longo período de truculência instaurado pelo regime ditatorial instaurado em 1964:

"As décadas de 1970 e 1980 foram especialmente ricas no que concerne à constituição de organizações, tanto de base empresarial quanto sindicais e populares, que afrontavam em sua multiplicidade a seletividade repressiva dominante. As lutas populares foram intensas, complexificando efetivamente os processos de direção e de construção de hegemonia" (FONTES, 2010: 227).

Nesse contexto, os movimentos sociais de caráter contra-hegemônico constituíram-se em aparelhos privados de hegemonia que organizavam diferentes frações da classe trabalhadora. O Partido dos Trabalhadores é um exemplo de aparelho privado de hegemonia que reuniu em suas fileiras "miríades de movimentos sociais", atuando "no sentido de estabelecer conexões anticapitalistas" entre estes e os sindicatos corporativos (FONTES, 2010: 238). Essas "miríades" de movimentos estabeleceram, nos diversos APHs, disputas internas de hegemonia. As mulheres negras -- consideradas aqui como fração de classe subalterna -- estiveram presentes em APHs ligados ao movimento feminista, ao movimento negro e aos movimentos de trabalhadores e trabalhadoras, observando a especificidade de algumas demandas e pautas que, por muitas vezes, eram consideradas incompatíveis ou menos importantes em relação ao projeto hegemônico, conforme veremos adiante.2

As mulheres, de modo geral, ao defenderem uma pauta feminista, enfrentaram não apenas “a oposição do governo [militar], que via com desconfiança qualquer forma de organização da sociedade”, como também “a oposição de [alguns] grupos de esquerda, que consideravam que a luta deveria se polarizar contra o governo autoritário e a desigualdade de

2

É importante lembrar que as mulheres negras foram participantes de movimentos dos mais diversos tipos, como "o Movimento de Favelas do Rio de Janeiro, os Movimentos de Trabalhadoras Domésticas, em Belo Horizonte e em Salvador, as Associações Comunitárias, as Comunidades Religiosas Afro-Brasileiras, o Movimento Estudantil e as Organizações Clandestinas de Esquerda" (RODRIGUES; PRADO, 2010: 450). Neste trabalho, o foco recai sobre as organizações do movimento negro e do movimento feminista.

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classes aqui vigente” (SOIHET, 2007: 42). Era comum a reprodução de uma visão estereotipada que desqualificava as militantes feministas, rotuladas de “masculinizadas, feias, despeitadas”, “depravadas, promíscuas”, conforme expressões do jornal alternativo O Pasquim (SOIHET, 2007). Denúncias de machismo em organizações de esquerda e pautas específicas para promoção dos direitos das mulheres foram vistas muitas vezes como uma polarização indesejada.

A relação entre as organizações de esquerda e aquelas de orientação antirracista, por sua vez, caracterizou-se por aproximações e conflitos.3 Muitos(as) militantes do movimento negro contemporâneo participaram de organizações de esquerda, e o próprio MNU (Movimento Negro Unificado) fazia uma recomendação quanto à necessidade de associar as questões de raça e de classe (PEREIRA, 2013: 251). Amílcar Pereira afirma que uma das “disputas políticas que marcaram a constituição do movimento negro no Rio de Janeiro em meados dos anos 1970” envolvia “questões como as de ‘classe’ (os [negros] ‘revolucionários’ contra os [negros] ‘burgueses’)” (PEREIRA, 2013: 236). Todavia, diversos intelectuais negros criticam, em seus depoimentos, a centralidade da questão de classe em detrimento da questão racial no discurso de algumas organizações de esquerda (FERREIRA apud PEREIRA, 2013: 234; XAVIER apud ALBERTI; PEREIRA, 2013: 312).

Internamente ao movimento negro, a disputa entre frações subalternas também se verificava, em especial em relação às demandas das mulheres negras. Muitos homens negros reprovavam com veemência as denúncias de práticas de machismo dentro das organizações feitas por mulheres negras, que reivindicavam igualdade de gênero no seio desse movimento. Sobre isso, Michael Hanchard afirma que

“houve também no movimento [negro] uma reprodução de atividades patriarcais que fomentou a discórdia entre os ativistas masculinos e femininos. Uma frase bastante batida, 'o pessoal é político', caracteriza adequadamente as frustrações vividas pelas mulheres dentro do movimento em meados dos anos setenta. Muitos ativistas afro3

“Participação em grupos de esquerda” mereceu um tópico específico no livro Histórias do movimento negro no Brasil, que reúne entrevistas com militantes de todo o país. Dos 38 entrevistados, 10 mencionaram especificamente a questão. (ALBERTI; PEREIRA, 2007).

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brasileiros do sexo masculino pregavam a igualdade entre os sexos como parte de sua retórica política, mas esperavam que as afro-brasileiras executassem as tarefas de dona de casa convencional, enquanto eles participavam plenamente do movimento e, às vezes, de relacionamentos com outras mulheres. Para as afro-brasileiras engajadas no movimento, essa disjunção serviu para sublinhar a necessidade de estratégias políticas que independessem da versão masculinista [sic] do movimento” (HANCHARD, 2001: 154).

Para além das disputas em relação a concepções de mundo e projetos de sociedade, o machismo manifestava-se também na dinâmica organizativa cotidiana das organizações negras. Jurema Werneck, intelectual do movimento negro e do movimento de mulheres negras, conta que era comum que os homens monopolizassem as falas em reuniões e eventos e deixassem para as mulheres funções de secretariado, confecção de cartazes, organização de refeições e lanches, etc. (WERNECK apud LEMOS, 1997: 50). Werneck pontua que esse tipo de situação levou as mulheres negras a buscarem formas de efetivar sua representação no movimento, garantindo sua fala. Uma estratégia para isso foi a criação de fóruns exclusivos de mulheres negras no seio das organizações gerais do movimento.4 Estratégias como essa, contudo, foram mal recebidas por muitos homens negros, que não reconheciam necessidade ou função de tais espaços. A criação da sociedade Ogboni – em referência a uma sociedade secreta masculina no contexto da Revolta dos Malês –, grupo formado apenas por homens negros, em reação à ocorrência do I Encontro Nacional de Mulheres Negras em 1988, é um exemplo de evidência que faz cair por terra a retórica de “igualdade entre os sexos” mencionada por Michael Hanchard. Reproduzindo uma visão estereotipada do feminismo, membros da Ogboni classificaram o Encontro como “uma reunião de 'sapatonas'”, numa tentativa de desqualificação e esvaziamento de seu significado político (LEMOS, 1997: 49).

As mulheres negras também organizavam-se em APHs feministas, mas essa relação também não se dava sem tensões. Classificadas por algumas intelectuais negras como vinculadas a um “feminismo branco” ou “feminismo tradicional”, as organizações feministas dos anos 1970/1980 tinha entre suas principais reivindicações algumas questões que não faziam sentido para as mulheres negras (BAIRROS, 1998: 14) Era o caso da demanda pelo ingresso

4

São exemplos o grupo Luiza Mahin, interno ao MNU, criado em 1980 por Lélia González, Zezé Motta, entre outras, e o Grupo de Mulheres Negras do MNU de Salvador-Bahia.

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das mulheres no mercado de trabalho, que ignorava o fato de que as mulheres negras não apenas estiveram associadas à mão de obra escrava durante séculos, como seguiram desempenhando no pós-abolição funções sub-valorizadas como domésticas, babás, faxineiras, etc. (LEMOS, 1997: 64-65). Além da questão racial, a questão de classe torna-se explícita nesse ponto. A saída das mulheres brancas para o mercado de trabalho esteve frequentemente associada à exploração da mão de obra de outras mulheres para desempenhar o trabalho reprodutivo que as primeiras desempenhavam no âmbito da família e que as impedia de "sair" para o mercado de trabalho.5 Esse tipo de tensão entre mulheres trabalhadoras e mulheres burguesas no interior de organizações feministas são fruto de conflitos não mais de frações, mas entre classes sociais opostas.

Para além dos conflitos entre classes, mesmo as mulheres organicamente vinculadas aos grupos subalternos tinham posições diferentes em relação à questão racial. Lélia González, uma das maiores referências para o movimento de mulheres negras na atualidade, apontava para a má recepção das denúncias de racismo no interior do feminismo ligado à esquerda:

“nossa participação [no Encontro Nacional da Mulher, no Rio de Janeiro, em 1979] causou reações contraditórias. Até o momento, tínhamos observado uma sucessão de falas acentuadamente de esquerda, que colocavam uma série de exigências quanto à luta contra a exploração da mulher, do operariado etc., etc. A unanimidade das participantes quanto a essas denúncias era absoluta. Mas no momento em que começamos a falar do racismo e suas práticas em termos de mulher negra, já não houve mais unanimidade. Nossas falas foram acusadas de emocional [sic] por umas e até mesmo de revanchistas por outras; todavia, as representantes de regiões mais pobres nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em sua maioria). Toda celeuma causada por nosso posicionamento significou, para nós, a caracterização de um duplo sintoma: de um lado, o atraso político (principalmente dos grupos que se consideravam mais progressistas) e do outro, a grande necessidade de negar o racismo para ocultar uma grande questão: a exploração da mulher negra pela mulher branca” (GONZÁLEZ apud LEMOS, 1997: 57).

Para explicitar a existência de um projeto específico da fração subalterna mulheres negras, Sueli Carneiro, fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra, cunhou uma expressão que explicita a necessidade de “enegrecer o feminismo”. Segundo ela,

5

Para discussões acerca do trabalho reprodutivo e o movimento feminista das últimas décadas do século XX, ver ARRUZZA, 2010.

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“as mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras” (CARNEIRO, 2011: s.p.).

No mesmo artigo, Carneiro explicita o papel das mulheres negras como fração subalterna na disputa por hegemonia em APHs contra-hegemônicos. Ela afirma que o preterimento histórico das demandas das mulheres negras

“vem promovendo o engajamento das mulheres negras nas lutas gerais dos movimentos populares e nas empreendidas pelos Movimentos Negros e Movimentos de Mulheres nos planos nacional e internacional, buscando assegurar neles a agenda específica das mulheres negras” (CARNEIRO, 2011: s.p.).

Para além da disputa pela participação em tais espaços, ela sinaliza para a criação, desde fins da década de 1970, de organizações específicas de mulheres negras no âmbito nacional (CARNEIRO, 2003), questão a ser destrinchada a seguir.

Mulheres negras no Estado restrito

Autores como Cristiano Rodrigues e Marco Aurélio Prado têm se referido ao processo de fundação dessas organizações como um momento de "autonomização" do movimento de mulheres negras em relação aos demais movimentos sociais em que elas atuavam (RODRIGUES; PRADO, 2010). Esses autores apontam que, "por virem de experiências político-organizativas as mais diversas", essas mulheres "tinham, e ainda têm, grandes dificuldades em estabelecer as bases sobre as quais se assentariam a autonomia do movimento" (RODRIGUES; PRADO, 2010: 451). Além de se referirem a casos de mulheres negras que não se desvincularam do movimento negro e do movimento feminista, eles identificam a existência de alguns impasses: o problema

"do modelo ONG versus o modelo Movimento Social de base, (...) o ambíguo impacto da institucionalização do Movimento de Mulheres Negras, suas adoção pelo Estado e por organismos internacionais de regulação" (RODRIGUES; PRADO, 2010: 451)

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A adoção de muitas organizações ao modelo de ONGs -- não apenas de mulheres negras, mas do movimento negro como um todo -- a partir de fins da década de 1980 é um fenômeno digno de nota. Esse processo, bem como as relações de tais organizações com o Estado restrito -- que muitas vezes incorpora militantes em cargos do Executivo, do Legislativo, ministeriais ou em conselhos consultivos e deliberativos -- tem sido nomeado como "institucionalização" desses movimentos (PEREIRA, 2013; RIOS, 2008; RODRIGUES, 2014).

As ONGs de mulheres negras, segundo Rodrigues e Prado, são organizações da sociedade civil, estatutárias e constituídas na forma da lei, prestadoras de serviços, sem fins lucrativos" que "mantêm compromissos de solidariedade para com o Movimento de Mulheres Negras" (RODRIGUES; PRADO, 2010: 452). Esses autores fazem uma interessante observação de que há, internamente ao movimento, uma controvérsia se essas ONGs são parte do movimento ou se apenas contribuem para ele (RODRIGUES; PRADO, 2010: 452). Consideramos tais organizações como aparelhos privados vinculados a uma fração com atuação contra-hegemônica: as mulheres negras. As contradições relativas à opção pelo modelo de ONG adotado por alguns APHs de mulheres negras está sendo desenvolvida e aprofundada na pesquisa de doutorado à qual se vincula o presente trabalho.6

A dinâmica da relação entre aparelhos de hegemonia e o Estado restrito segue uma lógica que tem a ver com a manutenção do domínio hegemônico pelas classes dominantes e a necessidade de investidas contra-hegemônicas dos subalternos. Sônia Mendonça lembra Gramsci ao afirmar que, segundo ele,

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Destacam-se nesta pesquisa as ONGs Geledés (SP) e Criola (RJ). A Geledés - Instituto da Mulher Negra foi fundada em 1988 por mulheres anteriormente organizadas no Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo. Desde sua fundação, tem recebido financiamento de organismos internacionais como a Fundação Ford, a Fundação MacArthur e a International Women’s Health Coalition (ALMEIDA, 2010:77). Já a ONG Criola - Organização de Mulheres Negras foi fundada em 1992 no Rio de Janeiro. A Criola exibe em seu site uma extensa lista de colaboradores internacionais, na qual figuram instituições como Global Fund for Women, Global Exchange, Instituto Avon, Public Welfare Foundation, Banco Interamericano de Desenvolvimento/BID, Fundação Heinrich Böll e UNICEF (Conferir , acesso em 31 de agosto de 2016). A problemática da autonomia do movimento de mulheres negras frente a essa dependência de financiamento internacional é uma questão abordada na pesquisa de doutorado mais amplamente.

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"a transformação social e do Estado nas sociedades capitalistas ocidentais só pode ser obtida [...] a partir da multiplicação dos aparelhos de hegemonia da sociedade civil [...] Mas para tanto, é indispensável que o grupo ou fração de classe, organizado neste ou naquele aparelho de hegemonia, atue no sentido de inserir alguns de sues representantes – ou intelectuais – junto ao Estado restrito" (MENDONÇA, 2014:38).

Essa inserção, todavia, é sempre limitada na medida que os "sacrifícios de ordem econômico-corporativa" feitos pelos grupos dirigentes "não podem envolver o essencial" (GRAMSCI, 2000:48). Isto é,

"o Estado podia agregar em sua própria estrutura elementos oriundos das reivindicações das classes dominadas, ampliando-se também na direção de incorporação de demandas dos grupos subalternos e em peculiar democratização, na qual a incorporação ampliava a política, mas mantinha a subalternização de classes" (FONTES, 2010:139).

Nessa dinâmica, dependendo de que frações dirigentes foram hegemônicas no Estado restrito em cada período das últimas décadas, a inserção das demandas antirracistas avançou ou recuou. Por exemplo, como resultado da intensa mobilização das organizações negras no governo Fernando Henrique Cardoso, com especial destaque à Marcha Zumbi dos Palmares em 1995,

"foram criados dois espaços de formulação política – o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra GTI População Negra, em 1996, e o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação – GTDEO, em 1997. Foi instalado o Programa Nacional de Direitos Humanos (I PNDH, em 1996; II PNHD, em 2002). E, em 2001, após a Conferência de Durban,7 foram iniciadas ações em vários ministérios, destacando-se a criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação - CNCD e do Programa Nacional de Ações Afirmativas, em 2002. No entanto, essas ações não significaram a efetivação de políticas continuadas, também não foi instituída uma coordenação entre as áreas citadas e nem um órgão responsável diretamente pela implementação de políticas de igualdade racial" (RIBEIRO, 2008: 993).

7

Referência à III Conferência Mundial contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, ocorrida em Durban, ocorrida em 2001 na África do Sul, da qual o Brasil participou com fundamental atuação de intelectuais negras na preparação de material e relatoria durante a Conferência.

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Esse avanço um tanto quanto limitado das demandas do movimento negro pode ser relacionado ao que representaram para as classes subalternas os oito anos de gestão do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), caracterizado por André Guiot como o "moderno príncipe" da burguesia brasileira, isto é, o "organismo formulador, divulgador e implementador da contra-reforma intelectual e moral neoliberal" no Brasil (GUIOT, 2006). Diante disso, não surpreende que tenham havido resistências e tensões no interior do movimento negro quanto às possibilidades de negociação com o governo FHC (RIOS, 2008: 65-66).

O Partido dos Trabalhadores, em cujas fileiras muitos intelectuais do movimento negro figuraram, ao chegar ao Executivo Federal, aprofundou essa inserção, ainda que o partido tenha se submetido a um processo que Eurelino Coelho classifica como de transformismo (COELHO, 2012). Desse processo, há que se destacar a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em 21 de março de 2003. Entre 2003 e 2015, a SEPPIR teve status de ministério e função de assessoramento à Presidência da República, tendo contado com três militantes negras em sua presidência: Matilde Ribeiro entre março de 2003 e fevereiro de 2008, Luiza Bairros entre janeiro de 2011 e janeiro de 2015 e Nilma Lino Gomes entre janeiro e outubro de 2015. Esta última continuou à frente da Secretaria de Políticas para Mulheres, Igualdade racial e Direitos Humanos, ministério que fundiu três pastas anteriormente distintas (Direitos Humanos, Mulheres e Igualdade Racial) na reforma ministerial promovida pela presidenta Dilma Rousseff em 2015. A partir da criação da SEPPIR, foram criados a PNPIR Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial e o CNPIR - Conselho Nacional de Promoção de Igualdade Racial, que estabeleceu um novo marco regulatório para as ações do Governo Federal em relação às questões raciais (RIBEIRO, 2008: 994).8 A SEPPIR sofreu novo golpe em maio de 2016, quando da reforma ministerial realizada pelo então presidente interino Michel Temer (PMDB), levado à presidência efetiva pelo controverso processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Representante do que há de mais conservador em termos de projeto político da burguesia nacional, Temer extinguiu as pastas de Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos, transformando formalmente a SEPPIR em uma secretaria subordinada ao 8

Vale mencionar o aprofundamento da implementação das políticas de cotas para Alberti e Amílcar Pereira, o debate em relação às cotas raciais teria provocado “aquilo que as lideranças do movimento procuravam suscitar há décadas: uma discussão ampla sobre a questão racial no Brasil, envolvendo diferentes setores da sociedade” (ALBERTI; PEREIRA, 2006: 145).

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Ministério da Justiça, chefiada por Alexandre de Morais. Atua agora como secretária da SEPPIR a desembargadora negra Luislinda Dias de Valois Santos (PSDB-BA). Vale pontuar a carga simbólica contida em ter uma mulher negra no cargo de "secretária", enquanto o Ministro, seu superior na hierarquia institucional, é um homem branco; ainda mais se considerarmos a luta das mulheres negras no interior das organizações mistas de que participavam para superar as limitações em termos das funções que lhes eram delegadas.

Em relação ao movimento de mulheres negras especificamente, podemos observar algumas experiências em São Paulo e no Rio de Janeiro para perceber de que forma se deu a relação com o Estado restrito. O Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo (CMN-SP), fundado em 1982 por mulheres como Sueli Carneiro, Edna Roland, Thereza Santos e Vera Lúcia Saraiva, é um exemplo interessante desse tipo de processo. O Coletivo teve sua atuação ligada à criação do Conselho Estadual da Condição Feminina do estado de São Paulo (CECF-SP), criado em 1983. Esse Conselho, ainda hoje vigente, conta com a participação de representantes do Estado restrito e demais pessoas, cujas tarefas são formular e acompanhar políticas públicas referentes aos direitos das mulheres.9 Ocorre que a composição inicial do Conselho, com 32 conselheiras, não incluía representantes negras, o que gerou forte reação das intelectuais integrantes do CMN. Organizadas coletivamente, elas reivindicaram e conquistaram postos representativos ocupados por Thereza Santos (titular) e Vera Lúcia Saraiva (suplente) (ALMEIDA, 2010: 128-129; BRAZIL; SCHUMAHER, 2007: 350). Segundo Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, a atuação dessas e de outras intelectuais negras no corpo técnico do Conselho "incentivou o debate sobre a realidade das mulheres negras e contribuiu para que a luta contra a opressão de raça fosse incorporada ao conjunto de ações" (BRAZIL; SCHUMAHER, 2007: 350). A representação negra no Conselho, assegurada nesse período, incluiu posteriormente postos em instâncias diretoras e teve a primeira presidenta negra na figura de Maria Aparecida de Laia, que, em 1995, foi nomeada para duas gestões consecutivas (BRAZIL; SCHUMAHER, 2007: 350).

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Conferir site do Conselho da Condição Feminina de São Paulo, . Acesso em 31 de agosto de 2016.

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disponível

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No Rio de Janeiro, destacamos a atuação de Jurema Werneck, fundadora e atual membro da coordenação técnica da ONG Criola - Organização de Mulheres Negras, no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES). O CNS é um órgão vinculado ao Ministério da Saúde, composto por "representantes de entidades e movimentos representativos de usuários, entidades representativas de trabalhadores da área da saúde, governo e prestadores de serviços de saúde". Ele é instância máxima de deliberação do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como funções deliberar, fiscalizar e acompanhar políticas públicas de saúde.10 A partir de 2006, quando o Conselho passou a eleger seus membros e sua Presidência (cargo até então ocupado pelo ministro da Saúde), Jurema Werneck, que é médica, tornou-se uma dos 48 conselheiros eleitos para o CNS como representante do movimento negro.11

Já a atuação de Jurema Werneck no CDES é abordada por André Guiot em sua tese de doutorado sobre o órgão (GUIOT, 2015). Esse Conselho, criado em 2003, diferentemente dos outros conselhos mencionados, não elege seus membros; estes são designados pelo/a Presidente da República, que, por sua vez, preside o Conselho. Segundo sua lei de criação, são funções do CDES

"assessorar o Presidente da República na formulação de políticas e diretrizes específicas, e apreciar propostas de políticas públicas, de reformas estruturais e de desenvolvimento econômico e social que lhe sejam submetidas pelo Presidente da República, com vistas na articulação das relações de governo com representantes da sociedade".12

Guiot caracteriza a participação de Jurema Werneck no Conselho como reveladora de tensões "trazidas pelas experiências de luta dos subalternos" (GUIOT, 2015: 53), que podem ser observadas em seu pronunciamento fortemente militante quando ocupava uma vaga de suplente:

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Conferir o site do Conselho Nacional de Saúde, disponível em , acesso em 31 de agosto de 2016. 11 Conferir Carta de Apoio a Candidatura de Jurema Werneck á Presidência do Conselho Nacional de Saúde, disponível em , acesso em 31 de agosto de 2016. 12 Conferir o site do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, disponível em , acesso em 31 de agosto de 2016.

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"(...) é preciso lembrar que participamos tanto da formulação quanto do resultado do desenvolvimento brasileiro, de forma diferenciada. E como diferenciada aqui eu quero dizer hierarquizada e, desde o lugar que ocupo, inferiorizada, isso precisa ser considerado em qualquer discussão sobre desenvolvimento. (...) Nós temos participado, sim, de forma inferiorizada. Nós mulheres, nós negros, nós pobres, nós tantos temos participado de forma inferiorizada, mas temos contribuído ao longo desse tempo todo. Só estamos aqui, no século XXI, diante de toda a violência que significa a desigualdade, porque trabalhamos e trabalhamos muito, ainda que em grande parte do tempo, de forma isolada. Passamos grande parte do tempo sem sentar à mesa do debate do desenvolvimento. Agora estamos aqui, e para estar aqui custou muita luta, custou muita gente que ficou para trás. Mas estamos aqui e é preciso considerar que temos de continuar aqui e cada vez mais. Eu represento uma legião de pessoas. Represento as mulheres organizadas, represento os negros organizados, de alguma forma represento os indígenas que não estão nos Conselhos, represento as ONGs que são minoria, represento uma legião de tantos que vieram de favelas (...). Então, é preciso ampliar e reconhecer que necessitamos participar mais efetivamente, ter ressonância da luta que temos travado ao longo dos 500 anos até aqui" (WERNECK apud GUIOT, 2015: 53-54).

O posicionamento de Jurema Werneck em um órgão com forte presença do empresariado e da cúpula de uma burocracia sindical que assumiu "uma perspectiva de pactuação ou parceria com largos setores do capital" (GUIOT, 2015: 83), por representar uma investida contrahegemônica, foi rapidamente isolado e anulado. Sobre seu afastamento do CDES, Sônia Fleury, outra conselheira, comentou:

"Todas as substituições [de um conselheiro por outro] são políticas. [...] Não há critério definido para a substituição. A Jurema Werneck, do grupo Criola, foi eliminada sem que se negociasse para que deixasse de ser suplente e passasse a titular. Ela incomodava, falava das mulheres negras e pobres, de um lugar na sociedade que incomoda" (FLEURY apud GUIOT, 2015: 72).

Retomamos, nesse ponto, uma reflexão de Gramsci à qual já nos referimos, em relação aos limites da inserção dos grupos subalternos no Estado restrito. Virgínia Fontes, após observar essa limitação e seu sentido de manter a subalternização dos dominados, afirma que

"sua superação, para Gramsci, demandaria enorme esforço organizativo das classes dominadas para contrapor-se, em todos os âmbitos, às múltiplas e reiteradas modalidades de subalternização promovidas pelas cambiantes formas de hegemonia burguesa" (FONTES, 2010: 139).

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Encontrar o caminho dessa superação figura como um dos maiores desafios do movimento de mulheres negras, bem como dos grupos subalternos em geral. Bibliografia ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo (orgs.). Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007. __________. “A defesa das cotas como estratégia política do movimento negro contemporâneo”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº. 37, jan./jun. 2006, pp. 143-166. ALMEIDA, Lady Christina de. "Trilhando seu próprio caminho": trajetórias e protagonismo de intelectuais/ativistas negras, a experiência das organizações Geledés/SP e Criola/RJ. Dissertação (Mestrado). PUC-Rio, Departamento de Sociologia e Política, 2010. ARRUZZA, Cinzia. "As relações perigosas entre gênero e classe". In: __________. Feminismo e Marxismo: entre casamentos e divórcios. Lisboa: Combate, 2010. BAIRROS, Luiza. Lembrando Lélia González. São Paulo, abril de 1998. Disponível em: . Acesso em 11 de agosto de 2015. BIANCHI, Alvaro. "Estado/Sociedade civil". In: __________. O Laboratório de Gramsci: filosofia, história, política. São Paulo: Alameda, 2008. BRAZIL, Érico Vital; SCHUMAHER, Schuma. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac, 2007. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Publicado em 6 de março de 2011. Disponível em . Acesso em 07 de setembro de 2015. __________. “Mulheres em movimento”. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 17, n. 49, 2003, pp. 117-132. COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital: o transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). São Paulo/ Feira de Santana: UEFS/Xamã, 2012. FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: EPSJV/EdUFRJ, 2010. 640

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GRAMSCI, Antonio. “Breves notas sobre a Política de Maquiavel”. In: __________. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. __________. Cadernos do Cárcere. Vol.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. GUIOT, André Pereira. Um "moderno príncipe" da burguesia brasileira: o PSDB (1988-2002). Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. __________. Dominação burguesa no Brasil: Estado e sociedade civil no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) entre 2003 e 2010. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015. HANCHARD, Michael George. Orfeu e o Poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945-1988). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. LEMOS, Rosália. Feminismo negro em construção: a organização do movimento de mulheres negras no Rio de Janeiro. 1997, Rio de Janeiro. 185f. Dissertação (Mestrado) Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1997. MENDONÇA, Sônia Regina de. "O Estado Ampliado como ferramenta metodológica". Marx e o Marxismo, v.2, n.2, jan./jul. 2014, pp. 27-43. PEREIRA, Amílcar Araújo. O Mundo Negro: Relações Raciais e a Constituição do Movimento Negro Contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas / FAPERJ, 2013. RIBEIRO, Matilde. "Mulheres negras: uma trajetória de criatividade, determinação e organização". Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 3, set./dez. 2008, pp. 987-1004. RIOS, Flavia Mateus. Institucionalização do Movimento Negro no Brasil contemporâneo. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. RODRIGUES, Cristiano dos Santos; PRADO, Marco Aurélio Maximo. "Movimento de mulheres negras: trajetória política, práticas mobilizatórias e articulações com o Estado brasileiro". Psicologia & Sociedade, vol. 22, n. 3, 2010, pp. 445-456. RODRIGUES, Cristiano dos Santos. Movimentos Negros, Estado e participação institucional no Brasil e Colômbia em perspectiva comparada. Tese (Doutorado) - Programa de PósGraduação em Sociologia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

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SOIHET, Rachel. “Preconceitos nas charges de O Pasquim: mulheres e a luta pelo controle do corpo”. ArtCultura, Uberlândia, v. 9. n. 14, jan./jun. 2007, pp. 39-53.

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Solano Trindade: raça e classe na militância e na obra do poeta entre 1940 e 1960 Camila Pizzolotto Alves das Chagas 1

O presente trabalho busca compreender de que maneira os conceitos de “classe social” e “raça” se relacionam na militância e na obra do poeta Solano Trindade, entre 1940 e 1960. Entendendo que no Brasil, tais categorias são indissociáveis, partimos da metodologia do Estado ampliado formulada por Gramsci e desenvolvida por Sonia Regina de Mendonça. Investigamos de que modo Solano Trindade se associou à aparelhos privados de hegemonia como o Partido Comunista Brasileiro e sua atuação em diversas organizações do movimento negro, entre eles o Centro de Cultura Afro-Brasileiro. O objetivo deste trabalho é investigar de que maneira Solano Trindade teceu sua militância e seu discurso, associando os conceitos de raça e classe social. A opção metodológica de observar a quais organismos da sociedade civil o poeta estava ligado é uma tentativa de analisar como os intelectuais, sobretudo da classe trabalhadora, atuam na sociedade civil e como constroem esses organismos, os chamados aparelhos privados de hegemonia. Para debater classe, pretendemos partir de uma categoria de modo de produção como modos de produzir a vida em geral, aí incluídos costumes, ideologias, relações sociais como um todo. O modo de produção seria, então, o modo como as sociedades produzem e vivem, com seus costumes. Portanto, o conceito de classe derivado deste modo de produção deve levar em conta as ideologias em contexto histórico específico. Se o modo de produção é o modo como produzimos a vida, no Brasil, o conceito de raça e consequentemente o de racismo, fazem parte do nosso modo de produzir. Dessa maneira, “raça” estaria presente tanto na estrutura econômica quanto nas redes ideológicas, como podemos observar no racismo.

O poeta Solano Trindade começou sua militância em Recife, onde nasceu, em 1908. Em 1936, funda a Frente Negra Pernambucana, uma das filiais da Frente Negra Brasileira. Até pelo menos 1940 exerceu atividades de diácono na igreja presbiteriana. Logo depois, Trindade inicia

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Mestranda em História pela UFF (email: [email protected]).

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as atividades do Centro de Cultura Afro-brasileiro, onde seu objetivo principal foi a criação de um teatro social, um curso de preparação profissional, o combate ao racismo e a realização de reuniões culturais, cívicas e recreativas.A trajetória de Solano Trindade atravessa a história do movimento negro brasileiro. No ano de 1942, o autor se muda para o Rio de Janeiro, na cidade de Duque de Caxias e em 1944 publica o primeiro livro (que lhe rendeu um tempona prisão2) Poemas d’Uma Vida Simples. Em 1950, funda junto com o sociólogo Edson Carneiro e Maria Margarida, esposa do poeta, o Teatro Popular Brasileiro (ou Teatro Folclórico). Sete anos depois, fixa residência em São Paulo. Em 1958 publica seu segundo livro Seis Tempos de Poesia e, em 1961, Cantares ao Meu Povo, terceira e última publicação do poeta. Nesta parte daremos antenção especial à chegada de Solano Trindade no Rio de Janeiro, na década de 1940. Depois de sua passagem pela filial da FNB e de suas participações no I Congresso Afrobrasileiro em Recife, Trindade se aproxima cada vez mais da militância e do combate ao racismo. Entretanto, apesar da influência exercida por Abdias do Nascimento, Trindade já se diferenciava das lideranças da época. É interessante notar como as análises sociais de Solano Trindade, através da sua poesia, contribuíram para ampliar o campo de visão do movimento negro e como o poeta propôs discussões que se mostram contemporâneas. A maioria da militância negra da época enfrentava extrema dificuldade em lidar com as manifestações culturais negras, como o candomblé e a capoeira. Segundo Petrônio Domingues, nesse momento, as atenções estavam voltadas para a integração do negro à sociedade de classes, sua “elevação moral” através do estudo, afastandose progressivamente de manifestações culturais populares. Desse modo, Trindade se diferenciava das lideranças negras da década de 1940, utilizando o candomblé como forma de resistência cultural ao racismo e como afirmação de uma identidade negra. Isso fica claro em uma série de poemas que contêm expressões, histórias e ritmos das religiões afro-brasileiras. Segundo Maria do Carmo Gregório, Solano Trindade assistiu à emergência de uma nova reflexão sobre as relações raciais brasileiras, ligada à criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), liderada por Abdias Nascimento. Nesse período, sua luta e reflexão já haviam se ampliado, 2

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo Polícias Políticas do Rio de Janeiro. Prontuário nº 2127. Francisco Solano Trindade. 09 de dezembro de 1944.

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recebendo uma conotação humana universal. As suas produções poéticas enfatizam a exploração de classe e as conexões entre a classe operária e a opressão racial, através da identidade negra. Em seus espaços de militância, Solano Trindade defendeu o direito à diversidade negra como parte da cultura brasileira. Foi dentro de uma cultura afro-brasileira que ele formulou a sua mensagem revolucionária (GREGÓRIO: 2005, 52).

Ao mesmo tempo em que Trindade não conseguia e não queria se desvincular da tradição das religiões afro-brasileiras, se aproximava cada vez mais das ideias marxistas e via no fim da exploração capitalista a solução para acabar com o racismo e a opressão sobre a população negra no Brasil. Para ele, a solução no combate ao racismo não era a integração da população negra na ordem competitiva. Ainda segundo Gregório, Solano Trindade, no aspecto político, rejeitaessa alternativa e, com o Centro de Cultura Afro-brasileiro, trilhou o caminho quepostulava a igualdade coletiva pelo nivelamento social. Sua luta era internacional,atribuindo um potencial revolucionário para a América, onde seriam destruídas asdiferenças sociais. (GREGÓRIO, 2005, 59)

Frente a este cenário de disputa por hegemonia, intelectuais como Solano Trindade têm papel fundamental na luta de classes. O espaço da sociedade civil, tal qual formulado por Gramsci, e seus aparelhos privados de hegemonia são o campo de batalha da luta de classes propriamente dita. Segundo o intelectual italiano, é na esfera da superestrutura que a disputa entre hegemonias se dá, através desses organismos privados. A sociedade política (ou o Estado restrito) e a sociedade civil estão, dessa maneira, em constante diálogo e relação orgânica. Fica evidente que o Estado pensado a partir desta perspectiva integral compreende, além da força, disputas sobre o consenso do todo social que, a partir dos aparelhos privados, constroem discursos e práticas hegemônicas.Os intelectuais como Solano Trindade são responsáveis pela criação, reafirmação de um consenso. Para Gramsci, todos os homens podem ser filósofos ou intelectuais, entretanto, só alguns deles cumprem essa função social: A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”. (GRAMSCI, 2011: 20)

Dessa maneira, a luta de Solano Trindade se concentrava cada vez mais no combate à exploração e no entendimento que o negro era maioria entre os trabalhadores brasileiros. Sua aproximação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) fica clara quando consultamos os 645

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jornais ligados ao partido naquela época. A Tribuna Popular, fundado em 1945 no Rio de Janeiro, fazia parte da rede de periódicos criada pelos comunistas desde que o partido havia voltado à legalidade. Aos poucos, o nome de Solano Trindade frequentemente aparece ao lado de intelectuais marxistas. Em uma edição de maio de 1945, o jornal publica uma mensagem de solidariedade a Luis Carlos Prestes assinada por Trindade. Já em julho do mesmo ano, em uma matéria em que se exalta a criação de comitês populares por todo país, uma parte especial é dedicada ao chamado“Comitê Democrático Afro Brasileiro”, onde um ciclo de palestras foi iniciado. O Centro de Cultura Afro-Brasileiro (CCAB), fundado por Solano Trindade em Recife, tendo sua continuação no Rio de Janeiro, colaborou com com os comunistas cariocas. O poeta foi orador de diversos comícios organizados pelos comunistas, em especial na Baixada Fluminense.Ainda segundo Maria do Carmo Gregório, As intervenções sociais realizadas pelo Centro de Cultura Afro-brasileiro estavam ligadas às concepções sociais de Solano Trindade, que pretendia intervir naordem social estabelecida e promover mudanças estruturais na sociedade do período. Esse foi o caminho que o poeta escolheu trilhar para a integração do negro à sociedadebrasileira. O negro, na sua concepção, era potencialmente trabalhador e proletário. Era preciso implementar uma política que atendesse as reivindicações desse segmento socialonde estava inserida a massa negra. (GREGÓRIO, 2005: 55)

Ainda na Tribuna Popular encontramos indícios de ligações diretas de Solano Trindade com o PCB. Aproximando-se cada vez mais da militância e organização comunista, o poeta participa da criação de um comitê do partido em Duque de Caxias, onde residia com sua família. Na edição de abril de 1946, o jornal publica uma nota em que o partido homenageia seus intelectuais filiados e Solano Trindade consta como sendo um deles. Na edição de número 293, fica ainda mais explícito. Em um comício promovido pela organização, Prestes visitaria Duque de Caxias. Trindade estava incumbido de ser seu anfitrião: O programa da festa do povo de Caxias a Luis Carlos Prestes: (...) ao meio dia haverá uma grande feijoada para o povo, em homenagem a Prestes, na residência do poeta Solano Trindade. A rua Itacolomi, 9563.

Além de sua militância tradicional, em organizações formais, Solano Trindade ampliou sua atuação política por meio da criação artística. A partir deste momento utilizaremos como 3

A Tribuna Popularde 7.05.1946, página 5.

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fonte de análise suas poesias, aprofundando em seus discursos sobre situçãoda população negra no Brasil, juntando conceitos de raça e classe social. Ao se sentirem marginalizados no processo de produção literária no Brasil, os escritores negros criaram um contra-discurso, construiram novos círculos artísticos e literários. Essa “escrita negra” de Solano Trindade, como veremos a seguir, foi fruto de inúmeros debates importantes para sua definição e constituição como discurso contra-hegemônico. Segundo Kim Butler, como já citado no primeiro capítulo, enquanto o movimento negro no Sudeste tinha como principais pautas a escolarização e a integração na sociedade de classes da época, no Nordeste, principalmente na Bahia, as reivindicações se davam mais no sentido da legitimação da cultura negra brasileira como parte da militância. Segundo Maria do Carmo Gregório, o movimento negro em Recife, “(...) além de pressupor a integração do negro à sociedade brasileira, reivindicava o direito a uma identidade cultural, a partir dos valores classificada como afrobrasileira” (GREGÓRIO: 2005, 21). Segundo Maria do Carmo Gregório, A identidade marxista de Solano Trindade o fez rejeitar os projetos de mobilidade social, cujo pressuposto era que a integração do negro na sociedade brasileira dependia de políticas que fomentassem o aumento de oportunidades de ascensão social. (...) Solano Trindade, no aspecto político, rejeita essa alternativa e, com o Centro de Cultura Afro-brasileiro, trilhou o caminho que postulava a igualdade coletiva pelo nivelamento social. Sua luta era internacional, atribuindo um potencial revolucionário para a América, onde seriam destruídas as diferenças sociais (GREGÓRIO: 2008, 60).

Em seus poemas, tanto expressões como construções literárias baseadas nos pontos de “macumba” sempre estiveram presentes. Trindade abordava temas, ritmos e expressões do candomblé na poesia, valorizando a negritude e reivindicando origens africanas. Colocou no centro das atenções uma simbologia que, embora fosse velha conhecida dos descendentes de escravos, era nova dentro da poesia e dos círculos literários. A fala de Newton Menezes, que conheceu Solano Trindade nos anos de juventude militante do PCB, nos dá a dimensão de como o poeta se diferenciava de um dos principais nomes do movimento negro brasileiro, Abdias Nascimento. Menezes relembra as discussões e debates travados no Bar Vermelhinho, na rua da Imprensa no Rio de Janeiro: Então ali entre cerveja, tira gosto, água e cafezinho os debates saiam e Solano, num desses debates com Abdias, num determinado momento onde não adiantavam mais os

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argumentos, sempre divergentes, então Solano se retira meio chateado, mas não sem antes, de maneira contundente, arrebatar: Abdias você é negro senhor, só quer mudar o pólo de dominação, eu quero acabar com ela.4

Partindo desses princípios, analisaremos a seguir como o poeta Solano Trindade se insere em uma tradição contra-hegemônica e de resistência a um padrão cultural vigente com sua poesia. Chamamos atenção, sobretudo, para o papel que desempenha a reivindicação do candomblé como visão e filosofia de mundo que questiona o status quo, como Trindade afirma uma identidade negra e de luta. Este autor, junto a muitos outros, faz parte de um círculo literário alternativo à literatura brasileira canônica. Solano Trindade é autor de literatura negra, que contesta diretamente os valores da cultura dominante, produzindo o que chamamos de contra literatura. Aqui, como em Thompson, a preocupação principal é em reconstruir a experiência das pessoas comuns. Solano Trindade tem sua atenção voltada àqueles que são esquecidos, aos que, historicamente, a voz foi negada. Esse discurso fica claro em muitos de seus poemas, como “OlorumEkê”: OlorumEkê OlorumEkê OlorumEkê Eu sou poeta do Povo OlorumEkê A minha bandeira É da cor de sangue OlorumEkê OlorumEkê Da cor da Revolução OlorumEkê Meus avós foram escravos OlorumEkê OlorumEkê Eu ainda escravo sou OlorumEkê 4

O relato de Newton Menezes se encontra no documentário sobre Trindade chamado “Vento Forte do Levante”

Dirigido por Rodrigo Dutra. Rio de Janeiro, AnguTV!, 2009. (51:47 min.) son. color. Documentário, DVD.

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OlorumEkê Os meus filhos não serão OlorumEkê OlorumEkê (TRINDADE, 2008 :47)

Na língua iorubá, a palavra Olorum quer dizer algo como “deus ou senhor” enquanto ekê significa “falsidade ou pessoa falsa”; “Olorumekê” seria então “deus da mentira” ou “senhor da mentira”. Sabendo disso, o poema de Trindade ganha outro rumo. A presença do candomblé nas poesias de Solano Trindade mostra uma resistência às religiões de origem européia, impostaS pelos colonizadores brancos, assim como determina um eu-lírico dono de sua voz, protagonista de sua vida, tentando impedir uma assimilação. Alguns poetas e romancistas brasileiros denunciaram e denunciam a situação do negro no pós-abolição, tendo em vista que muitos deles se dividiam entre a escrita e a militância no movimento negro. Mostra-se importante entendermos que eu-lírico negro ou afro-brasileiro é esse que fala em primeira pessoa e que é protagonista de sua história. Por isso, nos dedicaremos a pensar o conteúdo político que atravessa as expressões “Literatura Negra” e “Literatura Afrobrasileira” no país. Alguns autores se debruçaram sobre o assunto da literatura negra, sob diversas perspectivas. Eduardo Assis Duarte chama atenção para as características da “escrita afrobrasileira” e aponta o que diferencia esta do contexto da literatura brasileira em geral. Duarte separa cinco pontos que seriam importantes nesta distinção, sendo eles: 1) a temática: segundo o autor, este ponto seria fundamental para a classificação de uma obra como sendo “literatura afrodescendente”. As temáticas são muitas tendo, entretanto, sempre próximo o discurso contestador do discurso colonial, presente até hoje nas produções artísticas. Segundo o autor, também seriam temáticas da literatura afrodescendente a miséria e a exclusão, marginalidade, crítica ao preconceito entre outros; 2) a autoria, implicaria necessariamente em fatores biográficos e fenotípicos. Paradoxalmente, entretanto, o autor afirma que “é preciso compreender a autoria não apenas como um dado exterior, mas na condição traduzida em constante discursiva integrada à materialidade da construção literária” (DUARTE, 2005, 4); 3) o ponto de vista complementaria a autoria, sendo o conjunto de valores ideológicos expressados na obra. A sutileza de criar um personagem que é escravo e também protagonista e narrador de uma história integram este ponto. 649

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Segundo Duarte, o ponto de vista “afrobrasileiro” atinge seu auge com o grupo Quilombhoje e sua série de Cadernos Negros (primeiro volume publicado em 1978); 4) a linguagem, para este autor, é fundamental no que ele chama de diferença cultural no texto literário: “a afro-brasilidade se tornará visível já a partir de uma discursividade que ressalta ritmos, entonações, opções vocabulares e uma semântica própria empenhada muitas vezes num trabalho de resignificação que contraria sentidos hegemônicos na língua”(DUARTE: 2005,8); 5) a formação de um público, marcado pela diferença cultural e pela afirmação identitária compõem o projeto literário afro-brasileiro, segundo ele, de modo que “esse impulso à ação e ao gesto político leva à criação de outros espaços mediadores entre o texto e o público” (DUARTE:2005, 8). Na medida em que explicitamos o ponto de vista do autor acima citado, pensamos ser fundamental a crítica desses pontos para o debate sobre os termos “literatura negra” ou “literatura afrobrasileira”. Para Zilá Bernd, a literatura negra brasileira seria aquela capaz de fazer emergir uma consciência negra, de modo que o enunciador assumiria uma identidade negra; o eu-lírico, dentro desta perspectiva, busca raízes e está preocupado em protestar contra o racismo. Duarte, no tópico intitulado “temática”, elege pontos que os textos da “literatura afrobrasileira” abordam. Isso se torna um problema quando pensamos ser limitador à produção artística tudo aquilo que queira delimitá-la, como se a literatura negra só pudesse abordar temas de religião, oralidade ou ligados à contextos da favela. Compreendemos a intenção de classificar para melhor analisar a produção literária. No entanto, não podemos cair na armadilha de pensar a realidade como algo separado e estanque. No segundo ponto analisado pelo autor, ou seja, a autoria é uma questão controversa. Duarte afirma que esta estaria diretamente ligada a fatores tanto biográficos quanto fenotípicos. Álvaro Hattner compartilha do argumento de que a literatura negra se define da mudança da posição do autor negro, agora protagonista, sujeito de seu próprio discurso, tornando-se um eulírico que tem a posse de suas falas. No entanto, essa passagem de personagem secundário a protagonista requer, necessariamente, a experiência histórica do ser negro5. Segundo ele, a literatura se faz negra no momento em que recebe toda a carga da experiência negra. Para Zilá Bernd, no entanto,

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O conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem à temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidência textual cuja consistência é dada pelo surgimento de um eu enunciador que quer ser negro. (BERND IN: HATTNER: 2009, 80)

Este debate se faz importante na medida em que pretendemos discutir como classificar este tipo de literatura. Florentina de Souza e Maria Nazaré definem como “literatura afrodescendente” aquela que insiste em uma visão vinculada às matrizes africanas e, simultaneamente, procura perceber as mudanças que essas heranças sofreram na diáspora. Já a chamada “literatura afro-brasileira” valorizaria o elo entre o termo “literatura” e sua relação de criação com África (mostrada tanto como berço civilizacional quanto como o espaço que nos legou um grande contingente de escravos). Não existe e nem nunca existiu uma “escrita negra” ou de uma literatura essencialmente negra no sentido literal dos termos. Para nós, não é nem a cor da pele do autor nem o assunto abordado que importam quando classificamos uma poesia, um romance ou qualquer obra literária como literatura negra. É, sobretudo, a auto-declaração do escritor como negro e sua identificação com esse meio artístico específico que se mostram importantes nos critérios de análise para classificarmos a inserção do autor na chamada “Literatura Negra” feito no Brasil. É a reivindicação de uma consciência coletiva, que disputa uma memória de lutas, de mitos e de histórias para encarnar uma certa unidade. Para Zilá Bernd, esta matéria poética visa, para além de uma afirmação de identidade, “oferecer códigos, valores e mitos necessários à passagem do sentimento de identidade a uma verdadeira consciência identitária mediante a qual se elaborará uma autorrepresentação étnica e cultural positiva” (BERND: 2011, 61). O ritmo dado pelo autor à poesia nos remete a um canto de guerra, de luta. “OlorumEkê” ou “senhor da mentira” é a quem o eu-lírico dirige à palavra e assim constrói sua narrativa. Parece disputar a liberdade tão almejada e, dirigindo a palavra ao senhor da mentira, o provoca e vence a cada verso. À medida em que o poema segue, o autor repete que seus antepassados eram escravos, assim como ele mesmo ainda o é. Parece também não aceitar um deus imposto a ele e aos seus. A disputa por uma memória que lute por liberdade é clara e o senhor da mentira parece vencer. Entretanto, o último verso, quando diz “meus filhos não serão [escravos]”, quem vence a disputa por liberdade é o eu-lírico. Ao se sentirem marginalizados no processo de produção literária no Brasil, os escritores negros criaram um contra-discurso, construíram novos círculos artísticos e literários. Solano 651

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Trindade se destaca pela militância que ultrapassa os limites da poesia, lutando pela expansão da publicação de escritores negros e incentivando uma escrita negra crítica na promoção de saraus. A militância do poeta no movimento negro foi uma luta pela criação desses espaços de resistência onde a cultura negra era valorizada. Tais objetivos são considerados como estratégias de reversão da imagem do negro, visto como “máquina de trabalho”.Os protagonistas das narrativas de Trindade são os motoristas de ônibus, plantadores, maquinistas, além de também ser o trovador das histórias dos orixás. Dono de uma narrativa bastante diferenciada dos cânones da poesia brasileira, Solano Trindade tem como lema a luta pela libertação dos homens. Segundo Zilá Bernd, Trindade faz parte de uma literatura resistente. O discurso contra-hegemônico se faz explícito em seus poemas. Para ela, A poesia negra brasileira enuncia-se como literatura de resistência, construindo-se a partir da cultura africana que sobreviveu na América em presença das culturas européia e indígena. Em suma: esta resistência exerce uma função de sacralização por meio da qual o poeta relembra aos membros da comunidade, a quem basicamente é dirigida a mensagem poética, o conjunto de mitos fundadores, lendas e ações heróicas associadas à história do negro no Novo Mundo. Da conjugação destes elementos e sua transformação em matéria poética origina-se o caráter de resistência da vertente da poesia negra brasileira que leremos a seguir. (BERND: 2011, 61)

A resistência de que fala Bernd está explicitamente colocada nos poemas de Trindade. Para ele, o fim do racismo implicaria necessariamente o fim do capitalismo, de maneira que as opressões de classe estão intimamente ligadas a um racismo que se mostra estrutural na sociedade brasileira. Para Trindade, lutar pelo fim da opressão racial era uma forma de combate na luta de classes. O poema “Negros” está mergulhado em uma narrativa melancólica em meio à tomada de posição do poeta: Negros Negros que escravizam E vendem negros na África Não são meus irmãos

Negros senhores na América A serviço do capital Não são meus irmãos

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Negros opressores Em qualquer parte do mundo Não são meus irmãos

Só os negros oprimidos Escravizados Em luta por liberdade São meus irmãos Para estes tenho um poema Grande como o Nilo (TRINDADE, 2008 :41)

A escolha pelo marxismo fez com que Trindade internacionalizasse sua luta. O poeta escolhe com cuidado quem está a seu lado e rejeita um combate ao racismo que vingue nas bases de um capitalismo cruel. A incapacidade desse sistema econômico de superar injustiças fez com que o poeta optasse por uma militância que ousasse construir uma nova ordem social e econômica onde, para ele, não haveria espaço para o racismo. É interessante notar o tom ríspido que inicia e se dá ao longo do poema com a repetição da frase “não são meus irmãos”. A frase, aliada ao ritmo do poema, so como se rompesse laços, estancasse relações. O discurso diretamente militante e quase didático de Solano Trindade a todo momento convoca para a luta os negros e negras oprimidos. O conceito de classe social, para além de suas definições econômicas, é uma categoria que está diretamente ligada ao modo de produzir a vida dos grupos sociais ao redor do mundo. No caso brasileiro, o modo de produção capitalista, tendo como antecedente séculos de escravidão, tem uma relação singular com o racismo. Desta maneira, não há como dissociar o conceito de classe social do conceito de raça no Brasil. O viés economicista limita a concepção de classe, excluindo de suas formulações a cultura e da política de cada parcela analisada. Entretanto, se por um lado não podemos nos apegar a determinações econômicas como último método de análise e muito menos supor que cultura e economia não se influenciam mutuamente, não podemos esquecer que as opressões são relações sociais específicas de um momento histórico. Neste caso, é necessário remontar que não há como entender o capitalismo descolado do conceito de raça. Assim, a atuação de Solano Trindade se mostra bastante 653

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complexa, articulando lutas contra o racismo que não negligenciassem a situação do proletariado no Brasil. Muitos críticos desse economicismo universalista e essencialista, porém, partem para uma análise a-histórica. Se não podemos constatar “pressões” ou determinações em determinado contexto, sejam elas de cunho econômico ou cultural, estaremos esquecendo do fundamento da crítica: a historicidade. KenanMalik, em resposta à Rattansi, explicita de forma bastante pedagógica o perigo desta perspectiva: De início, Rattansi aparentemente define antiessencialismo simplesmente como oposição a um entendimento a-histórico dos fenômenos sociais, hostil à ideia de formas sociais imemoriais e imutáveis. Mas ele passa dessa rejeição da explicação ahistórica para um repúdio completo dos “determinantes” sociais. Rejeita a ideia de que formas sociais podem ser explicadas mediante referências a forças ou pressões, como a “lógica de mercado” ou o “modo de produção”, que saturam e modelam a ordem social, mesmo que esses determinantes sejam concebidos como historicamente específicos (MALIK IN: WOOD, 1999: 125)

Ainda segundo Malik, Mas a menos que possamos caracterizar a especificidade fundamental – a “essência”, se quiserem – da sociedade capitalista, suas “leis de movimento” ou lógica sistêmica não podemos distingui-lo de outro tipo de sociedade. De que maneira então, devemos analisar raça nas modernas sociedades capitalistas? Se tratamos a raça como sendo apenas uma “identidade” separada de quaisquer determinantes sociais, então ela se torna não uma relação social historicamente especifica, mas um aspecto eterno da sociedade humana (...) (MALIK IN: WOOD, 199: P. 125)

Por isso, é fundamental entendermos em qual conjunção sócio-econômica, quais relações sociais específicas, como diz Malik, se apresentam no Brasil quando analisamos os conceitos de raça e classe. Além dos conflitos de classe, havia o conflito entre brancos e negros, mesmo que pertencessem ao mesmo grupo social. De maneira profunda, Trindade articula de maneira dialética os conceitos raça e classe em suas críticas sociais e em sua prática política. Trindade, diferentemente das lideranças negras da época, que viam como solução para o racismo a inclusão do negro na sociedade de classes, entendia que não há como falar em racismo senão historicizarmos de que maneira essa opressão foi construída dentro do contexto brasileiro. Além dos resquícios da escravidão, o Estado brasileiro defendeu práticas abertamente

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higienistas que, como método de controle social das populações que se proletarizavam, conseguiram conservar a posição social das populações negras. É neste contexto que o poeta e militante Solano Trindade vai forjando seu combate ao racismo, dentro de um mundo dividido por classes sociais. Não abandona em nenhum momento a afirmação de suas identidades e o esforço do resgate de tradições negras brasileiras. Desse modo, afina seu olhar com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), sem que isso comprometa sua atuação no movimento negro organizado. A atuação de Solano Trindade no movimento negro de sua época, entre 1940 e 1960, tem como consequência a construção de uma luta que se firma na concepção de raça como uma categoria sócio-histórica. A militância de Solano Trindade aponta para uma concepção de raça que situe historicamente brancos e negros no capitalismo brasileiro, resgatando a identidade e as tradições que resistiram à escravidão. Bibliografia ALBUQUERQUE, W; FRAGA FILHO, W. Uma História do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. BERND, Z. Antologia de Poesia Afro-Brasileira: 150 anos de Consciência Negra no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011. DOMINGUES, P. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos, Niterói: Revista Tempo, 2007. DOMINGUES, P.; GOMES, F. (orgs.). Experiências da Emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-abolição (1890 -1980). São Paulo: Selo Negro, 2011. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. GUIMARÃES, A. S. Como trabalhar com "raça" em sociologia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 93-107, jan./jun. 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v29n1/a08v29n1.pdf GREGÓRIO, M. do CARMO. Solano Trindade: Raça e Classe, Poesia e Teatro Na Trajetória de um Afro-Brasileiro (1930-1960). Dissertação de Mestrado, 2005. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1 07478 LANNES, L. Entre a Miscigenação e a Multiracialização: Brasileiros Negros ou Negros Brasileiros? Tese de Doutorado, 2008. MARX, K.e ENGELS, F., A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo 2007.

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AVANÇOS E LIMITES NA INCORPORAÇÃO DA LUTA PELA EMANCIPAÇÃO DA MULHER NA REVOLUÇÃO RUSSA E GOVERNO SOVIÉTICO A PARTIR DE SEUS INTELECTUAIS Danielle Jardim da Silva1

RESUMO: O presente trabalho pretende analisar avanços e limites na incorporação da luta pela emancipação das mulheres na Revolução Russa e Governo Soviético2 a partir das ideias de Alexandra Kollontai, Vladimir Lênin e Leon Trotsky. Tendo como referencial a obra de Gramsci e entendendo essas lideranças como intelectuais orgânicos a sua classe, ao partido e à militância feminina e socialista, buscamos analisar seus textos e declarações refletindo sobre as diferenças de posições e profundidade entre eles no que tange aos temas da mulher e da família. A partir da análise das obras de Kollontai, Lênin e Trotsky observamos elaborações avançadas, que colocaram as experiências revolucionárias russas em posição de vanguarda de questões do movimento feminista da época e posterior, mas também lacunas teóricas, que tiveram consequências importantes em limites das políticas implementadas pelo governo soviético no que tange à mulher e à família e nas possibilidades aproveitadas pela contra-ofensiva stalinista posteriormente para reativar uma política conservadora nessas áreas. Tendo como referência a proposição de uma Teoria Unitária entre marxismo e feminismo, que articule gênero e classe, buscamos arriscar algumas hipóteses sobre esses avanços e limites teóricos na obra dos intelectuais descritos a partir dos conceitos de produção e reprodução e suas relações. Gramsci e Lênin, Kollontai e Trotsky como intelectuais orgânicos Na obra de Gramsci, a questão dos intelectuais se liga diretamente às ideias de direção de classe e hegemonia. Gramsci parte da afirmação dos intelectuais não como setor independente das classes, mas juntamente como representantes das diferentes classes. Coloca ele:

1 Especialista em Gênero e Sexualidade (CLAM/UERJ), Mestranda em História (PPGH/UFF). Email: [email protected] 2 Focando-se no período da Revolução de 1917 até o final da década de 1920.

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Todo grupo social, nascendo sobre o terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria conjuntamente, organicamente, um ou mais estratos de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função não apenas no campo econômico, como também no social e político. (GRAMSCI apud BIANCHI, 2008)

A relação gramsciniana entre os intelectuais e os partidos, na formulação e disputa de concepções de mundo é fundamental para pensarmos os papéis assumidos por Lênin, Kollontai e Trotsky no horizonte soviético. Eles se colocaram o papel de direção da classe trabalhadora e buscaram sintetizar as demandas dessa classe em estratégias e táticas políticas via partido revolucionário. Neste trabalho, partiremos da compreensão de Lênin, Kollontai e Trotsky, três das mais importantes lideranças revolucionárias e do governo soviético (e Kollontai também à frente da organização das mulheres), como intelectuais orgânicos tais como formuladas por Gramsci. Avanços: a Revolução e o Governo Soviético na posição de vanguarda As mulheres russas do início do século XX tiveram participação ativa nos movimentos operários, o que se desdobrou em sua participação nas revoluções. Em Fevereiro de 1917 foram as tecelãs de Petrogrado que, contra a orientação de suas organizações, entraram em greve no Dia da Mulher e carregaram consigo milhares de trabalhadores, causando o estopim necessário à queda do czarismo já cambaleante (TROTSKY, 1977. p.102-103). Com um grande contingente de homens mobilizados pela guerra, eram as mulheres quem muitas vezes estavam à frente da tomada de fábricas, terras, formação de sovietes, etc. Lênin comenta que “em Petrogrado,

em

Moscou,

nas

cidades

e

nos

centros

industriais

afastados,

o

comportamento das mulheres proletárias durante a revolução foi soberbo. Sem elas, muito provavelmente não teríamos vencido”. (ZETKIN, 1920) Kollontai ressalta que No ano de 1917, o grande oceano de humanidade se levanta e se agita, e a maior parte deste oceano é feita de mulheres. Algum dia a história escreverá sobre as proezas dessas heroínas anônimas da revolução, que morreram na Guerra, foram mortas pelos Brancos e amargaram incontáveis privações nos primeiros anos seguintes a revolução. (KOLLONTAI, A. 1927 – grifos meus)

A participação das mulheres em Fevereiro e Outubro se refletiu no governo revolucionário tanto em sua composição, que teve a primeira mulher do mundo como ministra com Alexandra Kollontai à frente do Comissariado do Povo para a Previdência Social, quanto nas políticas públicas implementadas voltadas a garantir a igualdade da mulher. Em 1917 a 658

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mulher torna-se eleitora e elegível, é legalizado o divórcio e o casamento civil, o casamento religioso é extinto e as camponesas passam a ter direito sobre a terra. O Código Completo do Casamento, da Família e da Tutela (1918), abole o poder marital, impedindo o marido de impor o nome, domicílio ou nacionalidade à esposa, institui a pensão alimentícia, acaba com a diferença entre filhos legítimos e ilegítimos, protege o trabalho feminino e cria a licençamaternidade. O aborto é legalizado em 1920 e em 1926, os casamentos e “uniões de fato” são igualados. Além disso, a partir da Revolução, são organizadas creches, pré-escolas, refeitórios, orfanatos, hospitais e outros serviços destinados à redução do trabalho doméstico e iniciativas de inserção das mulheres na força produtiva assalariada. (GOLDMAN, 2014; ARRUZZA, 2010; SILVA, 2015). Lênin, em 1919, ressaltava os avanços do governo soviético nas políticas voltadas às mulheres: Nenhuma das repúblicas burguesas mais progressistas realizou a esse respeito em dezenas de anos nem mesmo a centésima parte daquilo que nós fizemos apenas no primeiro ano de nosso poder. Não deixamos literalmente pedra sobre pedra de todas as abjetas leis sobre as limitações dos direitos da mulher (LÊNIN, 1918)

O que embasava essas diversas políticas era um entrelaçamento profundo entre a luta socialista o compromisso com a emancipação das mulheres, forjado sobre um grande acúmulo teórico, político e organizativo do movimento operário, que vinha desde o socialismo utópico de Flora Tristan e Fourier, passando pela elaboração teórica de Marx, Engels e Bebel3, pela experiência do SPD alemão e da II Internacional4 e pela interação com os debates burgueses e feministas sobre a mulher. Embora as mulheres do movimento operário feminino tenham muitas vezes recusado o rótulo de feministas, elas não se alienaram a suas demandas, em muitos casos

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Muitas das formulações utilizadas pelos bolcheviques se baseiam na produção de Marx, Engels e Bebel, que guiaram a base teórica dos movimentos socialistas a partir da segunda metade do século XIX e fundaram uma aproximação entre materialismo histórico e “emancipação das mulheres”. / Para August Bebel ver A mulher e o Socialismo (1879); para Friedrich Engels ver A Origem da Família, da Propriedade privada e do Estado (1884) e A Situação da Classe Operária na Inglaterra (1895). Em Marx não encontramos uma formulação sistematizada, mas encontramos reflexões sobre a questão da mulher em obras como A Ideologia Alemã, O Capital, Teses Sobre o Suicídio e outras, das quais é possível extrair suas concepções. Antes da Revolução Russa, o SPD e a II Internacional foram os maiores laboratórios do trabalho socialista entre as mulheres. Daí surgiram os primeiros jornais dedicados às trabalhadoras, comissões de propaganda dirigidas às mulheres, resoluções referentes aos direitos das mulheres e a inclusão de mulheres na direção. A II Internacional possuía as Conferências Internacionais de Mulheres Socialistas e um Departamento Feminino, resoluções congressuais sobre o trabalho das mulheres, salários iguais e voto feminino, além da definição de um “Dia da Mulher” a ser comemorado em cada país. Para comissão de mulheres ver ARRUZZA, 2010. p. 39; para trabalho de mulheres no SPD ver BADIA, 2003.

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radicalizaram-nas, denunciando as limitações do capitalismo em garantir a verdadeira libertação das mulheres e pressionando o movimento socialista a responder de forma superior às problemáticas colocadas, impulsionando um processo tese-antítese-síntese fundamental para as formulações das concepções materialistas/socialistas sobre opressão das mulheres e para as políticas revolucionárias e de Estado sobre a mulher e a família. Entre essas formulações, alguns itens centrais eram: A família como elemento histórico e mutável: A ideia de que a família pode assumir diversos formatos de acordo com a cultura e o desenvolvimento das sociedades mobilizava a convicção de que a mesma poderia ser transformada. A relação entre a opressão das mulheres e sua dependência econômica frente ao homem na família: Nas palavras de Kollontai: “O marido dava de comer à sua esposa, e por isso ela estava submetida à sua vontade, e resignação levava a privação de direitos, à sua escravidão na família e no lar”. (KOLLONTAI, 1918) A relação da opressão da mulher com a divisão do trabalho: O capitalismo reforçava a família patriarcal e a submissão das mulheres e jogava sobre seus ombros as tarefas de reprodução da classe trabalhadora. A relação entre a mulher e a construção da revolução/socialismo/comunismo: Havia tanto uma compreensão de dependência entre a mobilização das mulheres e o sucesso da revolução quanto um comprometimento entre programa socialista e programa de luta pela emancipação da mulher. Além disso, uma compreensão de que somente com a alteração das estruturas sociais seria possível, de fato, a libertação da mulher. Diante disso, os bolcheviques formularam um programa de ação para garantir a igualdade das mulheres. Esse programa se baseava em principalmente 3 pontos: 1) Acabar com toda e qualquer barreira legal que impedia a construção da igualdade entre homens e mulheres garantindo às mesmas plenos direitos e implementando legislações avançadas sobre a família; 2) Socializar o trabalho doméstico, retirando-o do lar e da responsabilidade das mulheres a partir de diferentes serviços, transformá-lo em atividade assalariada e, dessa forma, liberar o tempo das mulheres para a participação na vida política, cultural e produtiva; 3) Incluir as mulheres no 660

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trabalho produtivo, acabando com sua dependência econômica, bem como estimulando-as a atividades políticas e culturais. Nos escritos e discursos de Lênin, Trotsky e Kollontai é possível ver repetidamente o esforço e o compromisso com essas ideias. Kollontai, no panfleto Às trabalhadoras, de 1918 ressalta que “na sociedade comunista o homem e a mulher devem ser iguais! Sem a igualdade para as mulheres, não há comunismo”. (KOLLONTAI, A. 1918) No mesmo ano, em seu discurso ao Congresso Pan-Russo de Operárias, Lênin defende que A experiência de todos os movimentos libertadores atesta que o sucesso de uma revolução depende do grau de participação das mulheres. O poder soviético faz tudo para que a mulher possa completar, com toda a independência, a sua missão proletária e socialista. (LENIN, 1925, p. 109 - grifos meus)

No texto A Grande Iniciativa, escrito no ano seguinte, Lênin fala sobre o desafio de transformar a igualdade legal em igualdade de fato, e o papel da socialização do trabalho doméstico nesse sentido: A mulher continua escrava doméstica, mau grado todas as leis liberalizadoras, porque a pequena economia doméstica a oprime, a sufoca, a embrutece, a humilha, limitandoa à cozinha e ao quarto dos filhos, obrigando-a a gastar suas forças em trabalhos terrivelmente improdutivos, mesquinhos, enervantes, deprimentes, embotadores. A verdadeira libertação da mulher, o verdadeiro comunismo, não começarão antes de começar a luta das massas (dirigida pelo proletariado no poder) contra esta pequena economia doméstica, ou mais exatamente, na hora da sua transformação maciça em grande economia socialista. (ENGELS; MARX; LÊNIN, 1979, p. 110)

Trotsky chama atenção para o fato de que, enquanto não houvesse a socialização do trabalho doméstico a mulher continuaria sem conseguir participar plenamente da política e da economia: “Enquanto a mulher continue atada ao trabalho doméstico (família, cozinha, costura): todas as possibilidades de participação na vida social e política estarão estritamente limitadas”. (BEBEL; HELLER; TROTSKY; KOLLONTAI, 1980, p. 51) O compromisso com a inclusão das mulheres na política e nas atividades produtivas também pode ser visto. Em 1917 Lênin defende que Não se pode assegurar a verdadeira liberdade, não se pode edificar a democracia – sem falar de socialismo – se não chamarmos as mulheres ao serviço cívico, na milícia, na vida política, se não a tiramos da atmosfera brutal do lar e da cozinha. (ENGELS; MARX; LÊNIN, 1979, p.59)

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Em 1920 ele fala claramente sobre a necessidade de as mulheres participarem mais ativamente da vida política e dos sovietes: Urge que as operárias tomem parte cada vez maior na gestão de empresas públicas e na administração do Estado. Administrando, as mulheres farão depressa a aprendizagem e atingirão os homens. Elegei mais operárias comunistas ou sem partido ao Soviete! Pouco importa se uma operária honesta, sensata e conscienciosa no trabalho, não pertence ao Partido: elegei-a para o Soviete de Moscou! Que haja mais operárias no Soviete de moscou! [...] O proletariado não chegará a emancipar-se completamente se não conquistar para as mulheres uma liberdade completa. (Ibidem, p. 103)

Limites da Revolução e do Governo Soviético Tais formulações apresentadas acima foram responsáveis por garantir mais direitos às mulheres na Rússia do que em qualquer lugar do mundo no início do século XX. No entanto, as formulações bolcheviques apresentam também suas limitações. São elas: A ideia da família fadada a um fim iminente Ao mesmo tempo em que percebiam que, no capitalismo, a família passava a suprir as tarefas de reprodução da classe trabalhadora, os bolcheviques viram a perda de função produtiva da família como evidência de sua desagregação a médio e curto prazo. Se a mesma já não tinha mais função produtiva (a produção passava a ser realizada em espaço espacial e temporalmente diferente do doméstico), a redução de suas tarefas de manutenção e reprodução da classe trabalhadora e de consumo mediante economia socializada, bem como a garantia da independência econômica da mulher e sua igualdade legal levariam a família a uma rápida transformação. Segundo Kollontai, A grande produção capitalista arrancou das mãos da família suas prerrogativas econômicas, esta perdeu valor enquanto célula econômica necessária e foi condenada, ao mesmo tempo, a uma lenta e imutável desagregação. (KOLLONTAI, 1982)

Naturalização dos papéis de gênero e da divisão sexual do trabalho Por um lado, os bolcheviques e o governo soviético tiveram o compromisso de estimular a participação das mulheres em diferentes áreas: o trabalho produtivo em diferentes esferas, inclusive em ramos considerados tradicionalmente masculinos, o trabalho político nos sovietes, a participação na vida em sociedade, a educação passou a ser mista, o exército era acessível a elas, etc. Elas não só eram chamadas a participar nas tarefas gerais, mas a tomar seu 662

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protagonismo nas políticas para as mulheres. Trotsky no texto Construir o socialismo significa emancipar as mulheres e proteger as mães, de 1925, ressaltava que “as pioneiras da grande luta pela libertação das mães, devem ser, logicamente, as mulheres operárias de vanguarda [...] é impossível avançar caso a mulher permaneça na retaguarda” (TROTSKY, 1925). Lênin também colocava: Criamos instituições modelos, restaurantes, creches, para libertar a mulher dos trabalhos caseiros. E é precisamente a mulher que tratará da organização destas instituições.[...] Dizemos que a emancipação das operárias deve ser a obra dos próprios operários, e também a obra das próprias operárias. (ENGELS; MARX; LÊNIN, 1979, p. 115-116)

Por outro lado, havia uma naturalização de que determinadas funções e trabalhos fossem feitos pelas mulheres. Contraditoriamente, por exemplo, os serviços de socialização do trabalho doméstico, que buscavam libertar as mulheres, empregavam mulheres para realizá-los. Apesar de questionarem o fato de o capitalismo jogar sobre as mulheres todo o trabalho de reprodução e da defenderem que este deveria ser socializado, a própria divisão sexual do trabalho, tanto na família quanto no trabalho assalariado, não foi profundamente questionada pelos soviéticos. Assim, os trabalhos de limpar, cuidar, educar e cozinhar continuavam sendo executados pelas mulheres, só que, agora, de forma coletiva e assalariada. Os bolcheviques também evidenciaram uma concepção bastante retrógrada no que chamaríamos hoje de “direitos sexuais e reprodutivos”. A ideia de “dever social da maternidade” algumas vezes era utilizada para reivindicar a responsabilização da sociedade pela reprodução e a garantia de serviços de saúde e socialização do trabalho e cuidado para as mulheres mães, mas por outras (a maioria) reforçava a ideia do dever da mulher para com a maternidade. Kollontai, muitas vezes oscila entre uma e outra perspectiva. Na conferência Revolução na vida cotidiana, proferida na Universidade de Sverdlovsky em 1921, ela diz: A república dos trabalhadores considera a mulher, antes de mais nada, como uma força de trabalho, como uma unidade de trabalho viva; considera a função maternal como uma tarefa muito importante, mas complementar, e, além disso, como tarefa não apenas particular, familiar, mas também social (KOLLONTAI, 1982, p. 92-93 – grifos meus)

No entanto, ao mesmo tempo em que vê a maternidade como atividade complementar a mulher, Kollontai apresenta uma visão relativamente impositiva da maternidade à mulher. No mesmo texto ela coloca:

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O poder dos Sovietes vem em auxilio às mulheres trabalhadoras a partir do momento em que estão grávidas. [...] Mas é obvio que a tarefa principal consiste em liberar a mulher que trabalha do labor improdutivo representado pela atenção física que a criança exige. A maternidade não consiste em lavar criança, trocá-la ou estar junto ao berço. O dever social de maternidade consiste antes de tudo em por no mundo crianças viáveis e sadias. Para isso, a sociedade dos trabalhadores deve dar à gestante condições favoráveis e, por seu lado, a mulher deve observar regras de higiene prescritas, lembrando que, durante nove meses deixa de pertencer-se, ficando a serviço da coletividade, “produzindo”, com sua carne e seu sangue, um novo trabalhador, um novo membro da república do trabalho. O segundo dever da mulher, do ponto de vista da tarefa social da maternidade, é amamentar seu filho. Só a mulher, membro da coletividade trabalhadora, que amamentou, tem o direito de dizer que cumpriu seu dever social. Quanto aos outros cuidados que a nova geração exige, a coletividade pode assumi-los. Evidentemente o instinto materno é forte, e não devemos deixar que se extinga. Mas por que este instinto deveria limitar-se ao amor e aos cuidados transmitidos apenas ao próprio filho? Por que não dar [...] amor e ternas caricias para os filhos dos outros?”(Ibidem, 94-95 – grifos meus)

O aborto é visto como um recurso das mulheres diante de uma situação econômica difícil, no entanto, o direito de a mulher decidir, por motivos diversos, querer ou não ser mãe, não aparece, chegando a ser considerada uma atitude da classe burguesa: O aborto [...] resulta da situação precária das mulheres (não falamos da classe burguesa, onde o aborto tem outras causas: repugnância em dividir a herança, repugnância de mulheres ávidas de uma existência sem preocupação de suportar os sofrimentos da maternidade, repugnância em estragar seu corpo, de ficar alguns meses afastada da ‘vida social’, etc) (Ibidem, p. 99)

Kollontai considerava o aborto como algo temporário, fadado ao desaparecimento assim que houvesse serviços de proteção à infância e/ou que as mulheres entendessem o dever social da maternidade. Segundo ela o aborto só desaparecerá quando a república dispuser de uma ampla rede de estabelecimentos de proteção à maternidade e de educação social e, de outro lado, quando as mulheres estiverem bem conscientes de que pôr uma criança sadia no mundo é para elas um dever social. [...] A tarefa da república dos sovietes é aprofundar nas mulheres, através da proteção à maternidade, o instinto maternal sadio, tornar a maternidade compatível com o trabalho para a coletividade e, assim, eliminar a necessidade do aborto. (Ibidem, p.100 - grifos meus)

Trotsky, por outro lado, aparece como mais progressistas do que Kollontai. Ao fazer um balanço sobre os retrocessos stalinistas ressalta que “o poder revolucionário concedeu à mulher o direito ao aborto, um dos seus direitos cívicos, políticos e culturais essenciais, enquanto durarem a miséria e a opressão familiar” e defende que “o socialismo deveria eliminar as causas 664

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que levam a mulher ao aborto, não intervir na vida intima da mulher para lhe impor as ‘alegrias da maternidade’” (TROTSKY, 2008, p. 167 – grifos meus) Kollontai, entretanto, não era uma conservadora. Ela foi, entre os/as revolucionários/as, quem mais se debruçou sobre a proposição de novas relações pessoais e uma nova sexualidade, na defesa do amor-livre, entendido como as relações sem a necessidade do casamento e na construção de relações mais iguais, não possessivas e não autoritárias entre amantes (KOLLONTAI, 1911; KOLLONTAI, 2007). Em 1911 Kollontai defendia: A ideia de propriedade se estende muito além do matrimônio legal. É um fator inevitável que penetra até na união amorosa mais livre. Os amantes de nossa época, apesar de seu respeito “teórico” pela liberdade, só se satisfazem com a consciência da fidelidade psicológica da pessoa amada. Com o fim de afugentar de nós o fantasma ameaçador da solidão, penetramos de uma maneira violenta na alma do ser “amado” com uma crueldade e uma falta de delicadeza que seria incompreensível à humanidade futura. Pretende que se pertença cada partícula da alma pessoa amada [...] considera qualquer sentimento experimentado fora dos limites da relação livre como desperdício, como um roubo imperdoável de tesouros que lhe pertenciam. (KOLLONTAI, 1911 – tradução minha)

Kollontai também tomou para si a defesa da elaboração de uma nova psicologia e moral proletárias. Ela dizia: O trabalho a realizar consiste em fazer que surja esta nova moral, temos que extrair do caos das atuais normas sexuais [...] “princípios de uma moralidade que corresponda ao espírito da classe revolucionaria ascendente”. (Idem)

O surgimento de uma nova vida e família também era defendida por Trotsky, que ressaltava que tal tarefa não poderia se dar isolada das tarefas gerais da construção do socialismo (BEBEL; HELLER; TROTSKY; KOLLONTAI, 1980, p. 55-56). Não obstante, a maioria dos revolucionários da época olhavam com desconfiança as discussões sobre sexualidade e nova moral e se opuseram à muitas das ideias de Kollontai. Lênin, por exemplo, apresenta uma visão bastante conservadora sobre a sexualidade e o amor livre, recriminando as companheiras por perder muito tempo com essas questões (ZETKIN, 1920), e chegando mesmo a recomendar à Inessa Armand “que suprima absolutamente a ‘reivindicação (feminina) do amor livre’. Praticamente é uma reivindicação burguesa e não proletária” (LÊNIN, 1980, p. 35). Alguns apontamentos teóricos para reflexão e balanço

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A década de 1970 foi marcada por uma grande riqueza de debates acadêmicos sobre feminismo e marxismo, capitalismo e patriarcado, produção e reprodução, trabalho doméstico, e por um esforço de formulação teórica buscando convergir materialismo histórico e análises sobre a opressão da mulher. O debate rico, entretanto, conheceu um “refluxo”, marcado pela migração dos debates acadêmicos sobre a mulher para os estudos culturais e pela difusão de outros referenciais teóricos geralmente pouco dispostos a dialogar com as categorias marxistas. Desde a de 1990, entretanto, tem ganhado fôlego novamente, estudos que aproximem gênero e classe, sobretudo a partir do desenvolvimento de uma área de estudos sobre o trabalho feminino. Recentemente, os estudos de gênero/sobre a mulher apresentam um novo impulso, junto ao que vem sendo chamado de terceira onda do feminismo. Nesse processo, tem sido possível identificar o crescimento de diversas concepções teóricas que vem buscando se renovar tanto a partir do aprofundamento de seus debates internos quanto a partir das questões geradas pelos embates “externos” (entre diferentes concepções). Esse tem sido o caso da reaproximação entre o marxismo e o debate de gênero/sobre as mulheres. Entre as/os pesquisadoras/es que vêm buscando essa reaproximação está Cinzia Arruza, que tem resgatado um debate teórico sobre as perspectivas das categorias marxistas para pensar a questão de gênero. Em seu artigo Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo, a autora defende a centralidade do conceito de reprodução social: O termo reprodução social, na tradição marxista, normalmente indica o processo de reprodução de uma sociedade em sua totalidade, como já mencionado. Na tradição marxista feminista, entretanto, reprodução social significa algo mais preciso: a manutenção e reprodução da vida, em nível diário e geracional. Neste contexto, reprodução social designa a forma na qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para a produção da população é socialmente organizado. (ARRUZZA, 2015, p.55)

Lise Vogel em Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory (VOGEL, 2013) reivindica uma teoria unitária entre feminismo e marxismo. A autora desenvolve a ideia de o capitalismo submete a família e a opressão da mulher às suas necessidades de produção e acumulação, apoderando-se dessas estruturas para seu funcionamento e passando a regê-las sob suas leis. Assim, polemizando com as feministas que defendem um sistema dual, Lise Vogel defende que no capitalismo não é possível falar em um “sistema patriarcal” autônomo, que funcionaria segundo suas próprias leis. 666

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Nesse trabalho, Vogel parte da análise da mercadoria força de trabalho no capitalismo, a única mercadoria capaz de produzir mais-valor e que, no entanto, não é produzida pela via do mercado, mas das famílias. Ela observa que Marx ao se debruçar sobre a jornada de trabalho divide-a em trabalho necessário e trabalho excedente, definido o trabalho necessário como a parte empregada para a reprodução do trabalhador. No entanto, para ela, esse é apenas um dos componentes do trabalho necessário, sua parte extraída do espaço produtivo e destinado à compra para elementos de subsistência no mercado, havendo também um componente “doméstico”, realizado pelas mulheres, responsável pela preparação dos alimentos, pelo cuidado da casa e das roupas e pela geração e cuidado das crianças, doentes e idosos. Dependendo do momento histórico do capitalismo, do local, da classe, etc, a proporção entre o “componente doméstico” e o “componente produtivo” do trabalho necessário se alteraria. A argumentação de Vogel se faz sobre o fato de que o capitalismo aprofunda a separação entre produção e reprodução. Assim ressaltamos que há uma especialização desses diferentes espaços, em que um passa a ser o lócus da produção de valor, e outro da produção da mercadoria força de trabalho. Vogel, entretanto, reforça a ideia de que a divisão sexual do trabalho é apenas a manifestação empírica da forma como o capitalismo organiza a reprodução social, expulsando o espaço produtivo as responsabilidades com a mesma e parte considerável de seus custos. Gostaríamos de proceder com um ajuste à proposição de Vogel para fazer alguns apontamentos sobre a questão soviética: sua tese é valida não apenas à produção capitalista, mas à produção em moldes capitalistas. Quero aqui arriscar a tese de que, ao não romper com a organização do trabalho em moldes capitalistas, inclusive dando à luz a uma variedade própria de taylorismo, o stakhanovismo, e ao manter a produção como espaço diferente e apartado das tarefas de reprodução, só era possível aos soviéticos garantir as tarefas de manutenção e reprodução da força de trabalho ou a partir dos serviços de socialização do trabalho (o que foi tentado com a Revolução e o governo soviético5) ou a partir do recurso ao trabalho doméstico gratuito efetuado pelas mulheres no lar (o que seria resgatado no período stalinista).

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Óbvio que a oferta dos serviços nunca foi universal. Assim, boa parte das famílias e mulheres não tinham acesso a uma parte consideravam dos serviços, sobretudo nas áreas rurais.

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No entanto, é preciso perceber que mesmo em um cenário de garantia de serviços de socialização do trabalho doméstico a transformação das relações de gênero seria incompleta se não se alterasse também a forma do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo. Quero aqui testar a ideia de que a divisão entre produção e reprodução no capitalismo não gera, como foi defendido por uma interpretação vulgar de marxismo, uma independência do espaço da produção sobre o da reprodução, mas justamente o contrário, uma dependência entre as duas esferas. Para isso, vale resgatar Engels, ao colocar que: Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a história é a produção e a reprodução da vida real. [...] Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fator econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela [...] também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. (ENGELS, 1890)

Além disso, vale também lembrar que não é possível isolar a economia das outras esferas como política e cultura. Cinzzia Arruza ressalta que devemos ter em mente que a esfera da reprodução social é também determinante na formação da subjetividade e, portanto, das relações de poder. Se levarmos em conta as relações que existem em cada sociedade capitalista entre reprodução social, a produção da sociedade como um todo, e as relações de produção, podemos dizer que estas relações de dominação e poder não são estruturas ou níveis separados: eles não se interseccionam de maneira externa e não mantém uma relação meramente contingente com as relações de produção. As relações múltiplas de poder de dominação, portanto, aparecem como expressões concretas de uma unidade contraditória e articulada que é a sociedade capitalista. (ARRUZZA, 2015, p.56)

Os bolcheviques deixaram o desmonte da opressão da mulher incompleto tanto por elementos “econômicos” quanto “culturais/ideológicos” que se reforçaram mutuamente, sobretudo anos mais tarde, com o stalinismo. Além da questão do trabalho, a não-crítica radical às assimetrias de gênero pelos bolcheviques e a destruição parcial dessas relações de poder tornou mais fácil que no stalinismo a família patriarcal e a opressão das mulheres fossem reativados como forma de garantir a rápida industrialização, o crescimento e disciplinamento da força de trabalho e o redirecionamento dos investimentos dos serviços de socialização do trabalho doméstico para a indústria, além de estimular a submissão política através do reforço da família patriarcal marcada pela autoridade do homem sobre os demais membros. Esses anos seriam marcados pelo reforço da figura da mulher como mãe, pela quase supressão dos serviços 668

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socializados, por diversos retrocessos legais e pelo fim dos espaços de autoorganização das mulheres. Para fazer justiça, entretanto, é necessário ressaltar que existia a consciência de que as políticas que tinham sido colocadas em prática eram apenas um primeiro passo e que seriam necessários muitos anos para que a transformação da família se completasse. Lênin, em Tarefas do movimento operário feminino na república soviética, coloca: desentulhamos o terreno para a edificação do socialismo, mas esta só será possível quando, após a igualdade completa da mulher, proporcionarmos à mulher um novo trabalho, comum ao trabalho de todos, libertando-a de seu antigo labor, mesquinho, brutal e improfícuo. Para esta etapa, serão necessários muitos anos. (ENGELS; MARX; LÊNIN, 1979, p.115 – grifos meus)

Trotsky, demonstrando noção da dificuldade em transformar a família, dizia: Essa primeira etapa destrutiva está longe de haver superado o que diz respeito à vida familiar. O processo de desintegração está em pleno desenvolvimento. [...] A vida doméstica é mais conservadora do que a econômica. Em política e em economia, a classe operaria atua como um todo, empurrando à frente a sua vanguarda, o partido comunista, para realizar através dele os objetivos históricos do proletariado. Porém, na vida doméstica, a classe operária está dividida em pequenos núcleos: as famílias. Mudança de regime político, as transformações de ordem econômica [...] certamente influíram sobre condições familiares, mas só de forma indireta e exterior, sem atingir tradições domésticas herdadas do passado. (BEBEL; HELLER; TROTSKY;

KOLLONTAI, 1980, p. 51 – grifos meus) Eles também compreendiam a relação de imbricação entre economia, cultura e ideologia. Trotsky comenta que Mudar a raiz da situação da mulher não será possível até que se modifiquem todas as condições da vida social, familiar e doméstica. A profundidade dos problemas da mulher está dada pelo fato de que ela é em essência, o elemento vivente no qual se entrecruzam todos os fios decisivos do trabalho econômico e cultural. (Ibidem, p. 7576)

Buscamos com a experiência russa a defesa da integração e da não-separabilidade entre “estrutura e superestrutura”, bem como alerta sobre os desafios e as dificuldades que esta perspectiva tem para a análise da sociedade como a transformação da mesma. No caso russo, nos faz pensar sobre a necessidade e dificuldade de articular os diferentes tempos que as transformações econômicas, políticas e culturais exigem. Os bolcheviques subestimaram os elementos sócio-culturais que reforçam as hierarquias de gênero ou não tiveram tempo e

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condições para melhores resultados? Tinham consciência de seus limites ou eram vitimas de seu tempo histórico? Bibliografia: ARRUZZA, C. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. Outubro, nº 23, p. 33-58, 2015. Disponível em: http://bit.ly/1IV8ss1. Visitado em: 20/09/2016. ARRUZZA, C. Feminismo e Socialismo: entre casamentos e divórcios. Lisboa: Edições Combate, 2010. BADIA, G. Clara Zetkin: Vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2003. BEBEL, A; HELLER, A; TROTSKY, L; KOLLONTAI, A. Da velha à nova família. São Paulo: Proposta Editorial, 1980. BIANCHI. A. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008. ENGELS, F. Carta para Joseph Bloch. 1890. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1890/09/22.htm . Visitado em: Visitado em: 20/09/2016. ENGELS, F; MARX, K; LÊNIN, V.I. Sobre a mulher. São Paulo: Global, 1979.p. 102-103. GOLDMAN W. Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social soviéticas, 19171936. São Paulo: Boitempo, 2014. KOLLONTAI, A. A Nova Mulher e a Moral Sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007. KOLLONTAI, A. Às Mulheres Trabalhadoras. 1918. http://www.marxistsfr.org/portugues/kollontai/1918/mes/mulheres.htm. 20/09/2016.

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LENIN, V.I. A contribuição da mulher na construção do socialismo. 1918. Disponível em: . Visitado em: 20/09/2016. SILVA, D.J. Encontros e desencontros entre marxismo e feminismo: Uma análise da incorporação da luta pela emancipação das mulheres entre os revolucionários russos a partir de Lênin, Kollontai e Trotsky. IN: História e Luta de Classes. Edição nº 20, Setembro de 2015. TROTSKY, L. A Revolução Traída. São Paulo: Centauro Editora, 2008. TROTSKY. L. História da Revolução Russa. 2. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. v1. VOGEL, L. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary Theory. Chicago: Haymarket Books, 2013. ZETKIN, C. Lênin e o Movimento Feminino, 1920. Disponível http://www.marxists.org/portugues/zetkin/1920/mes/lenin.htm. Visitado em 20/09/2016.

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REALISMO SOCIALISTA: UMA ANÁLISE DO LUGAR DA MULHER EM CARTAZES SOVIÉTICOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Rebecca de Oliveira Freitas1 O presente trabalho busca compreender a forma como os posicionamentos políticos da União Soviética se expressaram na arte. Mais especificamente a partir da análise de material de propaganda produzido durante a Segunda Guerra Mundial procura-se identificar elementos que se relacionem à sua visão de história e estratégia revolucionária, destacando a forma como a mulher foi vista dentro desses contextos. Partimos de uma perspectiva materialista da cultura, conforme elaborada por Raymond Williams, segundo o qual as relações de determinação entre infra e super-estrutura devem ser compreendidas como algo que estabelece limites e exerce pressões sobre o âmbito cultural, e não como a fixação de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Se isso apontaria para uma ênfase sobre a “totalidade social”, Williams advoga que essa forma de analisar a cultura só pode ser feita de forma correta a partir da combinação com o conceito gramisciano de hegemonia. O entendimento de que a dominação de uma classe se dá não somente a partir de sua imposição coercitiva, mas também a partir de uma preponderância cultural ideológica, portanto, também está presente no trabalho. Com relação à arte soviética do período, podemos destacar a presença crescente do estilo denominado Realismo Socialista, também conhecido como jdanovismo. Longe de se restringir somente à um estilo estético, é possível a partir de suas características analisar uma visão de mundo soviética da época. Em especial, o material dá abertura para a localização da mulher dentro dessa narrativa, estabelecendo-se relações com o papel destinado às mulheres dentro do Regime Stalinista e as relações estabelecidas entre gênero e classe nesse contexto.

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Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal do Paraná, Licenciada em Música pela Universidade Estadual do Paraná, Mestranda em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

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A Revolução Russa de 1917 foi um marco na história do século XX. Fonte de esperança quanto a um futuro de igualdade e libertação, seu desenvolvimento posterior nos demanda diversos questionamentos. Como explicar a ditadura stalinista, uma das mais sangrentas do século XX? David L. Hoffmann (HOFFMANN, 2003) define stalinismo como Stalinism can be defined as a set of tenets, policies, and practices instituted by the Soviet government during the years in which Stalin was in power, 1928–53. It was characterized by extreme coercion employed for the purpose of economic and social transformation. Among the particular features of Stalinism were the abolition of private property and free trade; the collectivization of agriculture; a planned, state-run economy and rapid industrialization; the wholesale liquidation of so-called exploiting classes, involving massive deportations and incarcerations; large-scale political terror against alleged enemies, including those within the Communist Party itself; a cult of personality deifying Stalin; and Stalin’s virtually unlimited dictatorship over the country. (HOFFMANN, 2003, p.2)

A partir dessa definição geral, o autor traça um panorama sobre a produção historiográfica sobre a temática, revelando um campo de estudo bastante rico e cheio de interpretações diversas. Hoffmann aponta uma primeira tendência explicativa, a qual coloca o stalinismo como um desdobramento lógico da revolução de outubro e das ideias socialistas. Aqui a revolução bolchevique é reduzida a um golpe de estado sem apoio popular. São citados autores como Merle Fainsod (FAINSOD, 1953) e Carl J. Friedrich and Zbigniew K. Brzezinski (BRZEZINSKI, 1956), produzindo em um contexto altamente tensionado pela Guerra Fria. Na década de 70 e 80, desenvolveu-se uma historiografia revisionista, a qual tendeu a não mais ver socialismo e stalinismo como sinônimos. Hoffmann cita como exemplos desse momento historiográfico Marc Ferro (FERRO, 1980) e Ronald Suny (SUNY, 1983), dente outros. Essa historiografia, ao enfatizar o papel de trabalhadores e soldados na revolução de outubro em apoio à ação bolchevique, trouxe novas explicações e estudos sobre o período stalinista. Algumas interpretações enfatizam o papel da traição de Stálin, outras seu controle sobre a máquina partidária. Aumentou a produção que procura raízes sociais para o fenômeno, tratando a sociedade soviética como mais do que um objeto passivo controlado por um Estado onipotente. Alguns trabalhos procuram no campesinato russo a explicação para o enraizamento de um regime autoritário e patriarcal, procurando raízes sociais para o desenvolvimento do 673

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fenômeno. Ainda assim, é constante na historiografia a negação de qualquer revolução desde baixo durante o stalinismo e o destaque para o papel exercido pelo Estado, havendo inclusive trabalhos que se debruçam sobre a resistência camponesa. Os trabalhos caracterizados por Hoffmann como pós-revisionistas trazem interpretações comparativas, trazendo destaque para as temáticas do bem-estar e da violência e sua relação com o Estado moderno. Também há trabalhos que se debruçam sobre as consequências do stalinismo, em especial sua recepção pela população, seja com destaque para as formas de resistência, seja pela internalização dos valores do regime. De forma geral, fica clara a complexidade do fenômeno e a impossibilidade de reduzilo a uma ditadura que sufoca qualquer forma de resistência ou se impõe somente de forma coercitiva, ainda que a repressão jogue um papel fundamental em sua estruturação. Ainda assim, os estudos sistematizados por Hoffmann destacam o potencial do estudo das diversas formas de domínio sobre a sociedade soviética, bem como sobre as formas de resistência nelas presentes. É insuficiente uma explicação meramente política ou econômica desse processo. Dentro da tendência a trazer um enfoque social para a interpretação do stalinismo, ganha destaque o estudo da esfera da cultura como também um espaço importante de ação e explicação do regime. Revisitando a relação base e superestrutura Partimos de um entendimento em que é considerado relevante o estudo do âmbito cultural para a compreensão da totalidade social a partir de uma perspectiva marxista. Dessa forma, buscamos fugir de concepções que considerem a cultura como mero reflexo unilateralmente determinado pelas condições materiais que, aqui, seriam reduzidas à estrutura econômica. Para justificar tal compreensão da análise social, autores como Williams e Gramsci trazem importantes contribuições. Williams, em seu artigo “Base e Superestrutura na teoria da cultura marxista” (WILLIAMS, 2005), reivindica uma revisão radical do conteúdo dado aos conceitos de base e superestrutura. Segundo o autor, a ênfase dada pelas análises posteriores à metáfora de base e superestrutura em Marx acaba tirando de foco de outras formulações de Marx. Para Williams, a elaboração de Marx, quando afirma que “o ser social determina a consciência” já de início abre 674

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espaço para interpretações bastante mais generosas das elaborações do autor sobre o tema. Sem rejeitar completamente a nomenclatura, Williams defende que façamos uma crítica e qualificação de cada um desses conceitos. Iniciando com o conceito de superestrutura, o autor afirma ter sido esse, dentre os conceitos que explorará, que recebeu uma maior revisão na literatura. Dentre os avanços alcançados nesse sentido, o autor destaca o conceito de mediação o qual contemplaria uma noção da cultura não enquanto mero reflexo de uma base que lhe é externa, mas de uma relação ativa entre eles. O autor destaca, no entanto, que é o conceito de base que devemos reformular de forma mais pormenorizada, por ter ele sido alvo de menos revisões. Segundo o autor, o maior problema do marxismo vulgar nesse âmbito foi a redução da base à, em primeiro lugar, um objeto estático e, em segundo lugar, uma visão restrita das forças produtivas. À base coisificada, ele opõe a sua construção processual dentro da história, a base só o é em movimento. À visão restrita de forças produtivas, a qual praticamente reduz o seu conteúdo à produção capitalista contemporânea, o autor opõe uma compreensão da produção e reprodução da vida real. Uma tal visão da base, que se movimenta e se amplia, caminha bastante no sentido da flexibilização de uma fronteira estática entre base e supestrutura, aproximando-se bastante do conceito de totalidade, emprestado de Lukács por diversos historiadores contemporâneos. No entanto, o autor atenta para o necessário cuidado que se deve ter na utilização dessa categoria pois a mesma pode anuviar o reconhecimento de intenções e determinações de classe em seu interior. A eliminação completa das determinações é cair em um extremo pós-moderno onde a realidade torna-se ininteligível enquanto um todo - mesmo que a palavra totalidade figure em uma interpretação desse tipo. Isso não quer dizer que o autor defenda uma determinação de forma unilateral ou veja a cultura enquanto mero reflexo, mas sim a compreensão do conceito de determinação enquanto a fixação de limites e o exercício de pressões dentro da estrutura social. Para incluir no conceito de totalidade esse concepção de determinação, o autor considera essencial o seu cruzamento com o conceito gramsciniano de hegemonia. Segundo Gramsci, o conceito de hegemonia pressupõe que “a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’” (GRAMSCI, ). O autor defende que a dominação de uma classe se dá não somente a partir de 675

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sua imposição coercitiva, mas também a partir de uma preponderência cultural ideológica (COUTINHO, 1981). Esta seria alcançada através de aparelhos que compõe a sociedade civil, como a mídia, a educação e os partidos políticos, por exemplo, constituindo, assim um Estado ampliado, o qual garantiria a unidade de um Bloco Histórico em torno desse grupo social dominante em busca do estabelecimento de um consenso social. Esse entendimento é bastante relevante no debate acerca da cultura, pois destaca o papel da dita superestrutura enquanto um elemento essencial na manutenção da hegemonia de uma classe sobre outra, visto que essa se dá, também, através da constituição de consensos - até o limite da manutenção dos privilégios de classe. O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública — jornais e associações —, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a força, situa-se a corrupção-fraude (que é característica de certas situações de difícil exercício da função hegemônica, apresentando o emprego da força excessivos perigos), isto é, o enfraquecimento e a paralisação do antagonista ou dos antagonistas através da absorção de seus dirigentes, seja veladamente, seja abertamente (em casos de perigo iminente), com o objetivo de lançar a confusão e a desordem nas fileiras adversárias. (GRAMSCI, 2007, p.95)

Dessa forma, em primeiro lugar, a cultura não é somente reflexo do processo de dominação, mas o constitui. O conceito de intelectuais do autor também complementa essa compreensão, posto que o autor afirma ser impossível definir a intelectualidade com referência pura às atividades intelectuais, sendo necessário fazê-lo a partir do sistema de relações no qual essas atividade se encontram no conjunto geral das relações sociais - ou seja, não há autonomia do esfera intelectual da totalidade social. Destaca-se, assim, o papel dos intelectuais na construção da hegemonia e, consequentemente, na própria formação da classe, a qual não é determinada de forma apriorística por uma localização econômica, mas depende dos próprios mecanismo de construção de hegemonia para sua própria afirmação. Assim, é possível incluir a propaganda soviética como parte dessa disputa por hegemonia dentro da sociedade da época, a qual cumpre um papel importante no processo de dominação

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social e também construção de um projeto nacional. Os artistas, e no objeto deste artigo, os produtores dos posteres se encontram comprometidos e envolvidos na construção desse projeto. O Stalinismo e o Realismo Socialista O debate sobre a arte, sua relação com a política e seu papel na revolução atravessou a revolução soviética desde seu início. A década de 20 viu florescer o debate sobre a literatura de partido, onde entrava em questão o nível de autonomia de que deveriam usufruir os artistas, mais especificamente no que se relacionava à literatura produzida. Destacou-se a polêmica entre Lênin e Briusov, onde este primeiro defendia uma maior submissão dos textos produzidos à linha política do partido, se fosse desejo desses artistas produzí-los em seu interior. Ainda que já houvesse discussões presentes, pode-se dizer que uma concepção mais acabada daquilo que seria denominada uma estética marxista-leninista se dá somente na década de 30. É nesse período em que é feita uma primeira sistematização antológica dos escritos de Marx e de Engels sobre arte e cultura e, posteriormente, também de Lênin. Essa estética marxista-leninista se construía em oposição ao movimento desenvolvido ao longo da década anterior, do qual um dos expoentes foi Bognadov, chamado proletkult. Esse movimento defendia a necessidade de constituição de uma nova cultura propriamente proletária a qual, rompendo completamente com a produção burguesa, pudesse contribuir para a formação do novo homem (STRADA, 1987). Em oposição à proletkult, vários autores, ainda na década de 20, destacaram argumentos que não podem ser dissociados de sua visão de história, socialismo e revolução. Podemos destacar aqui Lênin e Trotski, cujos argumentos se assemelhavam. Em primeiro lugar, Lênin destaca mais uma vez a necessidade da figura articuladora do partido para a construção cultural. Em oposição a isso, o autor via nas defesas da proletkult uma defesa de uma autonomia da revolução no campo da cultura em relação à revolução como um todo. Em segundo lugar, defendia a impossibilidade de uma ruptura completa com a arte burguesa produzida até então, a qual deveria servir como material a ser trabalhado pela arte revolucionária. Trotsky dá voz a um argumento que situa a prioridade do momento sobre a luta política revolucionária. Frente a essa tarefa, Trotsky afirma não haver tempo para os sujeitos 677

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revolucionários, o proletariado, se dedicarem à produção de uma cultura inteiramente nova e proletária. Assim que a revolução se estabilizasse, contudo, a tarefa, se possível materialmente, já não faria mais sentido em concepção: seria tempo de construção não de uma cultura proletária, mas de uma cultura da humanidade, visto a abolição das classes. Se ao longo desses debates podemos ver tendências à uma submissão da figura do artista à estrutura partidária e sua integração total ao projeto revolucionário, sem espaço para uma existência autônoma do campo artístico, é ao longo dos anos 30 que se consolida uma dominação mais direta sobre o âmbito cultural. Esses são os anos de consolidação da dominação stalinista, com os grandes expurgos que eliminam grande parte da vanguarda revolucionária bolchevique dos centros de decisão politicamente e, inclusive fisicamente. É nesse período que afirma-se o marxismo como doutrina única e necessária na esfera cultural soviética. Ainda assim é importante destacar o fato de que o stalinismo, conforme afirma Vittorio Strada (STRADA, 1987), não consistiu em uma dominação absoluta nua e crua, mas uma forma de dominação que se consagrava a si própria pelos ideais socialistas e pelas ideias marxistas. Não levar tal elemento em consideração dificulta em muito compreender a influência que a arte soviética teve sobre a intelectualidade de esquerda, não só dentro da URSS, mas também fora dela. Gradativamente se elaboram diretrizes daquilo que seria denominado realismo socialista. Este teve como características gerais a manutenção da herança cultural progressiva burguesa, bem como a estruturação de seu conteúdo de maneira a viabilizar a comunicação com as massas, utilizando-se de referências nacionais e folclóricas. (MORAES, 1994). Nesse sentido, iniciouse um processo de perseguição das vanguardas, as quais seriam anti-revolucionárias, símbolo da decadência e perda do caráter progressista da burguesia nessa etapa histórica, por sua inacessibilidade ao grande público. Marcos Napolitano coloca que, para além da incomunicabilidade, o problema residia no controle do pensamento inovador que extrapolasse o partido (NAPOLITANO, 1997). Dessa forma, institucionalizava-se o próprio artista, conferindo-lhe uma importância histórica. A arte no realismo socialista tinha como tarefa a remodelação ideológica dos trabalhadores bem como sua educação no espírito do socialismo, ou seja, uma ferramenta a serviço da revolução.

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Na década de 40, sob a regência de Jdanov, há um período em que se vê um aumento da repressão sobre a comunidade artística, a qual colocava, em geral, uma doutrina negativa e repressiva, diminuindo bastante as possibilidades de iniciativa ideológica no campo artístico.

Mulheres sob o Stalinismo O regime stalinista trouxe para as mulheres novas oportunidades e novos fardos. Ao mesmo tempo em que observa uma entrada das mulheres em postos de trabalho produtivos, notadamente na indústria, como nunca visto anteriormente. Esse fenômeno não é acompanhado por um processo de emancipação da carga do trabalho doméstico. Pelo contrário, observa-se um reforçar de ideologias conservadoras e mesmo autoritárias no que concerne às questões de gênero (LAPIDUS, 2003). A importância da entrada da mulher no mercado de trabalho, do ponto de vista de sua independência financeira e de um debate sobre igualdade, sempre esteve presente nos debates dos revolucionários de 1917. A sua efetivação de fato se dará, no entanto, principalmente a partir de 1928, quando se inicia o primeiro Plano Quinquenal. A partir de então, se dão uma série de mudanças na sociedade soviética, as quais impõe a entrada das mulheres nos postos de trabalho, notadamente no trabalho industrial, mais como uma condição para a consecução do crescimento econômico do que associado a qualquer concepção libertadora. Podemos situar entre essas mudanças os processos de coletivização forçada da terra, o qual obrigou mulheres a se deslocarem para as cidades em busca de emprego. Além disso, os próprios processos de perseguição política, os expurgos da década de 30, colocam diversas mulheres em condições de sustento e liderança de suas famílias sozinhas. A medida em que a década de 30 avança, a II Guerra Mundial também impõe a diminuição da mão de obra masculina disponível pelo recrutamento e, posteriormente, também pelas baixas a ela relacionadas. Essas transformações tem um impacto importante sobre a composição da força de trabalho industrial, chegando em 1945 a ter 56% de composição feminina. Se por um lado o debate sobre a necessidade de socialização do trabalho doméstico não tenha ficado completamente ausente, sua efetivação foi repetidamente deixada de lado, sendo 679

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relegado sobre as mulheres o fardo da dupla jornada de trabalho, dentro e fora de casa. A entrada da mulher nesse período no mercado de trabalho era vista, então, em termos políticos, parte de uma estratégia de desenvolvimento que via o trabalho feminino como um grande recurso econômico, o qual possibilitava uma rápida expansão da força de trabalho a um custo relativamente baixo. A proporção desse deslocamento social traz uma demanda por estabilização e integração social na qual o reforço de valores e padrões de comportamento cumprem um papel importante. Podemos situar o processo de reforço da família e de reafirmação do papel de esposa e mãe da mulher com parte de um processo mais amplo de diferenciação social em curso. A partir de 1931, Stálin ataca o igualitarismo, o qual qualifica como burguês. Isso dá espaço a medidas de diferenciação salarial, incentivo à produtividade econômica e de diferenciação de status e prestígio entre trabalhadores. Se num primeiro momento essas medidas podem não parecer ter um impacto em termos de gênero, esses processos têm implicações para o papel cumprido pela família dentro da estrutura social soviética. Em “A Revolução Traída”, Leon Trotsky (2005) afirma que o culto da família presente no regime stalinista se relaciona com a necessidade da burocracia de uma relação hierárquica estável e da disciplinação da juventude. A retórica geral do regime afirma que, assim como o Estado, a família deve crescer e se fortalecer a medida em que o socialismo em sua forma completa se aproxima. A família é vista, então, como o microcosmo da nova sociedade. Toda forma de questionamento a essa afirmação e desqualificada como um desvio burguês (ARRUZA, 2010). A propaganda busca reforçar o papel da mulher como mãe e esposa. Seu papel social não é afirmado pela posição que ocupa dentro da estrutura econômica, por mais que, como vimos, estivesse cada vez mais presente dentro do mundo do trabalho, mas sim por sua capacidade, heróica, de articular a jornada de trabalho fora e sua verdadeira vocação enquanto mãe e esposa. Há uma demanda, também, por um crescimento na taxa de natalidade. A maternidade, vocação natural da mulher, é igualada ao reino da felicidade, enquanto a mulher sem filhos é caracterizada como infeliz, como fica claro na citação abaixo.

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A woman without children merits our pity, for she does not know the full joy of life. Our Soviet women, full-blooded citizens of the freest country in the world, have been given the bliss of motherhood (SCHLESINGER, apud LAPIDUS, 2003 p.228).

Presente nos espaços da propaganda, esse ímpeto também se dá por medidas econômicas, com a presença de incentivos econômicos para mães de grandes famílias, mas também a partir de medidas repressivas. Ao longo desse período implementam-se medidas contra a prostituição e a homossexualidade. Em 1936 o aborto é colocado na ilegalidade. Na década de 40, vários locais da URSS tem as escolas mistas abolidas, e são aprovadas leis que impõe restrições mais severas ao divórcio, acabam com o reconhecimento de casamentos são registrados e de crianças nascidas fora do casamento. A questão de gênero, ao longo da era Stalinista, portanto, diferentemente das discussões trazidas pelas feministas bolcheviques e presentes na legislação do início da URSS reforça a família e os papeis tradicionais de gênero, tendência que se intensifica durante e após a II Guerra Mundial.

Propaganda Visual na União Soviética A propaganda política teve um papel importante na União Soviética. A formação da consciência do novo ser humano soviético sempre fez parte das preocupações do regime e reflete o investimento material e político nesse tipo de estratégia. A utilização de cartazes para esse fim é constante ao longo da história da URSS. Victoria E. Bonnell (1997) destaca que a utilização de cartazes dialoga com uma tradição russa onde a comunicação visual tem especial importância. Se isso se relaciona, por um lado, com as grandes taxas de analfabetismo do país ainda que se reduzam gradualmente com o passar o tempo - também bebe da tradição da Igreja Ortodoxa de utilização de imagens para comunicação com os fiéis. Outro motivo apontado para a ampla utilização de pôsteres para a comunicação foram condições materiais presentes em determinados períodos, como a Guerra Civil, por exemplo, quando as faltas de recursos, como papel e tinta, privilegiavam os pôsteres como uma alternativa de comunicação mais barata do que jornais.

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Se ao longo dos anos de vigência da NEP há um relativo declínio na utilização da propaganda visual, essa é retomada com bastante força a partir dos planos quinquenais. A arte política, em consonância com as ideias do realismo socialista, é vista como devendo dialogar com as referências populares, tradicionais, para introduzir elementos relacionados aos planos estratégicos do partido, os quais, na década de 30, se relacionam à coletivização da terra e à industrialização. A importância dada a essa produção visual pode ser vista pelo fato de 1931 toda a produção de pôsteres ter sido colocada sob o Departamento de Arte da Editora Estatal, contando com uma supervisão direta do comitê central. Assim, temos os temas, textos e imagens ditados aos artistas em consonância direta com a linha partidária. Esse processo coincide com o aumento do número de pôsteres. Se no período de guerra civil as tiragens variavam entre 25.000 e 30.000, na década de 30 variam entre 100.000 e 250.000. É interessante, também, ver a variação da representação da mulher nesses cartazes ao longo do tempo. Até 1920, suas aparições eram majoritariamente alegóricas, ora representando a liberdade, ora o país. Ainda assim, eram raras. A partir da década de 20, sua presença se torna mais frequente, a partir de duas personagens: a trabalhadora e a camponesa - parte da tendência geral dos cartazes de afirmar a identidade de classe como um aspecto positivo e impulso para a superação de desafios. Sua presença nos cartazes, ainda assim, está submetida à presença dos heróis masculinos - também o trabalhador, o soldado e o camponês - aparecendo com menor frequência do que estes e geralmente em segundo plano. Na década de 30, principalmente a partir da propaganda relacionada ao processo de coletivização, a figura da mulher camponesa ganha proeminência, ainda que a maioria dos cartazes ainda tenha centralidade na figura masculina. De qualquer modo, há um crescimento muito grande da sua presença nas representações quando comparadas ao período anterior. Na primeira metade da década de 30 essa representação vem geralmente ligada à produção. A mulher camponesa é jovem, moderna, quase nunca representada em funções reprodutivas ou com filhos. Bonnell relaciona esse tipo de representação a uma tentativa de reagir a resistência protagonizada por mulheres ao processo de coletivização e, também, a um consumo dos cartazes dentro do ambiente urbano.

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O segundo plano quinquenal vem acompanhado de uma gradual mudança na representação da mulher nesses cartazes. Cada vez mais ela se apresenta em cenas contemplativas ou reprodutivas, saindo de cena sua representação relacionada à produção.

Cartazes soviéticos da segunda guerra Quando chegamos ao período da II Guerra Mundial, vemos uma intensificação de tendências que vinham se delineando ao longo da década de 30. De forma geral, há uma retirada da tônica do discurso da questão de classe. As personagens não são identificáveis em termos de classe, característica que se manterá no período posterior à guerra - um exemplo disso são as roupas que, no período anterior eram as de trabalho, mesmo quando retratadas cenas fora do trabalho, e que agora eram roupas genéricas, independentes da posição de classe. Pelo contrário, a ênfase agora se dá sobre a nação, sobre um ethos imperial e ao patriotismo. A representação dos inimigos da URSS na guerra como animais, por exemplo, faz parte da retomada de tradições nacionais utilizadas em períodos anteriores da Rússia Imperial como a primeira guerra mundial. Outro elemento retomado é a figura da “Pátria Mãe” ou da “Mãe Rússia”. Essa representação feminina da nação, comum ao longo da Primeira Guerra Mundial, tinha sido deixada de lado durante os primeiros anos da revolução devido ao seu caráter não internacionalista destas imagens. Durante a II Guerra, no entanto, o internacionalismo deixa de ser uma questão, assim como a filiação ao partido não figura mais como referência central nos cartazes, dando lugar ao incentivo ao patriotismo. Os cartazes analisados neste artigo foram produzidos entre 1943 e 1945 e estão disponíveis online no site da Universidade de Nottingham como parte do material online de uma exposição, chamada “Windows on War” realizada em 2009. Dentre os cartazes disponibilizados, foram selecionados aqueles que continham representações femininas. O tema que desponta com destaque é a família e a mulher é representada de acordo com suas funções em relação a essa estrutura, ou seja, como mãe e esposa. No cartaz “Glória à Mãe Heroína” de setembro de 1944, é representada uma mulher cercada de filhos, dez no total. O conteúdo de seu heroísmo consiste, então, em ser mãe e, inclusive, ceder filhos para lutar na 683

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guerra, visto que dois deles estão com roupas militares. Outro cartaz, de 1943, “Vinge a dor de seu povo”, representa uma mãe que demanda de seu filho vingança contra o inimigo. Diferentemente da primeira representação, a qual tem uma figura calma e positiva, esse segundo cartaz traz a figura de uma mulher mais velha e que expressa angústia em seu rosto frente a um cenário destruído. É uma figura que se parece com o ideal da “Mãe Rússia” que clama por seus filhos pela defesa nacional. Assim, a figura maternal está tanto na afirmação do local da mulher enquanto mãe e reprodutora, o que condiz com as campanhas pelo aumento da taxa de natalidade já citadas aqui, quanto na retomada de simbolismos tradicionais relacionados à nação. Também é afirmada a identidade de esposa, como pode se ver em um cartaz de 1944 que retrata uma mulher abraçando e beijando um soldado soviético. Aqui, também, é possível identificá-la à nação que agradece ao soldado por sua defesa. No cartaz, “Uma família agradecendo Stalin”, de 1943, observa-se a associação direta de Stálin, por um lado à pátria e a defesa nacional e, por outro, à unidade familiar enquanto unidade social de organização. A família - pai, mãe e filho - se reúnem em torno da imagem de Stalin que a criança segura junto a parede. É difícil não fazer uma relação à um ícone religioso que é louvado e a imagem de Stálin tal qual é retratada no cartaz. Essa retomada de referências tradicionais ligadas a religião também pode ser observada no cartaz “Irmã”, de 1944. Nesse cartaz é retratada uma enfermeira cuidando de um soldado ferido. A imagem traz referências à Virgem Maria e dialoga com o imaginário tradicional. Ao longo dessas imagens citadas não se identifica posições de classes ligadas a essas mulheres. Sua definição se dá em relação à família e à nação. Isso é bastante significativo quando lembramos, como já citado, que esse foi o período em que as mulheres ocuparam a maior proporção dos postos de trabalho. Aqui há, tanto uma tendência tirar as questões de classe de cena, quanto a também não referenciar a posição da mulher com relação a elas. O cartaz “Frutas e Vegetais para o Front” pode parecer, a primeira vista, contraditório a essa tendência, visto claramente retratar uma mulher camponesa que apresenta os frutos de seu trabalho e para alimentação do exército em guerra. Entretanto, é notável a diferença da representação dessa mulher camponesa daquelas da primeira metade da década de 30. Se naquele período a mulher aparecia como protagonista do trabalho para a coletivização da terra, 684

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aqui ela parece mais contemplar a cena do que de fato ser a origem das riquezas recolhidas. Essa forma de representação se repetirá no pós-guerra, com a presença de temas que retratam a União Soviética como um paraíso na terra e os cidadãos soviéticos, mais do que os trabalhadores, como fruindo desse desenvolvimento garantido pela nação. Assim, fica claro que o stalinismo desenvolveu suas bases não somente a partir da repressão e supressão de oposição política, mas também um processo de constituição de uma estrutura social que remontou a elementos tradicionais e conservadores para sua base. Nesse sentido, as mulheres foram impactadas em especial, com uma série de retrocessos nas medidas de garantia de direitos de igualdade galgados pelo processo revolucionário até então. Esses retrocessos têm como eixo geral a redução da identidade feminina à esfera reprodutiva, e essa também relacionada às mulheres, mesmo que na realidade as mulheres também estivessem presentes na esfera produtiva. O stalinismo aprofunda, assim, o estabelecimento da dupla jornada de trabalho para as mulheres soviéticas. A centralidade ocupada pela instituição da família, seja na reprodução de valores, seja como lócus de realização do trabalho reprodutivo, lhe confere um importante papel na manutenção da ordem. Na sua afirmação, a propaganda cumpre um papel importante, havendo destaque para o papel cumprido pelos cartazes nesse processo. Nos cartazes analisados nesse trabalho, é possível visualizar a tendência a afirmação de um papel determinado para as mulheres na realidade soviética. Esse papel está associado a uma ligação direta de seu papel social à família e à reprodução social, ainda que na prática exerça funções para além destas. Sua presença nesse papel não diz respeito somente à relação entre gêneros, mas à estruturação de uma sociedade que assenta cada vez mais sobre bases tradicionais de um projeto de construção nacional, imperial e patriótica. BIBLIOGRAFIA ARRUZA, Cinzia. Feminismo e Marxismo. Entre casamentos e divórcios. Lisboa: Editora Combate, 2010. BONNELL, Victoria E. Iconography of Power: Soviet Political Posters under Lenin and Stalin. Los Angeles: University of California Press, 1997. 685

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COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981 EGG, André A.. O debate no campo do nacionalismo musical no Brasil dos anos 1940 e 1950: o compositor Guerra Peixe. 01/09/2004. 240f. Mestrado (Mestrado em História). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, volume 3. 3ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. HOBSBAWM. Eric. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HOFFMANN, D. L. Stalinism: the essencial readings. Oxford: Blackwell Publishing, 2003. HOFFMANN, D. L. Cultivating the masses. Modern State Practices and Soviet Socialism, 1914-1939. London: Cornell University Press, 2011 LEWIN, Moshe. Para uma conceituação do stalinismo. In: HOBSBAWM, E. História do Marxismo. v. 7. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. MORAES. Denis de. O imaginário vigiado. A imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-53). Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. NAPOLITANO, M. Arte e Revolução: entre o artesanato dos sonhos e a engenharia das almas (1917-1968). Revista de Sociologia Política. Curitiba, n.8, 1997. Disponível em: . Acesso em: 27 setembro 2015. NAPOLITANO, M. A relação entre arte e política: uma introdução teórico-metodológica. Temáticas (UNICAMP), v. 37-38, p. 25-56, 2011. STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWM, E. História do Marxismo. v. 9. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. STRADA, Vittorio. Do “realismo socialista” ao zdhanovismo. In: HOBSBAWM, E. História do Marxismo. v. 9. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora UNESP, 2011. TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. O que é e para onde vai a URSS. São Paulo: Editora Sundermann, 2005 FONTES Cartazes Soviéticos da exposição “Windows on War” organizada pela University of Nottingham,

disponíveis

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25/06/2016.

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Acesso

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MESA 12: INTELECTUAIS, ESTADO E PROJETOS DE DOMINAÇÃO NO BRASIL Coordenação: Leonardo Brito (Colégio Pedro II) RESUMO: Esta mesa de comunicações tem como escopo servir de espaço para produções acadêmicas recentes sobre a relação entre intelectuais, poder e ideologia no Brasil. A categoria teórica de “intelectual orgânico” elaborada pelo teórico sardo Antônio Gramsci serve como ponto de partida para nossa reflexão, mas não apenas. Lançando mão da célebre expressão do anarquista norte-americano Noam Chomsky qual seria a responsabilidade dos intelectuais diante da reprodução e legitimação das estruturas de poder estabelecidas? Desta feita, pretendemos abordar a complexa relação poder/ produção de conhecimento e projetos de dominação que circunda o trabalho de intelectuais no Brasil dos séculos XIX e XX.

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ROBERTO SIMONSEN SOB O CONCEITO DE INTELECTUAL ORGÂNICO GRAMSCIANO – UM ESTUDO DE CASO Guilherme Barreto1

O presente trabalho tem como intuito uma breve análise da trajetória de vida de Roberto Simonsen, um dos mais importantes industriais brasileiros do início do século XX. Principalmente estabelecendo se podemos, de fato, considerar Simonsen um intelectual orgânico do setor industrial paulista, sob uma ótica de análise gramsciana, baseado em seu instrumental teórico necessário para o devido uso do termo, buscando não incorrer em algumas imprecisões tão comuns nos últimos tempos. Dessa maneira, se, de fato e em que medida, o empresário foi fundamental para a chegada desta fração de classe nos mais importantes setores do estado restrito brasileiro, dando homogeneidade e consciência a essa classe nos campos econômico, social e político, sendo parte desse organismo vivo e em constante expansão. Tal análise se centra principalmente a partir do período do Governo de Getúlio Vargas, momento em que o setor industrial paulista consegue se inserir no estado restrito, e se consolidar como uma força preeminente dentro do cenário nacional. O Intelectual Orgânico Na teorização de Gramsci, os intelectuais estão divididos em dois tipos. O primeiro deles é formado pelos “intelectuais orgânicos”, que possuem vínculo estreito com a emergência de uma classe fundamental, cuja função é dar homogeneidade e consciência a essa classe nos campos econômico, social e político. O segundo tipo é composto pelos “intelectuais tradicionais”, que em um modo de produção anterior, constituíam uma categoria de intelectuais orgânicos de uma determinada classe que não mais existe. Após o desaparecimento dessa classe, os intelectuais tradicionais passaram a formar uma camada relativamente autônoma que adere ao projeto das classes fundamentais do presente (COUTINHO, 1999b, p. 175). Os intelectuais são formados no interior de sua classe. Todo grupo social possui um intelectual que juntamente com o partido assume a função de representar sua classe e de

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Mestrando em História pelo Programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). [email protected]

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conscientizá-la. Segundo Semeraro (2006), intelectuais orgânicos são aqueles que estão entrelaçados nas relações sociais pertencentes a uma classe. Para o autor, os intelectuais são parte de um organismo vivo e em constante expansão. Dessa forma, são ligados ao mundo do trabalho, as organizações políticas mais avançadas que o seu grupo social desenvolve para dirigir a sociedade. Os intelectuais orgânicos são os responsáveis por construir o projeto da sua classe. Nas reflexões carcerárias, Benedetto Croce é o principal exemplo fornecido por Gramsci (2002a, p. 351 [17, 37]) de grande intelectual que integrou um “partido constituído por uma elite de homens de cultura, que têm a função de dirigir, do ponto de vista da cultura, da ideologia geral, um grande movimento de partidos afins (que são, na realidade, frações de um mesmo partido orgânico) ”. Segundo Gramsci(1999, pp. 420-421 [10, 59]), Croce não pertencia abertamente a nenhum grupo liberal e combatia a ideia e o fato de os partidos estarem permanentemente organizados, porém desempenhava a função de crisol das forças políticas liberais da Itália2. Em que pese o fato de, em determinadas (e excepcionais) circunstâncias, operarem como uma espécie de força dirigente autônoma e superior aos partidos, os intelectuais não constituem um grupo social próprio, desligado das atividades das classes sociais. A categoria que Gramsci desenvolve possui como referência o lugar e a função que os intelectuais ocupam no conjunto das relações sociais, das dinâmicas de conflitos entre as classes e as frações de classes que buscam conservar um bloco histórico, ou almejam edificar um novo. Dessa maneira, a noção de intelectual presente na obra de Gramsci não pode ser compreendida sob a perspectiva do nível de erudição ou da natureza da atividade profissional de cada indivíduo. A respeito da oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual, Gramsci (2001a, p. 18 [12, 1]) sublinha que “o operário ou proletário, por exemplo, não se caracteriza especificamente pelo trabalho manual ou instrumental, mas por este trabalho em determinadas condições e em determinadas relações sociais”, isto é, no modo de produção capitalista, a não propriedade dos meios de produção, a venda da sua força de trabalho e o trabalho produtor de valor e mais-valia (PIOTTE, 1973, p. 15). Nessa perspectiva, a figura social do industrial, segundo Gramsci (2001a, p. 18 [12, 1]), não é determinada pelas qualificações intelectuais, mas

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Croce foi senador em 1910, na época em que os senadores italianos eram nomeados pelo Rei. Em 1920-1921 desempenhou a função de ministro da Educação. Após a queda de Mussolini, foi ministro sem pasta em 1943- 1944.

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“pelas relações sociais gerais que caracterizam a efetivamente a posição”, ou seja, a propriedade dos meios de produção e a extração da mais-valia do trabalho operário. Tratando ainda desse tema, Gramsci (2001a, p. 18 [12, 1]) afirma que “não existe trabalho puramente físico”, pois “em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora”. Portanto, não aparenta ser casual o seguinte juízo de Gramsci (2001a, p. 18 [12, 1]): “Seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais”. Gramsci (2001a, p. 16 [12, 1]) observa que o surgimento do capitalista é acompanhado da criação de categorias especializadas para o exercício da função intelectual, tais como, tecnólogo industrial, administrador de empresas, economista; ou seja, além de exprimirem a concepção de mundo da classe a que estão vinculados, intelectuais orgânicos são, em sua maioria, “especializações de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz”. Apesar de não ser um grupo social próprio, não é incomum tanto os investigadores que analisam formações sociais do presente como os que se debruçam sobre as do passado afirmarem o oposto. Certamente, os intelectuais possuírem uma autonomia relativa é um traço que contribui para a formação dessa falsa imagem, no entanto, esse não é o único, outros elementos reforçam essa aparência. Em primeiro lugar, o já mencionado fato de os intelectuais, em momentos específicos, constituírem uma força dirigente autônoma, um centro político dirigente das “diferentes frações de um mesmo partido orgânico” (GRAMSCI, 2002a, pp. 350351 [17, 37]). Em segundo lugar, ao contrário das classes sociais fundamentais, a “relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata”, mas mediada, em diversos graus, por todo o tecido social. Isso resulta, ao mesmo tempo, em estratos intelectuais com maior organicidade com uma classe fundamental, e em outros com uma conexão menos estreita com algum grupo social fundamental (GRAMSCI, 2001a, p. 20 [12, 1]). Como último elemento, ressalta-se, a permanência dos “intelectuais tradicionais”, ou seja, de um “grupo de categorias de intelectuais preexistentes” que aparentam ser “os representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas” (GRAMSCI, 2001a, p. 16 [12, 1]). 691

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Em outra passagem dos Cadernos do Cárcere, pode-se observar como Gramsci (2001a, p. 21 [12, 1]) concebe a inserção dos intelectuais na sociedade civil e na sociedade política: Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo.

Fica evidente, portanto, uma estreita relação entre as categorias de intelectual e de hegemonia no instrumental teórico-analítico de Gramsci. Tendo como fundamento a análise da noção de intelectual, realizada acima, observa-se que são atribuídas a ela posições e funções cruciais no partido, no governo político e na sociedade civil. Desse modo, é possível interpretar, conforme Gruppi (1978, p. 80), que “uma hegemonia se constrói quando tem os seus quadros, os seus elaboradores”, ou seja, uma reforma intelectual e moral possui como précondição a ação dos intelectuais tanto isoladamente (cujo maior expoente, para Gramsci, é Croce) como por meio dos aparelhos “privados” de hegemonia e, principalmente, do “moderno Príncipe”. A trajetória de Roberto Simonsen Roberto Cochrane Simonsen nasceu no Rio de Janeiro, então capital do Império, em 18 de fevereiro de 1889, filho de Sidney Martin Simonsen e de Robertina da Gama Cochrane. Seu pai, cidadão inglês radicado no Brasil, vem para o país na década de 1870 para comandar o chamado Banco Inglês. Sua mãe era carioca, descendente de antiga família escocesa e parente de lorde Cochrane, figura de grande destaque nas guerras de independência de vários países latino-americanos. Seu avô materno e padrinho, Inácio Wallace da Gama Cochrane, foi deputado na Assembleia Legislativa Provincial de 1870 a 1879, dirigiu uma importante firma de exportação de café em Santos (SP) e fez parte da diretoria da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Foi também o responsável pela fundação da Companhia Melhoramentos de Santos (The City of Santos Improvements) que, contando com a participação de capitais ingleses, organizou os serviços de bondes, luz e água dessa cidade (ABREU, 2001: p. 5481). Em 1911 casou-se com Raquel Cardoso e, no ano seguinte, assumiu a chefia da Diretoria Geral da Prefeitura de Santos, trabalhando em seguida como engenheiro-chefe da Comissão de 692

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Melhoramentos do Município. Afastou-se desse cargo ao fundar, ainda em 1912, em sociedade com os irmãos, a Companhia Construtora de Santos, pioneira em planejamentos urbanísticos. Além disso, esteve envolvido em novos empreendimentos, como a Companhia Santista de Habitações Econômicas (destinada à construção de casas para operários), e a Companhia Brasileira de Calçamento (ABREU, 2001: p. 5481). Com o apoio do prefeito Belmiro Ribeiro, Simonsen conseguiu que a Câmara Municipal de Santos sancionasse, em julho de 1912, a Lei nº 501, que concedia incentivos aos investidores de capital na construção de casas populares. Em 1914, a Companhia Santista de Habitações Econômicas iniciou a construção de um bairro operário em Vila Belmiro, que não chegou a ser totalmente concluído em virtude do impacto da Primeira Guerra Mundial sobre a economia do país (ABREU, 2001: p. 5481). O prolongamento da Primeira Guerra Mundial provocou, por outro lado, no país, e principalmente em São Paulo, um importante crescimento da produção industrial baseado na capacidade produtiva anteriormente instalada. Nesse contexto, em 1916, Simonsen fundou e tornou-se o primeiro presidente do Centro dos Construtores e Industriais de Santos, que tinha como principais objetivos a organização de um cadastro do operariado, a criação de um serviço de assistência e seguro para os trabalhadores e a fundação de escolas de aprendizagem profissional. Logo no início de sua gestão, Simonsen organizou uma câmara de trabalho que funcionou sem nenhuma vinculação oficial como a primeira junta de conciliação do Brasil, incluindo representantes de patrões e operários. Ainda em 1916, Simonsen comprou a Companhia Parque Balneário (ABREU, 2001: p. 5481). Roberto Simonsen começou a se destacar na vida pública nacional no período posterior à Primeira Guerra Mundial. Em um banquete oferecido em Santos no dia 27 de dezembro de 1918 em homenagem ao recém-nomeado ministro da Agricultura, Antônio de Pádua Sales, Simonsen fez um discurso, mais tarde publicado com o título de “Orientação Agrícola Brasileira”, ressaltando a necessidade de se substituir o sistema empírico de produção pelo método científico de organização do trabalho. Também em 1919, a Companhia Construtora de Santos venceu a concorrência aberta pela prefeitura dessa cidade para a construção da Companhia Frigorífica de Santos, da qual Simonsen se tornou presidente. Nessa mesma época, Simonsen iniciou suas atividades empresariais no setor de alimentos, assumindo a presidência da Companhia Frigorífica e Pastoril 693

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de Barretos (SP) (ABREU, 2001: p. 5482). Ao longo de toda a década de 1920, Simonsen se destacou como líder empresarial, assumindo em 1923 a presidência do Sindicato Nacional dos Combustíveis Líquidos. No ano seguinte, passou a dirigir a Cerâmica São Caetano e, em 1926, organizou a Companhia Nacional da Borracha e a Companhia Nacional de Artefatos de Cobre, dando início ao processo de substituição de importações nesses setores. Seguindo a tradição da família, ingressou no comércio do café, diversificando seus interesses. Em sociedade com o cunhado, Edwin Murray, fundou a Casa Comissária Murray, Simonsen e Cia. Ltda. que, durante o governo de Washington Luís (1926-1930), representou os banqueiros ingleses Lazard Brothers, financiadores do Instituto Paulista de Defesa do Café. Criou também a Companhia de Comércio do Café e a Brazil Warrants, ambas sediadas em Santos e com várias filiais (ABREU, 2001: p. 5482). Em 1926, em entrevista ao O Jornal, do Rio de Janeiro, Simonsen afirmou que a indústria e a agricultura apoiavam o rebaixamento artificial da taxa de câmbio determinado pelo governo federal para facilitar as importações. Entretanto, a adoção dessa medida levou os importadores a sobrecarregar o mercado nacional com tecidos estrangeiros, provocando sérias divergências entre empresários do comércio e da indústria, que até então se reuniam em uma única entidade de classe, a Associação Comercial de São Paulo. Em janeiro de 1928, os industriais lançaram chapa própria para concorrer à direção da associação, em oposição à chapa oficial ligada ao comércio. O acirramento das divergências provocou uma cisão entre os dois grupos e levou à criação, em 28 de março seguinte, do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (CIESP), que teve Francisco Matarazzo como primeiro presidente e Roberto Simonsen como vice. A fundação do CIESP é, assim, a expressão da nova relação de forças objetiva e do lugar ocupado pela indústria (BIANCHI, 2004: p. 67). O CIESP se constituía como uma associação civil, com registro em cartório com o objetivo de defender a expansão industrial e representar as indústrias paulistas perante os poderes públicos “e com elles collaborar sempre que desta collaboração resulte o progresso industrial do Estado de São Paulo” (CIESP, 1928, p. 3) Em seu discurso de posse, Simonsen pediu ao governo medidas protecionistas mais abrangentes, ressaltando o papel da indústria como elemento propulsor da independência política e econômica de um país e definidor do padrão de desenvolvimento de um povo. Defendeu também a indústria das acusações, então correntes, de ser “artificial” e de contribuir 694

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diretamente para a carestia em virtude das tarifas protecionistas. Para ele, não se devia falar em vida cara, mas sim em ganho insuficiente, “porque o índice de produção é baixo em relação à população e extensão do nosso território”. Esse discurso recebeu fortes críticas da Sociedade Rural Brasileira e da Associação Comercial do Brasil (ABREU, 2001: p. 5482). Nos primeiros meses de gestão, ficou clara a proximidade dos industriais paulistas com a política de Washington Luis. Isso de materializou no apoio à candidatura de Júlio Prestes à presidência da República (BIANCHI, 2004: p. 69), combatendo o programa da Aliança Liberal formada em 1929. A vitória desse candidato nas eleições de março de 1930 foi contestada por setores oposicionistas, que passaram a articular junto com oficiais ligados ao movimento tenentista um levante armado contra o governo federal. A revolução foi deflagrada em outubro e, vitoriosa depois de 21 dias de luta, conduziu Getúlio Vargas à chefia do Governo Provisório, ao mesmo tempo em que eram nomeados interventores federais em todos os estados. O governo de São Paulo ficou a cargo do tenente João Alberto Lins de Barros, que encontrou forte oposição por parte das forças políticas tradicionais. Começou então um processo de radicalização da luta política nesse estado, que resultou, em fevereiro de 1932, na formação da Frente Única Paulista (FUP) para lutar pela devolução da autonomia estadual e a imediata reconstitucionalização do país. Com a deflagração da luta armada em 9 de julho de 1932, Simonsen tornou-se responsável pela adaptação do parque industrial paulista à economia de guerra. Baseada em sua liderança, o CIESP e a Associação Comercial de São Paulo desenvolveram estreitos contatos para regularizar o abastecimento da capital, assediada pelas tropas do Governo Provisório. Durante a guerra civil, Simonsen presidiu a Comissão de Cadastro e Mobilização Industrial formada pelo governo revolucionário paulista, e integrou o Conselho Consultivo Econômico do Estado, o Departamento Central de Munições e o Conselho de Assistência Civil. Em 30 de setembro de 1932, quando a capitulação dos revolucionários estava próxima, convocou uma reunião da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), cuja presidência estava exercendo em caráter interino, e fez constar em ata a importância do trabalho dessa entidade na mobilização das indústrias para a guerra. Depois da derrota dos paulistas, selada pelo armistício de 2 de outubro, Simonsen exilou-se voluntariamente em Buenos Aires, retornando ao país no mês seguinte (ABREU, 2001: p. 5483). Quatro meses após chegar ao poder, Vargas, por meio de um decreto em 19 de março de 1931, reformulou a organização sindical de patrões e trabalhadores, centralizando as formas de 695

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representação patronal, além de uma estrutura verticalizada – sindicatos municipais, federações estaduais e confederações nacionais. A nova legislação era fortemente influenciada pelo pensamento corporativista, e tornava obrigatório o reconhecimento dos sindicatos pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Como contrapartida, estes eram considerados “órgãos consultivos técnicos no estudo e solução, pelo Governo Federal, dos problemas que, econômica e socialmente, se relacionarem com os seus interesses de classe” (BIANCHI, 2004: p. 70). Tal medida os aproximava bastante do processo decisório. Apesar das ressalvas que haviam com relação a nova lei, estas não impediram que o CIESP se adaptasse rapidamente à nova estrutura corporativa. Somente 2 meses após a promulgação do novo decreto, o Centro modificava seus estatutos e se transformava em Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Porém, a criação da FIESP não se resumia somente a uma mudança de nome, mas sim a adesão gradual a um corporativismo assimétrico e mitigado. Dessa forma, o empresariado se adaptava à estrutura corporativa na medida em que as formas de controle recaíam prioritariamente sobre as classes subalternas e os canais de comunicação e inserção ativa no aparelho de Estado eram abertos seletivamente, privilegiando o empresariado (BIANCHI, 2004: p. 72-73) Em 1932, Simonsen criou em São Paulo o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), que começou a desenvolver estudos sobre organização geral da produção, orientação profissional e higiene do trabalho. Pouco depois, Simonsen foi eleito presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo e fundou a Escola Livre de Sociologia e Política desse estado, a primeira do gênero criada no país, tornando-se mais tarde vice-presidente do seu conselho superior e professor da cadeira de história econômica do Brasil. No ano de 1933, a situação política do país foi marcada pelas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, encarregada de redigir a nova Constituição, julgar os atos do Governo Provisório e eleger o presidente da República. Nela, além dos deputados eleitos no voto direto realizado em maio, estariam presentes também representantes classistas escolhidos pelos sindicatos reconhecidos pelo governo com base na Lei de Sindicalização editada em 1931. Apesar de criticarem essa lei, os empregadores, coordenados pela Confederação Industrial do Brasil (CIB), adaptaram rapidamente suas entidades de classe às exigências do governo e realizaram, em julho de 1933, uma convenção que elegeu seus 17 representantes à Constituinte. Entre eles, figuravam quatro paulistas: Roberto Simonsen, Horácio Lafer, Alexandre Siciliano 696

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Júnior e Antônio Carlos Pacheco e Silva (ABREU, 2001: p. 5483). Durante os trabalhos da Constituinte, iniciados em 15 de novembro de 1933, os representantes dos empregadores paulistas se uniram à bancada da Chapa Única por São Paulo Unido, formada pelas principais forças políticas do estado e herdeira do movimento de 1932. Coerentes com essa opção, manifestando-se contra a representação profissional a nível deliberativo no Poder Legislativo, tornaram-se assim os únicos deputados classistas que rejeitaram a perpetuação do tipo de mandato que exerciam, por considerarem que os grupos profissionais não representavam os interesses gerais da sociedade. Segundo Ângela de Castro Gomes (1988), os representantes classistas dos empregadores assumiram uma postura não-partidária e enfatizaram o caráter técnico da sua atuação, preocupando-se sobretudo em sugerir medidas para estimular o desenvolvimento industrial e comercial do país, considerado vital para promover o crescimento do conjunto da economia, modernizar as atividades agrícolas e contribuir para o potencial estratégico de defesa armada da nação. Simonsen, Lafer e Siciliano Júnior foram os oradores mais ativos entre os deputados classistas. Para Simonsen, a legislação social era um dever do Estado e um direito dos trabalhadores, tornando-se por isso necessário promover reformas políticas, econômicas e sociais capazes de racionalizar a ação do Estado no tocante à regulamentação do direito social e à promoção do desenvolvimento econômico. Dessa forma, Simonsen se destacou na defesa do intervencionismo estatal na economia, ressaltando, entretanto, que a livre iniciativa deveria permanecer como fundamento das atividades econômicas e se deveriam evitar os excessos capazes de provocar um “estatismo-absorvente” ou uma “socialização apressada”, em nome dos quais se exerciam governos autoritários. O grande debate político da Constituinte ocorreu em torno do tema federalismo x centralização. Os empregadores defendiam a ampliação do caráter federativo do regime político nacional, posição semelhante à da bancada paulista, autora da proposta de que os estados ficassem encarregados de regulamentar e aplicar a legislação social. Essa sugestão foi severamente criticada pela bancada dos empregados e pelos setores tenentistas, que acusavam os paulistas de tentar protelar e contornar a execução das medidas trabalhistas (ABREU, 2001: p. 5483). A Constituinte encerrou seus trabalhos em 16 de julho de 1934, elegendo no dia seguinte Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório desde 1930, para a presidência da República. Os 697

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mandatos dos deputados foram prorrogados até a posse dos novos parlamentares, eleitos em 14 de outubro de 1934. Simonsen foi novamente escolhido deputado classista pelos sindicatos de empregadores e, nesse mesmo ano, assumiu a segunda-vice-presidência da Confederação Industrial do Brasil (CIB). Na legislatura ordinária iniciada em maio de 1935, colaborou em estudos de problemas econômicos e sociais, integrou a Comissão Especial de Leis Complementares da Constituição e as comissões de Legislação Social e de Diplomacia e Tratados, além de participar na elaboração dos códigos de Águas, do Ar e dos Serviços Industrializados do Estado. Nesse período, fazia parte do círculo de empresários e técnicos ligados a Vargas. Ainda em 1935, Simonsen afirmou que a Constituição aprovada no ano anterior não correspondia à nova realidade do país, marcada, no plano político, pelo agravamento do conflito entre o governo e duas forças antagônicas em ascensão, a Ação Integralista Brasileira (AIB) – de caráter notadamente fascista - e a Aliança Nacional Libertadora (ANL) – que agrupava diversos setores da esquerda. Foi acusado pelo jornal A Manhã, ligado à ANL, de pressionar Vargas para reprimir essa organização, que veio a ser fechada em julho. Ao mesmo tempo, recebia frequentes ataques do líder integralista Gustavo Barroso, que o acusava de capitalista e “judeu”. Nesse mesmo ano, Simonsen assumiu a presidência da CIB (mais tarde transformada na Confederação Nacional da Indústria — CNI) e fundou a Companhia Imobiliária Nacional, a Sociedade Construtora Brasileira e a Fábrica de Tecidos Santa Helena. Em 1936, presidiu uma comissão de estudos sobre educação técnico-profissional, formada por diretores do CIESP. A partir da criação de alguns órgãos estatais ou paraestatais – como o Instituto do açúcar e do álcool (1933), Departamento Nacional do Trabalho (1933), Conselho Federal do Comércio Exterior (1934), Plano Geral de Viação Nacional (1934) e do Conselho Técnico de Economia e Finanças (1937) – que as entidades representativas do empresariado industrial se inseriram no aparelho do Estado. Em diversas ocasiões o governo recorreu a um empresariado desejoso de mostrar seus serviços, para mapear as necessidades da indústria como, por exemplo, o inquérito realizado em fins de 1936. O texto, redigido por Simonsen, deixa claro o distanciamento dos industriais dos pressupostos liberais, afirmando o protagonismo do Estado no processo de industrialização (BIANCHI, 2004: p. 81). “preliminarmente, convém acentuar que pode ser de relevantes effeitos a actuação governamental na evolução industrial do Paiz. Basta lembrar, como comprovante dessa asserção que todas as grandes nações, que detêm a supremacia industrial no mundo, conseguiram uma tal posição por medidas inciaes de emulação e protecção,

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oriundas de políticas econômicas bem definidas. ” (BIANCHI, 2004: p. 81)

Os industriais também manifestavam suas reinvindicações e advogavam uma política protecionista mais eficiente, que tivesse o intuito de defender o país, fortalecer sua economia e conquistar os mercados externos. Distante de ser o resultado da ação de um Estado-demiurgo, externo às classes sociais, a política protecionista constitutiva deste projeto é determinada justamente pela ação das classes, das frações de classe e suas instituições, assim como também pelo lugar ocupado nesse processo pelos intelectuais, dentre os quais merece destaque Roberto Simonsen (BIANCHI, 2004: p. 82). Simonsen foi eleito presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) em 1937, chefiando em seguida a delegação brasileira enviada à Conferência de Paz, em Buenos Aires, onde apresentou tese sobre os índices de padrão de vida em todo o continente. Nesse mesmo ano, substituiu Euvaldo Lodi como membro do Conselho Federal de Comércio Exterior (CFCE), órgão diretamente ligado ao presidente Vargas com a missão de colaborar na definição da política econômica do governo. Em setembro, no exercício dessa função, apresentou um parecer sobre as providências necessárias para o incremento da expansão industrial no Brasil. Com a implantação do Estado Novo em 10 de novembro de 1937 e o subsequente fechamento de todos os órgãos legislativos do país, Simonsen perdeu sua cadeira de deputado federal. Mesmo assim, não se opôs à outorga da Constituição de 1937, que definiu a forma do novo regime. O Memorial da FIESP assinado por Roberto Simonsen e encaminhado ao presidente Vargas registrou a satisfação dos industriais com a nova Carta: “ A Constituição de 10 de novembro de 1937, que veio remodelar, inteiramente, a organização política do país, introduziu, entre outras felizes inovações, a colaboração direta das classes produtoras na obra administrativa. Veio, assim, realizar um velho ideal dessas classes e permitiu mais intimas relações entre elas e o Poder Público. Daí a gratidão que votam ao grande Presidente, que soube compreender o papel que representam na economia nacional e os seus propósitos conservadores da ordem e da estabilidade do Governo.” (BIANCHI, 2004: p. 85).

Em janeiro de 1938, foi reeleito para a presidência da FIESP, provocando um movimento de protesto que resultou no desligamento de 297 empresas até então filiadas à entidade, inclusive a Indústrias Reunidas F. Matarazzo. Em 1938, Simonsen ingressou no Conselho de Expansão Econômica do Estado de São Paulo, onde permaneceu até 1941. Em 1939, entrou para a Academia Paulista de Letras, tornou-se sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e publicou “A revolução industrial do Brasil”, trabalho encomendado pelo 699

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CFCE para ser apresentado à Missão Universitária Norte-Americana durante sua visita ao país (ABREU, 2001: p. 5484). Nos anos de 1940 e 1941, Simonsen alertou frequentemente as empresas e o governo sobre as consequências da Segunda Guerra Mundial no abastecimento de gêneros alimentícios, matérias-primas e combustíveis, e apelou à indústria nacional para acelerar a substituição de produtos importados, prevendo a drástica redução do comércio internacional de mercadorias essenciais. Como presidente da FIESP e de outras associações, contribuiu para a adoção do racionamento do álcool industrial, do sal e do açúcar, e para a redução do consumo de combustíveis. Em novembro de 1942, foi nomeado para o conselho consultivo da Coordenação da Mobilização Econômica (CME), formada em setembro com o objetivo de organizar a economia de guerra, adotando as medidas necessárias à aplicação dos acordos de Washington, que asseguravam o fornecimento de matérias-primas brasileiras para os Estados Unidos em troca de financiamento norte-americano para projetos industriais no Brasil. Nos anos seguintes, sob a chefia de João Alberto Lins de Barros, a CME assumiu o papel de um superministério, diversificando seus objetivos e funções: absorveu parte das atribuições do CFCE, passou a controlar a Carteira de Exportação e Importação do Banco do Brasil, mobilizou trabalhadores para os seringais da Amazônia e passou a fixar os índices do salário mínimo nas diferentes regiões do país (ABREU, 2001: p. 5484). Em 1943, Simonsen integrou a Comissão de Imposto Sindical, vinculada ao Ministério do Trabalho, e participou do I Congresso Brasileiro de Economia, realizado no Rio de Janeiro com a presença de 234 representantes de 192 entidades. Depois de assistir à apresentação de 14 teses sobre diferentes problemas nacionais e efetuar um balanço da situação econômica do país, o congresso aprovou recomendações sobre agricultura, comércio, exportação e importação, finanças, desequilíbrios regionais, salários, sindicalismo e bem-estar social, além de endossar a participação do Estado como administrador ou regulador das indústrias básicas. Simonsen integrou a delegação brasileira enviada em novembro de 1944 à Conferência de Rye, nos Estados Unidos, onde apresentou uma tese sobre a renda nacional, chamando a atenção do mundo para a situação dos países subdesenvolvidos e solicitando para eles uma ajuda mais concreta e eficaz. No mês seguinte, foi um dos seis vice-presidentes do I Congresso Brasileiro da Indústria, que foi organizado em São Paulo pela CNI e a FIESP e teve Getúlio Vargas como presidente de honra (ABREU, 2001: p. 5484). 700

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Roberto Simonsen faleceu na sede da Academia Brasileira de Letras, no Rio, em 25 de maio de 1948, no momento em que saudava o primeiro-ministro da Bélgica, Paul van Zuland, em visita oficial ao Brasil. Em sua homenagem, a FIESP criou o Instituto Roberto Simonsen (ABREU, 2001: p. 5484). Considerações finais Apresenta-se aqui a sistematização das principais observações e reflexões desenvolvidas ao longo deste texto, recuperando e integrando elementos da análise. Foram apontadas algumas das controvérsias que permeiam a interpretação do pensamento de Antonio Gramsci, pretendendo sinalizar as principais razões para isto. Concluiuse que existem motivações de naturezas diversas, destacando-se, todavia, o contexto da redação e da publicação dos Cadernos do Cárcere e a intensa divergência entre um variado rol de “pretensos herdeiros” da obra gramsciana. Essa “polêmica viva” suscitada pelas reflexões do fundador do PCd’I constitui um traço que o diferencia de outros clássicos da teoria social, cujos debates e legados não ultrapassam os limites das pesquisas acadêmicas. Não por acaso, essa disputa de interpretações está imediatamente relacionada com as consequências provocadas na prática política desses intérpretes ou de quem a adotava. Observou-se de forma central o conceito de intelectual orgânico presente nos escritos de Gramsci, sua importância como organizador de uma classe ou fração de classe, e que juntamente com o partido assumem a função de representar sua classe e de conscientizá-la. Além disso, fica nítida a sua fundamentalidade para a construção ou manutenção da hegemonia. Posteriormente nos debruçamos sobre a trajetória de vida de Roberto Simonsen. Tal exercício teve o objetivo de compreender como o empresário carioca radicado em São Paulo conseguiu tamanha importância e centralidade dentro de uma fração da classe dominante que se desenvolveu de maneira extremamente importante na primeira metade do século XX. Tal desenvolvimento levou a influência do empresariado, principalmente paulista, para as mais altas esferas do estado restrito. Posição esta que anteriormente era ocupada de maneira privilegiada pelos grandes proprietários de terra do país. Por fim, o objetivo central desta análise foi traçar um paralelo entre o conceito de gramsciano de intelectual orgânico e a vida e obra de Roberto Simonsen, e como este serviu verdadeiramente como um intelectual orgânico da sua classe – ou fração de classe – e como auxiliou de maneira fundamental para sua condução e a construção de uma posição hegemônica 701

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dentro do Brasil. Tal fato fica nítido com a sua participação para a organização de sindicatos patronais que defendessem os interesses dos industriais do Estado de São Paulo, notadamente com a criação da CIESP e FIESP durante as décadas de 1920 e 1930. Soma-se a isso a sua atuação acadêmica com trabalhos teóricos que delimitaram os rumos e a atuação da sua classe, além de orientar ou influenciar ações governamentais para que tais interesses fossem amparados pelo Estado. Sendo assim, Simonsen foi fundamental à emergência de uma classe fundamental, além de dar homogeneidade e consciência a essa classe nos campos econômico, social e político. Bibliografia ABREU, Alzira Alves de... [et al.]. Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Ed. rev. atual. – Rio de Janeiro: Editora FGV; CPDOC, 2001, Vol III / Simonsen, pp. 5481-5484. ANDERSON, Perry. As antinomias de Antonio Gramsci. In: _ et al. Crítica Marxista: A estratégia revolucionária na atualidade. São Paulo: Joruês, 1986, pp. 7- 74. BIANCHI, Alvaro . O ministério dos industriais: a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo na crise das décadas de 1980 e 1990. Campinas, Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp, 2004. BOBBIO, Norberto. O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro: Graal, 1982. CARDOSO, Fernando Henrique. As razões do Presidente. Veja, São Paulo, n. 1512, 10 set. 1997, p. 22-33. Entrevista. CIESP. Estatutos do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo. Aprovados em Assembleia Geral de 28 de março de 1928. São Paulo: Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus, 1928. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci e nós. In: A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984a, pp. 69-96. ____. Sobre a “questão democrática” em Marx em alguns marxistas. In: A democracia como valor universal e outros ensaios. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984b, pp. 51-68. ____. A dualidade de poderes: Estado e revolução no pensamento marxista. In: Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo: Cortez, 1994, pp. 1369. . Socialismo e democracia: a atualidade de Gramsci. In: AGGIO, Alberto (org.). Gramsci: a vitalidade de um pensamento. São Paulo: Unesp, 1998, pp. 15-36. . Introdução. In: GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 1. Rio de Janeiro: 702

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INSTITUIÇÕES, INTELECTUAIS E CIÊNCIA: MEDIDAS PARA RETIRAR DO ‘ATRASO’ E ‘ROTINA’ A PRODUÇÃO AÇUCAREIRA EM MEADOS DO SÉCULO XIX NO BRASIL Vinicius Santos da Silva1 A produção de açúcar corresponde em dos mais antigos gêneros da agricultura, na história econômica do Brasil, sendo um dos pilares do desenvolvimento financeiro deste país, da colônia à metade do governo imperial. Porém, em detrimento da concorrência do açúcar de cana antilhano, do açúcar de beterraba europeu, e a ‘rotina’ e ‘atraso’ na produção açucareira do Brasil, houve uma queda na comercialização do açúcar no mercado internacional durante o século XIX. Este tema foi objeto de discussão por pensadores ligados a Instituições, como Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional (SAIN), o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (IIFA), o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas (MACOP), Imperial Escola Agrícola da Bahia (IEAB), que buscavam alternativas, subsidiadas pela relação ciência e técnica, a fim de soerguer a produção açucareira. Assim, compreendendo a importância concedida a prática científica, enquanto possibilidade para inscrever a produção do açúcar brasileiro na lógica comercial e industrial, que a presente comunicação, a partir dos aportes teóricos e metodológicos de Gramsci, sobre intelectual e Estado, objetiva realizar uma análise crítica, sobre os aperfeiçoamentos da lavoura de cana e a fabricação do açúcar dialogadas entre Estado e intelectuais e apresentadas por estes em livros, relatórios e artigos, a exemplo, da “Monographia da Canna D’Assucar”, publicado em 1862, de Frederico Leopoldo Cezar Burlamaqui, “Relatório Sobre a Pretendida Enxertia da Canna de Assucar” publicado em 1876, pelo Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, “Catecismo da Agricultura Prática” publicado em 1884, de Frederico Maurício Draenert, “Assucar de Canna. Sua Cultura”, tradução do alemão para o português por Frederico Maurício Draenert, e em alguns periódicos como “O Auxiliador da Indústria Nacional” e o “Jornal do Agricultor”.

Introdução

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Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). [email protected]

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A cana de açúcar, Saccharum officinarum, é uma gramínea que possivelmente tenha sido originária, ou da região onde se encontra a Papua Nova Guiné, na zona tropical do Oceano Pacífico, há mais de 7 mil anos2, ou das baixadas de Bengala ou no sudeste asiático3. Em todo o caso, provavelmente a sua disseminação tenha ocorrido inicialmente a partir da Arábia e daí se alastrou, por meio dos mercadores desta região, para a bacia do mediterrâneo4, onde começou a entrar numa lógica de comercialização mais efervescente a partir do século X. De acordo com Stuart Schwartz, no século XII, já haviam importantes zonas produtoras de cana de açúcar na região do mediterrâneo, como Palestina, Sicília, Chipre, Creta, e norte da África5. E no calor do século XV, com a dinâmica das expansões marítimas, condicionadas à localização de novas terras para o processo de colonização e a identificação de outros gêneros comerciais para serem negociados nas cidades europeias, que a produção de açúcar teve uma ampliação no seu volume de fabricação e ganhou um alcance social para o seu consumo6. Importante frisar ainda que, em relação aquele contexto, Portugal e Espanha ao se lançarem no empreendimento para a implantação da lavoura canavieira e a consequente produção de açúcar em suas possessões coloniais, estavam se inserindo num ramo comercial que já vinha em desenvolvimento desde século XII, no mediterrâneo. Inclusive, “portugueses e espanhóis dependiam do Mediterrâneo Oriental não só com relação aos modelos técnicos e organizacionais, mas também ao capital financeiro e a experiência comercial” (SCHWARTZ, 1988, p.22), para implementarem e montarem sua produção açucareira.

Um exemplo desta afirmação, analisando preambularmente o caso de Portugal, enquanto país que colonizou e implantou a indústria açucareira no Brasil a partir de meados do século XVI, começou estabelecendo plantios da cana em suas possessões na Ilha Madeira entre os anos de 1430, na Ilha de São Tomé no Equador e nas Ilhas de Cabo Verde ambas em início do século

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PÁDUA, José Augusto. O amargo avanço da doçura. Revista de História da Biblioteca Nacional. RJ, ano 8, nº. 94, 2013. 3 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, (1550-1835). Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 4 (PÁDUA, 2013 / SCHWARTZ, 1988). 5 (SCHWARTZ, 1988). 6 (SCHWARTZ, 1988, p. 10).

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XV (1520)7. Sobre este aspecto Frederico Leopoldo Burlamaqui8 considera que quando da identificação da Ilha da Madeira, pelo infante D. Henrique, este procurou logo estabelecer a cultura da cana e a fabricação do açúcar nesta região, para tanto, contou com a contratação de mestres na arte de fazer açúcar e no estabelecimento de aparelhos ambos oriundos da Sicília9, região experiente na fabricação do açúcar naquele momento. A Espanha em situação similar a Portugal introduziu também a cultura canavieira em suas possessões nas Ilhas Canárias e na própria Espanha, onde a cana de açúcar, “naturalizou-se nos reinos de Andaluzia, Valença, Granada, Murcia [...]10. Desde então, a cultura da cana e o fabrico do açúcar foi sendo estabelecido em diversos pontos continentais entre o Oceano Atlântico em possessões coloniais de países, como Portugal, Espanha, Inglaterra e França, a exemplo, da Jamaica, Barbada, Ilha da Madeira, São Domingos e Brasil. No entanto, das inúmeras possessões coloniais europeias, localizadas entre o Oceano Atlântico, que tinham como base econômica a lavoura canavieira e a produção de açúcar, o Brasil tornou-se, a partir de finais do século XVI, o expoente sendo, inclusive, responsável pela exportação e consequente monopólio no abastecimento do açúcar junto a Europa11. Ainda sobre este aspecto o artigo “História do Açúcar” publicado no ano de 1839, 5ª edição do periódico o Auxiliador relata que: O Brasil em fim, debaixo do domínio português, tornou-se o centro principal da produção, até ao meado do décimo sétimo século esteve de posse do abastecimento, por intermédio de Lisboa, de quase todos os mercados da Europa. Continuou a tomar parte nele durante todo o período do desenvolvimento das colônias rivais, e só foi pelos anos de 1720 á 1750 que outras nações puderam prover-se em outra parte. O Brasil, no meio de suas diversas fortunas, ficou sempre um dos pontos mais importante da produção atual (Auxiliador, 1839, p. 177).

Assim sendo, a produção açucareira pode ser classificada como a primeira commodiy12 do território brasileiro e que “por quase dois séculos regeu a história econômica, social e política

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(Revista o Auxiliador, 1839, p. 174) Francisco Leopoldo Burlamaqui foi sócio honorário da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional. 9 (BURLAMAQUI, 1862, p. 5) 10 (BURLAMAQUI, 1862, p. 5). 11 (BURLAMAQUI, 1862, p. 17). 12 Commodity - Pronuncia-se: /comóditi/. Economia. Tudo aquilo que, se apresentando em seu estado bruto (mineral, vegetal etc.), pode ser produzido em larga escala; geralmente se destina ao comércio exterior e seu preço deve ser baseado na relação entre oferta e procura. Os produtos como: café, açúcar, soja, trigo, petróleo, ouro etc., cujo preço pode ser designado pela oferta e procura (internacional) http://www.dicio.com.br 8

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do Brasil” (SCHWARTZ, 2013). Status este que o Brasil ostentou imponente pelo menos entre os séculos XVI até meados do século XVIII, quando começou a sofrer com o aumento da produção e concorrência do açúcar de cana produzido nas Antilhas. Ainda sobre o aumento da produção na região das Antilhas e adjacências a documentação compulsada13 demonstra que no ano de 1760 as colônias de Cuba e Porto Rico expandiram a produção de açúcar e que nos anos de 1767 São Domingos já exportava para o mercado internacional 144 milhões de libras de açúcar mascavo e branco. Para além destas possessões, nos anos de 1775 a Martinica, Bourbon, Guadalupe e Cayenna elevaram a suas produções a 44 milhões de libras e as possessões coloniais francesas no ano de 1789 já exportavam o valor de 240 milhões de libras do açúcar branco e mascavo14. Para aumentar ainda mais a desvalorização do açúcar brasileiro, durante finais do século XVIII e início do século XIX, este produto também começou a sofrer com a concorrência da produção do açúcar de beterraba fabricado em países da Europa como Alemanha, França, Bélgica15. Sobre a relação açúcar de cana e o açúcar de beterraba tratando a respeito dos aspectos da concorrência, no âmbito das transações comerciais, Pedro Pereira de Andrade, escreveu no livro “Pequeno Tratado da Fabricação do Assucar” oferecido ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, Luiz Pedreira do Couto Ferraz, o qual deu a ordem de imprimir e publicar no ano de 1844, sobre as etapas da fabricação do açúcar de cana, fazendo considerações sobre a necessidade de aprimoramento, por meio dos conhecimentos técnicos e científicos. Para além desta questão, Pedro de Andrade ainda realizou uma comparação entre a fabricação do açúcar de cana e o açúcar de beterraba apontando para a necessidade urgente da primeira melhorar sua fabricação tendo como parâmetro os meios utilizados pela fabricação de açúcar de beterraba. Em uma das passagens do livro Pedro de Andrade alentar os senhores de engenhos para a seguinte questão:

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História do Assucar, Revista o Auxiliador, 5ª edição, 1839. BURLAMAQUI, Frederico L. C. Monographia da canna d’assucar. Quarto Manual Agrícola Publicado por ordem da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Rio de Janeiro: Typ. De N. L. Vianna e Filhos, 1862. 14 (BURLAMAQUI, 1862). 15 (BURLAMAQUI, 1862).

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Quando pensamos que a beterraba, que se acha em condições menos favoráveis do que a cana, e que contém quase a metade do açúcar encerrado nesta, dá (pelos melhoramentos introduzidos na Europa nesta indústria) mais açúcar (quase o dobro) do que a cana, estamos certos que tudo o que concorrer para o aumento final desta indústria entre nós, merecerá a pena de ser tido em consideração (ANDRADE, 1844, p.3).

A indústria açucareira era uma produção complexa e que envolvia o entrelaçamento de vários fatores tanto de ordem econômica e política, como de conhecimentos técnicos e trabalhistas. Em relação aos aspectos técnicos pode-se apontar na produção açucareira duas fases distintas, porém interligadas. Primeira fase a necessidade do conhecimento sobre o manejo para o plantio e colheita da cana, destacando a necessidade do melhoramento do solo e da seleção das melhores espécies para o plantio. A segunda fase constitui da necessidade de se conhecer minuciosamente as etapas do processo de fabricação do açúcar, ou seja, a defecação ou clarificação, evaporação, concentração e purgação, para que se tenha ao final de todo o processo um açúcar de muito boa qualidade16. Ainda em relação aos conhecimentos técnicos necessitava-se também da compreensão a respeito da acomodação e armazenamento para o transporte do produto desde a fazenda até o seu destino final com as longas viagens ultramarinas em direção a Europa. Em relação aos fatores econômicos, políticos e trabalhistas a produção açucareira envolvia disputas entre os latifundiários da cana e os latifundiários e pequenos proprietários de outras culturas agrícolas, como a mandioca e o fumo, tendo em meio a este conflito territorial os criadores de gado, que necessitavam também de amplos espaços territoriais para os seus rebanhos17. Para além ainda deste aspecto, os latifúndios canavieiros necessitavam de um elevado quantitativo de mão-de-obra, escrava, que começou a ter o seu preço elevado em detrimento das políticas de coerção do tráfico de escravos implementada pela Inglaterra em início do século XIX18, agravando ainda mais a situação em que se encontrava a produção açucareira.

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ANDRADE, Pedro Pereira de. Pequeno tratado da fabricação do assucar. Offerecido ao Exmº. Sr. Conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, Ministro e Secretário D’Estado dos Negócios do Império. RJ – Typ do Diário de A & L Navarro, rua do Rosário, nº 84, 1844. 17 BARICKMAN, Bert Jude. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, 17801860. Tradução de Maria Luiza Borges. RJ: Civilização Brasileira, 2003. 18 TOMICH, Dale; ZEUSKE, Michael. Introduction, the Second Slavery: Mass Slavery, World-Economy, and Comparative Microhistories. Review (Fernand Braudel Center), v. 31, n. 2, p. 91-100, 2008.

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Este foi o sistema que se manteve atuante no Brasil pelo menos até finais do século XIX, quando o fim da escravidão em 1888. Um sistema pautado no latifúndio, na monocultura, na utilização de mão de obra escrava, sofrendo com a concorrência dos açucares de cana das Antilhas e beterraba da Europa, com problemas internos à produção como o esgotamento dos solos, necessidade de melhorar e aprimorar todas as etapas da produção açucareira (desde a lavoura à até os procedimentos de transformação do caldo em açúcar nos engenhos), com insuficiência de recursos financeiros próprios para realizar tais ações, necessitando para isso de apoio e acordos com o Governo Imperial e com a Presidência das Províncias das regiões produtoras buscando aprimorar e soerguer a produção açucareira19. No entanto, é importante considerar que, mesmo vivenciando esta situação o açúcar brasileiro ainda permanecia entre os produtos mais exportados. De acordo com o Relatório dos Trabalhos do Conselho Interino de Governo (1823 – 1889)20, o açúcar era o produto, em termos de quantidade, mais exportando pela Bahia, pelo menos utilizando como referencial as décadas de 1851 à 1855. Contudo, esta economia entrou em crise a partir em meados do século XIX e algumas perguntas emergem desta situação das quais pode-se levantar as seguintes: a chamada crise da produção açucareira no Brasil, está relacionada a uma queda brusca na fabricação do açúcar por razões que os senhores de engenhos não queriam mais fabricar o produto?; a crise da produção açucareira foi ocasionada pela não exportação do produto em detrimento de ser considerado de má qualidade em relação aos outros açucares no mercado internacional?; Considerando ainda, como tempo de investigação histórica as décadas de meados do século XIX, quais foram os fatores reais que levaram ao açúcar brasileiro tornar-se desvalorizado no mercado internacional?, em segundo plano, qual foi o comportamento do Governo Imperial, as Presidências das Províncias produtoras, as Instituições implementadas e os intelectuais engajados nestas sociedades21 frente a situação vivenciada pela produção açucareira?; as medidas e ações tomadas pelos agentes envolvidos na produção açucareira a fim de soergue-la 19

OLIVEIRA, Waldir Freitas. A crise da economia açucareira do Recôncavo na segunda metade do século XIX. Salvador: FCJA; UFBA-Centro de Estudos Baianos, 1999. 20 Para mais informações sobre estes quantitativos vide o likn: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/relatorio-trabalhosconselho-interino-governo/130605 21 GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. RJ: Civilização Brasileira, 1982.

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e torna-la novamente competitiva e valorativa junto ao mercado internacional estavam inscritas no contexto dos aprimoramentos elaborados pelas possessões concorrentes ao Brasil?.

Instituições, Periódicos e Intelectuais: medidas e ações para soerguer a produção açucareira do Brasil A respeito da situação que começou a adentrar a produção açucareira no Brasil com a queda do valor deste produto em relação aos fabricados nas Antilhas, José Rebello, sócio efetivo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, em sessão desta mesma entidade em 24 de maio de 1832 declarou e alertou para a seguinte questão: O açúcar mais superior do Brasil valia então vinte e seis shillings, quando o da mesma quantidade da Havana valia trinta e quatro. Isto é, cada cento e doze libras do açúcar do Brasil valia menos do que a mesma porção de açúcar da Havana mil duzentos e oitenta reis; demonstrando assim evidentemente, que a indústria dos senhores de engenho havaneiros está comparada com a dos brasileiros, na razão de trinta por cento de adiantamento (REBELLO, 1833, p. 1-2).

A situação sinalizada por José Rabello em sua fala na reunião da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), dentre outros discursos e artigos publicados em periódicos como o Auxiliador da SAIN, aponta para um comportamento que se tornou recorrente para os agentes envolvidos com a produção açucareira no Brasil. Conforme analisou Waldir Freitas Oliveira22, a respeito da crise açucareira na Bahia a partir de meados do século XIX, relata que no adentrar do século XIX as discussões sobre a necessidade de modernizar esta produção tornaram-se temas de discussões nas Províncias produtoras deste gênero agrícola relatando que: Desde a década dos anos 30, perdera o açúcar o primeiro lugar entre os produtos de exportação do império, cedendo-o ao café, cultivado nas Províncias do Sul. Seus preços, no mercado internacional, decresciam continuamente, inquietando seus produtores que tinham, àquele tempo, de enfrentar a concorrência que lhes faziam os da ilha de Cuba, onde haviam sido instalados aparelhos industriais de maior eficiência produtiva, e os dos países europeus, onde se desenvolvia, rapidamente, a produção do açúcar de beterraba (OLIVEIRA, 1999, p. 25).

De ante dos problemas que acarretaram sobre a produção açucareira dois fatores são apontados como integrantes para a situação em que se encontrava aquela economia, ou seja, a ideia de ‘rotina’ e o ‘atraso’23. Assim, a ‘rotina’ nos modos em que eram realizados tanto o

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OLIVEIRA, Waldir Freitas. A crise da economia açucareira do Recôncavo na segunda metade do século XIX. Salvador: FCJA; UFBA-Centro de Estudos Baianos, 1999. 23 (ANDRADE, 1844).

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cultivo da cana e o fabrico do açúcar, como o ‘atraso’, em relação aos conhecimentos técnicocientífico já utilizados pelas zonas produtoras de açúcar de cana, por exemplo, nas Antilhas e no açúcar de beterraba, produzido na Europa. No entanto, em meio a este contexto de crise da produção açucareira Instituições, como a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional (SAIN), o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (IIFA) e intelectuais engajados com estas sociedades, a exemplo de Frederico Leopoldo Burlamaqui e Frederico Maurício Draenert refletiram formas subsidiadas pela relação ciência e técnica a fim de soerguer aquela economia. Compreende-se ainda que, as ações, propostas e medidas realizadas por aquelas Instituições e pelos intelectuais envolvidos nestas sociedades se inscrevem num discurso de modernizar24 a produção. Ou seja, por meio da reorganização das relações entre mão de obra e trabalho, com a inclusão dos procedimentos industriais, tecnológicos e científicos para o aprimoramento e melhoramento da produção agrícola, atitudes estas adotadas por algumas zonas estrangeiras produtoras de açúcar de cana, como por exemplo, a Jamaica25 e também adotadas pelos produtores do açúcar de beterraba em países da Europa26. Assim, verifica-se na documentação compulsada que medidas, ações e acordos estabelecidos entre o Governo Imperial, Presidência de Províncias produtoras, Instituições civil e os próprios senhores de engenho a fim de solucionar o problema. Para além destas, identificase também que materiais teóricos como manuais de agricultura e artigos científicos foram postos em circulação em forma de livros e nos periódicos em busca de soerguer esta economia. Deste modo, em detrimento da importância concedida à prática científica e da técnica, enquanto possibilidade para inscrever a produção do açúcar brasileiro na lógica comercial e industrial, realizaremos a apresentação de algumas das ações tomadas pela SAIN e pelo IIFA, envolvendo os intelectuais engajados com aquelas instituições no intuito de melhorar e aprimorar a produção açucareira no Brasil.

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MEIRA, Roberta Barros. Banguês, Engenhos Centrais e Usinas: o desenvolvimento da economia açucareira em São Paulo e a sua correlação com as políticas estatais (1875-1941). Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Econômica do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), 2007. 25 WRAY, Leonardo. O lavrador prático da cana-de-açúcar. Salvador: Typ. de Camillo de Lellis Masson & C., 1858. 26 (ANDRADE, 1844).

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A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional foi uma instituição criada em 1831 e que tinha como objetivo explorar a natureza e colocá-la a serviço do progresso e da transformação do país e a partir de 1860, passou a funcionar como órgão consultivo do Estado, concedendo licenças e prêmios para aqueles que se dispusessem a desenvolver novas espécies e máquinas agrícolas27 (Barreto, 2009). O quadro de sócios da SAIN era variado e por conta desta característica não era denominada enquanto uma sociedade de classe. [...] seu quadro de associados era composto, em sua grande maioria, por políticos e cientistas que decidiam as atividades a serem realizadas pelas Comissões de estudo da Sociedade. A diretoria, de um modo geral, era ocupada por políticos, ao passo que demais cargos como os secretários, redatores eram professores ou especialistas em Ciências Naturais, que se dedicava ao estudo dos problemas econômicos e a proposição de soluções, tanto no campo prático, como na da formulação de ações do Estado para esse fim (BARRETO, 2008, p.3).

A fim de divulgar e popularizar as pesquisas relacionadas aos conhecimentos técnicocientífico a SAIN lançou o periódico “O Auxiliador” que começou a ser editada entre os anos de 1833 à 1892 apresentando em suas edições discussões: [...] permaneceu noticiando mensalmente, até 1892, memórias, tabelas, artigos estrangeiros e nacionais, atas, relatórios, pareceres que tratavam sobre os mais variados assuntos: desde o emprego de máquinas na agricultura e da construção de estradas de ferro, perpassando pelas memórias sobre o café, a fabricação de produtos de origem animal e vegetal, a produção do açúcar e da farinha da mandioca, navegação a vapor, além das traduções de artigos, até a resolução de problemas de caráter doméstico como praga de ratos ou conservação de livros (BARRETO, 2008, p 4).

Outra Instituição que também foi criada a fim de pensar a respeito da agricultura do país foi o Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (IIFA), instituído pelo Decreto nº 2.607 de 30 de junho de 1860, criado no mesmo ano do Ministério da Agricultura, do Comércio e Obras Públicas implementado a partir do decreto nº 1.067 28 de julho de 1860 (MACOP)28. O IIFA ainda implementou um espaço de divulgação de conhecimentos sobre agricultura que foi a Revista Agrícola esta esteve em circulação sendo publicada no período de 1869 a 1891, apresentando textos que tratavam sobre os conhecimentos técnico-científicos que visavam o desenvolvimento a lavoura nacional.

27 28

(BARRETO, 2009). (CAPILÉ, 2010).

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Ambas as Instituições contribuíram para os conhecimentos técnico-científico da agricultura do Brasil, sendo por meio de comissões de investigações científica, seja por meio da divulgação em seus periódicos de trabalhos e artigos que tratavam sobre a agricultura do País, ou que abordassem como as práticas agrícolas estavam sendo realizadas em outros países. Em meio a este contexto intelectuais entretidos com ambas as instituições realizaram ações em busca de aprimorar e melhorar a agricultura do país utilizando-se da relação ciência e técnica. Frederico Leopoldo Cesar Burlamaqui (1803-1866), era doutor em matemática, foi Diretor do Museu Nacional pelo decreto imperial 15 de junho 1847 entre os anos 1847 à 1867, foi secretário honorário perpetuo Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional e presidente da seção de agricultura desta mesma instituição, foi redator do periódico o Auxiliador29, também ocupou o cargo de secretário do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura entre os anos de 1860 à 186330. Frederico Burlamaqui escreveu e publicou diversos textos destinados para as práticas de agricultura31, dos quais o Manual da cana de açúcar, onde Burlamaqui faz uma reflexão aprofundada sobre a lavoura canavieira como também a respeito do fabrico do açúcar, destacando os meios a fim de melhorar esta produção. A “Monografia da Canna D’Assucar. Quarto Manual agrícola” foi escrito por Frederico Burlamaqui e publicado no ano de 1862, sob a ordem da Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional. Importante considerar que este documento foi publicado em momento em que a produção de açúcar enfrentava sérios problemas, como declino de produtividade e a acirrada concorrência do açúcar das Antilhas. Conforme Patrícia Barreto32 Frederico Burlamaqui “lança uma pesquisa fartíssima sobre as possibilidades de renovação do processo mecânico de produção e a introdução de produtos químicos no processo de fermentação do caldo

29

(BARRETO, 2009). (CAPILÉ, 2010). 31 “Princípios gerais de metalurgia; resumo da história da arte militar; ensaio analítico sobre a escravidão; Ideias sobre a colonização; Manual dos agentes fertilizadores; Manual de maquinas, instrumentos e motores agrícolas; Monografia do cafezeiro; Monografia da cana de açúcar; Monografia do algodoeiro; Manual da cultura do arroz; Manual da apicultura; Manual da cultura, colheita e preparação do tabaco; Arte de fabricar o vinho; Introdução dos dromedários no Brasil; Ensaio sobre a regeneração das raças cavalares; Lições de astronomia; Exame dos raios solares; Hagiologia, ou lenda dourada dos artistas; Dicionário de tecnologia; Catecismo de agricultura” (Elogio Histórico, 1866, p. 17-18). 32 BARRETO, Patrícia Regina Correa. Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional: o templo carioca de palas Atenas. Tese Doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 30

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e branqueamento da cana para obtenção de um produto de melhor

qualidade com baixos

custos (BARRETO, 2009, p. 140). No livro Frederico Burlamaqui vem discutindo sobre a história da cana de açúcar, abordando sua possível origem e onde ela foi introduzida a fim da produção do açúcar; discute sobre as variedades de cana de açúcar pontuando sobre as qualidades e insuficiências de cada; aborda sobre as etapas de crescimento da cana e os terrenos propícios para o cultivo; chama atenção para os aspectos relacionados a adubação dos solos para o cultivo da cana; discute sobre a produção açucareira em relação ao açúcar de beterraba tratando sobre as diferenciações destes produtos; relata as técnicas de plantio da cana em outros países; e faz uma longa discussão sobre os instrumentos, ferramentas, maquinas a vácuo, filtros de purificação do caldo, planejamento para a construção do engenho para a produção açucareira; trata também sobre as etapas de fabricação do açúcar33. O livro de Burlamaqui pode ser considerado como um manual para ser aplicado tanto na lavoura canavieira como na fabricação do açúcar. Ou seja, um referencial bibliográfico que apresentava aos lavradores da cana e senhores de engenho os meios que estavam sendo aplicados na produção açucareira tanto de cana como de beterraba em outros países e que influenciaram no aumento e melhoramento da qualidade em relação ao produzido no Brasil. Outro agente entretido com as questões a respeito da lavoura canavieira e engajado com a SAIN e com o IIFA, escrevendo textos científicos para os periódicos de ambas as Instituições foi Frederico Maurício Draenert. Este intelectual nasceu em 02 de dezembro de 1838, na Alemanha, e ainda neste país diplomou-se em ciências físicas e naturais. Encaminhou-se para o Brasil em 1865 a fim de estudar a moléstia da cana de açúcar que acometia as lavouras canavieiras na Bahia, desde dos anos de 1860, e que causava sérios problemas tanto a planta, como também para a fabricação do açúcar. Frederico Draenert no Brasil exerceu as seguintes atribuições, foi professor da Imperial Escola Agrícola da Bahia, depois foi nomeado consultor técnico do Ministério da Agricultura,

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BURLAMAQUE, Frederico Leopoldo César. Monographia da canna d’assucar. Quarto Manual Agrícola Publicado por ordem da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Rio de Janeiro: Typ. De N. L. Vianna e Filhos, 1862.

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ocupou o cargo de diretor e professor do Instituto Zootécnico de Uberaba. Para além destas funções administrativas Draenert também escreveu livros e inúmeros artigos para periódicos como Auxiliador da SAIN e Revista Agrícola do IIFA34. Sobre o livro “Catecismo da Agricultura Prática”35, Frederico Draenert vem abordando sobre o que é a agricultura, explicando conceitualmente e apontando a sua importância para o desenvolvimento econômico do país, discute sobre os tipos de lavouras pensando no emprego manual e na introdução e utilização de instrumentos, aparelhos e máquinas, relata o que seja a estrumação dos solos destacando a importância para o enriquecimento dos nutrientes. Draenert ainda naquele livro retrata sobre a relação agricultura e a criação de animais, abordando sobre o consorcio que podem ser estabelecidos entre ambas. No livro Draenert apresenta alguns instrumentos e máquinas que deveriam ser empregadas nos trabalhos agrícolas destacando suas funções e forma de manuseio a fim de aprimorar e melhorar a agricultura. Dos quais encontram-se os seguintes instrumentos denominados de charruas:

Fonte: DRAENERT, Frederico Maurício. Catecismo da agricultura prática. BA: Imprensa Econômica, 1882, p. 8.

Frederico Draenert vai apresentando as charruas, explicando as partes que compõem o instrumento, como também orientando como devem ser manuseadas e quais ações que cada charrua realizam no solo. Vejamos por exemplo da charrua ou arado de Read, na imagem abaixo:

34 35

PINTO, Militino. Traços biográficos do Dr. Frederico Maurício Draenert. Almanaque Uberabense, 1904. DRAENERT, Frederico Maurício. Catecismo da agricultura prática. Ba: Imprensa Econômica, 1882.

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Fonte: DRAENERT, Frederico Maurício. Catecismo da agricultura prática. BA: Imprensa Econômica, 1882, p. 14.

Frederico Draenert explica como utilizar este instrumento relatando a importância da utilização deste no manuseio com o solo, afirmando que “Esse arado afrouxa o subsolo, ordinariamente sem trazê-lo à superfície, e o torna mais permeável para o ar e a umidade, pelo que as raízes podem penetrar mais profundamente, dando-se assim mais espaço para procurarem o seu alimento” (DRAENERT, 1882, p. 14).

Considerações Finais: Compreendemos que o decréscimo do preço do açúcar brasileiro, no mercado internacional se relaciona, para além da concorrência do açúcar de cana proveniente das Antilhas ou do açúcar de beterraba, oriundo da Europa, com os elevados custos para sua produção associado ao processo de industrialização, do qual a agricultura também sofreu fortes ações em início do século XIX. Ou seja, a implementação de máquinas no plantio e na fabricação do açúcar, promoveu uma regulação e reorganização da mão de obra escrava e ocasionou uma inversão na relação custo e lucro em outras zonas cultivadoras de cana e produtoras de açúcar. No entanto, estas foram ações que não foram adotadas imediatamente pelos latifundiários da cana e os senhores de engenhos de açúcar, fator este que também contribuído para a diminuição dos preços na comercialização do açúcar oriundo do Brasil no cenário internacional. Em relação a esta questão, interpreta-se também que a SAIN, o IIFA e os 718

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intelectuais engajados a estas sociedades, utilizando-se dos periódicos destas instituições apresentaram propostas subsidiadas pela relação ciência e técnica a fim de alavancar e soerguer a produção açucareira no Brasil. Como isso, interpretamos também que para além das resistências dos latifundiários e fabricantes de açúcar para adentrarem no sistema ‘moderno’ de produção açucareira, prática esta já adotada pelas Antilhas e sul dos Estados Unidos, compreendemos um dos entraves foi justamente as condições financeiras de alguns dos senhores de engenho para realizarem a inclusão de suas produções nesta lógica internacional de cultivo da cana e fabricação do açúcar.

Referenciais Bibliográficos e Fontes Consultadas ANDRADE, Pedro Pereira de. Pequeno tratado da fabricação do assucar. Offerecido ao Exmº. Sr. Conselheiro Luiz Pedreira do Couto Ferraz, Ministro e Secretário D’Estado dos Negócios do Império. RJ – Typ do Diário de A & L Navarro, rua do Rosário, nº 84, 1844. BARICKMAN, Bert Jude. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no recôncavo, 1780-1860. Tradução de Maria Luiza Borges. RJ: Civilização Brasileira, 2003. BARRETO, Patrícia Regina Correa. Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional: o templo carioca de palas Atenas. Tese Doutorado em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. BARRETO, Patrícia Regina Correa. Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional: oficina de homens. XIII Encontro de História Anpuh-Rio. Rio de Janeiro, 2008. BURLAMAQUE, Frederico Leopoldo César. Monographia da canna d’assucar. Quarto Manual Agrícola Publicado por ordem da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Rio de Janeiro: Typ. De N. L. Vianna e Filhos, 1862. CAPILÉ, Bruno. A mais santa das causas: a Revista Agrícola do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura (1869-1891). Dissertação de Mestrado em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia, UFRJ, Instituto de Química, 2010. DRAENERT, Frederico Maurício. Catecismo da agricultura prática. Ba: Imprensa Econômica, 1882. GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. RJ: Civilização Brasileira, 1982.

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MEIRA, Roberta Barros. Banguês, Engenhos Centrais e Usinas: o desenvolvimento da economia açucareira em São Paulo e a sua correlação com as políticas estatais (1875-1941). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Econômica do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), 2007. MOREIRA, Nicolau Joaquim. Elogio Histórico Pronunciado perante S. M. O Imperador em sessão da Assembleia Geral da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, por ocasião do ato solene da inauguração do busto do Conselheiro Frederico Leopoldo Cezar Burlamaqui. RJ – TYP. Indústria Nacional de Cotrim & Campos, rua D’Ajuda, nº 106, 1866. OLIVEIRA, Waldir Freitas. A crise da economia açucareira do Recôncavo na segunda metade do século XIX. Salvador: FCJA; UFBA-Centro de Estudos Baianos, 1999. PÁDUA, José Augusto. O amargo avanço da doçura. Revista de História da Biblioteca Nacional. RJ, ano 8, nº. 94, 2013. PINTO, Militino. Traços biográficos do Dr. Frederico Maurício Draenert. Almanaque Uberabense, 1904. SCHWARTZ, Stuart B. Como se cria um país. Revista de História da Biblioteca Nacional. RJ, ano 8, nº 94, 2013. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial, (1550-1835). Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. TOMICH, Dale; ZEUSKE, Michael. Introduction, the Second Slavery: Mass Slavery, WorldEconomy, and Comparative Microhistories. Review (Fernand Braudel Center), v. 31, n. 2, p. 91-100, 2008. WRAY, Leonardo. O lavrador prático da cana-de-açúcar. Salvador: Typ. de Camillo de Lellis Masson & C., 1858.

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MESA 13: ELITE ORGÂNICA E APARELHOS PRIVADOS DE HEGEMONIA NO BRASIL (1963-1988) Coordenação: Rejane Carolina Hoeveler (PPGH/UFF) RESUMO: Entendidos enquanto lócus de organização de interesses de classe, de formulação de ação política e difusão social de ideologia, os aparelhos de hegemonia seriam, na obra de Gramsci, intimamente conectados com o Estado integral ou ampliado. A questão dos intelectuais e suas relações com as classes sociais, que ocupou bastante espaço em seus quaderni, desembocou na instigante formulação do “intelectual orgânico” como aquele que organiza a classe social. Investigando as diversas articulações de associações empresariais no Brasil, o cientista político René Dreifuss cunhou o conceito de “elite orgânica” para designar o conjunto articulado de agentes político-ideológicos especializados na implementação da ação política de classe, estabelecendo uma vasta agenda de pesquisa. As elites orgânicas congregadas em torno do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), entidade que, como mostrou Dreifuss, organizava os interesses de classe do bloco multinacional-associado, conheceram um salto em sua transnacionalização através da Aliança para o Progresso (1963). As aproximações facilitadas por este programa, como discutirá Martina Spohr, impulsionaram a articulação de uma ação política classista que ultrapassou fronteiras. Após a “conquista do Estado”, a mesma elite orgânica reunida no IPES ocupou, no governo de Humberto Castello Branco (1964-1967), não apenas os principais postos ministeriais, como também as empresas estatais federais de diversos ramos (financeiro, siderúrgico, elétrico, petrolífero e agricultura), como mostrará Elaine Bortone. Ao longo da ditadura os espaços de organização das frações de classe não deixaram de existir, como é o caso patente do IBRAM (Instituto Brasileiro de Mineração), criado em 1976, e de sua intensa atuação durante a Assembléia Nacional Constituinte (19871988), pesquisada por Ana Carolina Reginatto. Algumas considerações sobre o conceito gramsciano original de aparelho privado de hegemonia ficarão a cargo de Rejane Hoeveler.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO GRAMSCIANO DE APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA Rejane Carolina Hoeveler1 RESUMO: Christine Buci-Glucksman, em seu clássico estudo de 1975, Gramsci e o Estado, mostra como é precisamente no Primo Quaderni que apareceria pela primeira vez o conceito de aparelho de hegemonia, utilizado basicamente para se referir à “constituição da classe”. Como é relativamente bem conhecido na literatura especializada, Antonio Gramsci, até 1926 (inclusive em A questão meridional) utilizou o conceito de hegemonia para designar uma estratégia revolucionária do proletariado (“hegemonia do proletariado”); e somente no Caderno I passa a referir-se a hegemonia como forma de dominação das classes dominantes, sobretudo. Para a autora, o aparelho de hegemonia é “um conjunto complexo de instituições, ideologias, práticas a agentes (entre os quais os ‘intelectuais’)” que “só encontra sua unificação através da análise da expansão de uma classe”. É num segundo momento, ou numa segunda mutação conceitual, posterior ao Caderno I, que “aparelho de hegemonia” ultrapassa a designação de constituição de classe para a problemática do Estado, já entendido de forma “integral” ou ampliada. Em outras palavras, agora, o conjunto dos aparelhos privados através dos quais uma classe ou um bloco de classes luta pela hegemonia e pela direção político-moral, não pode ser entendido de forma descolada ou oposta à sociedade política (os aparelhos militares e burocráticos de dominação e de coerção). Embora o conceito de aparelho de hegemonia apareça, em algumas passagens, igualado a “estrutura ideológica da classe”, Gramsci não reduzia seu papel a uma mera difusão de ideologia descolada da “base”, da mesma forma como seu conceito de hegemonia ultrapassava o de ideologia (fosse como “falsa consciência” ou conjunto de idéias). O propósito deste trabalho é retomar os sentidos originais desde conceito em Gramsci de modo a entender a expansão de aparelhos de hegemonia de caráter privado no mundo capitalista contemporâneo. O conceito de aparelho hegemônico ou aparelho privado de hegemonia parece hoje ser um dos mais fecundos conceitos gramscianos como instrumento heurístico para investigação 1

Mestre e Doutoranda no Programa de Pós-gradução da UFF, bolsista CNPq. E-mail: [email protected].

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histórica. A atuação de diversos tipos de entidades, associações e instituições, ligadas seja aos dominantes seja aos subalternos, é cada vez mais objeto de investigação por pesquisadores nas ciências sociais brasileiras, em especial historiadores, que se utilizam do arcabouço teórico marxista e gramsciano. Nem sempre, no entanto, é realizada uma reflexão teórica mais aprofundada sobre o conceito. No Brasil, são incontornáveis os trabalhos das historiadoras Virgínia Fontes (2010) e Sônia Regina de Mendonça (2014), e do cientista político Alvaro Bianchi (2008), sendo ambos também orientadores de diversas pesquisas que se utilizam do conceito de aparelho privado de hegemonia (APH). O objetivo desta comunicação é, partindo das contribuições desses autores e de outros importantes intérpretes de Gramsci, como Christinne Buci-Glucksmann (1975), Gianni Francioni (1984), Guido Liguori (2007) e Peter Thomas (2009), a avançar na reflexão teórica sobre o que significam os APHs e desenvolver alguns apontamentos metodológicos que podem ser úteis para pesquisadores que utilizam este conceito. O apparato egemonico na lavra gramsciana De acordo com o verbete “Hegemonic Apparatus” do Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo (DHCM), verbete escrito por S. Bollinger e J. Koivisto, apparatus, em latim, significa formulação, preparação, decoração, equipamento litúrgico ou simplesmente “equipamento”. Ao longo do século XVIII, o sentido germânico do termo foi ampliado para a totalidade das pessoas e arranjos necessários para o cumprimento de alguma tarefa; mas era mais correntemente usado para designar “equipamento”, de onde surge a tendência a interpretar “aparato” ou “aparelho” no sentido de “máquina”, subestimando a dimensão ativa, sensorial, do termo. (HAUG et all: 2009, 301). Gramsci utiliza o termo apparato – cuja tradução corrente em língua portuguesa é “aparelho” – já desde seus escritos pré-carcerários, para se referir a diversas coisas, como “aparelho econômico”, “aparelho político”, “aparelho sindical”, “aparelho nacional de produção”, ou “aparelho militar-burocrático”. (DHCM: 2009, 301) Consultando o verbete “apparato egemonico”, escrito por Guido Liguori no Dizionario Gramsci, vemos que desde as primeiras notas dos Quaderni del Carcere em que usa o termo 723

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“hegemonia”, Gramsci faz referência ao termo “aparelho hegemônico” (LIGUORI & VOZA, 2009: 44-5). Segundo Liguori, trata-se de uma expressão não muito frequentemente usada nos cadernos, mas presente em vários deles, como nos cadernos 1,6,7, 10 e 13, escritos em datas diversas, incluindo dois de segunda escrita (Q 10, parte II, § 12 e Q 13, § 37). No caso do caderno 10, o termo não aparecia no respectivo texto A (Q 4, § 38). Como se sabe, as notas presentes nos cadernos carcerários de Gramsci são classificados em A, B e C de acordo com o critério de se foi reescrito ou não.2 Gramsci começa a elaborar seu conceito de hegemonia, novo em relação àquele utilizado nos escritos pré-carcerários, no final do caderno 1 (1929-1930), especialmente no § 44. Nesse mesmo Primo Quaderni, no § 47, intitulado Hegel e l'associazionismo, começa a tomar forma um novo conceito de Estado. “A doutrina de Hegel sobre os partidos e as associações como trama “privada” do Estado. Ela derivou historicamente das experiências políticas da Revolução Francesa e devia servir para dar um caráter mais concreto ao constitucionalismo. Governo com o consenso dos governados, mas com o consenso organizado, não genérico e vago tal como se afirma no momento das eleições: o Estado tem e pede o consenso, mas também “educa” este consenso através das associações políticas e sindicais, que, porém, são organismos privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente. Assim, em certo sentido, Hegel já supera o puro constitucionalismo e teoriza o Estado parlamentar com seu regime dos partidos. Sua concepção da associação não pode deixar de ser ainda vaga e primitiva, entre o político e o econômico, segundo a experiência histórica da época, que era muito restrita e dava um só exemplo acabado de organização, o “corporativo” (política enxertada na economia)”. (Q1, § 47, p.119) 3

No § 48 do mesmo Caderno 1, Gramsci trabalha sobre o conceito de hegemonia a partir da história política francesa, dando-lhe uma versão fundamental, que ganharia uma reescritura na famosa passagem do conhecido § 37 do Caderno 13 – um texto C, datado de 1932-1934: “O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública — jornais e associações —, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. (Q 13, §37, p.95. Grifo nosso).

Algumas linhas abaixo desse trecho, aparece novamente a expressão “aparelho hegemônico”:

2

3

As notas A são de primeira escrita, retomados em textos C; e as notas B são de escrita única. Para todas as citações de Gramsci, utilizaremos aqui a edição brasileira organizada por Carlos Nelson Coutinho.

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“no período do pós-guerra, o aparelho hegemônico se estilhaça e o exercício da hegemonia torna-se permanentemente difícil e aleatório.” (Q 13, §37, p.95). Segundo Liguori, o aparelho hegemônico aparece agora como um elemento essencial para o exercício da hegemonia: sua quebra corresponde à crise do último. O conceito de aparelho de hegemonia é um elo entre o conceito de hegemonia e a noção, ainda em formação àquela altura dos escritos de Gramsci, de “Estado integral”, oferecendo uma base material para o conceito gramsciano de hegemonia, não assimilável a uma concepção idealista, culturalista ou liberal.(LIGUORI & VOZA, p.45). O termo “aparelho hegemônico” aparece no Caderno 1, no §48, relacionado à opinião pública, mas não a uma vaga e volátil “batalha das idéias”, e sim a um estrutura precisa.4 A partir do Caderno 6, a idéia de “aparelho hegemônico” é coligada à articulação estatal propriamente dita. Organização das sociedades nacionais. Assinalei de outra feita que, numa determinada sociedade, ninguém é desorganizado e sem partido, desde que se entendam organização e partido num sentido amplo, e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares, de caráter duplo — natural e contratual ou voluntário —, uma ou mais prevalecem relativamente ou absolutamente, constituindo o aparelho hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), base do Estado compreendido estritamente como aparelho governamental-coercivo. (Q6, §136, p.253).

O aparelho hegemônico é entendido, assim, como uma sociedade particular (formalmente privada), que se torna o correspondente do aparelho governativo-coercitivo. Força e consenso, as duas metades indissociáveis da dominação, as duas metades do Centauro maquiaveliano, ambas desenvolvem seus respectivos “aparelhos”. O Estado integral é, já, unidade-distinção da sociedade civil e Estado “tradicionalmente entendido”, ou Estado strictu sensu. Segundo Liguori, um passo posterior é realizado no Caderno 7, onde fica mais explícita a problemática do Estado: “A discussão sobre a força e o consenso demonstrou como está relativamente avançada na Itália a ciência política e como em seu tratamento, mesmo por parte de estadistas responsáveis, existe uma certa franqueza de expressão. Esta discussão é a discussão da 'filosofia da época', do motivo central da vida dos Estados no período do pós-guerra. 4

Em alguns momentos Gramsci fala de uma “estrutura ideológica” para indicar tudo o que forma a “opinião pública”. (LIGUORI & VOZA,p. 45)

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Como reconstruir o aparelho hegemônico do grupo dominante, aparelho que se desagregou em razão das conseqüências da guerra em todos os Estados do mundo? Desde logo, por que se desagregou? Talvez porque se tenha desenvolvido uma forte vontade política coletiva antagônica? Se tivesse sido assim, a questão teria sido resolvida em favor de tal antagonista. Ao contrário, desagregou-se por causas puramente mecânicas, de tipo variado: 1) porque grandes massas, anteriormente passivas, entraram em movimento, mas num movimento caótico e desordenado, sem direção, isto é, sem uma precisa vontade política coletiva; 2) porque classes médias que tiveram na guerra funções de comando e de responsabilidade foram privadas disto com a paz, ficando desocupadas justamente depois de fazer uma aprendizagem de comando, etc.; 3) porque as forças antagônicas se revelaram incapazes de organizar em seu proveito esta desordem de fato. O problema era reconstruir o aparelho hegemônico destes elementos antes passivos e apolíticos, e isto não podia acontecer sem a força: mas esta força não podia ser a 'legal', etc. Como em cada Estado o conjunto das relações sociais era diferente, diferentes deviam ser os métodos políticos de emprego da força e a combinação das forças legais e ilegais. Quanto maior é a massa de apolíticos, tanto maior deve ser a contribuição das forças ilegais. Quanto maiores são as forças politicamente organizadas e educadas, tanto mais é preciso 'resguardar' o Estado legal, etc.” (Q 7, § 80, p.264).

Segundo o verbete do Dizionario Gramsci, a referência mais madura ao conceito de aparelho hegemônico, no entanto, aparece no Caderno 10, § 12 (LIGUORI & VOZA, p.46). Aqui, a idéia de aparelho hegemônico é articulada à uma concepção nova de ideologia. Um “aparelho” serve para criar um “novo terreno ideológico”, ao afirmar uma “reforma filosófica”, uma “nova consciência do mundo”. “A proposição contida na introdução à Crítica da economia política, segundo a qual os homens tomam consciência dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias, deve ser considerada como uma afirmação de valor gnosiológico e não puramente psicológico e moral. (...) A realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico”. (Q 10, §12, p.157-158)

Vemos aqui que a instalação de um aparelho hegemônico é equivalente a uma “reforma filosófica”: na medida em que cria um novo terreno ideológico, efetua uma reforma na consciência e nos métodos de conhecimento. Como ressalta Liguori, a luta entre diferentes hegemonias está aberta, mas o papel que joga o Estado na passagem do primeiro decênio do século XX está delineado em toda a sua centralidade. Como aponta o DHCM, o termo “aparelho hegemônico” também aparece, em Gramsci, referido como a “estrutura material da superestrutura” (Q4, §12; Q 11, § 29), como “complexo de trincheiras e defesas”, como “estrutura ideológica de uma classe dominante”, ou, mais extensamente, como “organização material com o propósito de manter, defender e desenvolver o “front” teórico o ideológico”. (DHCM, p.304) 726

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O aparelho hegemônico e seus intérpretes Vejamos agora como alguns dos melhores intérpretes de Gramsci analisaram a questão dos aparelhos privados de hegemonia, começando por aquela que foi uma obra pioneira em trazer à tona a importância desse conceito: Gramsci e o Estado, de Christine Buci-Glucksmann (1975). Segundo Guido Liguori (2007: p.211), o debate levantado por Buci-Gluksmann e outros autores promoveram um salto de qualidade no debate sobre hegemonia, nos anos 1970. Ela também assinala a incompatibilidade entre hegemonia e “legitimidade” entendida de forma weberiana, escrevendo que “Gramsci evita os tropeços de um institucionalismo a la Weber (primado das instituições sobre as práticas), pois o aparelho de hegemonia é marcado pela primazia da luta de classes”. (Idem:70). Buci-Glucksmann defende que o conjunto dos aparelhos privados, através dos quais uma classe ou um bloco de classes luta pela hegemonia e pela direção político-moral, não pode ser entendido de forma descolada ou oposta à sociedade política (os aparelhos militares e burocráticos de dominação e de coerção). E mostra que, embora o conceito de aparelho de hegemonia apareça, em algumas passagens, igualado a “estrutura ideológica da classe”, Gramsci não reduzia seu papel a uma mera difusão de ideologia descolada da “base”, da mesma forma como seu conceito de hegemonia ultrapassava o de ideologia (fosse como “falsa consciência” ou conjunto de idéias). A autora afirma que a constituição do aparelho hegemônico, em Gramsci, não se reduz ao momento cultural, e nem à função dos intelectuais, e liga o surgimento do conceito de aparelho hegemônico com a análise que Gramsci fez do Risorgimento italiano. Em suas palavras, “é a partir de uma abordagem historicamente diferenciada dos aparelhos de hegemonia que Gramsci procede” (Idem,77): no caso, da análise da revolução passiva (revolução sem jacobinismo). Aqui, a burguesia não consegue instaurar uma hegemonia nova, que permite aos subalternos certa liberdade de organização, pois não consegue atingir um consenso ativo, mas apenas passivo. As condições para uma classe se tornar hegemônica são econômicas, políticas e culturais, em conjunto (Idem: 86-8). Também para Gianni Francioni, autor de uma das mais detalhadas pesquisas que se 727

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preocuparam em entender e evidenciar a evolução interna na obra de Gramsci, já nos anos 1980, o conceito de aparelho hegemônico é essencial para compreender completamente a hegemonia e precisar seu significado. Tanto como não existe, nos Cadernos, hegemonia sem crise de hegemonia, também não existe hegemonia sem aparelho de hegemonia (FRANCIONI, 1984:176). Para Francioni, “um aparelho hegemônico pode ser definido como qualquer instituição, espaço ou agente que organize, medie e confirme a hegemonia de uma classe sobre outras”.(Idem: 175). Francioni entende que a importância crescente dos aparelhos hegemônicos pode se expressar em uma crescente subalternidade de “muitos” em relação a “poucos”. De acordo com Francioni, entretanto, é provável que o conceito de “estrutura material da ideologia”, correlato ao de aparelho hegemônico, representasse para Gramsci apenas uma formulação muito inicial e provisória, portanto insatisfatória. (Idem: 179) Francioni procura mostrar que, se é verdade que em toda a primeira fase dos trabalhos do cárcere, a atenção de Gramsci é voltada para a problemática da construção e da expansão da classe burguesa, a problemática da hegemonia não se restringe à análise da burguesia, mas da constituição da classe em geral. (Idem, 177). Com o conceito de aparelho hegemônico, no entanto, é diferente: somente na segunda escritura ele será plenamente integrado ao conceito de hegemonia. Hegemonia e aparelho hegemônico aparecerão agora incluídos, como elementos essenciais, na problemática do Estado. (Idem: 178). Uma redefinição da concepção de superestrutura e do conceito de ideologia aparece na primeira das três séries das notas de filosofia (Cadernos 4, 7 e 8), escritas em maio de 1930. Através do conceito de aparelho hegemônico delineado no primeiro caderno, Gramsci adentra no problema das ideologias, que define como um problema crucial do materialismo histórico. O combate entre hegemonias distintas não é, entretanto, apenas um confronto entre ideologias. Gramsci nota como certas formas de instrumento técnico são, ao mesmo tempo, estrutura e superestrutura, como no caso da indústria tipográfica, que, nas palavras e Gramsci, atingiu uma importância inaudita. (Idem:179). O grande pioneiro nos estudos de Gramsci no Brasil, Carlos Nelson Coutinho, destacou em seu estudo do pensamento político de Gramsci o fato de que os aparelhos privados de 728

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hegemonia são organismos coletivos voluntários e relativamente autônomos em face da sociedade política. Esse, segundo ele, é o principal elemento que afasta a noção gramsciana de APH do conceito althusseriano de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE), no que estamos de acordo com Coutinho. Coutinho vê os aparelhos privados de hegemonia gramscianos como uma espécie de reedição das corporações em Hegel, adicionada à dimensão contratualista presente em Rousseau. Por um lado, Gramsci teria recolhido de Hegel a idéia de que as vontades são determinadas no nível dos interesses materiais e econômicos, passando por um processo de universalização que leva à formação de “sujeitos coletivos”. Por outro lado, na medida em que Gramsci entende como “consensual” a adesão a tais “aparelhos de hegemonia”, colocando-os no seio do Estado “ampliado”, o marxista sardo teria introduzido uma “dimensão contratual” no coração da esfera pública, retomando uma noção rousseauniana abandonada por Hegel. (COUTINHO, 2014:248-9).5 Essa interpretação está intimamente ligada à concepção de Coutinho sobre a sociedade civil, na qual é nítida certa positivação. Essa tendência à positivação da sociedade civil na leitura “hegemônica” de Gramsci foi muito bem criticada por Alvaro Bianchi, em O Laboratório de Gramsci (2008), que destaca, em seu comentário sobre os aparelhos de hegemonia, que “Os cortes classistas e as lutas entre os diferentes grupos sociais atravessam os aparelhos hegemônicos e contrapõem uns a outros. Este alerta se justifica na medida em que, no vocabulário político hodierno, um conceito tocquevilliano de sociedade civil tornou-se preponderante. Neste conceito, sociedade civil passou a significar um conjunto de associações situadas fora da esfera estatal, indiferenciadas e potencialmente progressistas, agentes da transformação social e portadoras de interesses universais não contraditórios.” (BIANCHI, 2008: 179)

De forma semelhante, Guido Liguori, em seus incontornáveis Roteiros para Gramsci, havia destacado a conexão entre o conceito de Estado integral e o de aparelhos privados de hegemonia: “A sociedade civil é entendida como conjunto de 'organizações ditas privadas'. Aqui retorna uma expressão semelhante àquela já vista e, Q 12, §1, ('organismos designados 5

Essa aproximação que Coutinho faz da concepção gramsciana de aparelho de hegemonia da base contratualista de Rousseau nos parece questionável, na medida em que o autor parece assim negligenciar que, mesmo dentro dos aparelhos de adesão voluntária, estamos tratando de uma relação geral de dominação, na qual essa adesão é condicionada, e não livre, como pressupõe o contratualismo.

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vulgarmente como 'privados') e que é possível encontrar em várias passagens dos Cadernos. O uso de aspas […] ou do advérbio 'vulgarmente' […] assim como a expressão 'ditas', que precede 'privadas', são sinais e índices da maior importância: dizem-nos que, para Gramsci, tais aparelhos hegemônicos, aparentemente 'privados', na realidade fazem plenamente parte do Estado e, portanto, nos permitem falar de 'Estado ampliado'.” (LIGUORI, 2007:21)

The Gramscian Moment, de Peter Thomas (2009), segue de perto a interpretação de BuciGlucksmann no que diz respeito à importância dos aparelhos hegemônicos na constituição da classe. Para Buci-Glucksmann, o aparelho de hegemonia é “um conjunto complexo de instituições, ideologias, práticas a agentes (entre os quais os ‘intelectuais’)” que “só encontra sua unificação através da análise da expansão de uma classe” (BUCI-GLUKSMANN, 1975:70). Para este autor, teríamos em Gramsci não a noção de um aparelho hegemônico, no singular, mas de aparelhos hegemônicos, no plural – toda uma série de aparelhos hegemônicos que se relacionam e se unificam no nível político pela capacidade dos elementos de um grupo ou classe social particular fazerem a “tradução” entre diferentes práticas hegemônicas ente diferentes campos da sociedade. Para o autor, enquanto o conceito de Estado integral procura delinear as formas e modalidades pelas quais uma classe estabiliza e torna mais ou menos durável seu poder político-institucional na sociedade política, o conceito de um “aparelho hegemônico” tenta mapear os modos pelos quais ela ascende ao poder através de uma “intrincada rede de relações sociais na sociedade civil.” (Idem: 224-5) Importante destacar que trata-se de um processo que não ocorre de uma vez por todas; ao contrário, preciso ser repetido cotidianamente se um projeto de classe quer permanecer capaz de se reproduzir no poder institucional. O aparelho hegemônico de classe constitui "o horizonte dentro do qual um projeto de classe é elaborado e dentro do qual ela procura interpelar e integrar seus antagonistas”. Ainda segundo Thomas, o conceito gramsciano de aparelho hegemônico pode ser compreendido como uma “tradução realista” dos temas que têm sido mais recentemente tratados na tese do “biopoder” e da “biopolítica” (tese de Foucault que, segundo ele, era marcada por uma concepção que obscurece a natureza específica do poder de classe). (Idem:225) O interessante do conceito de aparelho hegemônico, segundo Thomas, é que ele atravessa as fronteiras do chamado público (pertencente ao Estado) e privado (sociedade civil), para incluir “todas as iniciativas pelas quais uma classe concretiza seu projeto hegemônico num 730

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sentido integral” (Idem:226). Em termos poulantzianos, esses aparelhos são a “condensação material de uma relação de forças” dentro de uma classe ou aliança de classes que permite a ela confrontar o seu antagonista num nível propriamente político. (Idem: 226) O poder político é concebido em sentido específico: a capacidade que uma classe desenvolve para agir como uma classe em relação às demais classes, o que pressupõe uma determinada habilidade das iniciativas de uma classe na sociedade política ligar-se adequadamente a sua “base social” na sociedade civil. O potencial de uma classe para o poder político, assim, depende de sua habilidade para encontrar as formas institucionais adequadas a seu projeto hegemônico particular. (Idem: 226) Nesses termos, Thomas entende que, para Gramsci, o poder político é imanente não apenas ao Estado como uma condensação de relações de poder (relações entre classes), como foi para Poulantzas; antes, é imanente aos projetos hegemônicos por meio dos quais as classes se constituem como tais (relações intra-classes), e podem se tornar ou não capazes de exercer poder político – isto é, quando deixam de ser uma massa incoerente de interesses corporativos confinados no terreno da sociedade civil. (Idem: 226-7) Aparelhos privados de hegemonia na pesquisa histórica As formulações teóricas de Gramsci sobre os aparelhos de hegemonia decorreram de sua própria pesquisa histórica. Foi analisando a política francesa pós-1870, que Gramsci notou como as mais importantes iniciativas não emergiram de organismos políticos que eram baseados no voto, mas de organismos privados ou relativamente desconhecidos escritórios da alta burocracia. Disso ele concluiu, àquela altura, que “o conceito comum de Estado é unilateral e leva a graves erros”; daí a necessidade de entender aparelhos privados de hegemonia, ou “sociedade civil”, como parte do Estado. (Q 6, § 137). O estudo do papel dos intelectuais na formação do Estado nacional italiano também levou o marxista sardo a essa conclusão. Afinal, naquele processo histórico – diferente do francês – os elementos político moderados foram capazes de estabelecer o aparelho (aqui, Gramsci equivale “aparelho” a “mecanismo”) de sua “hegemonia política, moral e intelectual”. Para tanto, se valeram principalmente da iniciativa individual, “molecular”, “privada” – ao invés, por exemplo, de um programa partidário formal, elaborado e constituído anteriormente à prática e ação organizativa. (Q 19, § 24). 731

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Outro ponto digno de nota é a análise de Gramsci, no seu Caderno 22, de 1934, intitulado Americanismo e Fordismo, e nos Cadernos miscelâneos correlatos, sobre o Rotary Club. Como se sabe, em Americanismo e Fordismo, Gramsci analisou a particular combinação entre força e persuasão no solo americano, que combinava as condições históricas para o surgimento de uma produção completamente “racionalizada”, a qual ensejava a busca pela formatação de um modo de vida e um tipo social a ela adequado. Tendo utilizado diversas fontes da imprensa sobre esse organismo, ele escreveu que “parece que seu programa essencial é a difusão de um novo espírito capitalista, ou seja, a idéia de que a indústria e o comércio, antes de serem um negócio, são um serviço social”; ou, mais precisamente, “são e podem ser um negócio na medida em que são um ‘serviço’.” (Q 5, §2, p.295)

Gramsci chama atenção para o fato de que o Rotary organizou uma campanha de notável importância nos Estados Unidos do início do século: a campanha pelo open shop – a prática empresarial de contratar exclusivamente empregados não-sindicalizados. Uma das principais reivindicações do movimento operário nos Estados Unidos era o estabelecimento por lei do closed shop, obrigando os capitalistas a contratarem trabalhadores sindicalizados. Inexiste, em Gramsci, uma pesquisa mais extensiva sobre o tema; mas fica indicado, ainda que indiretamente, o papel desse organismo no processo de formação da classe dominante nos Estados Unidos e na correlação de forças entre as classes. Citando um trecho de um rotariano publicado numa revista italiana, Gramsci notou, no caderno 5, datado de 1930-1932, a importância de entender essa “nova figura do homem de negócios que sabe associar, em todas as atividades profissionais, industriais e comerciais, seu interesse pessoal com o interesse geral” (Q 5, §2, p.297). Cita também um artigo publicado no Corriere della Sera de 22 de junho de 1928, que dizia que o Rotary estava entre “as instituições internacionais que visam, ainda que pela via da negociação, à solução dos problemas econômicos e industriais comuns”. (Idem). A questão da ação política da classe dominante e da idéia precoce de forjar instituições internacionais que lidassem com os “problemas econômicos e industriais comuns” entre os países capitalistas é explicitamente indicada. Gramsci nos traz aqui uma análise histórica primorosa sobre o papel de um aparelho privado de hegemonia, embora, curiosamente, não tenha usado esse termo para se referir a ele. Entendendo o Rotary como um aparelho difusor do americanismo e como uma organização que 732

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“Não se quer nem confessional, nem maçônica”, Gramsci distinguiu o caráter dessa entidade afirmando que “o Rotary é organização das classes altas e só se dirige ao povo indiretamente. É um tipo de organização essencialmente moderna”. (Idem, p.298). Essa distinção que Gramsci traz nos parece bastante útil para a pesquisa histórica de aparelhos privados de hegemonia. A quem ele se dirige, que base social organiza, quais objetivos se propõe, eis uma questão primordial na análise de um APH. Algumas perguntas iniciais são fundamentais na análise de qualquer APH. Trata-se de um APH da classe dominante voltado para a própria classe dominante? Trata-se de um APH da classe dominante voltado para uma atuação política voltada para as grandes massas? Ou ainda, trata-se de um APH forjado pela classe trabalhadora e seus aliados, que eventualmente se converteu em APH funcional para a dominação burguesa? É particularmente nesse último sentido que a pesquisa recente de Virgínia Fontes tem muito a iluminar. Os APHs são um tema central de seu mais recente livro, O Brasil e o capitalimperialismo. Entendendo os APHs como atravessados pela luta de classes, Fontes afirma que seu ponto fulcral “remete para a organização e, portanto, para a produção coletiva, de visões de mundo, da consciência social, de formas de ser adequadas aos interesses do mundo burguês (a hegemonia) ou, ao contrário, capazes de opor-se resolutamente a este terreno dos interesses (corporativo), em direção a uma sociedade igualitária (“regulada”) na qual a eticidade prevaleceria, como o momento eticopolítico da contra-hegemonia” (FONTES, 2010:133)

Partindo dessa concepção, a historiadora desenvolverá uma chave interpretativa não apenas para o papel diferencial dos APHs na constituição daquilo que ela chamou de “capitalimperialismo”, como também para a “conversão mercantil-filantrópica” em massa de ONGs no Brasil recente – entre elas, algumas que surgem das lutas operárias, camponesas, estudantis, etc, e se tornam esteios da dominação burguesa ao abraçar os pressupostos do capital-imperialismo. Valorizando a contribuição pioneira de René Dreifuss na temática, e indo muito além, Fontes traça um mapa ilustrativo dos diversos tipos de APHs brasileiros das últimas quatro décadas, relacionando o florescimento e expansão dos mesmos com a dinâmica da luta de classes e da inserção do Brasil no sistema internacional. Fontes chama atenção para o fato de que muitos dos APHs, como jornais e partidos, se 733

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apresentam como totalmente descolados da organização econômica e política, como desconectados de interesses de classe, seja como porta-vozes de uma unidade nacional ou de uma neutralidade informativa, e isso é um dos elementos que podemos aferir como uma diferença específica (se compararmos, por exemplo, com associações de caráter econômicocorporativo) (FONTES, 2010:134). Trata-se de um alerta metodológico fundamental a qualquer pesquisador que esteja interessado no procedimento científico fundamental de criticar as fontes das quais se serve. A análise teórica e histórica de Fontes também nos abre um caminho interessante para pensar em aparelhos privados de hegemonia que se constituem cada vez mais no plano internacional, especialmente com a idéia de “frentes móveis de ação internacional”. “O que Gramsci analisou para os Estados Unidos e a Europa de seu tempo, a constituição de aparelhos privados de hegemonia, se tornaria a forma cosmopolita por excelência da política do capital, organizada tanto nos diferentes planos nacionais quanto em agências e entidades internacionais. Verdadeiras frentes móveis de ação internacional se multiplicavam, ao mesmo tempo procurando capturar as reivindicações igualitárias no plano internacional e reconvertê-las em formas anódinas ou, mais grave, em espaços de atuação lucrativa”. (FONTES, 2010:309)

Muito próxima à problemática de Fontes sobre a sociedade civil, e compartilhando da interpretação de Bianchi, a historiadora Sônia Regina de Mendonça desenvolveu um método de pesquisa com base no conceito de Estado integral ou ampliado, chamando atenção para ambas as direções da relação entre o Estado strictu sensu e os APHs. Em seu método, é necessário olhar tanto para a imbricação da classe no Estado, via APH, quanto o reforço que o Estado faz do próprio APH. Em seu extenso trabalho sobre a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e a Sociedade Rural Brasileira (SRB), Mendonça trabalha essas duas direções desses APHs, localizando precisamente a quais setores de classe elas estão ligadas, quais suas relações com a sociedade política ou Estado strictu sensu, e que iniciativas desenvolveram ao longo de sua história de modo a conquistar consentimento para seus projetos (MENDONÇA, 2010). Com esses apontamentos, procuramos aprofundar o entendimento do conceito gramsciano de aparelho privado de hegemonia, que se revela tão útil na pesquisa histórica. Referências bibliográficas BIANCHI, Alvaro. O laboratório de Gramsci. Filosofia, História e Política. São Paulo: Alameda, 2008. 734

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BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci e o Estado. Por uma teoria materialista da filosofia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980 [1975]. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo de seu pensamento político. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014 [1999]. FONTES, Virginia. O Brasil e o capital-imperialismo. Teoria e História. Rio de Janeiro: EPSJV-Fiocruz/UFRJ: 2010. FRANCIONI, Gianni. L'Officina Gramsciana. Nápoles: Bibliopolis, 1984. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. HAUG, W.F. et all. Historical-critical Dictionary of Marxism. Historical Materialism 17, 2009. (disponível em: http://dhcm.inkrit.org/wp-content/data/HKWM-HegemonicApparatus.pdf). LIGUORI, Guido & VOZA, Pasquale. Dizionario Gramsciano 1926-1937. Roma: Carocci Editore, 2009. LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. MENDONÇA, Sonia Regina de. “O Estado ampliado como ferramenta metodológica”. Marx e o Marxismo, v.2, n.2, jan/jul 2014. _______________ & ANDRADE DE PAULA, Dilma (orgs). Sociedade civil. Ensaios históricos. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. _______________. O patronato rural no Brasil recente. 1964-1993. Rio de Janeiro, UFRJ, 2010. THOMAS, Peter. The Gramscian Moment: Phylosophy, hegemony and marxism. Leiden/Boston: Brill, 2009.

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INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS SOCIAIS (IPES): O APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA NAS EMPRESAS ESTATAIS FEDERAIS (1964-1967) Elaine de Almeida Bortone1 RESUMO: A comunicação tem como objetivo analisar a presença política de associados e parceiros do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e sua área de influência em instâncias importantes do Estado brasileiro após o golpe de 1964, com a finalidade de mostrar a hegemonia de uma fração da burguesia no seio do Estado, determinando seu rumo e representando não só seus interesses econômicos e políticos, como de toda a burguesia. Tratase das empresas estatais federais de alguns setores dinâmicos da economia (financeiro, siderúrgico, elétrico, petrolífero e agricultura), existentes no período de 1964-1967, governo de Humberto de Alencar Castello Branco, as quais tinham ipesianos nas suas direções. Os conflitos determinantes para a fundação do IPES foram a renúncia do presidente Jânio Quadros e a subida ao poder do vice-presidente João Goulart, em 1961. Goulart não era bem visto por uma parte dos militares das Forças Armadas e pelos empresários. Era acusado de agitador e comprometido com interesses populares e comunistas. No entanto, a causa do golpe foi político, que refletia o medo dos setores mais conservadores com o crescente movimento popular pelas reformas de base, pela implementação de uma “república sindicalista” ou de um regime comunista no país, que punham em risco os seus interesses econômicos. Neste contexto, unificaram-se o capital nacional e os setores do capital internacional, que entraram no Brasil a partir dos anos 1950, e fundaram o IPES, um centro estratégico de ação política que preparou diversificadas estratégias para conspirar contra o presidente Goulart com objetivo de desempenhar uma forte intervenção no Estado para obter o poder e consolidar uma nova ordem capitalista.Após 1964, os ipesianos ocuparam cargos nas empresas estatais federais, obtendo domínio e liberdade de ação que lhes permitiu perpassarem por distintos setores e cargos, e em alguns casos acumularam diferentes funções, além de nomearem e indicarem pessoas provenientes de sua rede de conhecimento. INTRODUÇÃO A comunicação tem como finalidade apresentar alguns resultados da minha pesquisa de doutorado. Objetiva levantar e analisar a presença de associados, apoiadores e parceiros do IPES nos cargos de presidente, vice-presidente, diretor e conselheiro nas empresas estatais federais de setores dinâmicos da economia (financeiro, siderúrgico, elétrico, petrolífero e agricultura), no período de 1964-1967. Como não existe literatura ou órgão especial que tenha a relação completa das empresas estatais existentes e de seus respectivos gestores do período pesquisado, busquei elementos no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional, nas bibliotecas da Eletrobrás e do Instituto Aço

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Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ), bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Brasil, nos ministérios, no Diário Oficial da União, nos livros, nos jornais da época, na Internet e nas empresas ainda existentes através do Acesso à Informação2. Nem sempre consegui informações completas. Desta forma, a falta de dados não me permitiu construir uma amostra maior, mas, ainda assim, me proporcionou uma percepção extremamente útil da abrangência de ipesianos nos cargos de decisão das empresas estatais, quando se estabeleceu uma cooperação entre representantes do capital internacional, do capital nacional e do aparato estatal na construção da economia brasileira. Com a finalidade de certificar se os dirigentes passaram pela órbita do IPES, recorri aos documentos do Instituto e à obra de René Armand Dreifuss, 1964-A conquista do Estado, que catalogou os associados, parceiros e apoiadores do Instituto. Os documentos do IPES utilizados estão custodiados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, no fundo correspondente. Nos quadros só foram apresentados os dirigentes ipesianos, aqui compreendidos não só os militares, empresários e tecnoempresários que fizeram parte da estrutura formal do IPES, como também os convidados, que embora não fizessem parte da base organizacional do Instituto, participaram de diversas atividades organizadas pelo Instituto, tais como cursos, debates e palestras; orientaram na elaboração de estratégias para desestabilizar o governo Goulart e de projetos de governos que vieram a ser implementados após o golpe. O INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS SOCIAIS (IPES) O IPES (1961-1972) foi uma entidade formada por empresários, tecnoempresários e militares de alta patente, em especial vinculados à Escola Superior de Guerra (ESG), que, com o apoio financeiro de pessoas físicas e jurídicas nacionais e estrangeiras e do governo norteamericano, buscou constituir uma coesão interna e fortalecer o poder de um grupo hegemônico, o multinacional e associado, para conspirar e obter o controle da sociedade e assegurar a conquista do Estado. O termo tecnoempresário foi cunhado por Dreifuss (2006) para designar o conjunto de escritórios especializados em serviços técnicos de engenharia, consultoria tecnojurídica e técnico-administrativa, constituindo-se como agências privadas de consultoria

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A Lei nº 12.527, sancionada pela Presidente da República em 18 de novembro de 2011, regulamentou o direito constitucional de acesso dos cidadãos às informações públicas, e seus dispositivos são aplicáveis aos três Poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

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tecnoempresarial prestadora de serviços tanto para empresas particulares quanto para órgãos estatais. O IPES se declarou uma “entidade apolítica”3 e se auto definiu como “Estado-Maior”4. No seu Estatuto5, o Instituto se apresentava como uma “sociedade civil sem fins lucrativos, de caráter filantrópico e com intuitos educacionais, sociológicos e cívicos”. Pretendia o “fortalecimento do regime democrático do Brasil” por meio de uma ação que consistia em estudar os problemas brasileiros e apresentar soluções. Mas ocultou sua verdadeira identidade. O IPES foi uma organização de classe, pretensamente científica, rica e sofisticada em recursos materiais e humanos que desenvolveu ações e estratégias, a fim desestabilizar e esvaziar o governo Goulart e minar as resistências organizadas na sociedade, que estavam atingindo diretamente seus interesses econômicos e políticos e obter, assim, o controle do Estado. Para colocar seu plano em ação, o IPES organizou uma ação política por meio de campanhas ideológicas. Produziu materiais de doutrinação divulgados na grande mídia aliada6 com a finalidade de manipular a opinião pública para influenciar, atrair e manter diferentes segmentos da sociedade junto ao seu projeto. Conforme Gramsci (2000, v. 7, p. 265), a opinião pública é o conteúdo político da vontade política, que está estreitamente ligada à hegemonia política. É o ponto de contato entre o consenso e a força, criada para organizar e centralizar certos elementos da sociedade civil. Simultaneamente, como tática defensiva e ofensiva, e já pensando em um novo Estado, formulou e difundiu projetos de governo e anteprojetos de reformas de base para salvaguardar e consolidar suas posições na direção política e ideológica da sociedade. Para serem mais abrangentes nos seus propósitos, os ipesianos se articularam com políticos para bloquearem medidas e terem seus anteprojetos aprovados. Atuou no Senado e na Câmara através de políticos da Ação Democrática Popular (ADEP)7 para obter informes autênticos para melhor prejulgar os

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Documento do IPES: O que é o IPES, p. 2, s/d. Ata do IPES da Reunião Conjunta Rio/SP de 03.04.64. 5 Estatutos do IPES, 1963. 6 O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, Correio do Povo (RS) entre outros. Ata do IPES Comitê Diretor de 08.11.62, Ação Comunitária do Brasil-Guanabara, Relação de contribuintes, s/d. 7 A ADEP foi uma subdivisão do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Tinha como finalidade a tomada do poder em curto prazo. Sua ação social consistia na “orientação política contrária ao governo” e a “desmoralização de homens públicos”. Informe sobre a Ação Democrática Popular de 18.06.63. 4

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rumos da política governamental e para buscar apoio dos parlamentares para os seus projetos8. Da mesma forma, buscando uma atuação mais direta na disseminação de seu ideário, o IPES se infiltrou nos meios acadêmicos e artísticos, nos sindicatos, nas organizações estudantis e femininas, na igreja, nas Forças Armadas, etc. Com o golpe de Estado, em 1º de abril de 1964, foi implantada uma ditadura que estava a serviço do grande capital. A composição militar-empresarial controlou em definitivo as rédeas da máquina gerencial-estatal “erigindo um formidável aparato de Estado para sustentar seu monopólio do poder” (ALVES, 2005, p. 31). O bloco no poder, isto é, a fração de classe liderada pelo IPES, se estabeleceu em todos os aparelhos do Estado, tornando-se a sede privilegiada dos interesses hegemônicos. Grande quantidade de ipesianos ocupou cargos chaves nos ministérios, na estrutura administrativa, nas autarquias, nas empresas estatais e as reformaram em direção ao fortalecimento do capitalismo e à consolidação de sua classe. O domínio, o poder e a liberdade de ação dos ipesianos na estrutura do Estado foram de tamanha grandeza que perpassaram por distintos setores e cargos, e, em alguns casos, acumularam diferentes funções, além de nomearem e indicarem pessoas provenientes de sua rede de conhecimento, que estavam imbuídos do mesmo objetivo, para diversas direções administrativas. Segundo Poulantzas, O Estado burguês lhe permite funcionar por deslocamentos e substituições sucessivas, dando condições para o deslocamento do poder da burguesia de um aparelho para outro: o Estado não é um bloco monolítico, mas um campo estratégico (POULANTZAS, 1978, p. 160).

O Estado, portanto, expressou a supremacia e unidade do IPES. O Estado assumiu a tarefa de atuar para atender às necessidades do capital multinacional e associado através de políticas fiscais e creditícias e garantir a subordinação da classe trabalhadora por meio da repressão política, econômica e social. Neste sentido, a teoria de Antonio Gramsci sobre o Estado atende ao escopo da pesquisa: O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias ‘nacionais’, 8

Ata do IPES Comitê Executivo de 08.04.63.

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isto é o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo (GRAMSCI, 2000, p.41-42).

Nas suas funções, os ipesianos criaram políticas públicas; implantaram reformas, a maioria concebida pelo IPES no período de 1961-1964;9 intervieram na economia; estimularam a iniciativa privada; incitaram o capitalismo atrelado ao capital internacional; criaram mecanismos para reprimir quaisquer ameaças de oposições operárias ou populares e transformaram, enfim, o Estado econômica, política e socialmente, em um instrumento exclusivo do poder burguês. OS EMPRESÁRIOS NA DIREÇÃO DAS EMPRESAS ESTATAIS FEDERAIS Os objetivos imediatos do primeiro governo ditatorial eram a restauração do equilíbrio econômico, através do combate à inflação; aumentar a eficiência do setor produtivo público para tornar a economia mais permeável ao mercado internacional e dar suporte de acumulação privada; reprimir e expurgar as pessoas politicamente ligadas ao governo de Goulart; e em se legitimar através de inúmeros Decretos-Lei e Atos Institucionais, que formaram a estrutura do Estado. Com os expurgos, através de Inquéritos Policial-Militares (IPMs), militares e civis, que haviam contribuído para os trabalhos do IPES no sentido de derrubar Goulart, ocuparam os cargos mais importantes e determinantes nas empresas estatais federais, o que demonstra o caráter classista do aparelho de Estado. Apesar da grande presença da “elite fardada” nas empresas, a predominância foi de civil que envolvia uma articulação com a comunidade empresarial, onde criaram mecanismos para aumentar a capacidade de produção e de recursos para atender ao novo padrão de acumulação. As empresas tornaram-se, portanto, uma arena privilegiada dos interesses das frações integrantes do bloco no poder.

9

Minha dissertação de mestrado intitulada A participação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) na construção da reforma administrativa na ditadura civil-militar (1964-1968) mostra a criação da Reforma Administrativa a partir do anteprojeto de reforma administrativa do IPES. UFF, 2012.

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Aplicando a “racionalidade empresarial”, muitas empresas estatais expandiram sua atuação para diferentes setores estratégicos e de alta rentabilidade, tais como insumos básicos (mineração, siderurgia, química e petroquímica, fertilizantes e adubos e petróleo), serviços industriais de utilidade pública (energia elétrica, gás, água e esgoto) e outros setores públicos, tais como armazenagem, transporte e comunicações. Posto isto, a seguir serão apresentados os quadros das empresas estatais federais dos setores financeiro, siderúrgico, elétrico, petrolífero e agricultura, e os seus respectivos dirigentes ipesianos. Para esta comunicação serão analisados apenas os perfis dos ipesianos que fizeram parte da estrutura formal do IPES para mostrar suas atuações no Instituto, nos setores públicos e privados. Conforme Antonio Candido “registrar o passado não é falar de si, é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesse e de visão do mundo, no momento particular do tempo que se deseja evocar” (HOLANDA, 2007, p. 9). Quadro I - Empresas estatais do setor financeiro e os seus respectivos dirigentes ipesianos NOME Superint.da Moeda e do Crédito (SUMOC) (1945-65) Autarquia

PRESIDENTE Octávio Gouvêa de Bulhões Vice-presidente: Luis de Morais Barros

Banco Central do Brasil Dênio Chagas (BCB) Nogueira (1965(1964) 67) Autarquia Banco Nacional de Desenv. Econômico (BNDE) (1952) Autarquia

Genival de Almeida Santos (1964) e José Garrido Torres (1964-67)

DIRETOR Dênio Chagas Nogueira, Casimiro Antônio Ribeiro, Luiz Biolchini, Aldo Baptista F. da Silva Santos, Daniel Faraco, Roberto Campos, João Gonçalves de Souza, José Garrido Torres (1964-65) Casimiro Antônio Ribeiro (1965-67), Luiz Biolchini (1965-66), Aldo Baptista Franco da Silva Santos (1965-67), Antonio Abreu Coutinho (1966-67) Genival de Almeida Santos (1964-65), Alberto do Amaral Osório (1965-67) – diretores superintendentes, Antonio Carlos Pimentel Lobo (1964-67), Jayme Magrassi de Sá (1964-67), Hélio Schlitter Silva (196467)

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CONSELHEIRO Fábio Antônio da Silva Reis, Hélio Marques Vianna, Eduardo da Silveira Gomes Jr., Basílio Martins, José Luiz Silveira Miranda e Ernane Galvêas

José Luiz Bulhões Pedreira, Eduardo da Silveira Gomes, Hélio Marques Vianna

Sebastião Sant'Ana e Silva (196566), Álvaro Gonçalo Americano de O. e Souza (1960-68), Edmundo Falcão da Silva (196467), Luiz Alberto Bahia (196366), Raul Fontes Cotia (1957-70), Antonio Bastos (1966-72) Administrativos: Jorge Duprat de Brito Pereira, Jessé Montello, João Batista Pinheiro, Alberto Lélio Moreira

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Fundo de Desenvolv. Técnico Científico (FUNTEC) (1963)

Antonio Carlos P. Lobo (1965), Hélio Schlittler Silva (1966), Jayme Magrassi de Sá (1967) Financiadora de Est. e Francisco Manoel Projetos (FINEP) (1965) de Mello Franco Emp. pública (1967-71) Financ. à Peq. e Média Hélio Schlitter Empresa (FIPEME) Silva (1964-67) (1965) Empresa pública Fundo de Financ. para Aquisição de Máq. e Equip. Industrial (FINAME) (1964) Empresa pública

José Garrido Torres (1964-67)

Fundo de Antonio Carlos Desenvolvimento de Pimentel Lobo Produtividade (FUNDEPRO) Dep. Nac. de Seg. Privados e Capitalização (DNSPC) (1934-66) Autarquia Banco Nacional de Habitação (BNH) (1964-89) Autarquia

Sandra Cavalcanti (1964-65), vicepresidente Carlos Eduardo Paladin Cardoso (196465). Luiz Gonzaga do Nascimento (1965-66), Mário Trindade (66-71)

Banco Nac. de Crédito Cooperativo (BNCC) (1951) Caixa Econômica Federal (CEF) Empresa pública Banco da Amazônia S/A (BASA) (1966) Economia mista Banco do Brasil S/A (BB) (1808) Economia mista

Hélio Schllitter (1967)

Joaquim Francisco de Carvalho (sec. Geral) (1967)

Jayme Magrassi de Sá (1965)

Genival de Almeida Santos (1966), Alberto Amaral Osório (1966-67), Ary Burger (1966-67), Justo Pinheiro da Fonseca (196667), José Luiz Moreira de Souza (1966-67), Edmundo F da Silva (1966-67), Einar Alberto Kok (1966-67)

José Cândido Almeida dos Reis (1964), Américo Matheus Florentino (1965) Arnaldo Walter Blank (1965), José Eduardo de Oliveira Penna (1966-69), Maércio Lemos de Azevedo (1965), Fernando Machado Portela (1965), Mário Trindade (1965)

Fernando Machado Portela (196574); Paulo Accioly de Sá (196466), Henrique Capper Alves de Souza (1965), Nylton Velloso (1964-74), Mário Henrique Simonsen (1964-74), Hélio Beltrão (1965)

José Amanajás Tocantins (1965-66)

José Pires de Almeida (1966)

Projeto de Martinho Prado Arnaldo Walter Blank (CEF Rio) Uchoa, Plínio de Queiroz, (1964-65), Joviano Rodrigues Alcides da Costa Vidigal e Moraes Jardim (1965) Herbert Levi Nelson de Figueiredo Ribeiro (1964) Arnaldo Walter Blank (1964), Luiz de Moraes Barros (1964-67)

Aldo Baptista Franco da Silva Santos (1964-66), Casimiro Antonio Ribeiro (1964-65), Ernane Galveas (1966-67), Genival de Almeida Santos (1967),

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Clemente Mariani Bittencourt, Herculano Borges da Fonseca (advogado do Banco)

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Hugo de Araújo Faria (1964), Juvenal Osório Gomes (1964), Luiz Biolchini (1964-66), Nestor Jost 1961-67), Paulo Konder Bornhausen (196567), Severo Fagundes Gomes (1965-66), Claudio Pacheco Brasil (1964-67) Fonte: Quadro feito pela autora a partir de informações coletadas.

Quadro 2– Empresas estatais do setor siderúrgico e os seus respectivos dirigentes ipesianos NOME Usina Siderúrgica da Bahia S/A (USIBA) (1963-89) Econ. Mista Cia Aços Esp. Itabira (ACESITA) (1944-92) Economia Mista Companhia Siderúrgica Paulista (COSIPA) (1963-93) Economia Mista Cia Siderúrgica Nacional (CSN) (1946-93)

Usina Siderúrgica de Minas Gerais S/A (USIMINAS) (195691) Economia Mista

PRESIDENTE

José Braz Ventura (196466) Luiz Dumont Villares (196365), Iberê Gilson (1965)

DIRETOR Antônio Machado Dória

Mário Trindade (1963-65), Plínio Reis Cantanhede (1963-64), Hélio Muniz de Souza (1963-65) João de Castro Moreira (1965-66)

CONSELHEIRO

Alberto Amaral Osório (196465/66-67), Bernardo Geisel (1964-66), Luiz Drumond Villares (1964), Marcos Vinicius P. de Moraes (1965-66), Iberê Gilson (1965-66), Benedito F. Moreira (1966), Amaro Lanari Jr. (1966), Prudente de Moraes Neto (1966)

Amaro Lanari Jr (1958-76)

Fonte: tabela feita pela autora a partir de informações coletadas.

Quadro 3 – Empresas estatais do setor elétrico e os seus respectivos dirigentes ipesianos NOME Comp. Paulista de Força e Luz (CPFL) (1964-75) Comp. Energia Elétrica da Bahia (CEEB) (1960-97) Comp. Brasileira Energia Elétrica (CBEE) (1964) Comp. Força e Luz Minas Gerais (CFLMG) (1964)

PRESIDENTE Eugenio Gudin (1964-67)

Pedro Américo Werneck (1964-66)

DIRETOR Paulo Américo Werneck (1964), Horácio Penido Monteiro (1965-66)

Horácio Penido Monteiro (1964-66) Horácio Penido Monteiro (1966), Geraldo Martins Ourívio (1966), Gabriel Bernardes Filho

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CONSELHEIRO Lauro Salazar Regueira (1965-66) Pamphilo Pedreira Freire de Carvalho (1966), Ricardo Cesar Pereira Lira (1966) Ricardo Cesar Pereira Lira (1966), Adolfo de Campelo Gentil (196566) Fernando Lacerda Araújo (1966)

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Comp. de Força e Horácio Penido Monteiro Luz Nordeste (1965) (CFLN) (1964) Comp. Central Bras. de Força Elétrica (CCBFL) (1964) Comp. de Força e Luz do Paraná (CFLP) (1964) Comp. Energia Elétrica Rio Grandense (CEERG) (1964) Comp. Auxiliar de Horácio Penido Monteiro Emp. Elétricas (1965-67), Geraldo Martins Bras. (CAEEB) Ourívio (1966), Lauro (1927-64) Salazar Regueira (1965-66) Centrais Elétricas Octávio Marcondes Elias do Amaral Souza Brasileiras Ferraz (1964-67) (1965-66) (ELETROBRÁS) (1961) Econ. Mista Comissão Nac. de Luiz Cintra do Prado Energia Nuclear (1964-66) (CNEN) (1956) Autarquia Companhia Apolônio Jorge de Edir Dias de Carvalho Hidroelétrica do Faria Sales (1962Rocha (1964-67) São Francisco 74) (CHESF) (1945) Economia Mista Eletrobrás Furnas John Reginald (1957) Cotrim (1964-74) Economia Mista Comp. Energética John Reginald Mauro Thibau (1966) de Minas Gerais Cotrim (1966-67) (CEMIG) (1952) Fonte: tabela feita pela autora a partir de informações coletadas.

Manoel Azevedo Leão (1966) Ricardo Cesar Pereira Lira (1966), Adolfo Campelo Gentil (1966), Geraldo Martins Ourívio Lauro Salazar Regueira (1966), Geraldo Martins Ourívio (1966) Adolfo Campello Gentil (1966)

Adolfo Campello Gentil (1965), Manoel Azevedo Leão (1965), Lauro Salazar Regueira (1964-65) Cesar Reis de Cantanhede Almeida (1965-66), Orosimbo Nonato da Silva (1966)

Francisco Saturnino de Brito Fº (1964-67), Edilson de Melo Távora (1964-65) João da Silva M. Filho (1965), Afrânio de Carvalho (1965), Elias do Amaral Souza (1964-66)

Quadro 4 – Empresas estatais do setor petrolífero e os seus respectivos dirigentes ipesianos NOME Petróleo Brasileiro (Petrobrás) (1953) Autarquia Conselho Nacional do Petróleo (CNP) (1938-90)

PRESIDENTE DIRETOR Ademar de Queiroz (1964-66) Chefe de Gabinete: Arthur Levy (1964) Emílio Mauro José Batista Pereira (1965), Maurell Filho (1965- Paulo Ribeiro (1965), Ivo 66) de Souza Ribeiro (1965), Paulo Figueiredo (1965), Kurt Politzer (1965) Juvenal Osório Gomes (1965-67)

Grupo Executivo da Ind. Química (GEIQUIM) (1964) Fonte: tabela feita pela autora a partir de informações coletadas.

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CONSELHEIRO Manoel da Costa Santos (196268), Silvio Froes de Abreu (196269), José Batista Pereira (1966-70), Carlos Medeiros Silva (1965) Plínio Reis Castanhede

Julio Sauerbron de Toledo (196567), Luiz Roberto da Silva Ratto (1965), Paulo Ribeiro (1965-67), Arthur Soares Amorim (1967)

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Quadro 5 – Empresas estatais do setor agricultura e os seus respectivos dirigentes ipesianos NOME Superint. do Desenv. da Pesca (SUDEPE) (195289) Autarquia Superint. Nacional de Abastecimento (SUNAB) (1962 89) Autarquia Comissão de Financiamento da Produção (CFP) (1943–90) Autarquia Instituto Bras. do Café (IBC) (19521990) Autarquia Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) (1964-70) Autarquia

PRESIDENTE Paulo de Castro Moreira da Silva (1962-64)

Instituto Nac. de Desenvolvimento Agrário (INDA) (1964-70) Autarquia Superint. de Pol. Agrária (SUPRA) (1962-64) Autarquia Inst. Nac. de Pesos e Medidas (INPM) (1961-73) Autarquia Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) (1933-90) Comissão Nacional de Estímulo à Estabilização de Preços (CONEP) (1965-68) Autarquia Cia Brasileira de Alimentos (COBAL) (196290) Econ. Mista

Eudes de Souza Leão Pinto (1965) Assessor: Edvaldo de Oliveira Flores (1965) José Gomes da Silva (1964-65)

DIRETOR

CONSELHEIRO Eduardo da Silveira Gomes (1965), José Pires de Almeida (1965)

Guilherme Júlio Borghoff (1964-67)

Fernando Egídio de Souza Murgel (1964-66)

Guilherme Julio Borghoff (1964-66)

José Agostinho Trigo Drumond Gonçalves (1964-66)

Leônidas Lopes Borio (1964-67)

Napoleão Fontenelle da Silveira (1965)

Karlos Heinz Rischbieter (196567), Cyro Toledo Piza (1966)

Paulo Assis Ribeiro (1965-69)

Wanderbilt D. de Barros (1965), César Reis de Castanhede (1965), Hélio de Almeida Brum (1965), Jaul Pires de Castro (1965), Waldiki Cardoso de Moura (1966)

Edvaldo de Oliveira Flores (196567), José Agostinho T. Drumond Gonçalves (1965-67), Flávio da Costa Brito (1965-69), Claudio Cecil Polland (1965-67), Julian Magalhães Chacel (1965-68), João Quintiliano de A. Marques (196568), Edgard T. Leite (1965-67) Copérnico de Arruda Cordeiro (1965-66)

Paulo Accioly de Sá (1962-68) Benedito Fonseca Moreira (1964-66) Guilherme Júlio Borghoff (1964-67), Eraldo Cravo Peixoto (1966), José Lobo Fernandes Braga (1967) Carlos de Castro Torres (1964-67)

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Marcos Vinicius Pratini de Moraes (1964)

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Cia Brasileira de Adauto Esmeraldo Guilherme Júlio Borghoff, Armazenagem (1964-65) Adyr Maia (1964), Jim (CIBRAZEM) Barbosa (1965) (1962–90) Empresa Pública Superintendência da Amazônia (SUDAM) (1966) Fonte: tabela feita pela autora a partir de informações coletadas.

Nelson de Figueiredo Ribeiro (1964-66)

O economista Dênio Chagas Nogueira, líder no IPES-Rio, em 1965, deixou o cargo de diretor da SUMOC para assumir a presidência no BCB e ser membro do Conselho Monetário Nacional (CMN). Na sua administração no BCB foram aplicadas “medidas que beneficiaram os setores exportadores e associados da economia (com a desvalorização do cambio, facilitando a exportação e os investimentos internos) e o grande capital (com a restrição ao crédito)” (TEIXEIRA, 2011, p. 113). O economista José Garrido Torres, líder do IPES-Rio com grande atuação na criação das estratégias políticas e nos congressos organizados pelo Instituto, de diretor da SUMOC assumiu a presidência do BNDE e do FINAME, a direção do CMN e membro do Conselho Nacional de Economia (CNE). Além do IPES, foi membro da Sociedade Civil de Planejamento e Consultas Técnicas Ltda (CONSULTEC)10, da Análise e Perspectiva Econômica (APEC)11, editor diretor da revista Conjuntura Economia, da FGV e Cadernos Brasileiros, todos envolvidos na conspiração. No setor privado, Torres foi conselheiro (1962-1964) da Decred S/A Financiamento, Investimento e Crédito, juntamente com os ipesianos Mário Henrique Simonsen e José Luiz Moreira de Souza; diretor presidente do Banco Lowndes (1967); e da Finco Consórcio Financeiro, Crédito e Investimento (1970) e conselheiro fiscal da Companhia de Seguros Cruzeiro do Sul. As quatro empresas financiaram o IPES. O líder do IPES-Rio, José Luiz Bulhões Pedreira foi assessor do BCB e responsável pela maior parte da legislação financeira do período (Lei de Mercados de Capitais), que estabeleceu

10

Escritório de consultoria com conexão com o grupo de poder formado também pelos interesses multinacionais e associados, aos quais seus membros pertenciam. Preparou diversos estudos para o IPES. 11 Organização tecnoempresarial e político-burocrática formada por economistas, administradores do governo e empresário sob a liderança de Roberto Campos. A APEC produziu diversas publicações contra os intelectuais das classes subordinadas e após 1964 preparou estudos de diretrizes econômicas.

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princípios para a reformulação das operações de câmbio e do mercado financeiro, que eram dirigidas por financistas relacionados com o IPES (DREIFUUS, 2006, p. 453). O economista e professor Jorge Duprat de Britto Pereira (IPES-Rio) ocupou cargo no setor administrativo do BNDE. No setor privado foi diretor da Verolme Estaleiro Reunidos do Brasil. O engenheiro Alberto Lélio Moreira também trabalhou no setor administrativo do BNDE. No setor privado foi conselheiro fiscal, em 1963, do Banco Haller. A Verolme e o Banco Haller custearam o IPES. O banqueiro Fernando Machado Portela do Banco Boa Vista, que financiou o IPES, primeiramente atuou na direção do BNH e, posteriormente, no conselho. O economista e banqueiro Mário Henrique Simonsen (Banco Bozano Simonsen) foi membro da CONSULTEC, APEC e FGV. No IPES-Rio escreveu diversos artigos produzidos pelo IPES, tais como Reforma Tributária e A Experiência Inflacionária do Brasil (1964). No setor privado foi diretor da Decred S/A, que como o Banco Bozano, financiou o IPES. O jornalista, banqueiro e fazendeiro Herbert Victor Levi (Gazeta Mercantil, Banco da América, Fazenda Santa Maria) foi diretor da CEF. Em 1963 criou o jornal Notícias Populares. Voltado para o público de baixa renda, o jornal difundiu matérias para convencer seus leitores da necessidade de refutar não só o comunismo, mas também o governo. O Banco América, em 1969, tornou-se banco Itaú-América que cooperava financeiramente com o IPES. Joviano Rodrigues Moraes Jardim foi conselheiro da CEF. No setor privado foi diretor do Banco Hipotecário e Agrícola de Minas Gerais, que contribuía financeiramente com o IPES. No IPESRio era responsável pela “caixinha” para assuntos administrativos (DREIFUSS, 2006). O industrial e banqueiro Luiz Dumont Villares (Aços Villares S/A, Atlas Elevadores, Villares Industrial e Grupo Financeiro, Banco Comércio e Indústria de São Paulo etc.) líder do IPES-SP, foi muito atuante na política defendendo os interesses de sua classe desde 1951 quando fez parte da comissão de técnicos da Comissão de Desenvolvimento Industrial (CDI).12 No período de 1963 a 1967 foi presidente da Associação Brasileira para o Desenvolvimento da 12

A CDI formulou um Plano Geral de Industrialização para o País. Era subordinada ao Ministério da Fazenda, com o propósito de impulsionar a política industrial. Participavam da Comissão, técnicos, militares e empresários como Euvaldo Lodi, Luís Dumont Villares (IPES), Edmundo de Macedo Soares (IPES), Lucio Meira, Augusto Frederico Schmidt (IPES), entre outros (CAPUTO e COSTA, 2009).

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Indústria Básica (ABDIB), período em que inclui a presidência da COSIPA, os conselhos da CSN (1964) e da Volkswagen (1964). Foi membro do Centro das Indústrias do Estado de SP (CIESP), da Federação das Indústrias do Estado de SP (FIESP), American Chamber of Commerce, as quais trabalharam em parceria com o IPES. Em 1965, Villares e alguns diretores da COSIPA pediram exoneração dos seus cargos porque tiveram seus nomes comprometidos em irregularidades cometidas na empresa. De acordo com relatório de um IPM, estavam sendo acusados de “malversação de bens e omissão ante a ação dos sindicatos pelegos-comunistas” 13. A presidência da Eletrobrás foi assumida pelo engenheiro Octávio Marcondes Ferraz. Ferraz foi da elite orgânica do IPES-SP e teve uma participação na conspiração contra Goulart que iniciou quando estava estudando e planejando a construção da Hidrelétrica Salto de Sete Quedas, no rio Paraná, a convite do ministro das Minas e Energia, Gabriel Passos, em 1962. No seu discurso de posse mostrou que iria prevalecer o setor privado “à frente da empresa vai agir conforme sua tradição democrática, favorável à iniciativa privada” e “vai imprimir na estatal e nas suas subsidiárias a mentalidade de empresa privada”14. No setor privado, trabalhou em empresas contribuintes do IPES, tais como Rhodia, Oxigênio do Brasil e Grupo Sul América. O empresário Guilherme Júlio Borghoff (Borghoff S.A Com. e Téc. de Máquinas, Motores e Equipamentos) pertenceu ao IPES-Rio, tendo funções no Conselho Orientador e Comitê Diretor. Simultaneamente, foi presidente da SUNAB, da CFP e da CONEP; e diretor da CIBRAZEM. Em associações de classe foi membro da Associação Comercial do Rio de Janeiro, da Confederação Nacional do Comércio (1956), da Associação dos Diplomados da ESG (ADESG), da Associação Nacional de Máquinas, Veículos e Peças. As associações tinham vínculos com o IPES. Em 1965, Borghoff e outros dirigentes da SUNAB apoiaram a realização da “Marcha com Deus pela Estabilização de Preços” organizada pela Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE)15 com objetivo de comemorar o primeiro ano da “Revolução” e de abrirem uma nova frente de luta contra a alta dos preços.

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Jornal Correio da Manhã, 23.01.65, Capa. Jornal Correio da Manhã, 07.05.64, 1º Caderno, p. 2. 15 A CAMDE, e outras associações femininas, foram financiadas e orientadas politicamente pelo IPES para exercerem pressão na sociedade contra o governo Goulart. Foi a principal organizadora da “Marcha da Vitória” realizada no Rio de Janeiro logo após o golpe, em 2 de abril de 1964. 14

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O engenheiro, economista, professor e tecnoempresário Paulo Assis Ribeiro (Escritório Técnico Paulo de Assis Ribeiro - ETPAR) foi um dos intelectuais orgânicos mais atuantes no IPES-Rio, com enorme produção de artigos e estudos sobre reforma agrária, que serviram de base para a elaboração do Estatuto da Terra. Além da ETPAR e do IPES, trabalhou também na CONSULTEC, que atuavam de maneira orgânica e articulada junto a executivos estaduais e federais. Foi um dos principais membros do Grupo de Trabalho sobre o Estatuto da Terra (GRET), que elaborou a legislação agrária do Estatuto da Terra, além de exercer, em 1965, a presidência do IBRA.16 O economista Julian Magalhães Chacel, diretor do IBRA, foi do IPESRio, além de diretor do Instituto Brasileiro de Economia, da FGV e membro da ESG. O engenheiro agrônomo Eudes de Souza Leão Pinto foi um dos líderes do IPES-RJ. Diplomado pela ESG, em 1962, diretor da ADESG (1963-1964) e do Rotary Club e presidente do IBRA. Membro da Confederação Rural Brasileira (CRB) e do grupo do ministro Roberto Campos para estudar o Estatuto da Terra. No setor privado trabalhou na Nordestina S/A Crédito, Financiamento e Investimento – SANBRA.

Referências: ABRANCHES, Sérgio Henrique. A questão da empresas estatal – economia, política e interesse público. Rev. Adm. Emp. Rio de Janeiro, 19(4): 95-105, out/dez, 1979. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil 1964-1985. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2005. BORTONE, Elaine de Almeida. A participação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) na construção da reforma administrativa na ditadura civil-militar (1964-1968). Dissertação de mestrado. UFF, 2013. DRAIBE, Sonia. Rumos e Metamorfoses. Estado e industrialização no Brasil 1930-1960. São Paulo: Paz e Terra, 2004. DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2006.

16

Em 1964 o senador Josafá Marinho (BA) apontou como ilegal a nomeação de Paulo Assis Ribeiro. Segundo Josafá, a presidência do IBRA, conforme lei que criou o Instituto, só poderia ser atribuída a um dos 5 membros da diretoria do mesmo (Correio da Manhã de 21.05.65, 1º Caderno, p.8), da qual ele não fazia parte.

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EVANS, Peter. A tríplice aliança. As multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política, vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. MENDONÇA, Sonia Regina e FONTES, Virgínia. História do Brasil recente 1964-1992. São Paulo: Ática, 2004. TEIXEIRA, Ricardo Gilberto Lyrio. Reforma Financeira e Banco Central do Brasil em tempo de capital monopolista (1964-1967). Dissertação de mestrado, UFF, 2011. POULANTZAS, Nico. O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

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O INSTITUTO BRASILEIRO DE MINERAÇÃO (IBRAM) – A ATUAÇÃO DO APARELHO PRIVADO DE HEGEMONIA DOS MINERADORES NA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE (1987-1988) Ana Carolina Reginatto1 RESUMO: Lastreada no pensamento crítico legado por Marx, a reflexão de Antonio Gramsci pensa o Estado em sua forma ampliada, incorporando dialeticamente a complexa interação entre a sociedade civil – arena da luta de classes e espaço da organização das vontades e das disputas pela afirmação hegemônica de projetos classistas – e a sociedade política – o conjunto dos aparelhos e agências do poder público, as instâncias específicas do Estado em seu sentido restrito. Sob tal perspectiva, os aparelhos privados de hegemonia são os espaços concretos onde dita organização das vontades toma forma, através de instâncias associativas de adesão voluntária sob os mais variados formatos (clubes, jornais, partidos, igrejas, etc.). Partindo deste arsenal teórico, propomos discutir neste trabalho a atuação do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), como o principal aparelho privado do empresariado do setor da mineração, junto à Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988). Criado em dezembro de 1976, o IBRAM surgiu em um contexto de implementação da distensão política e de emergência das primeiras dissidências significativas dos setores mais importantes da burguesia brasileira com o regime ditatorial, durante o governo Ernesto Geisel (1974-1979). Tais divergências emergiram, sobretudo, a partir da adoção de um conjunto de medidas pelo governo para centralizar a formulação de políticas públicas na cúpula estatal, promovendo o rearranjo dos instrumentos e rotinas decisórias, em meio ao acirramento da crise econômica mundial dos anos 1970. As modificações engendradas repercutiram diretamente nas ligações orgânicas estabelecidas entre a burguesia e o aparelho de Estado, restringido o acesso privilegiado das organizações privadas às esferas decisórias. Dessa forma, pretendemos analisar a construção de “visões de mundo” e a organização da ação política da fração de classe vinculada ao setor da mineração através do IBRAM nesse período e, principalmente, na correlação de forças da Assembleia Constituinte.

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Mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ) – bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Este trabalho informa alguns resultados preliminares da minha pesquisa de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, sobre as relações entre os empresários da mineração e o regime ditatorial brasileiro. Dessa forma, nosso objetivo principal é apresentar a articulação dos interesses desse empresariado através do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), junto a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988). Breve histórico O IBRAM foi criado em um contexto muito particular para a indústria da mineração mundial e para o regime instaurado no Brasil no pós-1964. De acordo com Maria Clara Couto Soares, em meio à crise econômica internacional que marcou a década de 1970, o boom vivenciado pela indústria mineral desde o fim da Segunda Guerra Mundial foi interrompido. Com o declínio do crescimento da economia mundial e a crescente instabilidade monetária, houve uma profunda modificação na estrutura da demanda por matérias-primas – o que influenciou diretamente a estratégia das multinacionais nos países subdesenvolvidos, assim como a atuação das empresas estatais voltadas ao setor (SOARES, 1987, p. 44). Já no plano nacional, os efeitos da política econômica implementada pelo governo de Ernesto Geisel (1974-1979) começavam a se tornar ineficientes e verdadeiros instrumentos do endividamento público que explodiria na década de 1980 (TAVARES; ASSIS, 1985). Além disso, as mudanças administrativas implementadas a partir de 1974 provocaram a primeira dissidência significativa dos setores mais importantes da burguesia brasileira com o regime. Sobre esse último ponto, Adriano Codato afirma que o conjunto de medidas tomadas pelo governo de turno destinadas a “racionalizar” a formulação de políticas públicas promoveram o rearranjo dos instrumentos e das rotinas decisórias, centralizando o poder na cúpula estatal.2 As modificações engendradas repercutiram diretamente nas ligações orgânicas estabelecidas entre a burguesia e o aparelho de Estado, restringido o acesso privilegiado das organizações privadas às esferas decisórias. A crítica das frações burguesas passou a se articular em torno da estatização, isto é, da concentração de poder pela cúpula estatal e do crescimento 2

Dentre as medidas adotadas, o autor destaca a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico para controlar o processo de formulação e implementação das políticas públicas e a “depuração” do aparelho econômico do Estado com a eliminação dos mecanismos de representação corporativa, através da modificação da constituição e da competência de inúmeros conselhos setoriais.

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da intervenção do Estado na economia – incluindo, uma posição contrária à autonomia “excessiva” das empresas estatais. Segundo o autor, tais críticas acabaram se unificando às bandeiras contra “autoritarismo” do regime, defendidas, cada vez mais, por amplos setores sociais. No entanto, Codato ressalta que os discursos empresariais pró-distensão, não significavam exatamente uma luta pelo aprofundamento da chamada abertura política ou pelo restabelecimento do Estado de direito, e sim, o atendimento de suas reivindicações específicas, revelando a natureza (restrita) da democracia pretendida (CODATO, 1995). Fundado em dezembro de 1976, o Instituto não deixou de se posicionar sobre o assunto. Em discurso proferido durante a sessão solene de criação do IBRAM, Francisco José Pinto de Souza, diretor da empresa Magnesita S.A. e membro da Comissão Organizadora do Instituto, afirmou: Na conjuntura atual, julgo ser necessário que o Estado exerça um policiamento das atividades privadas, visando ao interesse do desenvolvimento nacional e evitando o abuso do poder econômico. Por outro lado, entretanto, considero absolutamente essencial [que] seja reconhecido, aos grupamentos empresariais, o direito de defesa de seus pontos de vista, bem como participar do estabelecimento da legislação fiscalizadora e sugerir incentivos, que só têm a ser melhorados com sua participação ativa, dada a vivência que têm dos problemas (Mineração Metalurgia, 1976, n° 381).

Em relação à Companhia Vale do Rio Doce, Souza reconhecia a eficácia da gestão empresarial adotada pela administração da estatal sem, contudo, deixar de apontar a necessidade de controle de sua autonomia e um possível processo de desestatização no futuro. Um argumento que se utilizava no passado, contra a estatização, [consistia] em indicar a proverbial ineficiência do Estado como empresário; hoje, entretanto, pelo menos em sua generalização, não podemos sustentar tal conceito, pois a algumas empresas estatais não se pode negar notável agressividade empresarial e sucesso no campo industrial, superior mesmo a muitas empresas privadas consideradas bem estruturadas. Para ficarmos no campo da mineração, ninguém pode, atualmente, com isenção, negar tais qualificações à Cia. Vale do Rio Doce (mesmo descontando-se o privilégio que goza, atuando ora como Estado, ora como Empresa privada). (...) enquanto não for conveniente sua desestatização, faz-se mister que o Governo realize um “autopoliciamento”, evitando que se [torne] “estado dentro do estado” (Mineração Metalurgia, 1976, n° 381).

O estatuto do IBRAM previa como um dos seus principais objetivos, justamente, “representar as empresas associadas, no campo da mineração, junto aos órgãos governamentais do País ou quaisquer outras entidades públicas” (Mineração Metalurgia, 1976, n° 381). Para 753

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tanto, deveria voltar-se também para a sociedade em geral, esclarecendo e reafirmando a importância da indústria mineral para a nação. Nas palavras de Francisco de Souza: Outra missão do Instituto, da maior importância, consistirá em estabelecer um contínuo esclarecimento da opinião pública do que consiste a Indústria Mineradora, cuja missão tem sido, de longa data, continuamente deturpada (...). A atividade mineradora tem, em consequência, sido acusada de predatória, poluidora e contrária aos interesses nacionais e regionais, quando o que realmente ocorre é, rigorosamente, o oposto. Deve ser considerada atividade da mais alta prioridade nacional, como abastecedora de matéria-prima para a transformação interna e como fonte criadora de divisas para a nação (Mineração Metalurgia, 1976, n° 381).

De acordo com Francisco de Souza, a ausência de uma entidade que congregasse os interesses gerais de todo o setor foi o principal motivo para a criação do IBRAM, tendo como inspiração a atuação do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS).3 A ação objetiva, arregimentando os interessados e agilizando sua fundação, partiu do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) – mais precisamente de seu diretor, Abílio dos Santos, e do superintendente da área mineral e industrial, José Mendo Mizael de Souza (Mineração Metalurgia, 1976, n° 381). Entre 1976-1988, a presidência e o conselho do Instituto expressaram a presença dos três capitais envolvidos com o setor da mineração ao longo da ditadura, com a participação de empresas estatais (Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, Cia. Vale do Rio Doce e Cia. de Pesquisa e Recursos Minerais); do capital privado nacional (Votorantim, Magnesita, Metropolitana, Paranapanema, Ferbasa, Brumadinho, Carbonífera Araranguá, etc.) e do capital estrangeiro, através de empreendimentos próprios (Grupo Arbed, Alcoa, Alcan, General Eletric, Hanna Mining e Brascan) ou de forma associada (CBMM/Union Oil Corporation, Bozano Simonsen/Anglo American e Caemi/Bethlehem Steel/Nippon Steel/Hanna Mining). No caso do corpo de conselheiros, é de importante destacar a presença de fundadores/presidentes de grandes mineradoras e de três empreiteiras nacionais. Como podemos observar no Quadro 1.1. Quadro 1.1. Membros do Conselho do IBRAM (1976-1988) Conselheiro 3

Empresa

O IBS foi criado em 1963.

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Abílio dos Santos Alexandre Misk Antônio Ermírio de Moraes Augusto Trajano de Azevedo Antunes Fernando Antônio Roquette Reis Gabriel Donato de Andrade Hélio Pentagna Guimarães Henrique Guatimosim Ivo Barone Jacques Sidney Porto José Ferreira Leal José Mário Tavares de Oliva Neuclayr Martins Pereira Paulo José de Lima Vieira Sílvio Guedes Eliezer Batista Luíz Aníbal de Lima Fernandes Marcelo Ribeiro Tunes Gerson Dias José de Andrade Ramos Realdo Santos Gugliemi Walther Moreira Salles

Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais Pesquisa e Lavra Consultoria e Emp. Ltda. Companhia Mineira de Metais/ Grupo Votorantim Caemi/Grupo Antunes Companhia Vale do Rio Doce Andrade Gutierrez Mineração Ltda Magnesita S.A. S.A. Mineração Trindade – SAMITRI/Grupo Arbed Alumínio Poços de Caldas S.A./Alcan Manganoférrea Mineração Ltda. Tricontinental Comércio e Participações S.A./ Grupo Brumadinho Cimento Tupi S.A. Mineração Oriente Novo S.A./Grupo Brumadinho Convap Mineração S.A. Prospec S.A. Companhia Vale do Rio Doce Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais Mineração do Cerrado S.A. Cimento Cauê Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais Carbonífera Metropolitana S.A. Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM)

Alain Juan Pablo Belda Companhia Geral das Minas/ Grupo Alcoa Fernandez Álvaro Luís Bocaiúva Catão Cia. Brasileira Carbonífera de Araranguá José Corgosinho de Carvalho Companhia de Ferro Ligas da Bahia (Ferbasa) Filho Dragagem Fluvial S.A./Grupo Hanna Mining e Lucas Lopes Brascan Paulo Fernando Bahia Mineração Marex Ltda./Grupo General Eletric Guimarães Sérgio Jacques de Moraes Companhia Minas da Passagem Brigitte Barreto Mineração Areiense S.A. Daniel Sydenstricker Caemi/Grupo Antunes J. Murilo Valle Mendes Grupo Mendes Jr Mineração Morro Velho S.A./ Mário Ferreira Grupo Anglo American e Bozano Simonsen Octávio Cavalcanti Lacombe Paranapanema S.A. Raimundo Pereira Mascarenhas Companhia Vale do Rio Doce Roberto Paulo Cesar de Andrade Cia. Estanífera do Brasil S.A./ Grupo Brascan Agripino Abranches Viana Companhia Vale do Rio Doce Fonte: Revista Mineração Metalurgia, nº 381, 411, 418, 428, 436, 454, 481, 495; FERNANDES, F.R.C. et al. Os maiores mineradores do Brasil. op.cit.

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Hélio Pentagna Guimarães era presidente da Magnesita S.A., empresa criada em 1940 para explorar grandes jazidas de magnesita no interior do estado da Bahia a partir da associação de capitais entre as famílias Mariani Bittencourt (sócio minoritário) e Pentagna Guimarães. As duas famílias eram tradicionais participantes do setor financeiro. Os Mariani Bittencourt tinham atuação, quase que exclusivamente, no estado da Bahia, destacando-se pelo controle acionário do Banco da Bahia Investimentos, da Companhia de Seguros da Bahia e com participação minoritária em importantes empreendimentos do polo petroquímico baiano.4 Já a família Pentagna Guimarães era proprietária do Banco BMG. O Grupo Magnesita controlava diversas empresas de mineração e do setor de refratários, tendo como principal consumidor o setor siderúrgico nacional (FERNANDES et al, 1982, p. 727-762). No período pré-golpe de 1964, Guimarães foi membro Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES),5 em sua sucursal mineira (STARLING, 1986). Além disso, foi o primeiro presidente do IBRAM. Antônio Ermírio de Moraes, era presidente do setor minero-metalúrgico do grupo Votorantim. As origens do conglomerado remontam ao início do século XX, quando o imigrante português Antonio Pereira Ignácio, comerciante de algodão, adquiriu a empresa têxtil Fábrica Votorantim, em 1917. A partir daí, muito pela atuação do genro de Pereira Ignácio, José Ermírio de Moraes, o grupo foi diversificando suas atividades ao longo das décadas de 1930 e 1940, passando a atuar nos setores de cimento, químico (Cia. Nitro Química Brasileira), aço (Siderúrgica Barra Mansa), máquinas e equipamentos (Indústria e Comércio Metalúrgica Atlas), refratários (Indústrias Brasileiras de Artigos Refratários e Cerâmica Bicopeba) e na produção de alumínio (Cia. Brasileira de Alumínio). O início das atividades do complexo industrial de alumínio, em 1955, aliás, abriu caminho para a entrada definitiva do grupo na mineração, principalmente, no setor de metais não-ferrosos. Nessa área, durante a ditadura, o grupo iniciou a exploração de zinco em Minas Gerais (Cia. Mineira de Metais); participou do consórcio Mineração Rio do Norte para explorar bauxita no Pará (junto com a CVRD, Alcan, Royal Dutch Petroleum, Reynolds Metals, Norks Hydro e Alumina Española); e iniciou a exploração de 4

O patriarca da família, Clemente Mariani Bittencourt, advogado de formação, foi deputado pelo estado da Bahia (19241930), ajudou a formar o Partido Social Democrático (PSD) baiano, foi deputado constituinte (1933-1934), diretor da Associação Comercial da Bahia, diretor e presidente do Banco Comercial da Bahia e do Banco da Bahia a partir de 1942, Ministro da Educação e Saúde (1946-1950), presidente do Banco do Brasil (1954-1955) e Ministro da Fazenda do governo Jânio Quadros (1961). (ABREU, 2010). 5 O IPES, foi um importante aparelho de organização empresarial-militar para a ação política dos agentes do capital multinacional e associado na desestabilização do governo de João Goulart (DREIFUSS, 1981).

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níquel em Tocantins (Cia. Níquel Tocantins). Além disso, entre o final dos anos 1960 e início da década de 1970, o grupo ampliou consideravelmente suas reservas minerais, criando 12 empresas para atuarem como concessionárias de jazidas minerais (minas descobertas, mas sem exploração) (FERNANDES et al, 1982, p. 289-333). Um dos mentores do IPES, Augusto Trajano de Azevedo Antunes, foi um dos maiores empresários da mineração, ao longo do período analisado. Seu primeiro grande empreendimento no setor foi a exploração de manganês na Serra do Navio (AP), iniciada no final dos anos 1940, com a criação da Indústria e Comércio de Minérios S.A. (ICOMI). A empresa, a princípio, controlada apenas por Antunes, associou-se ao grupo norte-americano Bethlehem Steel Corp. a partir de 1951. Para legalizar a união societária, Antunes criou a Companhia Auxiliar de Empresas de Mineração (Caemi), por ele controlada, para atuar como uma holding detendo 51% das ações da ICOMI e os outros 49% como propriedade da Bethlehem Steel. Durante a ditadura, o grupo Caemi/Antunes criou uma nova holding, a Empreendimentos Brasileiros e Mineração (EBM), para centralizar as negociações de capital, custeio, financiamento e contratos para a venda do minério explorado pela Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), criada em 1965, no projeto Águas Claras (MG). O grupo Caemi/Antunes controlava 60% das ações da EBM, com associação da ICOMI (20%) e de um consórcio japonês6 (20%). A EBM detinha 51% das ações da MBR, sendo os outros 49% de propriedade da empresa norte-americana Hanna Mining Co. O grupo Caemi/Antunes também passou a atuar em outros setores, com participações no setor siderúrgico (Aços Anhanguera S.A.), de celulose (AMCEL – Amapá Florestal e Celulose S.A.) e de madeira (Brumasa – Madeiras S.A.). Além de ampliar, sobretudo, no início dos anos 1970, suas reservas minerais com a criação de 11 novas empresas – entre elas, duas em associação com a empresa norte-americana Union Carbide Co. (FERNANDES et al, 1982, p. 339-383) Walther Moreira Salles era fundador do grupo Moreira Salles, proprietário do Unibanco e de diversos empreendimentos em outros setores econômicos (BRANDÃO, 2016). Na mineração, o grupo detinha o controle acionário da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), em associação com a Molycorp Inc. – subsidiária da norte-americana Union Oil. A empresa foi criada em 1965, através da compra da participação que família Melo 6

Faziam parte desse consórcio: Nippon Steel Corp., Nippon Kokan, Kawasaki Steel Corp., Sumitomo Metal Ind., Kobe Steel, Mitsui & Co., C. Itoh & Co., Marubeni Corp., Sumitomo Corp. e Mitsubshi Corp.

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Vianna detinha na Distribuidora e Exportadora de Adubos e Minerais (DEMA), para a explorar nióbio em Araxá (MG). Logo em seguida, a Molycorp Inc. adquiriu os direitos que a empresa Wah Chang Corp. possuía no mesmo empreendimento. A partir de 1972, a CBMM entrou no consórcio Cia. Mineradora do Pirocloro de Araxá (COMIPA), tendo como sócio majoritário a Companhia Agrícola de Minas Gerais (CAMIG), empresa estatal. No mesmo período, o grupo Moreira Salles adquiriu o controle acionário da mina de ouro Morro Velho, antiga Saint John Del Rey Mining Company, palco do imbróglio envolvendo o grupo Hanna no começo dos anos 1960. Entretanto, no início da década de 1980, os Moreira Salles venderam a empresa ao grupo Anglo American Corporation (em associação com grupo brasileiro, Bozano Simonsen) (FERNANDES et al, 1982, p. 421-462). Octávio Cavalcanti Lacombe era fundador do grupo Paranapanema, criado a partir da atuação da empreiteira Cia. Construtora Paranapanema S.A., fundada por Lacombe em 1961. Durante o regime militar, a construtora se transformou na Paranapanema S.A. Mineração, Indústria e Construção, atuando no setor minero-metalúrgico através da exploração e beneficiamento de cassiterita, na metalurgia do estanho (Mineração Aripuanã S.A., Mineração Taboca S.A. e Mamoré – Mineração e Metalurgia S.A.) e na área de minerais não-metálicos (Minérios Brasileiros Mineração e Industrialização Ltda – MINEBRA) (FERNANDES et al, 1982, p. 809-834). Outros três fundadores/presidentes de grandes construtoras nacionais estavam presentes no Conselho: a Alcindo Vieira – Convap, a Andrade Gutierrez e a Mendes Júnior. De acordo com Pedro Campos, ao final da ditadura, as construtoras ampliaram suas áreas de atuação para ramos paralelos à construção, como o petroquímico, a agroexportação e a mineração (CAMPOS, 2014, p. 127). O direcionamento das políticas estatais para esses setores atraiu os grandes empreiteiros a injetar capitais nos projetos de mineração do período. As facilidades encontradas para a inversão de capitais iam desde a semelhança entre os equipamentos utilizados na construção e na atividade mineradora, até a presença física das empreiteiras em regiões onde a exploração mineral começava a se expandir. Assim, a Convap, por exemplo, explorava minério de ferro no Mato Grosso (em associação com a Vale do Rio Doce e a Cia. Mato-Grossense de Mineração); a Andrade Gutierrez, participou do projeto Carajás (junto com a Camargo Corrêa) e a Mendes Júnior passou a explorar bauxita no Pará. 758

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O IBRAM e a Constituinte (1987-1988) Na obra O jogo da Direita, publicada em 1989, o cientista político René Dreifuss faz uma instigante análise sobre a ação política organizada do empresariado brasileiro junto à Assembleia Constituinte. De acordo com o autor, em um curto espaço de tempo, surgiram novas organizações de aglutinação, planejamento e coordenação política para enfrentar as disputas “a campo aberto” que viriam em sequência, com as eleições de governadores e membros da Assembleia Nacional Constituinte em 1986, com o funcionamento da própria Assembleia entre 1987-1988, e com a eleição presidencial – posteriormente, marcada para 1989. (DREIFUSS, 1989, p. 62). Dreifuss destaca que o período entre o pleito de 1986 até o final dos trabalhos da Constituinte, foi marcado por uma ampla rearticulação empresarial, passando por diferentes estágios: criação de novas entidades de mobilização (os “pivôs político-ideológicos”); organização do lobby por associações/federações/sindicatos patronais para o apoio logístico e o combate localizado; alinhamentos setoriais, coligações e articulações intermediárias em diversas áreas (sindical, militar, partidária); e lançamento de frentes conjugando eixos empresariais, partidos e candidaturas (DREIFUSS, 1989, p. 45). Nesse sentido, é preciso ressaltar as especificidades do momento histórico que as forças políticas e sociais atravessam no país. Com o fim derradeiro da ditadura, empresariado e setores populares passavam a medir forças no “jogo aberto” do Parlamento (ainda que com todas as restrições de seu caráter burguês). Os trabalhos da Assembleia Constituinte, portanto, representavam um momento crucial de reorganização do regime de dominação no Brasil, impelindo as frações de classe empresariais (com suas novas e velhas organizações) a articularem a ação política necessária para a preservação da dominação capitalista no país. Diante de tal cenário, a atuação do IBRAM, como principal aparelho privado de hegemonia do setor da mineração, voltou-se a articulação de seus interesses junto aos constituintes sem, contudo, abrir mão de tornar público seus objetivos “para toda sociedade”, articulando o desenvolvimento da Nação ao desenvolvimento da mineração. Vejamos. Tanto a legislação específica (Código de Mineração), quanto a Carta Constitucional vigentes antes da instauração da Constituinte, haviam sido promulgadas durante o regime 759

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ditatorial. De modo geral, o IBRAM defendia justamente a manutenção de tal arcabouço jurídico, especialmente, os seguintes pontos: separação da propriedade do solo e do subsolo; participação do proprietário do solo nos resultados da lavra (e não, indenização); competência privativa da União para legislar sobre minas, sob o regime de concessão; imposto único sobre minerais; e livre participação societária (de capitais estrangeiros e nacionais) nas empresas de mineração. Tais reivindicações foram materializadas em um documento distribuído aos deputados da legislatura em vigor à época e, posteriormente, aos constituintes (Mineração Metalurgia, nº 481, 1986). Nas palavras do presidente do Instituto, João Sérgio Marinho Nunes, em declaração à revista Mineração Metalurgia: No momento em que o país aproxima-se da hora em que os representantes do povo iniciarão os trabalhos da declaração da vontade política dos brasileiros, que é a Constituição, parece-nos oportuno colocar alguns aspectos relativos à Mineração. Primeiramente, vale destacar ser da maior importância que os constituintes, além de auscultarem cuidadosamente os anseios do Brasil de hoje, se debrucem no estudo da evolução constitucional do país, de modo a obter, da história brasileira, aqueles pontos que devem permanecer na Carta Magna. (...) Assim, face ao exposto, (...) sugere o IBRAM a manutenção de dispositivos constitucionais já consagrados em cartas anteriores (...). Que a declaração política do povo brasileiro permita à mineração exercer seu papel de base do desenvolvimento socioeconômico do país, são nossos votos. (Mineração Metalurgia, nº 479, 1986).

De acordo com Dreifuss, em um primeiro momento, a articulação do empresariado em geral, concentrou-se nas eleições de 1986 – que determinariam a configuração da Constituinte. Nesse sentido, “fabulosas somas de dinheiro” foram arrecadas por diversos grupos empresariais “dividindo o mapa eleitoral entre eles e canalizando recursos para candidatos específicos e agrupamentos políticos, evitando a sobreposição de esforços” (DREIFUSS, 1989, p. 102). Segundo o autor, o financiamento empresarial foi acompanhado de uma efetiva campanha política e de propaganda que perdurou durante toda a Constituinte. Tais “atividades de apoio”, articulando organizações políticas empresariais e militares, incluíram (...) a contenção da Igreja progressista; a desarticulação induzida dos adversários na área sindical; o estímulo a uma articulação sindical-operária favorável, escorando lideranças afáveis o incentivo a setores conservadores da Igreja que estipulassem um freio às atividades sócio-políticas dos setores progressistas; a “queimação” dos agrupamentos partidários ou figuras expressivas das esquerdas e a desagregação da opinião pública ampla (DREIFUSS, 1989, p. 99 grifos do autor)

Sob o comando do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), José Carlos Moreira Alves, a Assembleia Constituinte foi instalada em 1º de fevereiro de 1987. A distribuição 760

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partidária era a seguinte: PMDB com 303, PFL com 135, PDS com 38, PDT com 26, PTB com 18, PT com 16, PL com 7, PDC com 6, PCB com 3, PCdoB com 3, PSB com 2, PSC e PMB com 1 (ABREU, 2010).7 No atual estágio de nossa pesquisa, levantamos que ao menos dois constituintes eram ligados diretamente ao IBRAM, os deputados mineiros Bonifácio Andrada e Gastão Neves. Andrada foi indicado pelo presidente do Instituto, Marinho Nunes, como aliado nas discussões sobre a questão mineral (Jornal do Brasil, 28/04/1988). Já Gastão Neves, sobrinho de Tancredo Neves, tinha extenso currículo como advogado de empresas de mineração e, durante a Constituinte, era diretor da subsidiária mineral do grupo Paranapanema, Mineradora Taboca (Jornal do Brasil, 08/05/1988). Os debates dentro da Assembleia foram organizados por comissões – oito temáticas e uma de sistematização – respeitando-se a proporcionalidade partidária. À exceção da Comissão de Sistematização, onde a indicação dos integrantes foi feita pelos líderes dos partidos, cada constituinte tinha direito a uma vaga de titular e a outra de suplente. Depois de instaladas, cada comissão dividiu-se em três subcomissões. Dessa forma, as matérias que abrangiam o setor mineral ficaram concentradas, principalmente, na Comissão de Ordem Econômica. Os textos aprovados nas oito comissões foram encaminhados à Sistematização para que fossem compatibilizados em um único projeto constitucional. Em seguida, tal anteprojeto foi enviado ao plenário para votação em dois turnos. Entre abril e novembro de 1987, o anteprojeto constitucional foi sistematizado. Os principais pontos aprovados pela Comissão de Sistematização, que iam radicalmente contra aos interesses defendidos pelo IBRAM, giravam em torno da propriedade do subsolo, da conceituação de empresa nacional e empresa estrangeira, e da participação do capital forâneo na atividade mineradora. Segundo o texto aprovado, as riquezas minerais do subsolo pertencem à União e poderão ser concedidos, por tempo determinado, à empresas nacionais. Essas últimas deveriam ser constituídas no país, sob controle acionário de brasileiros aqui domiciliados. A propriedade do subsolo pela União, era visto pelo IBRAM como um processo de nacionalização contrário ao proposto pelo Instituto – com a defesa do regime de concessão. Ademais, a 7

Ao longo da Constituinte, no entanto, tal configuração sofreu algumas alterações, uma vez que, alguns parlamentares acabaram assumindo cargos nos executivos estaduais e federal; e uma parte expressiva mudou de legenda, sobretudo, com a criação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – uma dissidência peemedebista – em julho de 1988.

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delimitação de empresa nacional, determinava que o controle acionário das empresas de mineração ficasse a cargo de brasileiros, atacando os direitos de propriedade dos grandes grupos econômicos multinacionais do setor (mesmo em sua forma associada). O anteprojeto da Comissão de Sistematização foi apoiado por associações profissionais ligadas ao setor da mineração, como a Coordenação Nacional dos Geólogos (CONAGE), a Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) e a Federação das Associações de Engenheiros de Minas do Brasil (FAEMI) – além da Frente Parlamentar Nacionalista (EARP et al, 1988, p. 21). Já o IBRAM, logo procurou se posicionar radicalmente contra ao texto, afirmando que o futuro da mineração seria ameaçado – o que levaria ao desemprego e à estatização do setor. Nas palavras de Marinho Nunes: A grande dificuldade será encontrar parceiros nacionais que queiram e possam bancar os riscos da atividade mineral. Além disso, se o estrangeiro sente que não é bem-vindo deverá sair do país. Mas, tenho esperança de que o plenário da Constituinte mude isso, pois, caso contrário, não estará ajudando o país (Gazeta Mercantil, 20/11/1987).

O anteprojeto foi muito atacado pelo lobby empresarial (ultrapassando as trincheiras do IBRAM), sendo objeto de um substitutivo proposto pelo “centrão” – grupo suprapartidário criado para dar apoio ao governo Sarney na Constituinte, responsável, inclusive, por reviravoltas no regimento interno da Assembleia (ABREU, 2010). O substitutivo propunha a supressão da propriedade do subsolo pela União e atenuava as definições de empresa nacional, ao não especificar seu controle acionário por brasileiros (Jornal da Tarde, 28/04/1988). Como destaca Dreifuss, no entanto, apesar do enorme lobby, que incluiu a atuação de gigantes multinacionais petrolíferas e do próprio IBRAM, o texto final da nova Constituição, aprovou os recursos minerais como bens da União e, mesmo poupando as multinacionais cujas atividades de mineração eram destinadas à própria produção industrial (caso da Bayer e da Rhodia, por exemplo), determinou o controle acionário por brasileiros para empresas cuja a atividade-fim fosse mineradora – desde que as mesmas não industrializassem os minérios no país (DREIFUSS, 1989, p. 246). No entanto, mesmo sendo considerada uma derrota para os objetivos do IBRAM, não afetaram os maiores grupos estrangeiros do setor, uma vez que, a maioria deles já industrializava o minério no país (O Globo, 01/07/1988). Além disso, acreditamos na hipótese de que as novas 762

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determinações constitucionais abriram um novo ciclo de reorganização empresarial/societária das empresas de mineração no país, com novas associações entre grupos nacionais e estrangeiros – a ser comprovado com o aprofundamento da pesquisa. Referências Bibliográficas ABREU, Alzira Alves de et al (coords.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós1930. Rio de Janeiro: CPDOC, 2010. CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Niterói: Editora da UFF, 2014. CODATO, Adriano Nervo. “A Burguesia contra o Estado? Crise política, ação de c lasse e os rumos da transição”. In: Revista de Sociologia e Política. Universidade Federal do Paraná. nº 04-05, p. 55-87, 1995. DREIFUSS, René Armand. 1964 – a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis (RJ): Vozes, 1981. ______________________. O jogo da Direita. Petrópolis: Editora Vozes, 1989. EARP, Fábio Sá et al. A questão mineral da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: CETEM/CNPq, 1988. FERNANDES, Francisco Rego Chaves et al. Os Maiores mineradores do Brasil: perfil empresarial do setor mineral brasileiro. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1982. 3 volumes. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. STARLING, Heloisa Maria Murgel. Os senhores das Gerais: os novos inconfidentes e o golpe de 1964. Editora Vozes, 1986.

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MESA 14: “TRABALHO DOCENTE E DISPUTA DE HEGEMONIA: CONFLITO CAPITAL E TRABALHO NO COTIDIANO ESCOLAR” Coordenador: Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa (PPGEduc/UFRRJ) RESUMO: A mesa coordenada resulta de discussões acerca das mais recentes transformações do trabalho docente frente aos impactos da reforma gerencial do Estado na educação pública. As pesquisas partem do pressuposto de que o movimento de recomposição burguesa, iniciado a partir da crise estrutural do capital nos anos 1970, e a decorrente reorganização dos mecanismos de mediação do conflito entre capital e trabalho impactaram frontalmente a educação, em geral, e o trabalho docente, em particular. No Brasil, o ajuste da educação à reforma gerencial do Estado se desdobrou na difusão de novos modelos de gestão do trabalho escolar, na formação de um professor de novo tipo e na multiplicação de projetos e programas empresariais no interior das instituições públicas de ensino. Neste contexto, foi mobilizado um conjunto de organizações da classe dominante, tanto em âmbito internacional, quanto nacional, responsáveis por formular ações que evidenciam as propostas de conformação dos professores. Os trabalhos que formam esta mesa coordenada têm em comum a proposta de refletir a partir do conceito de intelectual, no sentido gramsciano, o trabalho docente na Educação Básica. A revisão de literatura, análise de fontes primárias e entrevistas com docentes foram alguns dos instrumentos utilizados para levantamento de dados. O foco da reflexão é analisar o papel histórico cumprido pelos professores diante da recomposição burguesa. São considerados ainda a metamorfose do trabalho docente e seus desdobramentos nos processos de assalariamento, sindicalização, proletarização e desprofissionalização, entendendo-os como característicos da histórica intensificação da exploração dos trabalhadores no sistema capitalista.

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ASSALARIAMENTO, PROLETARIZAÇÃO E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DOS TRABALHADORES DOCENTES

Hugo Leonardo Fonseca da Silva1 Resumo: Nas últimas duas décadas a preocupação em investigar o trabalho docente na perspectiva das Ciências Sociais tem se ampliado, buscando analisar e compreender desde os elementos inerentes ao labor e ao conhecimento desses trabalhadores até os determinantes sóciohistóricos que constituem a base material explicativa dos processos de trabalho e das formas de organização política presentes na profissão do magistério inserida no sóciometabolismo do capital. Entretanto, a questão do assalariamento do trabalho docente não tem se caracterizado como objeto de preocupação dos referidos estudos. A compreensão dos elementos constitutivos da dinâmica do estranhamento e da degradação do trabalho docente, bem como das formas de resistência por meio da organização político-sindical nos moldes das lutas sociais do proletariado perpassa pelos mecanismos históricos e contraditórios de assalariamento do magistério no interior da totalidade social do trabalho. O presente trabalho é um estudo teóricohistórico que trata da transformação do ofício do magistério em trabalho assalariado como resultado do processo de funcionarização dos professores e da estatização da educação escolar cujos desdobramentos histórico-concretos se caracteriza pela proletarização desses trabalhadores no Brasil e sua consequente organização político-sindical. O trabalho docente, portanto, tem se constituído conforme as contradições entre: a materialidade do assalariamento e as ideologias da vocação e do sacerdócio; a ambiguidade no que diz respeito condição de classe desses trabalhadores, em função da natureza intelectual do trabalho docente, da inserção de classe e da posição ocupada na divisão social e técnica do trabalho; e as formas contraditórias de remuneração da força de trabalho docente que sequer correspondem a reprodução das condições de sua manutenção, ligando-a geralmente ao circuito das políticas educacionais em vigor, condições estas que interferem de modo decisivo na organização político-sindical desses trabalhadores. Palavras-chave: trabalho docente; trabalho assalariado; sindicalismo docente; alienação; luta de classes

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- Mestre em Educação pela UFG, doutorando em Educação pela Unicamp e Professor Adjunto da UFG. [email protected]

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Introdução Nas últimas duas décadas a preocupação em investigar o trabalho docente na perspectiva das Ciências Sociais tem se ampliado, buscando-se analisar e compreender desde os elementos inerentes ao labor e ao conhecimento desses trabalhadores até os determinantes sóciohistóricos que constituem a base material explicativa dos processos de trabalho e das formas de organização política presentes na profissão do magistério inserida no sóciometabolismo do capital. Entretanto, a questão do assalariamento do trabalho docente é um tema de reduzida preocupação nos referidos estudos. A compreensão dos elementos constitutivos da dinâmica do estranhamento e da degradação do trabalho docente, bem como das formas de resistência por meio da organização político-sindical nos moldes das lutas sociais do proletariado perpassa pelos mecanismos históricos e contraditórios de assalariamento do magistério no interior da totalidade social do trabalho. O presente trabalho é um estudo teórico-histórico que trata da transformação do ofício do magistério em trabalho assalariado como resultado do processo de funcionarização dos professores e da estatização da educação escolar cujos desdobramentos histórico-concretos se caracterizam pela proletarização desses trabalhadores no Brasil e sua consequente organização político-sindical. Trabalho docente e as determinações do assalariamento da força de trabalho O trabalho docente aqui é compreendido como uma das expressão do trabalho social total, que se objetiva pelas mediações das circunstâncias determinadas de diferentes particularidades históricas. Assim, o trabalho docente representa o papel em que determinados indivíduos exercem, de forma profissional (professoras e professores), o ato de produzir conscientemente a humanidade construída social e historicamente em cada indivíduo singular. Tal definição compreende essa prática social como ação intencional que se materializa não só como exigência do e para o trabalho, mas ela própria (a prática educativa) se constitui como um processo de trabalho (SAVIANI, 2000). Saviani (2000, p. 16) identifica o trabalho educativo e, portanto, a intervenção do trabalho docente como “trabalho não-material” em que o ato de produção e o produto não se separam; a produção e o consumo dos processos educativos ocorrem simultaneamente. Para o autor, o “trabalho não-material” se refere à “[…] produção de idéias, conceitos, valores,

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símbolos, hábitos, atitudes e habilidades. Numa palavra, trata-se da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana.”. Entretanto, essa atividade, como as demais ações humanas, é realizada de acordo com determinadas circunstâncias histórico-sociais que medeiam a forma de ser do trabalho docente e dos trabalhadores que exercem essa atividade. Entre outras determinações, os elementos objetivos e subjetivos que estão presentes na materialização do trabalho docente são marcados pelas relações sociais de classe, compreendidas aqui como mediação central do processo de assalariamento do trabalho docente. A experiência e os estudos sobre as condições de exercício do trabalho docente nos mostra que esta é uma profissão extremamente degradada, marcada por processos alienantes e pela divisão técnica e social do trabalho, exercida mediante péssimas condições de trabalho – falta insumos pedagógicos, prédios mal-estruturados, salas insalubres e hiper-lotadas, formação insuficiente e precária, emprego temporário – e salários aviltantes diante das crescentes exigências e da quantidade de investimento necessário à sua reprodução como força de trabalho assalariada (formação superior inicial e permanente, cursos, livros etc). O assalariamento do trabalho docente é resultado dos processos de funcionarização dos professores e estatização da educação escolar. Na medida em que o Estado assume o papel de provedor central da educação escolarizada2, os trabalhadores docentes passam a fazer parte da massa assalariada dos funcionários da burocracia estatal. Os proventos individuais percebidos pelos professores em virtude dos serviços educacionais prestados para a comunidade ou para a igreja são substituídos pela remuneração salarial. De trabalhador individual, quase artesanal, os professores e professoras se tornam trabalhadores coletivos sem o controle pleno dos meios de produção de sua atividade. A questão do assalariamento do trabalho docente pode se configurar como um fator importante na elaboração de uma identidade política dos trabalhadores em educação, na medida em que o exercício do ofício de professor/a passa da esfera ideológica da “vocação” (nas suas diversas configurações) para o campo das relações de produção da vida material. Nesse sentido, esses trabalhadores e trabalhadoras se aproximam das condições de vida e de trabalho do conjunto dos trabalhadores assalariados e inicia um processo de construção de representações e

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- Sobre o processo de organização estatal da escola e a transformação dos professores em funcionários do Estado, ver Hypólito (2001) e Nóvoa (1991).

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de uma autorrepresentação com os setores oprimidos da sociedade na luta por dignidade e liberdade. De acordo com Hypólito (2001), o processo de proletarização do trabalho docente ocorre na medida em que essa atividade passa a ser caracterizada pelo regime assalariado, pela perda do controle sobre o processo do trabalho. A funcionarização do trabalho docente foi somente o primeiro passo na direção de organização do trabalho escolar nessas instituições a partir das formas de gestão e controle de trabalho presente nas empresas capitalistas. A partir daí decorreram os processos de desqualificação, degradação e fragmentação do trabalho, promovidos pela divisão técnica do trabalho que se caracteriza pela inserção da figura do especialista na educação. Outra questão importante resulta na crescente intensificação do trabalho docente objetivada: a) pela burocratização da atividade do magistério (preenchimento de fichas, relatórios, diários); b) pelos baixos salários que passam a exigir desses trabalhadores e dessas trabalhadoras uma longa jornada de trabalho a fim de complementar seus salários; e, c) pelas atuais exigências de formação do “novo trabalhador” que determinam aos professores a permanente qualificação – feitos geralmente às custas dos próprios trabalhadores, em cursos de finais de semana, prolongando, mais ainda, sua jornada de trabalho. A questão do assalariamento do trabalho docente implica num processo de adequação dessa atividade às determinações do capital sobre a totalidade do trabalho social, cujo resultado é a alienação do trabalhador por meio da expropriação dos meios de produção de sua atividade, de seu produto, de seu saber e dos processos de objetivação dessa atividade. Com o advento da estatização da educação e da massificação das instituições escolares, os professores passam à condição de dependência desses espaços para a efetivação do ofício, ou seja, a docência sai da esfera de atendimento particularizado e da condição de espaço extraordinário (na própria casa do mestre ou em locais improvisados para a realização de atividades de ensino) para a centralização das instituições sobre o controle do Estado ou de empresários licenciados pela administração estatal a comercializar educação, absorvendo, desse modo, a lógica gerencial capitalista do trabalho. As novas formas de organização da educação escolar, inauguradas pela sua estatização, tornam a atividade do magistério e o trabalho dos indivíduos que o exerce uma mercadoria objetivada em força de trabalho a ser trocada por salário no mercado de trabalho. É importante 768

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ressaltar que a organização societal capitalista institui todos os indivíduos como vendedores de mercadoria. De acordo com Marx (1975), a transformação da produção em geral em produção de mercadorias torna todos, inevitavelmente, em vendedores de mercadoria, sejam elas objetos, serviços ou a própria força de trabalho. No modo de produção capitalista, a acumulação e a autoexpansão são finalidades últimas de toda atividade. A contradição está posta no fato de a única mercadoria que os trabalhadores possuem para vender é sua própria vida, pois os meios de sua produção não lhe pertencem. Aos trabalhadores não há possibilidade real de escolha de suas ações no mercado de trabalho. Esses, inevitavelmente, vendem suas forças de trabalho em troca de salários. Essa relação de troca é condição inerente à própria produção do capital em sua forma societária, sendo, portanto, necessária à constituição e reprodução das formas metabólicas do capitalismo e em sua constituição mesma como classe trabalhadora. Mas, nessa relação, o que caracteriza o salário? A real aparência do salário se configura como o valor de troca, o preço pago pela mercadoria força de trabalho, caracterizando-se pela quantidade de dinheiro que os donos dos meios de produção pagam ao trabalhador por um determinado tempo de seu trabalho ou pela execução de uma determinada tarefa (MARX, 1980). No interior das relações sociais de produção capitalistas, o trabalho é simplificado, reduzido, desqualificado, generalizado e abstraído, tornando a atividade vital consciente do homem numa mercadoria. Por essa mercadoria é pago uma quantidade condizente aos custos de sua produção (reprodução, qualificação etc.). Nesse sentido, ao moldar o trabalho na forma de mercadoria, como uma coisa, o reduz a um conjunto ínfimo de atividades simples (força de trabalho) que custa, exatamente, o mínimo para a reprodução da força de trabalho como tal. O salário caracterizado pela quantidade mínima que garanta a subsistência do trabalhador e de sua família é também o valor mínimo necessário à reprodução da força de trabalho, garantindo a dependência do trabalhador face as relações sociais de produção capitalistas (MARX, 1989). Nesse sentido (o da economia política burguesa), o preço da mercadoria força de trabalho (salário) segue, “invariavelmente”, as leis de mercado, sendo sua elevação ou redução composta pelas relações entre oferta e procura do mercado de trabalho, mas, principalmente, pelos custos de produção da força de trabalho. Os custos da produção da força de trabalho são determinados pelo tempo de trabalho necessário para produzir e conservar essa mercadoria. Estes custos são consideravelmente reduzidos mediante a simplificação e 769

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desqualificação que o trabalho sofre ante a divisão técnica do trabalho, tornando mínima a quantia necessária à produção e reprodução do trabalhador. Os custos de produção da força de trabalho simples compõem-se, portanto, de custo de vida e de custo de reprodução do trabalhador. São estes custos de vida e de reprodução que constituem o salário. O salário assim determinado chama-se salário mínimo. Esta norma do salário mínimo, exatamente como a determinação do preço das mercadorias pelo custo da produção em geral, é correta não para um só individuo, mas para toda a classe trabalhadora. Esse pressuposto teórico marxista acerca do salário não baliza as diferentes especificidades presentes no diversificado, heterogêneo e multifacetado mundo do trabalho contemporâneo; analisa sim os determinantes presentes na contradição entre trabalho assalariado e capital existente no interior do processo de produção de mercadoria do mundo produtivo. Nesse sentido, é importante acrescentarmos os nexos existentes no processo de assalariamento do trabalho docente e suas semelhanças e diferenças em relação ao trabalho assalariado do mundo produtivo. A particularidade do assalariamento docente: trabalho, Estado e classe social Para Codo et.al. (1999), existe uma série de contradições quando se busca caracterizar o magistério de acordo com o regime de trabalho assalariado presente nas leis do mercado capitalista, mas pode-se partir da perspectiva de que se trata de trabalhadores que, ao não possuir os meios de produção do seu trabalho (prédios escolares, livros, material didático, cadeiras e mesas suficientes, poder administrativo para diplomar seus alunos etc.) necessitam de vender sua força de trabalho em troca de alguma remuneração.

Os educadores são trabalhadores inseridos em uma sociedade capitalista, vendem sua força de trabalho e o preço que custa o seu trabalho (salário e remuneração) deve ser igual ao preço que custa para a manutenção e reprodução desta mesma força de trabalho. No caso dos professores, isto implica em sobrevivência do trabalhador e sua família, transporte adequado para se chegar ao trabalho, mais compra de livros, vídeo, TV a cabo, computadores, o custo dos cursos que têm a fazer e quanto mais for necessário para manter sua mercadoria (conhecimento) passível de ser utilizada no mercado. (CODO, et.al., 1999, p. 193).

No entanto, os trabalhadores da educação que atuam no setor público têm como patrão o Estado e não um capitalista. Portanto, variáveis importantes na configuração do salário como a questão dos lucros, dos processos inflacionários, da concorrência intercapitalistas e até mesmo 770

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da luta sindical, não se constituem como aspectos imediatos na definição da quantidade de salário que deve ser pago aos professores. O Estado é o patrão que paga àqueles trabalhadores (no caso deste nosso estudo). Não visa lucro, não tem em sua agenda cobrar pelos serviços que presta à população mais do que paga aos seus funcionários. Tem outras obrigações além da educação e portanto deve minimizar as despesas com cada um de seus compromissos para que possa administrar seus recursos sem que falte dinheiro para qualquer uma de suas missões. Deve definir qual é o padrão de qualidade mínimo aceitável para um determinado serviço e pagar salário do trabalhador condizentes com aquelas definições que citamos acima. (CODO, et.al., 1999, p. 193)

O que essa categoria profissional recebe, então, não é parte dos custos de produção de uma determinada mercadoria ou serviço no seio da produção imediata de valor, mas sim parte da riqueza concentrada nas mãos do Estado que formam o chamado fundo público (RIDENTI, 1995). Até aqui podemos inferir, a partir dessas considerações, o estatuto assalariado do trabalho docente, mas com algumas ressalvas que o diferenciam do operariado tradicional, tais como o emprego público estatal, a não produção imediata de valor e, portanto, o exercício de uma atividade que não gera exploração de mais-valia. Mas, Codo et.al. (1999) vão além e afirmam que as formas de remuneração dos trabalhadores docentes são diferentes das características do regime do assalariado. Entretanto, é necessário destacar que essa diferença não significa aproximação do ideário liberal e elitista de profissionalização que percebem seus rendimentos a partir do argumento ideológico dos honorários atribuídos à sua “presteza” pelo bom “espírito humanitário” (ENGUITA, 1989; COSTA, 1995). A partir de análises estatísticas e comparativas realizadas sobre o poder de compra e das disparidades salariais dos trabalhadores em educação da rede pública no Brasil, Codo et.al. (1999, p. 217) explicitam, inclusive, as dificuldades de caracterizar o trabalho docente como atividade profissional assalariada, ante as condições precárias de trabalho e da própria remuneração desses trabalhadores. [O] salário é o valor pago pela força de trabalho, o salário correto é o salário que remunera a força de trabalho injetada pelo trabalhador na mercadoria em que atua. O professor enquanto vendedor da sua força de trabalho traz para o seu produto (a educação, o aluno) a sua formação, a sua experiência, a sua habilidade, sua competência. A remuneração do professor independe totalmente da formação, da experiência e sequer há preocupação ou alternativas para pagar diferencialmente o professor a partir de sua competência. Gente melhor formada ganhando menos do que

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pessoas no início de sua formação e vice-versa. Gente inexperiente ganhando mais do que professores com anos e anos de exercício profissional. Gente dedicada e generosa ganhando tanto quanto professores que ainda não aprenderam ou já desistiram de ensinar bem. Em termos objetivos, o que ocorre é que o que o professor ganha não pode ser chamado tecnicamente de salário na medida em que não é valor pago pela força de trabalho injetada em seu trabalho, ou, o que é pior, é rigorosamente independente de seu trabalho. (grifo dos autores).

Em termos gerais, pode-se inferir que o trabalho exercido pelos trabalhadores em educação está muito mais relacionado às políticas públicas educacionais e, conseqüentemente, à prioridade ou à sua inexistência em termos de financiamento do Estado e de valorização desses trabalhadores do que, efetivamente, dos custos – para ser compreensível aos economistas – de reprodução dessa força de trabalho. Aliás, a reprodução da força de trabalho docente vem sendo hipertrofiada diante das “novas” exigências educacionais (im)postas pelas reformas neoliberais, que identificam na falta de qualificação dos professores a culpa da baixa qualidade da educação, tornando algozes esses trabalhadores que são vítimas históricas de políticas educacionais articuladas a interesses privados. Para Gentili (1996), o diagnóstico neoliberal sobre a crise educacional é condicionado pelo fato de que este é um serviço marcado pela ação estatal (pública) e penetrado por interesses e contradições políticas. Nesse sentido, as reformas neoliberais visam implantar mecanismos de mercado no interior das escolas públicas, inclusive para determinar salário3 por meio de avaliações classificatórias, comparativas e hierarquizantes, incentivos à concorrência entre os trabalhadores, à produtividade de resultados e o fim da estabilidade no emprego. Essa corrida rumo a mercantilização da educação aproxima ainda mais as condições de vida e trabalho dos trabalhadores da educação em relação às demais frações de trabalhadores assalariados em termos relações trabalhistas e remuneração salarial; nesse processo, ainda se percebe outras mediações no estatuto de trabalho assalariado do magistério como, por exemplo: a) as remunerações percebidas pelos professores não mantém nenhum tipo de relação com o trabalho que desenvolvem e nem com os requisitos necessários para a realização do trabalho; b) também existe uma disparidade enorme entre o salário dos professores e o de outras profissões e trabalhos com exigências similares; c) há diferenças consideráveis entre o salário dos próprios professores diante das diferenças geográficas, de vinculação administrativa, de carreira e formação; d) o poder de compra dos professores está em constante decréscimo, acarretando 3

- Cf: Gentili (1996), Gentili (2001), Gentili e Frigotto (2002) e Paro e Dourado (2001).

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impactos, inclusive, sobre sua formação e qualificação; e) a disparidade de remuneração, poder de compra e consumo no interior desse grupo profissional demonstra a sua heterogeneidade, o que dificulta a construção de uma identidade social. (CODO et.al., 1999, p. 222-223). Silva Júnior (2002, 1993) observa também que as formas de organização, gestão e controle da força de trabalho docente não podem sequer ser caracterizadas pelo trabalho assalariado, tendo em vista as condições de produção de sua atividade e da observância contínua do tempo e do local de trabalho. […] ser promovido à condição de trabalhador comum, quero me referir ao fato de que esse trabalhador, na absoluta maioria dos casos, não pode ser considerado como um trabalhador assalariado, já que a este, o trabalhador comum, são asseguradas condições de trabalho em geral que o professor da escola pública estadual não dispõe. Condições mínimas, mas ainda ausentes das rotinas de nossa organização escolar, como, por exemplo, a delimitação e a observância contínua do tempo e do local do trabalho. (SILVA JÚNIOR, 2002, p. 81-82)

Essas contradições presentes no estatuto assalariado do trabalho docente implicam na reflexão e discussão coletiva, organizada pelos próprios trabalhadores da educação pública, a respeito das suas condições de trabalho, visto que, antes mesmo da plena implementação da desertificação neoliberal no cenário nacional, o magistério já convivia com as premissas do emprego precarizado, da subproletarização, da ocupação temporária sem direitos trabalhistas. Diante dessas condições, há muito tempo uma das grandes bandeiras de luta dos sindicatos docentes não é a questão da redução da jornada de trabalho – presente já em meados do século XIX nas lutas do proletariado (MARX, 2003) – mas sim a de manutenção do emprego e permanência no local de trabalho. Luta-se hoje no mundo do trabalho assalariado pela redução progressiva da jornada de trabalho e pela supressão da figura das horas extras. Luta-se, conseqüentemente, pelo acesso ao lazer e ao usufruto dos bens da cultura. Luta-se também, conseqüentemente, pelo acesso de novos trabalhadores aos locais de trabalho existentes, no tempo liberado pela redução da jornada, e luta-se também pela criação de novos locais de trabalho. Comparada à luta dos trabalhadores da produção material e de serviços por sua afirmação enquanto categoria profissional, a luta dos trabalhadores da escola pública, aí sim, parece se constituir um anacronismo. Na escola pública brasileira luta-se ainda pela simples permanência no trabalho, mesmo que essa permanência não assegure a sobrevivência pelo trabalho. Na vigência do capitalismo monopolista de Estado no Brasil, as relações de trabalho impostas aos trabalhadores de suas escolas públicas ainda se conservam próximas das etapas pré-capitalistas dos modos de produção. (SILVA JÚNIOR., 1993: 113-114, grifos nossos).

Essa afirmação torna relativa a questão da proletarização do trabalho docente, na medida em que as atuais formas de organização do trabalho docente ainda não atingiram sequer as 773

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condições do trabalhador assalariado dos setores produtivos em termos de alocação da força de trabalho, de jornada de trabalho e de formas de remuneração. De certo modo, podemos concordar que amplos setores do professorado podem ser caracterizados como “operários da cultura”, conforme Ezequiel T. Silva (1991). Mas, para isso, é necessário considerar as diferenças internas que existem no interior do que chamamos de trabalho docente. Como observa Enguita (1989, s/p), “referir-se ao ‘professorado’ sem maior especificação significa ocultar as notáveis diferenças que separam os distintos grupos de professores, diferenças essas que dizem respeito a seus salários, suas condições de trabalho, seu prestígio, suas oportunidades de promoção e outros bens e vantagens sociais desejáveis.”. Nesse sentido, existem diferenças consideráveis entre esses condicionantes do trabalho docente (salários, formação, autonomia no trabalho, alienação, carreira etc.) se compararmos os docentes do ensino básico e os professores e professoras que atuam nas universidades, muito embora seja concreto o encaminhamento de um processo de burocratização e degradação do trabalho docente destes últimos. Evidentemente que podemos falar de “classes médias” quando situamos os docentes universitários, não só em virtude da origem de classe, do caráter intelectual de seu trabalho e da escolaridade que possuem, mas, sobretudo, pelo posicionamento ambíguo e contraditório no interior dos conflitos existentes entre as classes fundamentais. Esse posicionamento ambíguo se relaciona a uma série de fatores entre os quais podemos destacar: o caráter social e classista da instituição universidade na sociedade capitalista; a ligação orgânica com as classes dominantes via produção tecno-científica, visando intensificar os processos produtivos; e o caráter ilusório da “neutralidade” presente no trabalho intelectual. Ridenti (1995, p. 18), por exemplo, identifica os professores universitários a partir da categoria “novas classes médias”, que se configuram como um grupo social gestado no interior do capitalismo monopolista de Estado. Esse autor afirma ainda que as chamadas novas classes médias têm a função de “[...] traduzir e articular demandas particulares pelo fundo público”. Do reconhecimento da condição assalariada à organização e luta político-sindical: notas não conclusivas A questão do salário é fundamental para que os sujeitos elaborem identidades coletivas, pois, eles são amplamente aviltados nas diversas formas sociais de exploração do trabalho, tornando-se uma questão de organização e luta coletiva no sentido de defendê-lo, uma vez que a 774

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remuneração salarial dos trabalhadores significa, de forma imediata, a própria sobrevivência. O momento corporativo de organização coletiva para a defesa de interesses de categorias de trabalhadores é fundamental ao processo de transição para a mediação entre economia e política da luta dos trabalhadores. Concordo assim com as reflexões de Assunção (1996, p. 76) que coloca a questão do salário das professoras primárias como um problema a ser interpretado de forma sistemática pelas organizações sindicais. A autora afirma que “[…] qualquer iniciativa que vise mobilizar a categoria na luta por melhores salários será infrutífera se não levar em consideração a representação que a professora tem de seu salário, e essa dimensão simbólica, que se traduz nas ambigüidades expressas no discurso e atitude da mulher-professora.”. Uma série de pesquisadores tem procurado investigar a questão da proletarização docente no sentido de apontar nexos que aproximem esses profissionais do restante da classe trabalhadora. Dessa forma, esses trabalhos têm um enfoque que busca apontar as perspectivas e os limites da organização do trabalho docente a partir de categorias explicativas oriundas do marxismo, tais como: trabalho, luta de classes, proletariado, sindicalismo, degradação do trabalho, divisão social e técnica do trabalho e alienação. Dentre esses trabalhos, destaco aqui os de Aplle (1995), Arroyo (1980), Enguita (1989), Hypólito (2001) e Costa (1995). Os trabalhos desses autores foram muito influenciados pelo que Vianna (1999) classifica de otimismo em torno da organização docente na forma de sindicatos, cujas características são as ênfases adotadas no que diz respeito à formação política do professorado e da configuração de uma determinada consciência de classe, que possibilitariam mudanças nas estruturas desiguais e antidemocráticas da educação e da própria sociedade. Desse modo, esses autores têm, como uma de suas preocupações, a identificação da posição de classe que ocupam os trabalhadores da educação. Para Hypólito (2001), os estudos sobre trabalho docente no Brasil apontam para um consenso de que essa atividade tem passado por processos de assalariamento, de funcionarização em relação ao Estado, de desprofissionalização e de perda de prestígio social. Entretanto, há divergências quanto à caracterização da posição de classe ocupada pelos docentes. Para o autor, três posicionamentos teóricos sobre a condição de classe do trabalho docente podem ser identificados na literatura sobre esse assunto: o primeiro posicionamento identifica os professores como integrantes das classes médias em virtude do lado intelectual que ocupam na divisão do trabalho, dos níveis de renda, da formação em nível superior e da origem de classe; o 775

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segundo aponta para o processo de proletarização do trabalho docente, caracterizado pela aproximação social e política dos professores ao conjunto da classe trabalhadora; e o terceiro considera que os docentes estão numa situação contraditória de classe, numa situação ambivalente entre proletariado e classes médias. É fato de que existem setores do professorado que se aproximam dos grupos sociais que caracterizam as “classes médias”. O assalariamento e a proletarização do trabalho docente aproximam os professores e as professoras das classes que vivem do trabalho. Isso acontece, primeiramente, em termos de condições de vida material e de trabalho alienado e, em conseqüência disso, das formas de organização e mobilização política e econômico-corporativa das classes trabalhadoras e de suas lutas por conquistas estratégicas de determinados direitos sociais. O magistério inicia então um processo de organização sindical que impulsiona um gradual, vigoroso e contraditório processo de elaboração de uma identidade política. Na medida em que identificam necessidades e interesses comuns os/as trabalhadores/as em educação estruturam suas associações sob princípios e bandeiras da luta sindical que, por sua vez, e concomitantemente, se tornam um importante espaço de educação política para a categoria de assalariados da educação. Para Miguel Arroyo (1980, p. 17), “A organização do trabalho educativo em bases empresariais levou os ordeiros professores públicos a se sentirem não servidores do público, mas força de trabalho vendida a um patrão chamado Estado.”. Nessa perspectiva, as contradições se elevaram de tal modo que os conflitos educativos que emergiram durante a ditadura militar estabeleceram condições históricas para que os trabalhadores em educação se constituíssem como tal, isto é, como classe trabalhadora. As lutas dos movimentos de professores não se limitaram aos aspectos reivindicatórios, mas se politizaram e articularam com os demais setores da classe trabalhadora. A nova consciência e a nova prática dos trabalhadores da educação é se sentirem como trabalhadores e sentirem a necessidade de se associarem como tais, e organizarem sua luta nos mesmos moldes dos trabalhadores da produção, do comércio... e sobretudo se sentirem solidários nos mesmos objetivos de questionar o modelo sócio-político e econômico, o Estado, a organização do trabalho... que os gera e explora como trabalhadores (ARROYO, 1980, pp. 17-18).

Desse modo, ao articular as lutas corporativas da categoria do professorado às demais bandeiras históricas de liberdade e emancipação humana, os professores iniciaram um processo de elaboração de uma identidade política articulada ao projeto histórico das classes trabalhadoras 776

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incorporando, inclusive, seus modelos de organização político-sindical e suas formas de mobilização e luta (greves). É importante destacar que o conceito de classe que subjaz dessas práticas e pensamentos elaborados pelos professores é contrário aos que definem a condição de classe dessa categoria a partir das origens de classe, da natureza intelectual do trabalho que realiza ou da “ascensão” social que adquire por meio do seu trabalho. A definição de classe, e da construção de uma identidade de classe, é caudatária da conceituação de Ridenti (2001, p. 112-113) que assim define: As classes constroem-se na luta, vale dizer, elas vêm a ser classes no processo de autoidentificação e de identificação do seu outro. Isso remete à questão da representação. [...] Representação é o canal de mediação no relacionamento de alguém com outrem. [A mediação de uma identidade política da classe trabalhadora] implica a organização e a luta dos trabalhadores, que criam associações para mediar sua relação com e contra o Estado e os capitalistas, construindo a trajetória de sua constituição como classe.

Desse modo, consideramos a organização sindical um elemento mediador da elaboração de um posicionamento, de uma prática e de representações diante dos conflitos e das contradições sociais, em que se torna possível uma mobilização coletiva que se encaminhe no sentido de (re)elaborar a solidariedade de classe e renovar as formas de resistência e de superação do sistema do capital. Esse tem sido o caminho que os trabalhadores em educação têm percorrido e nas lutas e mobilizações vêm elaborando uma determinada consciência de classe vinculada a uma alternativa contrária aos ditames da sociedade produtora de mercadorias. Referências APPLE, M. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes médicas, 1995. ARROYO, M. Operários e educadores se identificam: que rumos tomará a educação brasileira? Educação & Sociedade, Campinas, Ano II, n° 5, pp. 05-23, janeiro/1980. ASSUNÇÂO, M.M.S. de. Magistério primário e cotidiano escolar. Campinas: Autores associados, 1996. CODO, W. et.al. Educação: carinho e trabalho. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999. COSTA, M.C.V. Trabalho docente e profissionalismo: uma analise sobre gênero, classe e profissionalismo no trabalho de professoras e professores de classes populares. Porto Alegre: Sulina, 1995. 777

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MEDIAÇÃO DO CONFLITO DE CLASSE NO CONTEXTO DA REFORMA GERENCIAL DE SISTEMAS PÚBLICOS DE ENSINO: revisitando o conceito de intelectual orgânico em Gramsci José dos Santos Souza1 Resumo: A recomposição burguesa diante da crise estrutural do capital desencadeou a propagação da “Nova Gestão Pública” como doutrina de racionalização de recursos humanos, materiais e financeiros e de equipamentos públicos, de modo a contribuir para com a reforma do Estado, cuja finalidade é redefinir a relação entre o Estado e a sociedade, os mecanismos de mediação do conflito de classes e o uso do fundo público. Para isso, aciona os princípios empresariais de produção enxuta e de controle de qualidade que, na gestão pública se traduzem como accountability – responsabilização de membros de um órgão administrativo ou seu representante/terceirizado de prestar contas a instâncias controladoras e/ou aos destinatários do serviço, o que denota responsabilidade social, imputabilidade, comprometimento com prestação de contas. Propagada por todas as esferas do serviço público, a “Nova Gestão Pública” não negligencia os sistemas públicos de ensino, que passam a sofrer profundas reformas gerenciais que têm como principal característica a despolitização da política nas instituições públicas de ensino, o pragmatismo e a tecnocracia como referência metodológica do trabalho pedagógico e a lógica da accountability como mecanismo de mediação do conflito de classe imanente na concretização das políticas públicas de educação. Evidencia-se a coexistência de práticas docentes conformadas ativa e passivamente, bem como de resistência que expressam a disputa de hegemonia travada nas escolas. O conceito de intelectual orgânico em Gramsci é fundamental para a compreensão dessa disputa de hegemonia. Nosso objetivo é verificar a pertinência desse conceito para uma análise da disputa de hegemonia no contexto da reforma gerencial em curso. Nosso foco são os aspectos em que os docentes assumem ou não o papel de intelectuais orgânicos do capital ou da classe trabalhadora na disputa entre capital e trabalho no cotidiano das escolas a partir das reformas gerenciais em curso. Palavras-chave: Estado; Hegemonia; Gramsci; Intelectual Orgânico; Reforma Gerencial.

INTRODUÇÃO Conforme nos aponta Harvey (1992), Chesnais (1996), Mészáros (2002) e Hobsbawm (2008), a ordem de produção e reprodução social da vida material sob a égide do capital está abalada por uma crise estrutural tal que impõe para a burguesia demandas de reestruturação do trabalho e da produção, bem como de reconfiguração de seus mecanismos de mediação do

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Doutor em Sociologia pelo IFCH/UNICAMP, com pós-doutorado em Ciências Humanas e Educação pela FE/UNICAMP. Atua como professor associado do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Educação Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) e lidera o Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS). E-mail: [email protected]

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conflito de classes para manter sua hegemonia, de modo a complexificar cada vez mais não só as relações políticas entre os diversos aparelhos privados de hegemonia, como também a relação entre o Estado e a sociedade. É nesse contexto em que se desencadeia a reforma gerencial do Estado, como parte dessa recomposição burguesa que, em linhas gerais, consiste na propagação da “Nova Gestão Pública” como um receituário para enxugar a máquina administrativa do Estado, flexibilizar a prestação de serviços e redirecionar o uso do fundo público. A “Nova Gestão Pública” consiste em um modelo de gestão do serviço público inerente ao receituário neoliberal implantado a partir do Governo Margaret Thatcher, primeira ministra da Inglaterra, no período de 1979 a 1990. A partir de então, esse modelo de gestão pública passou a ser preconizado pelos neoliberais como estratégia fundamental para atacar ao que apontavam como efeitos de uma velha e ineficiente burocracia, herança do Estado de BemEstar Social, marcada pela rigidez, excesso dos procedimentos burocráticos, baixa produtividade e pela má gestão de recursos materiais e financeiros, além de baixa responsabilização dos gestores – grosseiramente chamados de burocratas – frente ao sistema político e à sociedade. Em linhas gerais, a “Nova Gestão Pública” tenta transplantar os princípios da Lean Production, em especial a flexibilização do trabalho e da produção combinada com controle acirrado por meio de recursos da informática e da microeletrônica e de estratégias de avaliação de resultados. Tomando como referência a ideia de aumento da accountability – responsabilização de membros de um órgão administrativo ou seu representante/terceirizado de prestar contas a instâncias controladoras e/ou aos destinatários do serviço, o que denota responsabilidade social, imputabilidade, comprometimento com prestação de contas –, por meio de amplo reordenamento da provisão dos serviços e da criação de entidades públicas não estatais como as organizações sociais (OS), a “Nova Gestão Pública”, pretensamente, se propõe não só a ampliar o controle social sobre o serviço público, mas também atuar em parceria com entidades públicas não estatais na gestão desses serviços (SOUZA, 2016).2 No Brasil, este modelo de gestão pública ganha materialidade mais expressiva a partir da condução de Bresser-Pereira ao Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 2

Para maior aprofundamento sobre as diretrizes da reforma gerencial no Brasil, Cf.: Falcão et alli (2013); Bresser-Pereira (2008); Moreira Neto (2006); Mello (2005); Bresser-Pereira e Grau (1999).

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em 1995, quando implanta o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995). Apesar da reforma gerencial iniciada por Bresser-Pereira ter criado raízes nas gestões estaduais e municipais de todo o país no decorrer dos governos Lula da Silva e Dilma Roussef, tudo leva a crer que, apesar de ter avançado a accountability, não há evidências de que tal avanço tem garantido maior qualidade do serviço público, tampouco se percebe grandes alterações no que tange à baixa capacidade de controle institucional e social sobre o serviço público por parte dos cidadãos brasileiros, tão preconizados pela “Nova Gestão Pública”. Por outro lado, a implementação das diretrizes da “Nova Gestão Pública” tem sido eficaz na redefinição da relação entre Estado e sociedade, na capacidade de mediação do conflito de classes e no redirecionamento do uso do fundo público. Para isso, tem acionado princípios empresariais de produção enxuta e de controle de qualidade que, na gestão pública, se traduzem em reforma gerencial ou gerencialismo. Propagada por todas as esferas do serviço público, a “Nova Gestão Pública” não negligencia os sistemas públicos de ensino, que passam a sofrer profundas reformas gerenciais que têm como principal característica a despolitização da política nas instituições públicas de ensino, o pragmatismo e a tecnocracia como referência metodológica do trabalho pedagógico e a lógica da accountability como mecanismo de mediação do conflito de classe imanente na concretização das políticas públicas de educação. Nesse contexto, evidencia-se a coexistência de práticas docentes conformadas ativa e passivamente, embora se perceba certa resistência, mesmo que não seja bem articulada por uma direção política claramente antagônica àquela dominante. Essa realidade em que se encontram boa parte dos sistemas públicos de ensino do país trazem à tona reflexões acerca da disputa de hegemonia no interior das escolas. Muitos educadores comprometidos com os interesses históricos da classe trabalhadora organizada em luta contra o capital, habituados a conceber o espaço escolar como uma arena de interesses em conflito e, portanto, como um espaço de disputa de hegemonia, deparam-se agora com um realidade em que a própria política é despolitizada e as relações de trabalho e de produção passam a ser enquadradas em plano de metas concebido de modo heterônomo que se impõe ao coletivo escolar redefinindo papeis sociais, condutas e subjetividades. A própria atividade pedagógica passa a ser prescrita, extraindo-se do docente sua capacidade de pensá-la 782

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autonomamente, de redefini-la, de estabelecer ele mesmo os objetivos e metas pedagógicas, bem como as estratégias de ensino-aprendizagem mais apropriadas, em um exercício epistêmico, de modo a traçar ele próprio, como tarefa docente, uma trajetória de construção de conhecimento para seus estudantes. De uma velha burocracia, passa-se a outra burocracia de novo tipo, não mais materializada em papéis, mas em softwares cada vez mais sofisticados – normalmente produzidos por empresas privadas pagas com dinheiro público – que, além de controlar o conteúdo, os tempos e os movimentos do trabalho docente, contabilizam resultados e aferem conceitos com base em métodos quantitativos, sem que os docentes tenham qualquer propriedade sobre eles para além de minimamente operá-los, alimentando-os com dados. Repensar a disputa de hegemonia no ambiente escolar no contexto da “Nova Gestão Pública” é imprescindível, se se pretende lutar contra as mazelas da recomposição burguesa na vida da classe trabalhadora. Nesse aspecto, o conceito de intelectual orgânico em Gramsci é fundamental. De acordo com essa perspectiva, neste trabalho nos propomos a verificar a pertinência desse conceito para uma análise da disputa de hegemonia no contexto da reforma gerencial em curso que atinge inclusive os sistemas públicos de ensino. A questão é: quem são os intelectuais orgânicos atuantes na construção do consenso em torno de diferentes projetos em disputa no cotidiano das escolas hoje? Identificá-los é fundamental para a compreensão da dinâmica da disputa de hegemonia travada no cotidiano das escolas. Para nossa análise, tomamos como referência empírica a realidade da Rede Estadual de Ensino Público do Rio de Janeiro, mais especificamente as ações concretas desencadeadas a partir do programa Gestão Integrada da Escola (GIDE).

LINHAS GERAIS DA GIDE Conforme descrito pelo sítio do Governo do estado do Rio de Janeiro, a GIDE “é um sistema de gestão que contempla os aspectos estratégicos, políticos e gerenciais inerentes à área educacional com foco em resultados. Tem como objetivo melhorar significativamente os indicadores da educação, tendo como referência as metas do [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] IDEB estabelecidas pelo Ministério da Educação” (SEEduc, 2011a, p. 01). A GIDE, na realidade, é um pacote de procedimentos e condutas para gestores educacionais e docentes formulado por uma empresa privada, cuja origem está na Fundação 783

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Cristiano Ottoni, criada nos anos 1980, na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi a partir desta Fundação que teve início o movimento em prol da qualidade total com a ajuda dos japoneses da Japanese Union of Scientists and Engineers (JUSE). Vicente Falconi e José Martins de Godoy, ambos principais consultores da Fundação Cristiano Ottoni, abandonaram a vida acadêmica para dedicarem-se a um novo empreendimento, em 1998, quando criaram a Fundação de Desenvolvimento Gerencial (FDG), uma empresa privada que tinha como meta se inserir no mercado atuando em um campo mais amplo, passando a atender demandas de diversas empresas em busca de consultoria em gestão, algo que a Fundação Cristiano Ottoni tinha limites para desempenhar ou, pelo menos, de garantir-lhes os rendimentos almejados por esse promissor campo de atuação. A FDG, no entanto, a partir de 2003, restringiu seu campo de atuação a projetos sem fins lucrativos ligados a instituições carentes. Para a continuidade do trabalho de consultoria em gestão para empresas privadas e órgãos públicos, foi criado o Instituto de Desenvolvimento Gerencial (InDG), organização que se tornou líder em consultoria de gestão com foco em resultados no Brasil. Em função de crise intensa entre os dois sócios fundadores do InDG, Vicente Falconi e José Martins de Godoy, o rompimento entre eles em 2012 foi inevitável, o que culminou na saída de Godoy do InDG. A frente do Instituto, Vicente Falconi logo promoveu a mudança de nome da empresa que, a partir de outubro de 2012, passou a se chamar Falconi Consultores de Resultado, a qual até hoje oferece consultoria da GIDE. Conforme consta no sítio da FDG, a GIDE foi idealizada há mais de 15 anos pela professora Maria Helena Godoy e já foi aplicada em diversas redes públicas de ensino do Brasil. Hoje, esse conjunto de clientes engloba as redes estaduais do Ceará, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. A versão original desta ideia nefasta de gestão de sistemas públicos de ensino foi revista em 2011, no auge da crise entre Vicente Falconi e José Martins de Godoy, de modo que, a pretexto de torná-la ainda mais abrangente, robusta e apta a produzir resultados rápidos, rebatizam-na de “GIDE Avançada”, que passou a abranger aspectos pedagógicos, estratégicos e gerenciais, sempre tendo como foco a melhoria de resultados sem, contudo, esclarecer exatamente de que forma esses resultados devem ser definidos, tampouco por quem (Cf.: FDG, 2014, texto em html). Ao que tudo indica, a GIDE se propõe a ser exatamente esta forma de ordenar e de estabelecer resultados, ou seja, “a GIDE é o modelo de gestão proposto pela secretaria [SEEDuc] para alcançar esses resultados esperados” (SEEduc, 2011b) ou, conforme a imagem a seguir bem expressa, a GIDE é o caminho para a 784

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escola chegar aonde quer. Só não fica muito claro quem estabelece o ponto de partida e o de chegada. Uma vez que o próprio caminho já está prescrito, supõe-se que alguém já estabeleceu esses dois pontos, que tanto poderia ser o Governo Estadual do Rio de Janeiro ou, mais precisamente, a própria empresa contratada para gerir o processo. Veja o que a Falconi aponta nesse sentido: Os projetos são definidos de acordo com as necessidades específicas de cada cliente. Nosso diferencial é orientar, acompanhar e participar ativamente da implementação do novo sistema de gestão. Durante o processo, o maior desafio a ser alcançado é fazer com que a própria organização aprenda a conduzir sozinha sua nova gestão (FALCONI, 2016b).

Vejamos. Se as necessidades da SEEduc foram apresentadas à Falconi sem participação efetiva dos docentes, está claro que as necessidades específicas nas quais esta empresa de consultoria foca seu trabalho a fim de alcançar resultados não são as necessidades desses docentes, muito menos dos estudantes e de seus pais. A GIDE, portanto, é algo que se interpõe entre a SEEduc e outro grupo formado por docentes, estudantes e seus pais. Nesse aspecto, a GIDE funciona como perfeito mecanismo de mediação do conflito de classe.

Figura 01 – Slide Nº 06 da Apresentação “O que a GIDE?”, da SEEduc

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Fonte: SEEduc, 2011b

Pelo que se pode apreender dos documentos disponibilizados pela SEEduc (2011a), o programa da GIDE se inicia com o desenvolvimento de marcos referenciais, os quais consistem em se estabelecer o que se tem, o que se quer e quais as diretrizes para se chegar onde se quer. Desse modo, chega-se a determinado resultado que deve ser analisado com base em dados quantitativos e esta análise deve subsidiar tomadas de decisão acerca da correção de rumos e/ou identificação e conservação das “boas práticas”, sempre tendo como referência o ponto de chegada estabelecido à revelia dos sujeitos envolvidos diretamente na execução do trabalho pedagógico e, talvez, inclusive dos que gerem este trabalho. À propósito, os valores que norteiam a eleição dessas “boas práticas” não são claros. Ao contrário, os documentos apontam que “as escolas vêm, ao longo do tempo, mostrando sua preocupação com a formação da cidadania e com a responsabilidade social. Porém, há lacunas na mensuração da sua eficiência nestes objetivos”. Para permitir a mensuração do alcance da formação integral do aluno3, a GIDE estabelece o Índice de Formação de Cidadania e Responsabilidade Social (IFC/RS). Segundo a SEEduc, reproduzindo os “conhecimentos” repassados pela Falconi, “este indicador é um diagnóstico que fornece à escola informações necessárias a uma análise consistente e profunda sobre seus resultados e meios que influem nesses resultados”. Para a SEEduc, “o IFC/RS mede o desempenho da escola nos resultados tangíveis no cumprimento da sua missão” (SEEduc, 2011a, p. 01). Falta, no entanto, o convencimento de que esses parâmetros estabelecidos de forma tão heterônoma possam de fato levantar resultados capazes de mobilizar e satisfazer docentes, estudantes e seus pais para um comprometimento efetivo com o trabalho pedagógico das escolas. Na realidade, o plano estratégico em que consiste a GIDE nada mais é do que uma pedagogia política para educar a gestão escolar para as práticas gerenciais flexíveis e controladas de modo centralizado. Essa pedagogia política visa conformar as comunidades escolares nos

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Ao que parece, por formação integral, a GIDE concebe a formação para a cidadania com responsabilidade social. Ocorre que sequer existe uma discussão sobre o que se entende por formação integral. A ideia de escola unitária, de omnilateralidade, de politecnia, por exemplo, são simplesmente ignoradas. Nem mesmo uma concepção de formação integral contraposta é apresentada. Em seu lugar fica uma ideia vaga e pouco consistente de formação integral.

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limites circunscritos pela SEEduc, ao mesmo tempo em que busca direcionar esforços dos sujeitos dessas comunidades escolares para o cumprimento de determinadas metas estabelecidas a sua revelia, com a finalidade de alcançar resultados quantitativos, partindo do pressuposto de que tais quantidades, em si, expressam determinada qualidade. Isto fica bastante claro quando se observa os elementos que compõem o IFC/RS (Figura 03). Da mesma forma, quando se observa a dinâmica de trabalho proposta pela GIDE, percebe-se que a SEEduc, ao estabelecer um protocolo de ações padronizadas, o maior mérito é muito menos os resultados propriamente ditos do que o controle do cotidiano das escolas e de seus profissionais. Este é o sentido mais concreto dessa burocratização de novo tipo. A dinâmica para isto é simples: A Escola deverá analisar bimestralmente seus resultados e, quando necessário, identificar as causas do mau desempenho. Quando os resultados não são alcançados, a escola deve identificar os desvios de resultado em relação às metas, reunir os professores para encontrar as causas do mau desempenho e definir contramedidas necessárias para reverter o fato. Quando as escolas obtiverem bons resultados, é importante também identificar e registrar as práticas que levaram ao bom desempenho (SEEduc, 2011a, p. 03).

O caminho utilizado pela GIDE para ajudar as escolas a alcançarem metas que sequer estabeleceram e a resolver problemas que jamais se colocam, parece ser o do controle e da vigilância disfarçado por um aparato tecnológico sofisticado, assim como o principal elemento de conformação dos sujeitos parece ser a promoção da competitividade entre si. Deve-se observar também que tudo que não se enquadra no que está estabelecido a priori como “boa prática”, ou seja, tudo o que não leva a resultados favoráveis ao alcance de metas préestabelecidas é considerado como desvio que precisa ser tratado. Por outro lado, tudo o que favorece o alcance das metas, ou seja, as ações consideradas bem-sucedidas, precisam ser padronizadas e conservadas. O curioso é que não se discute a meta em si em momento algum. Segundo a Falconi (2016b), sua estratégia é diretamente com seus clientes, “com o objetivo de identificar presencialmente os problemas e suas causas”. Seu método de atuação baseia-se no PDCA, também chamado de Ciclo de Deming ou Ciclo de Shewhart, difundido em todo o mundo. Trata-se de uma ferramenta de gestão que visa a promoção de melhoria contínua de processos por meio da execução de quatro ações: planejar (plan), fazer (do), checar (check) e agir (act):

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PLAN – Identificamos junto com os clientes os problemas prioritários da organização, analisamos suas causas fundamentais e traçamos um plano de ação adequado. DO – ajudamos o cliente a colocar o plano em prática, fornecendo o conhecimento e apoiando a execução das ações planejadas. CHECK – Ajudamos o cliente a acompanhar todas as ações planejadas e a vefiricar se as metas foram atingidas. ACT – Ajudamos o cliente a elaborar planos adicionais para garantir que as metas preestabelecidas sejam atingidas, além de padronizar as melhores práticas. (FALCONI, 2016b).

Figura 02 – Slide Nº 07 da apresentação “O que a GIDE?”, da SEEduc

Fonte: SEEduc, 2011b

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A partir do que está expresso na Figura 02, observe-se que todas as ações seguem no sentido de educar sujeitos da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro para um padrão de conduta tal que atenda aos interesses de racionalização de aplicação de recursos, ao mesmo tempo em que estabeleça novo tipo de conformação ética e moral dos docentes, mais de acordo com os interesses do estágio atual de desenvolvimento do capital, especialmente no que diz respeito à relação entre Estado e sociedade. Faz parte desta pedagogia política a conformação e a despolitização do trabalho pedagógico, concebido como prática social híbrida, passível de ser harmonizado, onde não há espaço para o debate acerca do conflito de classes. Conforme a empresa define, sua forma de trabalho consiste em transferir conhecimento gerencial com foco em resultados por meio da implementação de um sistema de gestão onde cada profissional deve conhecer seu papel para que os resultados sejam obtidos (FALCONI, 2016c). Dizem eles que essa forma de trabalho envolve as pessoas no estabelecimento de metas desafiadoras de modo tal, que o resultado é muito mais consistente e duradouro, pois baseia-se no crescimento e desenvolvimento da equipe do cliente, no decorrer do projeto. O que não fica claro é o juízo que se faz de crescimento e de desenvolvimento da equipe, considerando que esta equipe é um conjunto de docentes. Isto fica ainda mais obscuro quando afirmam que seus projetos possuem objetivo ligado a determinado indicador financeiro. Segundo esta empresa, o que capacita a equipe para solucionar problemas é justamente a transferência de conhecimento dos consultores para os sujeitos da escola: gestores e docentes. Ao que parece, a atuação da empresa é justamente dizer exatamente o que todos devem fazer: “A Falconi não entrega somente relatórios, trabalha de forma conjunta com a equipe do cliente na implementação das ações para atingir o resultado” (FALCONI, 2016c). Figura 03 – Árvore do IFC/RS

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Fonte: SEEduc, 2011b, p. 02

Ora, o problema central da GIDE não consiste na proposta de se estabelecer um marco referencial para fundamentar um bom diagnóstico e, posteriormente, traçar metas, estabelecer planos de ação, executá-lo, acompanhar seus resultados, para depois proceder uma avaliação bem fundamentada e, por fim, tomar decisões. O problema da GIDE é tudo isso ser estabelecido sob pressupostos positivistas, permeado de uma postura conservadora, pouco aderente às práticas verdadeiramente democráticas. Vide os elementos que compõem o IFC/RS (Figura 03) estabelecidos à revelia das inúmeras comunidades escolares envolvidas. Independente da pertinência de alguns desses elementos que compõem o IFC/RS, é fato que tanto os docentes, quanto estudantes e seus pais não participaram da formulação deste índice, tampouco da definição dos elementos que devem constitui-lo. Cremos, inclusive, que nem mesmo os diretores de escolas tiveram oportunidade de participar da elaboração desses elementos componentes do IFC/RS. No Estado do Rio de Janeiro, GIDE conta ainda com uma espécie de capataz que figura como inspetor escolar que zela pelo bom andamento da implantação e desenvolvimento do método de trabalho criado pela Falconi. Trata-se do Agente de Acompanhamento da Gestão Escolar (AAGE) 4, uma função gratificada preenchida exclusivamente por servidores públicos efetivos integrantes das carreiras do Magistério da SEEduc, com carga horária semanal de 40 horas, das quais 32 são dedicadas à visitação às escolas e as oito horas restantes para planejamento e reuniões. Sua principal atribuição é de preparador e integrador das ações ligadas à GIDE junto às escolas. Nesse sentido, cabe ao AAGE criar um clima de cooperação entre as pessoas levando as escolas a interagirem na busca de metas e resultados sem que, contudo, esse

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Certa vez, numa discussão sobre a GIDE, determinado docente da Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro se referia ao AAGE como “capitão do mato”. Pareceu-me bastante adequada a metáfora, afinal, esse era o nome dado, originalmente, a um empregado público da última categoria encarregado de reprimir os pequenos delitos ocorridos no campo. No caso brasileiro, no entanto, no período da escravidão, esse empregado público de última categoria tinha como tarefa principal a captura de escravos fugitivos. No caso do AAGE, trata-se daquele funcionário que tem por tarefa principal zelar para que tudo nas escolas ocorra conforme as diretrizes da GIDE, inspecionando e orientando gestores e docentes para as devidas correções em caso de desvios cometidos na busca de alcançar metas. Sem qualquer autonomia, esse profissional age quase como um inspetor escolar que registra os problemas, orienta os ajustes e coleta dados escolares.

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profissional tenha autonomia para interferir na formulação de tais metas, nas estratégias de ação, tampouco na metodologia de levantamento de resultados. Tudo isso está prescrito pelo método estabelecido pela Falconi. No processo de desenvolvimento da GIDE, são atribuições do AAGE: I) treinar docentes e gestores escolares para que executem as ações prescritas nos planos pedagógicos e ambiental, normalmente construídos segundo a orientação da SEEduc; II) repassar para docentes e gestores escolares os conhecimentos disponibilizados pelos consultores da GIDE, de modo a dar-lhes suporte metodológico, por meio de realização de atividades de apoio e sistematização dessas atividades; III) orientar gestores escolares, docentes, estudantes e seus pais na identificação dos problemas da escola, levando-os à definição de metas e elaboração de planos de ação para melhoria dos resultados. O AAGE também deve acompanhar a execução e eficácia das ações propostas nos planos de ação, segundo os critérios estabelecidos pela Falconi, com vistas ao alcance das metas estabelecidas à priori pela implantação do IFC/RS. Por fim, também cabe ao AAGE orientar, segundo os critérios da Falconi, a definição de ações corretivas para os desvios identificados, bem como orientar o registro (conservação) e a disseminação das práticas bem-sucedidas (Cf. SEEduc, 2014). Assim, à revelia do que pensam ou almejam docentes, estudantes e seus pais ou até mesmo os gestores de unidades escolares, a partir da implantação da GIDE, a Falconi passa a implantar um modelo de gestão educacional na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro que se encaixa perfeitamente no que foi indicado pela CEPAL, a UNESCO e o MEC: [...] medir o desempenho, alocar recursos com maior eficiência e avaliar os resultados. É necessário pensar em políticas dirigidas à profissionalização e ao desempenho dos educadores, que passem por uma elevação de suas responsabilidades, incentivos, formação permanente e avaliação de seu mérito; em políticas de compromisso financeiro da sociedade com a educação, com a capacitação e com o esforço científico-tecnológico, que incluam financiamento de diversas fontes, e também considerem a ideia de uma revitalização dos bancos de desenvolvimento, que desempenharam um papel importante na expansão latino-americana nas décadas passadas, e que hoje poderiam retornar esse papel, voltando sua ação para as tarefas de formação de recursos humanos e para o desenvolvimento do potencial científico tecnológico (CEPAL. UNESCO. MEC, 1993, texto em html).

Será que era a melhoria do desempenho no SAEB o ponto onde queriam chegar os docentes, estudantes e seus pais? Em que medida os gestores escolares foram partícipes 791

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autônomos nesse processo? Seriam eles intelectuais orgânicos do capital? Na medida em que a GIDE se institui no estado do Rio de Janeiro uma proposição de melhoria do desempenho das escolas de sua Rede Estadual de Ensino na avaliação do SAEB, é natural que um número considerável de docentes e gestores educacionais depositem nela alguma esperança, aderindo a proposta. Entretanto, muitas vezes essa adesão não ultrapassa o nível de um pensamento desprovido de consciência crítica, que se desenvolve de maneira desagregada e ocasional, sem organicidade. Seria um comportamento típico de quem participa de uma concepção de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior – uma ordem de pensamento do senso comum. A GIDE, enquanto um planejamento estratégico de gestão do trabalho pedagógico aplicado à toda a Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro, tem se encarregado de formular uma norma de conduta, um padrão de procedimentos técnico-administrativos e um sistema de controle do trabalho que sintetiza a concepção do mundo burguesa e sua forma de reagir à crise estrutural do capital na atualidade, traduzindo para uma linguagem bem mais palatável ao ambiente escolar os princípios fundamentais do gerencialismo. Em última análise, a GIDE concretiza a concepção de mundo burguesa e suas demandas atuais para a mediação do conflito de classe na forma do senso comum, levando gestores escolares, docentes, estudantes e seus pais a interiorizarem seu projeto de gestão escolar, com seus valores e normas, de modo a assegurar, por meio da combinação equilibrada de persuasão e coerção, o esquema de dominação que a GIDE concretiza por meio da direção política que dá à gestão escolar. De acordo com o pensamento gramsciano, isto ocorre porque: Sendo a sociedade política o lugar do direito e da vigilância institucionalizada, será ela a encarregada de formular a legislação educacional, de impô-la e fiscalizá-la. Ao fazê-lo, ela absorve a concepção do mundo da classe dominante, a interpreta e a traduz para uma linguagem adequada, para que seja legalmente sancionada. Assim, em um certo sentido, a legislação educacional já é uma das formas de materialização da filosofia formulada pelos intelectuais orgânicos da classe dominante. Toda classe hegemônica procura concretizar sua concepção de mundo na forma do senso comum, ou seja, fazer com que a classe subalterna interiorize os valores e as normas que asseguram o esquema de dominação por ela implantado. Um dos agentes mediadores entre a transformação da filosofia da classe hegemônica em senso comum da classe subalterna é o sistema educacional, dirigido e controlado pelo Estado (FREITAG, 1980, p. 41).

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A propósito, o senso comum é o campo mais profícuo para as ideologias e o ambiente escolar é um dos agentes centrais utilizados pela burguesia para formar o conjunto da sociedade civil e, assim, manter sua hegemonia não somente pelo exercício da direção política, mas pela dominação. Neste aspecto, a GIDE traduz os interesses da contrarreforma burguesa diante da crise estrutural do capital, na medida em que imprime no ambiente escolar uma determinada forma de interpretar os problemas educacionais e suas soluções de acordo com a perspectiva da redefinição do papel do Estado e da reorientação do uso do fundo público, tornando-a senso comum. Assim, a partir da GIDE, as rotinas típicas do gerencialismo passam a naturalizar-se no ambiente escolar, como uma pedagogia política que educa o senso comum e construindo o consenso. [...] o Estado, depois de formular as leis o nível da sociedade política, se encarrega também de sua materialização na sociedade civil, fazendo com que haja as condições materiais e pessoais de sua implantação e que a mesma concepção do mundo absorvida em lei agora se reflita nos conteúdos curriculares, na seriação horizontal e vertical de informações filtradas, na imposição de um código linguístico (o das classes dominantes), nos mecanismos de seleção e canalização de alunos, nos rituais de aprendizagem impostos ao corpo discente pelo corpo docente, etc. (FREITAG, 1980, p. 42 – grifos da autora).

Uma reação consistente à GIDE dificilmente teria origem no interior das escolas. Isso seria uma tarefa do partido político comprometido com os interesses históricos da classe trabalhadora, de modo que seus intelectuais estivessem em um movimento cultural unitário com o conjunto dos trabalhadores em educação, pensando seus problemas concretos, em especial aqueles problemas decorrentes da intensificação da precariedade do trabalho escolar decorrente das reformas gerenciais. Para Gramsci (1989, p. 18), […] a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simplórios se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social.

Seria central para este partido político formular a crítica à GIDE, situando-a no contexto sócio-histórico, de modo a explicitar a relação dialética entre esta estratégia gerencialista do Governo do estado do Rio de Janeiro e a reforma do Estado. Mas este 793

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movimento cultural só poderia originar uma reação à GIDE se houvesse o compromisso dos intelectuais desse partido com a tarefa de instrumentalizar o senso comum que paira no cotidiano das escolas com elementos teóricos e práticos capazes de subsidiar docentes ou até mesmo gestores escolares para a construção de uma visão crítica a ponto de propiciar-lhes uma consciência de si e de seu trabalho no desenvolvimento de procedimentos e condutas prescritos pela GIDE, de modo a dar-lhes organicidade de pensamento.

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE NOVO TIPO: Possibilidades de formação do intelectual orgânico do capital? Jussara Marques de Macedo1 No final do século XX fortaleceu o debate educacional para atender as exigências de qualificação no contexto da reestruturação produtiva e da globalização da economia. As políticas educacionais no Brasil se pautaram nas orientações dos organismos internacionais, que a partir de 1990 passaram a considerar a educação como um fator indispensável para a garantia da equidade social. O discurso da universalização da educação básica induziu medidas de caráter técnico para a gestão dos recursos públicos educacionais ao mesmo tempo que combinou medidas de avaliação por resultados. As políticas de formação para o trabalho docente objetivaram garantir o controle político e ideológico sobre o magistério da educação básica por meio da formação e atuação no trabalho. Diferentes organismos internacionais como o BM, a UNESCO, a OCDE e também o Processo de Bolonha defenderam que a formação do professor de novo tipo para o século XXI deveria se pautar na ideia de um profissional técnico capaz de realizar tarefas. Contraditoriamente, tal formação deveria se desenvolver em nível superior com recursos das Tecnologias da informação e da Comunicação (TIC), deixando evidente a valorização destes espaços ao mesmo tempo em que o desqualifica na medida que defende uma formação aligeirada, fragmentada e dissociada da formação política. O entendimento de que as políticas de formação para o trabalho docente expressam as relações de poder e a disputa por hegemonia na sociedade nos leva ao exercício de compreender a forma como o conceito de intelectual orgânico de Gramsci nos ajuda nesta análise. Com isso, interessa-nos analisar em que medida as políticas de formação para o trabalho docente contribuem para que estes trabalhadores de novo tipo desempenhem ou não a função de intelectuais orgânicos do capital ou da classe trabalhadora na sociedade de classes.

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Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Compõe o quadro docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (PPDH/UFRJ). É membro do Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação (COLEMARX/UFRJ) e do Grupo de Pesquisa Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS/UFRRJ). E-mail: [email protected]

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Cabe iniciarmos com a obra de Marx e Engels (1998), que produzida no período de 1845-1846 é resultado da análise feita acerca da sociedade de classes europeia que vivia a efervescência da então Revolução Industrial do século XVIII e que consolidou o projeto de modernidade atrelado ao desenvolvimento do capitalismo. Além da burguesia, faziam parte deste cenário os trabalhadores que organizados em movimentos operários, vislumbravam a construção de uma outra sociedade que não fosse dirigida pela burguesia. A partir do contato com a dialética de Hegel, Marx passa a formular a suposição de que na sociedade de classes é possível evidenciar o caráter revolucionário do proletariado, conclusão a que também chega Engels mesmo por caminhos diferentes. Neste sentido, os teóricos não apenas definiram o materialismo histórico como adequado para analisar a sociedade capitalista, mas sobretudo, deram corpo a uma teoria e metodologia que, ainda hoje, auxilia as ciências sociais, em especial no que diz respeito ao caráter revolucionário do proletariado. Este movimento dos operários significou para Marx e Engels (1998) a possibilidade de construção de um intelectual de novo tipo, diferente do valorizado pelo modernismo com seu resquício positivista cientificista, ou seja, de uma organicidade imutável, com papéis definidos e marcado por um tipo de falsa harmonia. Neste aspecto, o intelectual seria aquele que dissociado da realidade objetiva, limitava-se ao mundo das palavras e das ideias. Pautado sempre na realidade, Marx e Engels criticam aos demais tipos de materialismo até mesmo o de Feuerbach, quando afirmam que “o objeto, a realidade, o mundo sensível só são apreendidos sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, enquanto práxis, de maneira não subjetiva” (MARX; ENGELS, 1998, p. 99 – grifos dos autores). Nesta mesma linha de raciocínio afirmam: A questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica, mas sim uma questão prática. É na práxis que homem precisa provar a verdade, isto é, a realidade e a força, a terrenalidade do seu pensamento. A discussão sobre a realidade ou a irrealidade do pensamento – isolado da práxis – é pura escolástica (MARX; ENGELS, 1998, p. 100).

Neste sentido, os teóricos concluem que para a materialização da mudança na sociedade fazia-se necessário um novo tipo de intelectual, qual seja, aquele que fosse “ao mesmo tempo cientista, crítico e revolucionário (SEMERARO, 2006, p. 374). Nasce, desta forma, a formulação acerca da filosofia da práxis e a possibilidade do surgimento de novos intelectuais 798

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compromissados com o grupo social a que pertenciam. Mas do que elucubrações subjetivas acerca da sociedade, fazia-se necessário conhecê-la plenamente a partir dos mecanismos de dominação e opressão encobertos pela ideologia dominante. Desta forma, os intelectuais “não podiam se esconder atrás da neutralidade científica [mas eram] impelidos a se definir nos conflitos da história e a tomar partido (SEMRARO, 2006, p. 374). A tomada de consciência em relação a necessidade de mudança da sociedade e da atividade humana, provocava também, a necessidade de mudança individual que “só pode ser considerada e compreendida racionalmente como práxis revolucionária” (MARX; ENGELS, 1998, p. 100 – grifo dos autores), momento no qual os intelectuais voltavam-se para a defesa dos proletários explorados, em busca de um projeto alternativo de sociedade originado na classe proletária com auxílio dos intelectuais, objetivando, assim, a conquista da sua hegemonia (SEMERARO, 2006), porque acreditava na unidade entre ciência e política. Da mesma forma que Marx e Engels (1998), Gramsci (1991) concordava com a existência das contradições presentes na sociedade capitalista e acreditava na possibilidade de criação de uma contra hegemonia por parte do proletariado o que possibilitou sua empreitada em estabelecer uma nítida ligação entre os intelectuais, a política e classe social. Para Duriguetto (2014, p. 267), os intelectuais ocuparam lugar estratégico na elaboração teórica de Gramsci e suas análises sobre este tema estavam relacionados “aos processos de formação da hegemonia e ao conceito de Estado”. Diferente de outros teóricos2, Gramsci desenvolve a ideia de intelectuais a partir do ponto de vista de que eles, num movimento dialético, estão em plena articulação com o mundo. Assim, argumenta que todos os homens são filósofos se colocando contra a ideia de que tal atividade se volta apenas para alguns. Contudo, ele ressalta que se faz necessário, “portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são ‘filósofos’, definindo os limites e as características dessa ‘filosofia espontânea’ peculiar a ‘todo o mundo’” [...] (GRAMSCI, 1989, p. 11). A “filosofia espontânea” e acrítica ele chamou de “senso comum” enquanto a “filosofia superior” e a capacidade crítica de tomada de consciência ele chamou de “bom senso”. Para se chegar ao bom senso é necessário, portanto, superar as “paixões bestiais

2

Por exemplo, Mannhein (1972) que defendia que a sociedade sem classes, harmoniosa, sem conflitos, contradições e com diferenças entre indivíduos poderia ser justificada pela “ideologia democrática” e, poderia por meio de uma “técnica social” (ou sociedade planejada) implementada por especialistas independentes – por meio da educação –, formar os indivíduos para aceitar e reproduzir o status quo.

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e elementares por uma concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente” (GRAMSCI, 1989, p. 16). Na mesma obra, Gramsci salienta que a relação entre “filosofia superior” e a “filosofia espontânea” é “assegurada pela política” (p. 19), ou seja, tratase da relação entre teoria e prática que foi definida como “filosofia da práxis” que [...] não busca manter os “simplórios” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simplórios não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1989, p. 20).

Para Gramsci, os intelectuais assumem papel fundamental para a organização de uma determinada classe, são os intelectuais militantes, cuja função “é a de atuar nos processos de formação de uma consciência crítica e de construção de uma concepção de mundo unitária e coerente dos ‘simples’” (DURIGUETTO, 2014, p. 275). Este intelectual não estava distanciado do mundo real com todas as suas contradições, mas totalmente engendrado nas relações sociais, na classe e a um tipo de produção. Daí a conclusão de que todo o grupo social necessita do intelectual para a legitimação de classe. E, é com base nesta conjectura que vai se desenvolver a ideia do “intelectual orgânico3”, que nas palavras de Gramsci significa que [...] a organicidade do pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simplórios se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa, se tivessem elaborado e tornado coerente os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social (GRAMSCI, 1989, 18).

O intelectual orgânico deve ser aquele que “constrói”, “organiza”, “dirige” e “educa” permanentemente de modo que a “técnica-trabalho” passe a “técnica-ciência”, ou seja, esta é a concepção humanista histórica a que Gramsci afirmou necessária sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a “dirigente” (especialista + político). A tarefa, portanto, do “intelectual orgânico” é “determinar e organizar a reforma moral e intelectual, isto é, adequar a cultura à função prática” (GRAMSCI, 1989, p. 178). Surge assim, a ideia do “bloco intelectualmoral” que para Gramsci é a relação entre a “filosofia superior” (ou bom senso) dos intelectuais

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O “intelectual orgânico” é diferente do “intelectual tradicional” (clero, militares e acadêmicos por exemplo) que para Gramsci (1991 e 1989) vive preso a um tipo de organização social superada, ou seja, a uma sociedade de tipo rural ligada a massa de camponeses e pequeno-burguesa, sem querer enxergar o movimento capitalista de tipo industrial.

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e a “filosofia espontânea (senso comum) que é assegurada pela dimensão política da “filosofia da práxis”. O “bloco histórico4” para Gramsci (1989, p. 52), com sua concepção de mundo, é constituído pela estrutura e superestrutura5. Pode-se dizer que os intelectuais orgânicos possuem relação com um determinado grupo social fundamental podendo pertencer a um dos dois grupos superestruturais: o da sociedade civil e o da sociedade política/Estado. O primeiro se refere ao conjunto de organismos privados enquanto o segundo corresponde ao grupo dominante que tem o poder de exercer a função hegemônica sob a sociedade (GRAMSCI, 1991, p. 10-11). A partir dessas premissas gramscianas é possível afirmar que os organismos internacionais, por assumirem uma função educadora nesses tempos de pós-modernidade têm se constituído como os principais “intelectuais orgânicos” do capital para disseminar um tipo de formação para o trabalho docente na educação básica, isso porque a internacionalização da economia e a própria produção da existência requerem, do capital, ações cada vez “mais internacionalizadas com vistas a garantir, concomitantemente, a reprodução das relações de dominação burguesa sobre o conjunto das sociedades contemporâneas” (NEVES; PRONKO, 2008, p. 91 – destaque das autoras). Compreendemos que Banco Mundial (BM), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Processo de Bolonha – embora o último não seja um organismo internacional – expressam o processo de mundialização do capital e articulam-se diametralmente em oposição à intenção de formação de uma nova sociabilidade burguesa e, neste sentido, o conhecimento (na “sociedade do conhecimento”/pós-moderna) é apresentado como um elemento necessário e indispensável para a nova organização da sociedade, mas, também, pode ser visto como um elemento de produção da exclusão e da desigualdade entre indivíduos ou nações.

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Gramsci (1989, 233) define o “bloco histórico” como aquele onde o “conteúdo econômico-social e forma ético-política se identificam concretamente na construção dos vários períodos históricos” (1989, 233). 5 Para Gramsci (1989, p. 53) a estrutura é “o momento puramente econômico” ligado ao “objetivo” e ao “mundo da necessidade” enquanto a superestrutura é “o momento ético-político” ligado ao “subjetivo” e ao “mundo da liberdade” (p. 270).

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A escola que serviu “modernidade fordista” não atende mais à “pós-modernidade flexível”6, por isso esta passa a ser questionada pelos organismos internacionais como a responsável pelo fracasso do aluno. Da mesma forma, os professores também são responsabilizados, o que justifica para estes trabalhadores uma formação de novo tipo, de preferência a realizada em nível superior. Todo este discurso é reforçado nos vários documentos oficiais dos organismos internacionais e nos documentos oficiais do Ministério da Educação (MEC) que se referem às políticas de formação para o trabalho docente na educação básica. Esta formação do professor de novo tipo para o mercado justifica a intervenção dos organismos internacionais e, ou, dos acordos internacionais, no sentido de interferir diretamente nos Estados-Nações, por meio da educação, para colocá-la à mercê da nova ordem econômica, política e social estabelecendo, assim, um “pensamento único” em torno de tais políticas cujos conceitos-chave são: “universalização/profissionalização; formação pautada pela experiência; formação continuada; educação a distância; gestão do conhecimento; políticas para a valorização social destes trabalhadores; e a pedagogia das competências” (MACEDO, 2011) que bem se articulam a ideia de certificação e avaliação das capacidades adquiridas na prática do trabalho em comparação com aquela adquirida no ambiente escolar. A tendência predominante do BM (1995) em relação à formação para o trabalho docente se volta para a capacitação em serviço alegando que a mesma é o caminho mais viável para a redução de recursos, da mesma forma que promove rapidamente o aumento do número de docentes qualificados/capacitados. Segundo Torres (1998), tal tendência promove mudanças dentro de uma visão dicotômica e binária já que entende a política educativa sempre como uma opção entre pares, ou seja, privilegia-se formação em serviço versus formação inicial. Desprezam, assim, o tipo de formação para a emancipação humana e construção de outra sociabilidade (MARX; ENGELS, 1998). Assim, o BM obscurece a tentativa de apontar caminhos viáveis e sólidos para a formação do professor, tomando a universidade como o espaço mais coerente e capaz de contribuir para a qualificação destes profissionais. Trata-se, portanto, de uma proposta tecnicista/reducionista. A competência técnica não será suficiente para a

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Ver Harvey (2005).

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atuação de um professor compromissado com as minorias e os grupos excluídos da sociedade do século XXI. Esse tipo de formação aligeirada e de baixo custo possibilitará ao professor apenas a aquisição de um nível de conhecimento mínimo para torná-lo capaz de operar recursos didáticos previamente definidos ou quaisquer outros recursos que auxiliem na apresentação de conteúdos aos alunos. A qualificação para o trabalho docente tem sido pensada de forma isolada, deixando de fora os professores que conhecem as necessidades presentes no dia-a-dia do ambiente escolar. São os intelectuais orgânicos do capital que cumprem esta empreitada de forma autoritária e autônoma. Ao analisarmos o documento Brasil Teachers development and incentives: a strategic framework (2001) percebemos que houve mudança de enfoque e que a prioridade, aqui, se volta à formação dos professores da educação básica em nível superior colocando o tema da gestão como “carro chefe” para esta nova finalidade. Porém, esta formação deverá ser feita com base na prática uma vez que as universidades não deram conta desta formação. O BM Considera que as mudanças operadas na educação básica no Brasil a partir da década de 1990, por meio da LDB 9.394/96, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), por exemplo, impõe a necessidade de mudança nas políticas de formação de professores. A sugestão é que o Brasil necessita “retreinar e certificar os professores em nível superior” (BM, 2001, p. 20). A UNESCO parte do discurso da educação ao longo da vida é vista como a chave de acesso ao século XXI, ou seja, à “sociedade do conhecimento”. Afirma que esta ideia possibilita a flexibilidade, a diversidade e a acessibilidade. Para tanto, a educação permanente deve ser ampliada e posta em prática principalmente pelos países da periferia do capitalismo. No relatório da UNESCO de 1996, a educação ao longo da vida foi definida como aquela que deve se tornar “o meio de chegar a um equilíbrio mais perfeito entre trabalho e aprendizagem bem como ao exercício de uma cidadania ativa (DELORS, 2001, p. 105). Assim, a “missão” da educação é se organizar em torno de quatro pilares fundamentais, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos (DELORS, 2001, p. 90). A 803

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“democracia” de acesso à educação, nos limites da nova dinâmica da sociabilidade burguesa estende-se da educação básica ao ensino superior tendo as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) como o caminho mais promissor para a “democratização” do acesso a este nível de ensino. Em 1966 a UNESCO já defendia a formação dos professores da educação básica em nível superior que deveria se pautar no estudo dos elementos fundamentais da filosofia, psicologia e sociologia (UNESCO, 1966). Mas, a partir de 1996 ela muda o foco passando a supervalorização das TIC como principal instrumento para a formação docente, inclusive como recursos para garantir a educação a distância em nível superior, colocando sobre este trabalhador a responsabilidade de sua formação inicial e continuada. O ensino passa a ser visto como treinamento para professores e alunos, mas contraditoriamente é considerado pela UNESCO como uma arte e uma ciência. A OCDE, em seu relatório Professores são importantes: atraindo, desenvolvendo e retendo professores eficazes (2006) defende que novos professores devem ser recrutados e que todos deverão adquirir competências necessárias para acompanhar as mudanças da “sociedade do conhecimento”. A profissão docente somente será atraente com a implantação de mudanças necessárias à “sociedade do conhecimento”, caso contrário, gerará uma queda nos índices de “qualidade” das escolas. As principais preocupações que norteiam esta questão são: “à atratividade da docência como carreira; ao desenvolvimento de conhecimentos e habilidades dos professores; ao recrutamento, seleção e contratação de professores; e, à retenção de professores eficazes nas escolas” (OCDE, 2006, p. 8-9). Atrair professores significa: “ampliar a oferta de professores potenciais; tornar os mecanismos de recompensa mais flexíveis; melhorar as condições de ingresso de novos professores; repensar as vantagens entre relação estudantes/professor e o salário médio do professor (OCDE, 2006, p. 10). O desenvolvimento e implementação de políticas eficazes para professores está ligado à participação dos professores e seus representantes na formulação de políticas porque “sem que tenham um sentido de ‘propriedade’ das reformas, é pouco provável que a implementação de mudanças substanciais tenha sucesso” (OCDE, 2006, p. 225). Embora este discurso pareça favorável aos trabalhadores da educação no que se refere à sua participação, ele carrega em si 804

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uma marca da pós-modernidade cuja participação do trabalhador não é nada além da expressão do consenso imposto pela burguesia. As propostas da OCDE para a formação dos professores da educação básica têm por objetivo redesenhar a oferta de formação inicial e a formação ao longo da vida dos professores objetivando que os mesmos se tornem eficazes. A defesa da formação inicial dos professores em nível superior faz parte de uma política que se articula às políticas de ensino superior da OCDE (2006), que ocupa lugar cada vez mais importante nos programas nacionais. Sugere instituições não universitárias para a formação do professor que se enquadra à defesa de diversificação destas instituições que, além de englobar novos tipos de instituições de ensino, reza pela necessidade de atender às necessidades da sociedade e da economia “do conhecimento” (OCDE, 2008, p. 1). Trata-se de adaptar estes trabalhadores às novas demandas do mercado e às novas exigências da sociedade pós-moderna. As políticas de formação do professor resultantes do Processo de Bolonha (1999), podem melhor ser compreendidas a partir da experiência de Portugal que se articula aos interesses do capital internacional no sentido de reduzir os gastos com a educação ao mesmo tempo em que promove a sua mercantilização. A perspectiva de aprendizagem ao longo da vida é o princípio norteador da formação da educação infantil, básica ou secundária. Este princípio é defendido desde 1986, ano da aprovação da Lei de Bases da Educação e da adesão de Portugal à União Europeia. A formação em serviço atrela-se a esta mesma perspectiva, cujos objetivos são: “actualização e aprofundamento ou de especialização” (PORTUGAL, 2007, p. 6). Foi graças à contribuição do Fundo Social Europeu que a institucionalização e a implantação generalizada deste tipo de formação tornaram-se possível. Os esforços referentes à formação inicial e em serviço foram pensados tendo em vista o combate ao fracasso e a evasão escolares e na perspectiva de que o ensino secundário seja a qualificação mínima para todos os cidadãos portugueses. A formação para o desenvolvimento dos professores em Portugal atrela-se aos interesses da Comissão Europeia que deixa claro no documento Melhorar a qualidade da formação acadêmica e profissional dos docentes, a necessidade de “estabelecer um sistema global e sem descontinuidades que integrasse a formação inicial dos professores, a indução e o aperfeiçoamento profissional contínuo ao longo 805

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da carreira, incluindo oportunidades de aprendizagem formais, informais e não formais” (COMISSÃO EUROPEIA, 2007, p. 13). Numa perspectiva de melhorar a qualidade do desempenho docente e atender aos atuais desafios de qualificação docente foi implementado em Portugal, no ano de 2007, uma nova política de formação inicial dos professores. Esta iniciativa segue as orientações de qualificação profissional dos professores que estão inseridos nos parâmetros do Processo de Bolonha (1999) e na Comissão Europeia (2007). Com estes referenciais a qualificação docente prioriza:     

os resultados da aprendizagem que a caracterizam; a adequação destes resultados às novas exigências do desempenho docente; a aquisição do conhecimento relativo às disciplinas a ensinar, sobretudo na preparação do professor generalista; a fundamentação da prática de ensino na investigação, e a iniciação à prática profissional em contexto escolar (PORTUGAL, 2007, p. 7).

Partindo destes pressupostos, a formação inicial prevê a qualificação em nível superior que seja idêntica para todos os docentes. A formação inicial de professores deste perfil – que deve ser exclusivamente universitária – está particularmente adaptada a uma concepção 3+2 dos respectivos cursos. O primeiro ciclo de três anos é disciplinar, sendo, ou podendo ser, comum a cursos nas mesmas áreas mas com outras saídas. O segundo ciclo de dois anos é profissionalizante, incluindo uma componente de iniciação à prática profissional. Esta organização propicia a formação dos futuros profissionais docentes nos várias componentes essenciais que têm de estar presentes nestes cursos (QUEIRÓ, 2006, p. 3).

Além disso, o Ministério da Educação no que diz respeito à formação em nível de mestrado faz referência ao Processo de Bolonha e ao Quadro Europeu de Qualificações (Qeq) que defende que a “qualificação profissional que habilita para a docência será adquirida, a partir de 2007/2008, apenas através da frequência de cursos do 2º ciclo do ensino superior que conferem grau de mestre” (PORTUGAL, 2007, p. 7). Esta exigência de qualificação idêntica para todos os docentes, data do ano de 1997 quando se aboliu a diferenciação de formação entre os professores generalistas e professores de disciplinas. Mas, esta qualificação estava prevista para ocorrer apenas no nível de graduação – 1º ciclo do ensino superior – e não no nível do mestrado – 2º ciclo do ensino superior.

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É interessante observar que esta iniciativa que parece demonstrar o nível de compromisso do Ministério da Educação com a qualificação docente, não se caracteriza pelo aumento do número de anos dos cursos a serem feitos pelos futuros profissionais da educação, mas liga-se, diretamente com as orientações dos organismos internacionais do capital que valoriza o nível de resultados de aprendizagem esperado. É preciso ter clareza de que o discurso da formação do “pensamento único” de “profissionalização docente”, “escola eficaz”, “professor eficaz” “educação ao longo da vida”, “competências”, “certificação”, “avaliação” etc., são partes constitutivas de uma política de regulamentação no nível nacional e internacional, que tem se materializado por meio dos intelectuais orgânicos do capital, os organismos internacionais. Não resta dúvida de que se trata de uma reforma educacional posta em prática em todo o mundo cujo objetivo é formar professores técnicos (SHIROMA, 2004, p. 11). Cabe, diante disso, uma reflexão acerca da profissionalização docente, uma vez que a esta tem se constituído em uma das políticas de regulação sobre a gestão e o trabalho docente (MACEDO; LAMOSA, 2015). Além disso, está em andamento um processo de (con)formação dos trabalhadores docentes que torna possível a contínua disciplina da força de trabalho e a reprodução e manutenção do capital, representado pelos organismos internacionais. Com este tipo de formação, o trabalhador docente não tem condições de assumir o papel de intelectual orgânico do capital e nem da classe trabalhadora. Podemos dizer que no máximo ele assume um papel de “especialista” a reboque das práticas sugeridas/impostas pelos organismos internacionais modificando sua relação com o ensino-aprendizagem, com o educando, com a educação, com a política, com a sociedade e consigo próprio, manejando assim a “arte da aparência” (SEMERARO, 2006) no efêmero mundo da pós-modernidade. Se por um lado o trabalhador docente está sendo formado para colocar em prática a “técnica-trabalho” com o auxílio das TIC e do material didático do tipo apostilado a fim de reproduzir a sociedade de classes, por outro os organismos internacionais têm colocado em prática a “técnica de dirigente”. Em sua formação não é dada a chance de percepção da concepção humanista da história e por isso, segundo Gramsci (1989 e 1991), permanece “especialista” sem a possibilidade de se tornar intelectual orgânico e/ou dirigente. Torna-se com 807

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isso, subserviente ao modelo hegemônico da burguesia onde a função dos organismos internacionais/intelectuais orgânicos do capital é conformar por meio da formação o conhecimento possibilitado pelos novos donos do poder. Para se considerar um intelectual orgânico da burguesia ou da classe trabalhadora faz-se necessário que o trabalhador docente seja um “construtor”, “organizador”, dirigente e “educador” permanente de uma classe. Sem isso resta-lhe o papel de “intelectual midiático” ou “intelectual ficcional”. Diante disso, a atual ordem imposta pelo capital “só serve a formação de uma inteligência tecnológica-utilitarista, não uma formação ético-política” (SEMERARO, 2006). Daí derivam os seguintes questionamentos: Estaríamos assistindo a decadência dos intelectuais político-pedagógicos que, de militantes, críticos e pesquisadores, estariam passando a intérpretes, gerentes, divulgadores? Faz sentido ainda falar em “intelectual orgânico” às classes trabalhadoras em uma sociedade na qual as organizações de classe, os próprios partidos e os sindicatos custam a se justificar? Onde qualquer dissenso se desintegra na voragem do sistema e não parecem existir alternativas? Será que o “novo” intelectual desenhado por Marx e Gramsci estaria vencido e superado pela função cada vez mais virtual da produção e do conhecimento (SEMERARO, 2006, p. 384)?

Pode-se concluir, então, que a contribuição de Gramsci em tempos de pós-modernidade não seja a de negar os avanços da ciência por meio das TIC, mas a de considerar que a formação para o trabalho docente deva se pautar na lógica da formação do “intelectual orgânico” da classe trabalhadora e que tenha em mente o compromisso de trabalhar em prol de uma “reforma intelectual e moral” (GRAMSCI, 1989), condição sine qua non para a criação de uma contra hegemonia. Referências BANCO MUNDIAL. Prioridades y Estratégias para a la Educacion: estúdio sectorial del Banco Mundial (Version preliminar). Washington (EUA), mayo 1995. Mimeografado. ______. Brasil Teachers Development and Incentives: a strategic framework. 2001. Disponível em: . Acesso em: 12/08/2010. BOLONHA. Processo de Bolonha: a caminho da Área Européia de Ensino Superior. 1999. . Acesso em: 20/02/2008. 4f. 808

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O TRABALHO DOCENTE E A FORMAÇÃO DA CAMADA SUBALTERNA DOS INTELECTUAIS ORGÂNICOS DO CAPITAL Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa1 O movimento de recomposição burguesa, iniciado a partir da crise estrutural do capital, se desdobrou em uma reforma gerencial do Estado e, consequentemente, numa reorientação das políticas públicas, incluindo aquelas destinadas à educação. Neste contexto verificou-se no país uma ofensiva empresarial sobre as escolas públicas que se tornaram posto avançado das estratégias do capital na difusão de uma pedagogia do consenso responsável por propagar sua autoimagem associada à responsabilidade social e ambiental. O objetivo deste trabalho foi analisar como os docentes da Educação Básica têm se inserido na estratégia burguesa de difusão de uma nova sociabilidade. A pesquisa foi realizada junto aos docentes que participaram do Programa Educacional Agronegócio na Escola, iniciativa da Associação Brasileira do Agronegócio. Foram realizadas análises de fontes primárias e secundárias relativas à associação e seu programa, além de entrevistas semi-estruturadas com docentes que atuam em diferentes redes públicas municipais de ensino do estado de São Paulo. Verificou-se que os docentes entrevistados participam de forma voluntária do programa empresarial, tendo papel de formular no âmbito das escolas públicas projetos, a partir de temas geradores propostos pelos organizadores do programa. Estes projetos devem cumprir o objetivo proposto pelo programa de valorizar a imagem do agronegócio e se tornam propriedade intelectual da associação podendo ser reproduzidos de acordo com os seus interesses. Os docentes passam, portanto, a cumprir papel estratégico na difusão do projeto hegemônico do agronegócio. Neste sentido, passam a desempenhar papel estratégico na apropriação da escola pública pelo capital, compondo uma camada inferior das fileiras de intelectuais orgânicos das organizações da classe dominante. Palavras-Chave: Trabalho Docente – Hegemonia – Intelectual Orgânico – Agronegócio – Reforma Gerencial Introdução A burguesia tem promovido mundialmente um intenso processo de reorganização dos instrumentos de mediação do conflito de classe, desde a década de 1970, incluindo o Estado e suas principais agências. A reforma do aparelho estatal se estendeu às agencias relativas à educação pública e teve na mobilização empresarial para a privatização da educação pública sua principal estratégica. Neste sentido, as organizações representativas do “agronegócio” iniciaram a inserção nas escolas públicas, destacando-se a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG) que, desde 2001, desenvolve o Programa Educacional Agronegócio na Escola.

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Doutor em Educação, Professor do programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); [email protected]

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A inserção empresarial nas escolas públicas de Educação Básica no Brasil foi impulsionada, nos anos 1990 e 2000, através da multiplicação de projetos e programas, com formatos muitos diferenciados, em um movimento que não se restringiu a regiões ou níveis de ensino. No mesmo sentido, diversas frações burguesas vêm participando ativamente deste movimento, dentre as quais se destacam aquelas que reunidas entorno do objetivo de valorizar a imagem do agronegócio vêm difundindo no país iniciativas pedagógicas. Em pesquisa realizada no estado de São Paulo, em escolas públicas de dezenas de redes municipais de ensino, foram realizadas entrevistas com docentes que participam do Programa Educacional Agronegócio na Escola, formulado pela Associação Brasileira do Agronegócio que, desde 2001, difunde através de projetos desenvolvidos no espaço escolar com alunos do Ensino Fundamental uma imagem de responsabilidade socioambiental. 1. O Capital e as escolas públicas no Brasil: as estratégias de conformação no estado de São Paulo Ao longo de toda a década de 1990 a reforma educacional ocorrida nos países na América Latina e Caribe foi um dos desdobramentos de um movimento iniciado, em 1990, na Conferência Mundial Educação Para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia. Nesta conferência, organizada pelo Banco Mundial em parceria com as entidades ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU), dentre as quais a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), a UNICEF (Organização das Nações Unidas para a Infância) e o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Na conferência foram destacados os números superlativos relacionados às taxas de analfabetismo no mundo, ressaltando que estes estavam concentrados em países em desenvolvimento e com grandes densidades populacionais. Estes países compuseram o grupo com as nove nações com as maiores taxas de analfabetismo do mundo (Bangladesh, China, Paquistão, Nigéria, Brasil, Índia, Egito, México e Indonésia) e passaram a receber a assessoria e consultoria do Fórum Mundial Educação para Todos (Education For All – EFA). No horizonte político da Carta de Jomtien foram estabelecidas metas e condições para os países signatários. Dentre estas estaria a necessária mobilização dos empresários em cada país para que estes participassem do projeto de expandir a educação básica. Esta tarefa deveria ser encampada por todo o conjunto da sociedade e, neste sentido, deveriam se somar ao Estado 812

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outras organizações sociais. A expansão da educação deveria ser encarada como uma questão fundamental para a paz mundial. No mesmo ano, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) produziu o documento Tranformación Productiva com Equidad, através do qual reforçou a necessidade de realização de uma ampla reforma educacional com o objetivo de integrar os países da região ao processo de globalização mundial. O documento da CEPAL, em 1990, reafirmou as diretrizes da Carta de Jomtien, recomendando aos países da região ênfase na reorganização dos sistemas educacionais com foco na formação de trabalhadores flexíveis, versáteis, inovadores, comunicativos e motivados. Esta formulação foi desenvolvida durante a década de 1990, através de outros documentos produzidos pelos organizadores da Conferência Mundial Educação Para Todos, através do qual se destaca o Relatório Educação: um tesouro a descobrir, de 1996 (Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2010). As diretrizes da Conferência Mundial Educação para Todos em relação às NEBAS foram aprofundadas no relatório da Unesco Educação: um tesouro a descobrir, formulado em 1996 pela Comissão Internacional de Educação para o século XXI, coordenada por Jacques Delors. No relatório destaca-se o papel da educação ao longo da vida como aspecto fundamental para o alívio à pobreza e para a transformação da educação em capital social (DELORS, 2001). A educação ao longo da vida se efetivaria a partir de quatro pilares: aprender a conviver, aprender a conhecer, aprender a fazer e aprender a ser. (Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2010, p. 14). No mesmo ano do lançamento do Relatório Jacques Delors foi criado o Programa de Promoção das Reformas Educacionais na América Latina e Caribe (PREAL). Desde sua formação, em 1996, o PREAL é dirigido por três entidades: Diálogo Americano, USAID e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Ao longo de seus vinte anos de existência o programa produziu um conjunto de trabalhos de pesquisas sistematizados em documentos sob a encomenda do Banco Mundial. Neste sentido, o programa tem cumprido a função de intelectual orgânico do Estado maior do capital no processo de recomposição dos instrumentos de mediação de classe, destacadamente na reforma da educação, objetivo maior deste instrumento organizativo do projeto de poder da classe dominante. Em 2001, em Miami, nos Estados Unidos, o PREAL realizou um encontro que reuniu cento e vinte lideranças empresariais que atuam na educação que culminou com a Declaração 813

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de Ação. Através da declaração foi estabelecida uma lista de ações que deveria fornecer aos empresários as diretrizes para uma ação unitária e coesa no campo educacional. No discurso presente no documento os empresários se responsabilizam pelo esforço em universalizar a educação básica como tarefa daqueles que são os maiores interessados no destino do produto final dos processos educacionais: a formação da força de trabalho que seriam por eles empregada em seus empreendimentos. No Brasil a inserção dos projetos empresariais nas escolas ocorreu no contexto de difusão de projetos de responsabilidade socioambiental empresarial no país e ganhou grande destaque nacionalmente. Em São Paulo, desde os primeiros anos da década de 1990, uma verdadeira campanha foi orquestrada, tanto na sociedade civil, através da imprensa, quanto na sociedade política, através da Secretaria Estadual de Educação. O foco desta campanha foi a convocação do empresariado brasileiro à tomar a direção da expansão da Educação Básica. É possível afirmar que o empresariado realizou, no decorrer dos anos 1990, uma transição entre a posição crítica aos governos responsáveis pela má gestão do dinheiro público e uma posição de vanguarda no movimento de inserção do capital nas escolas públicas brasileiras. É possível verificar, através de pesquisa nas fontes da imprensa, com destaque para a Folha de São Paulo e a Revista Veja, ambos de grande circulação no estado de São Paulo, que o empresariado brasileiro resistiu a se lançar sobre as escolas públicas da Educação Básica. Em diversas matérias publicadas neste período é possível perceber que o empresariado brasileiro, até os anos 2000, permaneceu entendendo o investimento nas áreas sociais como custo, embora a imprensa permanentemente tenha realizado o esforço de divulgar e propagar as ações empresariais existentes. (LAMOSA, 2016) Desde o fim da década de 1980, todos os governos no estado de São Paulo criaram políticas, a partir da Secretaria de Educação, de incentivo às parcerias empresa-escola. Estas políticas estiveram presentes, tanto nos governos que tiveram à frente governadores do PMDB, quanto naqueles que estiveram sob a direção do PSDB. No governo Quércia/PMDB (19851990), foi criado o programa “Adote uma Escola”. O governo Fleury/PMDB (1991-1994) criou o “Programa de Parceria Empresa-Escola Pública”. O governo Covas/PSDB (1995-2002) criou o programa “Escola em parceria”, através da Resolução SE-234/1995, publicada no Diário Ofial do estado de São Paulo, e mantido, até os dias atuais, nos governos Geraldo Alckimin/PSDB

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(2001-2006/ 2011-2013) e José Serra (2007-2010), tendo modificado de nome em 2005, quando passou a ser chamado “Empresa Educadora”. (SOUZA, 2011) Durante toda a década de 1990, o jornal Folha de São Paulo publicou diversas matérias que tinham como principal característica a divulgação de ações bem sucedidas do empresariado brasileiro junto a educação básica visando entusiasmar o empresariado brasileiro a adotar as escolas públicas. Em 1993, o jornal Folha de São Paulo publicou duas matérias e um artigo do atual Ministro da Educação que defendiam maior participação das empresas nos destinos da educação básica brasileira. Ambas as redações destacaram a relação entre o investimento educacional e o crescimento das riquezas do país, citando casos bem sucedidos, tanto de países que seguiram este exemplo, quanto de empresários que assumiram o papel de vanguarda neste sentido, destacando que este ainda era um movimento remoto no país. Em agosto de 1993, sob o título “Educação: exigência da economia contemporânea”, a Folha de São Paulo publicou o artigo de Aloísio Mercadante (PT/SP), ex-deputado federal e atual Ministro da Educação. Naquela conjuntura o economista defendeu que: “precisamos de uma revolução na educação, novos instrumentos de financiamento do ensino público, onde as empresas privadas assumam com maior responsabilidade o desafio histórico de universalizar o Ensino Fundamental.” (Folha de São Paulo, 25.08.1993, pp. 1-3 Apud LAMOSA, 2016, p. 213.)

Neste mesmo ano, segundo Martins & Neves (2015), a principal organização nacional dos trabalhadores da educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), dirigida por lideranças advindas dos quadros do Partido dos Trabalhadores, assinou o Plano Decenal Educação Para Todos, produzido no governo do presidente Itamar Franco (19921994) como decorrência da assinatura do país na Conferência Mundial Educação para Todos, realizada em 1990, em Jomtiem na Tailândia. A adesão de representantes da classe trabalhadora às estratégias do capital, em especial à inserção das empresas nas escolas, em nome da expansão da expansão da Educação Básica no Brasil, produziu o consentimento ativo à reforma educacional em curso. Em julho, ainda em 1994, a Folha de São Paulo publicou um caderno especial sob o título “Empresas adotam escolas públicas” em que retrata a situação deste tipo de iniciativa no Brasil e em São Paulo. Nesta reportagem são divulgados exemplos bem sucedidos e divulga o projeto do Pensamento Nacional de Bases Empresariais (PNBE) para orientar aquelas empresas que se interessarem adotar uma escola pública (Folha de São Paulo, 12.07. 1994, Especial p. 815

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A1, Apud LAMOSA, 2014, p. 199). A revista Veja foi uma importante articuladora desta mudança de perspectiva. Em 1995, a revista deu grande destaque para o “Programa de Parceria Empresa-Escola Pública”, desenvolvido pela Secretaria de Educação do governo do estado de São Paulo, desde 1991, durante o governo Fleury/PMDB (1991-1994). O programa criou um cardápio com vinte propostas possíveis de parceria e distribuiu para cinco mil empresários. Segundo reportagem da Veja “o nível de adesão foi zero.” (Veja, 15.02.1995, pp.23-24, Apud LAMOSA, 2014, p. 198) No governo Covas/PSDB (1995-2002), o programa iniciado no governo Fleury/PMDB foi reformulado, mantendo, no entanto, as mesmas diretrizes. Ao invés, entretanto, de utilizar o termo “adoção”, passou a utilizar uma categoria menos pejorativa às escolas: “parceria”. O “novo” programa se chamou “Escola em parceria” e entrou em vigor através da Resolução SE234/1995, publicada no Diário Oficial do estado de São Paulo. A proposta, organizada ainda no governo Fleury/PMDB e reformulada nos governos Covas/PSDB, sendo válida nos primeiros dez anos de governos do PSDB. Em 2005, durante o primeiro governo de Geraldo Alckimin/PSDB (2001-2006), um novo programa denominado como Empresa Educadora atualizou as propostas do governo de São Paulo para as “parcerias” entre empresas e escolas públicas. A alteração da denominação de programas que incentivam as “adoções” ou “parcerias” em São Paulo segue a lógica dos governos de imprimirem suas marcas através das políticas educacionais. (SOUZA, 2011) Desde 2001, em parceria com a Secretaria Estadual de Ensino do estado de São Paulo, a Associação Brasileira do Agronegócio iniciou o desenvolvimento do Programa Educacional Agronegócio na Escola. Entre 2001 e 2008, o programa foi realizado em parceria com a Secretaria Estadual da Educação e desenvolvido em escolas pertencentes a dez Diretorias de Ensino da macrorregião de Ribeirão Preto. O programa foi destinado, segundo o site oficial da ABAG, aos estudantes do ensino médio, com o objetivo de “levar os conceitos fundamentais do agronegócio para as salas de aula, de forma multidisciplinar.” (site oficial da ABAG). No entanto, segundo as representantes da ABAG, as exigências do vestibular trouxeram muitas dificuldades para a realização do programa. Após este período inicial, a associação passou a trabalhar exclusivamente com as redes municipais da macrorregião de Ribeirão Preto que possuem escolas com o segundo segmento do ensino fundamental.

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A Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), entidade nacional fundada em Brasília, em 1993, realiza, por intermédio da sua entidade coirmã, a ABAG-RP, situada em Ribeirão Preto, o Programa Educacional Agronegócio na Escola, desde 2001, nas escolas públicas. Do ponto de vista do ideário ambiental, o discurso de sustentabilidade anunciado pela entidade e promovido em suas ações educativas, propõe a possibilidade de uma sociedade sem conflitos baseada nas parcerias público-privadas, na responsabilidade individual e na racionalização do uso dos recursos naturais. Em mais de uma década, o programa já se inseriu em dezenas de redes de ensino do estado de São Paulo, centenas de escolas, envolvendo docentes e milhares de alunos com o propósito de valorizar a imagem do agronegócio, inclusive como protagonista de um desenvolvimento sustentável garantido pela “modernização” do campo e uso de tecnologias de ponta. A estratégia de inserir nas escolas um programa de educação ambiental do Agronegócio visa promover a valorização da imagem do agronegócio”, segundo o próprio site da ABAG. O programa objetiva educar jovens, filhos de trabalhadores, apresentando o ideário da responsabilidade social e ambiental do agronegócio, enquanto caminho moderno e viável para a sustentabilidade, em uma região marcada pelo conflito social e ambiental. Em seu site oficial, a ABAG justifica o investimento no programa Agronegócio na escola, pois entende que um dos instrumentos mais eficazes para promover a valorização da imagem do Agronegócio é a educação. A valorização da imagem do Agronegócio deve ser feita pelo programa, através da ampliação da consciência dos estudantes sobre as atividades agroindustriais da região (LAMOSA, 2016). 2. Os professores e a função de intelectual orgânico subalterno do agronegócio O Programa Educacional Agronegócio na Escola que já existe há quinze anos sofreu ao longo da sua história alterações que visaram ampliar a ação pedagógica da associação no sentido proposto de melhorar a imagem o agronegócio e adaptar a proposta diante das dificuldades impostas. A assimilação da comunidade é realizada por meio de visitas aos associados da ABAG em Ribeirão Preto e concursos que premiam alunos e professores. No entanto, como foi possível identificar pelas fontes, as mesmas condições que facilitam a entrada da associação nas escolas, são as mesmas que limitam a plena realização dos objetivos do programa. O Programa Educacional Agronegócio na Escola está inserido no projeto de hegemonia da ABAG. Através do programa Agronegócio na escola a ABAG incorporou em seu projeto de 817

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hegemonia os profissionais de educação básica, associados ao sistema público de educação, com o objetivo de difundir uma imagem de responsabilidade socioambiental. Neste sentido, estes docentes passam a compor uma camada de intelectuais orgânicos da associação: os intelectuais orgânicos subalternos. A ABAG-RP, através da entrevista com a diretora executiva em Ribeirão Preto, “garante que entende o seguinte: cada um trabalha a sua maneira e nós fornecemos este material de apoio” (LAMOSA, 2014, p. 371). A ABAG, segundo a coordenadora do programa, “não entra em sala de aula”. De fato, nenhum dos professores entrevistados identificou que qualquer profissional da associação tenha entrado no interior da sala de aula. Este é um dos elementos centrais no processo de cooptação dos professores. O Programa Educacional Agronegócio na escola, diferente da maioria dos projetos empresariais que se inserem atualmente nas escolas públicas, não impõe um único formato de projeto a ser desenvolvido. Isto restringiria muito as possibilidades de ação do programa. O programa da forma como é executado garante aos professores uma autonomia limitada que permite que estes executem a proposta de divulgação da ABAG sem se sentirem funcionários do agronegócio. Como disse uma professora em Dourado: “Eu não sou funcionária da ABAG” (LAMOSA, 2014), mas seu projeto divulgou a mensagem da associação, através de blog e um jornal com tiragem de mil exemplares em uma cidade com cinco mil pessoas. A autonomia relativa que o programa da ABAG-RP permite aos professores oferece a associação ter acesso a toda produção criativa do espaço escolar. Sem engessar o trabalho docente em um único formato, a associação expropria o conhecimento produzido nas escolas públicas (LAMOSA, 2014). Este valor é bastante alto, quando pensamos nos parcos recursos existentes no interior da escola pública, mas é muito pouco ao lado dos números apresentados pelo programa que já chegou a mobilizar mil e oitocentos professores. O custo do programa para a ABAG-RP é muito baixo e isto acontece à custa da privatização dos recursos públicos e pela precarização do trabalho docente. O trabalho dos professores que participam do programa, ora é pago pelas prefeituras, através da destinação de parte da carga de trabalho remunerada dos docentes para o desenvolvimento de projetos inscritos no programa, ora é realizado de forma voluntária. Segundo as representantes da ABAG-RP, a associação desconhece qualquer tipo de remuneração paga aos professores pelas secretarias de educação para a participação no programa. 818

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Entre os professores entrevistados, nenhum negou a existência de interesses privados no programa, mas todos, ao mesmo tempo, afirmam possuir autonomia para trabalhar nas escolas. A autonomia gozada pelos profissionais da educação que trabalham nas escolas participantes do programa é o elemento fundamental na assimilação destes intelectuais. Esta autonomia é relativa, uma vez que garante à ABAG-RP inserção de seu programa educacional, garantindo a capacitação, o material didático e o tema gerador segundo seus interesses, sem, entretanto, retirar da escola sua capacidade criativa. Assim, dezenas de docentes que participam do programa criam projetos anualmente, expropriados pela ABAG-RP, uma vez que podem ser utilizados em futuras campanhas, programas e ações da associação. A estratégia que garante a autonomia relativa do trabalho docente permite a valorização do agronegócio com pouca resistência nas escolas e baixos custos para seus proponentes. Esta fórmula tem garantido a manutenção do programa a mais de uma década. A ABAG-RP, através da entrevista com a diretora executiva, garante que entende o seguinte: “cada um trabalha a sua maneira e nós fornecemos este material de apoio.” Ainda neste sentido, a ABAG-RP “não entra em sala de aula.” De fato, nenhum dos professores entrevistados identificou a presença de qualquer representante do programa em sala de aula. Este fato, no entanto, é um dos elementos centrais do processo de cooptação que torna os próprios professores os representantes da associação. O Programa Educacional Agronegócio na escola, diferente da maioria dos projetos empresariais que se inserem atualmente nas escolas públicas, não impõe um único formato de projeto a ser desenvolvido pelos professores. Isto restringiria muito as possibilidades de ação do programa. O programa da forma como é executado garante aos professores uma autonomia limitada que permite que estes executem a proposta de divulgação da ABAG-RP sem se sentirem funcionários do agronegócio. Como disse uma professora no município de Dourado (SP): “Eu não sou funcionária da ABAG”. A professora da escola em Dourado (SP) argumenta que seu projeto deverá “abordar os dois lados”, resultando em um blog e um jornal com tiragem de mil exemplares em uma cidade com cinco mil pessoas. A pesquisa não teve acesso ainda ao jornal. Portanto, seria precipitado avaliar se o objetivo de levar os alunos a tirarem suas próprias conclusões será atingido. Isto só será possível ser realizado no fim da edição 2013, quando a professora deverá apresentar os resultados do seu projeto na culminância do Programa Educacional Agronegócio na Escola. Entretanto, a julgar pela compreensão que a professora tem sobre o agronegócio a perspectiva 819

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que deverá ser evidenciada não está tão distante daquela proposta pela ABAG-RP. Embora argumente que aborde “os dois lados”, a professora identifica que trabalha visando “levar a informação sob a ótica positiva”. O argumento de que a “realidade está aí e não vai mudar” parece justificar sua posição que difere da postura do secretário de educação de Matão, caracterizada como “radical”, que vem impedindo a entrada do programa nas escolas da rede municipal daquele município. “Professora: “Só que de boa, a ABAG pode não gostar, mas eu abordo os dois lados da questão. E o que eu viso no meu trabalho, pelo menos neste ano, é levar a informação sob a ótica positiva sim. Eu não tenho essa visão tão radical quanto deste Secretário, entendeu? Eu estou trabalhando este outro lado. Eu estou tentando ver no feio o bonito. Vamos assim dizer, vendo o lado positivo. Pra que as pessoas, já que a realidade está aí e não vai mudar. Na minha cidade não tem como. Não tem opção. Hoje você não tem outra opção.” (LAMOSA, 2014, p. 267)

A professora, embora afirme trabalhar “os dois lados” da questão agronegócio, reconhece nunca ter se questionado sobre os efeitos de seu trabalho para ABAG-RP. A associação, segundo a professora, foi apenas a “mola propulsora” que “abriu uma porta”. A professora argumenta que não é uma “funcionária da ABAG” e que, portanto, não estaria preocupada com os interesses da associação empresarial, embora reconheça que “existe uma intenção dela por trás disto”. No entanto, segundo a professora é melhor não parar pra pensar muito em quanto está sendo usada pela associação, pois caso contrário “não faço o projeto”: “Professora: “Sinceramente, eu não me preocupo muito com a ABAG. De verdade, a ABAG pra mim foi a mola propulsora do projeto. Eu me preocupo com o projeto na minha cidade, com a repercussão que ele vai ter aqui. A repercussão que vai ter aqui é positiva. Então, óbvio que vai rebater lá na ABAG, mas de verdade se você me perguntar se eu penso nisso, eu não penso na ABAG. Eu não sou uma funcionária da ABAG, eu sou uma educadora e a ABAG me deu uma oportunidade de trabalhar num projeto. É assim que eu penso. Ela viabilizou, ela pra mim abriu uma porta, um caminho pra eu trabalhar o projeto que eu achei legal, por isso comprei a ideia e tô trabalhando. O tipo de resultado que vai ter pra ABAG, de verdade, nunca parei pra pensar, nunca. É lógico que eu sei que existe uma intensão dela por trás disto, mas eu nem parei pra pensar nem na intenção da ABAG. Pra falar a verdade, se eu parar pra pensar muito na intenção da ABAG eu vou sentir usada pela ABAG e aí não faço o projeto igual o cara em Matão. É isso que não pode. (..) A expectativa da ABAG certinho eu nunca parei pra pensar. Acho que é lógico que se eu fizer um bom trabalho para a ABAG será ótima, porque o nome dela está indo junta. É isso.” (LAMOSA, 2014, p. 243)

Em Descalvado (SP), assim com em Dourado (SP), a professora entrevistada, relatou que tenta realizar o projeto “mostrando os dois lados”. A professora argumenta que é possível 820

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separar a visão da ABAG-RP que tem “as preocupações dela” e a influência que o programa terá na escola. Segundo a docente: “Professora: “Eu sou da opinião de que se vai mostrar, você não vai elencar como sendo uma diretriz, não é uma lei a ser seguida. Essa é a visão da ABAG porque ela almeja neste sentido, da indústria, do plantio, das coisas, das preocupações dela. A nossa visão na escola é tentar entender como isso vai influenciar aqui na escola. Influenciou, porque isso fez eles pensarem em alguns momentos coisas que eles nunca pensariam. E refletiu nos alunos da seguinte forma: num momento que era pra você trabalhar seguindo os moldes da ABAG que a gente tem até um roteiro pra ser feito, pra pesquisar e tudo, mas a escola conseguiu transformar este roteiro numa coisa que estimulasse ela. Eu acho que produziu alguma coisa de diferente. Mostrar o potencial de alguns alunos para os outros alunos da escola e falar você também é capaz. Veja, esta é uma ideia, entendeu?” (LAMOSA, 2014, p. 267)

Em Monte Alto (SP), a professora responsável pelo programa também afirmou que tenta trabalhar o seu projeto de forma crítica. Esta professora participou do programa na edição 2012, quando inscreveu um projeto sem, contudo, conseguir entregar os relatórios finais. Em razão disto, não teve a possibilidade de apresentar seu trabalho na culminância do programa e nem participar do Prêmio Professor. A sua escola também não foi relacionada no prêmio “Escola Destaque” nesta edição. Esta professora de Monte Alto (SP) tinha uma diferença importante em relação aos demais entrevistados, pois já havia participado do programa como aluna. A sua dupla participação, como aluna e professora, foi um elemento que a tornava importante para a pesquisa. Afinal, se o programa tem a capacidade de influenciar a opinião dos estudantes e professores que participantes, como seria com uma pessoa que teria participado como aluna e professora? Qual seria sua postura diante do programa e seus objetivos? A professora, ao ser entrevistada, garantiu, assim como aqueles que foram entrevistados anteriormente, afirmou que “tudo depende da forma como você vai trabalhar”. O argumento central é que os professores que trabalham no programa possuem autonomia para desenvolver seus projetos “Professora: “Então, eu me perguntei, assim, diversas vezes sobre o que eu penso disto. E aí eu cheguei na seguinte conclusão: no meu caso, eu acho que tudo depende da forma como você vai trabalhar. Ideologia tem em tudo. Não é só neste projeto. Eu trabalho com outros projetos e a gente nota que há uma ideologia neles também. Então, eu acredito que o jeito que a gente trabalha pode aguçar isto ou anular, não anular, mas diminuir esta relação. Em nenhum momento, pelo menos na minha fala, enquanto eu trabalhei no projeto, a gente ficou preocupada com estas questões. Eu procurava trabalhar as questões num viés histórico e, se possível, até sociológico da coisa, trabalhando com eles a

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partir de um ponto de vista tentando ver com eles a aplicação na vida deles, na realidade deles.” (LAMOSA, 2014, p. 232)

O argumento central dos professores que relataram participar do programa de forma crítica é o mesmo apresentado pelas representantes da ABAG-RP quando afirmam que a associação “não entra em sala de aula”. Ambos reafirmam que os projetos desenvolvidos nas escolas não são controlados pela ABAG-RP e, assim, os professores teriam autonomia para manter sua criticidade diante dos interesses privados. Entre os professores entrevistados todos afirmaram ter autonomia para criticar o programa. É importante, no entanto, identificar que, com exceção do professor que teve contrato com a prefeitura de Ribeirão Preto, nenhum dos demais entrevistados declarou ser contrário ou levantou qualquer crítica a iniciativa da associação em realizar nas escolas públicas um projeto que tem como objetivo valorizar a imagem do agronegócio. O argumento apresentado pelos professores, no entanto, não foi possível ser constatado pela pesquisa que resulta neste trabalho. Entre os projetos apresentados na culminância do Programa Educacional Agronegócio na Escola, durante a edição de 2012, somente o projeto “Desenvolvendo a autonomia na escola: reflexões sobre sustentabilidade por meio de pesquisa, análise e crítica” foi frontalmente crítico ao agronegócio. Talvez, por isto, este projeto tenha sido avaliado como o pior projeto entre aqueles avaliados pela ABAG-RP na respectiva edição. Fica evidente, portanto, a perda de autonomia dos docentes frente a associação. A principal implicação do novo modelo de regulação é a perda do protagonismo do educador na produção do conhecimento. Esse é o principal aspecto que atualiza as teses de proletarização e desprofissionalização docente (LAMOSA, 2014). Nesse contexto, os professores vêm perdendo sua autonomia para conduzir o processo de ensino-aprendizagem, elemento indispensável à carreira docente. Os estudos mais significativos a respeito da reorganização do trabalho docente datam de duas décadas atrás. Foi nessa conjuntura que as teses de desprofissionalização e proletarização do magistério se popularizaram no debate acadêmico brasileiro. Segundo Oliveira (2004), essa formulação, contraditoriamente, foi difundida em um momento (décadas de 1970 e de 1980) em que a história do movimento docente foi profundamente marcada pela luta por profissionalização do magistério e reconhecimento dos direitos e deveres desses trabalhadores.

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De acordo com Enguita (1991), um grupo profissional pode ser considerado como uma categoria autorregulada de pessoas que trabalham diretamente para o mercado numa situação de privilégio monopolista. Ressalta que, diferentemente de outras categorias de trabalhadores, os profissionais são plenamente autônomos em seu processo de trabalho, não tendo de submeterse à regulação alheia. A perda da autonomia do trabalho docente, nesse sentido, seria resultado da histórica expropriação do saber docente. Nas últimas décadas, o trabalho docente, assim como a escola pública, assumiu as mais variadas funções, que requerem desse profissional exigências que estão além de sua formação (SHIROMA, 2003, 2004). Tais exigências contribuem para um sentimento de desprofissionalização que se acentua com a perda da identidade profissional, resultando em uma reestruturação do trabalho docente, podendo alterar, inclusive, sua natureza e definição (OLIVEIRA, 2000). Neste sentido, é possível afirmar a existência na atual conjuntura de uma intensificação da proletarização do trabalho docente. Conclusão A entrada das organizações representativas da classe dominante no interior da escola é um fenômeno internacional, tendo, destacadamente nos últimos trinta anos, grande impulso, a partir das conferências e programas que definiram uma agenda de reformas nos Estados nacionais, com grandes desdobramentos na educação pública. A agenda produzida pela reforma do Estado teve na mobilização empresarial para a privatização da educação pública sua principal contribuição. Neste contexto, uma miríade de políticas públicas e uma intensa campanha na imprensa se responsabilizaram por realizar a mobilização empresarial. Os desdobramentos destas iniciativas têm assimilado docentes às estratégias de dominação e hegemonia do capital, reproduzindo no espaço escolar uma imagem associada à responsabilidade social e ambiental. Referência Bibliográfica DELORS, Jacques (Org.). Educação um tesouro a descobrir: Relatório da UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (1996). 6. Ed. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC: Unesco, 2001. ENGUITA, M. F. A ambigüidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Revis- ta Teoria e Educação, n. 4, p. 1.127-1.144, 1991.

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MESA 15: ESTADO, PODER E EDUCAÇÃO NO BRASIL NOS SÉCULOS XX e XXI Coordenação: Nívea Silva Vieira (UERJ) RESUMO: As políticas educacionais brasileiras são forjadas na sociedade civil no embate entre projetos de distintas agências responsáveis pela formulação e difusão de interesses que extrapolam a esfera educacional. Esta mesa coordenada propõe debater a complexa relação entre a sociedade civil e a sociedade política, tendo como foco a atuação de aparelhos privados de hegemonia, representantes das frações da classe dominante, na construção do consenso conservador na sociedade brasileira nos séculos XX e XXI. Partindo do referencial teóricometodológico formulado pelo marxista italiano Antônio Gramsci, os trabalhos aqui reunidos discutem as estratégias de dominação das frações do capital dirigidas às instituições de ensino públicas de nível básico e superior. O primeiro trabalho da mesa coordenada analisa criticamente a escolarização e a formação da cultura da classe trabalhadora no campo brasileiro, defendida e promovida pela fração agrária da classe dominante no município de Iguaçú durante o Estado Novo (1937-1945). O segundo trabalho dedica-se ao debate das estratégias do capital financeiro, representada pela organização Centro de Estudos e Pesquisa em Cultura, Educação e Ação Comunitária para universalizar seu projeto de educação de Tempo Integral destinado aos estudantes classificados em situação de vulnerabilidade. O terceiro trabalho discute a redefinição das politicas destinadas ao ensino superior e à pós-graduação, a partir do atual Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020), pautadas nas necessidades de formação de mão de obra para o mercado e com vistas a conformar os estudantes dentro das demandas do capital. O quarto trabalho se dedica ao estudo da fundação LEMANN, interpretando-a como uma das principais agências difusoras da cultura empresarial dentro da instituição de ensino no Brasil na contemporaneidade. Neste sentido, a mesa propõe contribuir com uma reflexão, a partir dos referenciais gramscianos, para compreender os processos constituídos ao longo da história de inserção dos interesses do capital nas políticas públicas educacionais.

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A HEGEMONIA DO CENPEC SOBRE AS POLÌÍTICAS DE EDUCAÇÃO EM TEMPO e ESPAÇO INTEGRAL NO BRASIL NO SECULO XXI Nivea Silva Vieira1

RESUMO O número de projetos e programas que promovem a ampliação da jornada escolar cresce no Brasil sob a hegemonia da concepção de que a educação em tempo integral deve ser feita para atender as populações vulneráveis, com base na colaboração de entidades da sociedade civil com as escolas. Este trabalho investiga a construção da hegemonia desta concepção de Educação de tempo Integral, a partir da agência da sociedade civil, Centro de Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) que em conjunto com a instituição Itaú Social, formula e difundi políticas públicas para a educação desde o fim do século XX. O projeto de ampliação da jornada escolar difundido pelo Cenpec está materializado no Programa do Governo Federal Mais Educação, que induz a implementação de escolas de tempo integral nas escolas públicas brasileiras desde 2007. Sob a orientação teórico-metodológica de Antônio Gramsci e, destacadamente, a partir do conceito de Estado Ampliado, o trabalho investiga as táticas do Cenpec para transformar o projeto particular das frações que representa em política universal. Entre muitos aspectos que constitui o Programa Mais Educação destaca-se a necessidade de aumento do espaço e do corpo de funcionários da escola sem investimento efetivo na infraestrutura e no quadro profissional das instituições que aderem ao programa. A metodologia utilizada nesta pesquisa é de cunho bibliográfico e documental. As fontes desta análise compreende o material de divulgação do Cenpec e do principal programa do governo Federal de ampliação da jornada escolar, o Programa Mais Educação. A conclusão preliminar desta pesquisa é de que o Cenpec, em conjunto com a entidade Itaú Social, atua como representante do capital financeiro na disputa pela hegemonia da educação no país, em especial na hegemonia da educação em tempo e espaço integral. Palavra chave: Estado Ampliado- Aparelho Privado de Hegemonia, Educação Integral.

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Doutora em História e Professora Adjunta de Ensino de História da UERJ- Faculdade de Educação da Baixada Fluminense. Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da UFRJ. E-mail [email protected]

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Introdução O Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) compõe o bloco social que defini e difundi as políticas públicas dirigidas à expansão da jornada escolar no país que ganharam materialidade no contexto de Reforma Gerencial do Estado brasileiro. A centralidade da investigação no CENPEC se justifica tanto pela sua participação na construção e divulgação de políticas públicas educacionais, ao longo de seus quase trinta anos de existência a partir de assessorias à governos municipais e estaduais, quanto em políticas federais, como o programa federal “Mais Educação”, instituído pela Portaria 17/2007 e regulado pelo Decreto n.º 7.083/2010, que se notabilizou como a maior iniciativa de ampliação da jornada escolar na história do Brasil. Este artigo considera que o programa “Mais Educação” tem se desdobrado em dois movimentos. O primeiro movimento se caracteriza pela intensificação da precariedade do trabalho escolar, através da inserção de estudantes matriculados em cursos de licenciatura para atuarem como agentes educadores nas escolas públicas inscritas no programa. O segundo movimento tem se caracterizado pela privatização por dentro das redes pública de ensino, estaduais e municipais, na medida em que as práticas educacionais estão sendo planejadas através de Parcerias Público/ Privada. A investigação se orienta pelas categorias de análise desenvolvidas por Antônio Gramsci que ajudam a compreender a atuação e o forte protagonismo de grupos empresariais nas políticas educacionais a partir da década de 1990. Os grupos empresariais têm atuado por meio de organizações da sociedade civil e através da inscrição de seus representantes em aparelhos estatais, como o Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação e etc . Neste sentido, compreende-se que a escola e as definições de políticas públicas vêm sendo acirradamente disputada e as Parcerias Público Privada são a síntese desta disputa. A partir deste pressuposto teórico a pesquisa vem desenvolvendo sua coleta de dados considerando não apenas as leis, decretos e documentos oficiais produzidos pelas agências da Sociedade Política, como o Ministério da Educação (MEC) ou pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), materializados no Programa federal “Mais Educação”. Considerando que as políticas educacionais, bem como todas as demais políticas públicas, são produzidas com a participação ativa das entidades da sociedade civil, a investigação tem realizado uma rigorosa análise nos materiais de divulgação do 827

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CENPEC, alguns disponíveis em seu site oficial e outros conseguidos por meio de aquisição, após a visita da pesquisadora à sede da respectiva entidade. O CENPEC se configura como um aparelho privado de hegemonia do capital financeiro, dirigindo, disputando e/ou aliando-se a outras organizações da sociedade civil para inserir seus interesses de classe no interior das agências da sociedade política. Assim, vem sendo introduzido nos mais diversos sistemas municipais de educação um tipo de expansão da escolarização formado por um trabalho intensamente precário, porém travestido de voluntário, responsável por formar um exército industrial de reserva conformado ao trabalho simples e à organização social dos países capitalistas dependentes. Os objetivos desta investigação compreendem a análise das questões relativas à inserção de grupos empresariais organizados no âmbito das políticas públicas de educação básica, como ação crescente e em processo de consolidação desde os anos 1990 com a “reforma” gerencial do Estado brasileiro; a compreensão dos elementos políticos que insurgem com a reestruturação produtiva pós-crise dos anos 1970; a identificação de formas como foram e são expressas as propostas de encaminhamentos políticos dessa nova sociabilidade do capital nas políticas públicas da educação brasileira, principalmente, no tocante à desresponsabilização do Estado na garantia dos direitos sociais e ao envolvimento de vários setores do Estado, do mercado e da sociedade civil atuando em suposta harmonia em prol da oferta e da melhoria da educação pública. Este trabalho analisa a atuação do Cenpec nesta conjuntura identificando: sua composição, incluindo o mapeamento da atuação dos intelectuais orgânicos da entidade no Estado Ampliado; seu projeto de educação, sua atuação nas definições de políticas públicas de educação e suas proposições frente à agenda de “compromisso de todos pela educação”/ “educação para todos” e às condições objetivas das redes de ensino no Brasil. O Centro de Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e o projeto de Educação Integral da Terceira Via O Centro de Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), fundado em 1987, é presidido por Maria Alice Setubal2 e organiza na atualidade um conjunto bastante

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Maria Alice de Setúbal é filha de Olavo Setubal, Presidente do Banco ITAÚ entre 1975 e 2005 e preside o CENPEC desde sua fundação.

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diverso de associados na sociedade civil, incluindo frações da classe dominante, como bancos, indústrias, empresas de telecomunicações e fundações empresariais, e frações da classe “subalterna”, como associações comunitárias e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Entre seus “parceiros”, o Cenpec inclui agências da sociedade política como o Ministério da Cultura, o Ministério da Educação e o Ministério da Justiça, além de uma agência de um Estado estrangeiro: o Ministério da Educação de Cabo Verde. O CENPEC se constitui em uma organização não governamental, tendo no Instituto Itaú Social seu principal parceiro e financiador de seus projetos, programas e assessorias. Ao longo dos seus vinte e nove anos, o CENPEC formulou currículos, produziu materiais pedagógicos dirigidos aos programas de aceleração da aprendizagem em Secretarias estaduais e municipais de Educação e participou da formulação e execução de projetos destinados à formação docente3. Ao longo da década de 1990, o CENPEC obteve êxito na coordenação de projetos que contou com a parceria entre entidades públicas e privadas, caracterizando-se como um dos principais articuladores desse movimento de inserção empresarial nas redes públicas de ensino. Como descreve em sua publicação, “CENPEC: uma história e suas histórias” (2007), a entidade não se propõe a concorrer com outras organizações na promoção de projetos. Seu intuito é negociar e auxiliar outros grupos, garantindo assim a adesão de outras instituições e docentes de universidades públicas e privadas. Desde 2000, o CENPEC atua junto à Fundação Itaú Social4 na formulação, disseminação e implementação das políticas públicas educacionais, fazendo valer os projetos, da fração do capital financeiro reunido no Itaú- Unibanco, dirigidos à educação brasileira.5 O CENPEC, criado treze anos antes da organização da Fundação Itaú- Social, opera como Coordenador Técnico dos programas implementados pela Fundação que os financia. A organização do CENPEC ocorreu três anos antes da realização da Conferência Mundial Educação Para Todos e a Conferência Mundial Cidade Educadora, realizadas em 1990. Segundo Arguelles (2014), este contexto foi fundamental para o fortalecimento da entidade. O Brasil, assim como os demais

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Segundo informações contidas em seu sitio oficial, a Fundação Itaú Social foi criada em 2000 com o objetivo de formular, implementar e disseminar metodologias voltadas para melhorias de políticas públicas educacionais e para avaliar projetos sociais. 5 A fusão das duas maiores instituições financeiras do país se deu em novembro de 2008.

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participantes, tornou-se signatário de compromissos que estabeleceram um modelo novo de expansão da Educação Básica com forte influência no projeto de “Educação Integral”. A ideia de democracia participativa direta, expressa na reforma gerencial do estado, significa a implementação de novas formas de representação social, pautadas na concepção de que os cidadãos devem estar dispostos a pressionar e contribuir para as transformações necessárias. Segundo Macedo e Lamosa (2015), esta concepção leva aos ajustes exigidos pela nova “sociedade do conhecimento”. De acordo com os autores, nos limites desta sociedade, a ideia de democracia representa não apenas a participação individual de cada cidadão, mas, sobretudo, das Organizações Não Governamentais (ONGs) e dos empresários. (MACEDO, LAMOSA, 2015, p.135) Neste contexto, a ideia de responsabilização social se tornou sinônimo de democracia participativa e a concepção de Educação Integral defendida pelo Cenpec configurou-se no projeto hegemônico de ampliação da jornada escolar no Brasil. A contrarreforma do Estado, orientada por organismo internacionais, conduzida no Brasil por agentes da sociedade civil e política impactou significativamente diversos aspectos da educação escolar e conseguiu frear as propostas alternativas de Educação Integral, consagrando a ideia de que o modelo pautado nas parcerias público-privada é o único modelo capaz de atender ao estudante da sociedade contemporânea marcada, sobretudo, pelas desigualdades sociais. No Brasil, desde a década de 1980, a disputa em relação ao conceito de Educação “Integral” atravessou efetivamente as Secretarias de Educação e o próprio Ministério da Educação (MEC). No processo de transição para a democracia, a oposição venceu os representantes do governo federal em alguns municípios e na grande maioria dos estados da federação, favorecendo a reunião de educadores de todo o país entorno de uma agenda de debates que atravessou toda a elaboração da carta constitucional de 1988. Nesta conjuntara, destacaram-se, os embates em relação à Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996 e o Plano Nacional de Educação (PNE), organizado pelo Fórum em Defesa da Escola Pública. Inúmeras Secretarias de Educação passaram a desenvolver mudanças pedagógicas no sentido de romper com os modelos impostos no período anterior, destacando propostas de ampliação do tempo escolar e a construção de escolas em tempo integral. Neste primeiro momento, o CENPEC concentrou suas atuações no estado de São Paulo. Na contra mão das propostas formuladas pelos movimentos que reuniram os educadores, desde 830

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o fim da década de 1980, todos os governos do estado de São Paulo executaram políticas de incentivo às “parcerias empresas-escola”. (LAMOSA, 2014) Na década de 2000, o Cenpec se dedicou aos estudos, divulgação e formulação de projetos destinados à ampliação do tempo e das oportunidades de aprendizagem com uma inserção que começou a transpor as barreiras do estado de São Paulo. Em 2005, o Cenpec lançou o primeiro número do “Caderno Cenpec” apresentado nas duas primeiras edições, sua proposta para a ampliação da jornada escolar. A publicação, editada no mesmo contexto do “Movimento das Cidades Educadoras”, lançado na Itália no ano anterior, destaca o conceito “Cidade Educadora”, defendendo um projeto de Educação Integral “além da rede escolar, tendo em vista a proteção social, artes, esportes e cidadania” (CENPEC, 2005). Nesse sentido, a entidade defendeu a necessidade de que as políticas educativas se articulassem a toda a cidade, sendo ampliada através de “convênios” e “parcerias” com a “Sociedade Civil” (Ibdem). Entre os projetos que o CENPEC divulga em sua página, aqueles que mais se destacaram em razão das premiações recebidas, inclusive pela Unicef, foram os “Programa Bairro Escola” e “Escola Integrada”, desenvolvidos, respectivamente, na cidade de Nova Iguaçu (RJ), entre os anos 2005-2012, e em Belo Horizonte (MG), desde 2002. Ambos os programas foram desenvolvidos em mandatos de prefeitos oriundos do PT. Em Nova Iguaçu, o prefeito era Lindbergh Farias, enquanto que na capital mineira, o prefeito era Fernando Pimental, ex-ministro no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Segundo Cavaliere (2009), tais políticas substituíram as propostas de Escolas de tempo Integral, notabilizadas em políticas públicas educacionais como aquela que instituiu no estado do Rio de Janeiro o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP), pelo projeto de “aluno em tempo integral”, que divide seu dia entre a escola e outros “espaços educadores” que podem ser praças, ginásios públicos, igrejas, através de projetos e programas em parceria com a “sociedade civil” (Ibidem). Estas iniciativas antecederam o lançamento, em 2010, do programa “Mais Educação”, principal política federal direcionada a ampliação do tempo escolar na atualidade no país, tendo sido, ambas, realizadas em parceria entre o Cenpec e governos do mesmo partido. Isto reforça a hipótese inicial de que o êxito da entidade no projeto de influenciar as políticas públicas educacionais pode ter atingido proporções nacionais. O programa Mais Educação foi lançado nos dois primeiros anos do segundo mandato do governa Luís Inácio Lula da Silva (2002/ 2006, 831

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2007/2010) sob a justificativa de fomentar à Educação Integral de Crianças, Jovens e Adolescentes. Em 2007, o governo de Lula lançou mão do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (BRASIL, 2007). O documento composto por 28 diretrizes destacou a necessidade de melhoria da educação básica, apontado com estratégia a articulação entre os entes federados (União, Distrito Federal, Estados e Municípios) e sua atuação em regime de colaboração com as famílias e a comunidade para o cumprimento das metas propostas. O programa Mais Educação foi lançado no mesmo ano, mas a proposta de Educação Integral já era prevista no artigo 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9394/96 com a possibilidade de progressiva ampliação do tempo de permanência dos alunos na escola e no Plano Nacional de Educação (PNE) 2001/2010, reafirmada na Lei n. 13.005/2014, que aprova o novo Plano Nacional de Educação 2014/2024. Segundo Pio e Czernisz (2015, p.246) no governo Lula e no Governo Dilma Rousseff (2011-2016), a educação é entendida como fundamental no combate à exclusão e a desigualdade e na redução da pobreza, tripé que está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento econômico do país, e sua inserção na economia internacional, pressuposto presente no Governo FHC e perpetuado ainda hoje. O Ministério da Educação (MEC) e a Secretaria de Educação Básica (SEB) e a Diretoria de Currículos e Educação Integral (DCEI) lançaram em 2013, o “Manual Operacional de Educação Integral” (2013). O manual define os critérios de adesão e funcionamento do programa, dentre os quais se descama as escolas que possuam o IDEB abaixo ou igual a 3,5 nos anos iniciais e/ou finais, IDEB anos iniciais < 4.6 e IDEB anos finais < 3.9. [...] Escolas com índices igual ou superior a 50% de estudantes participantes do Programa Bolsa Família” (BRASIL, 2013, p. 21). Em relação a execução do trabalho o documento orienta o trabalho monitório realizado por estudantes universitários de formação específica nas áreas de desenvolvimento das atividades ou pessoas da comunidade com habilidades apropriadas (BRASIL, 2013, p. 23). Pio e Czernisz (2015) destacam recentes trabalhos que apontam os aspectos negativos deste modelo de “Educação Integral” que orienta diversos projetos de ampliação da jornada escolar no Brasil. Dentre as análises críticas ao Programa Mais Educação, as autoras ressaltam o trabalho de Silva (2013) que investiga a implementação do programa no Município de Maricá, no Estado do Rio de Janeiro e evidencia como a falta de espaço físico e de recursos para o desenvolvimento das atividades, falta de profissionais formados e capacitados 832

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para atuarem, ausência de discussões conceituais sobre a proposta de “Educação Integral”, falta de uma organização curricular que contemple a ampliação de atividades a serem desenvolvidas de acordo com a especificidade da educação escolar. (SILVA, 2013, p 239. Apud PIO e CZERNISZ, 2015, p 250) O CENPEC informa em sua página oficial que uma de suas atividades atuais é elaborar o Guia Políticas de Educação Integral: orientações para implementação no município, guia com praticas fundamentais para a implantação de planos em municípios e estados. Como esclarece o CENPEC, o guia foi “elaborado a partir da sistematização e do estudo que o CENPEC e a Fundação Itaú Social, em parceria com o Unicef. O guia propõe nove práticas para o sucesso do programa como: Diretrizes da Educação Integral; Plano de Educação Integral;

Gestão

Democrática; Proposta

Curricular; Parcerias;

Espaços

e

Infraestrutura; Acompanhamento e Avaliação; Desenvolvimento Profissional e Comunicação.6 Não cabe no escopo deste trabalho a análise do Guia de Políticas de Educação Integral, sua menção se justifica por ressaltar o papel do Cenpec na organização e difusão deste modelo de Educação Integral, encampado pelo governo federal e por diversos estados e municípios brasileiros. O site da entidade deixa claro que o CENPEC não restringe sua atuação à defesa da Educação Integral, mas nele se observa que esta política, que fundamenta a entrada do empresariado na escola pública é um de seus carros chefes na atualidade. A reconfiguração da solidariedade social e o trabalho voluntário no Programa Mais Educação A década de 1990 foi marcada por um período de reforma do Estado, no Brasil e no mundo, que está diretamente relacionada a reestruturação do capital. Para retomar os níveis de rentabilidades das empresas transnacionais e do capital financeiro, afetados pela crise do petróleo na década de 1970, as frações do capital, tanto dos países do centro do capitalismo quanto das economias dependentes, articularam uma saída para a crise. Neste contexto, a ofensiva do capital contra os trabalhadores promoveu uma série de estratégias que compreendeu a redefiniçao do papel do Estado, o ataque aos direitos conquistados pela classe trabalhadora ao longo do século XX e o desmonte do Estado de bens Estar Social. Em meados da década de 1990, verificou-se que o novo padrão de acumulação do capital e o novo padrão tecnológico de 6

Disponível em: http://guia.educacaoeparticipacao.org.br/

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produção resultaram no aumento da pobreza, do desemprego, e do subemprego e dos movimentos antiglobalização. O Programa politico da Terceira Via foi apresentado por seus interlocutores em diversos países como uma resposta aos efeitos negativos provocados pelo neoliberalismo ortodoxo. Como destacam Faleiro, Pronk e Cavalcanti (2010, p.p70, 71) a estratégia da Terceira Via é a de suprimir o potencial de conflito dos primeiros regimes de direita radical, eliminando à oposição ainda existente a à hegemonia neoliberal. Desempenhando um novo ponto de apoio do regime neoliberal. As autoras interpretam que a despeito de ambas concordarem que o culapado da crise é o Estado, defendem distintas estratégias para a superação da crise. Nos dois casos, destacam as autoras, o Estado deixa de ser responsável direto pela execução das políticas sociais, mas, diferentemente do neoliberalismo que defende a privatização e passa tal responsabilidade para o mercado, a Terceira Via repassa a responsabilidade para as organizações sociais, criando o conceito de público não estatal, na passagem para uma sociedade de bem estar social. Neste sentindo, a análise conclui que estas estratégias levaram uma nova sociabilidade dos movimentos sociais de direita e de esquerda. Esta nova sociabilidade dos movimentos sociais de esquerda e de direita também se orientaram pelas diretrizes definidas no vários encontros entre setores políticos e econômicos, realizados entre 1990 e 2000, para definir e difundir estratégias de contenção de conflitos e manutenção do equilíbrio internacional. Nesta conjuntura, a pobreza foi considerada um obstáculo para legitimação do processo de acumulação capitalista e ganhou centralidade nas ações dos organismos internacionais e das frações do capital dos países do centro e da periferia do capitalismo. Vânia Motta (2009) lembra que do Encontro da Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social (Copenhague,1995) ao encontro da Cúpula do Milênio da Organização das Nações Unidas (Nova York, 2000) foram definidas um conjunto de políticas, denominado Políticas de Desenvolvimento do Milênio (PDMs), que definiram que as reformas econômicas deveriam definir também ajustes nas dimensões culturais e sociais. Neste contexto, se tornou hegemônica a concepção de que a sociedade civil deveria, de forma solidária e civicamente consciente estimular a participação dos pobres e capacitá-los ao ingresso no mercado, tornando-os produtivos. (MOTTA, 2009,p. 558) Vânia Motta chama atenção para o encontro entre a Terceira Via, proposta por Antônio Giddens, com a ideia de renovação da cultura cívica, apontadas nos PDMs: 834

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Numa sociedade em que a tradição e o costume estão perdendo seu domínio, a única rota para o estabelecimento da autoridade é a via da democracia. O novo individualismo não corrói inevitavelmente a autoridade, mas exige que dela seja remodelada de forma ativa ou participatória. (GIDDENS, 2005,p76, Apud, MOTTA, 2009,p 76)

As ideias de renovação da cultura cívica, de estimulo a cultura solidária e da pobreza como fonte potencial de desenvolvimento foi ao encontro dos interesses das frações dominantes (MOTTA, 2009) neste processo de recomposição do capital na virada do milênio. Este conjunto de ideias está dentro o projeto disseminado pelas frações dominantes que buscam a construção de uma subjetividade coletiva pautada na premissa de que a nova fase do capitalismo exige a cooperação de todos e de uma nova relação com o mundo do trabalho que compense as perdas de direitos trabalhistas, conquistados ao longo do século XX. No Brasil, o estimulo a participação da sociedade na transformação da escola pública é uma das facetas deste projeto. O Programa “Mais Educação” que induz a implementação de projetos de ampliação da jornada escolar através da parceria entre escolas públicas e organizações sociais da sociedade civil, é portador desta concepção. Voltados para o atendimento de crianças e jovens em situação de “vulnerabilidade”, o Programa se estrutura sobre o trabalho voluntário de jovens universitários e agentes da comunidade com habilidades culturais. O manual de orientação para implementação do PME produzido pelo MEC, em 2013, trata destes profissionais de educação, educadores populares, estudantes e agentes culturais. A Educação Integral abre espaço para o trabalho dos profissionais da educação, dos educadores populares, estudantes e agentes culturais (monitores, estudantes universitários com formação específica nos macro campos), observando-se a Lei nº 9.608/1998, que dispõe sobre o serviço voluntário. Trata-se de uma dinâmica instituidora de relações de solidariedade e confiança para construir redes de aprendizagem, capazes de influenciar favoravelmente o desenvolvimento dos estudantes. Nessa nova dinâmica, reafirma-se a importância e o lugar dos professores e gestores das escolas públicas, o papel da escola, sobretudo porque se quer superar a frágil relação que hoje se estabelece entre a escola e a comunidade, expressa inclusive na conceituação de turno x contra turno, currículo x ação complementar. (BRASIL, 2013)

Mais adiante o manual define quem pode atuar no programa: As atividades poderão ser acompanhadas por estudantes universitários, em processo de formação específica nos macrocampos e com habilidades reconhecidas pela comunidade, estes por estudantes do ensino médio e estudantes do EJA. Experiências em curso, como a de Belo Horizonte, instituíram a figura do professor comunitário. Esse professor, com a 835

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constituição de coletivos escolares, coordena o processo de articulação com a comunidade, seus agentes e seus saberes, ao mesmo tempo em que ajuda na articulação entre os novos saberes, os novos espaços, as políticas públicas e o currículo escolar. A secretaria designará, dentre os docentes nela lotados, um professor com preferencialmente 40 horas semanais para exercer a função de professor comunitário, e esse coordenará a oferta e a execução das atividades de Educação Integral. ´É desejável que o debate acerca da educação integral mobilize toda a escola, mesmo os professores que não têm conhecimento direto com o Programa Mais Educação. Trata-se de refletir acerca desta responsabilidade compartilhada com a família e com a sociedade que é a educação das novas gerações: qual é o horizonte formativo que a escola passa a vislumbrar com a presença dos estudantes? (Idem, 2013)

Apesar de destacar a centralidade da escola e a importância da participação dos professores nas atividades, nota-se neste manual que o movedor do PME é o serviço voluntário. Na contemporaneidade o trabalho voluntário se caracteriza pela baixa remuneração e pela relação de solidariedade e confiança [grifo nosso]. Como consta no trecho supra, a escolha destes estudantes universitários não está relacionada apenas a formação ligada à carreira universitária, outras “habilidades” também podem ser desenvolvidas por este monitor que não precisa comprovar nenhuma qualificação para tal fim. A ênfase na solidariedade como característica do trabalhador voluntários também está presente no documento ”Caminhos para elaborar uma proposta de Educação Integral em jornada ampliada”. Com o título sugestivo “voluntários doam e recebem” o manual estimula a caridade deste trabalhador que ainda não conseguiu a inserir-se mercado de trabalho: O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista e previdenciária – mas promove outros vínculos, de natureza pessoal e social, beneficiando não só quem recebe o serviço, mas quem o oferece. (MOLL, 2011,45 )

Este manual abranda a precariedade do trabalho e do vínculo do voluntário com a instituição escolar, ressaltando vínculos de natureza pessoal e social supostamente, superiores que os direitos trabalhistas. A primeira forma de expropriação atual da classe trabalhadora, segundo Virginia Fontes (2005,p.98) parece ser a que incide sobre o vinculo contratual como condição do sobretrabalho. Como esclarece Fontes, produz-se uma massa de trabalhadores disponíveis, utilizáveis a qualquer momento, cuja concorrência entre si torna-se incessante, em virtude de se encontrarem sob a hegemonia do capital, ainda que estejam fora dos vínculos empregatícios diretos.

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É neste sentido que se compreende a conformação do trabalhador voluntário no voluntário no Brasil. O trabalho voluntário, regulamentado pela lei 9608 de 18 de fevereiro de 1998, abarca ações destinadas às empresas públicas ou privadas sem fins lucrativas, voltadas para os chamados objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade. Com ajuda de custo precária, sem garantias trabalhistas e sem promessa de vínculo empregatício com o contratante, os recrutadores desta mão de obra, precisam convencer aos universitários/candidatos que o trabalho voluntário é um ato de solidariedade e caridade dedicado às populações vulneráveis, assim como uma experiência curricular relevante para a conquista de trabalhos futuros. Considerações finais Como base no que foi exposto, conclui-se que o modelo de Educação Integral que orienta a maioria dos projetos de ampliação da jornada escolar, sobretudo a partir da década de 1990, não se sobrepôs às demais concepções apenas por demonstrar ser mais eficiente, por compor ações de combate a desigualdade social, por garantir qualidade do ensino ou por assegura a permanência do estudante na escola. O paradigma de Educação Integral defendido pelo Cenpec, pautado na concepção de que as políticas educativas se devem ser estruturadas em “convênios” e “parcerias” com a “Sociedade Civil, veio ao encontro do projeto de Reforma da administração pública iniciado durante o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Nesta conjuntura, marcada pela luta pela redemocratização no país e pela reestruturação do capital, o CENPEC foi vitorioso ao imprimir o projeto educacional formulado pelas frações do capital que representa conseguindo ampliar seu raio de ação de São Paulo para o Brasil e transformando referência na organização de difusão do projeto de Educação Integral. Referência Bibliográfica FONTES, V. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2010. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991 ___________.Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999. GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 5ª ed., RJ, Civilização Brasileira, 1984.

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XXI.

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OS MESTRADOS PROFISSIONAIS EM EDUCAÇÃO UMA NOVA ARENA EM EXPANSÃO

Luciane da Silva Nascimento1 RESUMO A política sinalizada para a pós-graduação brasileira no atual Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020) revela a necessidade de ajustamento dos cursos stricto sensu à formação de recursos humanos para as empresas, da internacionalização desses cursos com vistas à cooperação internacional e define um perfil para os cursos voltado à formação para mercados não acadêmicos. A CAPES sinaliza que a função primordial dos mestrados profissionais é: “contribuir com o setor produtivo nacional no sentido de agregar um nível maior de competitividade e produtividade a empresas e organizações, sejam elas públicas ou privadas”. A redefinição das políticas de ensino superior notadamente está inserida nesse projeto em que a educação para formação de capital humano acontecerá com o fortalecimento de um ensino terciário, incluindo, a pós-graduação. Não se pode ignorar o fato de que as formulações dos organismos internacionais associadas às demandas das frações burguesas que ocupam maior proeminência no bloco de poder do Estado brasileiro configuram as matrizes conceituais e operacionais dos projetos educacionais em curso. A flexibilização da pós-graduação na área de educação foi reafirmada no atual PNPG. Apesar, de situar que essa discussão ultrapasse as fronteiras da pós em educação, o Plano busca redimensionar as problemáticas no campo da educação, afirmando a necessidade da produção de estudos com resultados mais visíveis, atrelando-os sempre a dinâmica de ajuste da educação aos macros planejamentos. Portanto, dada a natureza recente desses cursos, torna-se focal compreender a dinâmica que os envolve e a política que direciona a expansão dos mesmos. Para analisar a complexa configuração do Estado na atualidade, na busca de entender a sociedade civil como instância que altamente organizada e composta por aparelhos privados de hegemonia tem os instrumentais para disputar as

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Doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro Professora Substituta do Departamento de Administração da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected]

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concepções e os direcionamentos políticos nas políticas educacionais, Gramsci constitui-se em uma das categorias teórico-metodológica centrais desta pesquisa em andamento. Palavras-Chave: Estado Ampliado – Aparelhos Privados de Hegemonia – Política Pública - PósGraduação - CAPES As transformações operadas no ensino superior brasileiro estão inseridas em um processo amplo de inserção do país na nova divisão internacional do trabalho. As políticas públicas destinadas ao setor se enquadram no contexto das reformas do aparelho de Estado e, particularmente, da educação. Compreender as transformações operadas no ensino superior brasileiro - tanto no setor público, como no setor privado - segue sendo um enorme desafio para o campo de estudo das políticas públicas em educação. Internacionalmente, a “Declaração de Bolonha” trouxe ajustes estruturais nas formas de organização do ensino superior europeu com o objetivo de estruturar um mercado europeu de educação superior2. Para tanto, uma nova forma de organização da educação superior foi sendo difundida, objetivando a necessária padronização para que a mobilidade estudantil pudesse ser efetiva, assim como a equivalência de títulos. O formato, ciclo básico de 2 a 4 anos, mestrado de um ano e doutorado passou a ser adotado por diversos países adeptos do processo de Bolonha. No caso brasileiro, a introdução dos mestrados profissionais no campo da educação precisa ser explorada e epistemologicamente analisada como uma política nova, redimensionando o lugar do conhecimento científico do campo educacional. Entender as formas assumidas pelo novo modelo de formação docente proposto nos mestrados profissionais tornase focal para o aprofundamento das discussões no campo da educação. As mudanças estruturais em curso no ensino superior, com ênfase nos mestrados profissionais em educação, revelam a necessidade de análise do projeto educacional proposto para essa modalidade como uma produção histórica das relações sociais, cuja centralidade seja a compreensão da dinâmica subjacente a esse modelo formativo em expansão. Essas transformações estão relacionadas às temáticas sobre os processos de estratificação, dominação e segregação, desta forma, a compreensão teórico-metodológica dos processos econômicos, políticos e sócio históricos que 2

Segundo Sobrinho (2007, p. 112): No fundo, a “Declaração de Bolonha” é o registro formal de um importante processo que visa criar uma sólida convergência na educação superior europeia, a fim de que esta responda adequada e eficientemente aos problemas, oportunidades e desafios gestados pela globalização da economia.

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engendram a formulação e a implementação destas políticas onde o eixo analítico focará a importância de uma dimensão ético-política no tratamento da relação entre trabalho e educação, ao mesmo tempo que buscará pôr em evidencia a indissociabilidade das dimensões científico tecnológica e político-ideológica no estudo das determinações da natureza e da direção das políticas de formação para o trabalho sob o capitalismo (Leher, 2002 apud Neves e Pronko, 2008) . A política sinalizada para a pós-graduação brasileira no atual Plano Nacional de PósGraduação (2011-2020) revela a necessidade de ajustamento dos cursos stricto sensu a formação de recursos humanos para as empresas, da internacionalização desses cursos com vistas à cooperação internacional e define um perfil para os cursos voltado à formação para mercados não acadêmicos. A CAPES sinaliza em seu sítio que a função primordial dos mestrados profissionais é: “contribuir com o setor produtivo nacional no sentido de agregar um nível maior de competitividade e produtividade a empresas e organizações, sejam elas públicas ou privadas”. Esse estreitamento entre a esfera pública e a privada traduz uma etapa singular que vivemos no campo educacional brasileiro. E a redefinição das políticas de ensino superior notadamente está inserida nesse projeto societário em que a educação para formação de capital humano acontecerá com o fortalecimento de um ensino terciário, incluindo, a pós-graduação. Não se pode ignorar o fato de que as formulações dos organismos internacionais associadas às demandas das frações burguesas que ocupam maior proeminência no bloco de poder do Estado brasileiro configuram as matrizes conceituais e operacionais dos projetos educacionais em curso. Dentro desse projeto educacional proposto para a pós-graduação em educação é necessário indagar sobre o lugar da formação científica nos conhecimentos valorizados pela nova forma de pós-graduação: Dificilmente a educação teria se afirmado como área acadêmica sem a consolidação do mestrado que, em seus primeiros anos, possibilitou rápido avanço na produção rigorosa de conhecimento na área. Não casualmente, as primeiras turmas de doutorado formaram as lideranças acadêmicas que lograram consolidar a área da educação como área acadêmica e não técnico-instrumental. (LEHER, 2011, p.3).

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Desta forma, ao sinalizar a necessidade de expansão dos mestrados profissionais, podemos questionar a possibilidade de coexistência desses dois tipos de formação (acadêmica e profissional), visto que o atual Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020) deixa explícito que os mestrados e doutorados acadêmicos vivem como atividades intramuros, endogênicos3. Questiona-se, portanto, de que a expansão dos mestrados profissionais (MP) pode engendrar uma substituição progressiva dos mestrados acadêmicos (MA), redefinindo o lugar da área da educação como campo voltado para o conhecimento comprometido com as metas e compromissos estabelecidos no PDE e, mais amplamente, no PNE, em detrimento da pesquisa de outras problemáticas científicas de maior escopo teórico, epistemológico e histórico-crítico. Os rumos recentes do ensino superior têm revelado, no setor privado, amplamente majoritário em termos de matriculas e número de organizações, uma ampla mercantilização/ financeirização dessa área, processo resultante de uma reforma estrutural mais ampla do aparelho de Estado Brasileiro, iniciada no Plano Diretor de Reforma do Estado (governo FHC), a partir de 1995, e aprofundada nos anos subsequentes. Segundo Sader; Leher (2004), no período do governo Lula passou-se a defender as “reformas” que aprofundam a referida reforma do Estado. Segundo os autores, os valores de competências e competitividade, próprios da lógica privada, chegaram à educação superior. O ministério da Fazenda sustenta, em documento, que setor público não teria como custear e ampliar a oferta no ensino superior público e gratuito e que, por isso, melhor seria apoiar as instituições privadas, supostamente mais eficientes. (Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002/ Ministério da Fazenda, apud Sader; Leher, 2004). Nesse contexto, as parcerias com a esfera privada aparecem como necessárias para a expansão do sistema. O Programa Universidade para Todos vem contabilizar vagas privadas como vagas públicas, pois, de acordo com o MEC, atendem ao interesse público. Para Sader; Leher (2004), o “Pacto da Educação para o Desenvolvimento Inclusivo”, ao prever um edital para encomenda de vagas “públicas” nas instituições privadas, foi um passo imensurável para o 3

Segundo o atual PNPG, os mestrados estavam superdimensionados e demoravam muito para formar os mestres, para tanto foi necessário que a CAPES reduzisse em 27,5% o tempo de duração desses cursos nas Ciências Humanas. Segundo avaliação desse documento: “o mestrado acadêmico precisa desaparecer como etapa de formação pós-graduada com existência própria” (2010, p. 22). Desta forma, a solução proposta seria a aproximação com o modelo de Bolonha, onde o mestrado corresponderia aos anos finais de uma graduação de 5 anos. Ou então, seria parte integrante do doutoramento, onde viria como um título dado em determinado momento do doutorado. As análises e críticas apontam para a necessidade de mudanças nas avaliações da CAPES com vistas ao incentivo de experimentação de modelos inovadores que seriam bloqueados no formato vigente, ou seja, intramuros, endogênicos. Para tanto, aponta-se a necessidade de desenvolvimento de pesquisas fora da pós-graduação, podendo ser ampliado, inclusive, para além dos institutos independentes, centros e núcleos das universidades.

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apagamento da fronteira entre o público e o privado. A justificativa do modelo de qualidade do setor privado será estendida nas parcerias público-privadas (PPP’s). Será nesse bojo, que a ênfase nos mestrados profissionais coincidirá com uma perspectiva de alinhamento da formação superior às necessidades do mercado nacional e internacional. Segundo Leher (2011), a Portaria Normativa/MEC nº 17, de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre o mestrado profissional no âmbito da CAPES, não parece ter sido originalmente pensada como modalidade prioritária para a pós-graduação em educação, visto que sua conceituação seguia os parâmetros gerais da Lei de Inovação Tecnológica. Contudo, seguindo o prisma de uma pós-graduação utilitarista, as orientações rapidamente se aproximam do campo da educação, inicialmente na área de ensino das ciências duras e biológicas: Entretanto, seu foco foi alterado, como pode ser evidenciado no PL 80/35 e, também, por editais do MEC que viabilizaram o “Programa de Mestrado Profissional em Matemática em Rede Nacional (Profmat) e o Curso de Mestrado Profissional para professores de Biologia desenvolvido pelo INMETRO, cursos fortemente operacionalizados por EAD (através do consórcio da UAB). (LEHER, 2011, p.1).

Na concepção do autor, o rumo posterior de fato sinalizou o interesse pelos mestrados profissionais no âmbito da educação. A concessão de bolsas de formação para os professores da rede pública matriculados em mestrados profissionais foram indutores para enfatizar os cursos na área de educação, principalmente para as áreas de “ensino de” nas chamadas ciências duras, tais como: matemática, física, biologia, entre outros cursos que: “quase sempre ofertados fora da área de educação, por institutos específicos” (LEHER, 2011, p.2). Segundo o autor, o alcance dos mestrados profissionais na área de educação somente será apresentado no PL 8035/2010, que dispõe sobre o recém-aprovado Plano Nacional de Educação (Lei 13.005, de 25 de junho de 2014). As metas 14, 15 e 16 do Plano sinalizavam o interesse na expansão da pós-graduação por meio de parcerias público-privadas (em consonância com as perspectivas do PNPG (2011-2020), incluindo o FIES como fonte de financiamento, inclusive para o mestrado profissional; fortalecimento do ensino à distância; ampliação da formação para todos os docentes da educação básica em nível superior; e garantia de que 50% dos professores da educação básica concluam a pós-graduação lato ou stricto sensu. Para Leher (2011, p.2): “Entre as estratégias para alcançar esse objetivo, o PL defende “consolidar sistema nacional de formação de professores”, mas aqui não há diretrizes e ações que estabeleçam as bases para cumprir tal meta”. 843

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A flexibilização da pós-graduação na área de educação confluirá na defesa por uma formação profissional voltada às demandas das secretarias de educação e intencionalmente de suas escolas (LEHER, 2011). Essa concepção foi reafirmada no atual PNPG quando se faz apontamentos atrelando a qualidade na educação básica como dependente da melhoria nos cursos de pós-graduação. Apesar, de situar que essa discussão ultrapasse as fronteiras da pós em educação, o Plano busca redimensionar as problemáticas no campo da educação, afirmando a necessidade da produção de estudos com resultados mais visíveis, atrelando-os sempre a dinâmica de ajuste da educação aos macros planejamentos. Sem, todavia, questionar a natureza das desigualdades sociais que estão na base das desigualdades educacionais, sendo analisadas como um “erro de rota”. Portanto, dada a natureza recente desses cursos, torna-se focal compreender a dinâmica que os envolvem no plano legal, no que tange a formação docente e na esfera operacional. Fontes (2012) relata que estamos diante de uma profunda transformação no capitalismo sob o domínio do capital-monetário ou da forma mais concentrada do capital. A autora expõe que massas incontroláveis de capital fictício, estreitamente coligadas com as outras formas de capitais, corroboram para intensa destruição social, ambiental e humana ao buscarem e inventarem formas de converter a atividade humana em trabalho, em forma de extração de maisvalor. Para Fontes (2012, p.303): “Não é possível nem desejável reduzir o conjunto da existência social contemporânea a essa dupla perversa e dinâmica da concentração/expropriação”. Porém, em seu entender, se essa dupla não permite a compreensão de todos os aspectos da nossa vida atual. Todavia, sem entendê-la será impossível analisar as forças axiais que regem a nossa existência. Ficaremos, então, à mercê das sucessivas ondas de crises e escasso alívio sem que consigamos alcançar seu sentido e significado. A discussão acerca da materialidade do sistema educacional brasileiro e de suas recentes transformações não pode estar descolada desse entendimento mais amplo do processo de transformação do padrão de acumulação capitalista. O Brasil viveu nos últimos 50 anos transformações que caracterizaram a sua entrada no circuito do capital-imperialista. Segundo a autora, os setores onde há maior concentração de capital, atualmente, encontram-se estruturados a partir dos grupos financeiros, que se expandem por meio do discurso da importância do conhecimento para melhor qualificação dos processos industriais e empresariais como forma de equalização das desigualdades sociais. 844

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Tal processo parece se estender no atual PNPG, visto que este busca vincular os programas de pós-graduação à formação para recursos humanos, cuja flexibilização de tais cursos será focal para atender as novas demandas da sociedade do conhecimento, sem, entretanto, clarificar que tais “necessidades”, estão atreladas ao processo ampliado de reprodução do capital. O discurso oficial relaciona a formação stricto sensu às exigências da “sociedade do conhecimento” vinculadas a uma educação que assume centralidade no estímulo ao aprendizado permanente e ao desenvolvimento de uma cultura científico-tecnológica para todos, que assegura aos cidadãos a prosperidade, segurança, qualidade de vida e participação social (Neves e Pronko, 2008), entretanto, não se questionam as bases das desigualdades sociais. Neves e Pronko (2008) analisam os caminhos das políticas de ciência, tecnologia e inovação recentes e depreendem que a reforma do ensino superior aparece como uma das diretrizes estratégicas desta política de CT&I: “A reforma da educação superior proposta responde a três demandas da nova política de CT&I: diversificação do sistema, redefinição da relação entre ensino e pesquisa e adoção de diversas modalidades de formação de “recursos humanos”, incluindo as de curta duração” (Neves e Pronko, 2008, p. 182). Segundo as autoras, a consolidação e o aprofundamento dessa política ocorreu durante os governos FHC e foi sendo efetivada ao longo do governo Lula. As autoras destacam que, nesse cenário, o Estado terá papel decisivo na delimitação da educação terciária, definindo os papéis que os diferentes tipos de instituições desempenharão dentro do sistema e determinando em que condições essas instituições poderão aproveitar melhor as novas tecnologias, corroborando para a criação do sistema de avaliação do ensino superior sob a supervisão do Estado gerencial que legitimou como públicas as empresas educacionais. Nesse bojo será forjada a política de CT&I destacada anteriormente. Na análise das autoras, será dada centralidade a um sistema que materializa: “a subsunção do aparato científico e tecnológico aos imperativos de aumento exponencial da produtividade capitalista sob a finança mundializada.” (idem, 2008, p. 167). Daí a transformação de um Estado financiador e executor para planejador e coordenador de um sistema público não-estatal no ensino superior. As autoras destacam que esse cenário não se modificará substancialmente no governo Lula e analisam as políticas destinadas as ciências sociais e humanas na política nacional de CT&I. Mediante aos grandes problemas da sociedade contemporânea, a solução apontada constituiria o objeto de estudo e de atuação das ciências sociais e humanas redefinidas nesse novo contexto: “a 845

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construção de uma nova forma de sociabilidade e de governo (no sentido de governança), especialmente nas cidades. Trata-se da formulação de projetos estratégicos que articulem empreendedorismo e projetos sociais”. (idem, 2008, p.178). Desta forma, será tarefa das ciências sociais e humanas desenvolver e avaliar estratégias de inclusão social que permitirá aos mais pobres usufruir dos benefícios econômicos, políticos, sociais e culturais produzidos (PRONKO e NEVES 2008). A política para a pós-graduação sricto senso no campo da educação, em especial para o mestrado, deve ser analisada considerando esse cenário, onde segundo Leher (2011) os cursos de mestrados acadêmicos tem sofrido um processo de desmoralização, cujas críticas o situam como elitista e conservador. Segundo o autor, a justificativa para um caráter democrático do novo mestrado está pautada em pressupostos como: “os docentes da rede pública não estão nos programas de pós-graduação”, que, além de elitistas e hostis às escolas públicas, “são muito teóricos”, “avessos à prática”, “não abordam temas relevantes para a solução dos problemas da educação básica pública” e, ainda pior, são dirigidos àqueles que, após o término do mestrado e, principalmente, do doutorado, fugirão da escola pública (LEHER, 2011, p.4).

O incentivo a ampliação dos MP no campo da educação é preocupante, na medida em que a crítica aos MA revela uma possibilidade de substituição dessa modalidade cuja produção do conhecimento científico é um fator estruturante, firmando um modelo cujo molde aponta para uma instrumentalidade que, também, incide nos perigos das políticas particularistas, bem expostas por Leher: “Desse modo, a proposição de que o mestrado profissional deve atender a demandas das escolas – de modo temerário – por meio de parcerias com a secretarias de educação, tem de ser vigorosamente problematizada” (idem, 2011, p.6). Outra questão axial no entender do autor é: “caberia explorar a possibilidade de que uma formação teórica poderia propiciar melhor interação entre a pós-graduação e a formação na educação básica e superior.” (idem, 2011, p.6), negando assim uma formação restrita. Segundo o autor, o deslocamento crescente de bolsas da CAPES tem apontado para o crescimento desses cursos onde as PPP’s são aceitas como um fato necessário, inclusive nas modalidades de EAD, fatos que merecem análises. Segundo reportagem do Portal Brasil (2014) a CAPES recomenda 574 opções de cursos de MP em todas as áreas no Brasil. Os dados de crescimento são surpreendentes: “Ainda 846

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em 1999, haviam apenas quatro cursos, já em 2003 o País oferecia 62 opções de cursos de mestrados profissionais. Em 2007, o número chegou a 184, e em 2011 foram criados 338 novos cursos”. Segundo GEOCAPES (2014), atualmente temos 225 cursos de pós-graduação em educação (mestrados e doutorados) no Brasil, destes 33 se enquadram na categoria de mestrados profissionais na área de educação. Destes 33 programas, 30 se enquadram na avaliação com nota 3, dois possuem nota 4 e somente um possui avaliação de nível 5. Essa curvatura crescente nos cursos de MP no Brasil, também, aponta para o progressivo aumento dessa modalidade na área educacional, ênfase acentuada no atual PNPG. A portaria Normativa do MEC n. 17, de 28 de dezembro de 2009 dispõe sobre os mestrados profissionais no âmbito da CAPES. A vinculação da formação em nível de pósgraduação as demandas dos setores privados e ao mundo do trabalho é sinalizada já nas disposições iniciais da Portaria: CONSIDERANDO a necessidade de identificar potencialidades para atuação local, regional, nacional e internacional por órgãos públicos e privados, empresas, cooperativas e organizações não-governamentais, individual ou coletivamente organizadas; CONSIDERANDO a necessidade de atender, particularmente nas áreas mais diretamente vinculadas ao mundo do trabalho e ao sistema produtivo, a demanda de profissionais altamente qualificados;CONSIDERANDO as possibilidades a serem exploradas em áreas de demanda latente por formação de recursos humanos em cursos de pós-graduação stricto sensu com vistas ao desenvolvimento sócio-econômico e cultural do País; CONSIDERANDO a necessidade de capacitação e treinamento de pesquisadores e profissionais destinados a aumentar o potencial interno de geração, difusão e utilização de conhecimentos científicos no processo produtivo de bens e serviços em consonância com a política industrial brasileira; CONSIDERANDO a natureza e especificidade do conhecimento científico e tecnológico a ser produzido e reproduzido;CONSIDERANDO a relevância social, científica e tecnológica dos processos de formação profissional avançada, bem como o necessário estreitamento das relações entre as universidades e o setor produtivo (BRASIL, MEC, p.1).

Esse estreitamento ratifica o perfil de formação que se desenhará para a pós-graduação stricto sensu nas políticas e legislações subsequentes, incluindo o Plano Nacional de Pós Graduação (2011-2020). A necessidade de impulsionar o desenvolvimento industrial e econômico via apropriação dos conhecimentos científicos será axial nos planejamentos educacionais destinados à modalidade de mestrado profissional em formação e progressiva expansão. Entre as diretrizes e parâmetros de avaliação de propostas de cursos novos de mestrado profissional de 2005, já se colocava como central a ligação dessa modalidade como fomentadora de rápida transferência do conhecimento científico para a sociedade, elevação de 847

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produtividade das empresas brasileiras, aumento da competência de setores sociais da administração pública, assim como das organizações não governamentais que tenham por meta a redução da dívida social (BRASIL, CAPES, 2005). Essa dicotomia daria ao mestrado profissional um viés marcadamente pragmático e mercadológico, pois sua função é a geração de um produto, enquanto o mestrado acadêmico ficaria com a formação do pesquisador no sentido mais amplo. Entretanto, no atual PNPG a crítica à natureza endógena da modalidade acadêmica será exposta na justificativa de se pensar em modelos formativos mais focados em mercados. O incentivo à expansão e ao crescimento desses programas será surpreendente. A expressividade no número de matrículas e alunos, também, traduz a uma curvatura crescente dessa modalidade. Vide Linha do Tempo 1:

1 - LINHA DO TEMPO: EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE DISCENTES EM CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO - MESTRADOS PROFISSIONAIS _________________________________________________________________________

M N T

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

862 497 56

1879 1121 241

2956 1680 362

4350 2156 987

5065 2452 1652

5814 2795 1915

6303 2914 2029

LINHA DO TEMPO: EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE DISCENTES EM CURSOS DE PÓSGRADUAÇÃO - MESTRADOS PROFISSIONAIS/ CONTINUAÇÃO _______________________________________________________________________________

2006 M N T

6798 3272 2519

2007 7638 3684 2331

2008

2009

9054 4647 2653

10135 4847 3102

LEGENDA M = Matriculados 848

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N = Novos T = Titulados

Um levantamento empírico e a análise das propostas de novos cursos4 tem sinalizado uma crescente vertiginosa dessa modalidade tanto na área de Educação, assim como os cursos ligados às temáticas da educação, mas enquadrados na área de Ensino e na área Interdisciplinar, conforme sintetizado a seguir: ÁREA/ MODALIDADE EDUCAÇÃO ENSINO INTERDISCIPLINAR

TOTAL 36 39 6

A tabela acima foi compilada a partir das informações expandidas. Foram mapeadas as reuniões do Conselho Técnico Científico da Educação Superior (CTC/ES) de junho de 2011 a fevereiro de 2016, organizada sob os seguintes descritores: área, nome do curso, nível, nota CTC-ES, nomes das IES, UF e região. Em análise inicial do atual PNPG, pesquisaram-se os gráficos de evolução da pósgraduação, com ênfase nos mestrados acadêmicos e profissionais. Segundos os dados de 2009, os maiores índices de crescimento dos cursos de mestrados se concentraram nas esferas federal e estadual, com maior destaque para os cursos na área de humanas. Já os mestrados profissionais mostraram a maior concentração de cursos na esfera particular, com maior representatividade na área multidisciplinar. A maior concentração de mestrados profissionais (135 cursos) está na região sudeste e a maior parte possui nota CAPES 3. O número de discentes, também, tem sinalizado uma evolução bem demarcada dos mestrados profissionais. Em 1999, eram 497 alunos novos, em 2009 o número de alunos ultrapassava 4.847. Entre os titulados, tínhamos apenas 56 em 1999 e, em 2009, o número chegava a 3.102. Essa evolução precisa ser compreendida em conjunto com a análise das políticas do MCT e da CAPES voltados aos fomentos desses cursos. Desta forma, o mapeamento dos editais

4

Informações mapeadas e analisadas a partir de dados extraídos http://www.capes.gov.br/avaliacao/entrada-no-snpg-propostas/mestrado-profissional/resultados.

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e das legislações referentes aos MP’s tem ajudado para as análises iniciais deste estudo. Todavia, já podemos depreender nesse momento um viés marcadamente mercadológico dessa modalidade que está se refletindo no crescimento acelerado. A própria análise das propostas do Fórum Nacional dos Mestrados Profissionais (FOPROF) tem revelado questões importantes sobre as relações que a entidade estabelece com empresas, organizações sociais, grupos de empresariados, etc. O próximo evento do Fórum, a ser realizado em novembro deste ano, terá a participação de Alex Canziani, autor da PEC 395/2014, que incluía a cobrança dos mestrados profissionais, por hora suspensa do Projeto de Lei em votação, que manteve, entretanto, a cobrança dos cursos de especialização. Ao mapear futuramente os nomes que compõem o Fórum e relacioná-los em suas redes de relação poderemos depreender um perfil mais estrutural da política pensada para o setor dentro desta entidade. Considerações iniciais apontam para um cenário onde o ajuste da pós-graduação aos imperativos do grande capital está em vias de projeto organizativo, em andamento tanto no campo legal, quanto organizacional e metodológico desses cursos. Dentro do Fórum (FOPROF) defende-se inclusive a introdução dos doutorados profissionais, em consonância com o atual PNPG. Na área educacional, este tipo de relação nos abrirá muitos questionamentos acerca dos ajustes educacionais aos macroplanejamentos e a ressignificação da autonomia da produção científica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020). Disponível em: < http://www.capes.gov.br/>. Acesso em: jul. 2014. BRASIL. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Distribuição de Programas de Pós-Graduação no Brasil. Disponível em: < http://geocapes.capes.gov.br/geocapesds/#app=c501&da7a-selectedIndex=0&5317selectedIndex=0&dbcb-selectedIndex=0>. Acesso em: set. 2014. BRASIL. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. portaria Normativa do MEC n. 17, de 28 de dezembro de 2009. Disponível em: https://www.capes.gov.br/images/stories/download/legislacao/PortariaNormativa_17MP.pdf

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BRASIL. Portal Brasil. Capes recomenda 574 opções de cursos de mestrado profissional Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/851ducação/2014/05/capes-recomenda-574-opcoesde-cursos-de-mestrado-profissional>. Acesso em: set. 2014. Documento: Estatísticas do Evento do FOPROF. Disponível em: http://www.foprof.org.br/. FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história. 4 ed. Rio de Janeiro: EPSJV, 2012. LEHER, Roberto. Mestrado profissional na educação: notas preliminares, 2011, mímeo. LEHER, Roberto; SADER, Emir. Público, estatal e privado na reforma universitária. Texto elaborado para o INEP, 2004. Universidad Santiago de Compostella: Fírgoa. Disponível em: . Acesso em: mai. 2014. NEVES, Lucia M. W.; PRONKO, Marcela A. O mercado do conhecimento e o conhecimento para o mercado: da formação para o trabalho complexo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008, 204 p. SOBRINHO, José Dias Sobrinho. Processo de Bolonha. Campinas: Educação Temática Digital, v.9, n. esp., p. 107-132, dez. 2007. Disponível em: < http://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/etd/article/view/1704>. Acesso em: set. 2014.

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MESA 16: HEGEMONIA, CONTRAHEGEMONIA E ESTADO INTEGRAL NAS DEMOCRACIAS PÓS-CRISE DE 1973 Coordenação: Thiago Romão de Alencar (PPGH/UFF) RESUMO: A partir dos anos 1980, vemos um reordenamento entre as frações burguesas oriundo da crise orgânica capitalista da década precedente. A rearticulação dos blocos no poder nas metrópoles e no capitalismo dependente demandou novos esforços no sentido do fortalecimento da hegemonia burguesa nesse processo. Ao mesmo tempo, as pressões e lutas dos movimentos sociais organizados tensionaram as relações no interior do Estado capitalista, ocasionando modificações na sua ossatura material tanto na sociedade civil como na sociedade política e um reordenamento do papel do Estado num contexto de expansão de plataformas neoliberais. A disputa hegemônica, tendo por fim último a contenção das lutas antissistêmicas e a assimilação de seus elementos menos radicais, atuou de diferentes formas. A crescente mercantilização de várias esferas da sociabilidade, a ampliação de organizações da sociedade civil – com a expansão da relação entre as nascentes ONGs e o Estado, as primeiras assumindo variadas funções do segundo – conviveram com um reordenamento interno do Estado que buscou reconfigurar a relação entre as classes dominadas e a esfera estatal. Esse redesenho dos Estados, cada vez mais interconectados e internacionalizados, internalizando as estruturas de dominação internacionais, pautava-se em certo modelo de democracia que visava, em última instância, o total controle das lutas sociais, um brutal reforço do elemento coercivo e uma diminuição cada vez maior dos espaços reais de atuação e discussão democrática no interior do Estado. A reação das frações dominantes no bloco no poder visou a contenção e o enquadramento da democracia pós-crise, ocasionando um amplo recuo do horizonte de lutas sociais. A falência de antigas formas de organização social e a emergência de novos atores e agências trouxeram novas tensões à política. A partir destas premissas, propomos analisar diferentes processos em que essas novas tensões se fizeram presente.

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ESTADO, CAPITAL E TRABALHO NA INGLATERRA DE MARGARET THATCHER Thiago Romão de Alencar1 RESUMO Este trabalho visa analisar as transformações ocorridas na ossatura material do Estado britânico durante os governos de Margaret Thatcher, no que tange em especial à relação entre capital, Estado e trabalho. Com a crise da economia capitalista nos anos 1970, a vigência do Estado de bem-estar foi colocada em cheque, e um amplo movimento de oposição ao forte poder dos sindicatos cada vez mais se fez presente entre as frações burguesas. A eleição de Margaret Thatcher em 1979 significou uma mudança radical nas relações entre Estado, trabalho e capital. Com seu forte programa anticoletivista, antiestatista e individualista, o governo conservador atacou de frente o movimento operário organizado de inúmeras formas. Diversos conselhos e órgãos econômicos tripartites que possuíam participação de representantes sindicais foram extintos, a obrigatoriedade das corporações e instituições públicas de consultarem os sindicatos foi abolida. A regulamentação legal mínima, que por muito tempo resultou numa maleabilidade do sistema legal bem explorada pelos sindicatos, dava lugar a um sistema de máxima regulação estatal e legal cujos principais encargos caíam sobre os ombros da classe operária organizada. Ao mesmo tempo, aspectos centrais das relações industriais regulamentadas por lei na maioria dos países – como a questão da negociação coletiva, os direitos ao reconhecimento e representação dos sindicatos, a obrigação dos patrões de negociar – permaneceram com grande autonomia, geralmente com grande vantagem para o empregador. O sindicalismo agora era o inimigo público número um. Buscarei mostrar como se deram essas mudanças na configuração do Estado inglês, procurando conectá-la aos intensos movimentos e lutas na sociedade civil organizada, mostrando como os aparelhos ideológicos e econômicos tiveram papel central nesse processo. Nos anos 1970, a Grã-Bretanha passou por uma explosão de greves históricas, que denotavam uma ampla mobilização operária. Na segunda metade dessa década, durante o governo trabalhista de James Callaghan, foram registradas anualmente em média 2.412 greves, alcançando mais de 11 milhões de jornadas diárias não trabalhadas em paralisações por local de

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Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF). Email: [email protected].

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trabalho. O total de trabalhadores sindicalizados atingiu na época o recorde de 13,5 milhões, 55% da força de trabalho em 1979. Com o desemprego ultrapassando a marca de 1 milhão de pessoas em 1976 – a maior no pós-guerra – e o governo trabalhista encurralado às voltas com negociações setoriais parceladas com os diversos sindicatos e a crescente oposição do patronato, ao mesmo tempo em que era obrigado a implementar mudanças estruturais devido a um empréstimo bilionário concedido pelo FMI no mesmo ano, o fracasso era eminente e os limites das políticas de bem-estar se mostravam cada vez mais claros. Após um abrangente ciclo de greves entre 1978 e 1979, que envolveu paralisações de amplas funções públicas, como os lixeiros e coveiros, no que ficou conhecido como o “inverno do descontentamento”, os trabalhistas foram derrotados pelo renovado Partido Conservador liderado por Margaret Thatcher, que se notabilizaria por aplicar amplas reformas privatizantes e por uma virulenta atuação anti-sindical e antigrevista. Sob Thatcher, o desemprego, que no início de seu mandato atingia 5,4% da força de trabalho (o equivalente a 1 milhão e 234 mil trabalhadores), chegou a 12% três anos depois, ultrapassando a marca dos dois milhões para, dali a mais dois anos, alcançar o patamar histórico de mais de três milhões de pessoas sem emprego, em 1985. No entanto, apesar do crescimento dos índices de desemprego e de medidas altamente impopulares para amplas parcelas da população, Thatcher foi reeleita em mais três eleições, obtendo cada vez mais votos e, como veremos, aprofundando cada vez mais suas medidas anti-sindicais de forma sistemática. A voga contrarrevolucionária aberta no período se deve em muito à falência trabalhista em se mostrar como alternativa viável para a classe trabalhadora organizada num período de crise orgânica do bloco histórico keynesiano-fordista implantado no pós-guerra naquele país. A facilidade com que o equilíbrio instável de compromissos do Estado de Bem-estar pendeu cada vez mais contra os interesses da classe trabalhadora ocorreu num período em que o braço político do movimento operário – o Partido Trabalhista – e o braço sindical – o TUC2 – se mostravam cada vez mais descolados da realidade das demandas de suas bases e incapazes de dar um salto qualitativo na organização dessas, abrindo espaço para as fortes medidas repressivas thatcheristas. Pretendo com este trabalho apontar algumas das medidas tomadas pelo governo Thatcher com relação aos sindicatos, enfatizando a relação explícita entre desorganização da classe operária e avanço da arrancada de direitos, cujo auge ocorreu nos anos 1980 durante o governo conservador. 2

Trade Union Congress, principal central sindical britânica.

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TRABALHISMO E SINDICALISMO NOS ANOS 1980 Ao longo da segunda metade do século XX o Partido Trabalhista britânico tornara-se a “a leal oposição oficial de Sua Majestade”3, atuando numa tímida oposição reformista de acordo com as regras do capitalismo britânico sob um regime de acumulação fordista, conformando as opções políticas dentro do bloco histórico vigente, seguindo o horizonte limitado pelas diretrizes do keynesianismo. Cada vez mais, conservadores e trabalhistas se indeferenciavam no poder, e, neste sentido, o Partido Trabalhista já não podia contar de forma imediata com os votos cativos dos operários e trabalhadores, como havia se tornado comum no pós-guerra. Por outro lado, o alto número de greves e mobilizações esconde um movimento sindical altamente hierarquizado e institucionalizado, pautado por demandas setoriais e salariais de curto prazo, sendo raras as greves que ultrapassaram de fato o limiar “econômico-corporativo” ao qual Gramsci se referia. Esse “sindicalismo de resultados”, ao mesmo tempo em que arrancava vantagens salariais em períodos ascendentes da econômica britânica no auge do Estado de bem-estar social, passou a não conseguir mais o mesmo sucesso com a crise – sendo inclusive acusado de ser um dos grandes causadores da crise, como parte da campanha ideológica da oposição conservadora para justificar as medidas thatcheristas. Forte nos setores públicos, baseado principalmente nas indústrias e na mão-de-obra masculina, o sindicalismo britânico possuía um perfil altamente seletivo com relação ao quadro mais amplo da força de trabalho daquela sociedade, possuindo baixíssima penetração entre negros e mulheres. Os anos 1970 na Grã-Bretanha se iniciaram com o ministro conservador Edward Heath governando um país às voltas com problemas econômicos de grande monta, marcado por uma poderosa greve de mineiros, sindicato britânico mais importante da época, base da matriz energética do país. Através do Industrial Relations Act, fez-se a tentativa de registro legal dos sindicatos nacionais (forçando uma especialização e a adoção de sindicato único), forçando a judicialização e a regulamentação das relações entre sindicatos, Estado e capital, ao impor que apenas as negociações realizadas por sindicatos reconhecidos pelo governo e julgadas por um tribunal especial seriam reconhecidas. A medida sofreu forte oposição do movimento sindical, refletida numa forte campanha do TUC pelo não registro dos sindicatos no tribunal que foi o 3

Como é chamado o partido da oposição do governo estabelecido, com relação à monarquia.

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bastante para inviabilizar o ato legislativo, revogado pelo governo trabalhista seguinte. Apesar disso, permanecia a questão do controle de preços e salários, com a imposição de limites aos reajustes salariais anuais visando conter a inflação, bandeira que surgiu com força nos governos Wilson durante a década de 1960, mas esbarrava na recusa dos principais sindicatos (N.U.M.4 e T.&G.W.U.5) em aderir à uma política salarial nacional que restringisse os ganhos possíveis com as negociações coletivas autônomas. Na realidade, a querela quanto ao Industrial Relations Act reacendeu um debate mais intenso sobre o estatuto legal dos sindicatos e das ações de mobilização operárias. As disputas giravam em torno da permissão à greves e piquetes, à democracia interna dos sindicatos, à obrigatoriedade de certos setores e empresas de só contratarem operários sindicalizados, além da questão das punições aos sindicatos que incorressem em ilegalidades (punições penais ou civis/pecuniárias). Seriam estes, inclusive, os eixos principais de ataque do governo Thatcher ao movimento sindical nos anos 1980, o que só mostra como estas questões eram centrais para a dominação capitalista na Grã-Bretanha, conforme veremos a seguir. A partir principalmente das décadas de 1960 e 1970, o Partido Trabalhista no poder passou a esbarrar no mesmo dilema estrutural: como se equilibrar entre as pressões da base sindical por melhorias salariais e por uma ampliação de independência de ações e negociações, a espiral inflacionária e a diminuição da produtividade, aspectos característicos da economia britânica no pós-guerra? Era possível manter o controle da inflação galopante e ao mesmo tempo atender às pressões tanto da grande burguesia inglesa como da classe operária organizada? A história do Partido Trabalhista nessas duas décadas foi a história da tentativa de equilíbrio entre essas tendências e reivindicações, visando manter um equilíbrio instável de compromissos dentro das margens e horizontes do Estado de bem-estar social britânico, equilíbrio esse impossível de ser mantido por tanto tempo sem que os “compromissos” assumidos se rompessem. Um dos governantes mais longevos do período, Harold Wilson, conviveu com forte oposição das camadas médias da população, ao mesmo tempo em que enfrentou uma forte oposição da ala mais à direita do seu próprio partido, que voltavam carga contra o “corporativismo” dos sindicatos e seus “interesses seccionais” que desviavam a atuação “estável” do mercado capitalista, cujo controle por um Estado neutro árbitro entre capital e trabalho estava sendo

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National Union of Miners, Sindicato Nacional dos Mineiros. Transport & General Worker’s Union, Sindicato dos Trabalhores do Transporte e em Geral.

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desvirtuado por esses interesses. Para esse setor do Partido Trabalhista6, assim como para uma parcela não desprezível da população de uma forma geral, o governo se encontrava completamente dominado pela influência nociva dos fortes e arcaicos sindicatos, que não arcavam com o seu papel em tal acordo conciliatório: caberia aos sindicatos manter um nível salarial razoável que não onerasse e reduzisse os lucros dos capitalistas, posto que estes deveriam ser destinados aos investimentos que trariam de volta a competitividade à economia britânica, sendo esse o seu quinhão no esforço coletivo para se sair da crise. É este sentimento, o de que os sindicatos e o Partido Trabalhista criavam um contrapoder que dividia a sociedade e sequestrava o Estado para interesses particulares, que será explorado com maestria pelo governo Thatcher, que tomara como princípio político motriz de sua administração o rompimento do acordo hegemônico do pós-guerra, abandonando a busca pelo pleno emprego e qualquer tipo de controle estatal de preços e salários, e atacando um dos principais pilares do bem-estar social: o movimento sindical britânico. A CRISE E A RESPOSTA THATCHERISTA A crise econômica dos anos 1970 foi o ponto de culminação de um processo que já se arrastava desde os anos 1960, apontado acima, em que as relações entre o Partido Trabalhista e os sindicatos pautavam substantiva parcela das políticas trabalhistas no governo. As duas turbulentas décadas anteriores eram vistas como as causadoras da estagnação da econômica britânica e de sua baixa produtividade, comparativamente aos países centrais capitalistas. Uma intensa campanha ideológico-midiática passou a atacar de frente o movimento sindical e suas imunidades jurídicas. Um relatório do Ministério do Trabalho publicado em julho de 1991, referindo-se aos anos 1970, aponta que líderes sindicais eram vistos como irresponsáveis e antidemocráticos ao exercer seu poder industrial. As relações industriais britânicas eram cada vez mais desfiguradas por cenas de piquetes intimidadores e por greves que buscavam atingir diretamente a vida da comunidade. (...) [Até os anos 1970] a lei havia fornecido aos sindicatos proteção virtualmente ilimitada para organizar greves e outras formas de conflitos industriais.7

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Que nos anos 1980 racharia e formaria o Partido Socialdemocrata. TAYLOR, Robert. The Trade Union Question in British Politics: Governments and Unions since 1945. Oxford: Blackwell, 1993. Pág. 266.

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Respaldada com a experiência anterior de Heath, derrotado por arriscar implementar o Industrial Relations Act, Thatcher adotou uma tática cautelosa mas sem recuos durante o seu governo, usando-se primordialmente de atos legislativos para implementar sua política repressora. Foram nada menos do que seis legislações específicas alterando diferentes pontos das relações industriais e da organização interna dos sindicatos, gerando diversas críticas da Organização Internacional do Trabalho, por violarem muitas das suas convenções. A relativa facilidade com que Thatcher conseguiu implantar suas medidas é um poderoso sinal de como a falência do velho trabalhismo e a inércia dos principais sindicatos, incapacitados em ampliar e politizar o movimento operário deixaram o campo livre para o aprofundamento de medidas conservadoras em âmbitos e de formas até então inimagináveis na sociedade britânica do pós-guerra. Mostra disso é a vinculação cada vez mais visível ao longo da década de 1980 entre a direção do governo e a obra do economista austríaco Friedrich von Hayek. Para Hayek, os sindicatos eram ameaças monopolistas ao livre-mercado, que evitavam com que a competição agisse como um regulador efetivo da alocação dos recursos sociais; ou então deveriam ser vistos como organizações coercivas que elevavam os salários dos trabalhadores acima dos níveis do livre mercado, causando assim desemprego, restrições na mobilidade do trabalho e uma alta galopante da inflação. Hayek recomendava transformar os sindicatos em ‘sociedades amigas’, removendo todas as suas proteções legais, com relação a piquetes, closed shop, greves secundárias, boicotes, etc... contra o controle de preços e salários que desvirtuavam o livremercado. Chegava ao radicalismo de ver os sindicatos como o maior obstáculo para elevar o nível de vida da classe trabalhadora como um todo. Já no manifesto eleitoral de 1979, apontavam-se para tímidas porém visíveis mudanças no que tangia aos operários, com o seguinte mote: “Se a lei pode ser usada para garantir privilégios, ela também pode e deve ser usada para estabelecer obrigações”.8 Entretanto, disputas entre frações de classe da burguesia britânica e pelas próprias facções internas ao Partido Conservador em desacordo neste momento tencionam a formação do gabinete thatcherista após a vitória eleitoral, sendo eleito Jim Prior para o Ministério do Trabalho, conhecido pelos seus posicionamentos contrários à medidas monetaristas e radicalmente recessivas à la Hayek, além

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Extraído do programa eleitoral do Partido Conservador para as eleições de 1979. Disponível em: http://www.politicsresources.net/area/uk/man/con79.htm. Acesso em: 22/09/2016.

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de ser tolerante ao TUC. Entretanto, logo no ano seguinte começará a saga dos ataques e restrições do governo ao movimento sindical, ataques cirúrgicos que num curto prazo tiveram um efeito devastador no movimento operário organizado. Uma greve na estatal britânica de aço, a British Steel Corporation, meses após a eleição de Thatcher, alastra greves em empresas particulares também produtoras de aço, o que leva a nova primeira-ministra a pressionar o Prior e o Ministério do Trabalho a radicalizarem a legislação e proibir todas as greves secundárias, mas não é o que acontece. O primeiro dos atos legislativos concernentes à questão sindical seria o Employment Act de 1980, que, entre outras medidas, restringia a ação de piquetes de greve apenas aos locais de trabalhos dos respectivos grevistas, determinava que greves ‘de solidariedade’ e bloqueios de empresas deveria se restringir apenas aos fornecedores e consumidores diretos da fábrica em greve, iniciou-se o ataque ao chamado sistema de closed shop9, apontando eleições secretas obrigatórias para os próximos, cujo apoio deveria ser de 80% dos trabalhadores alocados nos postos de trabalho em questão – além de preverem a compensação financeira pelo Estado à trabalhadores de determinada fábrica que adotava o sistema que se recusassem a se sindicalizar devido ao closed shop, além da criação de um fundo administrado pelo Ministério do Trabalho destinado para os sindicatos que tivessem a intenção de convocar eleições para referendar greves, outra medida preconizada no ato. Em janeiro de 1981, o mesmo ministério lança um relatório sobre imunidades legais dos sindicatos, buscando levantar um debate nacional sobre o tema para que não se pendesse a balança muito exageradamente para o lado contrário. Como efeito, catalisou a união de grupos mais radicais anti-sindicatos – verdadeiros intelectuais orgânicos da burguesia britânica, como o Instituto dos Diretores de Indústria, a Federação dos Empregadores de Engenharia, a Associação das Câmaras de Comércio Britânicas e o Centro de Estudos de Política, e que ficaram conhecidos como argonauts10 e que elaboraram uma carta programática com sugestões de medidas a serem adotadas pelo governo no que tangia às relações de trabalho na GrãBretanha. Dentre algumas demandas, estavam a abolição geral do closed shop, a abolição do

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Obrigatoriedade determinada por lei de que determinadas empresas só contratariam mão–de-obra sindicalizada. Em homenagem ao Clube Argonauts, onde realizavam suas reuniões quinzenais.

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sistema de union-labour-only11 e a possibilidade de acusação e abertura de processos públicos e civis contra sindicatos por parte dos empregadores, prevendo até o pagamento de multas. Prior e seu ministério resistiram a essas pressões e demandas, principalmente com relação à disputas no civil entre sindicatos e empregadores. A materialidade entrecortada do Estado capitalista reage e condensa estas e outras pressões de forma específica, sempre sendo uma das principais caixas de ressonância do equilíbrio instável de compromissos que sustenta a hegemonia burguesa. Ao mesmo tempo, o Estado assume o caráter de esfera em que a aglutinação e a organização da vontade coletiva dos dominantes se mostra mais premente. O desenrolar da questão acontece de forma cristalina: opositor do orçamento de 1981, que previa mais cortes orçamentários, Prior é destituído do Ministério do Trabalho e Norman Tebbit, expoente da nova direita hayekiana dentro do Partido Conservador, assume o cargo. Sua primeira medida importante seria o virulento Employment Act de 1982, que determinava que sindicatos seriam passíveis de serem processados civilmente e sofreriam multas caso condenados nos processos em que ficasse comprovada a desobediência da legislação industrial. Esse era um dos pontos vistos como fundamentais pela administração thatcherista, pois eliminava grande parte das chamadas “imunidades sindicais” e transformava os sindicatos em associações comuns, passíveis de serem multados, o que reforçava uma pressão financeira pra cima dos sindicatos num período de retrocesso econômico em que ações sindicais eram demandas. Ocorreu também a extensão do ataque aos closed shops, que deveriam agora receber aprovação de 85% dos empregados e, caso não aceitassem trabalhadores não sindicalizados, seriam multados. Acabou também com o sistema de union-labour-only, atendendo assim grande parte das reivindicações dos argonauts. Todas estas medidas foram levadas a cabo sob o mesmo argumento: se tratavam de medidas que liberariam o mercado dos entraves do período anterior, reforçando a liberdade de mercado no que tangia especificamente à mercadoria força de trabalho. A redefinição do próprio significado das disputas sindicais foi um dos pontos centrais desse ato, conhecido por lei Tebbit: a partir dela, apenas greves entre trabalhadores e seus próprios empregadores receberiam cobertura legal; greves em solidariedade a outros grevistas foram consideradas ilegais, assim como greves relacionadas a assuntos políticos externos e internos. Greves políticas também perderam suas imunidades, determinando

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Sistema que obriga as empresas a apenas comercializarem, abastecerem e se reabastecem em empresas já atuando com closed shop ou pelo menos reconhecendo o sindicato da categoria em questão.

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que greves deveriam estar relacionadas apenas à condições ou assuntos relacionados ao local de trabalho, como salários, técnicas e outras questões. A lei de Tebbit foi elaborada cuidadosamente para que nenhuma de suas medidas dependesse da colaboração dos sindicatos, visando evitar o fiasco de 1971. Vemos claramente o direito funcionando como estabilizador e garantidor da hegemonia burguesia no período. Essa “contratualização do direito de greve”, nos dizeres de Edelman12, conforma as ações grevistas à áreas circunscritas pelo direito do trabalho, buscando de todas as formas extirpar da greve seu significado político mais profundo. Faz parte do modo de dominar da burguesia fracionar e delimitar, principalmente através dos aparelhos de Estado, as lutas dos subalternos. Era fundamental, portanto, eliminar e criminalizar qualquer tipo de luta que de alguma forma aproximasse trabalhadores de diferentes fábricas e áreas. A instável hegemonia burguesa atuava, como não podia deixar de ser, reunindo as frações burguesas em disputa no bloco no poder e fracionando a classe trabalhadora de todas as formas. A greve dos mineiros em 1984/1985 tornou-se um dos pontos centrais do governo Thatcher, um período em que a primeira-ministra mostrou toda a sua capacidade de enfrentamento e decisão ao bater de frente e utilizar todos os recursos ao seu alcance para dobrar e aniquilar aquele que era o principal sindicato britânico do pós-guerra, o N.U.M.. A disputa girou em torno de questões salariais, duração da semana de trabalho e, principalmente, o anunciado fechamento de minas não rentáveis. Três anos antes uma greve local já estourara, mas nesse primeiro momento Thatcher recuara para evitar uma greve nacional. Em contrapartida, a indicação, na mesma época, de Ian Macgregor para o National Coal Board, visando romper a relação pacífica deste com o N.U.M. desde a nacionalização do carvão em 1947 e tratar o ramo da produção do carvão na Inglaterra como negócio, e não mais como parte do acordo estatal do pós-guerra. A importante e resistente liderança de Arthur Scargill não foi o bastante para dar a vitória aos mineiros nessa greve polêmica onde uma importante parte dos mineiros não a apoiou e que, ao longo do tempo, amplas parcelas da população foram se mostrando cada vez mais contrárias ao movimento grevista. O saldo foi o surgimento de um segundo sindicato na área carbonífera, fracionando as disputas, enquanto o N.U.M., que de duzentos mil membros no auge da greve

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EDELMAN, Bernard. A Legalização da Classe Operária. São Paulo: Boitempo, 2016.

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caiu para menos de quarenta mil cinco anos depois, enfraqueceu-se de maneira definitiva, deixando de ser um ator relevante na política britânica, como fora no passado. Durante os enfrentamentos da greve, e parcialmente inspirado por ela, o governo edita mais um ato legislativo, o Trade Union Act de 1984, cujo principal objetivo era, na visão do governo, ‘devolver os sindicatos aos seus membros’. Um relatório do Ministério do Trabalho de 1983, denominado Democracy in Trade Unions, é sintomático quando aos motivos que inspiravam esse ato: de acordo com o relatório, “é necessário avaliar se os direitos individuais dos membros dos sindicatos estão protegidos adequadamente e se aqueles que exercem poder em nome dos membros são devidamente responsabilizados pelos seus membros”.13 Segundo o governo, as medidas protegeriam os direitos individuais de sindicalistas frente à controles autocráticos das burocracias sindicais, ao introduzir, por exemplo, a obrigatoriedade de votação individual para declaração de greve e eleições de novas direções sindicais de 5 em 5 anos. Os sindicatos que não seguissem essas diretrizes estariam passiveis de sofrerem sanções civis e multas. O ato de 1984 foi condenado pelo TUC como um assalto direto à autonomia dos sindicatos e à liberdade de auto organização dos sindicatos, se constituindo inclusive numa violação da convenção 87 da OIT. O espaço nos impede de alongarmos a discussão, mas apontamos aqui de modo breve para outra característica fundamental dessa luta da burguesia, através do direito e dos seus artefatos ideológicos e repressivos: ao impor a questão da representação no sindicato e desenvolvê-lo à imagem e semelhança de outros órgãos públicos políticos, impõe uma disciplina e uma burocracia que são inerentes ao liberalismo. O Estado contorna e conforma os sindicatos, no sentido sempre de dividir a classe trabalhadora para dominá-la. A crescente individualização das negociações sindicais, diluindo o caráter classista do fenômeno sindical e incutindo um individualismo nessa área vital para a organização política da classe trabalhadora, seria o mais característico modus operandi do governo thatcherista na sua cruzada anti-sindical. Um relatório do Ministério do Trabalho de 1987, intitulado Trade Unions and their members, explicitava a torção do direito de greve, organicamente coletivo, para uma direção individualista pautada nos “direitos do homem”, se utilizando para isso daquele que é o ponto nevrálgico da extração de mais-valor institucionalizada de forma implícita e distorcida: o contrato de trabalho. De acordo com o relatório, o governo avaliava que “a decisão de se tomar uma ação industrial deveria ser 13

TAYLOR, op. cit., pág. 299.

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um assunto do foro individual. Todo membro de sindicato deveria ser livre para decidir por si mesmo se ele deseja ou não quebrar seu contrato de trabalho e correr o risco de demissão sem compensação.”14 Com o número de greves caindo vertiginosamente e após a terceira reeleição de Thatcher em 1987, medidas cada vez mais decisivas foram sento tomadas. Principal mostra disso é o Employment Act de 1988, que completaria o movimento de subordinar o coletivismo do movimento sindical ao individualismo neoliberal. O ato determinava que membros de sindicatos poderiam votar pelo correio ao invés de comparecer aos locais de trabalho, eliminando assim a possibilidade de discussões e debates nas votações, enfraquecendo a coesão operária. Além disso, agora sindicalistas que se recusassem a participar de greves ou piquetes, mesmo estes sendo decididos nas votações nos locais de trabalho, receberiam proteção legal do Estado contra medidas disciplinares de seus sindicatos de origem. Membros de sindicatos poderiam processar seus próprios sindicatos caso estes tivessem convocado uma greve sem votação prévia e, para facilitar isso, foi criado o Comissário para os Direitos dos Sindicalistas, cuja função era prestar assistência jurídica e financeira aos empregados apenas nessas situações – casos em que os empregados quisessem processar seus empregadores estavam excluídos da alçada do Comissário. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados estatísticos comparativos do princípio e do final da administração conservadora de Margaret Thatcher dão uma visão mais acertada do significado do processo descrito neste traballho. A porcentagem de trabalhadores sindicalizados caiu de 55% em 1979 para 34% em 1991, de 13,5 milhões de trabalhadores em 1979 para apenas 8,2 milhões em 1994; a proporção de locais de trabalho que reconheciam os sindicatos caiu de 66% para 53% no mesmo período, e apenas 30% das novas empresas surgidas dos anos 1980 em diante aceitavam representantes sindicais em seus domínios; o alcance da negociação coletiva, que atingia 71% dos empregados em 1984, caiu para 54% em 1990. O número de greves também caiu vertiginosamente: das 2.125 greves em 1979 envolvendo 4 milhões e 608 mil trabalhadores – índices já menores em

14

Idem, pág. 304.

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relação à década anterior, mas ainda sim respeitáveis –, despencou durante os anos 1980 até chegar à apenas 369 greves em 1991, mobilizando 176 mil trabalhadores. As eleições de 1983 trazem importantes números que explicam o porquê do sucesso e das reeleições dos conservadores: apenas 35% de operários especializados votaram no trabalhismo, uma diminuição de mais de ¼ com relação à 1979; apenas 39% dos sindicalistas votaram no partido que fundaram, seguindo a queda constante que vinha ocorrendo desde as eleições de 1964, quando 73% de sindicalistas votaram nos trabalhistas. Ao mesmo tempo e de forma ainda mais grave, cresceu o número de votos de sindicalistas em outros partidos: enquanto o voto nos conservadores girava em torno dos 30% desde os anos 1960, 29% dos sindicalistas votou na aliança de Liberais e Socialdemocratas em 1983. Entre alguns setores específicos a situação também é indicativa dessa crise e dessa falta de representatividade: o voto das mulheres nos trabalhistas, em geral, caiu pela metade entre 1979 e 1983. Entre os jovens de 18 a 22 anos, participando de sua primeira eleição, os trabalhistas foram os menos votados, alcançando apenas 17% dos votos válidos, contra 41% na eleição anterior. Além do mais, um terço dos jovens sequer votou, um dos maiores índices de abstenção entre essa parcela da população desde os anos 1950. No total dos votos, o Partido Trabalhista ficou com apenas 29% dos votos válidos, menos de um milhão a mais que a coalizão Liberais/Socialdemocratas. Concordamos, portanto, com o veredito de Hobsbawm, segundo o qual “o triunfo de Thatcher representa um subproduto da derrota do trabalhismo”15. Entretanto, o alcance das medidas anti-sindicais de Thatcher foram avançando de forma escalar, estrangulando o braço sindical do movimento operário organizado e resvalando no braço político do mesmo: nos anos 1990 seria o Partido Trabalhista que extirparia de suas fileiras o vínculo orgânico com o movimento sindicalista que caracterizara o partido desde sua fundação no início do século XX. O resultado desta domesticação e conformação dos sindicatos, possível apenas devido ao enfraquecimento do movimento operário a partir da sua ruptura e esfacelamento entre base, direções sindicais, TUC e Partido Trabalhista ocorrido nos anos 1970, não poderia ser outro: o enfraquecimento da classe trabalhadora britânica e a vitória do thatcherismo, que se aproveitou de uma correlação de forças favorável e foi desconstruindo o quebra-cabeça montado durante o fordismo do pós-guerra. Papel fundamental nesse processo teve o Direito e a sua maleabilidade

15

HOBSBAWM, Eric. Estratégias para uma Esquerda Racional: escritos políticos 1977-1988. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. Pág. 80

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estrutural. Thatcher não proibiu nem reprimiu sindicatos diretamente (a não ser em situações específicas, como durante a greve dos mineitos): apenas judicializou e “legalizou” os sindicatos e a própria classe trabalhadora britânica, cuja última lei anterior regulando suas relações datava do início da Primeira Guerra Mundial. Como descreve Edelman, É característico das lutas operárias escapar a toda legalização, a toda circunscrição. Em suma, o direito não pode, estruturalmente, apreendê-las como são. A greve tornou-se um ‘direito’ sob a única condição de submeter-se ao poder jurídico do capital, tanto na ‘sociedade civil’ como no Estado. Tornou-se um direito sob a condição de ser medida pela régua das obrigações (contrato de trabalho) e do direito de propriedade (propriedade dos meios de produção). É a esse preço que ela passa a integrar o ‘horizonte limitado do direito burguês’. Mas, ao regular a greve, a burguesia não deixa por menos: resta-lhe cercar as organizações de massa, os sindicatos, e aí assistimos a uma estratégia muito fina. Confrontada com o ‘fato’ sindical, a burguesia utiliza todas as armas para transformálo em aparelho ideológico de Estado. Como? Outorgando-lhe um ‘poder’ que reproduza seu próprio poder; um poder de direito, é claro, mas somente na medida em que os sindicatos existem na legalidade; mas um poder de fato, sobretudo, na medida em que esses mesmos sindicatos deverão presumivelmente representar as massas. Assim, o sindicalismo é atravessado de parte a parte pela legalidade, obscura e, com frequência, irrefletidamente.16

BIBLIOGRAFIA: EDELMAN, Bernard. A Legalização da Classe Operária. São Paulo: Boitempo, 2016. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, v. 2. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014b. . Cadernos do Cárcere, v. 3. Maquiavel: sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. HOBSBAWM, Eric. Estratégias para uma esquerda racional: escritos políticos (1977-1988). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. MCILROY, John. “O inverno do sindicalismo”. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva na Inglaterra e no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2002.

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EDELMAN, op. cit., págs. 22-23.

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MILIBAND, Ralph. Parliamentary Socialism: A Study in the Politics of Labour. Londres: Merlin Press, 1979. POULANTZAS, Nicos. O Estado, O Poder, o Socialismo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977a. . (org.). “As transformações atuais do Estado, a crise política e a crise do Estado”. In: POULANTZAS, Nicos (org.). O Estado em Crise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977b. TAYLOR, Robert. The Trade Union Question in British Politics: Governments and Unions since 1945. Oxford: Blackwell, 1993.

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A ATUAÇÃO DA AATR NOS CONFLITOS AGRÁRIOS NA BAHIA: uma incursão pelo campo controvertido da luta por direitos Maria José Andrade de Souza1 Flávia Amorim Souza2 Fundada num contexto de intensos conflitos no campo agrário baiano, período de mobilizações sociais que impulsionaram a transição para abertura democrática, a Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais (AATR), em mais de trinta anos de existência, coincide muitos pontos de sua trajetória com o curso da questão agrária baiana nesse período e constituise numa entidade referenciada no conjunto das assessorias jurídicas populares no Brasil, junto aos trabalhadores rurais que assessora e por sua incidência nas disputas das políticas agrária e fundiária na Bahia. Compreender sua atuação perpassa tanto pela diversidade de conflitos no campo agrário baiano quanto pelas contradições presentes em cada período histórico, aspectos pelos quais não passa ilesa a própria entidade no processo conflitivo de disputa dos interesses divergentes no seio do Estado, particularmente relacionados aos conflitos pela posse da terra envolvendo trabalhadores rurais em confronto com pretensos proprietários e projetos desenvolvimentistas. Por sua configuração, pressupomos ser a AATR um aparelho privado de contra-hegemonia, com uma atuação que complexifica as lutas em torno da lei – e seus possíveis reflexos na construção de noções de legalidade, legitimidade e justiça - ao tensionar para materialização e reconhecimento de direitos na ossatura institucional favoráveis aos trabalhadores rurais que assessora. Dito isto, entendemos que a luta por direitos no âmbito da lei não pode ser bem apreendida por matrizes de leituras simplificadoras - seja pelo viés instrumental, que reduz o Estado a um instrumento puro e simples da classe dominante, seja pelas abordagens que extraem desse domínio o caráter de classe para cristalizá-lo no império da imparcialidade. Com o aporte teórico e metodológico gramsciano, procuramos compreender a luta por direitos através da lei a partir de uma dinâmica processual, antagônica e complexa, no 1 Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), Universidade Federal Fluminense, e-mail: [email protected] 2 Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana, e-mail: [email protected]

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momento em que o reconhecimento de direitos pode ser também um instrumento de expropriação da classe trabalhadora. 1 Introdução

Fotografia 3: Registro do desforço

incontinenti3 promovido pelas 300 famílias das Comunidades de Fundo de Pasto de Areia Grande-BA, no Lago do Sobradinho, no dia 16.03.2008 em resposta ao esbulho realizado sob chancela judicial. Fotografia retirada por Maria (IRPAA).

O desforço incontinenti promovido pelas comunidades de fundos de pasto de Riacho Grande, Salina da Brinca, Jurema e Melancia, localizadas no município baiano de Areia Grande, poderia ser visto como mais uma, dentre as diversas estratégias de luta e resistência dessas comunidades ante a ameaça de serem alijadas do próprio território que ocupam desde 1860. Mas, essa estratégia diz mais do que aparentemente anuncia, pois estamos diante de uma ação coletiva combativa e institucionalizada, que ultrapassa a legitimidade para alcançar a legalidade do ato. Desse modo, se por um lado, reconhecemos as exigências formais no conflito judicializado, por outro, não podemos encarar a incorporação dos termos legais no seio das comunidades como um processo espontâneo, o que sugere problematizar a maneira como isso ocorre e os desdobramentos para o processo mais amplo da luta pela terra, que não coincide com o curso da ação judicial. Dito isto, a fotografia acima passa a ser o fio de Ariadne na incursão sobre a proposição deste trabalho, que se inscreve no campo poroso das lutas sociais no Estado – uma relação que guarda múltiplos e complexos desdobramentos – e sugere leituras tão diversas 3 O desforço incontinenti é um ato reativo de quem foi esbulhado, nas situações em que exige uma atitude imediata e proporcional à finalidade de recuperação do bem perdido, conforme previsto no § 1º, art. 1.210 do Código Civil.

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quanto antagônicas, mesmo em se tratando de uma mesma matriz de pensamento, a exemplo do marxismo. Dito isto, neste trabalho, analisaremos a atuação histórica da Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR-BA) nos conflitos agrários baianos, problematizando os reflexos das lutas sociais em torno da lei no processo conflitivo de disputas dos interesses no seio do Estado – aqui, concebido enquanto “[...] condensação material e específica de uma relação de força, que é uma relação de classe” (POULANTZAS, 2000, p. 71). Por sua configuração, pressupomos ser a AATR um – aparentemente pequeno - aparelho privado de contra-hegemonia, com uma atuação que complexifica as lutas em torno da lei – e seus possíveis reflexos na construção de noções de legalidade, legitimidade e justiça - ao tensionar para materialização e reconhecimento de direitos na ossatura institucional favoráveis aos trabalhadores rurais que assessora.

Assim, sem desconsiderar as funções classistas do

Estado, seria equívoco encará-lo como um simples instrumento da classe dominante. Como evidencia Mendonça, referindo-se ao conceito gramsciano, o Estado “[…] não deve ser pensado como organismo próprio da classe dominante. Ele deve representar uma expressão universal, de toda a sociedade, incorporando até mesmo as demandas e interesses dos grupos subalternos, mesmo que deles extirpando sua lógica própria” (MENDONÇA, 2014, p. 34). Essa observação é importante porque, a nosso ver, complexifica a funcionalidade da lei e, nesse caso, as próprias lutas populares de reivindicação e contestação do direito, uma vez que, ao invés de se apresentar como expressão dos interesses da classe dominante, está inserida no jogo de equilíbrios instáveis na mediação dos interesses divergentes no seio do Estado. Isso não torna o processo de disputas em torno da lei mais ou menos favorável às classes dominadas – a exemplo das possibilidades do papel desempenhado pelas assessorias jurídicas -, mas indica dinamicidade e ambiguidade, pois, mesmo as conquistas mutiladas pela dominação de classe inscrevem as marcas das lutas e das resistências populares na materialidade do Estado (POULANTZAS, 2000, p. 71). Nossa proposição, portanto, parte do reconhecimento de que os interesses divergentes no seio do Estado implicam-se de uma maneira desigual e contraditória, de modo que a atuação das assessorias jurídicas populares não se circunscreve nas extremidades entre os interesses das classes dominantes e dominadas, mas no seu centro. Se nos voltamos para essa condensação e não apenas para as polaridades, talvez, identifiquemos em uma ação combativa e legalizada, tal 869

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como o desforço incontinenti citado acima, não somente uma tática, mas também a expressão de uma prática resultante de mediações políticas e informada por uma visão de mundo – uma vez que o direito, como bem lembra Bourdieu, "faz o mundo social, mas com a condição de se não esquecer que ele é feito por este [...]” (BOURDIEU, 2010, p. 237).

2 A atuação histórica da AATR e a disputa pela hegemonia Fundada num contexto de intensos conflitos no campo agrário baiano, período também de mobilizações sociais que impulsionaram a transição para abertura democrática, a Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais em mais de trinta anos de existência coincide muitos pontos de sua trajetória com o curso da questão agrária baiana nesse período. Nessa atuação, constituiu-se historicamente como uma entidade de cunho político e jurídico para o assessoramento dos trabalhadores rurais do campo e suas organizações que, ao seu modo e a partir de seus antagonismos, revela uma forma de militância política vinculada aos pressupostos de transformação da realidade agrária desigual e excludente. A AATR é uma das primeiras experiências de assessoria jurídica popular de que se tem registro no Estado da Bahia e no Brasil e, certamente, a que tem uma trajetória mais longa nesse campo. Guarda também a especificidade, desde a sua fundação, que está inscrita na sigla do seu próprio nome - uma assessoria jurídica que atua em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, o que perpassa também pelo esclarecimento acerca dos direitos de uma maneira crítica. Nesse sentido, a atuação dessa entidade não se restringe à dimensão jurídica, mas reivindica também uma dimensão social, uma dimensão política, uma dimensão democrática, uma dimensão éticopedagógica e uma dimensão interdisciplinar e multiprofissional (AATR, on line). As condições que colaboraram para o surgimento da AATR dizem respeito ao clima de intensificação da violência no campo baiano, nas décadas de 1970 e 1980, quando a entidade é fundada, inicialmente, para defender os interesses de advogadas e advogados4 que atuavam nos conflitos de terra, vulneráveis às ações de violência de grileiros e pretensos proprietários.

4 Em 1977, foram assassinados dois advogados populares em razão das lutas pela terra. O advogado Eugênio Lyra, em Santa Maria da Vitória, na região Oeste do estado, e o advogado Hélio Hilarião, em Senhor do Bonfim, região Centro Norte. . Acesso em 08 de agosto de 2016. Esses fatos foram marcantes para a fundação da entidade, de modo que a referência à Eugênio Lyra ainda se mantém viva, dentre outros, na "Semana da Terra Eugênio Lyra", um evento organizado anualmente pela entidade com debates e proposições sobre temas candentes da questão agrária da Bahia, que reúne entidades parceiras e movimentos sociais do campo.

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Posteriormente, diante das ameaças, da violência usada para expulsar os posseiros da posse da terra, sobretudo na região nordeste do estado, a AATR passa de uma entidade de classe para uma associação de defesa dos trabalhadores rurais a partir de um projeto político que, ainda hoje, faz dessa entidade mais do que uma organização de advogados e advogadas, mas “[...] uma forma de militância política, um estado de espírito” (AATR, on line). Nesse sentido, os membros da AATR não se apresentam como advogados e advogadas na acepção estritamente profissional5 do termo, mas como advogados e advogadas populares que têm um compromisso de classe, particularmente, com os interesses dos trabalhadores rurais da Bahia. Na sua longa trajetória, a AATR se tornou uma entidade referenciada, dentro e fora da Bahia, na sociedade política e na sociedade civil, que se evidencia, por exemplo: através do seu reconhecimento pela Lei n.º 7.289/98 como uma associação civil de utilidade pública estadual; no conjunto das assessorias jurídicas populares no Brasil6 por ter sido pioneira nesse campo; bem como entre os trabalhadores rurais e comunidades tradicionais que assessora a partir de uma atuação que envolve a defesa judicial e administrativa nos conflitos pela posse da terra e pelo território, a formação política e jurídica desses sujeitos e a incidência nas disputas em torno das políticas agrária e fundiária no Estado da Bahia. A posição referenciada da AATR pode ser reconhecida também na abrangência dos seus eixos de atuação: Educação Jurídica e Popular, Desenvolvimento, Trabalho e Justiça Ambiental, Reforma Agrária e Direitos Territoriais, Políticas Públicas e Participação Popular; na sua produção teórica: revistas, pareceres, artigos de opinião; nos eventos que promove: Semanas da Terra, com temáticas que visam elaborar e propor em torno da questão agrária, as Quintas Inquietantes, organizadas por estagiários da entidade sobre uma variedade de temas; na diversidade e abrangência de comunidades e grupos que assessora: posseiros, comunidades de fundos e fechos de pasto, comunidades negras e quilombolas, comunidades de pescadores artesanais, indígenas e suas organizações de base. Na sua dimensão pedagógica, AATR parte do princípio de que “o Jurídico e o Político são indissociáveis, ou seja, o trabalho de assessoria não se limita à técnica, mas a uma ação

5 Como bem lembra Gramsci, "[...] a mediação profissional dificilmente se separa da mediação política" (GRAMSCI, 2000, v. 2, p. 23) e isso importa para não nos iludirmos em relação a outras formas de mediação profissional que seriam supostamente "desinteressadas". 6 Muitos membros da AATR fazem parte da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP).

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ampla e permanente junto ao movimento popular, cujas lutas políticas passam pelo discurso e conquista de direitos”7. Desse modo, o assessoramento jurídico promovido pela AATR se desenvolve a partir de postulados que primam pela autonomia e pela interface com os saberes dos trabalhadores rurais, em convergência com o programa Juristas Leigos, implementado desde 1992, que tem propósito de socializar os conhecimentos sobre os direitos e instrumentalizar os grupos populares nas suas lutas8. Nessa perspectiva, […] o Direito e a restrição de seu conhecimento constituem mecanismos efetivos do aparelho de repressão das elites dominantes e do próprio estado sobre os movimentos e classes populares. Assim, a educação jurídica busca promover o acesso a informações sobre direitos e estímulo à sua reflexão crítica, quebrando o monopólio acadêmico do conhecimento jurídico.9

Com isso, pressupomos que os pilares da assessoria jurídica popular promovida pela AATR, em especial, o caráter formativo e pedagógico que orienta sua atuação nos conflitos agrários baianos, se relaciona com o sentido gramsciano de disputa pela hegemonia, no sentido da necessária direção intelectual e moral na luta pelo socialismo, posto que, nesta sociedade, as classes não estão segregadas nem na reprodução material, nem no campo político e ideológico. Assim sendo, para Gramsci, a classe dominante é dirigente no Estado não somente porque detém os meios de produção econômica, mas porque exerce o consenso político e cultural no conjunto da sociedade civil, que decorre de uma ampliação do Estado através dos aparelhos privados de hegemonia. Nesse sentido, é acertado dizer que dominação burguesa modela as formas de agir e conceber no mundo, em um processo de construção e manutenção da hegemonia frente às classes subalternas. Assim, os aparelhos privados de hegemonia cumprem um papel fundamental na formação da opinião pública e na propagação de uma

7 AATR. Disponível em: Acesso em 22 de dezembro de 2013. 8 Um Jurista Leigo não atua em processos judiciais substituindo as funções de um advogado em razão das exigências formais do campo jurídico, que separa os profanos e os profissionais (BOURDIEU, 2010). Isso revela outra face, relacionada aos obstáculos para a classe trabalhadora fazer-se Estado. A esse respeito, Poulantzas desenvolve uma análise muito original sobre a relação desses obstáculos com a divisão entre o trabalho manual e intelectual, a começar pelo ritual da materialidade do Estado pelos registros escritos, somado ao recrutamento profissional com exigências de saberes especializados, que não estão acessíveis à classe trabalhadora (POULANTZAS, 2000, pp. 51-60). 9 AATR. Disponível em: Acesso em 22 de dezembro de 2013.

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ideologia que se apresente como universal. Isso diz respeito ao terceiro momento das relações de força, pois Esta é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em “partido”, entram em confrontação e lutam até que uma delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano “universal”, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados (GRAMSCI, 2002, v. 3, p. 41).

Na linha do pensamento gramsciano, é sempre bom lembrar que nenhuma hegemonia está ilesa à contra-hegemonia que lhe opõe. Dessa maneira, mesmo que numa condição desigual, as classes populares também contam com organizações comprometidas com seus interesses e, diferentemente das organizações burguesas, não atuam no sentido de acomodar e camuflar as lutas de classe. Obviamente que o êxito dessas lutas no campo da disputa por uma nova hegemonia perpassa necessariamente pela superação da condição de dispersão e fragmentação dos diferentes grupos e setores subalternos, que não dispõem dos mesmos instrumentos da classe dominante para se fazer Estado. Desse modo, ainda na tentativa de entender essas lutas por uma abordagem gramsciana, Antes de tudo é preciso interrogar sobre a natureza dos movimentos populares, como eles próprios se concebem. Se os movimentos se concebem como uma ação coletiva com objetivos particulares que se esgotam ou se resolvem em si próprio, estaremos no campo do corporativismo, uma ação coletiva no contexto da sociedade civil burguesa, da hegemonia burguesa "democrática". Mas se os movimentos se percebem como um momento de construção do povo/nação, de unificação das classes subalternas, de realização de uma reforma moral e intelectual, de uma nova hegemonia que se configura na edificação de um novo Estado, então a tradução de Grasmci se concretiza na práxis (DEL ROIO, 2011, p. 81).

Por essa leitura, a atuação da AATR nos conflitos agrários baianos, para se expressar enquanto luta contra-hegemônica, deve ser funcional no processo organizativo e formativo dos trabalhadores que assessora para além dos resultados jurídicos imediatos sobre a permanência na terra. Outrossim, o histórico de atuação da AATR guarda correlação com aspectos significativos das transformações do Estado brasileiro e suas implicações para as lutas sociais do campo nas últimas quatro décadas. Por uma breve retrospectiva, é possível reconhecer a existência de elementos de ruptura e permanência no contexto social, político e jurídico que possivelmente implicam em características da atuação da assessoria jurídica popular. Desse 873

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modo, a AATR se apresenta como um foco privilegiado para análise que nos propomos em razão da sua abrangência, da posição que ocupa nos conflitos agrários baianos, bem como por seu longo histórico de atuação, que perpassa por diferentes conjunturas sociais, políticas e jurídicas – de 1982 aos dias atuais. Em síntese, iremos refletir sobre o lugar, por excelência, da luta por direitos através da lei na disputa pela hegemonia.

3 A atuação da AATR no Estado Ampliado: uma reflexão sobre os conflitos de classes sob a mediação da lei A complexidade da luta por direitos não pode ser bem apreendida se for tratada de uma maneira simplificadora, tal como sugerem determinadas leituras: seja pelo viés instrumental, que crê ser o Estado um instrumento puro e simples da classe dominante, seja pelas abordagens que extraem desse domínio o caráter de classe para cristalizá-lo no império da imparcialidade. Nesse ponto, para escapar dessas concepções, parece profícuo compreender essas lutas por uma matriz de leitura que revela um campo mais controvertido. Com isso, procuramos entender como os grupos subalternizados, ainda que com mais empecilhos, tentam se fazer Estado ao materializar a representação de seus interesses na ossatura institucional, tal como sugere a atuação da AATR nos conflitos agrários baianos. Dessa maneira, o Estado visto como uma relação, que é uma concepção de Estado Ampliado, nos oferece uma reflexão mais profunda e coerente sobre sua dinâmica. Nesse jogo de forças, o Estado não pode ser reduzido à sua estrutura jurídico-formal como se detivesse uma autonomia absoluta frente aos interesses das classes sociais, como também não se apresenta pela coerção pura e simples para salvaguardar os interesses dos grupos dominantes, uma vez que a relação do Estado com as classes perpassa pela construção do consenso na sociedade civil. Dada a natureza imbricada entre a sociedade civil e o Estado distinção no plano metodológico, posto que na realidade fatual se identificam -, Gramsci supera essa dicotomia, para encará-lo no seu sentido ampliado, como uma relação entre um Estado coerção e os aparelhos privados de hegemonia - sindicatos, dos partidos, da mídia, dentre outros. Na definição gramsciana, a sociedade política é o “aparelho de coerção estatal que assegura 'legalmente' a disciplina dos grupos que não 'consentem', nem ativa nem passivamente, mas que é constituído por toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na

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direção [nos aparelhos privados de hegemonia], quando fracassa o consenso espontâneo” (GRAMSCI, p. 1385, apud COUTINHO, 2007, p. 130).

Assim, nunca é demais lembrar que a classe dominante é dirigente no Estado não somente porque detém os meios de produção econômica, mas porque exerce o consenso político e cultural no conjunto da sociedade civil. Isso atravessa e constitui todo o conjunto da vida social10e, com isso, o próprio direito, pois, O direito não exprime toda a sociedade (pelo que os violadores do direito seriam seres anti-sociais por natureza, ou deficientes mentais), mas a classe dirigente, que “impõe” a toda a sociedade aquelas normas de conduta que estão mais ligadas à sua razão de ser e ao seu desenvolvimento. A função máxima do direito é esta: pressupor que todos os cidadãos devem aceitar livremente o conformismo assinalado pelo direito, de vez que todos podem se tornar elementos da classe dirigente; no direito moderno, portanto, está implícita a utopia democrática do século XVIII (GRAMSCI, 2002, v. 3, p. 249).

Essa leitura de Gramsci não esvazia a centralidade que o direito ocupa nos processos de disputa pela hegemonia, que passa, necessariamente por uma “reforma intelectual e moral” na construção do socialismo. Esse entendimento decorre da apreensão gramsciana sobre o direito na sua função educativa e formativa ao dizer que este é: “o aspecto regressivo e negativo de toda a atividade positiva de educação cívica desenvolvida pelo Estado” (GRAMSCI, 2002, v. 3, p. 28). Com isso, no pensamento gramsciano, o direito não é encarado como um dado senão na própria constatação de que a disputa em torno de uma nova hegemonia, sem dúvida, passa pela construção de um outro direito, de vez que a superação do modelo social, ancorado na divisão de classes, não vai ocorrer em um momento dado, imediato, mas é parte de uma luta contínua porque, afinal, “[...] a humanidade se propõe sempre apenas os objetivos que pode alcançar, pois, bem vistas as coisas, vemos sempre que estes objetivos só brotam quando já existem ou, pelo menos, estão em gestação as condições materiais para sua realização” (GRAMSCI, 2002, v. 3, p. 36)11. Nessa perspectiva, compartilhando da concepção de Nicos Poulantzas12 (1977), conceber o Estado como um campo de disputas das classes sociais em conflito significa 10 Isso faz lembrar uma afirmação de Bourdieu quando destaca que “o selo de universalidade”, que é conferido ao direito, reforça um ponto de vista sobre o mundo social que em nada de decisivo se opõe ao ponto de vista dos dominantes (BOURDIEU, 2010, p. 245). 11 Isso remete ao pensamento marxiano na obra "O 18 de brumário de Luís Bonaparte". Ao se referir ao 2 de dezembro de 1851, quando ocorre o golpe de Estado de Luís Bonaparte na França, Marx aponta para uma análise fundamental: ao encararmos certos acontecimentos como eventos inusitados, nas palavras de Marx, "um raio em um céu sem nuvens", não devemos perder de vista as condições objetivas e o processo histórico precedente (MARX, 2011, pp. 25-37). 12 Coutinho destaca a influência de Gramsci no pensamento de Poulantzas depois que esse supera a fase do formalismo estruturalista de Althusser e elabora uma concepção de Estado enquanto “'condensação material de uma

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reconhecer que “o Estado concentra em seu seio, e de modo específico, não apenas as relações de forças entre as frações do bloco no poder, mas igualmente, entre estes e as classes dominadas” (POULANTZAS, 1977, p. 22). Por esse caráter relacional, todo o exercício do poder estatal é também a expressão das forças sociais em disputa . Em outras palavras, […] O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo (GRAMSCI, 2002, v. 3, pp. 41-42).

Na linha do pensamento de Gramsci, não podemos perder de vista que a luta dos subalternos no domínio da lei tem eficácia porque responde, mesmo que parcialmente, à efetivação de direitos. É parte do jogo de integração das massas na legitimação do modelo social, que não poderia ser eficaz apenas com o uso da força. Como lembra Mendonça, Sem discordâncias quanto ao óbvio, o que se pretende é salientar o quanto os conceitos de dominação e hegemonia, fundamentais a uma dada visão do Estado (Gramsci, 1988), ao pressuporem em sua gênese coerção e consenso, sugerem um processo altamente dinâmico de construção e exercício, cujos canais de expressão - no nível da sociedade civil e da sociedade política – não dirimem o conflito e a discordância, num jogo de pressões e contrapressões que não se limita, apenas, às relações entre as diversas classes, porém no bojo delas (MENDONÇA, 1997, p. 44-45).

Nesse exercício combinado da coerção e do consenso, a lei tem um papel fundamental por se apresentar como um caso exemplar de como não se pode encarar essa dinâmica sob uma lógica binária, ou seja, reforçando aquilo que Nicos Poulantzas denominou binômio repressãoideologia, violência-consenso (POULANTZAS, 2000, p. 76). Para esse teórico marxista, é equívoco separar a lei da ordem repressiva e da organização da violência exercida pelo Estado. Isso é importante para complexificarmos os motivos pelos quais o direito é eficaz e sobre a maneira como constrói a sua legitimidade frente aos diversos interesses que sanciona, sob certos aspectos incorporando as lutas e as conquistas dos dominados. Como aponta algumas análises, a relação das massas com o poder e o Estado, no que se chama especialmente de consenso, possui sempre um substrato material. Entre outros motivos, porque o Estado, trabalhando para hegemonia de classe, age no campo de equilíbrio instável do compromisso entre as classes dominantes e dominadas. Assim, o Estado encarrega-se ininterruptamente de uma série de medidas materiais positivas para as massas correlação de forças entre classes e frações de classe, tal como esta se expressa, sempre de modo específico, no seio do próprio Estado'” (COUTINHO, 2007, p. 187).

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populares, mesmo quando estas medidas refletem concessões impostas pela luta das classes dominadas (POULANTZAS, 2000, p. 29 – grifos do autor).

Em vista disso, para compreender as decorrências e os reflexos da luta por direitos a partir da atuação da AATR nos conflitos agrários baianos, percorreremos um processo complexo e ambíguo, que são as lutas sociais no seio do Estado. Nesse sentido, a AATR incide nos conflitos agrários baianos para assegurar a permanência dos trabalhadores/as rurais na posse de suas terras, ao tempo em que disputa concepções sobre formas de uso (individual e coletivo) e de relação com a terra que conflita com a (naturalizada) noção liberal e hegemônica de propriedade privada que reduz a terra a uma mercadoria, passível à especulação e expropriação. Em outras palavras, disputa o próprio sentido sobre a história - na expressão de Holston (1993) - para que a historicidade de formas de propriedade distintas da propriedade mercantil se afirme no presente. A nosso ver, isso perpassa por concepções de legalidade, legitimidade e justiça, que são disputadas no processo de lutas com resultados imprevisíveis, tendo em vista, que não se restringe a um simples jogo de causas ganhas e perdidas, mas da elaboração e redefinição de uma visão de mundo, visto que, como lembra Poulantzas, a luta em torno da lei se situa num “lugar cuja posse imaginária tem conseqüências reais sobre os agentes” (POULANTZAS, 2000, p. 82).

Considerações finais Nesse trabalho, tentamos expor alguns elementos sobre a possibilidade de analisar a atuação da Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais da Bahia nos conflitos agrários baianos a partir do referencial teórico e metodológico gramsciano. Como se trata de uma proposição de pesquisa, os elementos apresentados ainda são insuficientes para reconhecer a ação política dessa entidade que advoga – no seu sentido amplo – na luta dos trabalhadores rurais vulneráveis às ações de violência e ameaças à permanência na posse da terra individual e coletiva, bem como sobre a incidência dessas lutas na materialidade institucional do Estado restrito. Feitas essas considerações, entendemos que o reconhecimento sobre a maneira como a AATR, historicamente, atua nos conflitos agrários baianos, permite analisar a luta em torno da lei na sua complexidade, ao tempo em que favorece a compreensão da expressão das lutas

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sociais no seio do Estado, aqui, compreendido enquanto uma relação porque é “nessa condição que merece e deve ser estudado” (MENDONÇA, 1998, p. 94). Outrossim, a atuação da AATR perpassa tanto pela diversidade de conflitos no campo agrário baiano quanto pelas contradições presentes em cada período histórico, aspectos pelos quais não passa ilesa a própria entidade no processo conflitivo de disputa dos interesses divergentes no seio do Estado, particularmente relacionados aos conflitos pela posse da terra envolvendo trabalhadores rurais em confronto com pretensos proprietários e projetos desenvolvimentistas. Nesse âmbito, a lei pode representar mais do que um instrumento para os interesses conflitantes e comportar um aspecto pedagógico e formativo com interferências nas noções de legalidade, legitimidade e justiça que os sujeitos compartilham a partir de uma dinâmica processual, antagônica e complexa. Assim, a lei pode ser vista do ponto de vista da dominação de classe, quando exerce o disciplinamento e enquadra as lutas no seu regramento, mas, por outro lado, se concebemos que as diferentes classes, em graus diferenciados, também colaboram na definição dos seus termos e na disputa pelo seu significado, complexificamos a sua funcionalidade. Faz-se necessário, portanto, encarar a lei como uma síntese das diversas disputas orientadas pelos mais variados interesses sociais, ainda que a correlação de forças seja desigual. Dessa maneira, para compreender o lugar da AATR nas disputas contra-hegemônicas é preciso inseri-la no processo histórico e no conjunto do campo das lutas, especificamente, em torno da tensão que procura romper as cercas desse grande latifúndio chamado Brasil. Referências BOURDIEU, P. A Força do direito. In: BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, pp. 209-254, 2010. COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. DEL ROIO, M. A tradução histórica e política de Gramsci para o Brasil. In: SEMERARO, G.; OLIVEIRA, M. M. de; SILVA, P. T. da; LEITÃO, S. N. (Orgs.). Gramsci e os movimentos populares. Niterói, RJ: Editora da UFF, 2011, pp. 69-82. GRAMSCI, A. Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 2. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henrique e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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________. Breves notas sobre a política de Maquiavel. In: GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. v. 3. Edição e tradução de Carlos Nelson Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henrique e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. HOLSTON, J. Legalizando o ilegal: propriedade e usurpação no Brasil, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n° 21, ano 8, fevereiro de 1993. MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Trad. e notas Nélio Schneider; prólogo Hebert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. MENDONÇA, S. R. de. Agricultura, poder e estado no Brasil: um projeto contra-hegemônico na Primeira República. In: MENDONÇA, S. de; MOTTA, M. (Org.). Nação e Poder: as dimensões da História. Niterói: EDUFF, 1998, pp. 93-125. ________. O Ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec, 1997. ________. O Estado Ampliado como Ferramenta Metodológica. Marx e o Marxismo, v.2, n.2, pp. 27-43, jan/jul 2014. POULANTZAS, N. O Estado, o poder e o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000. _____________. As Transformações atuais do Estado, a crise política e a crise do Estado. In: POULANTZAS, Nicos (org.) O Estado em crise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977.

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A PLATAFORMA DEMOCRÁTICA E A TROCA DE TECNOLOGIAS POLÍTICAS: a formação das classes dominantes latino-americanas para as contrarrevoluções democráticas (2007-2016)

Diego Paulo1

RESUMO Em 2007, foi lançada a “Plataforma Democrática”, iniciativa da qual participa o Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC) com objetivo autoproclamado em seu sítio virtual de “exportar a democracia” para a América Latina. Para alcançar a meta, a organização se articula com cerca de trinta instituições do subcontinente, entre universidades, centros de pesquisa e ONG’s. Promove conferências com intelectuais, governantes e empresários. Seus membros realizam também intervenções na grande mídia latino-americana, notadamente de rádio e TV; editam livros, revistas, jornais, etc. Os produtos da Plataforma Democrática, que se multiplicam desde seu lançamento até hoje, adotam duas temáticas centrais. A questão da democracia, clara já no título, e da liderança regional brasileira. No primeiro caso, trata-se de volumosa discussão sobre um modelo de regime político que assegure estabilidade política e desenvolvimento. Já no segundo, a liderança do Brasil na América Latina é, ao mesmo tempo, discutida e projetada. Dessa forma, por conferências, publicações e intervenções midiáticas, a Plataforma Democrática se espraia pela região, levando sua mensagem a um número cada vez maior de pessoas. O objeto esboçado nos coloca algumas questões. Quem paga a conta de uma estrutura desse porte? Que democracia deve ser “exportada”? Não nos causa surpresa constatar que seu maior financiador é o capitalismo brasileiro e o internacional a ele associado. Ganha novo sentido, em tal perspectiva, a busca pela tal estabilidade política. A hipótese central de nosso trabalho, assim, pode-se sustentar. Parece-nos que a Plataforma Democrática busca replicar em solo latino-americano a tecnologia democrática aprendida pelas classes dominantes desde os anos da redemocratização brasileira, recriando lá fora o solo social que nos limites brasileiros tornou possível o avanço dos grandes grupos econômicos que investem na iniciativa.

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Doutorando em História pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF). E-mail: [email protected]

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No dia 28 de novembro de 2012, na sede do Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC), em São Paulo, Jorge Gerdau, presidente do conselho de administração do Grupo Gerdau, tomou a palavra em evento que debatia a “liderança do Brasil na América Latina”. O empresário tinha tempo reservado para versar sobre a integração latino-americana na perspectiva de um capitalista brasileiro. Iniciou sua fala demonstrando pesar. Uma preocupação em especial lhe tirava o sono: sentia falta de previsibilidade política que permitisse planejar investimentos de longo prazo no continente. O lamento do empresário transparecia a preocupação com seus capitais. A plateia composta por outros empresários, tecnocratas e governantes assentia compreensiva. Gerdau falou em uma das conferências realizadas pela “Plataforma Democrática”, iniciativa do Instituto Fernando Henrique Cardoso e do Centro Edelstein que objetiva “promover a democracia nos países da América Latina”.2 Criado em 2007, o projeto tem adquirido contornos robustos e um alcance cada vez maior. Já se articula a mais de 30 instituições da América Latina, entre universidades, centros de pesquisas e ONG’s3. Além de conferências presenciais, a iniciativa se insere na grande mídia latino-americana e em espaços literários. Já não é raro encontrar em grandes livrarias volumes estampados com o selo da Plataforma. O projeto ainda publica revistas científicas digitais, jornais e um curioso “Informe Cuba”, que tem como intenção acompanhar a situação política da ilha. Em números mais precisos, desde 2007, a organização já promoveu cerca de 150 eventos – entre palestras, entrevistas, debates. Os vídeos destes encontros estão disponíveis em sítios virtuais da iniciativa e das fundações parceiras. O endereço eletrônico da Plataforma Democrática também fornece acesso aos demais produtos vinculados à iniciativa. Assim, em pesquisa prévia, catalogou-se 4184 artigos de diversos autores disponíveis no site. Redigidos especificamente por membros do projeto, há 110 títulos disponíveis para download.

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http://www.plataformademocratica.org/QuemSomos.aspx (acessado em 20/09/2015 às 23:32) São elas: na Argentina, Universidad Torcuato di Tella, Universidad de San Andrés (MAPP e MAEP), Cadal, Cippec, Red de Acción Politica, Universidad Nacional de San Martin (CESC e Ciedal); na Bolívia, Instituto para la Democracia; no Brasil, FGV Direito Rio, Fundação João Pinheiro, IETS, Ipespe, Viva Rio; no Chile, Cieplan, Universidad Diego Portales; na Colômbia, Universidad de los Andes (DCP e Ceper), Fundación del Rosário (CEPI), Fundación Seguridad y Democracia; Costa Rica: Secretaria General de Flacso; Equador: Programa de Estudios Politicos de Flacso; Guatemala: Universidad Rafael Landivar (Ingep), Doses; México: Cide, Itam, Unam (SCS), Fundación Ethos; Peru: Instituto de Estudios Peruanos, Cisepa: Escola de Gobierno de PUC; Uruguai: Instituto de Ciência Política; Venezuela: Instituto Venezolano de Estudios Socialyes y Politicos.

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Ainda sobre o corpus documental, destaca-se uma versão em português do Journal of Democracy, publicação do National Endowment for Democracy, criado no governo Ronald Reagan para reunir defensores da democracia pela e para a iniciativa privada. Representando a “articulação estratégica entre o Estado norte-americano, os dois partidos dominantes, as empresas norte-americanas e a cúpula sindical”,4 o NED defende regimes políticos pautados pelos interesses do capital e pela incorporação à influência estadunidense. Segundo seu vicepresidente, a ideia é facilitar “o intercâmbio entre o setor privado e os grupos democráticos no exterior”, a fim de “encorajar o desenvolvimento democrático consistente com os interesses dos Estados Unidos”.5 Agindo globalmente, o NED financia partidos, think tanks, ONG’s, etc. Nos anos 1990, financiou 1754 organizações, com o custo de 150 milhões de dólares.6 No Brasil, vincula-se inclusive à Plataforma Democrática, que traduz suas publicações. Nesse material, duas temáticas são centrais. A questão da democracia, clara já no título da iniciativa, é merecedora de ampla discussão dedicada a desenvolver um modelo que assegure “estabilidade” e “desenvolvimento” – noções ambíguas o bastante para incluírem o sentido que mais interessa aos partícipes da Plataforma Democrática. Outro interesse destacado é sobre o papel do Brasil na América Latina. A liderança do país na região é, ao mesmo tempo, debatida e projetada, inclusive com receituários para se avançar na questão. Assim, por conferências, publicações e intervenções midiáticas, a Plataforma Democrática se espraia pela América Latina, levando sua mensagem a um número cada vez maior de pessoas. Tal constatação nos dá a dimensão de seu alcance, bem como sua inserção na arena política regional. Emerge daí sua potencialidade na direção de políticas públicas e de reformas estatais, vistas como fiadoras da “estabilidade” e do “desenvolvimento” pretendidos. Sendo a Plataforma Democrática nosso objeto de estudo, tornam-se pontos incontornáveis, em primeira aproximação, a análise de seus quadros, isto é, quem atua na organização; do conteúdo de sua produção, o que é considerado como a democracia válida a ser 4

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MINELLA, Ary César. Construindo a hegemonia na América Latina. Democracia e livre mercado, associações empresariais e sistema financeiro. In: OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (orgs.) Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010. P. 257-258. LOWE, David. Idea to reality. A brief history of the National Endowment for Democracy, p. 8 Disponível em: http://www.ned.org/about/history (acesso às 10:37 de 12 de setembro de 2015) SCOTT, james. WALTERS, Kelly. Supporting de Wave. Western political foundations and the promotion of a global democratic society. Global Society. V. 14, n. , 2000. P. 243-244.

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“exportada”; e, paralelamente, uma pesquisa sobre financiamento do projeto. Essas três perguntas de caráter inicial permitem a formulação de questões e hipóteses mais sofisticadas, indispensáveis para reflexões ulteriores. Atuando na Plataforma Democrática figuram grandes empresários, políticos e profissionais das ciências humanas. No primeiro grupo, além do mencionado Jorge Gerdau, constam executivos de grupos como Vorotantim, BRF, dentre outros, não coincidentemente grandes investidores na América Latina.7 Entre os políticos, constam principalmente Fernando Henrique Cardoso e outros filiados do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), mas também políticos posicionados à direita do espectro político latino-americano, como Carlos Mesa, da Bolívia, Osvaldo Hurtado, do Equador. A última categoria listada, a dos profissionais das ciências humanas e sociais, é composta por gente como Demétrio Magnoli, Bernado Sorj, Sérgio Fausto, o próprio FHC, enfim, produtores de conteúdo científico que comungam de uma perspectiva liberal e conservadora, o que fica evidente nos produtos que, por intermédio da iniciativa analisada, veiculam. Tive o cuidado de não qualificar o último grupo como de “intelectuais”, preferindo, em vez disso, uma qualificação mais descritiva. Isso se deve à concepção de que todos os três tipos de quadros expostos são intelectuais, não no sentido usado no senso comum, mas na ótica sugerida por Antônio Gramsci.8 São, assim, operadores e organizadores da cultura, organicamente vinculados a uma classe social, que se favorece com a visão de mundo que difundem. Nessa perspectiva teórica, portanto, são intelectuais orgânicos, soldadores de um bloco histórico que articula interesses materiais e ideologia – naturalizando, pois, uma formação social histórica.9 É relevante ressaltar que outras personagens não listadas participam dos eventos sediados pela Plataforma Democrática. Refiro-me aos associados às organizações vinculadas ao projeto, acima expostas em nota. Articulada a instituições por quase toda a América Latina, a 7

Parte significativa dos patrocinadores da iniciativa figuram no ranking das 20 empresas brasileiras mais internacionalizadas pela América Latina desde pelo menos 2007, ano de criação da Plataforma Democrática. Ver: SPOSITO, Eliseu; SANTOS, Leandro. O capitalismo industrial e as multinacionais brasileiras. São Paulo: Outras Expressões, 2012 8 GRAMSCI, Antônio. Caderno 12 (1932). Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: ________. Cadernos do Cárcere. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. P. 15-21 9 Idem. Ibidem.

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Plataforma Democrática as instrumentaliza para promover seus eventos. Permite-se, de tal modo, que aqueles intelectuais orgânicos ajam no interior de diversos think tanks, influenciando seu público cativo e sua formação de quadros políticos. A Plataforma Democrática, por conseguinte, constitui um destacamento extremamente móvel, que ocupa as organizações da América Latina, agindo por seu intermédio. É Importante, nesse momento, frisar que entendemos as instituições associadas à Plataforma como aparelhos privados de hegemonia, tal qual conceituação de Gramsci. São, assim, elementos classistas da sociedade civil que organizam vontades coletivas, buscando generalização de projetos societários específicos, bem como concepções de realidade convenientes.10 Adotando tal perspectiva, a função da Plataforma Democrática ganha mais nitidez. Ela não teria o fito de ocupar as sociedades civis do subcontinente? Ora, em seus eventos, os intelectuais listados educam de acordo com os interesses classistas representados pela Plataforma. Se os aparelhos privados de hegemonia podem formar disposições adequadas à dominação classista, ocupá-los e veicular, por meio deles, aquela ideologia seria utilizá-los em benefício dos representados pela iniciativa brasileira. Identificar seus patrocinadores não é difícil. Por meio da prestação de contas do IFHC e do Centro Edelstein, disponível em seus sítios virtuais, torna-se possível catalogar os investidores e os recursos injetados na Plataforma Democrática11. A documentação revela significante participação de conglomerados brasileiros no custeio do projeto. Figuram entre os contribuintes o Grupo Gerdau, a Votorantim, Natura, Itautec, Ambev, dentre outras multinacionais brasileiras com investimentos na América Latina. Algumas delas, como a Gerdau e a Natura, chegam a deter mais de 70% do seu capital investido na região12. Posto isso, pode-se argumentar que a Plataforma Democrática serve aos capitalistas brasileiros. Além de intelectuais orgânicos, representantes dessas frações burguesas são patrocinadores da iniciativa. Sugerimos, pois, que a Plataforma Democrática age na América Latina ao sabor dos interesses da classe que a anima, como uma embaixada transnacional. Seria

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GRAMSCI. Antônio. Cadernos do cárcere, v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 244 http://www.ifhc.org.br/publicacoes/relatorios-de-atividades/ (acesso em 01 de setembro de 2016, às 19h53) 12 Fundação Dom Cabral, Ranking das Transnacionais Brasileiras 2010, p.10. Disponível em: HTTP://www.fdc.org.br/Documents/ranking_transnacionais_2010.pdf (consulta em 27 de setembro de 2015, às 20:29) 11

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um exemplo do que Virgínia Fontes qualificou de frentes móveis de ação internacional, isto é, organizações burguesas transnacionais de defesa da ordem do capital.13 De que modo se apresenta concretamente essa defesa? Ora, pela orientação de políticas públicas, função declaradamente assumida pelos think tanks que a sustentam e no site da própria iniciativa.14 Dessa forma, busca-se conformar na América Latina Estados para o capital brasileiro que assegurem a estabilidade política e o ambiente social propício ao desenvolvimento, atributos reclamados por Jorge Gerdau na conferência que abriu este trabalho. Tal objetivo é alcançável por meio da formação de quadros para atuar nas ossaturas estatais das nações hospedeiras daqueles investimentos, implementando, então, as reformas defendidas pela Plataforma Democrática. É por postular a sociedade política, o Estado restrito gramsciano,15 tanto atravessada pelas lutas de classes como lócus privilegiado da dominação que se identifica a nomeação de quadros formados pela Plataforma Democrática para o exercício de funções públicas como o avanço do projeto de burgueses brasileiros para a região. É por meio desses postos que se torna possível universalizar demandas particulares, transformando o que é originalmente de classe em interesse social. Tal observação conduz à relação entre capitalismo e democracia. Por suposto, assumimos que democracia é um regime historicamente determinado, portanto constituído pelas lutas de classes internas e externas. Nesse sentido, aventamos como hipótese que a forma democrática defendida pela Plataforma Democrática é adequada à reprodução do capitalismo por possibilitar a troca de experiências políticas e a organização das classes dominantes. Renato Lemos, em ensaio instigante, propõe que a contrarrevolução preventiva permanente seria um atributo da burguesia brasileira. A Plataforma Democrática, nessa perspectiva, seria um agente

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Dialogando com René Dreifuss (1986), Virgínia Fontes cunhou esse conceito para se referir às organizações interimperialista que surgem com o capital-imperialismo. Ver: FONTES, Virgínia. Brasil e o capital imperialismo. Teoria e História. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010, p. 112. 14 http://www.ifhc.org.br/instituto/missao/,http://www.centroedelstein.org.br/QuemSomos.asp, http://www.ifhc.org.br/wp-content/uploads/apresentacoes/1869.pdf (acessados em 02 de setembro de 2016, às 09h01) 15 Em Gramsci, o Estado é compreendido integralmente, isto é, como uma união orgânica entre as sociedades política – o Estado restrito – e civil, o conjunto de aparelhos privados de hegemonia. Diferentemente da tradição liberal, que afasta o Estado da sociedade, Gramsci os vincula, afirmando que tal separação em duas instâncias é meramente analítica, haja vista que na prática ambas se apresentam imbricadas, vinculadas. Debateremos mais sobre o ponto abaixo. Ver: GRASMCI, Antônio. Op cit. v. 1-

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dessa contrarrevolução com atuação em âmbito latino-americano, na medida em que organiza as classes dominantes do subcontinente16. É por essa perspectiva que devemos compreender a tal defesa da estabilidade política. Dito de outra forma, poderíamos dizer que o que se busca é a garantia para a reprodução da sociedade de mercado. O objetivo é sintetizado pela busca da coesão social – espécie de programa de conciliação de classes, de indisfarçável corte hegemônico. Mais uma vez, acordos sociais – como os previstos durante a construção da tal coesão – em uma sociedade de mercado têm o claro fito de segurança da ordem do capital. Estamos de frente, pois, a uma elaboração de regimes políticos e políticas de Estado que objetivam a defesa do capitalismo – no caso, com benefício claro às empresas brasileiras, mas no fundo favorável a qualquer capitalista. Evidenciam-se aqui, portanto, as potencialidades da democracia moderna para a reprodução das desigualdades inerentes à existência da propriedade privada dos meios de produção, e, por conseguinte, da sociedade de classes17.

A busca pela coesão social na democracia: Como vimos, uma das preocupações que balizam as “reformas de Estado” pretendidas pela Plataforma Democrática é a estabilidade democrática necessária para a reprodução da ordem vigente, com todas as características conhecidas. É nesse sentido que o tema da coesão social na democracia se torna importante para a organização e para a nossa pesquisa - na medida em que este é um dos fundamentos da ação política da Plataforma. A importância da coesão social para a Plataforma Democrática e seus partícipes se evidencia pela atenção que o objeto recebe. No sítio eletrônico da iniciativa, há um dossiê sobre o tema, contendo um vídeo do debate realizado no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em 2007; textos escritos por colaboradores da Plataforma e outros, coletados por seus diretores a disposição de estudiosos. Finalmente, há também um livro de síntese publicado sobre o assunto,

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LEMOS, Renato. Contrarrevoluçao, ditadura e democracia no Brasil. In: SILVA, Carla Luciana; CALIL, Gilberto; DA SILVA, Márcio Antônio Both (orgs.). Ditaduras e democracias. Estudos sobre poder, hegemonia e regimes políticos no Brasil (1945-2014). Porto Alegre: FCM Editora, 2014. P. 71-86. 17 Sobre o tema, Ellen Wood faz uma instigante análise histórica em: WOOD, Ellen. Democracia contra o capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.

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de autoria de Bernardo Sorj em conjunto com Danilo Martuccelli e financiado pela União Europeia e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O livro constituiu nossa fonte de pesquisa prioritária desta seção. Nele, os autores apresentam um anexo com reflexões sobre o conceito de coesão social e sua adequação à realidade política e histórica da América Latina – o que interessa diretamente à nossa reflexão. De acordo com Martuccelli e Sorj, esse conceito foi elaborado pela União Europeia a partir de 1990 em um sentido “normativo-evocativo”, isto é, “que busca definir um horizonte desejável para a sociedade” (SORJ E MARTUCCELLI, 2008, p. 287). Para os autores, O conceito de coesão social é definido como “the capacity of a society to ensure the welfare of all its members, miimizing and avoiding polarization. A cohesive society is a mutually supportive community of free individuals pursuing these commom goals by democratic means”(SORJ e MARTUCCELLI, 2008, p. 287).

A ideia da coesão social, claro está, tem como fundamento a busca por estabilidade política, mesmo em conjunturas de transformações sociais. Nesse sentido, as orientações para as políticas públicas que buscam assegurar a coesão social devem dialogar continuamente com as particularidades regionais, bem como conter alguma plasticidade que permita o conflito regulado e mesmo algumas mudanças, ainda que necessariamente acidentais. Dessa forma, os autores se impuseram o esforço de pensar um padrão de coesão tipicamente latino-americano, divergente dos maiores modelos existentes nas ciências políticas, a saber, o europeu, lastreado em uma sociedade de bem estar “pretérita”; e o estadunidense, cujo motor gregário é a “ideia de liberdade individual”. Os autores não acreditam que nenhum modelo possa ser transferido mecanicamente para a realidade latino-americana. O problema da prática fica especialmente claro quando experimentamos moldar as políticas públicas latino-americanas pelo modelo europeu. Para Sorj e Martuccelli, dado não existirem por aqui condições históricas e sociais para reformas inspiradas nos welfare states, qualquer planejamento social nesse sentido já seria natimorto. Deve-se, pois, buscar uma forma diferente para o conceito, ainda que o conteúdo se mantenha muito similar. Ora, com isso se quer dizer que a estratégia permanece a mesma da verficada pela cosão social do welfare state, mas a tática precisa ser revista, em reelaboração ativa com políticos, empresários e intelectuais da América Latina, tornando-a mais orgânica.

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A orientação aponta para a construção de um modelo propriamente latino-americano – o que se alinha adequadamente à proposta da Plataforma Democrática, qual seja a de exportar um tipo de democracia para a região. Ambos, democracia e modelo de coesão social, devem ser suficientemente elásticos para incluir a possibilidade de conflito e sua resolução sem contestação de suas bases. A busca é por estabilidade política duradoura, sendo necessário para tanto absorver as oposições. Assim, a coesão social pretendida pela iniciativa visa à preservação da forma democrática defendida pela Plataforma Democrática, acima discutida. No pensamento dos adeptos da iniciativa, isso se alcança “por meio de processos e mecanismos que podem debilitar ou fortalecer a crença nos valores e práticas democráticas como forma de resolver os conflitos sociais e avançar o bem comum” (SORJ e MARTUCCELLI, 2008, p. 291). Por conseguinte, A coesão social nos tempos modernos não pode ser dissociada da mudança e do conflito social. As sociedades modernas estão em mutação constante, o que implica que elas geram permanentemente processos de desintegração das formas de sociabilidade, abrindo lugar ao mesmo tempo para novos mecanismos de integração nos quais a participação e as demandas dos cidadãos desempenham um papel central. Na América Latina, a análise social deve portanto incluir compreensão dos processos de mudança e conflito social, assim como de seus mecanismos de expressão e resolução (SORJ e MARTUCCELLI, 2008, p. 291)..

O raciocínio nos leva à questão de uma oposição funcional, que serve de aglutinadora de opositores nos marcos da ordem. A coesão social buscada pela Plataforma Democrática deve conter, assim, um espaço legítimo e reconhecido para os antagonismos, preservando a dinâmica dos conflitos sociais, sabidamente inexpugnáveis em uma sociedade de classes. As contradições, porém, devem ser mantidas nos limites aceitáveis à “integração democrática”, o que no limite exclui toda ação política revolucionária. Da forma como entendemos, o documento oferece não apenas um horizonte de expectativa desses intelectuais orgânicos, mas também meios de se atingir a meta. Estes se evidenciariam quando os autores versam sobre as limitações das políticas públicas “tradicionais” na redução da fertilidade insurrecional no solo social, por meio do ataque às mazelas nos bolsões de miséria. Nesse sentido, reformas estruturais são necessárias a fim de diminuir a potencialidade explosiva das contradições no capitalismo – ainda que não se avance muito na caracterização dessas “reformas”.

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Este, porém, não é o ponto central das orientações da Plataforma Democrática. A atenção fundamental recai sobre os elementos políticos e culturais que permitem a instrumentalização daquela “anomia” por “agentes antidemocráticos”. Assim, atentar aos modelos políticos formulados na América Latina é fundamental para compreender a realidade política do continente, pois se as condições socioeconômicas estruturais podem conduzir ao surgimento de tendências antidemocráticas, elas só se realizam através da presença de modelos políticos concretos, que são promovidos por atores precisos. Não podemos assim esquecer que, embora a pobreza e a desigualdade social sejam políticas, o que destrói as democracias em última instância são os movimentos, as ideologias e os líderes políticos antidemocráticos – que mobilizam e polarizam a imaginação e o debate político.

(SORJ e MARTUCCELLI, 2008, 293). Aqui cabe ressaltar que, para a audiência da Plataforma Democrática, seus intelectuais e financiadores, não resta qualquer dúvida dos “movimentos, ideologias e políticos” qualificáveis como “antidemocráticos”. Uma breve mirada sobre a produção da iniciativa mostra a preocupação em atacar os governos de Bolívia, Equador e Venezuela, preferencialmente, vistos como bastiões do “autoritarismo tipicamente latino-americano”. Fica evidente, pois, que a defesa dos valores democráticos recobre o combate a alternativas políticas antissistêmicas. E os meios de se conter no nascedouro qualquer movimento, ideologia e político desviante é o avanço sobre os meios de reprodução das tendências autoritárias. Chega-se, aqui, à proposta mais destacada da Plataforma Democrática para assegurar a coesão social: uma nova gestão do que se poderia chamar de produção de bens simbólicos. Entendemos que não se enfrenta a coesão social somente com propostas de políticas públicas mais adequadas ou eficazes – sem dúvidas centrais, e que não deixamos de mencionar neste trabalho -, mas supõe também questionarmos sobre os mecanismos de mobilização simbólica e política dos cidadãos, que são uma das condições de possibilidade (ou impossibilidade) das políticas públicas e reformas do Estado (SORJ e MARTUCCELLI, 2008, 293-294).

Eis, portanto, uma das diretrizes da atuação política da Plataforma Democrática: o avanço sobre os mecanismos de mobilização simbólica e política, a fim de expurgá-los de tendências antidemocráticas. É essa proposta que circula pelos nós de atuação da Plataforma Democrática, que reproduzem a fala de seus intelectuais orgânicos. Pelo controle das interpretações da realidade, tem-se a tentativa de oferecer aos financiadores da Plataforma, no Brasil e na América Latina, a estabilidade política reivindicada por Jorge Gerdau na conferência

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que abriu este trabalho. Estabilidade essa só alcançável por um regime de normalidade democrática pautado pelos interesses do capital.

Considerações finais Em texto sobre a relação entre capitalismo e democracia, a historiadora Ellen Wood sugere outra origem para o que ela chama de democracia moderna. Em vez de Atenas, as relações pessoais e políticas do feudalismo, aliadas às transformações identificáveis em grandes eventos históricos como a Revolução Gloriosa de 1688, a Independência das Treze Colônias de 1776, a Revolução Francesa em suas fases girondinas. A democracia moderna, assim, teria se gestado pela defesa das classes dominantes – e pelo respeito absoluto ao princípio da propriedade privada -, diferentemente da democracia clássica, cuja isegoria assegurava uma democracia mais potencialmente popular. O sentido da construção histórica de democracia moderna, assim, evidenciar-se-ia pelos lados derrotados no processo: levellers, diggers, democratas estadunidenses. A análise pelos projetos descartados desvela o conteúdo político e social dos vencedores. Essa democracia, pois, cresceu em adequação às classes dominantes e seus interesses políticos, sintetizados na figura da representação política – necessariamente excludente – e do federalismo, em que um “Estado distante” faz as vezes do todo (WOOD, 2003). O debate sobre a relação entre democracia e capitalismo é quente, e a visão da historiadora coloca lenha na fogueira. Sua interpretação sugere a democracia como forma de dominação preferencial da burguesia – devido a maior sensação de normalidade que esse regime é capaz de oferecer. Nessa perspectiva, a política democrática nos modelos atuais jogaria água no moinho da dominação de classe, pautando o debate político nos limites do campo de interesses da burguesia. É claro, há os que discordam dessa visão algo pessimista do conteúdo político da democracia realmente existente, e eles não são poucos, nem insignificantes. Um pensador da estatura intelectual de Carlos Nelson Coutinho foi capaz de sugerir que a democracia fosse um valor universal – e, nesse sentido, desejável em si mesma, precisamente porque variável de acordo com as correlações de força entre as classes sociais (COUTINHO, 1979). A perspectiva de Coutinho é interessante, precisamente por postular uma análise concreta 890

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da realidade concreta. Ou, em outras palavras, não prescindir de uma resposta à pergunta: de que democracia específica estamos falando? Certamente, o método histórico não vive sem a análise de realidades – talvez pudéssemos arriscar que, em uma perspectiva dialética, mesmo os universais não podem prescindir de um estudo dos particulares. Todavia, historiadores marxistas não podem ocultar as motivações políticas de suas reflexões. E, nesse sentido, é hora de se perguntar se permanece producente aos interesses de nossa classe o apego à democracia moderna. Ora, uma análise histórica – especialmente da história recente - nos mostra que o terreno em que temos feito política é por si mesmo pantanoso, propenso a atoleiros. Talvez seja esse o indicativo de uma revisão radical – e aqui a palavra radical tem embutido seu sentido mais estrito – das nossas estratégias políticas. Como vimos nas páginas acima, a democracia moderna é não só funcional ao capital, como seu aprofundamento é defendido por uma das agências da burguesia brasileira na América Latina. Fala-se, inclusive, de coesão social na democracia, que, no extremo do argumento, depende da aceitação tácita das regras do jogo. Logo, em que medida não jogamos o jogo dos dominantes quando abdicamos de uma defesa radical da revisão dessas regras? Em outras palavras, a História tem nos mostrado que não se pode defender esperançosamente uma transformação profunda da sociedade prescindindo da mudança do regime político – talvez mesmo da concepção maior do que deva ser a política. Posto isso, talvez seja importante recuperar de Carlos Nelson – ou, mais precisamente, de Lênin e Gramsci – o princípio do estudo histórico da situação concreta. A análise séria nos mostrará os limites da democracia, evidenciando que qualquer ação que se pretenda revolucionária não deve se projetar somente para além do capital, mas também para além da democracia moderna – principalmente porque, cremos, um objetivo não é realizável se não andar em compasso ao outro.

Referências COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. In: SILVEIRA, Ênio et all. Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. 891

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DA SILVA, Márcio Antônio Both (orgs.). Ditaduras e democracias. Estudos sobre poder, hegemonia e regimes políticos no Brasil (1945-2014). Porto Alegre: FCM Editora, 2014 DREIFUSS, R. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 5. ed.,1987. FONTES, Virgínia. Brasil e o capital imperialismo. Teoria e história. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. 6 V. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. LOWE, David. Idea to reality. A brief history of the National Endowment for Democracy, p. 8 Disponível em: http://www.ned.org/about/history (acesso às 10:37 de 12 de setembro de 2015) OLIVEIRA, Francisco; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele (orgs.) Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010. P. 257258 SCOTT, james. WALTERS, Kelly. Supporting de Wave. Western political foundations and the promotion of a global democratic society. Global Society. V. 14, n. , 2000. P. 243-244. SORJ, Bernardo. MARTUCCELLI, Danilo. O desafio latino-americano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. SPOSITO, Eliseu; SANTOS, Leandro. O capitalismo industrial e as multinacionais brasileiras. São Paulo: Outras Expressões, 2012 WOOD, Ellen. Democracia contra o capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.

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O PROCESSO DE ONGUIZAÇÃO DO ESTADO: o papel das organizações não-governamentais na agenda de dominação burguesa (19932008) Juliana Nascimento C. da Silva1

Ao longo dos anos 90, o Brasil viveu um processo de aprofundamento das bases do neoliberalismo. Parte dessa alteração no cenário nacional foi o boom das organizações nãogovernamentais de todo tipo, em todo o território. Identificando histórica e sociologicamente o papel das ONGs na organização da sociedade civil enquanto aparelhos privados de hegemonia, propomos avaliar a importância e a função destas enquanto instrumentos auxiliares de dominação de classes no Brasil. Exercendo papel fundamental na formação do consenso, essas organizações atuam também como fortes aliadas de governos na defesa e implementação de determinados projetos de sociedade. Esta comunicação tentará demonstrar como essas organizações tornaram-se parte importante da agenda privatista neoliberal – que entregou a instituições privadas compromissos sociais antes responsabilidade do Estado –, bem como, ao lado da mídia proprietária, atuam como grandes disseminadoras de valores morais individualistas que servem de base social sustentadora da dominação burguesa. Dito disto, coloca-se as seguintes questões: por qual motivo as camadas mais pobres da sociedade, principais interessadas na elaboração de políticas públicas que lhes garantam melhores condições de vida, estão excluídas de seu processo de construção? Por que o Estado delega a ONGs o papel gestor destes projetos públicos? Como podemos caracterizar estes grupos sociais e seus intelectuais dispostos a pensar a realidade brasileira e construir projetos a serem alçados a políticas públicas? O objeto central da análise é o Movimento Viva Rio e o aumento da participação da sociedade civil em seu interior, organizada para, junto a governos, mas de forma dita autônoma, buscar saídas ao problema da violência urbana. Toda a pesquisa busca investigar os limites desta “autonomia” da ação da sociedade civil em relação ao Estado e vice-versa, situando a conjuntura

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Mestranda em História social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGHUFF). E-mail: [email protected] .

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local carioca dentro do plano maior de estruturação e aprofundamento do neoliberalismo no Brasil e do avanço do capitalismo no mundo.

O presente artigo propõe-se a fazer uma releitura do projeto de pesquisa de mestrado, em curso, intitulado “O processo de “onguização” da segurança pública: a trajetória do Viva Rio (1993-2008)”, visando contribuir com os demais estudos da área que busquem investigar os dispositivos de dominação burguesa. Para tanto, trazemos aqui uma reflexão que se apoia teórica e metodologicamente na obra de Antonio Gramsci, além da análise da bibliografia específica que auxilia na investigação sobre a temática.

A problemática da pesquisa reside na investigação acerca das políticas públicas de segurança levadas a cabo na cidade do Rio de Janeiro, entre os anos de 1993 e 2008. Para isto, intentamos realizar o enquadramento sociológico dessa que foi figura incontornável no debate sobre segurança pública na cidade, a Organização Não-Governamental Viva Rio.

Partimos das contribuições do filósofo e cientista político italiano Antonio Gramsci para pensar o Estado contemporâneo – onde sociedade civil e sociedade política (ou Estado restrito) são compreendidos como partes da soma cujo resultado dialético é o Estado ampliado2. Tratamos então de analisar o Viva Rio em sua função na organização de uma parcela da sociedade civil, concebendo-a como o que Gramsci chamou de aparelhos privados de hegemonia. Nestes, os interesses das classes dominantes são organizados para a ação, que são projetadas e elaboradas por seus intelectuais orgânicos, tal como na instituição objeto desta pesquisa.

Aquele que quiser compreender a remodelação na agenda da segurança pública carioca, necessariamente, esbarrará, uma hora ou outra, no Viva Rio. Isto porque a organização, hoje instituição, começou como um movimento amplo e que se pretendia inclusivo, trazendo para a 2

Ver GRAMSCI. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. In.: Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 3, 2000.

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ordem do dia o debate sobre o caos da violência enfrentada pela cidade no início dos anos 90. A ideia encampada pelo movimento era de que a população, cansada de sofrer da violência urbana, se unisse em prol de assumir papel ativo na proposição de soluções à questão.

Recebendo amplo apoio de figuras importantes do campo artístico e intelectual da cidade, de grandes instituições, como as organizações Globo, o Jornal do Brasil, bem como de sindicatos e associações de moradores, o Movimento Viva Rio afirmava a necessidade de pôr fim à linha invisível que apartava favela e asfalto3. A diversidade entre os grupos que compunham o movimento era a expressão máxima de sua proposta: a integração da cidade por uma causa única.

A primeira ação coletiva do Movimento Viva Rio mobilizou boa parte da cidade. Em 17 de dezembro de 1993, com ampla convocação nos meios de comunicação apoiadores, os dois minutos de silêncio na manifestação “Dê um tempo para o Rio: parar para começar de novo” convocou todo cidadão a se vestir de branco e parar suas atividades por dois minutos, para refletir sobre si mesmo e sobre o destino comum da cidade4. Contudo, ainda que a mobilização e as manifestações de apoio tenham se agigantado em função da própria conjuntura de desespero da população, tal participação popular não se verificou quando da transformação do movimento social em instituição da sociedade civil.

Em 1995, quando se torna uma organização não-governamental sem fins lucrativos, além de mobilizar campanhas populares, o Viva Rio passa a desenvolver pesquisas, executar projetos, propor e acompanhar o desenvolvimento de políticas públicas com foco em comunidades expostas aos riscos da violência, abrangendo temas como segurança humana, educação, inclusão social, esporte e desenvolvimento local. Foi neste sentido que começou a se

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Ver VENTURA, 1994 Matéria disponível em: http://vivario.org.br/viva-rio-completa-19-anos-realizando-sonhos-impossiveis/ (último acesso em 8 de setembro de 2016)

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desenhar o protagonismo do Viva Rio na formulação de propostas que seriam alçadas, posteriormente, a políticas públicas estatais.

A composição executiva da organização já contraria de início – e posteriormente cada vez mais – a diversidade social que compunha o movimento. Em 1995 assume o cargo de presidência da organização o idealizador Herbert José de Souza (o Betinho), ao lado de um grupo de outras quarenta pessoas – acadêmicos e empresários em sua maioria – dentre os quais o antropólogo Rubem César Fernandes, atual diretor executivo da instituição. Tal composição, no entanto, não se trata de uma contradição da organização em seus propósitos, como buscamos comprovar na pesquisa. Pelo contrário, parece atender de maneira impecável à concepção de sociedade engendrada pela mesma.

O formato de instituição sem fins lucrativos garante, em certa medida, grande aceitação popular, uma vez que foge dos marcos do setor privado e do setor estatal, apresentando-se como garantidoras de serviços à população. O que a aparência desta relação esconde, e buscamos aqui investigar, é a profunda ligação destas com interesses empresariais em determinadas regiões da cidade – principalmente favelas –, buscando uma inclusão de mercado. Há, além disso, o fator de apassivamento das lutas sociais que promove naquele espaço, atendendo aos interesses do Estado no que diz respeito à formação de consenso em prol de determinados projetos políticoeconômicos.

Se partimos do pressuposto de que Estado e sociedade civil são partes indissociáveis de um todo, temos então de explicitar qual empresariado (campo da sociedade civil) e qual parcela do interior do Estado restrito são estes, e de que maneira seus interesses estão relacionados. Disto isto, faz-se imperativa a não negação de que estas relações se dão no bojo da luta de classes, e que, portanto, esta aliança de interesses está diretamente ligada a uma outra forma de dominação burguesa sobre a classe trabalhadora, principalmente a periférica. Deste modo, a problemática da pesquisa caminha no sentido de enquadrar a atuação destes grupos organizados da sociedade civil dentro de uma lógica econômica, política e social, adequada ao contexto histórico dos rumos do capitalismo no Brasil. 896

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É bem certo que as ONGs, no Brasil e no mundo, encampam diferentes frentes, assumem compromissos diversos e organizam em seu interior grupos de distintas ideologias. No entanto, o Viva Rio se inscreve em um seleto e crescente grupo de organizações sem fins lucrativos de abrangência nacional e internacional, associada a e financiada por organismos e governos nacionais e internacionais5, e a agências e empresas ligadas ao grande capital, como o Banco Mundial e a Ford Foundation. Discorremos então sobre as particularidades do Viva Rio, mas buscando sempre elementos gerais que tornem possível a compreensão e a comparação com as demais ONGs de proporções equivalentes.

As organizações não-governamentais compõem um fenômeno que data de antes do neoliberalismo, mas que se tornou marca dos novos tempos inaugurados pelo novo sistema político-econômico neoliberal, que incentiva o crescimento e a autonomia do chamado Terceiro Setor. É seguindo nesta linha de análise que este artigo pretende contribuir com os demais estudos sobre a organização da sociedade civil no Estado brasileiro, de maneira geral, e particularmente sobre a implementação da agenda neoliberal no Brasil, suas decorrentes alterações no cenário econômico-social, e suas auto-reformulações adaptativas. Para tanto, relacionamos o aumento exponencial das organizações não-governamentais com o processo de implantação gradual da agenda neoliberal no Brasil, principalmente a partir dos anos 90. Nos dispomos a analisar, então, partindo da principal questão: de que forma essa concepção de segurança pública, pautada principalmente pela presença militar nas favelas, se insere na dupla coerção-consenso para manter a dominação de classes?

Dentre as diversas interpretações teóricas possíveis para a pesquisa em história político-social, lançando mão do materialismo histórico dialético como método de compreensão e análise da realidade, apoio-me nas muitas contribuições do marxismo, principalmente nas de Antônio Gramsci, formulador do tripé conceitual que guiará esta pesquisa, a saber: “Estado Ampliado”, “Hegemonia” e “intelectuais orgânicos”. Todavia, apoio-me também nas

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No caso do Viva Rio, entre os principais financiadores internacionais estão: o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); Unicef; Unesco; Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti (MINUSTAH); Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); Fundação Interamericana, entre outros.

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contribuições de Pierre Bourdieu com os conceitos de “Habitus”, “posição de classe” e “condição de classe”.

Partimos então do conceito de Estado de Antonio Gramsci para pensar o Estado contemporâneo, onde sociedade civil e Estado restrito, como já dito anteriormente, são compreendidos como partes da soma cujo resultado dialético é o Estado ampliado. O avanço do conceito de Estado em Gramsci consta em resgatar o marxismo que rompeu com as concepções individualistas e personificadoras do Estado, oriunda das interpretações dos contratualistas6 e renovar o conceito a partir das contribuições de Marx7, Engels8, e Lênin9, principalmente, superando a dicotomia entre Estado e Sociedade.

Para Gramsci, o Estado é “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém não só seu domínio, mas consegue obter o consentimento ativo dos governados” (GRAMSCI, 2000, p. 331). O avanço teórico proposto por Gramsci com o conceito de Estado Ampliado auxilia a pesquisa em curso uma vez que “(...) permite verificar a estreita correlação existente entre as formas de organização das vontades (singulares e, sobretudo, coletivas), a ação e a própria consciência (sociedade civil) – sempre enraizadas na vida socioeconômica – e as instituições específicas do Estado em sua acepção restrita (sociedade política).”. (MENDONÇA, 2014, p.34)

Correlação esta que caracteriza o processo de organização de frações da classe dominante em aparelhos privados de hegemonia – nesta pesquisa representados pelas organizações nãogovernamentais –, perpetuando sua posição de dominação através da formação de consenso em torno de projetos políticos e ações sociais. Os aparelhos privados de hegemonia cumprem o papel de reprodutores da ideologia dominante da burguesia na sociedade capitalista 6

O termo se refere aos autores Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, que embora tenham dissonâncias interpretativas, os três interpretam a necessidade do Estado a partir de certa concepção da natureza humana, e partem do pressuposto de que o Estado regulamente questões sociais, sendo assim uma instância burocrática e controladora de uma sociedade caótica, com a qual firma um contrato social que lhe assegura plenos direitos sobre os cidadãos. Ainda sobre o tema, ver mais em: COUTINHO, 2011 7 Marx nunca se dedicou a uma obra específica sobre Estado. No entanto, é possível, através da leitura de suas obras históricas como “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” (MARX, 2011) e “A guerra civil na França”, perceber uma concepção genérica sobre o Estado, baseada principalmente na natureza de classe do Estado. 8 Ver ENGELS, 1982 9 Ver LÊNIN, 2007

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contemporânea, sendo tanto o instrumento de difusão do modo de vida burguês, quanto local de organização dos intelectuais orgânicos das classes dominantes. Outro ponto de apoio em Gramsci firma-se justamente no conceito de Intelectual Orgânico10, onde estes são o grupo de intelectuais que se organizam no interior de instituições da sociedade civil. Para Gramsci, o grupo de intelectuais de uma sociedade não é autônomo ou independente do grupo social que o produziu historicamente; ao contrário, intelectual orgânico é aquele que dá homogeneidade e coesão à sua classe social, tornando-a consciente de sua posição dentro do sistema de produção, político e social. Reiterando, no entanto, que um intelectual orgânico pode sair em defesa de uma classe social que não a sua de origem.

Sobre esta última questão a contribuição do sociólogo Pierre Bourdieu torna-se indispensável uma vez que apresenta os conceitos de Habitus11, Posição de classe e Condição de classe12. Habitus, segundo Bourdieu, é a dominação simbólica em sua forma aparente, onde um grupo (uma fração de classe) incorpora o modus operandi de uma classe com a qual não compartilha interesses mútuos, mas foi influenciada pela mesma (através da grande mídia, educação escolar hegemônica, etc.) a acreditar que seus modos de vida e suas aspirações são correspondentes. Este tipo de dominação não se dá de modo consciente a todo o tempo. O Habitus de uma classe (e aqui falamos da classe dominante) é tão naturalizado e naturalizador que o sentimento de pertencimento, e os gostos, e os costumes, surgem nos indivíduos como se fossem genuínos, desassociados de seu caráter de imposição. Uma passagem de Marx e Engels em A Ideologia Alemã (que data de mais de um século antes da formulação do Habitus de Bourdieu) sintetiza o porquê o modo de vida da classe dominante é introjetado e bem recebido pela classe dominada. Segundo Marx e Engels: “Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, ou seja, a classe que tem o poder material dominante numa sociedade é também a potência dominante espiritual. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe igualmente dos meios de produção intelectual; de tal 10

Ver GRAMSCI, Antonio. Caderno 12 (1932). Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In.: Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. 2, 2001. 11 Ver BOURDIEU, 2007. 12 Ver BOURDIEU, 2009.

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modo que o pensamento daqueles a quem é recusado os meios de produção intelectual está submetido igualmente à classe dominante”. (ENGELS; MARX, 1976, p. 55/56)

Neste sentido, compreender que condição de classe (classe originária do intelectual) e posição de classe (classe com a qual este intelectual compartilha interesses e identidade) são coisas distintas, faz-se necessário para estudar o grupo de intelectuais orgânicos do interior de uma organização da sociedade civil.

Para além do estudo dos indivíduos e dos grupos sociais que compõem uma organização da sociedade civil é preciso relacioná-la à sociedade em que está inserida, o que pressupõe admitir que a realidade social abordada, dentro do modo de produção capitalista, é permeada pela luta de classes.

Partindo destas contribuições teóricas podemos trabalhar qualitativamente numa crítica do processo de “onguização” e ao alargamento das funções do terceiro-setor no Brasil, mormente a partir dos anos 90.

As produções bibliográficas que abordam a temática das organizações nãogovernamentais passam invariavelmente por uma determinada concepção do chamado “Terceiro-setor”. A obra de Maria da Glória Gohn13 sobre o tema apresenta duas principais vertentes em disputa da concepção do Terceiro Setor. A primeira defende a autonomia do terceiro setor em relação aos setores público (primeiro setor) e privado (segundo setor), afirmando que desta forma a sociedade civil disporia de uma nova forma de associação que independe da burocracia do Estado e da lógica do mercado. Rubem César Fernandes, antropólogo e atual diretor-executivo do Viva Rio, também autor do livro “Privado, porém público”14 faz, em 1994, um balanço da trajetória dos movimentos sociais na América Latina dos anos 70 e 80, apontando haver um “consenso na América Latina que nem o mercado nem o Estado têm condições de responder, por si sós, aos desafios do desenvolvimento com equidade” 13 14

GOHN, 2000. FERNANDES, 1994

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(FERNANDES, 1994, p. 12), de acordo, portanto, com a primeira vertente sobre o Terceiro Setor que concorda que os assuntos do Estado devem se limitar a esfera da macroeconomia, sendo incapaz de se fazer presente nas microesferas da sociedade e que, portanto, a sociedade organizada daria conta de suas próprias questões e as apresentaria ao Estado, mediando assim as políticas públicas.

A outra vertente, no entanto, encampada por Maria da Glória Gohn, atenta para o fato de que estas associações colaboram para o desmonte das organizações dos trabalhadores e dos movimentos sociais, atuando como apassivadoras da luta de classes, uma vez que se coloca ao lado dos interesses dominantes e do grande capital quando transforma em serviços oferecidos por instituições privadas aquilo que deveria ser direito garantido ao povo. Esta segunda vertente faz uma diferenciação entre as associações sociais dos anos 70 e 80, de abrangência geralmente local em pequenas comunidades, em grande parte ligadas a lideranças religiosas, e as organizações não-governamentais criadas ou remodeladas a partir dos anos 90, caracterizandoas principalmente como aliadas às estratégias neoliberais15 de desobrigação do Estado com as questões sociais, tornando-as questões individuais e locais ao invés de coletivas e universais.

Aliada a esta crítica, Virgínia Fontes16 aponta o processo de “onguização” dos movimentos sociais e a alteração, decorrente deste processo, na forma de fazer política. Fontes aponta a domesticação a que foram submetidas as organizações populares, assim como Gabriel E. Vitullo, que reflete sobre como “(...) aquelas entidades que, nos anos 1980, se colocavam como a promessa de renovação da política brasileira, dando lugar a instigantes experiências de autoorganização, pela base, e de formação de novos quadros, têm sofrido, a partir dos anos 1990, um forte processo de apassivamento, via conversão mercantil-filantrópica em ONGs. Muitos dos antes combativos movimentos sociais se transformaram, no decorrer desse processo, em bem comportadas organizações não governamentais “a serviço” dos mais necessitados. Saíram das ruas e foram para os gabinetes. Deixaram de ser parte integrante do movimento para se tornar seus porta-vozes tecnicamente qualificados. Passaram de militantes a especialistas ou profissionais. Das passeatas e

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Ver ANDERSON, 1995, pág. 9-23. FONTES, 2010, p. 255-298.

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movimentos nas ruas em prol da conquista de novos direitos, foram para a corrida por recursos, projetos e editais.” (VITULLO, 2015, p. 200)

Demarcando, ambos, muito expressivamente, a alteração do funcionamento e a transformação, no senso comum, da ideia do que é uma organização social.

Outros autores que se inserem na vertente que critica o papel ideológico cumprido pelo Terceiro Setor aliando a crítica às estratégias neoliberais são Francisco de Oliveira17, James Petra18 e Paulo Eduardo Arantes19. Encontrando resistência principalmente na figura de Luiz Carlos Bresser Pereira que se posiciona a favor do papel “público não-estatal” desempenhado pelas ONGs, afirmando que a separação dos interesses sociais dos interesses do Estado “também implica atribuir à sociedade uma responsabilidade na satisfação de necessidades coletivas, mostrando que também nesse campo o Estado e o mercado não são as únicas opções válidas”(PEREIRA, 1999, p. 45). A proposição de Bresser Pereira está bem alinhada com a política de governo do PSDB, do qual foi ministro da Reforma do Estado, e intelectual a frente da formulação dos Cadernos MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado), tendo dedicado o 2º Caderno ao tema específico das Organizações Sociais, indicando que o caminho de solução da crise do Estado passava necessariamente por um movimento em direção ao Terceiro Setor, tornando a implementação de organizações sociais uma das políticas de governo centrais da Reforma do Estado levado a cabo pelo PSDB sob a figura do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Esta legitimação do Terceiro Setor tanto no programa político partidário do PSDB20 quanto na agenda do governo brasileiro demonstra a afinidade de interesses entre os executores das políticas neoliberais no Brasil e as ONGs.

O livro organizado por Lucia Maria Wanderley Neves21, contribui na articulação entre o processo “onguizador”, discutido anteriormente, e os interesses de classe que o norteiam. Neste livro, os autores demonstram como toda essa operação política ideológica está a serviço 17

OLIVEIRA, 2000. PETRAS, 1999. 19 ARANTES, 2000. 20 Ver GUIOT, 2006. 21 NEVES, 2012. 18

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do fortalecimento de uma hegemonia que busca o consenso das classes subalternas para a manutenção de políticas que se aliem aos interesses do grande capital. Para Neves, a atuação dos aparelhos privados de hegemonia educando para o consenso são instrumentos importantes da manutenção do status quo e do predomínio da ideologia burguesa como dominante, sustentando a burguesia como classe dominante, dirigente e educadora.

O período de incentivo à criação de ONGs no Brasil tem seu marco enfático no período da ditadura militar (1964-1985), onde diversos institutos de pesquisa e agências filantrópicas são fundados, sendo estas instituições apoiadoras ou não do regime militar. Mas é durante a Era Tucana (1994-2002) que o partido político eleito à presidência tem dentro de seu programa partidário o incentivo ao fortalecimento do terceiro-setor e, portanto, das entidades civis de representação como promotoras dos direitos sociais em formas de serviço, uma vez que direitos sociais, no entendimento do partido, pertenciam à esfera de interesse privado e não público. E assim, o “Estado mínimo” neoliberal se faz de fato mínimo para as camadas pauperizadas da sociedade.

Dentro do modelo neoliberal encabeçado pelo PSDB, o incentivo ao terceiro-setor foi a forma encontrada para enxugar o Estado. O governo FHC é ainda hoje conhecido pelas tantas privatizações praticadas, entregando estatais às mãos da burguesia internacional. Indústrias de bens de base e de consumo foram privatizadas, e as de bens de capital chegam ao Brasil na forma de multinacionais, devido à maior abertura brasileira ao capital estrangeiro, diminuindo a capacidade de autonomia econômica do país.

É com imenso incentivo do PSDB à frente do governo nacional que o Brasil experimenta o período de boom das organizações não governamentais. E como não poderia deixar de ser, as ONGs também subiram o morro.

Organizações não-governamentais como o Viva Rio cumprem um importante papel nesta privatização dos serviços públicos, uma vez que a mesma se torna responsável pela execução dos projetos públicos do governo, levando-os a cabo através de parceria com demais 903

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empresas privadas que determinarão seus interesses para que o projeto seja lucrativo, além de garantir uma boa imagem pública para a empresa.

A violência urbana no Rio de Janeiro não é derivada de questões morais, e sim por complexos fatores sociais a que grande parcela da sociedade está submetida. Não reconhecidas desta forma, as favelas cariocas historicamente são atravessadas por políticas públicas de pacificação, que contam com intervenção da polícia militar de maneira coercitiva e repressiva. Muito marcadas por estas práticas são as Unidades de Polícia Pacificadora, que contam com o Viva Rio no preparo dos policiais militares que atuarão nestas unidades. Esta articulação entre o governo do Rio de Janeiro e o Viva Rio expõem um dos muitos casos em que o Estado delega à iniciativa privada a responsabilidade pela segurança da sociedade.

Cabe desde já ressaltar o projeto de “pacificação” em curso pelo estado do Rio de Janeiro trata-se de uma política de dominação de classes, e como toda forma de dominação, precisa conciliar doses de coerção e consenso. No caso das UPPs, o desequilíbrio da mão da coerção é constantemente noticiado, e ainda mais desequilibrado se pensarmos em quantos dados são forjados para manter a confiança da população no projeto. Ainda assim, a dose de consenso é indispensável em uma política de dominação, e para que também esta forma de dominação seja hegemônica, o Estado precisou não apenas entrar, mas permanecer nestes territórios de conflito.

Sobre o caso específico das UPPs, a dose de consenso é dirigida pelo UPP Social, ou Rio + Social. Em inúmeras parcerias com pequenas, médias e grandes empresas, o Projeto UPP Social, que deveria ser responsável por levar direitos sociais para esses territórios pacificados, atua como um mero gestor que articula a relação entre empresas privadas e lideranças comunitárias. Formadores de uma pedagogia do consenso, de um projeto societário neoliberal, esses aparelhos privados acabam também por apassivar as lutas expressas nas favelas, ao passo que alienam os moradores tanto no que diz respeito às relações sociais que provocaram a cisão da cidade, quanto ao potencial transformador da luta e da resistência dos mesmos. As ONGs e

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os projetos de pacificação transformam a favela em um lugar sem conflitos, e aqui não estamos falando de conflitos de violência urbana... as ONGs mascaram os conflitos de classe.

É, portanto, a partir da contribuição de Virgínia Fontes sobre a “onguização” dos movimentos sociais que pensamos o processo de “onguização” que vem sofrendo a implementação das políticas de segurança pública no Rio de Janeiro, ignorando as vozes da classe trabalhadora, das populações faveladas, grandes afetadas pela política de repressão do Estado, e repassando a responsabilidade para instituições privadas "não-governamentais".

A principal questão inspiradora da pesquisa em curso é: de que modo se dá a organização da dominação de classes no Brasil? A tentativa de responder a esse nada modesto questionamento abriu um leque de diferentes abordagens possíveis, dentre as quais optamos por investigar os meios através dos quais a sociedade civil (uma parcela dela) se organiza para tomada de posição e ação sobre os rumos da sociedade em que está inserida. Sem em momento algum abstrair da luta de classes como premissa da sociedade capitalista, e das especificidades do capitalismo neoliberal, abordo estas organizações também como espaços de disputa da luta de classes e, portanto, podendo ser utilizadas como instrumentos de dominação.

Analisar o conjunto de políticas de segurança pública aplicadas a uma capital como o Rio de Janeiro – conflitando a proposta com a implementação real, conhecendo seus principais formuladores, atores, algozes e vítimas – nos traz outra questão importante e incontornável: para qual grupo social é pensado o acesso irrestrito à cidade?

É no bojo deste conflito de interesses que se dá a disputa por um projeto que se torne hegemônico, e é a partir de interesses comuns que grupos se formam e se organizam para elaborar um projeto que possa ser implementado. Os modos através dos quais esses projetos organizados por uma fração organizada da sociedade civil se tornam implementáveis são diversos, e envolvem obtenção de consenso, auxílio da coerção, ou, na maioria das vezes, doses de ambos. Não se pode negar o fato de que ao longo da história conquistas reais foram obtidas através da luta de “minorias” sociais oprimidas, da classe trabalhadora, de classes subalternas. 905

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No entanto, o caminho torna-se mais fácil quando o grupo organizado tem a seu favor representantes políticos no interior do Estado restrito, grupos empresariais que financiem seus projetos, e a grande mídia que dispõe seus veículos de comunicação em prol da obtenção de consenso em torno de um determinado projeto de sociedade.

Por perceber que a organização do Viva Rio e seguiu o exemplo do “caminho mais fácil” como citado acima, é que busco e buscarei investigar, através da análise de seus projetos que foram alçados a políticas de segurança, qual o modelo de sociedade está sendo construído (ou perpetuado) quando do planejamento destes, e a quais interesses de classe correspondem.

Em uma realidade marcada pela luta de classes e, portanto, pela crescente desigualdade social e exploração da classe trabalhadora, é imperativo conhecer os dispositivos através dos quais as classes dominantes se reinventam para perpetuar a relação de dominação, para que possamos (nós e as gerações futuras) compreender de que modo e em qual contexto nossa atuação histórica se dá. E é por isso que toda a problemática aqui disposta tentou demonstrar como a ação de instituições privadas que se dizem independentes de governos atuam de forma tão atrelada quando unidas pelo interesse comum do fortalecimento de um projeto hegemônico. Os projetos de segurança pública promovidos pela aliança Estado restrito + grande empresariado + Viva Rio não solucionam o problema da violência urbana porque ignoram suas raízes, ainda que certamente as conheçam. E isso não se dá por descuido, mas sim porque a violência urbana só incomoda quando atinge as classes dominantes, quando limita a expansão do capital. Fora isso, o Estado convive muito bem com os altos índices de criminalidade de regiões periféricas. A violência, assim como a favela, só se tornou um problema do Estado quando impuseram limites ao avanço do capital, e a ação conjunta de estado e organizações não-governamentais vêm transpondo esses limites de maneira satisfatória. E assim, mesmo aos mais belos discursos defensores de uma pacificação nos moldes aqui expostos, na verdade escondem uma política de controle dos pobres. As ONGs vêm para que dominação se dê com o consentimento dos mesmos.

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Por sorte, apesar das grandes doses de repressão, coerção, obtenção de consenso, hegemonia que esmaga, setores dominantes aliados a Estados, à órgãos da sociedade civil, à aparelhos privados de hegemonia, à grande mídia... todas essas doses, a todo momento, ainda que de forma incipiente, precisam lidar com a resistência popular. Nesse caminho de lutas, fica a intenção de que os trabalhos acadêmicos contribuam cada vez de mais engajada à solução de fato das mazelas sociais.

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MESA 17: ESTADO, SOCIEDADE E CULTURA: reflexões acerca das categorias de Grasmci e a realidade brasileira Coordenação: Cristina Simões Bezerra (UFJF) RESUMO: A proposta desta mesa coordenada é fazer reflexões e possíveis apontamentos sobre a realidade brasileira, histórica e contemporaneamente, a partir do aporte categorial de Antonio Gramsci. Entendemos que tais categorias são fundamentais para compreender o desenvolvimento das esferas que compõem a vida social, tais como a política e o Estado; a constituição da sociedade brasileira e seus traços singulares do desenvolvimento capitalista; a cultura e o processo de formação do povo e da nação. Assim, esta construção propõe, a partir de apontamentos históricos, traçar uma reflexão sobre os desafios da democracia, da organização e luta dos trabalhadores no Brasil neste princípio do século XXI.

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CULTURA E DEMOCRACIA NO BRASIL uma análise a partir da categoria nacional-popular em Gramsci Cristina Simões Bezerra1 RESUMO O artigo tem o objetivo de analisar as relações estabelecidas entre cultura e democracia na realidade brasileira a partir dos processos históricos de dependência cultural e ausência de uma perspectiva nacional popular que marcaram nossa cultura. Assim, partimos da análise da formação social brasileira a partir da leitura de processos de revolução passiva e seus impactos no universo cultural a partir dos anos 1960, quando minimamente nos aproximamos de uma perspectiva nacional popular, até o final dos anos 1980, quando, já sob a égide do projeto neoliberal para o Brasil, uma reorientação autoritária e dependente se afirma para nossa cultura. INTRODUÇÃO Nossa proposta parte da análise de significativas manifestações culturais brasileiras, tentando identificar em seu interior os vetores crítico-contestatórios e suas perspectivas de abordagem e de intervenção face à realidade do país. Em outras palavras, pretendemos nos aproximar da cultura enquanto um momento privilegiado através do qual poderemos alcançar elementos que demonstram a crítica à realidade social e política na qual vivemos e as alternativas geradas a partir deste debate para a sociedade brasileira. Neste caminho, percebemos que, como em vários aspectos da vida social brasileira, os anos 1960 foram uma referência indiscutível para a produção cultural. Gestaram-se nesta década importantes experiências com uma perspectiva cultural democrática e popular, que tinham o objetivo (ou a pretensão) de unir militância política e produção cultural em uma única prática, capaz de fazer da arte um instrumento revolucionário nas mãos do povo. Embora estas experiências não sejam consideradas amplamente “vitoriosas” por aqueles que as analisam, não há dúvidas de que suas propostas ficaram para a cultura brasileira como um referencial

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Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: [email protected]

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permanente que influencia até hoje as manifestações das frações mais representativas de nossa realidade cultural. As mudanças ocorridas no país após meados da década de 1970 pareceram reverter minimamente este quadro. Acreditamos, então, que a presença de diversas e importantes manifestações culturais surgidas após o enfraquecimento da ditadura militar constitui fonte para a compreensão dos novos parâmetros de sociedade democratizada que se instauraram no país após os anos 1970. Interessou-nos apresentar as bases e as perspectivas para uma opção nacional-popular na cultura brasileira, ou seja, as experiências em que se tentou resgatar a história da vida nacional brasileira sob uma perspectiva alternativa à das classes dominantes e voltada para o acesso aos setores populares. A história da cultura brasileira é marcada por uma negação do nacional e do popular, com um concreto distanciamento entre intelectuais e povo, que gerou para o país uma cultura elitista, alienada e vazia para a maioria da população brasileira. Os anos 1960 foram um marco efetivo para verificarmos as tentativas de modificação deste quadro e de aproximação com os setores populares, ainda que sob as duras restrições do regime militar. A categoria do nacional-popular foi, portanto, o ponto de ligação entre os períodos históricos abordados. Procuramos identificar, durante nossos estudos, qual foi a perspectiva de nacional-popular que perpassou a cultura brasileira, principalmente depois dos anos 1960, e que mudanças a introdução de elementos como a repressão, a censura, a radicalização política e, mais tarde, a indústria cultural trouxe para esta perspectiva. A dinâmica interna e externa da ditadura civil-militar que vigorava no país desde 1964 foi substancialmente modificada a partir de meados dos anos 1970. A cultura e toda a sociedade civil brasileira viram chegar um momento de abertura objetiva, capaz de trazer mudanças substanciais que permitiram caracterizar o Brasil de então como um país potencialmente “ocidental”, segundo categorias gramscianas. A contextualização histórica que desenvolvemos tem o objetivo de demonstrar como esta “ocidentalização” se processa no Brasil, enfrentando limites e retrocessos típicos de um país que rompeu com a ditadura militar, mas não com o autoritarismo e a arbitrariedade.

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1 – CULTURA E DEMOCRACIA NO BRASIL Analisar a produção cultural brasileira no período que anteriormente delimitamos representa a possibilidade de mergulharmos em um universo que, face à pluralidade e à diferenciação interna que o caracterizam, se constrói como um caminho privilegiado para compreendermos a história deste país e para afirmarmos que, entre avanços e retrocessos, alternando vitórias e fracassos, nossa sociedade vem se modificando e se complexificando, e aos poucos vem concretamente se consolidando como uma sociedade “ocidental” nos termos da análise gramsciana. E o que isso pode representar em termos sociais, econômicos e políticos? Acreditamos que, entre outras coisas, significa relações sociais muito mais complexas, que agora se apresentam determinadas por elementos antes residuais ou ausentes. Em outras palavras, as modificações que se processaram na organização da sociedade civil brasileira e na constituição do Estado nos anos 1970 e 1980 introduziram demandas e perspectivas fundamentalmente renovadoras no cenário sócio-político, passando a existir, para os mais diferentes segmentos sociais brasileiros, uma necessidade quase unânime: a de buscar consenso e apoio entre “aliados e adversários” para qualquer projeto que se pretendesse construir em nossa realidade social. Uma sociedade democrática se faz principalmente com consenso, com luta pela hegemonia, com o livre debate de ideias e propostas. Só serão verdadeiros e legítimos os avanços e as conquistas resultantes deste livre processo de participação e de debate, onde se tenham confrontado diferentes alternativas e onde o elemento de convergência tenha sido construído com respeito às experiências de divergência. Dos difíceis anos que marcaram a passagem do momento ditatorial para o período da transição democrática, acreditamos que esta foi uma das lições mais longas e mais importantes a serem aprendidas por todos os segmentos sociais brasileiros. Consenso é algo que só se constrói efetivamente se for precedido de debate, de confronto de opiniões, o que, conforme já pontuamos, era algo absolutamente ausente em nossa sociedade nos anos do regime militar. Assim, nossa investida rumo à democratização foi dupla: primeiro, precisávamos construir espaços legítimos e concretos para o debate, depois, necessitávamos aprender a debater, a buscar o consenso. 913

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Desta forma, foi difícil para os mais diferentes setores sociais, inclusive os mais progressistas, aprenderem que fim da ditadura não foi, no caso brasileiro, sinônimo perfeito de democracia. Os processos de superação da ditadura civil-militar se confundiram com os de construção da nova ordem democrática, impossibilitando que se rompesse definitivamente com aquele passado de autoritarismo que nos caracterizava. Deste confuso momento de mudanças, concordamos com MOISÉS (1989: 51) que (...) as conseqüências para o processo de consolidação democrática são imensas: aumenta a capacidade de resistência dos setores que não querem avançar em direção à democracia, ampliam-se as incertezas dos que ainda não estão inteiramente convencidos das virtudes do jogo democrático ou confunde-se o horizonte daqueles que, definindo-se como democratas, têm imensamente ampliado o cenário de dilemas que passam a ter de enfrentar.

Este difícil exercício da democracia ainda é frágil, comprometendo as difíceis conquistas que empreendemos. No entanto, acreditamos que esta debilidade em nossa formação democrática e esta crise que a caracteriza ao longo da formação social não são insuperáveis e a história já se encarregou de demonstrar que a sociedade civil brasileira tem lutado, através dos mais diferentes canais de participação, para vencer estas limitações. Foi neste contexto que se multiplicaram, a partir de 1975, as associações de bairro, os centros comunitários, os movimentos de mulheres, de negros, de ecologistas, de homossexuais, de pacifistas, etc., com objetivos diferentes e, muitas vezes, divergentes. O que, na verdade, parece ter surgido foi a necessidade de se organizar em outras instâncias de participação que, se não questionavam o regime ditatorial e o sistema capitalista como um todo, também não eram alvo direto do autoritarismo militar. Garantia-se, assim, um espaço mínimo de questionamento e de reivindicação, superando-se, desta forma, o fechamento político que nos caracterizava naquele momento. Defendemos a idéia de que, independente desta tentativa de se superar o autoritarismo político, o fenômeno da “socialização da política” é característico de sociedades “ocidentais”, onde os aparelhos “privados” de hegemonia da sociedade civil, politicamente fortes e representativos, são também plurais, abarcando, em seu interior, as diferenciações próprias da complexificação da sociedade. No caso brasileiro, isso ficou característico e aquela busca de alternativas para a participação na vida social do país aos poucos foi dando espaço para

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diferenças e especificidades concretas, que se mostravam atravessadas pela questão da luta de classes, mas não mais centralizadas e/ ou determinadas por ela. A partir de então, estas questões específicas se transformaram em bandeiras de luta e se fizeram presentes, levantando necessidades que antes eram consideradas de importância menor. Um momento rico para analisarmos os efeitos deste processo de “socialização da política” foi a Constituinte de 1988, que mobilizou, para uma causa política, amplos setores da sociedade e que trouxe à tona novas demandas, nascidas a partir do movimento de transição democrática. Desta forma, podemos afirmar que o Brasil saiu do período militar bastante diferente de quando nele se inseriu, vivendo mudanças sociais, econômicas e políticas centrais para o que hoje entendemos de nossa sociedade. O modo capitalista de produção se afirmou e se expandiu, possibilitando, em seu interior, a complexificação de relações sociais que deram à nossa sociedade civil esta nova caracterização de “ocidental”. É importante ponderarmos ainda que este foi um avanço que, até os dias atuais, vem se afirmando e se completando. Embora tenhamos, por vezes, a impressão de que nossa sociedade civil é fraca, de que seus aparelhos de hegemonia são débeis e momentâneos e de que não existem, em nossa sociedade, possibilidades concretas de participação popular, isto não pode ser definitivamente comparado à ausência ou ao primitivismo de uma sociedade civil de tipo “oriental”, como nos confirma Gramsci. Florestan Fernandes (In BOSI, 1987, p. 219) nos dá mais elementos para este debate, aprofundando a discussão sobre as mudanças vivenciadas pela sociedade brasileira neste processo De 1945 a 1985, a sociedade brasileira transformou-se revolucionariamente, no que diz respeito ao modelo de desenvolvimento capitalista; às tensões estruturais e históricas que abalam a sociedade civil; ao volume, diferenciação e dinamismos, do regime de classes, sendo a transformação mais importante e decisiva a que se refere ao potencial político do pólo proletário na luta de classes; no crescimento do Estado, de sua capacidade de intervenção em todas as esferas da vida econômica, cultural e política da Nação, e da urgência histórica, que isso cria, de ruptura da hegemonia burguesa, nacional e estrangeira, no aparato estatal.

A constatação mais imediata à qual podemos chegar é que o processo cultural vivido nos anos 1960 se tornou, necessariamente, referência para o que foi produzido depois. Somos constantemente chamados a revê-lo e rediscuti-lo, e, em nossas avaliações, ele sempre surge 915

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como um elemento de comparação. Não hesitaríamos em afirmar que este constante retorno ao cenário cultural da década de 1960 é fruto daquela estreita aproximação com a perspectiva nacional-popular. Assim, tanto para os que com ela concordavam quanto para os que a ela se opunham, ficou a referência constante e o desafio de se “chegar ao povo”, garantindo a concretização dos objetivos que se apresentavam para os protagonistas daqueles anos. A questão que mais nos parece imediata diz respeito às possibilidades deste nacionalpopular no período pós-ditadura militar. A primeira impressão que temos é a de que esta perspectiva foi completamente anulada, deixando de estar presente naquelas manifestações que se pretendiam populares. No entanto, acreditamos ter deixado claro que esta impressão não procede. Se é verdade que o nacional-popular perdeu a centralidade e foi, muitas vezes, deslocado para a esfera do mercado, não podemos de forma alguma afirmar que ele desapareceu de nossa produção cultural, pois, até os dias de hoje, persiste esta intenção, pelo menos em determinadas áreas, de fazer desta esfera um espaço para a discussão e o questionamento das contradições de nossa realidade social. Mas é essencial ponderarmos que a cultura não é uma esfera isenta de contradições e de divergências. Muito pelo contrário, se a compreendemos como um espaço de manifestação da sociedade, veremos que em seu interior cabem tanto as qualidades quanto as imperfeições de todos os setores sociais que compõem determinada realidade. Desta forma, qualquer crítica que se faça às manifestações culturais de uma sociedade devem ser compreendidas como uma crítica à própria sociedade, pois com ela estabelecem um laço estreito que não se permite mais ser desfeito. Gramsci já nos informava desta relação e do risco de se cobrar da cultura, ou mais especificamente, de seus produtores e protagonistas, uma posição unidirecional e utilitária de transformação e de mudança social. Em suas palavras, (...) a incapacidade de ser uma época não pode se limitar à arte, mas diz respeito à totalidade da vida. A ausência de uma ordem artística (...) é coordenada à ausência de uma ordem moral e intelectual, isto é, à ausência de um desenvolvimento histórico orgânico. (1978, p. 24)

A fragmentação de nossa sociedade, nos níveis social, econômico e político, revelou-se no “mundo da cultura” sobretudo a partir dos anos 1970 e deu origem a críticas variadas que convergiam na constatação (e, muitas vezes, na acusação) de que nossa cultura havia perdido

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seu potencial de engajamento justamente quando a sociedade mais precisava dele. Como sabiamente nos questiona KONDER (1993, p.160) Como poderia ser diferente? Como nós, que vivemos numa sociedade tão fragmentada, poderíamos ser inteiros, monolíticos? Como as nossas culturas poderiam deixar de refletir os contrastes, os conflitos que acontecem quotidianamente à nossa volta, nos envolvendo e penetrando na nossa vida interior? Como a cultura do nosso país poderia ser harmônica?

É importante afirmar a essência pluralista e democrática que mantém o “mundo da cultura”, garantindo, assim, que ele revele as expectativas de toda a sociedade. Por isso, o que se confirma é que não existe, a nosso ver, a mínima possibilidade de convivência entre um universo político autoritário e uma esfera cultural livre e autônoma. Como a história brasileira nos ensinou, aos poucos vai se criando um conflito que tende a se radicalizar e os resultados, como vimos, dificilmente favorecem esta consolidação democrática. Assim sendo, podemos chegar à conclusão de que, concretamente, lutar por uma nova cultura significa, necessariamente, lutar por uma nova sociedade, e vice-versa. Conquista-se uma esfera cultural mais rica e sólida a partir do fortalecimento de uma sociedade civil verdadeiramente representativa, que tenha a possibilidade de se desenvolver em um cenário democrático de representação de interesses. O que percebemos é que esta relação, que poderíamos chamar de “ideal” não se estabelece sem conflitos ou desvios, e alguns deles bastante significativos. Vejamos, pois, aqueles que se tornaram mais evidentes no decorrer dos anos 1960 e 1970. Entendemos que nosso ponto de partida deve ser, necessariamente, o ano de 1964. Antes dele, esta relação entre cultura e sociedade civil estava amplamente favorecida por um cenário político minimamente democrático. Mesmo com todas as críticas que podemos traçar sobre este período, mesmo que o nacional-popular tenha sido, muitas vezes, confundido com nacionalismo-populismo, não há como negar que a cultura se transformou em um espaço diferenciado de representação de interesses, hegemonizado pelos setores progressistas (mas não monopolizado) e enriquecido por propostas de transformação global que eram construídas no seio da própria sociedade civil. O primeiro problema que podemos identificar foi o caráter altamente vanguardista daqueles movimentos. A falta de organicidade entre intelectuais e povo, já histórica em nossa 917

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formação cultural, manteve-se naqueles anos 1960, embora com outras características. Havia a intenção de se aproximarem estes dois segmentos, mas esta era uma intenção unidirecional, que partia daqueles intelectuais politicamente comprometidos, mas que não conseguia chegar aos setores populares. Assim, o ator principal deste espetáculo esteve ausente e as propostas que se construíram de libertação nacional e de conscientização popular se perderam na forma e no conteúdo em que foram vinculadas. Falando ainda dos conflitos que, no período pós-64, nos distanciaram daquela perspectiva nacional-popular que, embora de forma incompleta, havíamos alcançado, observamos uma tendência, nos anos 1960 e 1970, de negação e, conseqüentemente, de criminalização da política. Para o nacional-popular, isto teve um efeito imediato, uma vez que eliminou do cenário cultural nomes e propostas que tinham anteriormente se comprometido com os segmentos populares e esvaziou politicamente suas produções. A sociedade civil se encontrava completamente ausente destas decisões. Nacional passou a ser identificado com um nacionalismo de direita, onde a proposta do “ame-o ou deixeo” parecia indicar o destino mais provável para os “inimigos internos” subversivos e antinacionalistas. Popular, por sua vez, se transformou em um personagem absolutamente residual naquele movimento político. Distantes das decisões políticas e das perspectivas revolucionárias de esquerda, os setores populares passaram de atores a espectadores de um espetáculo dramático da história brasileira. Esta fase repressiva intervinha, desta forma, em um dos pilares que sustentam qualquer manifestação cultural que se pretenda legítima de uma sociedade, qual seja, a liberdade de expressão, a condição absolutamente autônoma de seus produtores. Reprimidas e silenciadas, as perspectivas de questionamento e de superação daquela ordem social se viram obrigadas a buscar alternativas que as distanciaram mais ainda dos setores populares, como as experiências de radicalização política ou de metáforas táticas para enfrentar a censura. Mas se a ação repressiva do regime militar tentou minar as forças progressistas que se construíam na sociedade civil e na esfera cultural em particular, não podemos deixar de lembrar que ela foi apenas uma das faces da intervenção militar. A outra, talvez mais agressiva justamente porque mais velada, foi o incentivo a um tipo de cultura, com temas e propostas que 918

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se apresentassem como justificadores do modelo político que se construía. Observe-se que, neste momento, podemos falar de um retrocesso para a esfera cultural no Brasil, uma vez que ela retornou aos aparelhos burocráticos do Estado. Recuperar os grandes feitos históricos, exaltar heróis nacionais, venerar nossas belezas e riquezas nacionais, divulgar a “ordem e o “progresso” que supostamente nos caracterizavam naquele momento, tudo isso servia como suporte para ocultar os atos repressivos e as manipulações políticas e econômicas que só mais tarde viríamos a conhecer. Vale observar que também a perspectiva nacional-popular elaborada por Gramsci propõe este retorno à história e à constituição social e política de determinada realidade social, mas o faz tentando resgatar e questionar as relações de poder e as desigualdades sociais que historicamente caracterizam esta sociedade. Conjugar estas duas fases, uma repressiva e outra promocional, demonstra a necessidade de os setores dominantes se aproximarem da esfera cultural e confirma nossas formulações, principalmente no que diz respeito ao fato de que nenhuma sociedade se sustenta sem o “mundo da cultura”. Esta esfera de representação e de manifestação é essencial para qualquer realidade social e influencia diretamente as relações de poder que se processam em seu interior. Consideramos que é necessário lembrar que esta fase promocional ocorreu justamente no momento em que a ditadura começou a buscar consenso junto aos diversos segmentos da sociedade, ou seja, no momento em que a coerção já não era mais suficiente para fazer avançar o projeto político autoritário. Outro elemento que atravessou as perspectivas culturais progressistas naqueles anos 1970 foi o fenômeno de consolidação das bases monopolistas da indústria cultural no país. Certamente não podemos compreender esta fração do mercado isoladamente, pois ela só pode ser analisada a partir do momento em que observamos que o próprio sistema capitalista se consolidou e se complexificou naquela década e, desta forma, a cultura foi apenas um dos diversos setores que se viram mais diretamente determinados pela lógica do mercado. A novidade daquele período não estava, portanto, no surgimento de uma indústria cultural, fato que pode ser observado desde o início do século, mas no seu fortalecimento.

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Acreditamos que esta contradição, presente na esfera da cultura a partir dos anos 1970, foi uma das características principais daquele período, mas que deixou marcas para todo o futuro de nossa produção cultural. De um lado, uma realidade de democratização e abertura política que dava aos intelectuais e aos organismos da cultura a possibilidade de trazer à tona os elementos de crítica, contestação e reivindicação que se faziam presentes na sociedade civil que, neste período, conquistava avanços significativos em direção ao seu processo de “ocidentalização”. Por outro lado, a censura do mercado, que limitava e selecionava o produto cultural que seria difundido e valorizado na sociedade brasileira. Neste caminho, abria-se novamente o espaço para as correntes intimistas e subjetivistas. Esta contradição revelava o clima de indefinição que abarcava toda a sociedade brasileira naquela virada de década. Como em todos os aspectos da sociedade civil, este foi, também para a cultura, um momento de redefinições, de reencontro com os caminhos interrompidos pelos anos do regime militar. A “transição negociada” pela qual passou o país deixou na sociedade civil o acentuado receio de um retorno ao autoritarismo e esta constante opção pelas conciliações “pelo alto” se refletiram na cultura através desta contradição. Com esta lógica, a obra de vários artistas e intelectuais foi redimensionada em direção à tentativa de se inserir no mercado das artes. Foi neste momento que identificamos aquele deslocamento das noções de nacional e de popular para esta esfera do mercado, o que, certamente, não tem relação com a proposição gramsciana. E foi a partir deste deslocamento que podemos perceber um momento de segmentação e de fragmentação da esfera cultural nas suas mais diferentes formas de expressão. Eis aí uma contradição que, surgida no interior do universo da indústria cultural nos anos 1970, trouxe mudanças centrais para a questão do nacional-popular. Paira sobre este debate a crítica de que a consolidação desta indústria gerou uma homogeneização do produto cultural, um nivelamento que tende a abolir as diferenças culturais e as particularidades artísticas. Assim, uma forma específica de música, de literatura, de cinema, etc. tornou-se quase um senso comum, refutando-se o que dela diferenciava ou distanciava. O processo de segmentação do público e, conseqüentemente, de segmentação dos produtos culturais que pudemos verificar no Brasil a partir dos anos 1970 representariam uma 920

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possibilidade de se enfrentar o tão criticado fenômeno da massificação gerado pela indústria cultural. Afirmam estes autores que, uma vez criada a necessidade de se colocar no mercado das artes um produto específico para cada grupo social, a indústria cultural perderia ou seria obrigada a ceder espaço no que se refere ao processo de padronização do consumo cultural gerado em seu interior. Quando nos detemos na abordagem da realidade brasileira, veremos que, para atender a esta necessidade de segmentação da cultura (e, conseqüentemente, da informação), a fração do mercado por ela responsável deu início, nos anos 1970, às experiências de se “criar nomes” para o “mundo da cultura”. Isso favoreceu o lançamento, no mercado nacional, de artistas e intelectuais já reconhecidos regionalmente, enriquecendo os debates e propostas que conseguiram ultrapassar a hegemonia da esfera Rio-São Paulo. A partir do final da década, quando já se anunciava o fim da ditadura militar e já se concretizavam tempos e espaços da abertura política, a cultura deixou de ser o lócus direto de luta política e recuperou, como vimos, outras temáticas que não o enfrentamento imediato com o regime militar. Foi a partir de então que podemos identificar com mais clareza aquela tendência de se “criar nomes”, atuando acentuadamente em nível da diversão e das abordagens apolíticas. Não é ocasional que este período coincida exatamente com bases monopolistas cada vez mais delimitadas na esfera cultural, com o fortalecimento de grupos que surgiram nos anos 1960, a partir daqueles incentivos do governo militar em sua fase positiva de intervenção na cultura. De todas estas formulações acerca da indústria cultural, podemos avaliar que sua intervenção naquela perspectiva nacional-popular dos anos 1960 foi decisiva para o período que se seguiu. Os movimentos culturais que, a partir do final da década, se formaram foram muito mais caracterizados por atingirem uma mesma fração de público de mercado do que por apresentarem projetos culturais ou sociais semelhantes para a sociedade brasileira. Desde então, ouviremos falar muito mais de nomes de artistas e intelectuais que se destacam no cenário cultural individualmente do que de movimentos com um elemento convergente para os projetos societários, como aqueles que tiveram relevância no período anterior à ditadura militar.

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Destas experiências resultou uma grande diversidade de manifestações culturais que, agora, já não estavam tão diretamente comprometidas com o debate estritamente político da realidade brasileira, mas também apontavam para elementos críticos da sociedade, como as questões de gênero, raciais, ambientalistas, etc. Ora, para um momento em que se reconquistavam os canais mais diretos para a discussão política, como os sindicatos e os partidos, parece-nos um avanço significativo que a cultura tenha se apresentado como um espaço privilegiado para receber outros debates e outras propostas, revelando, como já dissemos, que a sociedade avançava para uma organização e para uma participação em instâncias diferenciadas. Saber que a cultura brasileira conseguiu acompanhar este movimento da sociedade e refletir esta pluralidade de questões e de interesses nos conduz a afirmar que houve então um significativo avanço. Neste momento, apresentou-se para nossa sociedade um leque diferenciado de opções para refletir seu nacional-popular que, na concepção gramsciana, não se restringe, como vimos a um tema ou a um conjunto de temas, mas representa uma forma alternativa de abordar as grandes questões que envolvem determinada realidade social. Também não podemos deixar de observar que, nesta década de 1970, a esfera cultural conseguiu refletir em seu interior as principais modificações que a sociedade brasileira vivenciou a partir da consolidação das bases capitalistas de produção. Além do fortalecimento da indústria cultural e da capitalização dela decorrente nos seus mais diferentes setores de manifestação, podemos identificar também uma resposta positiva dos artistas e intelectuais, principalmente no que se refere à sua constituição enquanto categoria profissional. Continuando nossas formulações acerca dos avanços que a esfera cultural vivenciou, podemos observar também que houve um grande destaque para as produções regionalistas do país. Em outras palavras, o Brasil “se descobriu” culturalmente, com o surgimento, em nível nacional, de nomes e propostas que se apresentavam como representantes desta ou daquela região do país, refletindo, em suas obras, as diferenciações e as desigualdades dela características. Este não foi, certamente, um movimento que surgiu neste período histórico, mas foi esta década que o generalizou, permitindo, inclusive, uma valorização destas experiências, que antes eram vistas com certo preconceito, por revelarem “questões de minorias”. 922

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Este fenômeno, que mais tarde também foi abarcado pela indústria cultural, teve, a princípio, uma função bastante significativa no sentido de recuperar nosso “nacional” e nosso “popular” a partir daquela perspectiva de “unidade na diversidade”, ou seja, no reconhecimento de que não podemos falar de “uma cultura brasileira” sem que ela seja compreendida a partir de uma diferenciação a ela inerente, de “culturas nacionais” que se afirmam e que, muitas vezes, se contradizem sem que com isso eliminem a riqueza de nossas manifestações sociais. Este quadro nos abre a discussão para outra questão que também nos inquietou durante o desenvolvimento deste trabalho. Referimo-nos à necessidade e à luta pela democratização do acesso à cultura, questão que se fortalece nos dias atuais e que também é fruto do quadro cultural vivido no final dos anos 70. A indústria cultural pode nos dar a impressão, certamente equivocada, de que ela é a materialização mais real desta democratização, uma vez que atende a todos os setores sociais criando um tipo de produto cultural para cada segmento, desde os mais populares até os mais eruditos, permitindo, assim, o livre acesso e a livre escolha acerca destes produtos. Sem dúvida, o que aqui defendemos é muito mais que isso. Desta forma, Na medida em que a sociedade civil se organizar melhor e seus movimentos se fortalecerem, na medida em que crescer o número das pessoas que conseguem ter acesso a informações mais ricas e mais diversificadas, as pessoas poderão comparar produtos culturais diferentes e poderão fazer escolhas mais amadurecidas e fundamentadas. Então, elas constituirão um público mais crítico, mais exigente. Com um peso maior nas decisões dos centros de difusão cultural e na orientação seguida pelos meios de comunicação de massa. (KONDER, 199, p. 165)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos concluir que a cultura foi capaz de acompanhar todas as mudanças significativas que a sociedade brasileira vivenciou neste período. Assim, mesmo que a cultura tenha deixado de ser um “campo de luta política”, a qual retornou a seus espaços mais diretos de reivindicação, ela não deixou de ser um espaço de manifestação real das possibilidades e dos limites encontrados por esta sociedade rumo ao seu processo de “ocidentalização”. Assim, aquelas bases e perspectivas do nacional-popular continuam a buscar espaço dentro da esfera cultural, embora convivam com sérias limitações resultantes, principalmente, daquele fortalecimento de elementos puramente mercantis no interior deste quadro. 923

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No que diz respeito à superação da dependência cultural, entendemos que os anos 1970 foram decisivos. A partir de então, houve a concretização desta perspectiva de assimilação mútua, permitindo-nos despontar no cenário cultural internacional com a autonomia e a legitimidade necessárias para um debate enriquecido por uma verdadeira troca de experiências. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento; fragmentos filosóficos, Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. ALENCAR, Mônica Maria Torres de. Cultura e Serviço Social no Brasil (1960 -1968). Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1994. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984. ARRABAL, José et alli. Anos 70; Teatro. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora Ltda., 1980. BERNADET, Jean-Claude. Anos 70; Cinema. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora Ltda., 1980. BERNADET, Jean-Claude. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1986. BOSI, Alfredo (org.). Cultura Brasileira; temas e situações. São Paulo: Ática, 1987. ______. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CANCLINI, Néstor García. Consumidores e Cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. ______. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp, 1997. CÂNDIDO, Antônio. A Educação pela noite & outros ensaios, Rio de Janeiro: Ática, 1993. ______. Literatura e Sociedade; estudos de teoria e história literária, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985 CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência; aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. ______. Cultura e democracia. 6 ed., São Paulo: Cortez, 1993. COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e Sociedade no Brasil. Belo Horizonte: Oficina do Livro, 1990. ______. Crise e Redefinição do Estado Brasileiro. In PEPPE, Atílio & LESBAUPIN, Ivo (org.). Revisão Constitucional e Estado Democrático. São Paulo: Loyola; Rio de Janeiro: Centro João XXIII, 1993, p. 77-99. ______. Democracia e Socialismo; questões de princípios & contexto brasileiro. São Paulo, Cortez: Autores Associados, 1992. ______. Gramsci; um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ______. Marxismo e Política. São Paulo: Cortez, 1994. COUTINHO Carlos Nelson e outros. Realismo e Anti-Realismo na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. ESTEVAM, Carlos. A questão da Cultura Popular. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1963 924

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COERÇÃO E CONSENSO NA RELAÇÃO ENTRE ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA

Bruno Bruziguessi1

RESUMO

Este artigo tem o propósito de retomar, a partir das categorias gramscianas, no processo de formação social brasileira, a relação entre o Estado e a sociedade civil, situando os momentos de ruptura e continuidade históricas a partir da correlação entre coerção e consenso, que vai se estabelecendo entre estas esferas e caracterizando o grau e as características particulares do processo de “socialização da política” na sociedade civil brasileira e o caráter mais ou menos autoritário do Estado. Relação esta que vai apontando as formas em que se dão as lutas sociais no Brasil e o potencial organizativo da classe trabalhadora.

DESENVOLVIMENTO Ao analisar períodos determinantes da formação social brasileira, notamos que estes estão cercados de momentos de Revolução Passiva. De acordo com Coutinho (2007), o Brasil passou por uma modernização capitalista sem ter, de fato, vivenciado os processos típicos de uma revolução burguesa clássica2, como a França e a Inglaterra. A revolução burguesa no Brasil apresentou traços de conservação de elementos que outrora eram tidos como obstáculos para a

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Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: [email protected] 2 “A via ‘clássica’ implica uma radical transformação da estrutura agrária: a antiga propriedade pré-capitalista é destruída, convertendo-se em pequena exploração camponesa. Nesse caso, não só desaparecem as relações de trabalho précapitalistas, fundadas na coerção extra-econômica sobre o trabalhador, mas também é erradicada a velha classe rural dominante, já que são eliminadas as formas econômicas em que ela se apoiava e de cuja reprodução dependia a sua própria reprodução como classe” (COUTINHO, 1990, p. 170).

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consolidação do capitalismo, tais como o latifúndio pré-capitalista e a dependência ao imperialismo. O processo de abolição da escravidão, promulgada oficialmente em 1888, pode ser entendido como um momento de Revolução Passiva e não como momento de revolução social, como afirma Maestri (2005). Se, por um lado, havia um movimento abolicionista e um processo de resistência da força de trabalho escrava, por outro lado existia a necessidade de formação de um mercado de trabalho assalariado, que teve como ponto central de fortalecimento a imigração européia. Ao mesmo tempo e praticamente como continuação deste processo de abolição da escravidão vem a Proclamação da República, em 1889, que vai alterar a composição do Estado brasileiro, dando as condições políticas necessárias para as mudanças no modelo de acumulação econômica através de uma correlação de forças favorável ao estabelecimento da articulação do capital internacional com a burguesia industrial nascente. Deste processo nasce o chamado Estado oligárquico (1889-1930), marcado por um forte caráter antidemocrático e arbitrário em relação às camadas populares da sociedade e suas formas de organização. Este período também foi marcado pela hegemonia política dos grandes proprietários de terra, que tinham liberdade para capitalizar as disputas políticas entre os grupos agrários de suas regiões ou localidades. Estes grupos tinham total controle das camadas populares, visto que seu poder era soberano em relação aos dispositivos legais. Assim, foi se consolidando um discurso de que era necessário um Estado forte para conter as revoltas populares, havendo, desta forma, “toda uma ‘interpretação’ da sociedade fundamentando a conciliação pelo alto, a manipulação do aparelho estatal em benefício dos interesses do bloco agrário. Daí o predomínio do Poder Executivo sobre os outros poderes” (IANNI, 1984, p. 16). Este ajuste do bloco do poder era fundamentado e organizado a partir da exclusão e coerção das camadas populares e até mesmo de estratos da classe média. Neste período já estava em curso um trato repressivo sobre o operariado em formação na sociedade brasileira. Mas a passagem para um modo de produção capitalista não significou, na realidade brasileira, a princípio, a passagem para um modelo de acumulação industrial, pois este processo 928

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de industrialização retardatária teve suas bases ancoradas na economia cafeeira, que, por sua vez, se assentava nas relações de caráter prussiano de produção, ou seja, a convivência de resquícios pré-capitalistas do período do escravismo colonial com o surgimento de formas modernas de produção, dando as bases fundamentais para o surgimento do capital industrial. Este processo acaba expressando a transição da hegemonia, no bloco de poder do Estado, da oligarquia cafeeira para a burguesia industrial, à medida que “o capital industrial nasceu como desdobramento do capital cafeeiro empregado, tanto no núcleo produtivo do complexo exportador (...), quanto em seu segmento urbano” (CARDOSO DE MELLO, 1994, p. 100). Além do emprego de força de trabalho assalariada, vinda da imigração européia, que supriu as necessidades do setor produtivo do complexo cafeeiro e de seu segmento urbano, criando também um contingente de trabalhadores nas cidades. Se, de um lado, há uma transformação no modelo de acumulação, por outro, a transformação da ação do Estado também ocorrerá, especialmente quando partimos de um traço histórico do Estado brasileiro desde o período colonial, assumindo novas formas ao longo dos anos sem perder sua essência: o autoritarismo. Assim sendo, Ianni traça uma peculiar forma de constituição da sociedade capitalista brasileira que se estende até a contemporaneidade quando afirma que todas as formas históricas do Estado, desde a Independência até o presente, denotam a continuidade e reiteração das soluções autoritárias, de cima para baixo, pelo alto, organizando o Estado segundo os interesses oligárquicos, burgueses, imperialistas. O que se revela, ao longo da história, é o desenvolvimento de uma espécie de contrarevolução burguesa permanente (1984, p. 11).

No processo de mudança do modelo de acumulação, podemos observar esta trajetória ininterrupta do autoritarismo, sobretudo no que tange a força de trabalho que será incorporada em meados do período republicano e especialmente no período conhecido como Estado Novo. Ao mesmo tempo, há um maior avanço dos direitos políticos, o maior grau de organização e participação da classe trabalhadora em aparelhos da sociedade civil – e mesmo a constituição destes aparelhos –, contribuindo com o fortalecimento desta esfera. Este fortalecimento da sociedade civil, este processo de ocidentalização, é fundamental para caracterizar o processo de ampliação do Estado brasileiro, que será estabelecido a partir dos anos de 1930.

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Neste sentido, agora passa a existir uma sociedade que materializa e amplia os espaços de conflito entre as classes sociais, passando a existir frentes de representação da classe trabalhadora frente à representação de interesses da classe dominante, abrindo espaço para uma disputa ideológica e política. Segundo Coutinho (1997, p. 162), “foi precisamente esse novo espaço público que Gramsci chamou de ‘sociedade civil’”. Com esse redimensionamento da sociedade civil, o Estado precisa potencializar suas funções para além de garantir a propriedade e, com isso, já não pode ser estável e se reproduzir mediante o simples recurso à coerção. Torna-se agora necessário obter também o consentimento, ainda que relativo, dos governos, o que se opera, sobretudo, precisamente no âmbito da “sociedade civil” (COUTINHO, 1997, p. 163).

Florestan Fernandes desenvolve a função que a oligarquia agrária desempenhou na transição do poder hegemônico das classes dominantes, destacando que, com a abolição da escravatura, as oligarquias ficaram sem sua base econômica e, desta forma, também sem sua força política. Assim, “para fortalecer-se, ela tinha de renovar-se, recompondo aquele padrão de dominação segundo as injunções da ordem social emergente e em expansão” (FERNANDES, 1975, p. 208). Referindo-se a uma “crise do poder oligárquico”, Fernandes (1975, p. 208-209) afirma ainda que essa crise – como um processo normal de diferenciação e de reintegração do poder – tornou os interesses especificamente oligárquicos menos visíveis e mais flexíveis, favorecendo um rápido deslocamento do poder decisivo da oligarquia “tradicional” para a “moderna” (algo que se iniciara no último quartel do século XIX, quando o envolvimento da aristocracia agrária pelo “mundo urbano dos negócios” se tornou mais intenso e apresentou seus principais frutos políticos).

Foi dentro deste ajuste da “velha oligarquia” em uma oligarquia “moderna” que se desenvolveu a mentalidade burguesa e, principalmente, as formas que se desenharam os padrões de dominação que irão se firmar vigorosamente durante o Estado Novo. Assim, a oligarquia “comboiou os demais setores das classes dominantes, selecionando a luta de classes e a repressão do proletariado como o eixo da Revolução Burguesa no Brasil” (FERNANDES, 1975, p. 209). O Estado brasileiro assumirá um papel fundamental nos processos de transformação da sociedade, onde se recorre com freqüência à dominação da classe do poder em detrimento de uma falta de direção desta mesma classe. Este fenômeno Gramsci chamaria de “ditadura sem 930

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hegemonia”, pois “a hegemonia será de uma parte do grupo social sobre o conjunto do grupo, não deste sobre outras forças a fim de potenciar o movimento, de radicalizá-lo, etc., segundo o modelo ‘jacobino’” (apud COUTINHO, 2007, p. 204). A dominação, em Gramsci, é sempre repressiva e autoritária, enquanto a direção é sempre consensual, porém não é sempre que a classe que detém a dominação consegue, também, deter a hegemonia/consenso, não conseguindo ser a classe politicamente dirigente, tendo que recorrer, sempre que sua hegemonia é ameaçada, à sua face coercitiva. Desta forma, a “superestrutura política e jurídica” da sociedade de classes no Brasil assumirá traços peculiares ao longo dos anos, pois deve garantir a estrutura de poder para garantir o “superprivilegiamento” das classes dominantes. Ao mesmo tempo, tem de garantir a viabilidade das relações econômicas na ordem social competitiva, uma vez que “o desenvolvimento capitalista dependente requer uma combinação especial de padrões democráticos e de padrões autoritários ou autocráticos de comportamento político” (FERNANDES, 2009, p. 102). Com isso, existe uma estratégia política para manter a competitividade da ordem capitalista e o desenvolvimento do modo de acumulação, fazendo com que o “arcaico” e o “moderno” se relacionem, como forma fundamental para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Assim, Oliveira (2003) destaca o papel que o populismo3 terá para a efetivação desta política, no período de 1930-1964, criando novas relações entre a classe trabalhadora e o capital. As condições de dominação da burguesia não serão somente garantidas por via das estratégicas populistas e nem somente retomando o autoritarismo, recorrendo a um grande traço histórico da formação social do Brasil: a relação entre consenso e coerção. O Estado/sociedade política nunca deixará de lado nenhuma destas características, podendo ter uma maior inclinação a um lado que a outro, mas essencialmente relacionando estas características de dominação e hegemonia, mesclando, como nos mostrou Moore Jr (1975), momentos de ditadura e de democracia, variando o formato de acordo com a correlação de forças entre as frações no bloco

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Na teoria política contemporânea, novas análises e críticas têm sido elaboradas acerca do debate do populismo e sua viabilidade no processo de correlação com a formação brasileira. Porém, estas novas interpretações, em razão dos limites deste trabalho, não serão explicitadas por nós.

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de poder e também na força de pressão e dimensão política das organizações da classe trabalhadora. Assim se caracteriza a chamada “revolução de 1930”, como uma transformação da composição da classe dominante e na estrutura de poder, alterando o padrão de acumulação e, ao mesmo tempo, instaurando, conservando e fortalecendo o modo de produção capitalista. A burguesia industrial terá hegemonia de poder dentro da estrutura de dominação de classe “sem afetar a extrema concentração de renda, do prestígio social e do poder” (FERNANDES, 2009, p. 109), mas as oligarquias, já segmentadas em grupos e subgrupos, também exercerão parte do poder. É desta forma que se constituirá um Estado tecnocrático, submetido ao controle conservador das classes privilegiadas, graças à modernização das estruturas e funções do aparelho estatal (...), a ‘intervenção estatal’ pode ser usada pelas classes dominantes como o “braço público” da revolução burguesa (FERNANDES, 2009, p. 109).

Desta forma, afirmamos que o “novo modo de acumulação” se baseia na introjeção de novas relações de produção no seio das relações arcaicas e, ao mesmo tempo, uma reprodução de formas arcaicas dentro das novas relações; fazendo com que um sistema produtivo (agricultura) que era todo – ou praticamente todo – voltado para o mercado externo agora se volte para a realização e expansão do novo setor interno de produção, a indústria. Assim a burguesia industrial firmou bases na conjuntura brasileira e é deste processo que podemos identificar, nos termos de Gramsci, um dos elementos que nos permitem pensar no processo de ampliação do Estado brasileiro, a partir do momento em que, para exercer sua dominação e preocupado em conter, desde os primeiros momentos, a classe trabalhadora em formação, o bloco de poder necessita de mais do que mera coerção. Baseando suas análises sobre a realidade brasileira na obra de Gramsci, Carlos Nelson Coutinho (2007) é claro ao tratar esta questão, quando afirma que as classes dominantes “preferiram delegar a função de dominação política ao Estado – ou seja, às camadas militares e tecnoburocráticas –, ao qual coube a tarefa de ‘controlar’ e, sempre que necessário, reprimir as classes subalternas” (p. 204). E continua: “porém, não significa que o Estado protagonista de uma Revolução Passiva possa prescindir de um mínimo de consenso; de outro modo, ele teria de utilizar sempre a coerção, o que, a longo prazo, tornaria impossível seu funcionamento” (p. 205). 932

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Assim, o período ditatorial do Estado varguista (1937-1945) será um período de importante maturidade e desenvolvimento da sociedade civil, dos aparelhos “privados” de hegemonia, onde o Estado integral passa a se formar e a sociedade civil começa a se estruturar como um espaço de conflito entre as “classes fundamentais” em busca da conquista da hegemonia enquanto uma capacidade de unificar através da ideologia e de conservar unido um bloco social que não é homogêneo, mas sim marcado por profundas contradições de classe. Uma classe é hegemônica, dirigente e dominante, até o momento em que consegue manter articulado um grupo de forças heterogêneas (...) (GRUPPI, 1980, p. 70).

Na realidade brasileira, o embate entre as classes fundamentais fez com que surgissem legislações que regulamentassem as condições de trabalho e controlassem a realidade social, em certa medida, dos trabalhadores. O Estado começou a associar suas estratégias de coerção às de consenso, passando a negociar com a classe trabalhadora, tendo de aceitar parte de suas reivindicações e, ao mesmo tempo, construindo novas estratégias para garantir não só a dominação, mas a hegemonia. Através da utilização da legislação trabalhista, vai surgir, agora no campo superestrutural, o fenômeno do transformismo, que seria, na perspectiva gramsciana, a “assimilação pelo bloco no poder das frações rivais das próprias classes dominantes ou até mesmo de setores das classes subalternas” (COUTINHO, 2007, p. 205). Este transformismo pode ser identificado mais facilmente com o processo de cooptação, o qual pode ser caracterizado de duas formas: a primeira é pela incorporação de indivíduos que representavam segmentos progressistas e contestatórios ao aparelho do Estado; a segunda é a incorporação de grupos inteiros ao campo mais moderado. Define-se aí uma situação concreta, pois, junto ao emparelhamento da estrutura sindical por parte do Estado varguista, ocorre tanto um processo de desmobilização das camadas trabalhadoras e um recuo das organizações; por outro lado, as organizações que não se renderam às estratégias de desmobilização e despolitização foram alvos da ação coercitiva do Estado/sociedade política, mesmo que já se encontrasse certos graus de socialização da política na esfera da sociedade civil, pois este grau de politização não exclui as ações realizadas pelos

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aparatos repressivos, sempre resguardados para serem lançados à mão pela burguesia, nem descarta a possibilidade de uma relação mais constante entre coerção e consenso. O período que se estende de 1930-1964 irá se caracterizar, no Brasil, pelo fenômeno do populismo, que será de certa forma uma herança do período varguista. A ideologia populista virá, neste período já citado, no sentido de garantir uma forma de dominação sob hegemonia da burguesia industrial (nacional sob a dependência político-econômica da internacional) e também como forma de garantir o desenvolvimento do capitalismo no país. O projeto populista, de acordo com Weffort (apud CERQUEIRA FILHO, 1982), tem três componentes fundamentais, que seriam: “a personalização do poder”, caracterizando o autoritarismo advindo desta personalização; “a soberania do Estado sobre o conjunto da sociedade”, criando uma espécie de dicotomia entre Estado/sociedade, onde o primeiro se apresenta como um ente acima das classes e estas como partes iguais de um todo integrado. Por fim, a “necessidade de participação das massas populares” como forma de legitimar a dominação burguesa, uma vez que esta participação será no sentido de criar uma dependência às classes burguesas sob a prática do “favor”, submetendo as classes trabalhadoras à dinâmica de manipulação pública ou privada por parte das classes dominantes. É importante, neste momento, retomar um importante elemento de análise para entender um dos traços históricos da relação entre Estado e sociedade na formação social brasileira: a relação intrínseca entre o autoritarismo e o paternalismo, visto que o projeto populista sintetiza estas duas faces do Estado – e, consequentemente, da classe burguesa brasileira – no trato com os trabalhadores. O período populista é marcado por um crescimento da participação política da classe trabalhadora: dos operários, camponeses, funcionários públicos e assalariados de uma forma geral. Porém, esta participação pode ser interpretada em um sentido duplo, pois, por um lado, era elemento de manobra dos setores da burguesia para consolidar sua política populista, mas, por outro lado, havia a participação efetiva de trabalhadores na condição de construir uma opinião pública vinda da própria classe que lutava por direitos. Na outra ponta, o caráter autoritário do discurso político encontra base nos recursos e expedientes autoritários utilizados com êxito pelas classes dominantes para assegurar a inserção do sistema eleitoral dentro das estruturas viciadas do Estado Novo face à nova realidade nacional e sobretudo internacional (CERQUEIRA FILHO, 1982, p. 150).

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Tanto o populismo quanto o autoritarismo têm no Estado seu núcleo centralizador das ações frente à classe trabalhadora, é de onde vêm as ações que “dão vida” e, ao mesmo tempo, “tiram a vida” dos movimentos populares, das expressões de luta dos trabalhadores, seja utilizando da concessão de direitos para incidir nas suas formas de organização, manipulandoas ou pela simples e eficaz repressão direta. O golpe de 1º abril de 1964 pode ser compreendido como mais um momento de Revolução Passiva na história da formação sócio-econômica brasileira, na medida em que se altera a composição do bloco de poder sem alterar o fundamento estrutural da sociedade capitalista e, ao mesmo tempo, limitando o fortalecimento das forças progressistas que estavam em ascensão naquele momento no Brasil. Assim, altera-se a composição do Estado e suas características de dominação, após mais de 30 anos de populismo, assumindo a forma de uma ditadura civil-militar ou, como definiria Florestan Fernandes, uma autocracia burguesa4. Esta transformação “pelo alto” teve sua raiz na opção do modelo de acumulação e desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A burguesia refaz, então, um pacto com o capital monopolista internacional encabeçado pelos Estados Unidos, relegando as liberdades políticas dos trabalhadores. O medo da aproximação do ideário comunista, potencializado pela organização dos trabalhadores no Brasil, por parte da sociedade brasileira impulsionou esta opção tomada pelas frações da burguesia, muito mais como uma medida imediata em um período de crise econômica, que acirrava ainda mais a relação sociedade civil/sociedade política. Esta opção dava maior ênfase à estrutura de dominação baseada na repressão, na extrema institucionalização das relações sociais, no aparelhamento estatal de organizações da sociedade civil e na militarização nas relações entre sociedade política e sociedade civil, praticamente uma incorporação da sociedade civil por parte da sociedade política e estabelecendo uma relação de supremacia da dominação frente a hegemonia.

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A autocracia, de acordo com Fernandes (1975), é um dos elementos que caracterizam o capitalismo dependente, conjugando-o com miséria, exclusão despótica e ausência de direitos para os trabalhadores. Assim, “a dominação burguesa se associava a procedimentos autocráticos, herdados do passado ou improvisados no presente, e era quase neutra para a formação e a difusão de procedimentos democráticos alternativos, que deveriam ser instituídos (na verdade, eles tinham existência legal ou formal, mas eram socialmente inoperantes)” (FERNANDES, 1975, p. 207).

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A partir destas características, podemos afirmar que foi uma medida imediata no sentido mesmo do seu período de sustentação, pois uma ditadura nos termos acima apontados não pode durar suficientemente sem uma parcela de consenso. Uma ditadura baseada prioritariamente na repressão não se sustenta sem legitimidade por parte da sociedade civil e esta legitimidade não pode ser conquistada somente à base da violência, dependendo também de elementos econômicos e ideológicos incorporados pela autocracia. Netto afirma que a finalidade do golpe de 1964 foi de golpear e imobilizar os protagonistas sociopolíticos habilitados a resistir a esta reinserção mais subalterna no sistema capitalista; e, enfim, dinamizar em todos os quadrantes as tendências que podiam ser catalisadas contra a revolução e o socialismo (NETTO, 2008, p. 16).

O processo de socialização da política, que irá caracterizar a estruturação de uma sociedade civil forte, passa por um período crítico na medida em que a questão não é somente a hegemonia burguesa nos espaços do Estado, mas sim a limitação destes espaços de disputa de consenso e a sistemática recorrência às medidas coercitivas no trato das organizações da classe trabalhadora. A socialização da política, na vida brasileira, sempre foi um processo inconcluso – e quando, nos seus momentos mais quentes, colocava a possibilidade de um grau mínimo de socialização do poder político, os setores de ponta das classes dominantes lograram neutralizá-lo. Por dispositivos sinuosos ou mecanismos de coerção aberta, tais setores conseguiram que um fio condutor costurasse a constituição da história brasileira: a exclusão da massa do povo no direcionamento da vida social (NETTO, 2008, p. 18-19).

Neste sentido, o mesmo autor coloca que há, desde 1930, um esforço, por parte do Estado burguês, de manter a sociedade civil brasileira em condição frágil, impedindo que as formas de expressão da classe trabalhadora tivessem força, seja sob ações e discursos de desmobilização, seja pela ação repressiva, sempre na tentativa de não permitir a entrada da classe trabalhadora nos espaços de poder político, onde se possa elevar o nível de consciência e de organização desta classe. A chamada crise do regime autocrático foi impulsionada, de acordo com Duriguetto (2007), por dois vetores: o primeiro foi a crise econômica que assolou a nação, evidenciada na crise do “milagre brasileiro” a partir dos primeiros anos da década de 1970; o segundo foi o reascenso dos movimentos populares e democráticos.

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A crise econômica atingiu diretamente a condição de vida da classe trabalhadora, que se encontrava em situação de recessão dos direitos, baixa remuneração, desemprego – por conta da crise econômica – e ingerência do Estado frente a esta situação. Era necessário retomar os direitos perdidos. Com o fim de uma suposta estabilidade econômica, que era um dos elementos que mantinha o regime militar com certa aceitação frente a sociedade civil, os mais diversos setores da sociedade brasileira começaram um movimento de reivindicação de suas demandas, tanto no âmbito da classe trabalhadora quanto de demandas específicas de frações desta classe. Ainda destacamos, sobre este primeiro vetor da crise do período ditatorial, que está embutida na crise econômica, a necessidade de remontar a estrutura de dominação e desenvolvimento capitalista, mantendo certa legitimidade frente à sociedade civil. Desta forma, a burguesia tinha de remanejar seu bloco de poder novamente, com novas formas que viabilizam o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Neste sentido, os militares começaram a trabalhar a ideia de uma abertura política, porém esta não poderia ser de forma a deixar os rumos da política brasileira “à própria sorte”, mas deveria estar vinculada aos setores que vinham compartilhando do governo militar nos anos anteriores, se configurando como mais uma transição “pelo alto”. “Este pode ser identificado como o momento em que o regime militar percebe a necessidade de somar aos seus habituais aparelhos de coerção, outros de direção, de consenso, de hegemonia” (BEZERRA 1998, p. 131). Dando maior equilíbrio às relações entre sociedade política e sociedade civil, visto que havia uma tendência a recriação dos espaços “privados” de hegemonia e fortalecimento da classe trabalhadora na reivindicação por direitos, havia a necessidade de rearticular a institucionalização do bloco de poder do Estado, uma vez que tensionamentos poderiam colocar em xeque o projeto da burguesia com um embrionário movimento de massas. Neste sentido, o regime buscava uma abertura “lenta, gradual e segura”, para que pudesse controlar o movimento da sociedade civil. Esta sociedade, entretanto, vinha em uma direção de reorganização, de busca por novas formas de enfrentamento do regime, que estava em descenso, marcando um período de retomada da socialização política, recolocando o Brasil no caminho da “ocidentalização”.

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No sentido de reorganização dos aparelhos “privados” da sociedade civil destaca-se a ruptura da estrutura sindical, herança do varguismo, e o início das grandes greves do ABC paulista a partir de 1976. Era o chamado “novo sindicalismo”, que se voltava para demandas que estavam para além das conquistas trabalhistas, indo de encontro a questões como a quebra do corporativismo sindical até a quebra da legislação repressiva e a defesa dos direitos humanos. Destaca-se, também, a criação de centrais sindicais para articular os diversos ramos profissionais sindicalizados, dentre as quais vale citar a fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), fundada em 1983. No campo, após o primeiro processo de ocupações de terras feitas por famílias inteiras a partir de 1979, foi em 1984 que o resultado dessas articulações e o acúmulo de forças se materializaram no 1º Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel, no Paraná, no qual foi fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O final dos anos 1970 e toda a década de 1980 retrataram um contexto internacional de crise estrutural do sistema capitalista global. Ao mesmo tempo, há a crise do chamado “socialismo real”. A experiência soviética estava em declínio político e econômico e anunciavase o “fim da Guerra Fria”, com uma vitória do estampado imperialismo estadunidense, sobretudo no campo ideológico. No Brasil, a década de 1990 se inicia, por um lado, com as conquistas democráticas da Constituição de 1988 e, por outro lado, pela inserção dos ajustes econômicos de corte neoliberal. Em meio a isso, profundas transformações nas relações sociais rebaterão diretamente na correlação de forças pelas próximas duas décadas da história brasileira. Seja através de um neoliberalismo mais ortodoxo aplicado por Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), ou por medidas que expressarão a política de conciliação de classes dos governos do Partido dos Trabalhadores, com Lula e Dilma Roussef (2003-2016). Contexto de uma articulação entre coerção e consenso ainda mais arraigada, onde o consenso funciona como legitimação não só da ordem societária estabelecida, mas também como sustentação da própria coerção, próximo do que foi no período ditatorial, mas sob novas bases, uma vez que se fala em um Estado Democrático de Direito.

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Os grandes meios de comunicação de massa agem como um poderoso recurso ideológico na conjuntura atual, estabelecendo as bases necessárias para a sedimentação do consenso, imprimindo aspectos fundamentais para a intensificação de ações repressivas e de criminalização, sobretudo via poder judiciário, que passam a ser largamente utilizados a partir dos anos 2000 na sociedade brasileira, levando a uma judicialização das lutas sociais e da própria política. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste trabalho tentamos estabelecer os fundamentos sócio-históricos que acarretaram o processo de criminalização dos movimentos sociais na contemporaneidade, permeado pelas transformações na relação entre Estado e sociedade civil e nas particularidades do modelo de acumulação capitalista brasileiro. Assim, a relação entre sociedade política e sociedade civil sempre terá características que irão mesclar entre a coerção e o consenso, como traços históricos da relação do bloco de poder com a classe trabalhadora, uma vez que a manutenção da dominação e a conquista ampla da hegemonia garantem a supremacia burguesa frente aos trabalhadores. No caso brasileiro, na relação entre coerção e consenso, há uma recorrência maior do uso dos aparelhos coercitivos em relação a outras formações sociais e esta recorrência assumirá formas distintas ao longo da história, incorporando novas maneiras de estabelecer a relação entre coerção e consenso, como é o caso do que chamamos de criminalização dos movimentos sociais. Desta forma, é a correlação de forças sociais na esfera da sociedade civil que irá determinar as disputas que ocorrerão tanto na própria sociedade civil, quanto nas fissuras que podem surgir na esfera da sociedade política. A luta por direitos é exatamente a mediação da força com que as lutas irão incidir na sociedade política, podendo ser atendidos ou não, ou mesmo sofrendo regressões. Como coloca Iasi (2011, p. 188): algumas pessoas imaginam equivocadamente, assim como Marshall, que os patamares de direitos além de linearmente evolutivos não regridam, isto é, que enquanto a superação revolucionária não vem, viveríamos no máximo da emancipação política alcançada historicamente, o que não se verifica.

É a correlação de forças sociais que determina o grau de conquistas e também das possíveis regressões, que podem evidenciar as contradições dentro do bloco de poder da 939

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sociedade política. Em meio a toda esta correlação de forças, a ideologia exerce função cada vez mais determinante, demandando, por parte das classes dominantes, uma forma de consolidar sua dominação, de expressar, em todo o imaginário social, o seu projeto societário, condizente com o modo de produção capitalista.

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MAESTRI, Mário. A aldeia ausente: índios, caboclos, cativos, moradores e imigrantes na formação da classe camponesa brasileira. In: STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: o debate na esquerda – 1960-1980. São Paulo: Expressão Popular, 2005. MOORE JR, Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. Senhores e camponeses na construção do mundo moderno. Lisboa: Edições Cosmos, 1975. NETTO, José Paulo. Ditadura e serviço social; uma análise do Serviço Social no Brasil pós64. 12ª ed. São Paulo: Cortez, 2008. OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

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ESTADO AMPLIADO E EMANCIPAÇÃO POLÍTICA/HUMANA:APONTAMENTOS A PARTIR DA PARTICULARIDADE BRASILEIRA Hiago Trindade1 RESUMO A produção intelectual gramsciana e as categorias de alcance universal que se encontram presente

em

sua

vasta

obra,

embora

perpassadas

por

polêmicas

de

diversas

ordens,têmcontribuído significativamente no exercício de (re)pensar e refletir criticamente as determinações que dinamizam a realidade brasileira contemporânea. Convictos desta assertiva, a proposta do texto que ora apresentamos ao público é problematizar a categoria Estado enquanto instituição complexa e contraditória inserida na trama da sociedade burguesa, apontando, ao mesmo tempo, as forças materiais que se articulam e concorrem para tencioná-lo e, mais que isso, para suprimi-lo. Para tanto, nossa intenção é proceder revisão de literatura a partir do constructo critico-categorial legado de Gramsci e da tradição marxista, em geral, dentre os quais, destacamos: Gramsci (2011), Bianchi (2008) e Marx (2010). Pretendemos nos debruçar, mais especificamente, nas simbioses estabelecidas entre, de um lado, o “Estado ampliado”, aparelho resultante de um processo socio-histórico cuja forma atual se expressa na articulação dialética entre “sociedade política” e “sociedade civil” e, do outro, a emancipação política e a emancipação humana, na acepção cunhada por Marx, ou seja, enquanto delimitação dos indivíduos situados como cidadãos nos limites formal-burocráticos da sociedade burguesa e enquanto força social ou forma de organização societal de homens e mulheres plenamente livres, respectivamente. Desse modo, olvidamos perseguir o entendimento que apregoa a necessidade e fortalecimento da articulação dos múltiplos sujeitos coletivos que conformam a sociedade civil como pressuposto para o avanço no âmbito da emancipação política e de consolidação de uma hegemonia sintonizada com os interesses da classe trabalhadora o que, por sua vez, pode constituir mediação fundamental para alcançar a emancipação humana. Esperamos que o texto possa suscitar novas reflexões e inquietações sobre a temática abordada e que, do mesmo modo, contribua com disseminação das ideias de Gramsci e de sua atualidade hoje. 1

Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

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Introdução Em um livro interessante, Leandro Konder (2009) se dedica a pensar na recepção das

ideias de Marx na particularidade brasileira, mais precisamente percorrendo o lapso temporal que desemboca até a década de 1930. O título da obra é sugestivo e inquietante. Denomina-se “A derrota da dialética” e procura demonstrar como esse processo foi permeadopor dificuldades, contradições e insuficiências, derivadas, dentre outros fatores, da tardia e reduzida entrada dos textospropriamente marxianosno Brasil e da parca apropriação teórico-metodológicaque possuíam os sujeitos interessados em disseminar as ideias de Marx entre nós. Mas, como sugere o ditado, a perda de uma batalha não significa a perda da guerra.Decerto, no transcurso dos tempos, podemos falar em um acerto de contas com alguns dos entraves e dificuldade que, inicialmente, assolaram o advento das ideias de Marx em nosso território. A dialética teve, como sugeriu Carlos Nelson Coutinho no prefácio a referida obra, sua revanche2, epor isso mesmo,podemos observar um desenvolvimento significativo, em quantidade e também em qualidade, dos aportes teóricos de Marx e da ampla e heterogênea tradição marxista no Brasil. Dentre os intelectuais que dinamizam essa tradição, podemos pensar, certamente, na contribuição teórico-metodológica de Gramsci nas incursões que versam sobre o debate acerca da cultura, da democracia e da formação social brasileira, de modo geral. De fato, a produção intelectual gramsciana e as categorias de alcance universal que seencontram presente em sua vasta obra3, embora perpassadas por polêmicas de diversas ordens, têm contribuído significativamente no exercício de (re)pensar e refletir criticamente as determinações que dinamizam a realidade brasileira. Convictos desta assertiva, a proposta do texto que ora apresentamos ao público é problematizar a categoria Estado enquanto instituição complexa e contraditória inserida na trama da sociedade burguesa, apontando, ao mesmo tempo, as forças materiais que se articulam e concorrem para tencioná-lo e, mais que isso, para suprimi-lo.

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O que não inibe, decerto, a permanência ou reatualização de alguns desses entraves. “Carlos Nelson deixou-nos admiráveis exemplos da utilização de categorias gramscianas para compreender a história e a sociedade brasileiras. Demonstrou como categorias gramscianas – tais como a de hegemonia, de revolução passiva, de estado ampliado, de nacional-popular – são válidas para além do tempo e do espaço que foram próprios a Gramsci” (LIGUORI, 2016, p. 40).

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Para tanto, procederemos revisão de literatura a partir do constructo critico-categorial legado de Gramsci e da tradição marxista, em geral, dentre os quais, destacamos: Gramsci (2011), Bianchi (2008) e Marx (2010). Pretendemos nos debruçar, mais especificamente, nas simbioses estabelecidas entre, de um lado, o“Estado ampliado”, aparelho resultante de um processo socio-histórico cuja forma atual se expressa na articulação dialética entre “sociedade política” e “sociedade civil”e, do outro, a emancipação política e a emancipação humana, na acepção cunhada por Marx, ou seja, enquanto delimitação dos indivíduos situados como cidadãos nos limites formal-burocráticos da sociedade burguesa e enquanto força social ou forma de organização societal de homens e mulheres plenamente livres, respectivamente. 2.

Sobre o Estado “ampliado”, democracia e a realidade brasileira4 Como nos lembra Netto (2007) o Estado, desde o período absolutista surge atrelado

aos estratos de classe dominantes. Assim, para cada uma das fases/estágios precedentesdo capitalismo o Estado se posicionou de determinada forma e, com o “avanço” para sua fase monopólica, temos também, uma nova adequação dele, pautada a partir de fatores econômicos, políticos e sociais articulados de acordo com as especificidades de cada região. Como bem afirma Behring: Estes dois elementos – Estado e monopólios – estão dialeticamente unidos, mas são distintos. Operam com meios adaptados às suas respectivas funções, mas submetidos às mesmas leis. Economia, política e ideologia estão cada vez mais ligadas entre si, ainda que relativamente sejam instâncias autônomas (2007, p. 34-35).

Neste ínterim, somos levados a crer que a interlocução das atividades do Estado e do monopólio, cada qual com suas peculiaridades, contribuem para o processo de desenvolvimento e reprodução do capitalismo monopolista, sobretudo através dos diversos mecanismos criados para valorizar o capital. É importante destacar que essas transformações e mutações do Estado não acontecem de maneira independente ou apática da classe trabalhadora, que reivindica, de um lado, a 4

Nesta seção, partimos de algumas ideias originalmente expostas em Trindade (2013). A reflexão que ora apresentamos, todavia, encontra-se substancialmente reformulada e enriquecida com novas determinações.

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manutenção de direitos sociais historicamente conquistados e, de outro, a aquisição de novos. Fundamentalmente, a ação perpetrada pelo Estado para com a classe trabalhadora não ocorre descolada de diversas reivindicações, cujo não atendimento poderia por em xeque a ordem instalada pelo capital na sociedade: é o momento no qual ele “dá o anel, para não perder os dedos”! Em sua obra O Estado e a Revolução, Lenin (2007) esboça uma concepção de Estado calcificada com um rigor teórico-medodológico bastante consistente, do ponto de vista marxiano. Para o autor russo, a compreensão do Estado e de seus aparelhos e instrumentos coercitivos só é possível quando o enxergamos no seio de uma sociedade fraturada em classes sociais antagônicas, na exata medida em que ele se forja, fundamentalmente, como uma máquina de dominação e exploração de uma sobre a outra, demonstrando, justamente, a impossibilidade histórica de qualquer tipo de conciliação entre elas. Nesses marcos, se de um lado, como nos lembramMarx e Engels (2010) a burguesia ansiando manter sua existência transforma constantemente as relações sociais a partir do chão material que lhe dá sentido, de outro também é inconteste que surgiram outros sujeitos e aparelhos mediando as organizações e interesses do proletariado. Desse modo, não desconsideramos a formulação da corrente marxista clássica que percebe o Estado como “comitê executivo dos interesses da burguesia”, mas corroboramos com Coutinho quando afirma:

[...] a necessidade de conquistar o consenso como condição sinequanon da dominação impõe a criação ou renovação de determinadas instituições sociais, que passam a funcionar como portadores materiais específicos (com estrutura e legalidade próprias) das relações sociais de hegemonia (COUTINHO, 2008, p. 55).

Nesse sentido, parece ser possível sustentar a afirmativa segundo a qual, o desabrochar do processo históricodesenvolve-se sendo marcado por fricções que vão sendo dinamizadas ao sabor das diferentes conjunturas e protagonizadas por sujeitos com interesses diversos, abrindo margem para que o Estado incorpore, em maior ou menor escala, demandas das classes subalternas materializadas numa agenda de interesses que as contempla.

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Trata-se de perceber que, para afirmar-se politicamente, o Estado necessita observar as reivindicações que emergem do seio da classe trabalhadora – e, diga-se de passagem, essa observação precisa ser tanto mais atenta e cautelosa quanto mais organizados se encontrarem os sujeitos que precisam vender sua força de trabalho para sobreviver. Nos termos de Netto (2007) ocorre um alargamento da base de sustentação do Estado, “[...] mediante a generalização e a institucionalização de direitos e garantias cívicas e sociais, [permitindo-lhe] organizar um consenso que assegura o seu desempenho” (NETTO, 2007, p. 27). Assim, coerção e consenso se imiscuem, conformando uma relação dialética no eixo em que gravitam sociedade política e sociedade civil. Com efeito, historicamente o Estado mostrou-se um verdadeiro porta-voz dos interesses da burguesia, utilizando, para concretizar as medidas necessárias, todos os recursos e mecanismos possíveis: dos “acordos” às armas de fogo. No que se refere particularmente a realidade brasileira, dados os contornos que atravessamnosso processo de formação socio-histórica, podemos afirmar uma predominância da coerção e da utilização dos instrumentos de força a fim de respaldar determinados interesses. Nessa direção, Florestan Fernandes nos brinda com uma interessante passagem para perceber, mais a fundo, o sentido desse processo no Brasil e a função que ocupa o Estado em seu desenvolvimento. De acordo com sua análise, tal processo foi sendo delineado ancorandose, sempre, na possibilidade de converter o Estado “[...] em eixo político da burguesia, estabelecendo-se uma conexão direta entre dominação de classe, concentração do poder político de classe e [a] livre utilização [do] poder político estatal resultante” (FERNANDES, 2008, p. 309). De fato, parece-nos correto afirmar que a dominação (principalmente política) da burguesia brasileira não teria conseguido se sustentar se não contasse com o Estado para respaldá-la. Foi por meio dele que as inúmeras medidas conseguiram se materializar na realidade, com vistas a manter e também a aprofundar os interesses de classe. O conjunto de aportes supramencionados põe em evidência importantes determinações da forma de ser do Estado e nos fornecem balizam imprescindíveis para avançarmos no aprofundamento da compreensão da realidade. Estamos nos remetendo, mais precisamente, ao conceito ampliado de Estado, cujo principal expoente é o pensador italiano Antônio Gramsci. Foi ele que, ao levar em consideração a processualidade histórica e as novas características a tomarem corpo com ela, realizou o movimento dialético de sair da aparência para a essência, identificando novos aspectos e determinações no âmbito da realidade social em geral e, mais 946

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particularmente do Estado. Esses aspectos e determinações se estruturam, precisamente, ancorados no enfoque dado à propalada sociedade civil, entendida, em Gramsci, como uma “portadora material da figura social da hegemonia”, que coexiste com uma sociedade política – marcada pela ditadura, dominação e coerção. Antes de prosseguir, cumpre-nos destacar algo relevante: quando recorremos à utilização do conceito de Estado ampliado, estamos nos remetendo à conformação de uma relação orgânica e dialética estabelecida entre sociedade política e sociedade civil, entre coerção e consenso. O alerta nos parece válidoa fim de evitar análises simplistas e/ou reducionistas da formulação gramsciana sobre o Estado. Em verdade, o “corte” que algumas vezes se opera entre estas dimensões, atende apenas a um mecanismo formal-metodológico que não pode, em nenhuma medida, desconsiderar a perspectiva de totalidade a guiar o pensador Sardo em suas análises. De fato, como assevera: [...] Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo também leva a certas determinações do conceito de estado que, habitualmente, é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para moldar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um momento) e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional, exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais [...] (GRAMSCI, 2011, p. 267).

É que Gramsci fornece-nos suas análises num período de maior socialização da política, onde se presencia a gênese e disseminação de instrumentos políticos de luta da classe trabalhadora, como por exemplo, os sindicatos e partidos de massa. Visualizamos, assim, a existência de “aparelhos privados de hegemonia” detentores de uma direção política e capazes de conquistar a supremacia, entendida, aqui, a partir da combinação entre o domínio e a direção intelectual e moral. Ou seja: “[...] o termo supremacia designa o momento sintético que unifica (sem homogeneizar) a hegemonia e a dominação, o consenso e a coerção, a direção e a ditadura” (COUTINHO, 2008, p.57). Faz-se mister afirmar que não se pode perder de vista as limitações e contradições fundantes do Estado, para não nutrir, a respeito dele, qualquer perspectiva ilusória. As lições que nos foram legadas por Marxclarificam que, enquanto perdurar este instrumento, haverá o 947

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chão material para manter, também, a opressão e exploração dos trabalhadores, independentemente das configurações que, por ventura, venha a assumir no devir histórico. Ora, mesmo quando presenciamos tendências à assunção de formas mais democráticaspor parte deste organismo, elas não suprimem a possibilidade sempre imanente de reordenar todas as ações para atingir um objetivo nuclear: a exponenciação das taxas de lucro e da reprodução da lógica de metabolismos de segunda ordem, como denominaMészáros (2011). Por outro lado, a reprodução do sistema capitalista conforma, também, a reprodução das inúmeras contradições a cercearem a realidade social. Sobre isso, já discorreram Marx e Engels, em seu Manifesto Comunista de 1848, que a burguesia cria seus próprios coveiros, ou seja,engendra as condições objetivas e subjetivas para derruir a sociedade criada a sua imagem e semelhança. Estamos querendo afirmar, assim, que as contradições –inelimináveis enquanto perdurar o capitalismo, pois ligadas umbilicalmente a ele –, podem ser exploradas e trabalhadas a partir de um direcionamento capaz de subverter o rumo da realidade social, a partir dos interesses dos “de baixo”. Tal direcionamento, a nosso ver, ganha concretude na realidade mediante a existência de instrumentos políticos capazes de formular linhas estratégicas de intervenção com vistas à transformação radical da sociedade;dentre estes instrumentos, certamente merece destaque o partido político, pois, como conclui Marcelo Braz, nas mediações estabelecidas para materializar a ação política e, neste caso, a práxis revolucionária, o partido político se constituiu e continua, nos dias que correm, se constituindo como “[...] o principal instrumento coletivo de classe que pode [...] ser o dirigente do processo revolucionário” (2011, p. 18). Diante das reflexões elencadas, somos tomados pela memória da fala proferida pelo professor José Paulo Netto5, ao enfatizar o equívocodaqueles que acreditam que a política consegue amadurecer sob os porões do exílio ou da ditatura. É preciso, assim, manter vivo e possível um espaço na sociedade em que as forças sociais possam se desenvolver amplamente e, como corolário, disputar interesses e direcionamentos abrindo vias para a conformação de uma contra-hegemonia. Sobre isso, aliás, Gramsci já asseverava a importância de um grupo social deter a direção moral e intelectual antes mesmo da tomada das bases materiais (o poder governamental).Noutras palavras: se temos a pretensão de ultrapassar a atual ordem societal, 5

Trata-se da exposição intitulada “conhecimento teórico e intervenção política” realizada em 20 de Abril de 2016, por ocasião da aula inaugural do Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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precisamos converter esforços teórico-políticos para que a democracia e a socialização da política tenham espaço entre nós, o que implica garantirlugar para o sufrágio universal, para a presença de movimentos sociais diversos, para a liberdade de imprensa e de expressão, etc. Para tanto, e nas trilhas do legado transmitido por Coutinho (2008, 2014), carecemos pensar o significado da democracia na trama que marca as intenções na superação da ordem capitalista, sobremaneira por entre as sociedades que já registram um razoável desenvolvimento da sociedade civil, sociedades estas qualificadas por Gramsci (2011) como de tipo ocidental6 – onde, aliás, há não muito tempo ingressou o Brasil. Trata-se de uma democracia que expressa o resultado das lutas e embates históricos protagonizados pela classe trabalhadora e que se gesta, embora num campo marcado por tensões e contradições, incorporando, em alguma medida, os anseios e interesses populares. Por certo, estamos fazendo alusão a uma forma de democracia que se ergue pelo esforço das massas, a qual quanto mais se desenvolve, mais adquire uma feição anticapitalista, capaz de recusar os limites que a cerceiam na órbita do atual modo de produção. Em verdade, “[...] a democracia socialista não é simplesmente a negação da democracia liberal, mas estabelece com ela ‘uma relação de superação dialética (Aufhebung): a primeira elimina, conserva e eleva a nível superior as conquistas da segunda’” (LÖWY, 2016, p. 116). Desse modo, olvidamos perseguir o entendimento que apregoa a necessidade e fortalecimento da articulação dos múltiplos sujeitos coletivos que conformam a sociedade civil como pressuposto para o avanço no âmbito da emancipação política e de consolidação de uma hegemonia sintonizada com os interesses da classe trabalhadora o que, por sua vez, pode constituir mediação fundamental para alcançar a emancipação humana. Aqui, o esforço empreendido segue na direção de não enveredarmos por uma leitura reformista e/ou liberal na percepção das estratégias que formulamos para disputar os espaços políticos no âmbito da sociedade civil, como alerta Bianchi (2008). Mas, ao mesmo instante, para não desconsiderarmos as possibilidades que tais construções podem significar, sem esquecer de um eixo fundamental: “o que se trata é da criação de novos espaços autônomos das classes subalternas e da negação dos espaços políticos das classes dominantes” (BIANCHI, 2008, p. 180). 6

Diz Gramsci: “No oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, entre estado e sociedade civil havia uma justa relação e, quando se dava um abalo do Estado, percebia-se imediatamente uma robusta estrutura da sociedade civil” (GRAMSCI, 2011, p. 297).

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Não podemos, assim, desconsiderar o esforço protagônicodesses sujeitos (classe trabalhadora) ao longo da história. Contudo, quando observamos as novas determinações a emergirem com a maturação do modo de produção capitalista em sua fase monopólica, não podemos deixar de atentar também para o avanço do capital em detrimento do retrocesso do trabalho, mesmo diante de sua centralidade no desenvolvimento e organização das sociedades. Portanto, parece acertado a candente necessidade de verificarmos as múltiplas determinações e simbioses que têm mediado,na história, as relações entre algumas determinações que particularizam esse processo no Brasil, para termos uma noção mais fundamentada dessa análise.

3.

Emancipação política e emancipação humana: para desatar os nós... Há uma premissa importante a orientar nossa análise. Estamos nos referindo há

algumas características que dão um trato particular aos caminhos galgados pelo Brasil no processo que culmina com a sua modernização, ou seja, com a instalação do modo de produção capitalista. Na seção anterior já apontamos alguns elementos que marcam esse processo e, neste momento, traremos a baila mais dois aspectos da maior importância para compreendermos as relações estabelecidas entre Estado ampliado, democracia e emancipação política/humana, quais sejam: a configuração não clássica que marca o processo de transição brasileira ao capitalismo e o peso do trabalho escravo. Com o entendimento sobre a “via prussiana”, enriquecida com o conceito de “revolução passiva”, cristaliza-se um processo em que as tomadas de decisão e, como corolário, a implementação de ações concretas na realidade socio-política ocorrem subtraindo uma quantidade expressiva de sujeitos, dão-se mesmo pelo alto, de cima para baixo, recorrendo fortemente aos aparelhos repressivos do Estado e as intervenções promovidas por este organismo na esfera econômica. Ademais, como alerta Coutinho (2014, p. 198) a revolução passiva implica dois momentos:“[...] o da‘restauração’(na medida em que é a reação a uma possibilidade de uma transformação efetiva e radical ‘de baixo para cima’) e o da ‘renovação’ (na medida em que muitas demandas populares são assimiladas e postas em prática pelas velhas camadas dominantes)”.

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De um modo ou de outro, fica claro que com o conjunto de direcionamentos elitistas assumidos no desenrolar da história, o espaço para materialização das demandas e requisições provenientes das camadas populares só foram pifiamente incorporadas pelos setores dominantes, sempre a seu modo; muito mais como forma de conter qualquer direcionamento progressista da classe subalterna do que pelo reconhecimento da legitimidade das pautas desse segmento. Podemos mencionar, ainda, outro fator que tem forte peso nessa configuração. No Brasil, as relações de trabalho baseadas no regime de escravidão7 de homens e mulheres perduraram por um considerável lapso temporal. Representou e representa, ainda hoje, um peso social, cultural, político e ideológico de grande envergadura. É certo que o processo responsável por submeter os escravos à realização de árduos trabalhos não ocorria sem a marca de inúmeros traços de resistência, tanto por parte dos índios, inicialmente, quanto dos negros trazidos involuntariamente de diversas regiões africanas. Assim, com a imposição do trabalho escravo, visualizamos, ao mesmo tempo, em cada quilombo, em cada fuga, em cada confronto direto, o embate entre opressores e oprimidos. Contudo, é necessário ressaltar as lutas históricas travadas que tiveram como eixo central a negação das péssimas condições de vida e de trabalho dos escravos, sem desconsiderar os impactos acarretados para estes sujeitos e as ressonâncias que se fazem sentir, ainda hoje, por todas as partes e espaços, quando observamos as configurações (ou, as morfologias, como diria Ricardo Antunes) do trabalho no tempo presente. Queremos chamar a atenção para dois fatores: a naturalização das péssimas condições de trabalho e as dificuldades de participação na arena política da sociedade, com a marca histórica de relações coronelistas, clientelistas, de dominação e de mando, herdadas do passado colonial. Assim, a subserviência, o rebaixamento, a inferiorização, a condição de simples mercadoria, vivenciados, outrora, pelos escravos os impedia de participar na vida política da sociedade. Entre nós, a formação e organização das entidades de luta e a organização dos trabalhadores deram-se muito tardiamente e, quando surgiram, não tiveram a marca da autonomia desses indivíduos, posto que eram legitimadas e mesmo incentivadas pelo Estado (classista!). 7

Não custa lembrar que existe uma diferença entre o escravismo tomado enquanto modo de produção (no caso, com vigência anterior ao capitalismo) ou enquanto formas de relações de trabalho. No ultimo caso, sabemos que a utilização da mão de obra dos escravos fazia parte dos mecanismos requisitados pelo capitalismo em sua fase comercial.

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Os dois aspectos supramencionados – via prussiana associada a “revolução passiva” e o peso do trabalho escravo – fornecem-nos um cálcio intelectivo importante para compreendermos que, no Brasil, a classe trabalhadora foi historicamente excluída dos processos e decisõese sobre ela recaíram consequências que influenciaram e influenciam seu modo de ser e existir, bem como as possibilidades e os muitos limites que se interpõem para ela na cotidianidade da vida. Nesse sentido é que a luta pelo aprofundamento da democracia e da cidadania pode representar um acontecimento importante para o conjunto dos trabalhadores. Na esteira das reflexões transmitidas por Carlos Nelson, depreendemos que: O fortalecimento da sociedade civil abre assim a possibilidade concreta de intensificar a luta pelo aprofundamento da democracia política no sentido de uma democracia organizada das massas que desloque cada vez mais ‘para baixo’ o eixo das grandes decisões hoje tomadas exclusivamente ‘pelo alto’ (COUTINHO, 2006 apud IASI, 2016, p. 203).

Nesse sentido, por todas as determinações socio-históricas que particularizam a realidade brasileira é preciso considerar o significado estratégico que possui a democracia para os trabalhadores na luta pelo alcance de seus objetivos. Trata-se mesmo de um componente importante quando observamos, de um lado, o nosso passado histórico e, de outro (e numa dimensão de alcance mais global), as relações que segmentos da esquerda estabeleceram com este princípio no marco de alguns episódios revolucionários. De um modo ou de outro é preciso ter em mente, sempre, as limitações e contradições que cerceiam a democracia. Ora, a democracia encontra-se inscrita na dimensão da emancipação política. Ao referir-se a emancipação política, Marx não nega, ao contrário, reconhece os avanços que ela possibilita. Afirma o pensador alemão: “A emancipação política de fato representa um grande progresso; não chega a ser a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente até aqui” (MARX, 2010, p. 41 – grifos originais). Ao mesmo instante, contudo, alerta para que não se formule a ideia de pensar a emancipação política como um estágio para a emancipação humana. Dito de outra forma, a cisão do homem em cidadão e membro da sociedade burguesa, e o deslocamento da religião do Estado para a sociedade burguesa, constitui o máximo patamar possível de ser alcançado quando nos referimos a este tipo de emancipação (MARX, 2010). 952

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Assim, a emancipação humana não é um acontecimento naturalmente inevitável; ela não se encontra no horizonte esperando um alvorecer de um tempo histórico determinado para realizar-se. Sua concretização depende da articulação e do movimento da força de homens e mulheres que almejam transformar-se em sujeitos plenamente livres, superandoos limites formal-burocráticos expressos na forma possibilitada pela emancipação política.Por isso mesmo, é preciso considerar a importância das conquistas que se situam nesse campo (emancipação política), sem perder a vigilância crítica com os limites de que elas se revestem no marco da sociedade capitalista. 4.

À guisa de conclusão O texto que ora apresentamos não é mais que um passo inicial na tentativa de refletir

sobre uma temática que vem sendo tratada por diferentes intelectuais e travejada por polêmicas que mantêm o debate aceso, ao mesmo instante em que incentiva novas incursões e abordagens. Tentamos, minimamente, demonstrar como as ideias de Gramsci e de um seus principais seguidores no Brasil, Carlos Nelson Coutinho, nos auxiliam na tarefa de desvendar a sociedade brasileira em suas múltiplas determinações e de nos apontar perspectivas sobre o presente e o futuro – o que nos faz ter cada vez mais certeza sobre a imortalidade da aula em termos materialistas, como defendeu Gramsci, numa situação peculiar8. Tentamos tracejar o texto para demonstrar a importância da democracia no que concerne ao fortalecimento dos sujeitos coletivos que dinamizam, no Brasil, a sociedade civil do mesmo modo, e como corolário, no que tange a criação das vias possíveis de instauração de uma hegemonia sintonizada com os interesses das camadas populares, reflexão que se adensa quanto tomamos por nota as características fortemente presente no desenvolvimento sociohistórico da sociedade brasileira, a exemplo da revolução passiva e do peso do trabalho escravo.

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Como sabemos, Gramsci foi preso pelo fascista Mussolini em 1926 e é conhecida a intenção que seus adversários nutriam de “deixar seu cérebro sem funcionar por 20 anos”. Felizmente, esta tentativa não obteve êxito, dadas as significativas contribuições que o intelectual sardo pôde nos transmitir, mesmo com todas as limitações do encarceramento. Há, porém, um momento emblemático nesse percurso: no cárcere e padecendo com problemas de saúde, Gramsci cai ao chão vomitando sangue e faz a reflexão segundo a qual “[...] a tese da imortalidade da alma [não seria] absurda e [poderia] ser interpretada em termos materialistas como a capacidade que o indivíduo tem de perdurar, através de suas ações e de suas ideias, na história da humanidade” (KONDER, 2009, p. 47). Não restam dúvidas: mais uma vez, Gramsci foi certeiro em suas afirmações...

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Num mesmo instante, também procuramos pontuar as contradições e os entraves que cerceiam a democracia, a fim de que possamos ter claro os seus limites e possibilidades, a diferenciação entre emancipação política e emancipação humana. Destarte, entendemos que a via democrática pode ser uma opção, pode encontrar ressonância e adesão de grupos e segmentos subalternos na luta pelo socialismo. Mas, como o velho barbudo nos ensinou, não fazemos a história como queremos. Isso implica pensar que o processo revolucionário, a derrubada do modo de produção capitalista, precisa considerar as condições objetivas e subjetivas, as tendências e fatores que dinamizam a vida social num determinado momento histórico. Para finalizar, esperamos que o texto possa suscitar novas reflexões e inquietações sobre a temática abordada e que, do mesmo modo, contribua com disseminação das ideias de Gramsci e de sua atualidade hoje.

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LENIN, Vladmir. I. O Estado e a Revolução:o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução. Tradução revista por Aristides lobo. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007. LIGUORI, Guido. Coutinho: “filósofo democrático”. In: BRAZ, Marcelo. RODRIGUES, Mavi. (orgs.). Cultura, democracia e socialismo: as ideias de Carlos Nelson Coutinho em debate. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. LÖWY, Michael. Carlos Nelson Coutinho, democrata e socialista universal. In: BRAZ, Marcelo. RODRIGUES, Mavi. (orgs.). Cultura, democracia e socialismo: as ideias de Carlos Nelson Coutinho em debate. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010. ______. ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.São Paulo: Boitempo, 2010. MÉSZÁROS, István. Para além do capital: Rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011. NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 6ed. São Paulo: Cortez, 2007. TRINDADE, Hiago. Politicas Sociais no Capitalismo e a Contrarreforma do Estado... Uma história sobre a perda de direitos no Brasil. In: Revista Praia Vermelha: Estudos de política e teoria social. V.23, n. 01. Rio de Janeiro, Jan/Jun, 2013, pp. 277-301.

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MESA 18: CRÍTICA DA NOVA TEORIA DO VALOR E AS CATEGORIAS DE ESTADO E POLÍTICA: TEORIA E PRÁTICA Coordenação: Filipe Leite (FE/UFF) RESUMO: A mesa tem por objetivo propiciar o diálogo entre teoria e práxis no âmbito do marxismo, buscando contribuir para a renovação da intelecção do mundo dos homens a partir da lógica humano-societária do trabalho. Possuindo um momento teórico com os artigos de Filipe Leite sobre as teorias do estado ampliado, em que o autor coteja, compara, confronta e critica as formulações de Gramsci e Poulantzas. E com o artigo de Leandro Velasques, em que o autor retoma a crítica de Moishe Postone ao que ele configura como marxismo tradicional. Aquele marxismo que não compreende que valor é forma de mediação social e forma de riqueza na sociedade do capital e que tal descoberta por Marx modificou radicalmente sua compreensão das categorias estado e política e, portanto, da própria emancipação humana. A mesa tem seu momento de práxis, e em diálogo com as contribuições acima, com os trabalhos de Marcelo Ramos sobre a luta das operárias da indústria de extração de óleo de caju no ano de 1968 em Fortaleza (Ceará), em que o autor explora o tipo de estado que existia naquele momento e o tipo de luta política utilizado pelas operárias. E, por fim, com o trabalho de Leôndidas Júnior, em que o autor aborda as sociedades mutualistas, em particular no nordeste brasileiro, no período que se estende do Império às primeiras décadas da República. Dando destaque às relações entre o Estado brasileiro e as sociedades mutualistas e as formas políticas em que essa luta se manifestou.

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TEORIAS DO ESTADO AMPLIADO: UMA COMPARAÇÃO ENTRE GRAMSCI E POULANTZAS Filipe Leite1 RESUMO: Dentre as caracterizações do Estado e da política presentes no marxismo tradicioinal distinguemse duas perspectivas que, apesar de diametralmente opostas, incorrem no mesmo erro. Do marxismo evolucionista da II Internacional que toma o Estado como um sujeito acima da luta de classes – que por isso seria capaz de conciliá-las em uma transição sem rupturas para o socialismo - à representação presente no marxismo-leninismo do Estado como mero objeto de dominação política da burguesia organizada enquanto classe dominante – devendo ser utilizado como forma de organizar politicamente o proletariado enquanto classe – o equívoco é tomar o Estado como algo monolítico, ou para empregar o termo pioneiramente empregado por Buci-Glucksmann, concepções de Estado restrito. Dois autores contribuem para enriquecer a abordagem do Estado e da política na tradição marxista: Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas. Em suas obras encontram-se os elementos para superar tais limitações, apresentando o Estado de maneira ampliada. Enquanto o primeiro percebe o processo de socialização da política direcionando sua análise para a construção de consensos na sociedade civil e em seus diversos aparelhos privados de hegemonia – mecanismo complementar de sua dominação coercitiva na sociedade política; o segundo estende o reconhecimento deste processo às diversas instâncias do Estado através de uma abordagem relacional do Estado e da política – resultado da ruptura do autor com o althusserianismo e da crescente influencia da Gramsci em sua maturidade. Esta relação entre os autores coloca outras semelhanças e diferenças para além da caracterização ampliada do Estado. Ambos empregam conceitos como: bloco histórico/bloco no poder e hegemonia; para analisar a relação entre Estado, poder político e as classes sociais nas sociedades ocidentais. O objetivo do artigo é explorar semelhanças e diferenças em torno destas categorias para compatibilizar seu uso conjunto análise destas questões no campo marxista.

Palavras Chave: Postone, Gramsci, Poulantzas, Estado Ampliado, Teoria Marxista do Estado 1. Introdução O presente artigo esboça um estatuto teórico para uma intelecção adequada do Estado e da política na sociedade moderna referenciada na crítica da economia política, que supere as limitações do marxismo tradicional, empregando as contribuições de Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas2. Para isto, é preciso não só compreender a crítica ao marxismo tradicional desenvolvida por Postone ([1993] 2014), mas também o hipostasiamento destas categorias nos marcos deste referencial teórico, definindo corretamente seu papel nos marcos de uma reflexão marxista. Se a crítica de Postone ([1993] 2014) aponta para a mistificação destas categorias nos 1

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (FE/UFF), Pesquisador do NIEP-Marx/UFF e do LEMA/UFRJ. E-mail: [email protected]. 2 Este trabalho foi desenvolvido no âmbito da disciplina Tópicos Avançados em Economia Política: Marxismo, Estado e Política, ministrada no PPGE-UFF pelo professor Paulo Henrique Araujo, tendo sido apresentado como trabalho de conclusão.

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marcos deste referencial, a contribuição de Grmasci e Poulantzas – ao ampliar a teoria marxista do Estado – são peças fundamentais em sua desmistificação. A crítica ao marxismo tradicional, objeto da primeira seção, destaca a importância da dimensão relacional da teoria do valor de Marx. Este ponto é decisivo na caracterização de Postone ([1993] 2014) deste posicionamento, sendo marxismo tradicional marcado pela compreensão da teoria do valor de Marx em termos de distribuição do excedente. Consequentemente, este realiza uma crítica da distribuição e não da produção no capitalismo. Ao contrário, a interpretação sustentada pelo autor, e seguida neste artigo, defende que a teoria do valor de Marx é uma teoria das relações sociais na sociedade capitalista, que toma as relações sociais de produção como elementos estruturantes das diversas formas de vida social – dentre elas o Estado e política. A relação entre estes elementos deve ser procurada nas categorias básicas da economia política de Marx. Categorias como mercadoria, valor, divisão social do trabalho, apontam para o caráter social da produção e sua forma de interdependência impessoal e estranhada. Como a produção nestas sociedades toma como referência a produção de quantidades cada vez maiores de valor excedente, ao longo de sua reprodução ampliada o capitalismo apresenta uma dinâmica autoexpansvia. Em contrapartida, a produção torna-se um fenômeno cada vez mais social. Isto provoca a extensão das relações capitalistas tanto geograficamente, como através do aprofundamento da divisão social do trabalho. Pari passu a este processo de socialização da produção ocorre aquele de socialização da política e do Estado, que, analogamente, se expressa na crescente socialidade, complexidade e autonomia relativa destas esferas. Ora, é isto que destacam Gramsci ([1975] 2007) e Poulantzas ([1978] 1985) na ampliação da teoria marxista do Estado: enquanto o primeiro concentra-se na socialização da política através do conceito de sociedade civil, notando a crescente socialidade da política expressa nos aparelhos privados de hegemonia; o outro enfoca na socialização da política em curso no interior do aparato estatal, ou da sociedade política, em termos gramscianos, propondo uma definição relacional do Estado moderno. Para relacioná-las à reprodução social como um todo sem mistificá-las ambos empregam categoriais como bloco histórico/bloco no poder. Nas seções seguintes o artigo desenvolve este argumento, estabelecendo uma comparação entre os autores.

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2. Marxismo Tradicional, Estado e Política Postone ([1993] 2014) define o marxismo tradicional não como uma tendência específica no interior da tradição de pensamento fundada por Marx, mas como uma perspectiva amplamente adotada diante de sua obra. De acordo com o autor, na base deste posicionamento encontra-se uma interpretação do trabalho na obra de Marx enquanto elemento transhistórico, central à todas as formas de sociabilidade humana. Hipostasiam-se assim idiossincrasias do trabalho no capitalismo para o trabalho humano enquanto pôr teleológico. Consequentemente, não só o trabalho proletário, mas também o Estado, a política, e todas as demais formas de sociabilidade particulares ao capitalismo, são tomados como elementos transhistóricos. Encontra-se ai base da mistificação cara ao marxismo tradicional. Também é muito comum estarem associados à este posicionamento uma avaliação positiva do trabalho e do desenvolvimento industrial capitalistas. Enquanto o primeiro constitui a “fonte de toda a riqueza”, o segundo através da crescente socialização da produção e da elevação da produtividade coloca as condições necessárias à superação do capital. Decorre daí a compreensão da exploração como elemento central da obra de Marx, sendo o alicerce central de uma dominação de classe exercida de maneira pessoal. A distribuição do excedente através do mercado e o Estado são os elementos “superestruturais” que entram em contradição com o imenso potencial produtivo das forças produtivas do capital. Para libertar esse potencial aprisionado é preciso somente abolir a propriedade privada, coletivizando-a, e empregar o aparato estatal desenvolvida pela burguesia com um elemento de dominação política da classe trabalhadora, que assume o poder político e distribui o excedente anteriormente extraído através da exploração através do planejamento estatal. O trabalho proletário não só permanece intacto, como se realiza plenamente através da universalização da condição proletária: a emancipação humana nestes marcos resume-se exatamente a exercê-la com plenitude. Este posicionamento representa para Postone ([1993] 2014) uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho. Tal perspectiva, apesar de viabilizar a critica de certos aspectos do capitalismo, é insuficiente para realiza-la de modo adequado. Este consiste em uma crítica do trabalho no capitalismo, e não em uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho. Partido deste referencial o autor propõe uma leitura crítica do trabalho no capitalismo, e da 959

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própria modernidade em geral, através da reinterpretação das categorias básicas da crítica da economia política do Marx maduro3 – aquele em vias de formular sua teoria do valor trabalho, como nos Grundrisse ([1858] 2011) e em O Capital ([1867] 1988). Destaca-se assim o núcleo categorial do capitalismo, apreendido nos termos mais abstratos possíveis. Neste exercício o autor localiza o trabalho como um atributo historicamente específico do capitalismo, e, portanto, central e estruturante destas relações sociais. Mercadoria, capital, trabalho, são postos elementos estruturantes da realidade social, e, consequentemente, do Estado e da política. A teoria do valor para Postone ([1993] 2014) é mais que uma tentativa de explicar a distribuição do excedente no capitalismo, mas, sobretudo, uma explicação da dinâmica das relações sociais em sociedades nas quais predomina o modo de produção capitalista. O trabalho proletário, por sua vez, é a contraparte necessária à existência do capital. Em detrimento das formas materiais de dominação, como a propriedade privada e a dominação pessoal de seus detentores, tem-se uma forma impessoal e quase material de dominação social, o estranhamento: [...] conceituo o capitalismo em termos de uma forma historicamente específica de interdependência social com um caráter impessoal e aparentemente objetivo. Essa forma de interdependência se realiza por intermédio de relações sociais constituídas por formas determinadas de prática social que, não obstante, se tornam quase independentes das pessoas engajadas nessas práticas. O resultado é uma forma nova e crescentemente abstrata de dominação, que sujeita as pessoas à imperativos e coerções estruturais impessoais que não podem ser adequadamente compreendidos em termos de dominação concreta [...] que também gera uma dinâmica histórica contínua. (Postone, [1993] 2014, p. 18)

De acordo com Araujo (2016) o entendimento da teoria do valor trabalho nos termos propostos por Postone ([1993] 2014), ou seja, enfatizando a inflexão por ela provocada na reflexão do Marx maduro, permite observar uma reinterpretação das categorias de Estado e política nos últimos escritos políticos do autor, como A Guerra Civil na França ([1871] 2011), Crítica ao Programa de Gotha ([1875] 2012). Ainda segundo Araujo (2016) este núcleo composto pelas categorias básicas da crítica da economia política serve como base para que Estado e política sejam entendidos enquanto contrapartes da reprodução do capital, e, portanto, elementos particulares a formações sociais 3

É importante destacar que este termo não tem nenhuma relação com a leitura proposta por Louis Althusser ([1965] 1979). Segundo Althusser teria ocorrido uma ruptura radical (“cesura epistemológica”) no pensamento de Marx entre sua juventude e sua maturidade, sendo o jovem Marx um filósofo idealista, e o Marx maduro um economista extremamente perspicaz com as ideologias postas pelas estruturas. Neste ponto Postone assume um ponto de vista similar ao de Lukács ([1968] 2012) ao admitir a continuidade entre a reflexão do jovem Marx com a reflexão do autor na maturidade, empregando a expressão Marx maduro apenas para se referir à síntese definitiva de sua teoria do valor.

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predominantemente capitalistas. Com efeito, estes passam a ser estruturados e incorporados nas formas sociais da mercadoria e do capital. Ou ainda, são constituídas e incorporadas em formas imateriais e independentes da sua vontade, em outras palavras, alienadas, de mediação social, formas estas determinadas pela lógica humano societária do capital. Nesse sentido, Marx é categórico ao afirmar que esta lógica opera como “[...] um éter particular que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta” (Marx, [1859] 2007, p 59). Tem-se nesta forma societária um processo contínuo de expansão do valor. Tal processo verifica-se tanto quantitativamente, no plano geográfico através da extensão das áreas formalmente submetidas à lógica do capital, quanto qualitativamente, através do aprofundamento da divisão do trabalho no interior do modo da produção capitalista, através da submissão de outras atividades à esta lógica. Como resultado deste processo coloca-se a crescente socialidade da produção social. Ora, se Estado e política são elementos estruturados pela lógica do capital, consequentemente tem-se que estas são formas de sociabilidade historicamente determinadas e, analogamente, crescentemente sociais. Assim, pari passu ao processo de socialização da produção verifica-se um processo de socialização da política que perpassa tanto esta esfera, como o próprio ordenamento estatal. Coutinho (1999) nota tanto que este é uma tendência central destas formas de vida, quanto estabelece a partir dela uma relação de continuidade entre Gramsci e Poulantzas (algo que será discutido mais à frente). Esta perspectiva converge com os elementos propostos na releitura de Postone ([1993] 2014) e na interpretação de Araujo (2016) destas categorias no marco teórico marxista. Escapa-se assim dos dois equívocos característicos do marxismo tradicional, na medida em que as categorias em questão atendem aos fixados por Postone ([1993] 2014) como à elas necessários em sua reinterpretação: (i) as categorias da crítica da economia política devem captar as especificidades do capitalismo; (ii) tais categorias devem também superar a contradição sujeito-objeto. Definindo Estado e política nestes termos tem-se que estas são formas de sociabilidade especificas do capitalismo, e, mais que isso, supera-se a contradição sujeito-objeto presente nas leituras tradicionais do marxismo sobra o tema. Nestas interpretações ou o Estado figura como sujeito posto acima da luta de classes, e, consequentemente, capaz de solucioná-la – como fizeram os marxistas das II Internacional – ou 961

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o Estado é tido como um objeto moldado de acordo com os desígnios da burguesia como ferramenta para exercer a sua dominação política – como o fez o marxismo-leninismo da III Internacional. Nos dois casos, embora seja reconhecida a relação do Estado e da política com a acumulação de capital, esta aparece mistificada. Tais posicionamentos, apesar de diametralmente opostos, incorrem em um mesmo equívoco: tomam o Estado como algo unitário. No primeiro caso o Estado possui a unidade de um sujeito que se coloca com uma ação de sentido unitário, enquanto no segundo possui a unidade de um objeto plástico plasmado sob os desígnios e para os auspícios da dominação burguesa, o consagrado “comitê central da burguesia”. Longe de negar o caráter de classe do Estado no capitalismo, esta perspectiva designa o caráter pessoal e direto da dominação de classe neste modo de produção. Trata-se, ao contrário disso, de assumir que, se são estruturados e determinados pelas categorias da crítica da economia política, o próprio Estado e a política encontram-se perpassados por suas contradições, e, consequentemente, subordinados à dinâmica estranhada continuamente reposta pela acumulação de capital. Nesse sentido, ao passo que esta dinâmica coloca uma socialização crescente da produção, o próprio Estado e a política devem ser cada vez mais permeados por esta dinâmica socializante e estranhada. A superação da contradição sujeito-objeto e a especificidade histórica da política e do Estado no capitalismo fazem da ampliação da teoria marxista do Estado levada a cabo por Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas seja um elemento fundamental para uma intelecção adequada do Estado e da política que supere as limitações do marxismo tradicional. Tais contribuições serão exploradas nas seções subsequentes. 3. Socialização da política e sociedade civil: a contribuição de Gramsci Apesar de não conhecer detalhadamente a teoria do valor do Marx maduro Gramsci ([1975] 2007) desenvolve as temáticas do Estado e da política de maneira fiel a ela. De acordo com Coutinho (1999) a percepção do processo de socialização da política esta presente nos principais temas discutidos por Gramsci: da distinção entre as sociedades ocidentais e orientais, passando pela discussão sobre a hegemonia, até a formulação do conceito de sociedade civil nos Cadernos do Cárcere ([1975] 2007). 962

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Portanto, se como insiste Buci-Glucksman (1980), Gramsci amplia a teoria marxista do Estado, sua ampliação se da no sentido exatamente de compreender as novas determinações postas por seu caráter crescentemente social. Subjacente à esta formulação de Gramsci ([1975] 2007) encontram-se tanto a compreensão da reprodução de capital como um processo crescentemente socializante, como também a esta compreensão é estendida à política. Contudo, o autor não teve condições teóricas, históricas e pessoais de estender esta compreensão para o núcleo do aparato estatal, em seus termos, para a sociedade política, algo que só viria a ser feito algumas décadas depois por Poulantzas ([1978] 1985). De acordo com Coutinho (1999) para compreender o argumento do marxista italiano primeiramente é preciso considerar sua íntima relação de continuidade/descontinuidade com o legado de Lenin. Ao mesmo tempo em que Gramsci é um continuador das formulações deste último sobre a hegemonia, o autor critica o marxista russo, demarcando à diferença entre seu processo de formação nas sociedades ocidentais e orientais. A despeito disso, o conceito é precocemente incorporado ao edifício teórico gramsciano, permitindo ao autor vislumbrar o processo histórico como uma escolha entre alternativas dotas de sentido histórico. Em outras palavras, Gramsci nota o caráter direcional do desenvolvimento social. Nas sociedades ocidentais o avanço da acumulação de capital socializa os processos políticos, deslocando a formação da hegemonia para a esfera privada, através da constituição de uma série de aparelhos privados de hegemonia. O mesmo não corre nas sociedades orientais, nas quais, em virtude do menor grau desenvolvimento das relações sociais de produção capitalistas, a sociedade civil é atrofiada e gelatinosa estando ainda atrelada ao Estado. Este último, chamado sociedade política por Gramsci, ainda contém em si grande parcela da vida comum nas sociedades orientais, sendo ainda, portanto, o lócus privilegiado de formação da hegemonia. De acordo com Castelo (2013) conjuntura histórica que suscita esta reflexão é aquela dos anos que seguem a Revolução Russa e o fim da Primeira Guerra Mundial. Estes eventos têm como pano de fundo a entrada do capitalismo em sua fase de acumulação imperialista, fase esta marcada pelo caráter global das relações de produção capitalistas que, obviamente, coloca mudanças nas formas políticas. Além disso, como destaca Coutinho ([1999] 2007), Gramsci vive o drama do malogro da estratégia de tomada violenta do poder nos países ocidentais, tendo presenciado na Itália o 963

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fracasso dos concelhos de fábrica em 1919, ao lado da derrota de outras experiências revolucionárias ocorridas no restante da Europa no período: Alemanha, Hungria, etc. Esta acachapante derrota histórica da classe trabalhadora e a rápida recomposição da hegemonia burguesa levam Gramsci à reflexão sobre as condições de sua construção nas sociedades ocidentais. A partir daí Gramsci critica a estratégia de tomada violenta do aparato estatal posta em prática pelos bolcheviques, chamada pelo autor de guerra de movimento. Nestes termos, o processo de socialização da política e desenvolvimento da sociedade civil nas sociedades ocidentais colocava a necessidade da disputa da hegemonia nesta instância. De acordo com Coutinho ([1999] 2007) Gramsci levaria estes questionamentos para o cárcere em 1926, quando foi condenado preso pelo regime fascista de Mussolini. Gramsci foi condenado em 1928, permanecendo encarcerado gravemente doente até 1937, quando é liberado para falecer fora do cárcere. Ao longo dos anos que esteve na prisão Gramsci se dedicou a elaboração de uma obra de fôlego, diferente do caráter polemista e circunstancial de seus escritos de até então. Em uma carta escrita do cárcere à sua irmã Gramsci manifesta o desejo de escrever uma obra fur ewig, expressão alemã que designa algo para a eternidade. Embora os Cadernos do Cárcere tenham permanecido inacabados, não exagero dizer que entraram para a história do pensamento marxista. O caráter inacabado, e, consequentemente fragmentário, dos Cadernos faz da obra objeto de intensa controvérsia. Para Mendonça (2014) há consenso em torno da centralidade do conceito de de sociedade civil nos cadernos. No mesmo sentido Castelo (2013) destaca essa centralidade, ao mesmo tempo em que reconhece a presença de leituras relevantes que se centram em outras categorias, como Portelli ([1972] 1982), que enfatiza a centralidade da categoria de bloco histórico. Nos Cadernos Gramsci identifica a sociedade civil como aquela parcela da superestrutura portadora material da hegemonia, ou seja, a sociedade civil é composta por aparelhos privados, de adesão voluntária, em torno dos quais se organiza a vontade coletiva. De acordo com o autor fazem parte da sociedade civil: igrejas, escolas, partidos, sindicados, entidades patronais, imprensa, e demais agremiações de caráter privado. A sociedade política, em sua relação dialética com a sociedade civil e com a formação da hegemonia, é caracterizada neste quadro analítico pelo exercício legítimo da coerção, assim como no marxismo clássico. 964

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Os diversos aparelhos privados de hegemonia são resultado do processo de socialização da política, que como observa Coutinho ([1999] 2007), torna a relação de determinação estrutura/superestrutura cada vez mais mediada, ou em outras palavras, torna a determinação econômica do Estado e da política menos imediata. Este é um passo fundamental dado por Gramsci ([1975] 2007) em seu combate ao economicismo. Outra categoria fundamental para a intelecção correta do Estado e da política atingida por Gramsci é a de bloco histórico. Embora seja usualmente empregado para designar uma aliança político-idológica entre classes e frações de classes historicamente determinadas, o conceito de bloco histórico indica na realidade a unidade estrutura/superestrutura desenvolvida em uma totalidade social de maneira mediada. Nas palavras do autor: “[o] Conceito de bloco histórico, isto é, a unidade entra a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrários e dos distintos” (Gramsci, [1975] 2007, p. 26). No entanto, embora seja assim definido em termos mais abstratos, a categoria também possui uma formulação historicista, que determina a sua articulação por certo período histórico. Mas mais que indicar certa unidade orgânica na reprodução entre estrutura/superestrutura que consiste em um padrão de desenvolvimento, o conceito de bloco histórico é fundamental para situar a inscrição da sociedade civil e da sociedade política enquanto formas de vida social da sociedade do capital. Em suma, tem-se que Gramsci supera a visão do marxismo tradicional sobre o Estado e a política a partir da compreensão do caráter relacional destas formas de vida, estruturadas a partir das relações sociais de produção. Este caráter relacional imprime-se tanto na ampliação da teoria marxista do Estado, com a introdução das categorias de sociedade civil/sociedade política, quanto na conformação de uma totalidade orgânica entre Estado, política e acumulação de capital na qual estes elementos determinam reciprocamente, a partir da categoria de bloco histórico. 4. Socialização da política e sociedade política: a contribuição de Poulantzas De acordo com Codato (2008) são várias as periodizações possíveis para a obra de Nicos Poulantzas. Enquanto alguns como Barrow (1993) defende a unidade entre os primeiros escritos

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do autor e sua obra madura, outros notórios intérpretes de sua obra, como Jessop (1982), trabalham apenas com a primeira, e a última, fases. Codato (2008) propõe uma periodização para a evolução teórica do autor composta por três fases: Poulantzas I, II e III, considerando também textos de transição entre as fases. O elemento distintivo entre as fases do autor é sua definição do Estado capitalista respectivamente como estrutura, aparelho e relação. Enquanto em Poder Político e Classes Sociais ([1968] ....) o autor apresenta o Estado com uma estrutura responsável por fornecer coesão política para os diversos níveis da formação social, em Fascismo e Ditaduras ([1970] ....) o autor fala em um aparelho responsável pela coesão social não entre os diversos níveis de uma formação social, mas entre as diversas classes sociais desta formação. A contribuição decisiva de Poulantzas seria atingida em sua maturidade: com a publicação de O Estado, o poder, o socialismo ([1979] 1985) o autor apresenta o Estado como uma relação social análoga ao capital, ou seja, uma relação social entre pessoas mediada por coisas. O Estado e o poder político são apreendidos simultaneamente como constituídos, e constituintes, do processo de acumulação de capital. Com esta definição relacional o autor não só define estas formas de vida como historicamente específicas do capitalismo, mas também supera a contradição sujeito-objeto no seu tratamento e aproxima-se de uma perspectiva que entende as formas de dominação quase materiais e estranhadas características da dinâmica societária do capitalismo – exatamente a definição trabalhada a partir de Araújo (2016) e Postone ([1993] 2014). Deste modo encontram-se relacionados, de maneira mediada, as categorias básicas da crítica da economia política do Marx maduro. Nota-se que ao entender o Estado desta maneira Poulantzas ([1978] 1985) estende o reconhecimento do processo de socialização da política, identificado por Gramsci ([1975] 2007) através da categoria de sociedade civil, para a sociedade política, ou seja, para o interior do próprio aparato estatal. Nesse sentido, sua contribuição aprofunda o processo de ampliação da teoria marxista do Estado identificado por Buci-Glucksman (1980), sendo, nas palavras de Coutinho ([1999] 2007), um dos principais continuadores da obra de Gramsci. Como observa Jessop (2009), além de um clássico do pensamento político marxista no século XX, O Estado, o Poder, o Socialismo ([1978] 1985) consolida a ruptura de Poulantzas com o pensamento de Althusser, que até então lhe servia de base em sua reflexão. A superação do althusserianismo ocorre quando o autor abandona a definição do Estado como aparato, ou 966

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conjunto, de aparelhos ideológicos, para adotar a fórmula gramsciana do Estado como relação dialética entre sociedade civil e sociedade política, ou consenso e coerção. O principal elemento utilizado por Poulantzas para realizar este movimento é a contribuição de Gramsci, que permite ao autor uma virada historicista em sua maturidade. Na mesma linha Codato (2008) aponta para a importância das análises históricas de Poulantzas, como As Classes Sociais no Capitalismo de Hoje ([1974] ), e A Crise das Ditaduras ([1975] ), nesta virada teórica. Além disso, tanto Codato (2008), como Jessop (1980), aproximam esta evolução teórica de Poulantzas à mudança de suas posições políticas. Com efeito, ao acertar as contas com seu passado Poulantzas realiza não só uma crítica de Althusser, mas também de outras perspectivas tradicionais do marxismo presentes naquele período no interior do Partido Comunista Frances. Ao mesmo tempo, sua preocupação paralela com o que se passava no campo acadêmico tornou-o preocupado em sistematizar os fundamentos necessários para uma reinterpretação das categorias de Estado e política na tradição marxista. Em O Estado, o poder, o socialismo ([1978] 1985) Poulantzas começa exatamente estabelecendo uma crítica as visões equivocadas presentes tanto no marxismo tradicional, como na ciência política e na sociologia universitária francesa na década de 1970. Já na introdução do livro, ao colocar as condições fundamentais para apreender o Estado capitalista como objeto de estudo, Poulantzas ([1978] 1985) assume que é necessário “[...] procurar o fundamento da ossatura material do Estado nas relações de produção e na divisão social do trabalho, não no sentido que se entende habitualmente [...]” (Poulantzas, [1978] 1985, p. 17). Esta explicação relacional da conta da fundação e do desenvolvimento histórico do Estado no capitalismo, já que para o autor: “A teoria do Estado capitalista não pode ser separada da história de sua constituição e de sua formação” (Poulantzas [1978] 1985, p. 29). O Estado, que possui importante papel na acumulação primitiva de capital, tem, deste então, estas relações sociais de produção inscritas em sua ossatura material. A separação entre, público e privado, e, político e econômico, no capitalismo, são formas de tentar ocultar esta relação constitutiva presente na base destas formas de vida. A separação entre o trabalha manual e o trabalho intelectual assume um importante papel na caraterização de Poulazantas ([1978] 1985) do tipo de trabalho que se inscreve no aparato estatal. A partir daí o aturo realiza uma crítica da burocracia estatal, indicando não só suas relações orgânicas com frações da burguesia, e muitas vezes até com setores do proletariado, 967

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mas também a possibilidade de decisões e posicionamentos contrários entre diferentes órgãos da burocracia estatal ao longo do governo. Tendo o trabalho proletário inscrito na sua própria ossatura material, o Estado se apresenta para Poulantzas ([1978] 1985) como a condensação material da correlação de forças entre as diversas classes e frações de classes existentes em determinada formação social capitalista. Esta é, na visão do autor, a principal característica da identificação do Estado enquanto uma relação análoga ao capital, ou seja, enquanto uma forma de mediação social estranhada. Através desta fórmula tem-se que o Estado não se encontra nem acima das classes sociais, nem totalmente submisso aos desígnios das classes dominantes. Exatamente por não pertencer diretamente a nenhuma classe social, o Estado se apresenta como uma condensação material das relações de classe. Isto coloca para Poulantzas ([1978] 1985) um papel fundamental do Estado na organização do bloco de classes dominantes, e, consequentemente, esta esfera também adquire importância central para os processos de formação de hegemonia. Diferentemente de Gramsci ([1975] 2007), para o qual a hegemonia é uma atribuição da sociedade civil, capaz de formar consenso inclusive em torno do próprio uso do poder coercitivo, para Poulantzas ([1978] 1985) o Estado desempenha um papel central na formação da hegemonia. Isto inclui tanto a relação entre as classes e frações de classe dominantes, que constituem o que o autor chama de bloco no poder, como a relação do bloco no poder com as classes dominantes. Nesse sentido, o processo de socialização da política estende-se para a sociedade política, que passa a ser vista como um corpo fragmentado, composto por diversos centros decisórios dotados de autonomia. O caráter autonomamente relativo da sociedade civil em Gramsci ([1975] 2007) se estende para Poulantzas para o próprio aparato estatal, que goza não só de autonomia relativa como um todo, mas também apresenta tal autonomia nas suas diversas autarquias a escalões burocráticos. 5. Conclusões Os argumentos desenvolvidos pelo artigo destacaram a relevância das contribuições de Gramsci ([1975] 2007) e Poulantzas ([1978] 1985) para a superação das perspectivas 968

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tradicionais do Estado e da política no campo marxista, e consequentemente para um trato adequado destes temas neste campo. Para isto, primeiramente é apresentada a crítica ao marxismo tradicional desenvolvida por Postone ([1993] 2014). Destaca-se que a principal característica do marxismo tradicional para o autor é assumir o trabalho como um elemento transhistórico, realizando uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho, e não uma crítica do trabalho no capitalismo. Para desenvolver esta última o autor recorre a uma reinterpretação da teoria crítica do Marx maduro que reestabelece a centralidade das categorias básicas de sua crítica da economia política na explicação da sociabilidade capitalista, e de suas diversas formas de vida, dentre elas o Estado e a Política. Na mesma linha de Postone ([1993] 2014), Araujo (2016) argumenta que a formulação da teoria do valor pelo Marx maduro fez com que o próprio autor reformulasse sua intepretação do Estado e da política, assim como de sua perspectiva de revolução. O fundamental é destacar que nesta virada Marx compreende o Estado e a política como contrapartes do processo de reprodução

de

capital

em

escala

ampliada,

e

deste

modo,

como

elementos

estruturados/estruturantes das categorias básicas da crítica da economia política. Assumindo que o processo de acumulação de capital torna a produção humana crescentemente social, e que a vida política se desenvolve pari passu a este processo, tem-se associado ao processo de socialização da produção um processo de socialização da política. É exatamente por levarem isto em consideração que Gramsci ([1975] 2007) e Poulantzas ([1978] 1985) ampliam a teoria marxista do Estado, como argumentam Buci-Glucksmann (1982) e Coutinho ([1999] 2007). Tendo desenvolvido estes pontos elementares sobre o marxismo tradicional e a intelecção adequada dos conceitos de Estado e política nos termos da crítica da economia política, o artigo procurou explorar as contribuições de Gramsci ([1975] 2007) e Poulantzas ([1978] 1985) como alternativas as perspectivas presente no marxismo tradicional para compreender o Estado e a política nas sociedades contemporâneas. A despeito de ambas as contribuições ampliarem a teoria marxista do Estado, o artigo pontua uma diferença fundamental entre ambos: enquanto Gramsci ([1975] 2007) trata da socialização da política na esfera privada, através da análise da sociedade civil e dos aparelhos privados de hegemonia, e mediando sua ligação com a totalidade de social através do conceito 969

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de bloco histórico, Poulantzas ([1978] 1985) trata do mesmo processo no interior do aparato estatal através da definição do próprio Estado em termos relacionais, ao mesmo tempo em que realiza um movimento de mediação análogo com conceito de bloco no poder. Deste modo, ambos desenvolvem o Estado e a política como formas de vida específicas à sociabilidade capitalista e superam a contradição sujeito-objeto que perpassa o tema nas visões tradicionais, conforme pontuado pelo artigo. Isto faz com que estes autores sejam ferramentas uteis na construção de uma renovação do marxismo que supere as limitações presentes nas visões tradicionais. 6. Referências Bibliográficas ALTHUSSER, L. Por Marx. Rio de Janeiro: Zahar, [1965] 1979. ARAUJO, P. H. Marx: Capital, Estado e Política. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, no 43, p. 32-62, fevereiro/maio 2016. BARROW, C. Critical Theories of the State: Marxist, Neo-Marxist, Post-Marxist. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1993. BUCI-GLUCKSMANN, C. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CASTELO, R. O Social-Liberalismo: auge e crise da supremacia burguesa na era neoliberal. São Paulo: Expressão Popular, 2013. CODATO, A. Poulantzas, o Estado, e a Revolução. Crítica Marxista, São Paulo: Editora UNESP, no 27, p. 65-85, 2008. COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1999] 2007. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere – Volume III – Maquiavel: notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1975] 2007. JESSOP, B. O Estado, o Poder, o Socialismo de Poulantzas como um Clássico Moderno. Revista de Sociologia Política. Curitiba, v. 17, n. 33, p. 131-144, jun. 2009 ________. The Capitalist State: Marxist Theories and Methods. Oxford: Blackwell, 1982. LUKÁCS, G. A Ontologia do Ser Social. São Paulo: Boitempo, [1968] 2012. MENDONÇA, S. O Estado Ampliado como Ferramenta Metodológica. Revista Marx e o Marxismo. Niterói, v.2, n.2, jan/jul 2014. 970

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MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-58. São Paulo: Boitempo, [1858] 2001. ________. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural. [1867] 1988. ________. A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, [1871] 2011. ________. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, [1874] 2012. PORTELLI, H. Gramsci y el Bloque Histórico. México: Siglo Veinteuno Editores, [1972] 1982. POSTONE, M. Tempo, Trabalho e Dominação Social. São Paulo: Boitempo, [1993] 2014. POULANTZAS, N. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo: Martins Fontes [1968] 1986. ___________. Fascismo e Ditaduras. Porto: Portucalense Editora, [1970] 1972. ___________. As Classes Sociais e o Capitlismo de Hoje. Rio de Janeiro: Zahar Editores, [1974] 1978. ___________. A Crise das Ditaduras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, [1975] 1978. ___________. O Estado, o Poder, o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, [1978] 1985.

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A GUERRA DAS CASTANHEIRAS E A CRÍTICA DO ESTADO E DA POLÍTICA EM GRAMSCI E MARX Marcelo Henrique Bezerra Ramos1

RESUMO Em finais de 1968 centenas de castanheiras (operárias da indústria da extração de óleo da castanha de caju) da Companhia Industrial de Óleos do Nordeste – CIONE (Fortaleza-CE) organizaram uma greve para reivindicar melhores salários e condições de trabalho desenvolvendo-se numa crítica a lógica da exploração sofrida pelas trabalhadoras e ao papel do patrão e do Estado na opressão de classe sofrida pelas operárias. Este é um período de ditadura civil militar no Brasil, marcado pelo aumento da coerção na sociedade, cerceamento das liberdades políticas, perseguição aos movimentos sociais e arrocho sobre os salários e sobre a vida dos e das trabalhadoras, a fim de garantir as melhores condições para a produção e reprodução do Capital no Brasil. Portanto, buscamos com este trabalho, a partir da critica do Estado e da Política em Karl Marx e Antonio Gramsci, entender o processo de organização política e construção de consciências de classe entre estas trabalhadoras, enfrentando a hegemonia dominante e a coerção aplicada pelo Estado, contribuindo no movimento contrahegemônico que marcou 1968 como o ano de maior resistência dos subalternos ao regime militar. Palavras-chave: Estado; Hegemonia; Consciência de classe; Greve; Este artigo irá recuperar a mobilização das castanheiras da Companhia Industrial de Óleos do Nordeste – CIONE (Fortaleza-CE, 1968) a partir da reflexão crítica acerca do Estado e da Política em Karl Marx e Antonio Gramsci. Para isso iremos dividir o artigo em três partes: primeiramente faremos uma breve apresentação da guerra das castanheiras; num segundo momento iremos trazer a crítica de Marx e Gramsci ao Estado e a Política; para num terceiro momento trabalhar essas reflexões de Marx e Gramsci na História da guerra das castanheiras. O ramo da extração industrial de óleo da castanha de caju era, na década de 1960, um dos mais produtivos e estava entre os setores que mais impulsionava a incipiente rede industrial cearense. Várias empresas, inclusive multinacionais, estavam se instalando em Fortaleza com o 1

Graduado em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Estudante de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). [email protected]

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objetivo de explorar a atividade de beneficiamento da castanha de caju. Exemplo maior é a indústria Brasil Oiticica que chegou a empregar milhares de funcionárias na produção, é o que nos relata Jaime Libério2, diretor do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração de Óleos vegetais e Animais de Fortaleza (conhecido como Sindicato do Óleo), e na época militante do grupo Ação Popular3 (AP). Na CIONE, fábrica situada no bairro Antônio Bezerra, em Fortaleza, se aplicava uma das políticas mais corriqueiras por parte da ditadura aos trabalhadores nos finais da década de 1960: o arrocho salarial. Esta política foi construída pelo ministério do trabalho do regime. Uma forma de permitir a maior exploração dos trabalhadores gerando um maior acúmulo de capitais para o desenvolvimento e crescimento industrial pelos empresários. Fazia parte da nova política econômica do regime vigente o incentivo à industrialização para retomar e acelerar o desenvolvimento econômico: Em agosto [de 1964] foi divulgado o principal documento de estratégia econômica do governo Castelo Branco: o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG). Este definia como principal objetivo, para o biênio 1965-66, acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico do país e conter progressivamente o processo inflacionário para alcançar um razoável equilíbrio de preços em 1966. O objetivo do PAEG de acelerar crescimento e simultaneamente reduzir a inflação deve ser entendido no âmbito do diagnóstico que os autores do Plano faziam da crise brasileira.4

A consequência dessa política para os trabalhadores da CIONE foi imediata e profunda. Enquanto os preços continuavam aumentando por conta da inflação, o salário não era suficiente

nem sequer para suprir as demandas básicas das famílias que eram sustentadas com o ganho das castanheiras. O milagre econômico bradado pelo governo não era tão miraculoso para aquelas operárias. Exemplo disso era o nível de pobreza em que as trabalhadoras da CIONE viviam: As mulheres desmaiavam. Porque elas não almoçavam. Muitas dessas mulheres ganhavam tão pouco que elas não almoçavam, elas merendavam. Comiam duas 2

3 4

Jaime Libério, Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração de Óleos vegetais e Animais de Fortaleza (conhecido por Sindicato do Óleo), a época militante da Ação Popular (AP), tem uma importância fundamental em nossa pesquisa, foi em despretensiosas conversas com ele, nas dependências da Associação Anistia 64-68, em Fortaleza, que despertamos o interesse pela greve da CIONE. A Ação Popular era uma organização política de linha marxista-leninista, com origem nas bases da esquerda da igreja, a Ação Católica (RIDENTI, 2010). No Ceará teve grande influência no movimento estudantil e atuação nas fábricas têxteis e de beneficiamento de caju (FARIAS, 2007). PRADO, Luiz Carlos Delorme e EARP, Fábio Sá. “O milagre brasileira: crescimento acelerado, integração internacional e concentração de renda. In: O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX / organização FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. - 3ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009 (O Brasil Republicano; v. 4)

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bananas e um pão pra tirar um dia inteiro trabalhando. E voltavam muitas vezes no outro dia com o estômago vazio, aí quando entravam na fábrica e sentiam aquela ‘nhaca’ [mau cheiro], aquela ‘catinga’ enorme [de castanha], elas desmaiavam. O dono da fábrica e a capatazia dizia que era “esterismo” delas, diziam que era falta de homem!5

E foi nesse contexto que grande parte das castanheiras da CIONE resolveram paralisar suas atividades em finais de novembro de 1968, decretando greve e exigindo negociação imediata da pauta de reivindicações que consistia em melhoria imediata das condições de trabalho (equipamentos de segurança, óleo de mamona virgem) e aumento salarial. No primeiro dia elas não entraram, no segundo dia também, no terceiro dia a coisa mudou. O dono da fábrica, Jaime Aquino, juntou o pessoal da capatazia pra se armar de pau e lenha pra botar as mulheres pra trabalhar a força. Foi assim, apitou três vezes [a sirene da fábrica], não entrou ninguém, então eles vieram eles pegaram aquela que era considerada a liderança pra botar à força pra dentro. Aí as operárias foram pra cima! (…) E enquanto isso a menina [a liderança] se soltou e pulou o muro, que era muito alto e ela torceu o pé. Levaram ela pro hospital e as outras foram pro sindicato. Nesse dia chamavam de guerra, não chamavam de greve, era guerra!6

Estado e Política em Marx e Gramsci Há várias questões fundamentais sobre o processo da CIONE que precisam ser entendidas com maior nitidez. Queremos aqui analisar especificamente o papel do Estado e da Política, a partir de Marx e Gramsci. Tomemos como ponto de partida para nossa discussão a obra Crítica da Filosofia do Direito em Hegel, (Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie), de Karl Marx, um manuscrito de 1843, publicado apenas após a morte do autor, tendo apenas sua introdução publicada nos anais franco-alemães em fevereiro de 1844. Já se estabelece aqui uma necessidade de criar uma política que seja transformadora da realidade, negação da própria política e do próprio Estado. Para isso Marx entende que é preciso que esta nova filosofia tenha base material naqueles que no seu entendimento são os reais interessados na transformação desta forma de vida, no fim da dominação, na supressão do Estado, única forma deste movimento ter força é unir teoria e prática transformadora a partir de intervenção real na sociedade:

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Entrevista de Jaime Libério concedida a Marcelo Ramos em 22 de fevereiro de 2014 Entrevista de Jaime Libério concedida a Marcelo Ramos em 22 de fevereiro de 2014.

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a arma da crítica não pode, é claro, substituir a crítica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria também se torna força material quando se apodera das massas. a teoria é capaz de se apoderar das massas tão logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem tão logo se torna radical. ser radical é agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o próprio homem. (MARX, 2010b, p.152)

Portanto temos aqui uma teoria que entende que o Estado e a política são dimensões de sociabilidades historicamente determinadas, que elas não são indissolúveis, pelo contrário, para o autor, a plena liberdade, a plena realização da humanidade só é possível quando destruirmos essas dimensões da dominação. Para isto é necessário formar uma filosofia transformadora e construir uma base social material em sujeitos capazes de acabar com a dominação. Para Marx esse é o papel do proletariado, pois este guarda em si as contradições do desenvolvimento capitalista no século XIX Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? eis a nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano, que não se encontre numa oposição unilateral às consequências, mas numa oposição abrangente aos pressupostos do sistema político alemão; uma esfera, por fi, que não pode se emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas. Uma esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado. […] Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais, e tão logo o relâmpago do pensamento tenha penetrado profundamente nesse ingênuo solo do povo, a emancipação dos alemães em homens se completará. (MARX, 2010b, p.156)

Portanto já nesta Crítica de 1843, momento ainda da produção no que é chamado de jovem Marx, podemos destacar três questões fundamentais para a reflexão do autor e que nos servirá para esta pesquisa: a) Marx supera o idealismo hegeliano e estabelece uma análise histórica e materialista da realidade que busca nas relações sociais humanas a explicação da sociedade e suas coisas; b) ele entende que cada sociedade de classes forja suas relações de dominação, e que portanto a política e o Estado nestas sociedades estão voltados especificamente para estas sociedades; c) e que há a necessidade de se construir uma filosofia transformadora desta realidade para a realização de uma criatividade libertadora na humanidade, que para esta filosofia ser concreta ela precisa de uma base material, a massa, essa base material para Marx é o proletariado. 975

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Nos escritos posteriores há uma radicalização destes entendimentos, sobretudo na medida que Marx vai aprofundando seus estudos sobre a conjuntura da época e as revoluções que a burguesia vai promovendo pelo mundo como forma de adequar a organização da sociedade às relações sociais que baseadas no capital que estão cada vez mais dominantes pelo mundo. Em 18 de Brumário de Luís Bonaparte ("Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte"), escrito entre dezembro de 1851 e março de 1852, publicado pela primeira vez na revista Die Revolution. Partindo de uma análise concreta sobre os processos que promoveram o golpe que levou Luís Bonaparte (Napoleão III) ao poder, o autor vai firmando os traços fundamentais do materialismo histórico, ao mesmo tempo em que, analisando a forma como a burguesia vai construindo suas estruturas de poder, aperfeiçoa a crítica ao Estado e a política. Para nós, é fundamental o entendimento que Marx constrói dos processos históricos: Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial. (MARX,2011c, p.25-26)

Esse era um sinal que desenvolvia-se uma concepção de História em que as relações sociais condicionam as ações individuais em torna de uma lógico de sociabilidade e produção material. Cada sociedade na história havia encontrado uma estrutura social adequada a seu desenvolvimento histórico. E especificamente o capitalismo forjava novas formas adequadas a lógica da reprodutibilidade e expansão do capital, o que não ocorrera em formas sociais anteriores.

Então, se “O capital é, então, evidentemente, uma relação, e só pode ser uma relação de produção”, todas as formas de dominação, todas as instituições tem sempre em última instância o objetivo de garantir da dominação do capital a humanidade, de certo que não escapam disso nem a democracia burguesa nem sua república: O instinto lhes ensinou [a burguesia] que a república de fato consumou o seu domínio

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político, mas, ao mesmo tempo, também minou a sua base social, porque passaram a ter de confrontar-se e lutar diretamente com as classes subjugadas sem mediação nenhuma, sem o refúgio da coroa, sem poder derivar o interesse nacional das suas querelas secundárias entre si e com o reinado. Foi a sensação de debilidade que os fez recuar diante das condições puras do seu próprio domínio de classe e ansiar por retornar às formas mais incompletas, mais subdesenvolvidas e, por isso mesmo, menos perigosas de tal domínio. Em contrapartida, sempre que os monarquistas coligados entram em conflito com o pretendente que os enfrenta, com Bonaparte, sempre que imaginam que a sua onipotência parlamentar é ameaçada pelo Poder Executivo, ou seja, sempre que têm de trazer à tona o título político do seu domínio, eles se apresentam como republicanos e não como monarquistas: do orleanista Thiers, que adverte a Assembleia Nacional dizendo que o que menos os separa é a república, até o legitimista Berryer, que, no dia 2 de dezembro de 1851, envolto pela echarpe tricolor, arengava, em nome da república, para o povo reunido diante do prédio da prefeitura do décimo arrondissement [distrito]. Todavia, o eco lhe responde zombeteiramente: Henrique V! Henrique V! (MARX, 2011c, p.62)

Sempre que tem sua hegemonia ameaçada, a burguesia não pensa duas vezes em lançar mão da coerção para assegurar seu domínio. A democracia é conivente à sua dominação, pois quanto mais consentimento, maior silêncio dos subalternos, portanto, melhores condições de reprodução do capital. A coerção aberta lhe expõe demais, mas quando esta é necessária então é sumariamente aplicada. Enfim, como uma teoria do valor desenvolvida, Marx constrói uma crítica ao desenvolvimento da política da burguesia e ao mesmo tempo formula e aposta numa resposta revolucionário por parte do proletariado mundial. Sempre esperançoso vê nas lutas do XIX possibilidades e alternativas de construção de uma nova sociabilidade, baseada na organização dos livres produtores, o comunismo. A maior inspiração dessas expressões talvez tenha sido a Comuna de Paris, que tomou totalmente a atenção do velho alemão que mesmo em Londres, já expulso e proibido de voltar a França, acompanhou os processos da comuna, recebeu exilados e organizou as iniciativas de solidariedade por parte da Internacional dos Trabalhadores. Sua leitura a cerca dos processos da comuna foram sistematizadas em A Guerra Civil na França (Der Bürgerkrieg in Frankreich, um livro escrito em 1871 para ser seu discurso ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) como forma de saudar para todo o mundo a luta heróica e exemplar dos comunistas de Paris. Nesta obra já fica nítida a ênfase de Marx na necessidade que a política revolucionária do proletariado deve ser tanto em destruir a própria política do capital e o Estado como também a sua luta é para criar uma forma de produção material e da vida, que lhe levará a deixar de 977

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existir enquanto classe, enquanto proletários: A classe trabalhadora francesa se move, portanto, sob circunstâncias de extrema dificuldade. Qualquer tentativa de prejudicar o novo governo na presente crise, quando o inimigo está prestes a bater às portas de Paris, seria uma loucura desesperada. Os operários franceses devem cumprir seus deveres como cidadãos, mas, ao mesmo tempo, não se devem deixar dominar pelos souvenirs nacionais do Primeiro império. eles não têm de recapitular o passado, mas sim edificar o futuro. Que eles aperfeiçoem, calma e decididamente, as oportunidades da liberdade republicana para a obra de sua própria organização de classe. Isso lhes dotará de novos poderes hercúleos para a regeneração da frança e para nossa tarefa comum – a emancipação do trabalho. De seus esforços e sabedoria depende o destino da república. (MARX, 2011a, p.32, grifo nosso)

Libertar o trabalho é libertar-se da própria compulsão de produção de mercadorias, libertar o proletariado do próprio trabalho. A liberdade humana necessita do fim da coerção do trabalho para produzir a vida livremente. O proletariado em si, desaparece. Essa crítica ao Estado, a política do capital e ao trabalho também está presente no italiano Antonio Gramsci. Líder comunista na Itália, foi preciso pelo regime fascista no final dos anos 20 e na prisão escreveu uma série de reflexões sobre o Estado, a cultura, os partidos, a política, os intelectuais e as massas, que depois de seu falecimento foram publicadas sobre o nome de Cadernos do Cárcere (Quaderni del Carcere) e impactaram

profundamente o

pensamento crítico no mundo inteiro, até hoje. Logo no início do Caderno 11 dedicado a uma ser uma crítica da filosofia e uma sistematização do que para Gramsci era a Filosofia da Práxis, o italiano nos deixa nítido que há uma compulsão pelo trabalho que domina a sociedade capitalista: Há uma coerção de tipo militar também para o trabalho, que pode ser aplicada também à classe dominante, e que não é “escravidão”, mas sim a expressão adequada da pedagogia moderna voltada para a educação de um elemento imaturo (que é certamente imaturo, mas é tal na proximidade de elementos mais maduros, ao passo que a escravidão é expressão orgânica de condições universalmente imaturas (GRAMSCI, 1999, p.87, grifo nosso)

O marxista sardo então defende, assim como Marx, a construção de uma filosofia crítica a partir dos debaixo para enfrentar a coisificação e a miséria que o capital e as classes dominantes proporcionavam à humanidade. Para isso era necessário construir uma relação orgânica entre a filosofia e as massas de modo a extrair o que há de mais crítico nos meios populares: 978

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Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crítica do “senso comum” (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que “todos” são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de “todos”, mas de inovar e tornar “crítica” uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como “culminâncias” de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também do senso comum popular. […] A relação entre filosofia “superior” e senso comum é assegurada pela “política” (GRAMSCI, 1999, p.101]

Então para este autor não impossibilidade de formação de uma filosofia crítica nos meios populares, nas massas de subalternos, pelo contrário. Para se criar uma filosofia realmente criativa, transformadora, que tenha capacidade de fazer uma crítica radical ao Estado, a política, a dominação do capital, era necessário ir até os simples, e junto a estes construir uma nova consciência, uma nova filosofia, necessariamente crítica. Pois, quando um elemento dos subalternos critica o senso comum ele desenvolve ou aceita uma nova filosofia. Para ele o senso comum é o ponto de partida da filosofia da práxis na construção de uma nova política: Quando, individualmente, um elemento da massa supera criticamente o senso comum, ele aceita, por este mesmo fato, uma filosofia nova: daí, portanto, a necessidade, numa exposição da filosofia da práxis, da polêmica com as filosofias tradicionais. Aliás, por este seu caráter tendencial de filosofia de massa, a filosofia da práxis só pode ser concebida em forma polêmica, de luta perpétua. Todavia, o ponto de partida deve ser sempre o senso comum, que é espontaneamente a filosofia das multidões, as quais se trata de tornar ideologicamente homogêneas. (GRAMSCI, 1999, p.116)

Com certeza uma das contribuições mais férteis deste italiano não só para nosso trabalho, mas como para todo o pensamento crítico atual é a noção ampliada e bem mais complexa sobre o Estado e a sociedade civil. Para este autor, o estado nem paira acima da sociedade como um ente superior as contradições da luta de classe, tão menos o estado é apenas um “escritório” da classe dominante onde essa organiza seus trabalhos sem absorver nenhuma contradição. Para Gramsci, o estado é uma dimensão da luta política na sociedade de classes onde estão em permanente conflito os interesses dos subalternos sob a hegemonia das classes dominantes, ou, como ele mesmo defende, O Estado é certamente concebido com o organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como a força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos

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grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses doo grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico- corporativo. (GRAMSCI, 2007, p.41-42)

Fica mais fácil compreender esse abordagem de Estado ampliado quando Gramsci defende que as relações sociais em uma determinada historicidade são construídas em blocos históricos, que são o conjunto de relações sociais das classes de uma sociedade em um determinado período histórico. Não é simplesmente um bloco de poder, ou seja, não expressa apenas as relações da classe dominante, mas também as relações das classes subalternas, sendo então uma unidade dos contrários. Como fica nítido no Caderno 13, dos Cadernos do Cárcere: Em que sentido se pode identificar a política e a história e, portanto, toda a vida e a política? Como, em função disso, é possível conceber todo o sistema das superestruturas como distinções da política e, portanto, como se pode justificar a introdução do conceito de distinção numa filosofia da práxis? Mas se pode falar de dialética dos distintos e como se pode entender o conceito de círculo entre os graus da superestrutura? Conceito de “bloco histórico”, isto é, unidade entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos contrários e dos distintos. (GRAMSCI, 2007, p.26)

Esse bloco histórico e seus conflitos internos irão ser influenciados pelo nível de hegemonia de um grupo sobre o outro e isto irá se relacionar diretamente de como se é produzida a riqueza material em uma sociedade num determinado momento histórico e como a classe dominante atual para dominar as classes subalternar, inclusive o proletariado, sobre os seus interesses de produção e reprodução material. Gramsci faz uma comparação entre as sociedades do “ocidente”, com um desenvolvimento capitalista avançado e as sociedades do “oriente” com um capitalismo ainda de baixo desenvolvimento, onde as estruturas políticas burguesas ainda estão pouco desenvolvidas. Na primeira a hegemonia civil dos subalternos tem uma longa batalha para produzir contra-hegemonia para ir enfraquecendo os aparelhos de hegemonia da classe dominante. Na segunda a revolução é permanente, rápida, onde a burguesia é fraca, com poucas estruturas, onde a revolução russa, teve uma etapa democrático-burguesa em fevereiro e uma proletária em outubro. Ou seja, a depender da hegemonia cultural da classe dominante, da capacidade dela criar consenso dentro do bloco histórico, a luta dos subalternos pode ser mais direta e militarizada, ou mais indireta, fluida e até mesmo prolongada, tendo em vista a formação de uma contra-hegemonia, pois nessas sociedades ocidentais O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime

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parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de m odo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública — jornais e associações —, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a força, situa-se a corrupção-fraude (que é característica de certas situações de difícil exercício da função hegemônica, apresentando o emprego da força excessivos perigos), isto é, o enfraquecimento e a paralisação do antagonista ou dos antagonistas através da absorção de seus dirigentes, seja veladamente, seja abertamente (em casos de perigo iminente), com o objetivo de lançar a confusão e a desordem nas fileiras adversárias. (GRAMSCI, 2007, p.95)

A greve das castanheiras e a crítica do Estado e da Política E como diretamente todas essas questões elaboradas por Marx e Gramsci influi no melhor entendimento da Guerra das Castanheiras? Como entender essa mobilização de trabalhadoras no ano de 1968, em Fortaleza, no Ceará, a partir da crítica do Estado e da política a partir desta “aliança filosófica” alemã-italiana? Para estabelecer essa análise vamos voltar diretamente para o assunto da greve, em seu contexto histórico, agora mesclando diretamente com os conceitos elaborados por Marx e Gramsci. A partir do uso dos conceitos de hegemonia e crise de hegemonia proposto por Antonio Gramsci entendemos que as classes dominantes brasileiras estariam neste momento de 19621963 vivendo um momento de crise da sua hegemonia no bloco histórico (GRAMSCI, 2007) vigente na sociedade brasileira. Tinha então que aceitar um presidente que propunha reformas, que por mais que não fossem de total ruptura com a ordem burguesa estabelecida, iam no sentido contrário ao do projeto de exploração e acumulação capitalista delineado não só pela elite nacional como também pelas empresas multinacionais, sobretudo as americanas, para o Brasil naquele momento histórico. A crise de hegemonia da classe dirigente, que ocorre ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento político para o qual pediu ou impôs pela força o consenso das grandes massas (como a guerra), ou porque amplas massas (sobretudo de camponeses e de pequenos burgueses intelectuais) passaram subitamente da passividade política para uma certa atividade e apresentam reivindicações que, em seu conjunto desorganizado, constituem uma revolução. Fala-se de “crise de autoridade”: e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto. (GRAMSCI, 2007, p.60)

Portanto, o golpe militar de abril de 1964 cumpre aqui o papel de garantir de forma violenta a construção de um novo bloco histórico para o reestabelecimento de uma hegemonia burguesa no Brasil. Para isso, as classes dominantes brasileiras lançaram mão daquele que 981

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vinham sendo até o momento, nas palavras de Nilson Borges, a força arbitral-tutelar, ou mesmo o poder moderador que garantia a ordem institucional de classes: as forças armadas. Seguindo à risca os preceitos da Doutrina de Segurança Nacional, na qualidade de força dirigente, as Forças Armadas assumiram a função de partido da burguesia, manobrando a sociedade civil, através da censura, da repressão e do terrorismo estatal, para promover os interesses da elite dominante, assegurando-lhe condições de supremacia em face do social. (BORGES in: FERREIRA e DELGADO, 2009, p. 21)

Para Marx (2011c) enquanto a hegemonia burguesa não se desenvolvesse plenamente em um estado nacional e na sociedade civil de tal modo que as próprias classes subalternas aceitassem pelo consentimento a dominação burguesa o antagonismo de classe seria explícito e a coerção cumpriria um papel central na garantia do domínio de classe, na manutenção do estado. Enquanto a dominação da classe burguesa não se organizasse totalmente, enquanto não adquirisse a sua expressão política pura, o antagonismo em relação às demais classes tampouco podia aparecer de forma pura, e, onde aparecesse, não teria como assumir aquela versão perigosa que transforma toda luta contra o poder estatal em luta contra o capital. Vendo em cada manifestação de vida da sociedade uma ameaça à “tranquilidade”, como ela poderia querer manter no topo da sociedade o regime da intranquilidade, o seu próprio regime, o regime parlamentarista, esse regime que, segundo a expressão de um dos seus oradores, vive na luta e pela luta? O regime parlamentarista vive da discussão; então, como poderia proibir a discussão? Cada interesse, cada instituição social é transformada por ele em ideia universal, tratada como ideia; como poderia algum interesse, alguma instituição a firmar-se acima do pensamento e impor-se como artigo de fé? (MARX, 2011c, p.81)

Constatamos tanto através da oralidade dos sujeitos entrevistados, contraposto as notícias de jornais da época, o conflito operário na CIONE foi um destes eventos de mobilização operária no no Brasil durante 1968, ano de intensas mobilizações sociais. Jaime Libério aponta que em 1968 a greve da COBRASMA, em Osasco-SP, a greve dos canavieiros do Cabo, em Pernambuco, e a greve da CIONE, foram símbolo da resistência operária pelo Brasil: Foi a única greve do período7. Os sindicatos ficavam espantando mosca. Aquilo impressionou, as mulheres iam pra rua com faixas. Iam pro mercado, pra universidade e contavam suas péssimas condições de trabalho. Eu me lembro que foi uma repercussão no Brasil! Teve essa greve, houve uma greve de trabalhadores rurais no Cabo [Greve dos canavieiros do Cabo - PE] e a greve dos metalúrgicos de Osasco [Greve da

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Outros entrevistados (como José Machado), afirmam que sim ocorreram outras greves em Fortaleza no período de 1968, porém não exploraremos isto neste momento pelo a dimensão deste artigo, mas fica o registro para não cometermos um erro histórico.

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COBRASMA].8 A da CIONE foi mais singular ainda pois eram mulheres!9

Quando entrevistamos Jaime Libério ele estava iniciando a construção de seu livro de memórias, em que entre outras coisas conta a sua vivência na greve da CIONE. Então quando houve a entrevista Jaime estava com uma noção bem organizada cronologicamente do processo da greve. Quando da chegada delas no sindicato nós fizemos uma reunião. Nós tiramos comissões. Foi tirada uma comissão pra providenciar o almoço, foi tirada uma comissão pra ir no Mercado São Sebastião pedir alimento. Tiramos uma turma pra ir no CEU [Centro Estudantil Universitário da UFC] buscar apoio dos estudantes, e tiramos uma comissão pra fazer pedágio na esquina da Ibiapina com Duque de Caxias. (…). Tiravam uma comissão pra ir na delegacia do trabalho junto com o presidente do sindicato. Muitas ficaram no sindicato, umas ficavam conversando, muitas ficavam naquele desânimo por que não tinham o que fazer. O nosso trabalho era animar elas. Pegamos a caixa de som do sindicato e fizemos uma assembleia pra animar elas. Quando todo mundo chegou elas fizeram um panelão de baião de dois pra almoçarmos. (…) Duas mulheres faziam um fogo pra fazer mingau pras crianças, porque não era só uma, eram várias crianças! (…) De tarde se tirava uma comissão pra ir nas outras fábricas entregar um convite para irem a assembleia. Todo dia tinha assembleia. As reivindicações eram: aumento do salário, melhoria das condições de trabalho e nenhuma prisão [que nos transcorrer foi incorporada].10

O papel da organização política aqui foi fundamental. A Ação Popular (AP), tinha uma grande inserção junto ao movimento estudantil, nacionalmente dirigia a UNE e grande parte das entidades estudantis universitárias. Essa política de inserção junto ao operariado é o que fez Cristina Carvalheira vir Fortaleza para se incorporar à produção da CIONE e muitos outros estudantes dos seus locais de militância universitário e ir fazer trabalho juntamente aos trabalhadores. Como nos diz Cristina: “essa decisão [da AP] foi tomada um pouco antes, em 1967 essa decisão de integração a produção. Aí uns foram pra fábrica, outros foram para o campo, inclusive depois da fábrica eu fui pro campo”11. Cacau, que também era militante da AP também endossa que essa era a linha da organização: “a AP deslocava estudante pra virar

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Entrevista de Jaime Libério concedida a Marcelo Ramos em 22 de fevereiro de 2014 Não abordaremos a questão específica aqui também devido as limitações de um artigo, mas estamos construindo um outro artigo, como parte da discussão teórica das fontes a cerca da especificidade da luta das mulheres no movimento de trabalhadores, o papel da opressão e a relação desta com a exploração e a alienação do trabalho na produção capitalista, bem como as difentes abordagens sobre as questões em ARRUZZA, Cinzia, Feminismo e marxismo: entre casamentos e divórcios, Lisboa, Combate, 2010; FALQUET, Jules, “Repensar as relações sociais de sexo, classe e ‘raça’ na globalização neoliberal”, Mediações, v. 13, n.1-2, Jan/Jun e Jul/Dez. 2008; e SOUZA LOBO, Elizabeth A Classe Operária tem dois Sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1991. 10 Entrevista de Jaime Libério concedida a Marcelo Ramos em 22 de fevereiro de 2014. 11 Entrevista de Cristina Carvalheira concedida a Marcelo Ramos em 15 de julho de 2014.

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operário e camponês. A minha irmã Helena Serra Azul foi presa na mata de Pernambuco quando tava fazendo trabalho com os camponês. Eles faziam era muito isso, eu conheci uma menina que era de classe média que tava trabalhando como operária na Brasil Oiticica, era da AP”12. Encontramos em Gramsci novamente a importância que este dá no papel a cumprir dos partidos políticos, príncipe moderno, organizador da filosofia popular contra hegemônica. Os partidos políticos têm um papel fundamental na experimentação de concepções, na universalização de práticas transformadoras, na radicalização das práticas populares. Para isso precisam se conjugar com as massas, para uma elevação da consciência coletiva. Deve-se sublinhar a importância e o significado que têm os partidos políticos, no mundo moderno, na elaboração e difusão das concepções do mundo, na medida em que elaboram essencialmente a ética e a política adequadas a elas, isto é, em que funcionam quase como “experimentadores” históricos de tais concepções. Os partidos selecionam individualmente a massa atuante, e esta seleção opera-se simultaneamente nos campos prático e teórico, com uma relação tão mais estreita entre teoria e prática quanto mais seja a concepção vitalmente e radicalmente inovadora e antagônica aos antigos modos de pensar. Por isso, pode-se dizer que os partidos são os elaboradores das novas intelectualidades integrais e totalitárias [aqui tendo o sentido de buscar a totalidade], isto é, o crisol da unificação de teoria e prática entendida como processo histórico real; e compreende-se, assim, como seja necessária que a sua formação se realize através da adesão individual e não ao modo “laborista”, já que — se se trata de dirigir organicamente “toda a massa economicamente ativa” — deve-se dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta inovação só pode tornar-se de massa, em seus primeiros estágios, por intermédio de uma elite na qual a concepção implícita na atividade humana já se tenha tornado, em certa medida, consciência atual coerente e sistemática e vontade precisa e decidida. (GRAMSCI, 1997, p.105)

Portanto, este resistente episódio de revolta operária expressa pelas ações dos sujeitos envolvidos algum entendimento da opressão de classe que era exercida pelos patrões sobre o operariado. Evidencia-se também um momento em que a classe se organiza na fábrica e resolve paralisar as atividades, entendendo que são eles que produzem e que merecem melhores condições de trabalho. Num momento de repressão generalizada, qualquer sinalização de liberdade, iluminismo, ou qualquer reforma é traduzida pelos conservadores e reacionários como socialismo. Quer se tratasse do direito de petição ou do imposto do vinho, da liberdade de imprensa ou do livre-comércio, de clubes ou da lei orgânica municipal, da proteção da liberdade pessoal ou da regulamentação do orçamento do Estado, a senha sempre se repete, o tema permanece sempre o mesmo, a sentença sempre já está pronta e tem o seguinte teor imutável: “socialismo!”. Declara-se como socialista o liberalismo burguês, o Iluminismo burguês e até a reforma financeira 12 Entrevista de Maria do Carmo concedida a Marcelo Ramos em 8 de julho de 2014.

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burguesa. Era considerado um ato socialista construir uma ferrovia onde já havia um canal, e era um ato socialista defender-se com um bastão ao ser atacado com uma espada. (MARX, 2011c, p.80)

Portanto, a greve é apenas parte do processo de formação da consciência de classe, nem começo nem fim, apenas um episódio do processo, porém não menos importante como arma de luta instrumentalizada pelas operárias da CIONE para romper o cerco do possível e forjar na luta de classes sua própria história, dando sua contribuição para a história da classe trabalhadora de Fortaleza, a qual não pode deixar de conhecer esse fundamental momento do seu fazer-se. Bibliografia ALVES, Maria Helena de Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru, SP: EDUSC, 2005. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, volume 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. _________________ – Cadernos do Cárcere, volume 3. 3ª ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. MARX, Karl Heinrich. – O Capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O Processo de Produção do Capital; São Paulo: Boitempo, 2013 _________________ – Resumo Crítico de Estatismo e Anarquia, de Mikhail Bakunin (1874) (Excertos), in. Crítica ao Programa de Gotha; São Paulo, 2012: Boitempo, p. 105-119. __________________ – A Guerra Civil na França. São Paulo: Boitempo, 2011a, 268p. __________________ – E-book. Grundrisse: Manuscritos Econômicos de 1857-1858. Esboços da Crítica da Economia Política, São Paulo: Boitempo, 2011b. __________________ – O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011c. __________________ – Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010. p.7-141. _________________ – Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. Apêndice a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010b, p. 145-165. MARX, Karl Heinrich e ENGELS, Friedrich. – Lutas de Classes na Rússia. São Paulo: Boitempo, 2013. _______________ - A Ideologia Alemã – Crítica da mais Recente Filosofia Alemã em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do Socialismo Alemão em seus Diferentes Profetas – 1845-1846. São Paulo: Boitempo, 2007. 614p. RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. 985

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TRABALHADORES, MUTUALISMO, ESTADO: Sociedade Civil e Sociedade Política Leôndidas Freire Júnior1 RESUMO O estudo das sociedades mutuais de trabalhadores no Brasil é relativamente ainda pouco abordado pela historiografia, se considerarmos a quantidade de associações mutualistas, algumas existentes até os dias presentes, a quantidade expressiva de trabalhadores associados do império ao inicio da república, temos a certeza de que há muito ainda a ser pesquisado. Existe dentro dos estudos do Mutualismo um tema que parece um desafio a parte. Como compreender as “ambíguas”, “verticais”, “horizontais” relações do mutualismo com o estado? Como tema recente, poucos se aventuraram a refletir sobre tal problema, um dos motivos talvez para a ausência de discussões mais aprofundadas sobre esse ponto, provavelmente se dê pelo fato dos estudos do mutualismo, não terem consagrados conceitos teóricos próprios e adequados às descobertas empíricas das, relativamente poucas pesquisas existentes. Meu trabalho ainda em fase inicial, tenta trazer algumas contribuições interpretativas dessa relação mutuais-estado á luz das reflexões de Antonio Gramsci, vislumbro as sociedades operárias mutualistas no Brasil, especialmente no Nordeste brasileiro, e suas correlações de força com o Estado Brasileiro, do período final do Império até alguns meados da República. Parto da idéia de um Estado Integral, procuro nessa pesquisa de forma inicial, lançar questionamentos sobre as sociedades mutuais de trabalhadores, apreendidas em seus momentos de relações mais evidentes com estado brasileiro, essa dialética mutuais-estado seguindo um tom mais analítico, de embates entre frações da sociedade civil e sociedade política. Tento entender as sociedades mutuais como organizações da sociedade civil, dotadas de ”vontade coletiva organizada”, um grupo social que estava inerte no jogo da hegemonia, e participava como protagonista das possíveis crises de hegemonia na sociedade civil, já que nesse trabalho em diálogo com outros e com o próprio Gramsci, a idéia de sociedade civil é percebida como base que institui o próprio conceito de estado ampliado.

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Mestrando em História Social pela UFF. Email: [email protected]

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Na obra Os Intelectuais e a organização da cultura o filósofo Antonio Gramsci define o Estado como sendo “todo o conjunto de atividades teóricas e práticas com as quais a classe dirigente justifica e mantém não somente a sua dominação, mas também consegue obter o consenso ativo dos governados”. Dominação e consenso, são palavras aparentemente distintas, aparecem aqui em uma mesma frase - aparente incompatibilidade. Entretanto, Gramsci consegue perceber a dominação por parte do estado para além de uma estrutura repressora de aparato físico, militar e econômico. Na posição intelectual do Filósofo Italiano, a dominação é uma disputa pela hegemonia do campo social, disputa essa, que faz parte do jogo ideológico, cultural, político e econômico. Dessa forma, a idéia para se compreender o Estado , atravessa na obra do autor, a idéia de apreensão da figura e estrutura do estado como algo integral, ou da maneira que também aparece em alguns de seus textos, como sendo um estado ampliado. Antonio Gramsci percebe que a própria configuração do estado é composta por frações. Partes da sociedade civil, a quem vou identificar(de forma apressada) como o povo, os trabalhadores, os subalternos. Já as frações da sociedade política, podem ser entendidas como frações historicamente de dominantes. Por esse caminho, o que amplia o conceito de estado em Gramsci, e consegue unir dominação e consenso em uma mesma frase, acarreta a idéia de que a dominação faz-se em um jogo complexo de busca por um consenso entre sociedade civil e sociedade política, o consenso ativo é uma disputa, que abrange a luta se classes, essa luta entre as classes está presente em diversos níveis e locais de embates, por exemplo no campo educacional, intelectual, artístico, na relação capital-trabalho como um modo mais evidente. É de todas essas lutas, nesse processo social que abrange todas as camadas do Estado, que surge a hegemonia. A Hegemonia em Antonio Gramsci é um conceito complexo, um conceito que se quer a algo relacional, um processo ativo, o filósofo a entende como fruto de um jogo de disputa constante, e que deve ser percebido não como algo dado, ou apenas conseguido pela força, mas também pelo consentimento, que é intensamente disputado nos vários campos citados acima. Em uma carta escrita a Tatiana, em 1931 o filósofo afirma: [...] eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo também leva também a certas determinações do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo

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de produção e a economia a um dado momento); e não como equilíbrio entre a sociedade política e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercidas através de organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), e é especialmente na sociedade civil que atuam os intelectuais [...] (GRAMSCI, 2005, p. 84)

Justamente essa amplitude do conceito de intelectuais, que traz também uma nova determinação do conceito de Estado, é o que me possibilita pensar no conceito Gramsciano de hegemonia, e de equilíbrio entre sociedade civil e sociedade política, aquela que é exercida através de organizações privadas, o que me auxilia na compreensão primeira, do Estado e sua relação com as sociedades mutuais, pois eram orgãos privados. Ao partir para um estudo, com essa concepção de Estado em Gramsci, confesso certo desconforto, pois ainda que no início de uma vida acadêmica de pesquisas relacionadas ao mundo do trabalho, tento me inserir nos estudos da historia social do trabalho, mais especificamente no campo que reflete sobre o mutualismo. Nessa área atualmente, são poucos os estudos que se propõem a utilizar as reflexões de Antonio Gramsci - não é comum, estudos com reflexões voltadas para o filósofo, nem na área mais ampla da história social do trabalho, e tampouco na área de estudos sobre mutualismo. Nesse aspecto, não sinto apenas um desconforto como também uma dificuldade de construir um texto de maneira mais fluida, onde a teoria e os conceitos que me proponho a empregar, pudessem aparecer diluídos no corpo da própria analise empírica. Não consegui realizar tal empreitada, pois percebo a necessidade de primeiro localizar alguns aspectos das reflexões teóricas e metodológicas que escolhi, haja visto que não é usual refletir as relações das sociedades mutualistas com o Estado, e ainda menos quando pensadas em uma perspectiva da filosofia da práxis de Gramsci. Optei por explanar algumas idéias de Gramsci de maneira inicial, para em seguida refletir um pouco, de maneira breve sobre o rumo dos estudos do mutualismo no Brasil, e na segunda parte elucidar algumas questões sobre as ordenações do Estado brasileiro e sobre a maneira como algumas associações mutualistas se relacionavam com o Estado, para na parte final deixar algumas reflexões, apenas iniciais sobre a relação mutualismo - Estado na possibilidade de se pensar com a obra de Gramsci. Nos estudos recentes sobre mutualismo no Brasil, segundo Cláudio Batalha existe:

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das sociedades de auxílios mútuos adota dois enfoques distintos – em princípio, não contraditórios – para lidar com essas organizações. Um concebe o mutualismo como um fenômeno mais amplo e pluriclassista e o outro prefere interpretá-lo como uma das formas de organização dos trabalhadores. O primeiro privilegia a dimensão propriamente mutualista/previdenciária dessas organizações, ao passo que o segundo está mais atento para os aspectos que transcendem o mutualismo e que estão presentes nas intenções e nas práticas das associações.(BATALHA,Claudio. 2010, p.13)

O enfoque em alguns dos meus trabalhos está mais próximo ao segundo grupo, tento visualizar as práticas e as intenções de tais associações, que por várias vezes empiricamente, pode ser constatado que transcendem o mutualismo em si. O Historiador e Sociólogo Marcel Van der Linden traz algumas definições do Mutualismo, concernentes a sua preocupação com o global, entre elas, “O termo mutualismo se refere a todos os sistemas voluntários, nas quais as pessoas contribuem para um fundo coletivo, que é, no todo ou em parte, pago a um ou mais dos contribuintes segundo regras específicas de alocação”. (VAN DER LINDEN, Marcel.2013, P.95) A definição de mutualismo de Van der Linden é bastante ampla, para alguns até mesmo vaga e genérica, porém partindo desse pressuposto posso considerar juntamente a definição de Van Der Linden, as Sociedades Mutualistas, e o mutualismo como sendo uma espécie de aparelho privado, que se encontra no campo da sociedade civil, que é coletivo, e que está inerte no jogo da hegemonia pois muitas vezes tenta influenciar pleitos eleitorais, nomeação de cargos públicos, lança até mesmo candidatos – quanto a questões na esfera intelectual, maioria das sociedades mutuais no Brasil detinham jornais de propaganda, mantinham escolas com professores e cartilhas próprias e próximas as sua concepções de projetos de sociedade. Por alguns desses poucos aspectos apresentados, é notório a participação das sociedades mutuais no Brasil na vida pública, um dos motivos talvez por terem sido desde o seus nascimentos no século XIX, tão reguladas juridicamente pela sociedade política, em uma expressão de Marcelo Mac Cord estavam “Sob vigilância imperial”. Marcelo Mac Cord ao analisar o mutualismo no século XIX, volta o seu olhar para a vigilância imperial e o clima de mudanças ocorridas no Império a partir da segunda metade do século XIX, segundo o historiador circulavam algumas discussões pelo poder legislativo do estado imperial, para tentar traçar algumas reformas, uma influencia dos pressupostos liberais e da concepção de estado de Adam Smith, que se espalahava pelos países ocidentais, o modelo

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smithiano visava cada vez mais vigilância e discussões a respeito do mundo do trabalho, especificamente da relação capital-trabalho, nesse sentido; Como resultado destas discussões, foram aprovadas pelo poder central a Lei de número 1.083 (de 22 de agosto de 1860) e o Decreto de número 2.711 (de 19 de dezembro de 1860), que regulamentava aquela lei. Estas regras preconizavam uma forte vigilância sobre a livre iniciativa nas vidas financeira, econômica e associativa do país. Especificamente sobre este último aspecto, determinou-se que as chamadas “sociedades” (recreativas, religiosas, profissionais, artísticas, beneficentes etc.) teriam que obedecer a uma série de requisitos legais. Somente assim essas entidades garantiriam sua existência oficial e, conseqüentemente, seu funcionamento cotidiano. (MAC CORD,Marcelo. 2013,P129)

Essa lei de 1860 é o primeiro demonstrativo de um embate da sociedade política incidindo sobre as sociedades mutuais. A tentativa de regulação e vigilância serão percebidas em vários momentos no Império bem como na República. De maneira inicial essa lei já trazia a obrigatoriedade da aprovação do estatuto de qualquer sociedade mutual pelo governo imperial, nas províncias essa missão ficava na responsabilidade do respectivo presidente, o que corroborava para que a vigilância fosse realizada de maneira mais pormenorizada. Um ponto importante que Mac Cord destacou fora o artigo 31, intitulado “Das Sociedades de Socorros Mútuos”, pois exigia que as associações funcionassem “unicamente por objeto prestar auxílios temporários aos seus respectivos sócios efetivos nos casos de enfermidade ou inutilizarão de serviço, e ocorrer, no caso de seu falecimento, às despesas do seu funeral”2. No Brasil existem relatos de sociedades mutuais que extrapolam tais ordenações, sociedades que participam politicamente da vida social, participam da vida educacional de seus sócios e também em lutas por direitos, nessa via é nítida uma tentativa do Estado Imperial em moldar o que deveria ser e como deveria se comportar uma associação de trabalhadores de caráter mutual, talvez nesse aspecto caiba mais uma vez trazer na perspectiva de Antonio Gramsci a noção de que o estado ampliado, ou integral é “todo complexo de atividades práticas e teóricas com o qual a classe dominante não somente justifica e mantém seu domínio, mas

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Arquivo Nacional (AN), Rio de Janeiro, Colleção de Leis do Império do Brasil de 1860, tomo XXIII, parte II, p. 1134.

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procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais exerce sua dominação” (GRAMSCI, 2000, p. 244). A lei aprovada em questão, não traz apenas a força de sua aplicação, mas traz também uma realidade em que a partir daquele momento, a sociedade civil passa a se aproximar da sociedade política, e para desenvolver suas funções necessitará(pelo menos se quiser seguir na legalidade) da tutela e do consentimento do estado, e esse consentimento passa a ter uma lógica mais próxima ainda quando adquire uma caráter federalista, já que cada presidente de província na condição de representante do poder do Imperador, poderá ou não aprovar tais estatutos. Empiricamente em muitos estudos vimos que as sociedades mutuais desse período de vigência dessa lei transcenderam e até transgrediram tais ordenações, entretanto havia de se manter uma aparente boa relação com o Estado, para que pudessem realizar suas atividades, essa lógica perdurou até o inicio e meados da república. Embora o controle sobre o mutualismo perceba-se mais intenso no período Imperial, essa tentativa constante , esse embate entre Estado e sociedades mutuais, é hoje uma tema desafiador não somente no período imperial como no período da República. Existem vários indícios empíricos da presença de políticos na primeira República dentro de sociedades mutuais, representantes do estado, até mesmo governadores de províncias, todas essas conotações empíricas tem gerado uma série de debates a respeito da relação do Estado com as mutuais, e assim relativizado a idéia das sociedades mutuais serem consideradas organismos capazes de expressar uma cultura, ou consciência de classe dos trabalhadores, uma vez que alguns dos representantes da sociedade política adentram os quadros de tais associações. A Historiador Claudia Viscardi afirma que; “Parece haver um consenso entre os estudiosos recentes sobre o tema de que as mutuais não se construíram em espaços de resistência dos trabalhadores contra os abusos do capital.” (VISCARDI, Claudia. 2010, p. 31.) De forma mais incisiva, a historiadora afirma sobre o próprio uso da classe enquanto potencial instrumento metodológico; apesar do argumento parecer convincente, tal abordagem deva ser antecedida de uma discussão prévia acerca da pertinência do uso de referências classistas para o estudo do mutualismo. Não se trata de negar a existência de classes, mas de repensar seu potencial analítico para o entendimento desse fenômeno associativo, que ploriferou no Brasil entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX(VISCARDI, Claudia. 2010, p. 31.)

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As dificuldades que os historiadores do mutualismo enfrentam em pensar o fenomeno em si, se dar pela sua própria complexidade enquanto fenômeno social, a sua amplitude e sua feição democrática. Por isso várias interpretações e visões ficam as vezes distantes umas das outras quando refere-se a questões teóricas e metodológicas do estudo do mutualismo. Discordo da Historiadora Claudia Viscardi inicialmente, penso que devemos sim utilizar referencias classistas e as considero pertinentes, mas concordo com a necessidade de sim, repensar tal concepção de classe e ampliar, esse debate. Justamente nesse sentido que trago ainda de forma inicial essa possibilidades de pensarmos com Gramsci o fenômeno das mutuais. Dessa maneira que possamos refletir tanto a classe em sentido thompsoniano, bem como trazer um entendimento de classe e de aparelho privado de hegemonia no sentido Gramsciniano, penso que assim possamos aumentar nosso potencial analítico. Não pretendo de maneira alguma trazer um modelo fechado para uma discussão tão vasta e complexa, o que pretendo é trazer para um ponto crucial do mutualismo uma discussão teórica que me parece pertinente, a medida que estamos com dificuldades para pensar as relações ambíguas do mutualismo com o estado. Em casos empíricos especificamente, podemos perceber algumas dessas dificuldades. Na primeira república por exemplo, existiam diversas associações de trabalhadores de caráter mutualistas espalhadas pelo Brasil, no Rio de Janeiro a sociedade operária de cunho mutual, União Operária do Engenho de Dentro, teve por muitos anos a sua frente, seu presidente Pinto Machado, a UOED desenvolveu diversos projetos assistenciais, construção de casas, socorro a vítimas de acidentes de trabalho, manteve escolas de caráter socialista, encampou lutas políticas como a luta pelas 8 horas diárias, dentre muitas outras realizações, assim como grande parte das associações no Brasil da época, a UOED tinha sua rede de relações com outras sociedades de trabalhadores, espalhadas pelo Brasil e até mesmo de outros países. Uma dessas associações agremiadas a UOED, era a Aliança Federativa dos Obreiros do Piauí, que mantinha escola operária, realizava ações de caráter assistencial, detinha em seus quadros ilustres membros da elite letrada local, bem como membros da administração do estado, e também mantinha um jornal de propaganda operária, que se traduzia como um palco para as aspirações do socialismo e do mutualismo da época.

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No primeiro de Maio de 1906, coube para a Aliança Federativa dos Obreiros do Piauí, a organização da festa do primeiro de Maio. E nesse ambito já havia se passado o primeiro congresso operário brasileiro, onde fora decidido a maneira como as associações deveriam comemorar o primeiro de maio, e o que aquela data deveria simbolizar para tais associações. Assim em uma edição do jornal O Operário em 1906, o instrumento de propaganda da AFOP, traz a seguinte indignação, com respeito a outra associação de trabalhadores de caráter mutual, : Dizer que o „Operário‟ é pasquim é desconhecer as leis do país em que habita e a língua da terra em que nasceu[...]Pois saiba o „Operário‟ Pinto Machado, que o Governador do Estado é amigo dos operários de sua terra, e que antes, como depois da criação da „Aliança‟, os operários do Piauí não são vítimas de perseguição das autoridades judiciais e policiais, sem terem, aliás, compromisso político ou ligação com o partido governista.(O OPERARIO. 1906 P,1)

A indignação por parte da Aliança Federativa dos Obreiros do Piauí, veio do fato do Presidente da União Operaria do Engenho de Dentro, o operário Pinto Machado tecer duras críticas a AFOP, por sua proximidade com o governador do Estado do Piauí, bem como saudálo no dia da festa do primeiro de Maio, para Pinto Machado tal atitude demonstra insensatez, incongruência com a luta operária. Porem o que nos complica mais ainda é o fato da afirmação dos próprios dirigentes da AFOP, de que o governador do estado do Piauí é “amigo” dos operários de sua terra. Aqui nos dificultaria muito essa compreensão, pois um membro da sociedade política representante máximo do poder do Estado Republicano, é amigo dos membros da sociedade Civil. A possibilidade de se pensar na perspectiva de Gramsci a relação Mutual – Estado estaria totalmente desacreditada nesse cenário empírico? Acredito que não. Penso ser desse ponto a maior necessidade das reflexões de Antonio Gramsci, se percebermos mais apuradamente, em alguns trechos da citação os membros da Aliança Federativa dos Obreiros do Piauí, perceberemos a importância de se pensar tais relações complexas com as reflexões de Antonio Gramsci. 1)

Quando é afirmado que “antes como depois” da criação da sociedade o governador é amigo dos operários - por saber empiricamente que a Aliança Federativa dos Obreiros do Piauí é fundada ainda no Império, e que portanto estava inerte naquelas ordenanças já citadas neste artigo, vislumbro a noção de que essa sociedade mutual foi forjada, teve 993

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seu nascimento sob uma forte vigilância do estado, assim tem suas peculiaridades pois surgiu em um mundo dado, em que o estado tenta controlar os aparelhos privados de hegemonia. 2)

No quesito seguinte, os membros da AFOP justificam tal ligação com o governador, e a fórmula proveitosa que a associação detém por ser amiga do governador, “não é perseguida nem por autoridades jurídicas nem policiais”, nesse ponto há uma evidente vantagem em um equilíbrio de forças, pois não há apenas uma amizade ingênua uma relação simples estado-mutual, mas existe benefícios. Gramsci chama a atenção para a maneira como se estabelece a hegemonia o domínio que nem sempre é com o uso da força, mas também de outras maneiras se obtém um consenso que é ativo.

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A afirmação final é verdadeira, a aliança federativa dos obreiros do Piauí não toma parte em nenhum pleito político. O que demonstra o jogo de hegemonia o equilíbrio entre sociedade civil e sociedade política, o funcionamento bem como as atividades desempenhadas pela AFOP dependiam diretamente de uma relação de forças com o estado como figura completa e integral, e na somente com um representante político. Nesses sentidos apresentados, e como parte final, encerro minha reflexão ainda de

caráter inicial, que se pretendeu responder algumas questões pertinentes as relações mutuaisEstado, que como fora apresentado não são relações fáceis, exigem cuidados metodológicos, necessitam de uma perspectiva que dê conta de capturar tamanha abrangência e aparentes contradições. Por isso essas relações carecem de uma maior atenção por parte da historiografia brasileira do trabalho, que creio eu, pode se beneficiar com a incrementarão das reflexões de Gramsci para pensar o estado, talvez não somente no caso do mutualismo, mas de outros campos de estudo dentro da perspectiva da Historia Social do Trabalho. Como compreender as intituladas “ambíguas”, ou até mesmo para alguns mais radicais, as “verticais”, ou “horizontais” relações do mutualismo com o estado? Como tema recente, poucos se aventuraram a refletir sobre tal problema, um dos motivos talvez para a ausência de discussões mais aprofundadas seja a carência de modelos empíricos ou de rumos teóricos para se aproximar dessas discussões. O que de maneira rápida e bastante tímida tentei fazer, foi trazer as reflexões de Sociedade Civil e Sociedade Política de Antonio Gramsci para pensar o mutualismo e o Estado. 994

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Os dois conceitos como parte de um jogo, uma disputa pela hegemonia do tecido social, assim entendendo de maneira primeira a figura do Estado, como um Estado ampliado, na idéia de que essa estrutura do Estado tanto Imperial, quanto posteriormente na primeira República é composta por agitações, embates e correlações de força, as leis e as ordenanças desde 1860, trazidas por Marcelo Mac Cord são um exemplo dessa configuração de disputas pelo controle das relações sociais. Não esquecendo de entender as sociedades mutuais como também parte desse estado ampliado, estando na sociedade civil e sendo um aparelho privado de hegemonia. Posso entendê-las como aparelhos privados de hegemonia por que primeiramente são privadas, são entidades coletivas de natureza jurídica que detém certa democracia interna, entretanto são privadas, e demonstram desde o século XIX que para além de funções assistências, fizeram-se palcos demonstrativos das lutas operárias no Brasil, embora com todo um aparado repressor e vigilante da sociedade política. Como Aparelho privado de hegemonia as sociedades mutuais no Brasil, em sua grande maioria lutavam por direitos, por auxílios, por segurança estrutural, por trabalho digno. Algumas também lutavam pelo socialismo , outras pelo anarquismo, mas também lutavam por instrução, pois em sua grande maioria as sociedades mutuais mantinham escolas noturnas para operários e operárias, escolas para os filhos dos operários - as mutuais também lutavam pelo direito de se rebelarem, até mesmo com greves, no Piauí por exemplo existem relatos da participação de sociedades mutuais em greves. As sociedades mutuais também lutavam pelo próprio direito de organização, uma vez já citada as formas de se conseguir manter uma sociedade mutual desde a sua fundação, até o se funcionamento, dependia de muitas nuances jurídicas e políticas, nesses sentidos a necessidade da lutas por organização era constante, já que estavam inertes em um jogo de disputas pela hegemonia do tecido social, e faziam parte de uma disputa, sendo uma camada do Estado Integral. Talvez de forma inconsciente, algumas seguiam o filósofo Italiano, “Instruí-vos, porque precisamos da vossa inteligência. Agitai-vos, porque precisamos do vosso entusiasmo. Organizai-vos, porque carecemos de toda vossa força”. (Gramsci)

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BBLIOGRAFIA BATALHA, Claudio. Realçando o debate sobre mutualismo no Brasil: As relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e sindicatos á luz da produção recente, Mundos do Trabalho, vol,2.n.4 ago-dez. de 2010 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política; edição e tradução, Carlos Nelson Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2000. GRAMSCI, Antonio.Cartas do Cárcere, v.2: 1931-1937. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. MAC CORD, Marcelo. CONEXÕES ATLÂNTICAS NOS CANTEIROS DE OBRAS PÚBLICAS RECIFENSES: LUTAS SUBALTERNAS CONTRA A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO. DÉCADA DE 1850. REVISTA DE HISTÓRIA COMPARADA, Rio de Janeiro, 7, 1: 156-185, 2013. VAN DER LINDEN, Marcel. Trabalhadores do Mundo: Ensaios para uma História Global do Trabalho. Campinas: Editora da Unicamp.2013. VISCARDI, Claudia. O estudo do Mutualismo: Algumas considerações historiográficas e metodológicas. Revista Mundos do Trabalho, vol2, n.4, ago-dez, 2010. THOMPSON, E.P. A formação da classe operária inglesa. I :A árvore da liberdade. Rio de Janeiro:paz e Terra, 1987.

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PARA UMA REINTERPRETAÇÃO DA CRÍTICA SOCIAL EM MARX Leandro Velasques Lima 1 A experiência do “socialismo realmente existente” – cercada por ideias de socialização dos meios de produção, de igualdade, de distribuição da renda etc. –, de forma velada ou desvelada, apresenta vínculos com a obra de Marx. A derrocada dessa experiência alimenta a concepção de que não há alternativa à sociedade capitalista moderna e nutre uma rejeição ao pensamento do filósofo alemão. Será que chegamos ao fim da história? Será a decadência da teoria social crítica de Marx? Para responder as questões emergentes, iremos nos amparar na obra do historiador canadense Moishe Postone – Tempo, Trabalho e Dominação social – e propor uma reinterpretação das categorias fundantes da crítica marxiana à economia política. Em outras palavras, será destacada a necessidade de uma releitura dos fundamentos da teoria do valor para elucidar os enganos relativos à proposta de Marx em seu projeto para a emancipação humana. A construção dessa proposta reformuladora consiste em: (i) evidenciar a compreensão limitada das interpretações que dominam o campo marxista, rotuladas de “marxismo tradicional” por Postone; (ii) formular uma crítica ao “socialismo realmente existente”; (iii) reforçar que o trabalho de Marx é mais do que necessário para superar a condição imposta pela lógica capitalista; e, por fim, (iv) repensar a causalidade explicativa das classes sociais, da política e do papel mediador estado para a superaração do estranhamento, à emancipação humana. Introdução Para além da diversidade de interpretações da teoria marxiana, o presente trabalho busca de forma objetiva retomar uma abordagem da teoria social em Marx. Pretende-se, ao recuperar a interpretação encontrada no trabalho de Moishe Postone – obtida, principalmente, em Tempo, trabalho e dominação social –, revelar as limitações da concepção que identifica na “teoria

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Mestrando em Economia Política pela Universidade Federal Fluminense – PPGE-UFF. Correio Eletrônico: [email protected].

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crítica madura”2 de Marx uma crítica positiva para a economia política. Nesse caso, ao observar as tais formulações, objetiva-se apresentar a “crítica madura” de Marx como uma crítica que busca uma refiguração social, que cria outro espaço de significação; em outros termos, uma crítica ao caráter estranhado que o trabalho assume no capitalismo (DUAYER & MEDEIROS, 2015). Entre outros aspectos, pretende-se combater, rejeitar, a predominante ideia de que não existe alternativa para a sociedade capitalista moderna3 – sociedade essa que apresenta, como objeto fundamental, a submissão irremediável do ser humano ao processo de valorização do valor, de expansão do capital. A proposta em questão não enfatiza, não apresenta como fulcral, o caráter exploratório presente na economia capitalista; a dominação entre classes é deslocada para um plano secundário na composição da crítica da sociedade regida pelo capital. O objetivo desse deslocamento é superar, revisar, a interpretação teórica presente nas experiências comunistas do século passado. Em outros termos, a presente análise acompanha a perspectiva de que há uma sujeição, uma disposição subordinada, entre a teoria marxiana da exploração com relação à categoria do estranhamento – ou, como referida em alguns casos, categoria da alienação. Na interpretação difundida ao longo do artigo, a intenção de combater a subordinação do ser humano frente ao processo de expansão do valor – dominação posta pelo capital sobre os homens – configura o procedimento central de Marx em sua obra “madura”. Ou seja, Marx proporciona elementos com o propósito de desarticular, de delatar, o problema presente na dinâmica capitalista que vigora em uma produção estranha aos sujeitos. Em poucas palavras, A crítica marxiana consiste em protestar o problema humano da emancipação – emancipação da subordinação dos indivíduos a essa lógica destrutiva do capital (DUAYER & MEDEIROS, 2015).

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Moishe Postone identifica como “teoria crítica madura” de Marx a produção do filósofo alemão posterior aos Grundrisse; Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. 3 Para uma abordagem sobre essa discussão, ver Carcanholo, M. “A atual ideologia conservadora e o capitalismo contemporâneo: uma crítica à teoria pós-moderna neoliberal”; onde, já nas primeiras linhas o autor cita pensadores como Francis Fukuyama e Daniel Bell que abordam, respectivamente, temas relacionados ao “fim da história” e a “sociedades pós-industrial”.

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Esse deslocamento, no objeto central da teoria marxiana, é fundamental para superar uma leitura positiva da crítica marxista à economia política. Em termos metodológicos, é um ponto fundamental para sobrepujar a concepção que não identifica o caráter ontológico presente na teoria crítica marxiana. Marx jamais se preocupou em combater as imperfeições da estrutura social constitutiva do modo de produção capitalista, pelo contrario, seu objetivo maior sempre foi identificar o caráter degradante, desumanizador, presente na formação social capitalista moderna (DUAYER & MEDEIROS, 2015). O artigo se desenvolve em mais quatro seções além dessa introdução. A seção seguinte trata da crítica às correntes teóricas do marxismo que apresentam uma visão restrita da crítica concebida por Marx; em resumo, serão abordadas as limitações do que Postone denominou como marxismo tradicional. O terceiro segmento do texto busca identificar a essência e o desenvolvimento do capitalismo como fonte da crítica capaz de superar a dinâmica social desumanizadora imposta pelo capital. Por fim, para além da última seção que conclui o artigo, o quarto ponto identifica uma releitura das categorias críticas à economia política que foram desenvolvidas tanto nos Grundrisse como em O Capital. As limitações do marxismo tradicional Na pretensão de identificar o desenvolvimento histórico e a essência do capitalismo, Moishe Postone organiza uma reinterpretação do que identifica como objeto central da crítica de Marx. A superação da sociedade capitalista aparece vinculada com a análise marxiana do trabalho social e demanda uma avaliação das necessidades e formas de consciência sob o modo de produção subordinado ao capital. Para fundamentar sua abordagem a crítica histórica da formação social capitalista, o autor parte de uma investigação das limitações do que circunscreveu como marxismo tradicional. A economia de mercado e a propriedade privada dos meios de produção, segundo grande parte da tradição marxista, formam a essência do modo de produção capitalista. Para superar o modo de produção capitalista, o socialismo é caracterizado na propriedade coletiva dos meios de produção e no planejamento econômico. No conjunto dos pressupostos fundamentais que essas interpretações incorporam consiste o marxismo tradicional – teorias que em outros

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aspectos poderiam aparecer em posições contrarias, são agrupadas por Postone, diante desse termo, como um pensamento unitário. O modo capitalista de propriedade e distribuição constitui uma nova estrutura produtiva, o modo de produção industrial. Há, entretanto, condições para uma reivindicação crítica de um novo modo de distribuição, conscientemente regulado e justo. Uma crítica histórica ao modo de distribuição consolida o modo de produção industrial e limita a crítica do modo de produção capitalista a uma reformulação da mediação histórica, à proposta de um novo modo de distribuição. A abordagem em questão interpreta a categoria do valor como uma categoria da distribuição – como um regulador “automático” da distribuição social de bens e serviços, trabalho e capital (POSTONE, 2014, pág. 61-68). Em confluência, as forças e as relações de produção são também abordadas como elementos da distribuição de riqueza social mediada de forma automática pelo mercado “autorregulado”; no lugar em que as “forças produtivas” se apresentam no modo industrial de produção e as “relações de produção” são compreendidas como apropriação privada. Ademais, há uma clara contradição na capacidade produtiva da sociedade moderna. As relações socioeconômicas da sociedade contemporânea impossibilitam a efetivação do seu potencial existente para saciar as necessidades de consumo de todos os indivíduos dessa sociedade (POSTONE, 2000, pág. 12-15). Entretanto, os pressupostos teóricos que configuram a concepção do marxismo tradicional identificam no processo de produção industrial uma existência histórica que independe da economia capitalista. O elemento historicamente dinâmico é atribuído a “esfera econômica” e, em oposição a essa esfera, o modo de produção aparece como um fator externo (POSTONE, 2000, pág. 7). Ou seja, a propriedade privada e a dominação de classe surgem como elementos específicos do capitalismo, enquanto o trabalho industrial é concebido como independente dessa dinâmica social. A estrutura teórica basilar do marxismo tradicional vê o modo de produção industrial – modo de produção baseado no trabalho proletário – como uma estrutura produtiva historicamente final. O socialismo, diante dessa interpretação, é visto como um novo modo de administração política e econômica do modo produção vigente, a produção industrial. 1000

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Em síntese, o marxismo tradicional, como concebe o historiador canadense, é a fusão de uma diversidade de visões que consideram a essência do socialismo e do capitalismo em acordo com os pressupostos básicos apresentados anteriormente, onde o modo de produção industrial é inquestionável e configura uma permanência transistórica. Essa abordagem teórica propõe apenas um novo modo de distribuição social, organizado e regulado como no modo industrial de produção, mas que, entretanto, deve ser conduzido pela classe operária. A teoria em questão esta limitada à crítica da dinâmica histórica do capitalismo liberal que se caracteriza na crescente substituição do mercado pelo estado intervencionista para orientar a distribuição. Essa abordagem não proporciona uma crítica ao modo de produção, que é configurado como historicamente invariável – seu elemento dinâmico se restringe a “esfera econômica”. Ao identificar a “esfera econômica” essencialmente em termos de distribuição – realizável por um planejamento centralizado –, a crítica histórica, crítica à dinâmica de desenvolvimento imanente das sociedades “socialistas” existentes, se apresenta inviável. Em outras palavras, os pressupostos teóricos dessa crítica “marxista” se revelam problemáticos ao abordar fenômenos como o ocorrido na União Soviética (POSTONE, 2000, pág. 5-6). Precisamente, Postone argumenta que, por abordar outro objeto de investigação, a obra de Marx consiste em uma crítica da economia política no modo de produção capitalista. O marxismo tradicional atribui à crítica da economia política uma economia política “alternativa”, onde o objeto é idêntico ao da economia política clássica, diferindo apenas por apresentar uma dinâmica histórica. A falha do marxismo tradicional consiste na incapacidade de examinar criticamente o processo industrial de produção para confirmar a necessidade de superação deste. Entretanto, a crítica marxiana consiste em identificar, dentro do processo de produção, a relação de trabalho entre os indivíduos, assim como, entre a humanidade e a natureza; ou seja, a crítica marxiana precisa abordar, como elemento central na superação do capitalismo, a produção estranhada.

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Os Grundrisse: a essência do capitalismo e o caminho para sua superação Moishe Postone apreende nos manuscritos de Marx, datados de 1857-58 e reunidos sob o título de Grundrisse der kritik der politischen okonomie4, a compreensão marxiana sobre a essência do capitalismo. O filósofo alemão é categórico ao reconhecer, na obra mencionada, que tanto o modo de distribuição quanto o modo de produção industrial apresentam as mesmas leis em diferentes formas e que essas condições pertencem apenas a um momento do processo histórico (MARX, 2011, pág. 461). A superação do capitalismo não figura possível sem a transformação, reestruturação, do modo de produção capitalista. As relações de produção não podem ser plenamente compreendidas ao considerar apenas o modo de distribuição; essas relações produtivas incluem aspectos imanentes ao próprio modo de produção industrial. A crítica marxiana aponta à emergência de uma nova forma de produção e revela a precariedade das críticas que se limitam às formas de distribuição – como, por exemplo, a crítica da propriedade privada. Marx, ao se referir as condições do modo de produção capitalista, destaca que: Partindo, p. ex, do trabalho livre ou trabalho assalariado resultante da dissolução da servidão, as máquinas só podem surgir em contraposição ao trabalho vivo, como propriedade alheia e poder hostil diante dele; i.e., que elas têm de se contrapor a ele como capital. Porém, é igualmente fácil perceber que as máquinas não deixarão de ser agentes da produção social tão logo devêm, p. ex., propriedade dos trabalhadores associados. No primeiro caso, todavia, sua distribuição, i.e., o fato de não pertencerem ao trabalhador, é da mesma maneira condição do modo de produção fundado no trabalho assalariado. No segundo caso, a distribuição modificada partiria de uma base da produção nova, modificada, originada somente por meio do processo histórico (MARX, 2011, pág. 707).

Em outras palavras, o trabalho assalariado se revela como conceito fundamental no modo de produção capitalista; sendo necessário, para romper com essa estrutura social, instaurar um “novo”, “modificado”, fundamento à produção. Em Marx, a categoria do valor se manifesta como o fundamento da produção burguesa e seu significado transcende o automatismo referente ao mercado “autorregulador”. Há uma conexão específica entre o “o modo de produção fundamentado no trabalho assalariado” e a “produção baseada no valor”. O tempo de trabalho empregado na produção, massa de tempo de trabalho direto – fator determinante na produção de riqueza –, se apresenta como pressuposto 4

Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política.

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do modo de produção baseado no valor. O valor, de acordo com esse posicionamento, deve ser apontado como uma categoria de riqueza social histórica, e não natural ou supra-histórica (MARX, 2011, pág. 587). Entretanto, a lógica dessa força produtiva, em sua essência, pode consistir em uma nova organização do trabalho social com potencialidades emancipatórias. Essa nova organização pode ser capaz de proporcionar ao ser humano uma posição de regulador, de observador, frente o processo de produção, afastando a necessidade do trabalho. Por consequência, a riqueza da sociedade capitalista, baseada no tempo de trabalho empregado à produção de mercadoria, se revela um fundamento miserável e demanda uma nova forma de organização, onde o desenvolvimento social é o objeto central da produção e da riqueza. Uma possível interpretação para essa passagem dos Grundrisse distingue que, para superar a lógica do capital, é preciso transformar o modo de produção capitalista baseado no valor como forma de riqueza social; é requerida uma transformação total da forma de produção material. Para Postone, em sua interpretação de Marx, a superação da lógica capitalista exige a superação do trabalho concreto realizado pelo proletariado e as forças de produção historicamente desenvolvidas no capitalismo, em seu processo produtivo, é o objeto a ser criticado. Para além dessa concepção, o historiador canadense aponta que há na tecnologia um potencial para a transformação do processo produtivo – potencial capaz de abolir o sistema de produção social onde a riqueza se vincula ao tempo de trabalho direto e o trabalhador aparece como engrenagem do modo de produção (POSTONE, 2014). Ao continuar sua leitura dos manuscritos de 1857-58, Postone acentua a concepção marxiana que identifica a necessidade de por fim ao trabalho concreto sob o comando do capital; o historiador canadense destaca o caráter estranhado – reprodutor de capital – presente na realização do trabalho proletariado e a necessidade de sua superação. Entre outros pontos, ressalta que o estranhamento não se restringe a uma simples ausência de objetificação por parte dos indivíduos, ele é relativo à dinâmica dessa objetificação. Para superar essa dinâmica estranha aos sujeitos, exige-se uma reflexão sobre o próprio processo de produção. Enquanto no capitalismo as pessoas trabalham com o objetivo único de consumir, a superação dessa

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particularidade da sociedade capitalista pode ser obtida em uma relação social inversa, onde o consumo é fruto da produção social (POSTONE, 2014). Apenas uma reversão das estruturas essenciais, fundamentais, do capitalismo pode ser capaz de superar essa submissão do individuo à lógica do capital. O sujeito precisa se reapropriar da cultura objetiva e de sua transformação; o fundamento desse processo está intimamente ligado à superação material do trabalho estranhado. Em conformidade com o argumento apresentado, é possível afirmar que a distinção entre capitalismo e socialismo aparece na transformação de todas as ramificações da cultura em sua essência, como apresenta Postone. A historicidade das categorias fundamentais à crítica do valor Marx, tanto nos Grundrisse quanto nos primeiros capítulos do livro primeiro de O Capital, apresenta em uma minuciosa exposição categorial. Ao desenvolver sua interpretação da teoria do valor em Marx, Postone recobra toda essa apresentação das categorias marxianas como fonte de argumentação. Propõe-se uma realocação do objetivo central contido na obra “madura” de Marx, conferindo à seção sobre fetichismo da mercadoria um papel fundamental. Essa abordagem categorial permite ao autor a realização de uma crítica ontológica – crítica dos elementos fundantes – da sociedade capitalista (DUAYER & ARAÚJO, 2015). Para amparar a crítica ao marxismo tradicional categoricamente, Postone evidencia o caráter histórico particular das categorias de valor e mais-valor – categorias fundamentais de Marx, amplamente discutidas em O Capital. O valor como forma de riqueza social está vinculado, arraigado, com sua forma material concreta; ou seja, há uma impossibilidade em eliminar o trabalho produtor de mais-valor – trabalho assalariado – enquanto a sua forma concreta, o trabalho proletário, continua a existir. Ao identificar que as categorias de Marx à crítica da economia política se referem, particularmente, ao modo de produção capitalista, é possível perceber que a crítica do valor constitui, de forma simultânea, uma crítica ao trabalho criador de valor em sua forma concreta particular nessa sociedade, trabalho proletário (POSTONE, 2014). Frente a essa abordagem categorial do valor e do mais-valor, torna-se possível identificar a fragilidade da concepção do mais-valor em termos distributivos, onde relaciona a criação de 1004

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valor pelo trabalhador – valor maior do que o requerido para sua reprodução imediata – com a apropriação realizada pelo capitalista como determinante fundamental do capitalismo. Há uma limitação tanto em abordar o mais-valor como uma desmistificação moral – como uma apropriação por parte do capitalista do mais-valor produzido pelo trabalhador – quanto em identificar o mais-valor como uma categoria da propriedade privada e do mercado – onde a superação poderia ser obtida partindo de uma administração social do excedente. O processo de produção precisa ser considerado ao realizar uma crítica à sociedade regida pelo capital. No processo de superação da produção orientada pelo mais-valor – além de não bastar uma reorientação da estrutura distributiva – é preciso superar a relação social de trabalho que caracteriza o capitalismo, é preciso identificar o trabalho social concreto que produz o maisvalor e combatê-lo (POSTONE, 2014). Partindo dessa exposição categorial, torna-se possível compreender, identificar, que a teoria marxiana refuta a contradição existente dentro do próprio modo de produção capitalista. Para além da colocação posta, é preciso destacar a contradição básica do capitalismo; o trabalho concreto realizado nessa sociedade emerge como uma negação do potencial emancipatório – capaz de libertar os indivíduos da dominação objetificada de seu próprio trabalho – existente no desenvolvimento produtivo concretizado na própria sociedade do capital (POSTONE, 2014). Na análise orientada ao desenvolvimento da dinâmica imanente do capitalismo, a busca por mudanças qualitativas no interior do próprio processo produtivo passa a ser a preocupação central, atingindo ramificações objetivas e subjetivas do processo. Seguindo a abordagem apresentada, parece claro que a crescente substituição do papel do mercado pelo estado não possibilita as mudanças qualitativas desejadas (POSTONE, 2014). O processo de trabalho e o processo de valorização do valor – dialética do valor de uso e do valor, onde é introduzida a análise da mercadoria – se apresentam como o ponto de partida para a crítica de Marx ao modo capitalista de produção em O Capital. A interação entre esses processos proporciona uma dinâmica histórica onde a forma material do processo de trabalho é determinada pela forma social do processo de valorização. Emerge, desta forma, na mudança qualitativa dos elementos ao longo da dinâmica histórica, a contradição fundamental do capitalismo. Essa abordagem, em acordo com o argumento posto, não deve ser relacionada com 1005

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outros aspectos – como a esfera da circulação simples de mercadoria, a distribuição da produção realizada –, senão com o interior do próprio processo de produção. Configuram-se evidente, uma vez mais, as limitações presentes no marxismo tradicional. A emergência histórica da crítica da sociedade capitalista moderna – crítica que, para denunciar o próprio modo de produção capitalista, precisa ir além das questões relacionadas ao consumo – se torna possível diante dessa leitura teórica de Marx. Postone destaca a necessidade central da superação do valor à crítica marxiana. Para superar a sociedade do capital, a produção de valores de uso precisa não estar limitada a mera produção de valor de uso como artigos para consumo; o trabalho social deve se apresentar enriquecedor ao próprio sujeito, não estranho a este. Essa releitura categorial evidencia a necessidade de superar a interpretação limitada da teoria marxiana como campo da esfera política ou de questões organizacionais. Identificar a União Soviética como uma contingência histórica ou fruto de efeitos práticos negativos presentes na teoria marxista – que conferem uma variação vulgar que negligencia a análise histórica e apresenta formação social como derivada da teoria– não permite analisar historicamente os países “socialistas” e, menos ainda, o capitalismo ocidental. Apenas uma crítica radical – crítica à raiz dessa formação social, com capacidade de refigurar a concepção de mundo estabelecida – ao capitalismo proporcionaria a superação dessa composição social, possibilitando a construção de um caminho crítico capaz de abordar ambas as formações sociais. Conclusão Como foi possível observar, a composição categorial que constitui a mercadoria e sua esfera de circulação – anunciada na obra de Marx – é uma das fontes à sistematização da obra de Postone. O historiador canadense deita um olhar inovador aos textos de Marx; identifica nas categorias marxianas – valor, capital, trabalho etc. – uma dinâmica socialmente específica, própria do capitalismo, mas sensível à possibilidade objetiva de superação. Ao apresentar o que acredita ser a verdadeira intenção da abordagem teórico-social marxiana, Postone percorre as categorias desenvolvidas por Marx ao longo de sua crítica da economia política. Seus objetivos mais evidentes consistem em: destacar as limitações do que 1006

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ele próprio chamou de marxismo tradicional; apresentar uma análise crítica do “socialismo realmente existente”; além de reafirmar a atualidade de Marx para uma leitura crítica do capitalismo contemporâneo. O pilar da releitura oferecida por Postone à crítica social de Marx está fincado nas categorias fundantes da teoria do valor, onde as abordagens elaboradas, tanto por seus críticos quanto por autores marxistas, teriam sido formuladas de maneira equívoca, de uma forma geral. O marxismo tradicional é identificado como portador de uma leitura transistórica do trabalho industrial – uma abordagem predominante na economia política que insiste na projeção de categorias e relações sociais que são particulares de uma estrutura social para uma amplitude histórica além do seu domínio. Entretanto, como argumenta o autor, essa leitura transistórica das categorias configura visivelmente rejeitada na obra de Marx. A perturbação causada por essa concepção do trabalho industrial concebida pelos marxistas tradicionais vai além da confusão de identifica-lo como progressista. O trabalho industrial é apresentado como um ponto “positivo” do capitalismo uma vez que proporciona avanços produtivos e uma crescente produção de riqueza material – valor de uso. Seguindo a interpretação dos marxistas tradicionais, seria necessária simplesmente a eliminação do monopólio capitalista na propriedade dos meios de produção para realizar a transição ao comunismo; crítica que se restringe a questionar a mediação da produção industrial pelo mercado. Segundo essa perspectiva, conclui-se que, uma vez livre da coerção imposta pela classe capitalista, o planejamento da produção passaria para as mãos da classe trabalhadora, proporcionando sua emancipação – tornando-a sujeito no processo de produção. Apesar da argumentação do marxismo tradicional configurar uma crítica plausível ao modelo capitalista, Postone ressalta que a proposta central encontrada na obra de Marx manifesta uma orientação extremamente distinta dos termos apresentados por essa defesa teórica. Uma sentença-síntese, em referência aos escritos de Marx e que ilustra precisamente sua opinião, destaca que “a sua crítica madura é uma crítica do trabalho no capitalismo, e não uma crítica do capitalismo desde o ponto de vista do trabalho” (POSTONE, 2014, pág. 20). Em outras palavras, o autor argumenta que na sociedade capitalista, sob o comando da lógica do

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capital, constrói-se, desenvolve-se de forma estranhada, uma estrutura de dominação única e exclusiva para aquele domínio histórico particular. Estritamente, identifica-se diante dessa releitura da teoria do valor que a forma de dominação no capitalismo não se restringe a seu caráter pessoal ou de classes; essa dominação se destaca por sua natureza abstrata, impessoal. Ao comparar o capitalismo com formas sociais precedentes, “as pessoas parecem independentes; mas, na verdade, são sujeitas a um sistema de dominação social que não parece social, e sim ‘objetivo’” (POSTONE, 2014, pág. 149, apud MEDEIROS, 2015, pág. 32). Seguindo adiante – já reconhecido o caráter historicista do trabalho no capitalismo –, o autor canadense questiona a interpretação que o “marxismo tradicional” apresenta à obra de Marx. O autor destaca, inicialmente, que os meios de superação das mazelas da sociedade capitalista defendido pela economia política acrítica se restringem em questionar, em demandar, uma reorganização distributiva da produção apenas. Embora o “marxismo tradicional” apresente uma crítica mais consistente que a defendida pela economia política clássica – dado que considera a teoria da exploração –, Postone destaca sua limitação, reforça o caráter positivo dessa crítica, uma vez que ela se limita a defender a realocação dos meios de produção. Para além das críticas apresentadas, Postone em sua argumentação destaca que é precisamente a dinâmica inédita do trabalho dentro da estrutura produtiva capitalista o fator dominante das relações sociais que se revela como central na obra de Marx; o autor identifica a existência de um controle que vai além das estruturas econômicas. Sendo assim, não bastaria uma mudança na esfera distributiva dos meios de produção, e muito menos uma realocação da produção realizada, para superar o caráter degradante da sociedade regida pelo capital. Essa leitura categorial da teoria marxiana destaca as características do trabalho tanto como produtor de valor quanto como mediador social indispensável para a sociedade capitalista – sendo, respectivamente, encontrados em trabalho concreto e trabalho abstrato. Mediante essa concepção, essa apresentação categorial reforça que a produção capitalista é objetivada na produção de valor e se destaca por seu movimento interno de autoexpansão. É importante destacar que esse caráter do modelo capitalista se apresenta como uma espécie de lei natural diante dos indivíduos e proporciona um condicionamento, uma subordinação, dos atos humanos 1008

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em todas as esferas sociais. Em outras palavras, “O trabalho, com sua dinâmica estranhada, tornar-se-ia, objetiva e subjetivamente, a determinação central da vida humana”, configurando o caráter abstrato da dominação capitalista apontado por Postone. (MEDEIROS, 2015, pág. 33). Essa dominação abstrata, é importante reforçar, não exclui a dominação entre classes – temática que se restringe a perspectiva da exploração – como característica da sociedade capitalista. Entretanto, destaca a centralidade do estranhamento. Ou seja, a dominação projetada sobre os seres humanos através da dinâmica autoexpansiva do trabalho sob o comando do capital se sobrepõe ao argumento da dominação entre classes. Em outras palavras, o autor conclui que há uma lógica social estranha segundo a qual os indivíduos – abrangendo toda diversidade de gêneros, classes, etnias e nacionalidade – são subordinados. À vista disto, é visível que há, no marxismo tradicional, uma negligência quanto ao embate da dominação pelo trabalho. Longe disso, suas ideias favorecem a perpetuação do trabalho e seu caráter estranhado, pois que considera a realocação do modo de produção como instância que proporciona a emancipação humana; suscita-se, assim, a natureza limitada dessa teoria. Referências bibliográficas

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______. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo editorial, 1ª edição: junho, 2011. MEDEIROS, J. L. “A crítica de Postone ao marxismo tradicional atinge Lukács? Aparando arestas por uma reinterpretação de Marx”. In: Neves, R. B. D. (org.) Coleção Niep-Marx, v.1 – Trabalho, Estranhamento e Emancipação. Rio de Janeiro: Consequência, p.27-50, agosto, 2015. POSTONE, M. Tempo, Trabalho e Dominação Social. São Paulo: Boitempo editorial, 1ª edição: agosto, 2014. ______. “Repensando a crítica de Marx ao capitalismo”, Versão portuguesa de 2000, Ceará, disponível em https://social.stoa.usp.br/articles/0016/3211/Moishe_Postone__Repensando_a_critica_de_Marx_ao_capitalismo_.htm.

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MESA 19: OS IMPACTOS DA REFORMA GERENCIAL DO ESTADO NA EDUCAÇÃO PÚBLICA: análises do controle-regulação da educação, responsabilizaçãoprecarização do trabalho docente, e formação da classe trabalhadora Coordenação: Rodrigo Coutinho Andrade (PPGEduc-UFRRJ ) RESUMO: A materialização de instrumentos de regulação e controle,assim como o avanço da pauta neoconservadora na atual conjuntura, ratifica os movimentos da recomposição da hegemonia burguesa no processo de institucionalização das políticas educacionais, que acarretam sobre a totalidade escolar, impactos significativos para a intensificação da precariedade da escola pública e sua organicidade, em virtude do projeto político classista burguês para a escolarização da classe trabalhadora. Destarte, tomamos como objeto os impactos da reforma do Estado no campo da educação, calcado no arcabouço ideológico da administração gerencial no bojo do projeto neoliberal, diante das dimensões acerca do trabalho docente, da escolarização e formação-qualificação da classe trabalhadora, assim como o papel institucional para lograr capilaridade ao projeto hegemônico. O nosso objetivo é analisar, sob estes três pressupostos da contra-reforma, os determinantes do bloco histórico para a dinamização dos pressupostos e intencionalidades formativas do capital em crise estrutural. Para tal, ancoramos o debate nas contribuições teóricas, políticas e metodológicas gramscianas, compreendendo que o objeto se situa na articulação dos entes estruturais e superestruturais, e cristaliza-se por meio dos vértices políticos e ideológicos,que deflagram sobre a escola pública dimensões pertinentes de sua marca social, intrínseca à sociedade de classes. Portanto, partindo da premissa de que o gerencialismo é um mecanismo para a consolidação do projeto hegemônico para aeducação da classe trabalhadora, nos dedicaremos à exposição do tema através da análise do Instituto Nacional de Estudos Educacionais Anísio Teixeira e o seu papel regulador-avaliador do corpo escolar, das finalidades instrumentais para a formação da classe trabalhadora matriculada na Educação de Jovens e Adultos, e o controle, a intensificação e a precarização do trabalho docente em escolas de ensino fundamental da Educação Básica.

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ESCOLA, PROFESSORES E HEGEMONIA: representações dos professores sobre o trabalho docente no ensino fundamental Míriam Morelli Lima de Mello1 RESUMO: Este trabalho é parte constituinte da pesquisa de doutoramento realizada, nos anos de 2012 e 2013, com o objetivo de analisar as representações dos professores sobre as dimensões políticas de seu trabalho. O recorte aqui apresentado pretende discutir o trabalho docente como lócus privilegiado para a construção da hegemonia a partir da vinculação político-ideológica dos profissionais que nela atuam, através da análise das representações dos professores sobre seu trabalho, seus alunos, a escola e a produção do conhecimento. Os conceitos básicos utilizados na pesquisa são os de hegemonia e de intelectual orgânico, assentados nas formulações de Antonio Gramsci. O conceito de hegemonia desenvolvido por Gramsci, está relacionado à importância da educação e do sistema educacional na perpetuação da dominação de classe na sociedade. A relevância da educação refere-se ao fato de que a luta contra a dominação é de natureza essencialmente intelectual e cultural, portanto, educacional. Destacase a importância dos intelectuais que deveriam produzir essa nova ordem intelectual e cultural. Na pesquisa propôs-se focalizar a escola, buscando compreender a representação dos professores sobre seu trabalho. A coleta de dados foi realizada com professores de duas unidades de uma escola federal e duas escolas municipais de Educação Básica, situadas no Município do Rio de Janeiro. Os principais resultados da pesquisa indicam que os professores conhecem seus alunos, suas condições de vida, mas não se sentem capazes de efetivar uma educação mais próxima de suas realidades, seja pelas más condições de trabalho, seja pelos estereótipos que criam em torno dos alunos. As dificuldades impostas às atividades dos professores decorrem da organização do trabalho nas escolas que impõe a divisão, a parcelarização, a intensificação e o controle do trabalho docente, além da falta de condições objetivas para as atividades dos docentes. Introdução

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Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UMICAMP). Professora adjunta do Departamento de Teoria e Planejamento de Ensino do Instituto de Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DTPE/IE/UFRRJ). [email protected]

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Este texto tem por objetivo discutir o trabalho docente como lócus privilegiado para a construção da hegemonia a partir da vinculação político-ideológica dos profissionais que nela atuam, através da análise das representações dos professores envolvidos na pesquisa, sobre seu trabalho. Os conceitos básicos nos quais me basearei para analisar esta questão são os de hegemonia e de intelectual orgânico, assentados nas formulações de Antonio Gramsci. A relevância que a discussão da educação vai assumir na obra de Gramsci diz respeito, especialmente, ao fato de que a luta contra a dominação é de natureza essencialmente intelectual e cultural, portanto, educacional, sem que isso signifique uma restrição à educação escolar. Numa concepção ativa da educação, ele relacionava a educação [...] com o poder transformador das ideias, a capacidade de produzir uma mudança social radical e construir uma nova ordem através da elaboração e da disseminação de uma nova filosofia, uma visão alternativa do mundo (BUTTIGIEG, 2003, p. 45)

Nesse sentido é que hegemonia e educação imbricam-se nos Cadernos, pois a construção de uma contra-hegemonia requer uma completa reforma intelectual, elaborando uma concepção de mundo e de vida de natureza popular, livre da dominação intelectual burguesa. Nessa tarefa destaca-se a importância dos intelectuais que deveriam ser capazes de produzir essa nova ordem intelectual e cultural. Para Buttigieg, é preciso ressaltar que, na visão de Gramsci, existem “operações de hegemonia” que servem para perpetuar a civilização burguesa, por meio de “uma ampla rede de organizações culturais, movimentos políticos e instituições educacionais que difundem sua concepção do mundo e seus valores capilarmente pela sociedade” (2003, p. 46), mas tais ações não são unidirecionais na transmissão de valores e cultura aos subordinados, e permitem a criação de novas ideias no interior do grupo dominante, tornando-o capaz de perceber os interesses de todos os grupos e ampliando seu poder de dominação e influência sobre toda a sociedade. Hegemonia, assim compreendida, é uma relação educacional. Logo, para Buttigieg, nos Cadernos do Cárcere, evidencia-se que [...] as relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia, que qualquer análise da hegemonia necessariamente implica um cuidadoso estudo das atividades e das instituições educacionais e que nem as complexidades da hegemonia nem o significado da educação podem ser entendidos enquanto se 1013

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pensar a educação exclusivamente em termos de “relações escolares”. (2003, p. 47)

Na presente pesquisa, compreende-se esse amplo sentido dado à Educação por Gramsci; no entanto, propõe-se focalizar a escola, como uma instituição e atividade que são elementos da construção da hegemonia ou da contra-hegemonia por meio da análise da compreensão dos professores sobre seu próprio trabalho e de sua vinculação político-ideológica. Da mesma maneira, ressalta-se a compreensão desta pesquisa acerca da abrangência e amplitude das relações de hegemonia e, por isso, observa-se a importância da análise das políticas educacionais como produto do Estado, que extrapolam a escola, e do contexto escolar – sua organização e condições de trabalho – como aspectos importantes na definição da construção hegemônica, uma vez que, deles dependem em grande parte o tipo de “relação educacional” que se efetivará nas instituições escolares públicas municipais e federais e nas “relações escolares”, propriamente ditas – das quais depende a escolarização das classes trabalhadoras. A questão principal que se coloca nesta investigação refere-se à análise da Educação como trabalho e dos professores na sua vinculação político-ideológica a uma determinada classe social. Tem sido atribuído a Gramsci o desenvolvimento dos aspectos políticos da teoria marxista, superando a análise propriamente econômica realizada por Marx e por Lênin, por exemplo, levando-o a ver o ser social a partir das suas relações com a política (COUTINHO, 2007). Para Coutinho (2007), Gramsci usa o termo em dois sentidos, denominando-os de “amplo” e “restrito”. Nesta pesquisa interessa apresentar o seu sentido amplo porque diz respeito à formação das consciências, a uma passagem de um estado de determinação para um estado de liberdade, construída historicamente. A constituição do ser social é atravessada pela política em todos os seus aspectos. Para Coutinho, em Gramsci, essa acepção ampla, [...] é a passagem para o momento ético-político, ou seja, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (2007, p. 91). É a própria força exterior da estrutura que cria a condição para a formação de uma nova “forma ético-política” e de novas iniciativas capazes de transformar a própria realidade, originadas na consciência da história que se vive. 1014

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É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”. (GRAMSCI, 1999, p. 93)

Assim, para Gramsci, Filosofia é ideologia porque, como a religião, no sentido laico, é “uma unidade de fé entre uma concepção do mundo e uma norma de conduta adequada a ela” (1999, p. 06). Articula definitivamente Filosofia, ideologia e política, porque estabelece relação entre a ação e a concepção de mundo que a orienta. Mas, essa batalha cultural a que se refere, não é uma tarefa apenas dos intelectuais, mas de todos os homens, que são também portadores de uma determinada “filosofia”, isto é, de uma concepção de mundo. A ação prática dos homens é orientada de modo decisivo pela ideologia, por isso, aquilo que Gramsci chama de “batalha cultural” ou a crítica à ideologia é essencial para a constituição de outra ação humana, de uma “vontade coletiva” capaz de construir novas relações de hegemonia (COUTINHO, 2007). O processo de construção de uma nova hegemonia compreende a desconstrução da hegemonia do grupo de poder e a reinterpretação da sociedade em novas bases mais abrangentes que correspondam à totalidade da vida social, revelando as contradições e superando-as na construção de outro projeto de sociedade. Os movimentos da escola, se tomados como elementos de uma vontade coletiva e de classe, poderiam constituir elementos de agregação ideológica e de formação de consciência de classe, ainda que perpassado pelos conflitos das próprias classes para vir a se constituir uma força de articulação daqueles que lá se encontram, e de sua vontade, do ponto de vista de um projeto político. Nesse processo de construção de uma proposta de trabalho dentro da escola, observa-se o quão complexa, contraditória e conflituosa é a realidade do trabalho docente que envolve os professores e demais trabalhadores, e onde podem conviver participação democrática e coletiva e ações centralizadoras e autoritárias. As escolas pesquisadas, de modo geral, constituíam um campo aberto de dissensões, conflitos, desistências, mas também de 1015

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participação, de crítica, de propostas de enfretamento das dificuldades. Este trabalho tem por objetivo apresentar as representações dos professores sobre o trabalho na docência no ensino fundamental de escolas públicas, compreendendo tais representações como resultados da compreensão dos professores acerca de sua própria realidade. Representações sobre o trabalho: o que dizem os professores A posição de classe situa, historicamente, na sociedade, trabalhadores e capitalistas, produzindo um determinado tipo de consciência acerca da realidade material e concreta. A sociedade capitalista impede que se produza a igualdade, pois está fundada na exploração do trabalho, sendo impossível a superação das desigualdades e dos conflitos de classe, tornandose necessário, portanto, a manutenção e a reprodução de tais contradições, bem como da produção de um determinado tipo de consciência sobre esses antagonismos, de tal modo que se mantenha a estrutura capitalista. A ideologia é a responsável pela elaboração de uma correspondência entre essa consciência e o lugar que ocupamos na classe social, sendo a escola e seus professores alguns dos agentes sociais responsáveis por esse trabalho intelectual. Segundo Gramsci, os trabalhadores intelectuais vinculam-se, necessariamente, a uma classe social e trabalham a favor dela. No entanto, observe-se que a organicidade da burguesia é excludente, isto é, organiza a sociedade, mantendo, entretanto, a divisão, a separação, a fragmentação. Os intelectuais orgânicos que trabalham dentro desse projeto buscam uma organicidade que serve só à burguesia; é, portanto, desorgânica em relação à grande massa popular. Segundo Portelli, No nível da difusão da ideologia, os intelectuais são os encarregados de animar e gerir a “estrutura ideológica” da classe dominante no seio das organizações da sociedade civil (Igrejas, sistema escolar, sindicatos, partidos, etc.) e de seu material de difusão (mass media). (1977, p. 86)

A formação de um intelectual pressupõe a compreensão da sociedade em que vivemos, do ponto de vista histórico, necessária para que possa compreender a estrutura social, a divisão em classes sociais e a constituição do trabalho, como categoria central nessa estrutura, dentro do processo histórico de construção da sociedade capitalista. O trabalho ainda é uma categoria fundamental na manutenção e na compreensão dessa sociedade.

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É somente o trabalho vivo dos professores que pode “educar/formar” as crianças, segundo os objetivos culturais e políticos em disputa. A Educação é sempre a educação de uma sociedade, não é uma mera “transmissão” de conteúdos ou mera instrução, mas uma formação a partir de conteúdos socialmente produzidos para alunos que também expressam relações sociais, culturais e políticas. O nexo entre instrução e educação só pode ser realizado pelo trabalho vivo dos professores sem o qual “ter-se-á uma escola retórica, sem seriedade, pois faltará a corporosidade material do certo e o verdadeiro será verdadeiro só verbalmente, ou seja, de modo retórico” (GRAMSCI, 2006, p. 44). Dentre os professores entrevistados, doze professores (40%) compreendem o trabalho como a atividade em si, desenvolvida em sala de aula. Isto inclui sua organização diária, as condições materiais, as características dos alunos, o “clima” necessário para a realização da aula, a relação com os alunos, com os colegas professores e com as famílias. Como atividade da sala de aula, “ser professor é uma troca”, uma “fonte de realização para se sentir útil”, enriquecida pela grande “diversidade socioeconômica entre os alunos”. E eu acho que o trabalho não é ‘só’ o estudo. Eu acho que é o clima, eu acho que é a parte social deles, sabe? A relação deles, entre eles, comigo... (Profª. Clotilde, 2ºano, escola federal)

Enfatizam, também, os resultados a serem obtidos e as dificuldades para consegui-los, apontando como as demandas ao magistério se alteraram com o tempo, modificando a natureza do trabalho, a partir de funções que se foram incorporando, para atender às necessidades dos alunos, cujas características sociais, econômicas e culturais, e até a pré-escola, são a causa da pouca aprendizagem na escola. Em alguns casos, diante das dificuldades que encontram – por condições internas e externas à escola - questionam-se sobre sua própria capacidade de realizálo. Olha, eu achava, eu gosto muito de ensinar, adoro alfabetização, amo! Alfabetizar e tudo. Mas, tenho achado que eu não sou mais aquela professora que eu era...! Entendeu? Então, eu não sou mais aquela professora. Acho assim, a gente fica, eu fico pensando assim será que meu trabalho não ta rendendo? (Profª. Margarida, 1º. ano, escola municipal) Uma guerra! Como se todo dia você tivesse uma batalha, sabe? Pra vencer! Porque você vem, acorda de manhã com muito otimismo, quando você entra na escola é um dia novo, você não sabe o que vem pela frente, sabe? [...] então são coisas que você tem que ter mil olhos porque a gente não consegue, você 1017

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é muito pequeno pra ver tantas coisas, é muita coisa em cima de você. (Profª.Dione, 1º ano, escola municipal) [...] Então, eu acho que o nosso papel, apesar de não concordar muito, eu particularmente não concordo muito com esse monte de tarefas que a escola veio agregando, né? (Profª.Astrid, 1º ano, escola federal)

O trabalho tem muitas faces dentro da escola: para os professores, ele apresenta-se árduo, mas também gratificante, qualificado e desqualificado, desafiador e cansativo, com objetivos claros e com múltiplas características. Ao mesmo tempo que relatam as dificuldades, apresentando o trabalho como labor, também apontam a dimensão criadora do trabalho docente, visto que, por meio das atividades de ensino, os professores conseguem alcançar os objetivos estabelecidos e atribuir sentido para o próprio trabalho. Essa dupla visão sobre o trabalho revela uma percepção dos professores de que a sala de aula reflete as relações sociais e os conflitos próprios das classes sociais, ou seja, a escola não está isolada, mas é um reflexo das relações sociais nas quais se insere. Tais análises poderiam e deveriam ser aprofundadas nos cotidianos escolares, de modo a buscar uma maior focalização dos problemas e de suas soluções, apontando para o potencial do trabalho dos professores, quando lhes são oferecidas as devidas condições. Nove professores (30%) destacam aspectos como a “função social da profissão”, o compromisso com os estudantes da escola pública e a importância de seu trabalho e da escola para os alunos, ora como acesso ao conhecimento – que, de outra maneira, não teriam – ora como possibilidade de ascensão social. A professora que destaca a “função social da escola” aponta sua importância para a sociedade em geral, sem vincular este trabalho a uma classe social, enfatizando que, ao mesmo tempo, o trabalho do magistério não é valorizado. Eu vejo o meu trabalho como... pode ser até assim meio clichê, mas como fundamental, um dos trabalhos mais importantes assim pra sociedade, até pra continuidade da sociedade. Eu vejo assim, mas acho que o mundo não vê assim, ou então vê, mas não reconhece. (Profª. Renilda, 1o ano, escola municipal)

Para este grupo de professores, há aspectos envolvidos na docência, que ultrapassam os objetivos estritamente voltados para o ensino e aprendizagem dos conteúdos e que estes estariam relacionados também a outras dimensões da vida e da formação dos alunos com repercussões sobre seu desenvolvimento e da sociedade em geral. 1018

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Nesta mesma direção, caminham os depoimentos de três (10%) dos professores entrevistados, ambos dos anos finais da escola federal, ressaltando o que denominam de “formação de pessoas”. Tais “funções” desenvolvidas pelos docentes seriam, também, responsáveis por imprimir ao trabalho um “sentido” para o que fazem, trazendo aos professores sentimentos de “orgulho de ser professor, identidade com a profissão, gratificação, prazer, gosto e responsabilidade pelo trabalho desenvolvido com os alunos, renovação diária de sua atividade e compromisso com seu trabalho”. Três professoras (10%) enfatizam a dimensão laborante do trabalho docente, uma vez que, em primeiro lugar, o trabalho é produção da vida, “sua profissão, o seu ganha pão”, responsável pela realização pessoal e material e, como toda trabalhadora, sofrem desgaste em função da atividade profissional. O magistério, ao mesmo tempo que é apresentado como produção de cultura e de relações sociais, também é visto como labor, reconhecimento importante para a discussão entre os professores da sua condição de trabalhador. É minha profissão, é o meu ganha pão, eu acho muito complicado essa coisa de que você trabalha por amor a educação, tem os coraçõezinhos, amor é educação, amor é educação, não é, em parte existe uma certa realização pessoal? Existe, é muito interessante quando você faz um trabalho que você vê resultados, mas também é muito desgastante sob vários aspectos; a maioria das vezes o trabalho não é valorizado, e eu não estou falando da Direção em si, estou falando dos próprios alunos, não há uma valorização do papel do professor na sala de aula [...]. (Profª.Isabela, História, escola federal) [...] primeiro é o meu ganha pão, que hoje eu dou muito valor a isso, porque é o que me permite também está crescendo, podendo viver, viver no sentido mais amplo. Segundo é a importante que eu vejo nesse trabalho, do trabalho da educação básica, que é você está formando pessoas, então eu vejo muito por esse lado, então eu acho um trabalho muito importante, dentro do assunto que é a minha dedicação aqui, que é arte, né? (Profª. Isadora, Música, escola federal)

Para alguns, a atuação em escola pública é determinante na maneira de avaliarem o significado de seu trabalho, de certa maneira, dando-lhe sentido e, mesmo sem perceberem ou explicitarem, muitas vezes demonstram que esse “sentido” dado à sua atividade está ligado ao vínculo com uma classe social. Ainda que para eles o trabalho da escola pública tenha uma orientação liberal em relação ao papel político que terá na formação dos alunos por meio do acesso ao conhecimento para uma mobilidade social e melhorando suas condições de vida.

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Por vezes, a escola pública é associada às camadas populares, é vinculada à escolarização de uma população que é violentada pela miséria em que vive, por uma violência de classe. Desta maneira, trabalhar na escola pública é trabalhar com determinados grupos sociais para superarem tais condições, a partir do acesso à Educação. Essa compreensão, ainda que fragmentada e insuficiente para a organização de um projeto pedagógico com objetivos populares, é um passo fundamental para sua construção, na medida em que os objetivos do trabalho dos professores vão se articulando com os objetivos da classe social que frequenta a escola pública a partir de sua compreensão histórica. Laísa espera que o trabalho na escola pública possa contribuir para mudanças das condições materiais de classe de seus alunos. É uma forma de atuação direta dos professores na vida dos alunos e por isso, pode ser tomada como potencialmente transformadora, mas, ao mesmo tempo, reconhece essa escola no interior de uma sociedade capitalista, por isso, condicionada às suas relações. Eu acho que a escola é uma das coisas, né? Eu não vejo a escola como a salvação não, né? Tipo, se tiver escola pra todo mundo... não. Pra mim é uma questão social, do capitalismo e tal que tá organizado pra não haver essa transformação social. Mas, ao mesmo tempo, como você trabalha com um universo pequeno, quando você está na escola, individualmente professora, você pode ver isso. Isso pode fazer um sentido pra você bem maior do que se você olhar de fora e olhar a escola como um todo, então o meu trabalho é o dia a dia. (Profª. Laísa, 1º ano, escola federal)

Marcela enfatiza o fato de ser professora de (ênfase no “de”) escola pública, aponta a diversidade das crianças do ponto de vista da classe social e, neste sentido, vê--se comprometida com o trabalho para “oferecer algo [ensino] às crianças que não teriam esse acesso de outra maneira”. Ressalta a estrutura da escola que lhe permite ser um determinado tipo de professora, de desenvolver o trabalho de uma determinada maneira, com os “recursos” para ser professora. Aponta que, na sua visão, seu trabalho faz diferença para as crianças da escola federal, por sua posição de classe, pois considera que há entre os alunos, aqueles de camada popular, que não teriam acesso aos conhecimentos tratados na escola, se não estudassem ali. Eu acho que tem uma diferença, pra mim, que é a diversidade das crianças, né? Então, assim, quando eu vejo uma criança minha que... é... não sei se é pretensão, né? Mas, não sei... é... (pausa) é oferecer alguma coisa que talvez ela não tivesse a oportunidade, se ela estivesse fora da escola, ou, às vezes, 1020

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numa escola que não tivesse o recurso que [a escola federal] oferece, né? [...]. (Profª.Marcela, 1º ano, escola federal)

A relevância da escola se dá pela oportunidade de acesso a determinados conteúdos aos quais determinadas populações não teriam sem ela. Conteúdos que podem proporcionar melhoria das condições de vida a que são submetidos. Resta buscar uma discussão sobre qual conhecimento deve circular no interior das escolas. A seleção dos conteúdos, as formas de organização do conhecimento, porque, produzidos nas relações sociais não são neutros, carregam uma concepção de mundo e estas questões, quando não discutidas na escola repercutem diretamente sobre o trabalho realizado com os alunos. As afirmações ditas objetivas e a ciência são construções históricas resultado das relações sociais e das disputas políticas entre os diversos grupos sociais. Fazer escolhas teórico-metodológicas é fazer escolhas ideológicas e políticas. A visão de missão ou de exercício de um dom que traz grande realização pessoal também aparece entre três (10%) dos professores entrevistados. Dois deles são professores doutores da escola federal e o terceiro, professor do 2º ano inicial da escola municipal. Esta visão do trabalho docente como missão ou dom tem, na sua origem, a ideia de que o exercício da profissão depende de uma condição natural do indivíduo e não de sua qualificação obtida através da formação e da experiência profissional. A noção do dom é também ideológica, na medida em que desvaloriza os processos de qualificação do trabalhador docente pelo qual deve ser remunerado. Duas professoras (6,7%) demonstram uma desistência em relação ao seu trabalho, dizendo-se “desencantadas” e procurando outras alternativas à docência. Os motivos referemse, principalmente, à falta de condições para o trabalho, e nesse sentido, elas responsabilizam os alunos das escolas municipais pelo desinteresse, os pais pela falta de compromisso e da sociedade em geral. Nós fazemos é...a interface entre a escola e a sociedade, nós é que estamos no front, nós, o pessoal da polícia.. nós estamos no front. (Profª Alexandra, Ciências, escola federal) Olha, eu lembro que há um tempo atrás eu falava assim que eu era muito agraciada por ganhar para estudar, né? Porque o trabalho de professor é isso, você estuda e dá aula. É... não que eu não me veja uma pessoa agraciada ainda, 1021

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mas hoje eu sou uma pessoa mais desencantada. Então...eu acho que quando a gente tá desencantada a gente tem que buscar outros caminhos, é isso que eu to buscando. (Profª. ªCélia, História, escola municipal)

Algumas notas finais... A construção do conhecimento é sempre realizada a partir da realidade concreta, das relações de força objetivas existentes entre os grupos sociais, mas a produção de uma nova realidade, segundo os interesses das camadas populares não se restringe às necessidades da produção material; refere-se, também, a uma nova maneira de pensar, a novos valores resultantes do contato entre intelectuais e os simples “para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais” (GRAMSCI, 1999, p. 103). Para Gramsci, é possível dizer que o homem de massa possui “duas consciências teóricas”: uma, “implícita”, que guia sua ação e que o liga aos demais homens com a mesma consciência na transformação prática da realidade, e outra, “verbal e explícita”, que age sobre sua conduta moral e sua vontade podendo produzir um estado de “passividade moral e política”. A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de “hegemonias” políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente uma elaboração superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. (GRAMSCI, 1999, p. 103)

Deste modo, a escola e o trabalho docente possuem uma função intelectual no sentido de desmitificar as relações sociais e de agregar a consciência dos alunos de classes populares em torno de uma hegemonia política que unifique sua luta em favor de um projeto de sociedade que seja de seu interesse. Essa função dos professores demanda a compreensão histórica e política de si mesmos, e a consciência da hegemonia política da qual fazem parte como “produto” histórico. A especificidade da atuação do professor como intelectual orgânico consiste no fato de, reconhecendo-se como trabalhador, compreenda o conhecimento como seu instrumento de trabalho e como resultado de uma disputa política e ideológica que pode ser instrumento na construção de uma ideologia revolucionária para a criação de uma nova hegemonia política. 1022

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A questão mais fundamental, em relação à constituição do magistério na função de intelectual orgânico diz respeito às condições de trabalho dos professores e de sua organização no interior das escolas. A própria organização dos professores como trabalhadores vem sendo afetada pela estrutura que determina seu modo de atuação, por meio da divisão do trabalho, sua parcelarização, intensificação e controle, tanto como pela falta de condições materiais e objetivas das atividades, enfim, pelas características que vêm sendo impressas ao trabalho docente nas últimas décadas no país. As relações sociais, políticas e econômicas que produzem as políticas educacionais são significadas pela atividade humana; são, portanto, questões para uma filosofia da práxis em torno da qual deveria deter-se o trabalho dos professores. Um trabalho que construa conhecimento para a formação de sujeitos críticos e, ao mesmo tempo, como parte da compreensão de sua própria história. Desnaturalizar os processos históricos vividos pelos trabalhadores docentes e seus alunos numa sociedade de classes, em que a educação pública vem sendo historicamente marginalizada, é também tarefa dos professores, na construção de sua autoconsciência e da consciência de seus alunos. REFERÊNCIAS BUTTIGIEG, Joseph A. Educação e hegemonia. In: COUTINHO, Carlos Nelson; TEIXEIRA, Andréa de Paula. Ler Gramsci: entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, vol.1. ________. Cadernos do Cárcere. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. vol. 2. PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Tradução: Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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A INSTITUIÇÃO ESCOLAR COMO CAMPO DE CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIAS ? O INEP E A REFORMA GERENCIAL NEOLIBERAL DOS ANOS 1990. Thiago de Jesus Esteves1 RESUMO Este trabalho apresenta os resultados iniciais de uma pesquisa mais ampla, que trata das mudanças no papel do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a partir da reforma gerencial da educação implementada pelo Estado brasileiro na década de 1990. Para tanto, utilizo a categoria de hegemonia desenvolvida pelo filósofo marxista italiano Antonio Gramsci, para quem a hegemonia, pressupõe a conquista do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe sobre as outras. Dessa forma, para além de ser uma reforma administrativa, o gerencialismo estabelecido, a partir de medos da década de 1990, na educação brasileira, e que pode ser exemplificado a partir das políticas de accountability (responsabilização), que buscam o controle e o exercício de poder, e que representariam a tentativa de dominação hegemônica da classe dominante sobre a classe dominada. Criado em 1937, como Instituto Nacional de Pedagogia, tendo apresentado ao longo da sua história, objetivos difusos, como o recrutamento de pessoal, as construções escolares e posteriormente a responsabilidade por promover as campanhas do livro didático e dos manuais de ensino, o INEP, após quase ser extinto, foi reestruturado e passou a ser o organismo do governo federal responsável por realizar as avaliações, além de desenvolver pesquisas e estadísticas da educação brasileira. A compreensão das funções do INEP é primordial, pois esta autarquia tem um papel central na incorporação do ideário gerencialista na educação brasileira, visto que é a responsável pelas políticas educacionais que podem legitimidade a reforma gerencial na educação brasileira. Assim, em um contexto de luta de classes, em que a educação desempenha a função de formadora de uma consciência crítica e fonte de emancipação política para as classes dominadas é primordial a disputa pelo controle hegemônico das instituições educacionais.

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Mestre em Ciências sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Professor de Sociologia do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). E-mail: [email protected].

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Desde meados da década de 1990, sob a égide da reforma gerencial do aparelho estatal brasileiro, os diferentes governos promoveram mudanças substantivas no campo educacional. Tais mudanças obedeciam à lógica do modelo gerencial, ou seja, a aplicação no setor público de pressupostos utilizados na iniciativa privada, como a qualidade total e a eficiência. Nesse contexto, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), que é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), passa a ter um papel central na construção do consenso em torno da reforma gerencial na educação brasileira. Para a construção dessa perspectiva, utilizamos como fundamentação teórica as categorias gramscianas de Estado, hegemonia e intelectuais, significativas para analisar o papel do INEP na reforma gerencial da educação brasileira, bem como as motivações para que os intelectuais orgânicos do projeto neoliberal empreendessem uma ampla reforma gerencial do estado, que culminou com a redefinição da política educacional brasileira a partir dos anos 1990. O Estado é entendido por Gramsci como uma condensação das relações sociais que estão presentes numa dada sociedade. Como o Estado apresenta funções coercitivas e desenvolve o plano ideológico e econômico, as classes sociais disputam a hegemonia sobre o Estado (GRAMSCI, 2011). O conceito de hegemonia é utilizado por Gramsci para explicar o domínio de uma classe sobre toda a sociedade nacional e que é exercido por meio do Estado (GRAMSCI, 1991). A hegemonia é a estratégia de conquista e manutenção do poder pela classe dominante burguesa sobre a classe trabalhadora, via dominação e controle do aparelho estatal efetivada pelos intelectuais. Para Gramsci, para além de representantes ideológicos, os intelectuais cumprem a tarefa de organizar, empenhando-se pela hegemonia cultural e política de sua classe (GRAMSCI, 1991). Essa organização pode-se dar em diferentes espaços, tanto na sociedade civil como na sociedade política, e se desenvolver em centros de pesquisa científica, como é o caso do INEP (LAMOSA, 2016). Para a compreensão desse processo, é necessário compreender que foi a crise do sistema capitalista mundial, no início da década de 1970, associada à tentativa de recomposição do capital por parte da burguesia, que possibilitou as condições para a ascensão do neoliberalismo como doutrina teórica, política e ideológica (SANTOS, 1998, p.41). As vitórias das candidaturas 1025

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conservadoras de Margaret Thatcher (1979-1990), na Inglaterra, seguida por Ronald Reagan (1981-1989), nos Estados Unidos da América e Helmut Kohl (1982-1998), na Alemanha, tornaram o neoliberalismo, no início dos anos 1980, a doutrina, praticamente, hegemônica nos países capitalistas avançados. Esses governos adotaram um programa de governo de cunho neoliberal, que deu prioridade a estabilidade monetária, a contenção do orçamento, as concessões fiscais aos capitalistas e o abandono das políticas de pleno emprego (SOUZA, 1998, p.42). Apesar do agravamento das desigualdades sociais, tanto na Europa como nos países latino-americanos, uma parcela significativa dos governantes eleitos adotou tais políticas como mecanismo para combater a inflação e a contenção de custos sociais. No caso brasileiro, ainda que tenham ocorrido experiências anteriores, nos governos de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994), foi com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) que foram reunidas as condições para a implantação do ideário neoliberal no aparelho estatal. Legitimado pelas urnas e amparado por uma ampla base de apoio parlamentar no Congresso Nacional, Fernando Henrique Cardoso iniciou a segunda reforma administrativa do país, também conhecida como reforma gerencial do aparelho estatal, com o objetivo de tornar o Estado brasileiro mais eficiente. A primeira reforma administrativa do aparelho estatal brasileiro foi empreendida no governo de Getúlio Vargas, em 1937, e tinha como objetivo tornar o aparelho do Estado mais efetivo, garantindo assim, o funcionamento do sistema constitucional legal (BRESSER-PEREIRA, 2008, p.145). Segundo um de seus principais idealizadores, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, a reforma gerencial do aparelho estatal era necessária, pois com a redemocratização e a promulgação da constituição de 1988, as despesas sociais cresceram consideravelmente (BRESSER-PEREIRA, 2008, p. 146).

No campo educacional, a reforma gerencial produziu uma série de reformas legais, curriculares e político-pedagógicas na educação básica brasileira (LAMOSA, 2016, p.77-76). Nesse contexto, foi promulgada, em 20 de dezembro de 1996, a Lei nº 9.394, que estabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Em seu artigo 9º tal legislação determinava como dever da união: VI – assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de 1026

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ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino (BRASIL, 1996).

Para atender ao objetivo presente na LDB, estabelecer parâmetros de qualidade para nortear as políticas educacionais, o INEP, até então um órgão governamental que vinha sendo progressivamente esvaziado de suas funções, passa a condição de agência responsável por aferir a qualidade da educação brasileira. O INEP foi criado pela Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, como Instituto Nacional de Pedagogia e teve suas funções definidas pelo Decreto-Lei nº 580, de 30 de julho de 1938. Renomeado como Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, tinha como atribuições a pesquisa e a administração da área educacional brasileira (ROTHEN, 2008). Com a posse do educador baiano Anísio Teixeira (1952-1964), na sua diretoria geral, o INEP passou a dar maior ênfase à pesquisa educacional. Com esse objetivo, foi fundado em 1956, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), que dispunha, além da sua sede no Rio de Janeiro outros cinco centros de pesquisas regionais, localizados nas cidades de Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre. No início da década de 1970, entretanto, teve início o chamado período de “crise de identidade”. Tal período foi marcado, dentre outros fatos, pela transferência do INEP para Brasília e pela extinção do CBPE, o que implicou na alteração dos seus objetivos, pois deixou de produzir pesquisas sobre a educação brasileira (ROTHEN, 2008). No governo de José Sarney o INEP deixou de ser uma instituição de estímulo à pesquisa educacional e passou a ser um organismo de assessoramento do MEC. Os governos de Fernando Collor de Mello e de Itamar Franco não mudaram tal panorama. Durante o governo de Fernando Collor de Mello, por exemplo, o INEP quase foi extinto (CASTRO, 1999). Todavia, em 1997, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, tomou posse como ministro da educação, o professor de economia da Universidade de Campinas (UNICAMP) Paulo Renato de Souza. Durante a gestão de Paulo Renato, o MEC foi aparelhado por um grupo de intelectuais orgânicos do capital, comprometidos com a manutenção do projeto neoliberal, e com estreita vinculação com alguns organismos multilaterais de fomento, tais como o Banco Mundial, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), dentre 1027

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outros. Foram esses intelectuais orgânicos, os responsáveis por propor e implementar as reformas legais, curriculares, políticas e pedagógicas na educação básica brasileira. Cabe destacar, que desde a década de 1990, os organismos multilaterais de fomento vêm indicando a necessidade de reforma no setor educacional dos países periféricos, subordinados a lógica do capital, para que estes pudessem desfrutar dos benefícios do mundo globalizado (LAMOSA, 2016, p.77-76). Para garantir a hegemonia do projeto neoliberal no campo educacional, em 1997, o INEP foi reformulado, passando a ser o órgão governamental responsável por avaliar o sistema educacional brasileiro em seus diferentes níveis. A reformulação ocorreu com a Medida provisória Nº 1.568, de 14 de fevereiro de 1997, que definiu, em seu artigo 1º, a transformação do INEP em autarquia federal e readequou as suas funções. Dentre as quais, cabe salientar: I - organizar e manter o sistema de informações e estatísticas educacionais; II - planejar, orientar e coordenar o desenvolvimento de sistemas e projetos de avaliação educacional, visando o estabelecimento de indicadores de desempenho das atividades de ensino no País; III - apoiar os Estados, o Distrito Federal e os Municípios no desenvolvimento de sistemas e projetos de avaliação educacional; IV - desenvolver e implementar, na área educacional sistemas de informação e documentação que abranjam estatísticas, avaliações educacionais, práticas pedagógicas e de gestão das políticas educacionais; V - subsidiar a formulação de políticas na área de educação, mediante a elaboração de diagnósticos e recomendações decorrentes da avaliação da educação básica e superior; VIII - promover a disseminação de informações sobre avaliação da educação básica e superior (BRASIL, 1997).

Nesse contexto, as avaliações educacionais em larga escala, que já vinham sendo amplamente difundidas nos países de capitalismo avançado, desde a década de 1960, como é o caso dos Estados Unidos da América, Inglaterra e França; passaram a ser adotadas também no Brasil. Algumas avaliações em larga escala, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) foram reformuladas ou criadas nesse período2. Deste modo, a partir da gestão de Fernando Henrique Cardoso, o INEP

2

O SAEB foi criado em 1990, entretanto, em 1995, passou por uma completa reformulação. Já o ENEM, criado em 1998, tinha como objetivo aferir, a qualidade do ensino médio ofertado aos concluintes da Educação Básica.

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consolidou-se como órgão central de um sistema de informações educacionais, cujo conhecimento e disseminação vêm contribuindo para tornar mais eficiente e mais equânime a educação brasileira. O Inep tornou-se, em pouco tempo, um centro de referência nacional e internacional, capaz de desenvolver, criar e exportar tecnologias e knowhow, especialmente na obtenção e análise de dados comparáveis internacionalmente (INEP, 2002, p.7). A transformação do INEP em uma agência de promoção de avaliações educacionais em larga escala foi possível graças aos intelectuais dirigentes que comandaram esse órgão do governo federal. Os presidentes do INEP no período do governo de Fernando Henrique Cardoso possuíram ou possuem vinculo com organismos multilaterais ou com interesses vinculados ao capital privado. A professora Maria Helena Guimarães de Castro, que presidiu o INEP por dois períodos, em 1995 e entre os anos de 1997 e 2002. Dentre outras funções, participou do conselho curador da Fundação Ioschpe, do conselho da Fundação Natura e do Conselho da Fundação Braudel, além de presidir o Conselho da Fundação BUNGE e de ter participado de vários comitês ligados à educação na UNESCO e na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O geógrafo Og Roberto Dória, presidente do INEP entre 1995 e 1997 é sócio de uma consultoria educacional, além de ter atuado como consultor do PNUD, do Bando Interamericano de Desenvolvimento e da Fundação Ford. O professor João Batista Gomes Neto, presidente do INEP no ano de 2002 é atualmente sócio de uma consultoria educacional. Assim, foram intelectuais orgânicos com estreitas relações com o grande capital externo, os responsáveis por implantar a reforma gerencial da educação brasileira, para além do consenso social em torno do discurso da “educação pública, gratuita e de qualidade”, que levou ao estabelecimento das políticas públicas de accountability (responsabilização) que tem se refletido na precarização do trabalho docente, na estigmatização de estudantes e profissionais do ensino, além de, em alguns casos violência simbólica contra a comunidade escolar que por ventura não tenha atingido (SOUZA, 1998; LAMOSA, 2016). Nesse sentido, cabe o questionamento sobre a pertinência das avaliações em larga escala para a educação básica. Visto que as avaliações educacionais em larga escala, enquanto políticas públicas – entendidas como as ações e propostas promovidas pelos governos com o objetivo de minorar os múltiplos problemas e contradições que afrontam as sociedades contemporâneas – carecem de legitimidade, por não terem sido amplamente debatidas com a comunidade escolar, vêm sendo utilizadas no Brasil, 1029

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como mecanismos de responsabilização aos estudantes e profissionais do setor educacional brasileiro. Por fim, é preciso levar em conta que a hegemonia não é somente política, mas também um fator cultural, moral e de concepção de mundo e que é dever do Estado, a tarefa educativa e formativa das massas populares (GRUPPI, 2000, p.73). Por esse motivo, a burguesia se apropriou do aparelho estatal, materializado no MEC e no INEP. A classe dominante neoliberal, ao consolidar o seu projeto hegemônico junto ao aparelho estatal brasileiro, passou a cooptar intelectuais orgânicos, oriundos tanto da sociedade civil como da sociedade política, para legitimar junto às classes trabalhadoras a manutenção do seu projeto de apropriação da burocracia estatal. A hegemonia o projeto neoliberal de reforma gerencial do aparelho estatal, foi construída dentro do MEC e do INEP por intelectuais orgânicos que foram cooptados para representarem os interesses do capital. Referências Bibliográficas: Documentação BRASIL. Lei 378, de 13 de janeiro de 1937. Nova Organização ao Ministério da Educação e Saúde Pública. Rio de Janeiro, 1937. ______. Decreto-Lei 580, de 30 de julho de 1938. Organização do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro, 1938. ______. MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO (MARE). Plano Diretor da reforma do aparelho do Estado. Brasília: Câmara da Reforma do Estado, 1995. ______. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996. ______. Medida Provisória 1.568, de 14 de fevereiro de 1997. Transforma o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais em Autarquia Federal. Brasília, 1997. ______. INEP: 1995-2002. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais: Brasília, 2002. UNESCO. Educação: Um tesouro a descobrir. 1996. Referências Bibliográficas: 1030

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OS DETERMINANTES DO PROCESSO DE RECOMPOSIÇÃO DA HEGEMONIA BURGUESA SOBRE A GESTÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL. Rodrigo Coutinho Andrade1

Introdução Ao longo das duas últimas décadas (1996-2016) ocorreram mudanças significativas na Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, tanto no que tange a gestão e a oferta da modalidade de ensino, quanto à reestruturação político-pedagógica. Na presente pesquisa, partimos da premissa de que tais mutações se originam do processo de recomposição da hegemonia burguesa, provocando determinantes de toda ordem na escolarização/formação profissional da classe trabalhadora matriculada na EJA. Transformações estas que impactaram a modalidade de ensino no que tange as finalidades formativas, objetivando corresponder as demandas do capital para o processo de reestruturação produtiva no bojo da crise estrutural, indissociável da harmonização do conflito de classes. Logo, para a materialização das políticas educacionais resultantes da ofensiva neoliberal no país, redefine-se a oferta da EJA de acordo com a reestruturação política e econômica do Estado, sob a égide ideológica do Estado-mínimo. Em relação à gestão das atividades não-exclusivas, a orientação para a modalidade do ensino engloba o processo de municipalização, privatização, descentralização e racionalização dos recursos, conforme o preconiza do receituário neoliberal, materializado através das mediações dos pressupostos políticos da Terceira Via. E sobre a verticalização dos procedimentos político-pedagógicos, seus princípios passam a ser orientados pela Pedagogia da Hegemonia, combinando a ideologia da empregabilidade, perante o recrudescimento da Teoria do Capital Humano, e a materialização da sociabilidade burguesa, por meio da Teoria do Capital Social.

1

Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGEduc-UFRRJ); membro do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS-UFRRJ); Professor Assistente do Departamento de Geografia do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (IM-UFRRJ). Email: [email protected]

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Indissociável desse processo observa-se a redefinição da identidade da EJA, categorizado como “juvenilização”, pela concentração da oferta de alunos inseridos na faixa etária dentre 16 a 29 anos. Acreditamos que isto resulta das medidas de certificação precária dessa população específica, em decorrência da insuficiência estrutural da educação básica, articuladas às políticas para a juventude excluída no processo sócio-histórico discriminado. E, para a materialização do projeto do capital, recontextualiza-se no país as determinações dos organismos multilaterais, em decorrência das políticas de ajuste fiscal e inserção dependente no processo de globalização. Para alcançar os objetivos, sob a ótica do capital, a meta principal da EJA passa a ser a formação para o trabalho simples, pautada na conformação ética e moral a partir da apologia a ideologias

tais

como:

empreendedorismo,

protagonismo

social,

empregabilidade,

desenvolvimento sustentável e arranjo produtivo local baseado na formação de capital social. Assim pretende-se formar novos protagonismos sociais para uma sociedade civil ativa, harmoniosa e colaboracionista, com foco etário específico, considerada potencialmente disposta à conflagração de crises que ameaçam a ordem social burguesa. Breve panorama atual da EJA no Brasil Dentre os anos de 2008 e 2014 observa-se abrupta redução do número de matrículas e de estabelecimentos de ensino para a EJA no país, dando para a modalidade de ensino destaque neste quesito em comparação as demais2. Isto é reflexo direto da insuficiência das políticas públicas para o setor, que ainda são concebidas perifericamente perante a totalidade das políticas educacionais, além dos mecanismos de certificação dos estudantes em situação de distorção idade-série.

2

Segundo Di Pierro (2010), este fenômeno inicia no ano de 2008, quando a EJA apresentava nos anos anteriores da mesma década um acréscimo progressivo no número de matrículas. A guisa de exemplificação, em 2001 havia 3.624.264 estudantes na modalidade de ensino, enquanto em 2008 o dado é de 4.945.424.

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Tabela 1 - Total de alunos matriculados na EJA3 - 2008/2014 Matrículas na EJA

Ensino Fundamental

Ensino Médio

Total

2008

3.295.240

1.650.184

4.945.424

2010

2.860.260

1.427.004

4.287.264

2012

2.561.013

1.345.864

3.906.877

2014

2.283.122

1.308.786

3.591.908

Fonte: MEC/DEED/INEP.

Tabela 2 - Total de estabelecimentos de ensino de EJA no Brasil - 2008/2014 Escolas de EJA

Ensino Fundamental

Ensino Médio

Total

2008

38.851

8.753

47.604

2010

35.888

8.834

44.722

2012

32.776

8.689

41.465

2014

30.911

9.153

40.064

Fonte: MEC/DEED/INEP

Para Santos (2015, p. 195), em sua pesquisa sobre a redução das matrículas no Estado de São Paulo, As sucessivas situações malsucedidas na EJA associadas às profundas mudanças socioeconômicas das últimas décadas expliquem o esvaziamento de alunos nas salas de aula e mostre que o atendimento da EJA está muito aquém do que poderia ser no país. Desta forma considera-se inaceitável o simplismo dado pelo Governo do Estado de São Paulo, quando apenas reconhece haver uma mudança no perfil populacional na EJA, ausência de interesse dos potenciais educandos e, portanto, a necessidade de se efetivar o processo de nucleação.

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Inclui matrículas de EJA presencial, semipresencial, EJA presencial de nível fundamental Projovem (Urbano) e EJA integrado à educação profissional de nível fundamental e médio.

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Para a autora, a redução do número de matrículas da EJA advém da mutação de sua identidade, classificada como “juvenilização”. A resposta encontrada pela secretaria estadual de educação de São Paulo seria a efetivação de programas de aceleração dos estudos e certificação, concentrado na faixa etária dentre 15 e 19 anos, devido à compensação financeira. O mesmo ocorre no Estado do Rio de Janeiro com o Programa Autonomia, que objetiva a correção da distorção idade-série no ensino fundamental para jovens de 13 a 17 anos, e no ensino médio para estudantes na faixa etária de 17 a 20 anos. O programa é realizado em parceria entre a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ) e a Fundação Roberto Marinho, que oferece todo o material didático e de apoio. Cabe acrescentar que o programa necessita de apenas um professor para todas as disciplinas, que atua como “facilitador” de aprendizagem, reproduzindo didática e metodologicamente os conteúdos prontos, o que assevera a questão da identidade docente acerca de seu papel intelectual, além da redução dos custos para a obtenção dos resultados quantitativos. Nesse sentido, a oferta nos sistemas de ensino subnacionais concentra as matrículas em projetos alternativos de aceleração da certificação, o que preteritamente alocava-se na EJA. Em relação aos programas federais, outro empecilho no mesmo ínterim fere a universalização da modalidade, por privilegiar a focalização das políticas educacionais para a mesma faixa demográfica, em contraposição do atendimento da demanda bruta. Por exemplo, o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem) abrange apenas a faixa etária dentre 15 e 29 anos, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) tem em seu documento o foco na população dentre 18 e 24 anos, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) EJA reduz para 15 anos o acesso, mantendo a mesma lógica de focalização na faixa etária até 29 (BRASIL, 2006). Isto se deve a concentração do número de desempregados, além da baixa escolarização e qualificação profissional deste setor demográfico, entendido como vital para a economia de acordo com os apontamentos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2013). Segundo Souza (2011, p. 24), a partir de 2003 as políticas para a EJA passaram a focalizar a juventude de acordo com os problemas relacionados à saúde, a empregabilidade e a 1036

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violência. Porém, o autor apresenta um paradoxo claro em relação ao foco das políticas educacionais para o setor, que se a oferta seria para a solução dos problemas apontados, ou para “a construção de condições favoráveis ao consenso em torno do modelo de desenvolvimento proposto sob a hegemonia do capital para a superação da crise de acumulação na atualidade?”. Estes elementos apresentam aspectos relevantes para a pesquisa. De um lado, a redução das matrículas na EJA se deve aos programas resultantes da privatização da educação4, materializados pela participação do terceiro setor, de acordo com as diretrizes do gerencialismo. Por outro, passa a existir um coeficiente bruto da população brasileira que deixou de frequentar a escola, principalmente àqueles que estão acima dos 30 anos, por não enquadrar-se na faixa etária específica dos programas federais, assim como no próprio cotidiano da EJA, pela redefinição de sua identidade. Além disso, os dados acima são discrepantes pela dificuldade da continuidade da modalidade, onde aproximadamente um quarto total da oferta se destina ao ensino médio, nos levando a conclusão imediata da falta de espaços escolares para a continuidade dos estudos, e ao mesmo tempo a limitação das políticas educacionais de EJA concentradas na conclusão do ensino fundamental. Entretanto, a assimetria da oferta é consequência, sobretudo, do financiamento e do processo de municipalização da EJA, devido à redefinição do pacto federativo após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96 – LDB), em decorrência da descentralização das políticas públicas, após a reforma gerencial do Estado – vide a tabela a seguir. Segundo o capítulo V do artigo 11°5 e o capítulo II do décimo artigo, reestruturou-se a oferta da educação básica, logrando para os estados o regime colaborativo no ensino fundamental, com obrigatoriedade apenas nas etapas finais da educação básica. Num contexto de redefinição dos papéis do Estado e de contenção do gasto federal, a política educacional do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) induziu à municipalização e focalizou o investimento público no ensino fundamental de crianças e adolescentes, mediante a criação, em 1996, de fundos de financiamento em cada uma das unidades da Federação. 4

Souza (2011, p. 24) analisa a proliferação das políticas públicas para a EJA de acordo com a sofisticação da engenharia institucional, diante da ampliação das parcerias público-privadas, que articulam a precariedade da formação básica com a preparação para o trabalho simples. 5 “Oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino”.

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Por força de veto presidencial à lei que regulamentou o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), as matrículas na EJA não puderam ser consideradas, o que restringiu as fontes de financiamento e desestimulou os gestores a ampliarem as matrículas na modalidade (DI PIERRO, 2010, p. 941).

Durante a década de 1990, o FUNDEF6 foi um grande entrave para a modalidade, que suprimida após o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), logrou para a modalidade uma possível expansão. Porém, o último destina para a EJA o fator de ponderação de 0,7, aquém das demais modalidades do ensino7, o que pode ser apontado como um empecilho para a expansão efetiva de acordo com a demanda bruta da modalidade de ensino. Tabela 3 - Distribuição das matrículas por sistemas de ensino8 - 2014 Fundamental

Médio

Estadual

527.446

930.937

Municipal

1.463.638

950.965

Fonte – INEP (2014)

Os dados acima apresentam grave paradoxo, pois no mesmo ano contabilizamos que 19,1% da população acima de 15 anos ainda não havia concluído o ensino fundamental, e 8,3% era analfabeta (IBGE, 2014). Em relação ao ensino médio a situação piora, pois apenas 60,8%

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O impacto do FUNDEF é crucial para a manutenção da modalidade de ensino, pois a mesma suprime o financiamento da oferta do Ensino Fundamental aos que estão fora da idade considerada própria, ao vetar a inclusão dos estudantes da EJA. Consecutivamente ocorre a intensificação da precariedade da modalidade, que passa a ser atendida em larga escala por cursos de caráter supletivo, ou sua transformação em ensino regular noturno, o que retira a sua especificidade (DI PIERRO, 2015, p. 122).

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Devemos ressaltar que o financiamento demarca as intencionalidades das políticas públicas, principalmente diante das demandas do capital, vide a ponderação 1,3 para o ensino médio integrado ao ensino profissional. 8 Contabiliza aqui somente as matrículas da EJA presencial e semipresencial, excluindo os programas, assim como a formação integrada à educação profissional.

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da população total haviam concluído no ano de 2014. Porém, a conclusão da etapa final da educação básica apresenta outro agravo quando qualificamos o percentual de conclusão de acordo com os quintos de rendimento, onde podemos afirmar que a população pobre representa a maior proporção de excluídos. Tabela 4 - Taxa de conclusão do ensino médio por quintos de rendimento mensal domiciliar per capita nacional 1° quinto

32,90%

2° quinto

47,70%

3° quinto

61,60%

4° quinto

73,10%

5° quinto

87,80%

Fonte – IBGE (2014).

Diante desse panorama, podemos evidenciar que quantitativamente as políticas públicas para a EJA têm alcance limitado, e ao mesmo tempo setorial, vide o enfoque no ensino fundamental e a faixa etária compreendida entre 15 e 29 anos. Consecutivamente, a modalidade de ensino que historicamente se configura como a materialização do dualismo estrutural, pela dinâmica compensatória no bojo das demandas da burguesia para a reprodução das relações sociais de produção, materializa novos elementos para pensar a segregação no corpo da oferta educacional para a classe trabalhadora. Isto devido à exclusão dos adultos acima de 30 anos, além da reduzida capilaridade das políticas educacionais para a população mais pobre. E, se alguns autores categorizam a EJA como um mecanismo de inclusão excludente, os dados nos afirmam que, de acordo com a demanda bruta de escolarização básica, nem a este ponto ela chega. Devemos acrescentar que, além da insuficiência da oferta das políticas públicas para a efetivação da escolarização, e os paradoxos do mesmo de acordo com o rendimento, os dados na categoria cor/raça ratificam a exclusão. Podemos tomar como exemplo a taxa de analfabetismo das pessoas acima de 15 anos consideradas pretas ou pardas, que alcança o quantitativo de 11,1 % em 2014, em comparação a população branca que soma apenas 5%. Outro exemplo que pode auxiliar a aprofundar essa tese é a conclusão do ensino médio, onde 1039

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quantitativamente 52,6% da população preta e parda findaram a educação básica, enquanto 71,7% de brancos alcançaram a mesma escolaridade. Os determinantes hegemônicos para a reestruturação da gestão das políticas públicas para a EJA. Ao longo da história, as políticas públicas para a EJA sempre atenderam os determinantes hegemônicos para a classe trabalhadora, com respectivas variações conjunturais. Estas se mantiveram entre a certificação em larga escala de maneira precária e aligeirada, a produção do consentimento ativo ao projeto capitalista, e a formação para o trabalho simples, ratificando a divisão social do trabalho, e o projeto ideológico de nação. Devemos ressaltar que coexistiram com as políticas institucionais os projetos de caráter popular, sob a orientação freireana. Entretanto, a oferta massiva manteve o caráter discriminado no primeiro momento. Após a década de 1990, as políticas educacionais para a EJA sofreram mutações de toda ordem, mantendo-se ainda periférica na totalidade das políticas educacionais. O marco deste período, que influenciará de sobremaneira a gestão das políticas públicas para a educação, e obviamente a EJA, foi a Declaração Mundial sobre a Educação para Todos (UNESCO, 2000), elaborado posteriormente a Conferência da Jomtien9. O documento ressalta em seu preâmbulo o quantitativo expressivo de adultos sem a devida escolarização em um período de crise da dívida externa, desemprego e inflação, indicando implicitamente a necessária reestruturação da oferta, assim como a diretriz política para a modalidade de ensino. A recomendação dos organismos multilaterais seria a expansão da oferta, sob a prerrogativa executiva atrelada a expansão do terceiro setor. De acordo com o artigo sete do documento, Novas e crescentes articulações e alianças serão necessárias em todos os níveis: entre todos os subsetores e formas de educação, reconhecendo o papel especial dos professores, dos administradores e do pessoal que trabalha em educação; entre os órgãos educacionais e demais órgãos de governo, incluindo os de planejamento, finanças, trabalho, comunicações, e outros setores sociais; entre as organizações governamentais e não governamentais, com o setor privado, com as comunidades locais, com os grupos religiosos, com as famílias (UNESCO, 2000, p. 5-6).

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Organizada e financiada pela Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (UNESCO), pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pelo Banco Mundial.

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A partir de então, observa-se no país tanto durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), quando na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), a predominância de políticas expansivas focais. No primeiro momento, as políticas abrangeram com maior intensidade a expansão do ensino fundamental, e sobre o segundo o ensino técnicoprofissionalizante. Sobre a EJA, as políticas educacionais materializaram a historicidade periférica da modalidade de ensino, de acordo com os impactos no financiamento, gestão e a redefinição institucional da oferta, como resultado da reformulação do pacto federativo e expansão do terceiro setor10. E, acordados aos determinantes da Conferência de Jomtien, os mecanismos institucionais passam a materializar a reestruturação da modalidade, no contexto de avanço das políticas neoliberais, em correspondência restrita dos determinantes econômicos internacionais. Desse modo, a realidade educacional no país passaria a integrar a agenda políticofinanceira do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), derivados da política de reajuste fiscal e monetária. Fenômeno este que impactou diretamente o papel do Estado, e sua posterior reestruturação11. Para tal, a educação passa a ser o pilar imprescindível para o impulso econômico e competitivo de acordo com a agenda de ajustes (REIMERS, 1995, p. 22), acordados simetricamente com as mudanças da reestruturação produtiva no escopo da “Sociedade do Conhecimento”. Nesse ínterim materializa-se a reforma gerencial do Estado, culminando na privatização das atividades econômicas estatais, a publicização e terceirização dos serviços à população, e a redução dos investimentos nas atividades sociais exclusivas do Estado para a

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De acordo com Reimers (1995, p. 28-29), a expansão da oferta via terceiro setor seriam por experiências formais e nãoformais de educação, calcadas principalmente no discurso da crise e insuficiência executiva do Estado, influenciando o gerenciamento da educação para a EJA sob a ideologia dos resultados com recursos escassos. No período, esta experiência foi materializada principalmente pelo Programa Alfabetização Solidária (PAS). 11 Esse processo teria como tese a continuidade regulação e intervenção “na educação, na saúde, na cultura, no desenvolvimento tecnológico, nos investimentos em infra-estrutura - uma intervenção que não apenas compense os desequilíbrios distributivos provocados pelo mercado globalizado, mas principalmente que capacite os agentes econômicos a competir a nível mundial” (BRESSER-PEREIRA, 1996, p. 7).

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garantia do ajuste fiscal (Cf. BRASIL, 1995; BRESSER-PEREIRA, 1996), correspondente às diretrizes do Consenso de Washington (HARVEY, 2005)12. No caso brasileiro, assim como dos demais países categorizados no rol do capitalismo dependente, o processo de reforma do Estado objetivou rever/reduzir o tamanho do Estado13 em relação às ações de cunho social. Ao mesmo tempo ocorreu a importação da “ética” das corporações privadas à gestão pública, principalmente diante das orientações para o incremento do Produto Interno Bruto (PIB). Com isso, objetivou-se a delimitação do papel do Estado para o cumprimento das metas de ajuste fiscal, com o objetivo de equilibrar sua capacidade financeira, legitimados pelo novo ordenamento competitivo da economia mundial e às determinações do capital. Após as determinações dos organismos multilaterais para a reestruturação da gestão das políticas públicas, o segundo avanço sobre as políticas educacionais advém das diretrizes político-pedagógicas para a modalidade. Ou seja, com o objetivo de lograr sentido ético-político a escolarização da classe trabalhadora, diante das demandas do capital, a UNESCO por meio do Relatório Delors (UNESCO, 2000)14 materializa os pressupostos ideológicos, por meio da Pedagogia das Competências, para a formação da classe trabalhadora. O documento elenca competências e habilidades indispensáveis para o progresso diante do avanço tecnológico e da globalização, indicando por meio do recrudescimento da Teoria do Capital Humano e da apologia ideológica ao protagonismo social, baseado na formação de capital social, instrumentos normativos e subjetivos para a reprodução da sociabilidade da ordem burguesa. No texto estão explícitos as diretrizes que irão nortear os programas para a EJA no Brasil até os dias atuais (BRASIL, 2006; 2006a; 2007; 2011), ao recomendar o protagonismo na escala local, a cidadania ativa para a garantia da coesão social, os mecanismos para a subsistência e geração de renda, além da defesa da educação ao longo da vida. Como princípio

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Sobre os organismos, destacamos as instituições de Bretton Woods, que funcionam como thinktanks da ofensiva neoliberal, que cumprem funções internacionais e supraestatais de controle político e social e naturalização da “inevitabilidade” da organização econômica capitalista (BORÓN, 1995; PEREIRA, 2010). 13 “Se acrescenta um discurso ideológico auto-incriminatório que iguala tudo o que é estatal com a ineficiência, a corrupção e o desperdício, enquanto que a “iniciativa privada” aparece sublimada como a esfera da eficiência, da probidade e da austeridade” (BORÓN, 1995, p. 78). 14 Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI.

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para tal, propaga-se os quatros pilares da educação do século XXI a conjunção do Aprender a conhecer, Aprender a fazer, Aprender a viver juntos e Aprender a ser, que serão reproduzidos também na Declaração de Hamburgo15 (SESI/UNESCO, 1999), que espelha o consenso da agenda neoliberal para a EJA tanto em suas temáticas específicas, quanto nas 27 diretrizes iniciais. Devemos ressaltar que os apontamentos da declaração reforçam a necessidade de reestruturação da EJA no seio das transformações da Sociedade do Conhecimento, materializando em suas diretrizes o conceito de aprendizagem ao longo da vida. Sobre o conceito, que se torna hegemônico na orientação das políticas públicas para a EJA, o mesmo é concebido como o novo “ordenamento educacional”, que visa atender as demandas da reestruturação produtiva. Para Alheit e Dausien (2006), a educação ao longo da vida corresponde às transformações do trabalho, que dão ao conhecimento um novo papel, assim como ao sujeito, por meio de sua individualização. Logo, o mesmo é convergente ao recrudescimento da Teoria do Capital Humano, naturalizando a crise estrutural do capital pela transferência das responsabilidades para o indivíduo e o conhecimento adquirido para o ingresso no mercado de trabalho. Ademais, essa mudança de paradigma também engloba, segundo os autores, na própria estrutura social, por compreender a relevância dos valores da sociabilidade contemporânea. A partir de então os programas de EJA passa a atender as agendas territoriais específicas para a ampliação da alfabetização/escolarização da classe trabalhadores, além de capilarizar tais ações interinstitucionais através de programas. Cabe destaque, no rol de ações institucionais do governo PT, o Projovem, assim como o Proeja. Nos dias atuais a massificação da oferta reside no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Criado pela Lei 12.513/2011, o programa objetiva Expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos técnicos e profissionais de nível médio, de cursos de formação inicial e continuada para trabalhadores e intensificar o programa de expansão de escolas técnicas em todo o país (BRASIL, 2011, s.p.).

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Resultante das deliberações da V Conferência Internacional de Educação de Adultos, realizado na cidade de Hamburgo em 1997.

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Este programa se transformou no grande mote político do último governo do PT, alcançando até o ano de 2014 aproximadamente 10 milhões de matrículas. O mesmo tem como estrutura a oferta de ensino técnico e cursos de formação inicial e continuada, mantendo o a mesma estrutura dos programas anteriores, Com objetivo de garantir a oferta de mão de obra com baixos salários, no intuito de reduzir a pressão por elevações salariais e de tornar viável a expansão das relações capitalistas no país. Mas, dada a proposta formativa, especialmente com cursos de formação inicial de limitada carga horária (160h), e dada a qualidade da inserção no mercado de trabalho, a exclusão permanecerá no horizonte dessa população, ao que tudo indica. (RIBEIRO, 2014, p. 17).

Sobre o programa, a “Carta de Natal”16 estabelece quatro pontos críticos, que refletem de fato os impactos do gerencialismo na gestão dos programas para a EJA. Dentre eles estariam a problemática do repasse do fundo público para organizações sociais e privadas, com destaque ao Sistema S, a não integração do programa à Educação Básica, a delegação de entidades patronais para o cumprimento da formação profissional, e o desenvolvimento da formação de maneira fragmentada. Considerações finais Portanto, podemos afirmar que a partir da década de 1990, a gestão das políticas públicas para a EJA sofre significativa transformação, impactadas diretamente pela ofensiva neoliberal no país. Primeiro pela reestruturação administrativa do Estado, que produziu impactos significativos na gestão da modalidade de ensino por promover, sob a racionalização do financiamento, a descentralização das políticas educacionais e municipalização da modalidade de ensino, o caráter público não-estatal das políticas públicas para a EJA, e a publicização, privatização e terceirização dos programas educacionais para a EJA. Segundo por modificar o foco etário da escolarização/qualificação dos jovens e adultos para o setor demográfico incluído entre 15 a 29 anos, devido ao potencial risco a ordem social

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Criada no colóquio nacional “A Produção do Conhecimento em Educação Profissional”, na cidade de Natal/RN, e aprovada pela ANPEd em 2013.

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burguesa. E, por fim, na estruturação dos programas no bojo da Pedagogia da Hegemonia, que combinam o recrudescimento das Teorias do Capital Humano e do Capital Social, mantendo a dualidade estrutural do sistema escolar, assim como a reprodução da sociabilidade burguesa. Isto devido ao formato curricular em que ocorrem os programas, fomentando a inclusão excludente, vide o modo aligeirado da formação inicial limitada a 160 horas, assim como a pedagogia política destinada a escolarização da classe trabalhadora nessa modalidade de ensino. Deste modo, A burguesia controla o acesso ao conhecimento científico e tecnológico aplicado na produção, promovendo diferentes tipos de formação/qualificação profissional. É inerente a este fenômeno a ocorrência da dualidade entre formação para o trabalho intelectual – destinado a uma elite da classe trabalhadora – e formação para o trabalho manual – destinado à grande maioria dos trabalhadores (SOUZA, 2011, p. 28).

Portanto, podemos conceber que a materialização das políticas de EJA refrata as orientações dos organismos multilaterais, no bojo da ofensiva do capital. Estas asseguram nos dias atuais a formação da classe trabalhadora calcada na ideologia da empregabilidade, assim como nos pressupostos da cidadania ativa e associativa. Ao mesmo tempo, consolidam de acordo com as premissas da Terceira Via neoliberal, a oferta da modalidade de ensino, cristalizando os pressupostos da Pedagogia da Hegemonia.

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MESA 20: DIÁLOGO SOCIAL E DISPUTA DE HEGEMONIA NA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO NO BRASIL Coordenador: Bruno de Oliveira Figueiredo (PPGEduc /UFRRJ) RESUMO: A partir da recomposição burguesa em busca de recuperação de suas bases de acumulação, decorre ampla reestruturação produtiva e reconfiguração dos mecanismos de mediação do conflito de classes. Neste contexto, nossa Mesa Coordenada analisa a pedagogia política do capital na disputa pela hegemonia no campo da educação. Com base nos conceitos gramscianos de hegemonia e Estado ampliado, os trabalhos aqui reunidos analisam estratégias de construção de consenso para manutenção da hegemonia nas seguintes dimensões da política educacional brasileira: no diálogo social e no reordenamento das relações de poder; na reforma gerencial e na introdução de novos modelos de gestão do trabalho escolar no Sistema Público de Ensino do Estado do Rio de Janeiro; na reação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro à introdução de novos modelos de gestão do trabalho escolar; e na formação do policial militar do estado do Rio de Janeiro. Verificamos nessas diferentes dimensões da recomposição burguesa a estratégia de repolitização da política, visualizadas nos seguintes aspectos: harmonização das relações entre classes antagônicas; naturalização dos instrumentos de controle do trabalho escolar; na ausência de projetos de gestão escolar contra hegemônicos por parte do movimento sindical docente; no dilema entre formação para coerção e formação para o consenso na formação do policial militar.

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DIÁLOGO SOCIAL E REORDENAMENTO DAS RELAÇÕES DE PODER NO ESTÁGIO ATUAL DE DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO Bruno de Oliveira Figueiredo1 José dos Santos Souza2 RESUMO No contexto da crise estrutural do capital, decorre amplo processo de reestruturação produtiva e recomposição dos mecanismos de mediação do conflito de classes. A inserção de ciência e tecnologia nos processos produtivos promove a diminuição do trabalho vivo, o desemprego estrutural e os problemas sociopolíticos e econômicos. Em busca de conformação ética e moral para sua recomposição diante da crise estrutural, a burguesia renova sua pedagogia política para a construção do consenso necessário à manutenção da hegemonia de seu projeto societário. Nesse contexto, a articulação entre educação básica e educação profissional dá sentido à formação/qualificação profissional como fator de geração de renda, modificando a relação entre trabalho e educação, com materialidade na política pública de trabalho, qualificação e geração de renda, a partir de 1996. Com base nessa problemática, elegemos como objeto de estudo a dinâmica da pedagogia política renovada no diálogo social estabelecido na gestão dessa Política Pública. Tomamos como referência empírica as ações e as formulações em torno da Política Pública de Trabalho, Qualificação e Geração de renda expressas em documentos e estudos sobre conselhos municipais de trabalho e renda. Nosso objetivo é explicar como a dinâmica pedagógica contida no diálogo social da gestão da política pública de trabalho, qualificação e geração de renda, constitui-se em ampla estratégia de reordenamento das relações de poder. Para coleta de dados, nos utilizamos de levantamento e análise de fontes primárias e secundárias (documentos governamentais, legislações etc.). A partir da análise da reforma do Estado brasileiro e seus desdobramentos na política educacional, podemos concluir que as ações governamentais constituem ampla estratégia de reordenamento das relações de poder. Com alcance mundial, a harmonização propagada pelo diálogo como única forma de negociação entre

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Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: [email protected]. 2 Doutor em Sociologia pela UNICAMP. Atua como professor associado do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, coordena o Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos de Demandas Populares (PPGEduc) e lidera o Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS). Email: [email protected]

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capital e trabalho evidencia caráter estratégico de reordenamento das relações de poder para a consolidação de um novo bloco histórico.

Introdução Neste artigo, nos propomos a explicar a dinâmica contida no diálogo social da gestão da política pública de trabalho, qualificação e geração de renda, evidenciando seu caráter estratégico no reordenamento das relações de poder no atual estágio da ordem social capitalista de produção e reprodução da vida material. Para esse propósito, nos amparamos na teoria gramsciana para a análise da realidade concreta, principalmente nos conceitos de hegemonia, sociedade civil, Estado Ampliado, bloco histórico. Em um primeiro momento buscamos caracterizar o contexto em que está inserido nosso objeto de estudo, evidenciando o contexto de crise estrutural que desencadeia a reestruturação produtiva e a reformulação dos mecanismos de mediação do conflito de classes. Com base nessa caracterização, partimos para a compreensão das mudanças nas relações entre Estado e sociedade civil, evidenciando o papel de educador do consenso necessário à manutenção da sociedade de classes. Com a evidência desse papel, evidenciamos o caráter reformista da social democracia e o renovado projeto social democrata, como fruto de uma mediação do projeto neoliberal. A partir da evidência do papel educador do Estado, buscamos compreender o desenvolvimento do diálogo social europeu e seu caráter de reordenamento das relações de poder na atual dinâmica do capital. Essa compreensão permitiu evidenciar as relações entre o projeto neoliberal mediatizado pela Terceira Via e a institucionalidade do diálogo social europeu, além de suas influências na constituição da engenharia institucional da política pública de trabalho, qualificação e geração de renda no Brasil. Na última parte do artigo, evidenciamos a ação pedagógica da política pública de trabalho, qualificação e geração de renda no contexto brasileiro, demonstrando sua afinação com o projeto político ideológico da social democracia na atualidade e sua função de salvar o capitalismo com a construção de uma sociedade de ajuda mútua. 1051

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Crise Estrutural, Reestruturação Produtiva e a Reconfiguração dos Mecanismos de Mediação do Conflito de Classes O diálogo social como estratégia de reordenamento das relações se desenvolve no conjunto de mudanças estruturais e superestruturais que configuram o estágio atual da luta de classes. Assim, nossa análise parte da crise estrutural do capital, mais evidente no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, estendida até os dias de hoje. Em uma relação orgânica entre estrutura e superestrutura, a crise estrutural do capital desencadeia reações da classe fundamental na busca de um reordenamento da esfera produtiva e do papel do Estado. Assim, a manutenção da hegemonia burguesa exige a busca de novo equilíbrio entre estrutura e superestrutura, economia e política e a renovação de seu projeto de sociabilidade na direção da formação de um novo bloco histórico. Essa crise estrutural é marcada por amplo processo de reestruturação produtiva e recomposição dos mecanismos de mediação do conflito de classes, para garantir a retomada das bases de acumulação de capital (SOUZA, 2003). O bloco histórico anterior, definido pelo regime de acumulação taylorista/fordista e o modo de regulação de tipo keynesiano, encontra seus limites expressos na crise estrutural do capital. Nesse sentido, o desmantelamento desse regime de acumulação significa a promoção da instabilidade com a desregulamentação do sistema econômico mundial. Assim, a institucionalidade que delineava o equilíbrio e estabilidade no funcionamento do sistema, por aproximadamente 25 anos, tinha as seguintes formas: o trabalho assalariado com formato protegido de emprego, tornando-se a forma predominante de inserção social e acesso à renda (coesão social e sociabilidade fundada no consumo); mecanismos de controle do sistema monetário e financeiro forjando uma estabilidade no sistema monetário internacional (taxas de câmbio fixas, instituições e mecanismos de subordinação das finanças às necessidades da indústria); e a formação de Estados fortes com instituições capazes de disciplinar e impor limites ao capital e suprir as deficiências geradas pela falta de investimentos privados (CHESNAIS, 1996, p. 30). Em meados dos anos 1960, já eram perceptíveis os sinais de esgotamento do regime de acumulação taylorista/fordista, com a recuperação das economias da Europa Ocidental e do 1052

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Japão, decorrendo o aumento da competição mundial (HARVEY, 2006, p. 131-132). Esse acirramento levou a busca por mercados com pouca regulação trabalhista, como forma de diminuição dos custos e maior controle sobre a força de trabalho, com a intensificação da dinâmica produtiva (HARVEY, 2006, p. 131-132). Com o acirramento da competição mundializada, a desestabilização das economias dos Estados Unidos e sua capacidade de controlar a economia mundial delineia o fim do acordo de Bretton Woods (HARVEY, 2006, p. 131-132). Nesse sentido, além dessa configuração, o aumento do custo do trabalho vivo, o endividamento do Estado e a diminuição das taxas de acumulação de capital vão delinear a transição para um novo regime de acumulação flexível que possui elementos de conservação e rupturas com o modelo anterior. Com a ascensão do Japão no mercado mundial, o modelo de acumulação flexível desenvolvido na fábrica japonesa Toyota fica em evidência como paradigma para a reorganização da produção mundial. Nesse contexto, a partir dos anos 1970, esse modelo de gestão do trabalho e da produção passa a dar direção à adaptação e mudanças nas diferentes realidades das produções industriais (ALVES, 2005, p.29-32). O Toyotismo ou regime de acumulação flexível é caracterizado pela intensa inserção de ciência e tecnologia na produção que desencadeia a diminuição contínua e substancial do trabalho vivo, estabelecendo limites a capacidade de absorção da força de trabalho pelo sistema produtivo e caracterizando o desemprego estrutural e os problemas sociopolíticos e econômicos (SOUZA, 2003). A racionalização do trabalho nesse modelo flexível promove a flexibilização dos contratos de trabalho, da jornada de trabalho, salários com composição variáveis, afetando a lógica de negociação sindical e as condições, o nível e a qualidade do trabalho e emprego (DIEESE, 1999, p. 1-3). Além dessas alterações, decorrem tendências a fusões, reestruturações e fragmentações organizacionais, com terceirizações e produções em empresas menores (HARVEY, 2006, p. 149-157). Com essas mudanças, a burguesia internacional demanda do Estado uma intervenção de novo tipo, estruturando e legitimando acordos internacionais, desregulamentações e regulamentações definidas pelos intelectuais orgânicos coletivos do capital, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (HARVEY, 2006, p. 158-162). 1053

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As mudanças estruturais e superestruturais caracterizadas até o momento têm como direção a financeirização da economia mundial, subordinando a capital industrial ao capital financeiro e a afirmação de relativa autonomia deste em relação ao capital industrial (CHESNAIS, 1996, p. 30). Nesse contexto, as mudanças no nível estrutural vão demandar estratégias de mediação do conflito de classes como suporte político-ideológico à nova conjuntura do capitalismo mundial. Com essa demanda, o projeto burguês assume a forma neoliberal, contendo um arcabouço teórico-metodológico voltado para a redefinição da relação do Estado com a sociedade civil3. Essa redefinição exige do Estado estratégias sofisticadas para a mediação do conflito de classes em uma sociedade civil elevada à dimensão superestrutural pela complexificação das relações de poder, em um fenômeno evidenciado por Gramsci como ocidentalização (GRAMSCI, 1989). Nesse contexto, a nova dinâmica de regulação social tende a adotar estratégias de persuasão e mediação do conflito de classes, como a ampliação dos mecanismos de participação da sociedade civil no controle social das decisões estatais (SOUZA, 2003; 2010; 2011). Assim, a hegemonia da classe fundamental exige a renovação da pedagogia política construtora de consenso em torno da sociabilidade burguesa, com a formação de um trabalhador de novo tipo capaz de assimilar a consentir ativamente na consolidação do projeto burguês (SOUZA, 2003; 2010; 2011; e NEVES, 2005). No contexto brasileiro, essas mudanças estruturais e superestruturais ficam mais evidentes a partir da abertura comercial nos anos 1990, desencadeando o aumento do desemprego e agravamento em um quadro de recessão (DIEESE, 2001, p. 197-198). As mudanças implementadas nesse período foram direcionadas para a adaptação da economia brasileira à economia mundial com a adoção do projeto de sociabilidade neoliberal, contendo orientações de privatizações de empresas Estatais, flexibilização dos direitos trabalhistas, reestruturação produtiva, fusões e reorganizações de empresas, com reengenharias (DIEESE, 2001, p. 197-198). Nesse contexto, as estratégias de mediação do conflito de classes surgem no formato de câmaras setoriais, buscando o consenso da classe trabalhadora em torno da reestruturação industrial e 3

Compreendemos sociedade civil na concepção gramsciana, como um conjunto complexo e extenso, formado por organismos “privados” com função de consolidar a hegemonia da classe dominante na sociedade como um todo, como conteúdo ético-moral do Estado Ampliado, com a capacidade de direcionar o bloco histórico (GRAMSCI, 1989; PORTELLI, 2002, p. 20-21).

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das novas formas da gestão do trabalho e da produção, além das medidas fundamentadas no projeto de sociabilidade neoliberal. Como políticas governamentais, podemos exemplificar com o “Entendimento Nacional”, em 1991, e a “Agenda Brasil”, em 1993, com discussões em torno das reformas da previdência, trabalhista, tributária e fiscal, políticas sociais e de emprego (DIEESE, 2001, p. 197-198). A hegemonia do projeto de sociabilidade neoliberal no contexto brasileiro ocorre no período em que o neoliberalismo encontra obstáculos a seu desenvolvimento na Europa e Estados Unidos. Nos anos 1990, a social democracia assume a liderança no desenvolvimento de um projeto de sociabilidade para salvar o capitalismo de seus próprios limites. Com esse objetivo, esse projeto é apresentado como uma Terceira Via, com uma forma de capitalismo “humanizado”, como suposta alternativa ao projeto neoliberal (LIMA; MARTINS, 2005). A necessidade de um trabalhador de novo tipo exige do Estado4 ações na aparelhagem estatal e na sociedade civil, com a finalidade de educar para o consenso em torno da sociabilidade necessária à manutenção da sociedade de classes (SOUZA, 2003, 2010; 2011; e NEVES, 2005). Dessa forma, a educação se torna dimensão estratégica para a conformação do projeto burguês. Assim, a educação ganha novos contornos, direcionados à lógica produtiva, com fundamento no recrudescimento da Teoria do Capital humano, expressos no conceito de empregabilidade, atribuindo sentido lógico à concepção de competências a serem adquiridas, como pressuposto para garantia de empregabilidade. É nesse contexto que a educação básica e a educação profissional são acionadas como estratégia para a formação de trabalhadores de novo tipo, reeditando a dualidade entre trabalho manual e intelectual, com uma nova relação entre trabalho e educação. Essa nova relação dá sentido à educação como fator de geração de trabalho e renda, materializada em meados dos anos 1990 no Plano Nacional de Formação Profissional (PLANFOR) e substituído mais tarde pelo Plano Nacional de Qualificação (PNQ).

O Estado Educador e a Pedagogia Política Renovada Como abordamos até o momento, a hegemonia da classe fundamental exige uma combinação de instrumentos de coerção e persuasão. As estratégias de mediação do conflito de 4

A compreensão de Estado tem fundamento no conceito gramsciano de Estado ampliado (sociedade civil + sociedade política), compreendendo a sociedade civil na dimensão estrutural (GRAMSCI, 1989; NEVES, 2005).

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classes, em uma sociedade civil elevada à superestrutura política-ideológica, exigem a sofisticação de instrumentos e organismos “privados” de hegemonia voltados para a conformação da sociabilidade burguesa, que assume características próprias em cada momento de desenvolvimento da ordem social capitalista de produção e reprodução da vida material. Compreendemos por sociabilidade burguesa, um conformismo social, como forma de ser, pensar e agir em sociedade adequada à dinâmica de valorização do capital. Esse conformismo precisa dar forma a uma consciência coletiva que perpassa a vida material, em graus diferenciados, mas que mantenha uma essência necessária à manutenção das relações de dominação de classe. Esse conformismo se diferencia a cada período de desenvolvimento da ordem social capitalista, como decorrência da configuração da luta de classes, com modificações em uma relação dialética entre estrutura e superestrutura. Essas mudanças podem ser evidenciadas na análise do conceito de cidadania abstrata que ganha contornos e sentidos diferentes a cada modificação na dinâmica da gestão do trabalho e da produção e no processo de complexificação das relações de poder no Estado. Assim, o Estado educador assume a função de educar para a sociabilidade burguesa nos limites da continuidade da sociedade de classes. A pedagogia política estatal se desenvolve por meio de ações na sociedade civil e na sociedade política para a renovação da “cultura cidadã”, voltada para a conformação do conjunto da população a dinâmica do mercado mundializado. Com os problemas sociopolíticos e econômicos gerados pelo projeto de sociabilidade neoliberal, a social democracia e sua essência reformista dão condições objetivas e subjetivas para a mediação do projeto neoliberal, desempenhando sua principal função no processo histórico: o rebaixamento da consciência política da classe trabalhadora e conformação ao projeto de sociabilidade burguês. Com um arcabouço teórico-metodológico refinado, o projeto burguês mediatizado pelos partidários da Terceira Via, apresentando nova interpretação do projeto neoliberal, com a aparência de um capitalismo “mais humanizado” e principal preocupação com a coesão social. O projeto neoliberal mediatizado pelos intelectuais da Terceira Via se propõe a conformação de “uma nova cultura cidadã”, fundamentada no individualismo como valor moral radical, no empreendedorismo, no protagonismo social e na competitividade. A principal 1056

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característica desse novo cidadão conformado é a flexibilidade necessária para adaptação às mudanças e às mazelas da ordem social capitalista, como sujeito ativo na construção do projeto de sociabilidade burguês. O atual projeto social democrata possui como linhas gerais as seguintes: a) o capitalismo como único horizonte da humanidade, naturalizando as relações de dominação de classe; b) ataque frontal à teoria marxista, ao projeto socialista e à política de classes; c) a harmonização de classes por meio do diálogo, com um formato de concertação social condicionando as políticas sociais ao desenvolvimento econômico; d) o desmonte da sociabilidade do tipo keynesiana, com a modificação do papel do Estado e as formas de inserção social, distanciadas dessa sociabilidade. Com bases nessas linhas gerais, a social democracia fundamenta seu projeto de sociabilidade em três pressupostos: 1) o surgimento de uma nova ordem pós-tradicional; 2) o fenômeno da “globalização intensificadora”; 3) a “expansão da reflexividade social” (LIMA; MARTINS, 2005). O pressuposto de surgimento de uma nova ordem pós-tradicional tem como direção a naturalização das mazelas atuais do capitalismo, com ampliação da exclusão social e desemprego estrutural, além de dar suporte à construção do pressuposto da expansão da reflexividade social (LIMA; MARTINS, 2005). Uma suposta crise de toda tradição conservadora está dando direção ao predomínio do modelo dialógico e reflexivo (LIMA; MARTINS, 2005). Nessa crise, o homem perde a capacidade de dar condução ao processo histórico, mistificando as relações de poder na sociedade em que a classe fundamental estabelece relações de dominação sobre as classes subalternas. Com a mesma lógica mistificadora das relações de poder, o fenômeno da “globalização intensificadora” nega as condições objetivas das relações de poder entre nações, materializada na divisão internacional do trabalho (LIMA; MARTINS, 2005). Dessa forma, a mundialização do capital financeiro assume a forma de uma “aldeia global” impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico e pela acelerada mudança cultural, como resultado da intensificação das comunicações proporcionada pela tecnologia (LIMA; MARTINS, 2005). Assim, as comunicações por meio da tecnologia têm gerado cidadãos mais “informados” e “educados”, tomando 1057

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informação com o mesmo sentido de conhecimento, com posturas pró-ativas, socialmente responsáveis, na direção da consolidação de uma sociedade civil ativa. Essa sociedade civil ativa assume a forma de uma sociedade de ajuda mútua, onde o sujeito social se transforma em ator no mutirão para a salvação do capitalismo.

O diálogo social como reordenamento das relações de poder Como pudemos perceber nos pressupostos e objetivos do projeto neoliberal mediatizado pela Terceira Via, a conciliação de classes antagônicas e a harmonização de interesses conflitantes assume a forma de uma concertação social. Assim, como a harmonização de instrumentos em uma orquestra, a lógica da concertação social se fundamenta na possibilidade de ações corporativas. No contexto Europeu do pós-Essa lógica reformista, como essência socialdemocrata, assume no pós II Guerra Mundial um formato de negociação entre capital e trabalho, com nova forma corporativa, combinando a moderação salarial com o avanço nos direitos sociais. Essa combinação foi possível, pois como vimos anteriormente, a possibilidade de adesão da classe trabalhadora ao projeto socialista era uma possibilidade. As organizações de trabalhadores se tornaram sujeitos coletivos fundamentais para a definição de políticas públicas e especialmente as políticas sociais, com poder decisório. No atual contexto do capitalismo contemporâneo, a expansão dos direitos sociais não é uma saída possível. Com essa impossibilidade, o reformismo socialdemocrata vem gestando, desde 1985, a renovação das formas da concertação social, envolvendo um rebaixamento mais profundo da consciência política-ideológica da classe trabalhadora. Com o declínio da concertação social, na Europa, principalmente pela incapacidade da ordem social capitalista promover o progresso social em um quadro de predomínio do desemprego estrutural, da desregulamentação do mercado de trabalho e da intensificação da precariedade das condições de trabalho e vida da população, a socialdemocracia promove uma reformulação da concertação social. Essa reformulação implementa um modelo de desenvolvimento que limite as ações das organizações dos trabalhadores na direção de conquistas de direitos sociais. Assim, as novas formas concertativas fundamentadas no diálogo social consiste no reordenamento das ações dos organismos de representação dos trabalhadores em direção ao desmonte do aparato jurídicopolítico do Estado de Bem-Estar Social europeu e à implementação da agenda neoliberal. 1058

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Nesse contexto, o diálogo social ganha impulso com a ascensão à presidência da Comissão Europeia em 1985 de Jacques Delors5, desenvolvendo uma articulação política necessária para alavancar esse modelo como paradigma de negociação entre capital e trabalho, forjando o diálogo social europeu. O avanço do diálogo social como paradigma de ordenamento das relações de poder na sociedade tem como direção a diminuição dos acordos coletivos em âmbito nacional e da UE, consistindo em ampla estratégia de rebaixamento da consciência política dos trabalhadores. Nesse contexto, os anos 2000 são caracterizados pela diminuição substancial de acordos coletivos. Com o desenvolvimento do diálogo social europeu no início dos anos 1990, as estratégias estatais para a construção de um novo pacto social entre capital e trabalho e reformulação dos mecanismos de regulação do trabalho na América Latina pode ser visualizada nas ações dos ministros do trabalho nas comissões/conselhos sócio laborais no âmbito do MERCOSUL. Dessa forma, em consonância com esses interesses, a busca de legitimidade política em torno da construção de estruturas neocorporativas setoriais pelo Governo brasileiro ocorre no momento de consolidação dos primeiros acordos jurídicos sobre o diálogo social europeu. Essas mudanças se dão de forma articulada aos interesses dos Estados membros da OEA. Assim, por meio das experiências de negociação em câmaras setoriais da indústria automobilística, o Governo brasileiro ensaia os primeiros passos para inserção do País no reordenamento das relações de poder em âmbito internacional. Dessa forma, as experiências das câmaras setoriais são o ponto de partida para a construção da engenharia institucional da política pública de trabalho, qualificação e geração de emprego e renda no Brasil. É nesse contexto que a articulação entre as políticas de trabalho e renda e a política de formação-qualificação profissional se articula à engenharia institucional do diálogo social europeu, estabelecendo sentido e direção à construção da engenharia institucional da política pública de trabalho, qualificação e geração de renda.

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Jacques Delors é um político europeu de nacionalidade francesa, que presidiu a Comissão Europeia entre 1985 e 1995; foi autor e organizador do relatório para a United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, intitulado: Educação, um Tesouro a Descobrir (1996), publicado sob a forma de livro no Brasil pela Editora Cortez, em 1999. Nele se exploram os Quatro Pilares fundamentais da Educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver com os outros, aprender a ser. São estes pilares fundamentais indicados por Delors (1996) que hoje orientam os planejamentos educacionais de diversos países subjugados ao receituário neoliberal mediatizado pela Terceira Via em todo o mundo, assessorados/monitorados pelos organismos internacionais como a UNESCO, a OIT e o Banco Mundial, por exemplo (DELORS, 1999, p. 89-102).

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A Ação Pedagógica da Política Pública de Trabalho, Qualificação e Geração de Renda No conjunto das reformas do Estado brasileiro, em meados dos anos 1990, a hegemonia do projeto social democrata materializa a reforma dos sistemas educacionais e funda a engenharia institucional articulando as políticas de trabalho e renda com a política de formaçãoqualificação profissional. Nessa articulação, a dualidade entre trabalho manual e intelectual se aprofunda, transformando a educação profissional em fator de geração de trabalho e renda, retirando do horizonte a busca por emprego protegido, fundamentado em contratos amparados pelo direito do trabalho. Nessa articulação, a pedagogia política dessa institucionalidade traz como objetivos, a construção de uma sociedade sustentável, com foco no desenvolvimento da equidade social. Nesse sentido, percebemos a principal preocupação com a coesão social, estabelecendo a necessidade, tanto no PLANFOR quanto no PNQ, de construção de uma sociedade civil ativa na elevação da produtividade e da competitividade do setor produtivo. Assim, a construção do consentimento ativo é necessária à construção e consolidação da sociedade civil ativa, como espaço homogêneo, engajada na participação ativa do projeto empresarial de aumento de produtividade e competitividade atrelada à dinâmica do mercado mundializado. Esse engajamento voltado para a transformação da sociedade civil em uma sociedade de ajuda mútua, limitada pelas leis de mercado e pela dinâmica de valorização do capital, busca legitimidade no apelo ambiental, atrelando o desenvolvimento da sociedade à sustentabilidade ambiental e à responsabilidade social e coletiva, ou seja, um comprometimento de toda a sociedade com a manutenção e salvação da sociedade capitalista. A luta por maior “justiça social” se torna ilusória com o desenvolvimento de uma política harmonizante, com horizonte de naturalização das mazelas da ordem social capitalista. O termo igualdade é substituído por equidade para naturalizar a precariedade das condições de trabalho e vida das classes subalternas no Brasil. Alinhado ao projeto neoliberal mediatizado pela Terceira Via, ideologia da qualificação profissional geradora de trabalho e renda, naturaliza os problemas sociopolíticos e

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econômicos atuais da ordem social capitalista, naturalizando o “mundo de incerteza e perturbações” como configurações passageiras e desvinculadas da dinâmica da ordem. A dinâmica dos Conselhos de Trabalho e Renda, que estruturam essa Política Pública em nível municipal, estadual e federal, é caracterizada pela inoperância na formulação de políticas de trabalho e renda articuladas à uma política de formação profissional adequada. Essa inoperância evidencia sua produtividade no rebaixamento do nível de consciência política dos representantes da classe trabalhadora. Em sua maioria, representantes de sindicatos e representatividades de centrais sindicais assumem o elemento comum de geração de emprego e renda e assimilam o discurso empresarial de fomento ao empreendedorismo, cooperativismo, protagonismo social, pró atividade na construção de uma sociedade salvadora da ordem social capitalista. Nesse contexto, a pedagogia política busca o rebaixamento da consciência política das classes subalternas, principalmente da faixa afetada pelo processo de reestruturação produtiva, incentivando a busca por interesses individualizados, sem capacidade de decisão real. Além disso, a refuncionalização dos órgãos de representação dos trabalhadores, modificando a dinâmica combativa e busca de direitos sociais para uma dinâmica cooperativa de um sindicalismo cidadão. Como orientação importante também tem o incentivo à expansão de organismos de interesses específicos e focalizados e não relacionados à regulação do trabalho. Assim, o reordenamento das relações de poder expresso nesses direcionamentos tem como sentido maior, impedir qualquer alternativa de contra-hegemonia e ascensão do projeto socialista no horizonte da classe trabalhadora.

Considerações Finais Para finalizar nosso artigo, a partir da crise do capital e da recomposição burguesa de suas das bases de acumulação, visualizamos o desenvolvimento do projeto socialdemocrata na atualidade em um contexto de questionamentos e movimentos contra os impactos sociais do projeto neoliberal. Com a essência reformista, a social democracia refina o projeto neoliberal, apresentando como uma Terceira Via, naturalizando a ordem social capitalista como única alternativa viável para a humanidade. Esse projeto neoliberal mediatizado pelos Teóricos da

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Terceira Via tem como propósito um novo equilíbrio entre estrutura e superestrutura, economia e política capazes de construir um novo bloco histórico. Nesse contexto, o novo projeto social democrata se constitui em uma estratégia pedagógica ampla, de abrangência mundial, voltada para educar para o consenso em torno da concepção de mundo burguesa e de seu projeto de sociabilidade. Então, essa pedagogia política é direcionada para conformar a sociedade civil nos limites da dinâmica do mercado. Como diretriz desse projeto de sociabilidade, o diálogo social é disseminado como única alternativa para a negociação entre capital e trabalho. Nesse formato, a concertação e harmonização social dimensiona uma negociação sem poder decisório real, limitando os organismos de representação da classe trabalhadora aos ditames das leis de mercado. Na dinâmica de expansão do diálogo como única forma de negociação entre capital e trabalho, a política pública de trabalho e renda é articulada à política de formação/qualificação profissional, inserida à engenharia institucional do diálogo social europeu e afinada ao projeto neoliberal mediatizado pela Terceira Via. Assim, a pedagogia política dessa Política Pública brasileira estabelece uma engenharia institucional com objetivo último de rebaixamento da consciência política das representações das classes subalternas, condicionando as ações dessas representações à dinâmica do mercado. Essa engenharia institucional está voltada, por meio de conselhos de trabalho e renda no formato tripartite e paritário, para a construção do consentimento ativo da classe trabalhadora à construção de uma sociedade de ajuda mútua e o desmonte da regulação social pautada no Estado Bem Feitor. Assim, a socialização da política da classe trabalhadora ocorre dentro dos limites da ordem social capitalista, constituindo-se em estratégia de reordenamento das relações de poder e refuncionalização dos organismos de representação da classe trabalhadora.

Referências BRASIL/MTE. Plano Nacional de Qualificação – PNQ, 2003-2007. Brasília: MTE, SPPE, 2003. ALVES, Giovanni. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 29-64.

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COERÇÃO E CONSENSO: dilemas da formação policial militar Célia Cristina Pereira da Silva Veiga1 José dos Santos Souza2 RESUMO A Polícia Militar compõe, junto com as instituições de segurança pública e o poder judiciário, instrumento sistemático para coerção no aparelho do Estado. No Brasil a promulgação da Constituição de 1988 trouxe consigo uma demanda pelo Estado democrático de direito, que representa certo avanço em relação ao regime militar instalado no país até então. Atualmente, apesar de a polícia ostensiva no país ainda esteja sob estrutura militar, observa-se certa demanda pelo seu enquadramento aos princípios de respeito aos direitos humanos como condição de sua atuação. Tal demanda reorienta a formação policial para a mediação, gestão e resolução de conflitos. No estado do Rio de Janeiro, a política de pacificação implementada a partir de 2007 propõe um perfil policial “pacificador”, de modo que a ideia do consenso tem alcançado espaços na formação policial, a despeito do uso da força. Nesse sentido, tomamos como objeto de análise as mudanças ocorridas na formação policial militar de modo a mediar consenso e coerção. Nossa referência empírica é a formação inicial de praças no Curso de Formação de Soldados (CFSd) na Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Nosso objetivo é analisar as mudanças no CFSd. A partir de análise de fontes bibliográficas primárias, verificamos certa dicotomia entre formação para uso da força e para mediação de conflitos, o que expressa disputas políticas e ideológicas internas na polícia militar e nas estruturas da política de segurança pública. Concluímos que, no contexto de desenvolvimento do capital, a polícia militar torna-se instrumento político para formação social, seja pela coerção, seja pelo consenso. A criação de instituições para controle social está diretamente relacionada ao surgimento do Estado capitalista, tendo como objetivo a proteção da propriedade privada e a contenção das lutas de classe (MARX, 2008, p. 14; ENGELS, 1984, p. 139). O aparelho de 1

Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: [email protected]. 2

Doutor em Sociologia pela UNICAMP. Atua como professor associado do Departamento de Educação e Sociedade do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ, coordena o Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos de Demandas Populares (PPGEduc) e lidera o Grupo de Pesquisas Sobre Trabalho, Política e Sociedade (GTPS). E-mail: [email protected].

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repressão do Estado, composto pelo sistema judiciário, pelas instituições policiais e pelas instituições prisionais, detém o monopólio da força e exerce coerção para cumprimento das regras legais estabelecidas socialmente. Nesse sentido, podemos afirmar que segurança pública é um mecanismo de controle social, legitimado pelo Estado (sociedade política e sociedade civil). Assim, é produto das relações de poder estabelecidas por meio da mediação entre consenso e coerção, nos níveis estruturais, políticos e coercitivos. E como parte da estrutura do aparelho de Estado, as instituições responsáveis pela segurança pública também são instrumentos para formação social. Esclarecemos que não existe Estado sem instituições de controle social, sejam elas agentes da coerção ou façam mediação entre coerção e consenso. A organicidade do Estado é dependente de instituições que exerçam o controle social, que garantam a ordem. Contudo, a ideia de ordem social nos estados capitalistas não está ancorada na democratização dos acessos, dos direitos, das oportunidades, em locais onde a desordem emperra os processos coletivos. Pelo contrário, a ordem social precisa ser mantida na negação dos direitos e na exploração da pobreza. Para isso, as instituições de segurança pública servem como reguladoras e mantenedoras do status quo social a serviço do Estado. Assim, a ordem social costuma ser associada à ausência de conflitos, onde há consenso e conformismo pela condição social imputada. Tal conceito está longe de alcançar os patamares de “justiça social” previstos no Título VIII, Art. 193 a 232 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), onde a “ordem social” é resultante dos acessos à saúde, à previdência, à educação, à cultura, ao desporto, à ciência e tecnologia, à comunicação social, ao meio ambiente, afora os direitos específicos da criança, do adolescente, do idoso e do índio. Aprofundando um pouco mais o conceito de segurança pública nos Estados capitalistas e sua relação com a economia, podemos afirmar que, a ordem social tem como objetivo a garantia de manutenção e de crescimento econômico da classe dominante. A principal tensão está presente no fato de que o Estado capitalista cria uma segurança pública para gerir as inseguranças sociais originadas pelo próprio capitalismo. Nesse processo a desigualdade social alimenta a violência e o crime. A lógica do consumo como motivação da existência, que condiciona as relações sociais, agregada à negação dos direitos, de oportunidades dignas de sobrevivência e da profunda falta de esperanças de que surjam soluções para a desigualdade, são elementos que potencializam a violência, e consequentemente, o crime contra o patrimônio 1065

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e contra a vida. É claro que o crime não tem motivação exclusiva e pode estar associado a fatores múltiplos, desde questões éticas a doenças emocionais. Não associamos aqui um discurso de criminalização da pobreza, mas do fator econômico como preponderante para o aumento da violência e do crime. Considerando os vínculos estabelecidos entre economia e segurança pública, podemos afirmar que não há sistema de segurança pública eficaz diante da desigualdade extrema. A principal função desenvolvida pelas instituições de segurança pública é o policiamento. Policiamento é um aspecto do controle social “que ocorre universalmente em todas as situações sociais onde houver, no mínimo, potencial para conflito, desvio ou desordem”. (REINER, 2004, p. 27). O conceito de “policiamento é a tentativa de manter a segurança por meio de vigilância e ameaça de sanção” (REINER, 2004, p. 22). Partindo desta perspectiva, o policiamento em seu aspecto amplo, é realizado por uma série de organismos sociais, mas diante do tema que nos propusemos compreender, limitamos nosso foco ao policiamento exercido pelas instituições policiais. Por esse ponto de observação, o “policiamento pode ser dividido em três domínios que são distintos, mas se sobrepõem, a saber, o policiamento criminal, o controle regulador e a manutenção da paz” (BITTNER, 2003, p. 30). A segurança pública em nosso país está legalmente amparada no Art. 144, da Constituição Federal (CF) (BRASIL, 1988). Sua estrutura é composta pela polícia federal, pela polícia rodoviária federal, pela polícia ferroviária federal, pelas polícias civis, pelas polícias militares e pelos bombeiros militares. Essas instituições tem como missão a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (BRASIL, 1988, Art. 144). Com exceção do corpo de bombeiros militares, as demais instituições são responsáveis pelo policiamento preventivo e/ou repressivo. Em 2014, o país tinha 666.479 policiais e guardas municipais (BRASIL, 2015). Desse grupo, o efetivo das polícias militares é o maior em quantitativo numérico no país e representa cerca de 64% do total (BRASIL, 2015). Sua atribuição constitucional é ser polícia ostensiva responsável pela preservação da ordem pública. Tanto o quantitativo numérico, quanto a missão constitucional são elementos que reforçam o contato entre as polícias militares e a sociedade

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civil, destacando tais instituições como representantes diretos do Estado junto à sociedade. Tal fato não demandaria abordagem caso essas organizações não fossem militares. Ressaltamos que, desde os mais antigos registros históricos, a organização militar foi desenvolvida principalmente para o combate ao inimigo e para defesa de um território ou conquista de outros em tempos de guerra. O militarismo é uma filosofia institucional pautada na hierarquia e na disciplina. Assim, o perfil ideal para os militares é de homens máquina, heróis que não tem medo da morte, que são ferozes com os inimigos e submissos aos seus senhores. Portanto, o militarismo não é apenas uma organicidade que estrutura uma instituição qualquer, mas uma ideologia institucional, fundamentada no princípio da coerção como método para o funcionamento organizacional, cujo propósito é o combate, a guerra, a vitória sobre um determinado inimigo. Desse modo, a ideologia militar para atividade policial, com o passar do tempo tem sido paradoxal em relação ao conceito de segurança pública adotado nas últimas décadas no país. As influências do modelo gerencialista de produção sobre a administração pública, consequentemente, sobre a segurança pública, desde a década de 1970, sobretudo na Inglaterra e Estados Unidos, fomentaram a ideia de profissionalização policial que está associada a dois modelos principais de policiamento: policiamento orientado para resolução de problemas (mediação de conflitos) e polícia comunitária. Ambos os modelos de policiamento, o orientado para resolução de problemas e o comunitário, alcançaram maior espaço a partir de 1990 (REINER, 2004, p. 240). Nessa década, “a nova linguagem do gerencialismo (administração por objetivos) predominava no pensamento trabalhista, bem como nos pronunciamentos conservadores e da polícia” (REINER, 2004, p. 293). Os modelos de policiamento orientados pela ideia “consumista” estão baseados na prestação de serviços, onde a sociedade torna-se cliente da segurança pública. A relação entre policiamento e gerencialismo, claramente, demonstra a imposição das ideias empresariais, das leis de mercado aplicadas ao policiamento. É importante mencionar que a ideologia que embasa esses modelos de policiamento demanda o alcance de legitimidade para as ações de segurança pública. Podemos afirmar que se trata de um instrumento para mediação dos conflitos de classe por meio do consenso, o que representa um avanço em relação às teorias conservadoras de policiamento amparadas predominantemente na coerção. No policiamento comunitário, o policial deve agir como pacificador, motivado a 1067

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buscar soluções em conjunto com a comunidade para questões relacionadas à segurança. Ele é uma espécie de gerente responsável em cumprir a função da segurança pública no local onde atua. Os modelos de policiamento com base no consenso (policiamento comunitário e orientado para resolução de problemas) representam um marco teórico em relação ao fomento do respeito à dignidade humana. Tais modelos têm como fundamento a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) (ONU, 1948).. A defesa do direito à segurança pessoal, no Art. 3º (ONU, 1948) agregada ao direito à vida e à liberdade e ao direito à segurança social, no Art. 22º (ONU, 1948), foi o primeiro passo para o desenvolvimento dos conceitos modernos de segurança pública. A ideia de segurança pública ancorada nos princípios “democráticos”, com base no respeito aos Direitos Humanos é uma das bandeiras levantadas pela ONU, por meio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Não coincidentemente um conceito de “segurança cidadã” foi desenvolvido por um organismo preocupado com o “desenvolvimento”. O próprio PNUD assume que há relação estreita entre a segurança e o desenvolvimento econômico, dentre outros níveis de desenvolvimento (ONU, 2013). O custo da violência e os prejuízos dos altos índices criminais emperram o desenvolvimento econômico, sobretudo nos países chamados “em desenvolvimento”. Portanto, as pressões internacionais têm fomentado o desenvolvimento da “segurança cidadã”, tendo como estratégia para mediação a bandeira dos direitos humanos. Segundo o PNUD (ONU, 2013), La región latinoamericana se ha establecido firmemente en el escenario internacional, y avanza en la reducción de la pobreza y la desigualdad, en el crecimiento económico y la estabilidad financiera. [...] Sin embargo, algunos desafı́os persisten: en su conjunto la región sufre la pesada carga de la violencia, con más de 100.000 homicidios registrados por año. La mayorı́a de los paı́ses de la región tienen tasas de homicidio con niveles de epidemia, según la clasificación de la Organización Mundial de la Salud, con tasas mucho más altas que en otras regiones. Los costos humanos y sociales de esta violencia son demasiado altos (ONU, 2013, p. 3).

O Projeto Segurança Cidadã desenvolvido pela ONU, por meio do PNUD, resultou em várias ações no Brasil, a partir do ano 2000. A formação em segurança cidadã tem sido realizada em cursos de capacitação para profissionais da segurança pública. O Projeto de Cooperação Técnica Internacional BRA/04/029-Segurança Cidadã, iniciado em 2004, teve como objetivos 1068

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principais: a implantação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e o apoio às ações de formação e de valorização profissional para segurança pública. Assim, em conjunto com o fomento da implantação do SUSP, ainda em tramitação pelo Projeto de Lei (PL) nº 3734/2012 (BRASIL, 2012), surgiu a demanda pela criação de um currículo que uniformizasse a formação dos profissionais de segurança em território nacional. A Matriz Curricular Nacional MCN (BRASIL, 2009) para ações formativas dos profissionais da área de segurança pública foi desenvolvida a partir de ação conjunta do Ministério de Justiça (MJ), pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) e dos órgãos do Sistema de Segurança Pública – como as corporações policiais militares, corpo de bombeiros e corporações policiais civis. Durante os anos de 2010 a 2012, o documento passou um período de avaliação realizada por consultores junto a gestores, técnicos e professores das instituições de ensino em segurança pública existentes no país. Em 2014 foi apresentada uma nova versão, com poucas alterações no que diz respeito ao projeto didático pedagógico. Nessa versão foram incluídas algumas disciplinas, foram recomendadas cargas horárias e alteradas referências bibliográficas (BRASIL, 2014). Contudo, a nova versão da MCN (BRASIL, 2014) apresenta diferenças em relação à versão anterior que interferem diretamente no projeto político pedagógico para uma formação policial pautada nos direitos humanos. A versão anterior da MCN (BRASIL, 2009) menciona por diversas vezes a estreita relação entre teoria e prática, sem explicitar disciplinas sobre a prática operacional e tática, como técnica de abordagem e tiro defensivo. Contudo, tais conhecimentos estavam inseridos nas disciplinas “Preservação e Valorização da Prova” e “Uso da Força”. Os conhecimentos técnicos profissionais para o policial militar recebem na antiga versão da MCN (BRASIL, 2009), uma carga horária menor em relação aos demais conteúdos, como “Direitos Humanos”, que abarca sozinho, 6% da carga horária. Na nova versão da MCN (BRASIL, 2014) a perda de carga horária nessa disciplina é de 75%. De modo mais geral, as cargas horárias das disciplinas que poderiam contribuir à atividade reflexiva e ao aprendizado de conhecimentos referentes às ciências sociais, tiveram redução de 36% de carga horária no curso na nova versão da MCN (BRASIL, 2014), em relação à versão anterior. Por outro lado, de modo proporcionalmente inverso, as disciplinas de caráter técnico profissional referentes ao uso da força tiveram um acréscimo de mais de 33% na nova versão da MCN (BRASIL, 2014), em relação à anterior. 1069

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Inclusive, com inclusão de disciplinas como “Educação Física” que sequer existiam na versão anterior. Concluímos que não há como negar que a versão anterior da MCN (BRASIL, 2009) representa um avanço em relação aos currículos utilizados para formação policial militar no estado do Rio de Janeiro. Já a versão atual da MCN (BRASIL, 2014), por mais que tenham sido incluídas disciplinas importantes, como “Análise de Cenário e Risco”, “Inteligência de Segurança Pública”, “Análise Criminal” e “Diversidade Étnico Sociocultural”, as demais alterações mencionadas representam o avanço das forças conservadoras sobre a formação policial militar para manutenção da formação para o uso da força (coerção). As pressões internacionais que resultaram no desenvolvimento de políticas para segurança em âmbito nacional e em âmbito estadual, levaram o estado do Rio de Janeiro à implementação da Política de Pacificação, como parte de um amplo projeto de reforma gerencial do estado do Rio de Janeiro. Em dezembro de 2008, foi implantada a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), na comunidade Santa Marta, Botafogo, Rio de Janeiro, mas o Decreto nº 41.650/2009 (RIO DE JANEIRO, 2009), que dispõe sobre a criação das UPP, entrou em vigor no mês de janeiro de 2009. Como parte da nova política de segurança pública, foram desenvolvidas ações para formação policial a fim de, em última instância, dar cabo da execução do projeto. Para garantir que a formação policial dos efetivos que atuam principalmente na atividade fim, o governo do estado criou a Subsecretaria de Educação Valorização e Prevenção (SSEVP) e instituiu o Banco de Talentos. O Programa Banco de Talentos tem relação direta na implementação do Projeto de Pacificação. A atividade docente é elemento central com poder de frustrar a política pedagógica adotada. Nesse sentido, a contratação de professores sem vínculo com a segurança pública, os quais são avaliados a partir de currículo mínimo delineado pela SSEVP, torna-se uma medida política para garantia de efetivação do projeto “Segurança Cidadã”. No ano de 2012, a partir de ação conjunta com a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), a SSEVP desenvolveu o currículo para os cursos de formação de soldados, cabos e sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012). Está claro logo no início do documento que a motivação para sua confecção está relacionada à implementação da Política de Pacificação: Essa proposta é uma reflexão que tem como ponto de partida a atual política de segurança pública adotada pela Secretaria de Estado da Segurança do Rio de Janeiro,

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na qual os processos de aprendizagem passam a ter contornos de uma ponte entre as atividades policiais e as dinâmicas e demandas da sociedade (RIO DE JANEIRO, 2012, p. 4).

O documento aponta como referencial as diretrizes estabelecidas pela ONU para o desenvolvimento da segurança cidadã (RIO DE JANEIRO, 2012, p. 19), mencionando também a importância das parcerias com setores privados para a diminuição da violência. E ainda toma como referencial teórico a MCN (BRASIL, 2009) e a Diretriz Geral de Ensino e Instrução (DGEI-D9) da PMERJ (PMERJ, 2004). Tais amparos legais estão alinhados à política de segurança pública desenvolvida pela ONU, desse modo, a proposta político pedagógica orienta a formação policial militar para o perfil profissional capacitado à mediação de conflitos pelo consenso, em detrimento da coerção pelo uso da força. Para tal, propõe o desenvolvimento de competências operativas, cognitivas e atitudinais. O currículo do Curso de Formação de Soldados (CFSd) (RIO DE JANEIRO, 2012) está dividido em quatro módulos: módulo comum, módulo profissional, módulo jurídico e módulo complementar, com carga horária total de 1182h, a serem cursadas em 27 semanas. A distribuição de carga horária pelos módulos está organizada da seguinte forma: Módulo Básico – 184h; Módulo Profissional – 430h; Módulo Jurídico – 128h; e, Módulo Complementar – 440h (RIO DE JANEIRO, 2012, p. 38-39). Nessa composição, quase 80% do total do curso compreendem o módulo profissional e complementar. Sem contar que 65% do módulo básico são destinados apenas à disciplina “Educação Física”. Por esse ponto de observação, podemos afirmar que a relação entre o documento e a MCN (BRASIL, 2009) adotada como referencial está apenas na concepção teórica a partir da qual ambas foram desenvolvidas, pois, são currículos distintos. No currículo do CFSd (RIO DE JANEIRO, 2012), o Módulo Básico está composto pelas disciplinas: “Educação Física” (120h); “Direitos Humanos” (16h); “Ética” (8h); “História e Organização Policial” (8h); “Imagem Institucional” (8h); “Língua e Comunicação” (24h). O módulo compreende 184h no total. O Módulo Profissional está composto pelas disciplinas: “Armamento” (50h); “Biossegurança” (20h); “Criminalística” (12h); “Instruções Práticas de Ações Táticas (IPAT I)” (22h); “Instruções Práticas de Ações Táticas (IPAT II)” (40h); “Instruções Práticas de Ações 1071

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Táticas (IPAT III)” (18h); “Legislação Aplicada à PMERJ I” (16h); “Legislação Aplicada à PMERJ II” (22h); “Método de Defesa Policial Militar” (30h); “Noções de Telecomunicações” (12h); “Ordem Unida” (16h); “Polícia Comunitária” (20h); “Psicologia e Estresse Policial” (12h); “Policiamento Ostensivo” (50h); “Sociologia Criminal” (20h); e, “Tiro Policial” (70h). O módulo compreende 430h no total. O Módulo Jurídico está composto pelas disciplinas: “Legislação Penal Comum” (20h); “Legislação de Trânsito” (20h); “Legislação Penal Militar” (20h); “Legislação Processual Penal Comum” (8h); “Legislação Processual Penal Militar” (12h); “Leis Penais Especiais” (20h); “Noções de Direito Administrativo” (12h); “Noções de Direito Constitucional” (16h). O módulo compreende 128h do total. O Módulo Complementar está composto pelas disciplinas: “Curso de Aprimoramento da Prática Policial Cidadã” (60h); “Atividades Extras Curriculares – Palestras” (80h); “Estágio Técnico Operacional” (80h); “Coordenação Pedagógica” (120h); “Prova” (100h). O módulo compreende 440h do total. A ênfase no Módulo Profissional é aceitável por conta de tratar-se de uma formação profissionalizante, mas a maior distribuição de carga horária para o Módulo Complementar o põe como principal ponto para formação policial militar. A flexibilidade que tal condição infunde à formação possibilita que o currículo siga por direções contrárias à política pedagógica sem burlar o planejamento estabelecido. Não estão delimitados, por exemplo, as abordagens contidas nas “Atividades Extras Curriculares – Palestras” (80h); tampouco, informa quais atividades são desenvolvidas na “Coordenação Pedagógica” (120h). Consideramos que o currículo adotado pelo estado do Rio de Janeiro para formação de soldados, cabos e sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012) está alinhado ao objetivo da MCN (BRASIL, 2009), pela ideia do desenvolvimento de competências e pelo fomento à perspectiva dos Direitos Humanos para formação policial militar. Contudo, a divisão de cargas horárias é paradoxal ao objetivo escolhido. Ao compararmos as matrizes curriculares, observamos que o currículo para os cursos de formação de soldados, cabos e sargentos (RIO DE JANEIRO, 2012), propõe uma formação voltada ao uso da força, somado ao conhecimento jurídico, em detrimento das disciplinas “Direitos Humanos” e “Ética”, que recebem cerca de 25% do que prevê a MCN (BRASIL, 2009). Portanto, o objetivo de uma formação policial militar com foco nos Direitos 1072

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Humanos é afetado por conta dessa redução de carga horária. Fato agravado pela ausência de conteúdos a respeito de armamentos “não-letais”. Esses dados nos levam a pensar que, por mais os documentos oficiais mencionem a MCN (BRASIL, 2009) como parâmetro para formação inicial, a distribuição das cargas horárias e a inexistência de algumas disciplinas desconfiguram e comprometem sua correlação. Porquanto, a MCN (BRASIL, 2009) foi adotada como referencial teórico, mas o currículo para formação dos soldados, cabos e sargentos no Rio de Janeiro não abdicam os padrões pautados em uma formação tradicional, logo, não cumpre o alinhamento dado pela SENASP para formação de profissionais de segurança pública. CONCLUSÕES Concluímos que, o desenvolvimento de um novo conceito de policiamento adotado para as forças policiais, como uma medida impulsionada pela ONU com vistas ao crescimento econômico, está orientado para o consenso. Esse novo paradigma tem substituído o modelo conservador, pautado exclusivamente na coerção. É certo que o novo conceito faz parte do refinamento da estratégia burguesa para conformação das massas e mediação do conflito de classes. Contudo, há contradição nesse processo, posto que os reflexos perversos de uma atuação policial pautada no combate ao inimigo são evidentes nas classes pobres. Nesse sentido, o policiamento pelo consenso, baseado no respeito aos Direitos Humanos interfere diretamente no direito à vida das pessoas das classes pobres. Em âmbito nacional o projeto Segurança Cidadã da ONU fomentou a implementação do SUSP, ainda em tramitação e a elaboração do currículo para formação de profissionais em segurança pública no país. A proposição de um alinhamento curricular para formação dos profissionais de segurança pública presente na MCN na versão de 2009 (BRASIL, 2009), representa um avanço em relação aos currículos utilizados para formação profissional em segurança pública, sobretudo pelo fomento ao respeito aos Direitos Humanos. Já a versão atual da MCN (BRASIL, 2014), tem seu ponto alto na inclusão das disciplinas “Análise de Cenário e Risco”, “Inteligência de Segurança Pública”, “Análise Criminal” e “Diversidade Étnico Sociocultural”. No entanto, as alterações nas cargas horárias para disciplinas voltadas aos Direitos Humanos constituem certo retrocesso em relação à versão anterior.

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Já em âmbito estadual, foi desenvolvida a Política da Pacificação e para que a formação policial militar seguisse o projeto político pedagógico adotado, o currículo para formação dos soldados, cabos e sargentos foi elaborado pela SSEVP e PMERJ e foi criado o Programa Banco de Talentos. Entretanto, o currículo formulado para os policiais militares do estado do Rio de Janeiro não está totalmente alinhado ao projeto político pedagógico adotado pelo estado, mesmo que a proposta tenha sido desenvolver um currículo para formação profissional de acordo com o alinhamento internacional. O foco em disciplinas que preparam o profissional para o uso da força acaba corrompendo a proposta no sentido de uma formação para mediação de conflitos. Por fim, avaliamos que, embora em meio às pressões internacionais na formulação de um policiamento para o consenso, que chegaram a culminar na implementação da Política de Pacificação no estado do Rio de Janeiro, sua materialização na formação policial militar não chegou a surtir os resultados esperados sequer no currículo. Esse fato que demonstra a tensão entre forças progressistas e conservadoras da área de segurança pública. Entre o “servir e proteger” e o “tiro, porrada e bomba”. Entre o policiamento pelo consenso e pela coerção. REFERÊNCIAS BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. Tradução: Ana Luísa Amêndola Pinheiro. Série: Polícia e Sociedade, Vol. 8, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP). São Paulo, Edusp, 2003, 385 p. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988. Disponível em: . Acesso em: 05/05/2015. BRASIL. SENASP (2009). Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança Pública. Matriz Curricular Nacional Para Ações Formativas dos Profissionais da Área de Segurança Pública. Brasília, DF, 2009. Disponível em: . Acesso em: 09/09/2016. BRASIL. Projeto de Lei nº 3734, de 23 de abril de 2012. Disciplina a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, nos termos do § 7º do art. 144 da Constituição, institui o Sistema Único de Segurança Pública - SUSP, dispõe sobre a segurança cidadã, e dá outras providências. Brasília, 2012. Disponível em: . Acesso em 31/07/2016. BRASIL. SENASP (2014). Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança Pública. Matriz Curricular Nacional Para Ações Formativas dos Profissionais da Área de Segurança 1074

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Pública. Brasília, DF, 2014. Disponível em: . Acesso em: 09/09/2016. BRASIL. FBSP (2015). Anuário de segurança pública. Brasília, DF, 2015. Disponível em: . Acesso em: 27/08/2016. Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), In: ONU, DUDH, 1948, 10 p. Disponível em: . Acesso em: 08/09/2016. ENGELS, Friederich. A origem do estado, da família e da propriedade privada. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984, 104p. Informe Regional de Desarrollo Humano 2013-2014: Seguridad ciudadana con rostro humano: diagnóstico y propuestas para América Latina. In: ONU, PNUD, 2013. Disponível em: . Acesso em: 09/09/2016. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. Tradução de Florestan Fernandes. São Paulo, Expressão Popular, 2008, 288 p. Projeto Segurança Cidadã. In: ONU, PNUD, 2009. Disponível . Acesso 31/08/2016.

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REINER, Robert. A política da polícia. Tradução: Jacy Cardia Ghirotti e Maria Cristina Pereira da Cunha Marques. Série: Polícia e Sociedade, Vol. 11, Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP). São Paulo, Edusp, 2004, 376 p. RIO DE JANEIRO (ESTADO). Decreto nº 41.650, de 21 de janeiro de 2009. Dispõe sobre a criação da Unidade de Polícia Pacificadora - UPP e dá outras providências. Rio de Janeiro, RJ, 2009. Disponível em: . Acesso em: 31/08/2016. RIO DE JANEIRO (ESTADO). SSEVP/ SESEG (2012). Currículos para os Cursos de Formação Soldados - Cabos - Sargentos, de 2012. Rio de Janeiro, RJ, 2012, 45 p. Disponível em: . Acesso em: 31/07/2016. PMERJ. 2004. Diretriz Geral de Ensino e Instrução PMERJ (DGEI – D9), de 23 de novembro de 2004. Público no Aditamento ao Boletim PMERJ nº 076, de 23 de novembro de 2004. Rio de Janeiro, RJ, 2004.

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IMPLEMENTAÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO PROGRAMA “GESTÃO INTEGRADA DA ESCOLA” NA REDE ESTADUAL DE ENSINO DO RIO DE JANEIRO (2011-2014): reflexões acerca da relação entre Estado e sociedade civil. Fabrício Fonseca da Silva1 RESUMO Considerando que toda política educacional é resultado de uma dada correlação de forças entre segmentos da sociedade civil e sociedade política, este trabalho tem como foco a reforma gerencial do sistema público de ensino do estado do Rio de Janeiro. Para isto, toma como referência empírica o Programa de Gestão Integrada da Escola (GIDE) implementado pelo Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG) – um organismo da sociedade civil – por meio de parceria com a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEduc-RJ) – um órgão de Estado. O INDG é um aparelho privado de hegemonia, exemplo de articulação da classe dominante para manutenção de hegemonia, pois o seu quadro de dirigentes é integrado por empresários de diferentes setores (AMIL, Unibanco e 3G Capital), além do ex-secretário de educação do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Risolia, responsável direto pela assinatura do contrato de prestação de consultoria firmado entre o INDG e a SEEduc-RJ para implantação da reforma gerencial do sistema público de ensino do estado do Rio de Janeiro. A GIDE é apresentada pela pedagoga Maria Helena Godoy, ex-integrante do INDG e atual integrante do Instituto Áquila, como modelo de gestão com base científica que contempla aspectos estratégicos, pedagógicos e gerenciais, norteado pelo método PDCA (Planejar, Executar, Checar, Agir). A opção por este modelo de gestão é justificada pela necessidade de tornar as escolas públicas mais eficazes e o trabalho docente mais produtivo, instituindo metas, avaliações externas e políticas “meritocráticas” que bonificam os profissionais que trabalham em escolas que atingem os índices definidos pelo planejamento estratégico. O trabalho conclui que a GIDE instituiu nas escolas novas formas de controle do trabalho docente, por meio de plano de metas, avaliações externas e currículos minimalistas, o que despolitiza as escolas e favorece a dominação de classe. O Estado Ampliado como ferramenta teórico-metodológica 1

Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professor de História da Rede Pública de Ensino Básico. E-mail: [email protected]

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Este trabalho tem como objetivo compreender a relação entre a reforma gerencial da administração pública do Estado brasileiro e a difusão de novos modelos de gestão do trabalho escolar, para isto toma como referência empírica o Programa de Gestão Integrada da Escola (GIDE), implementado nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro, por meio de um convênio entre o Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG) e a Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ), a partir de 2011. A relação entre este sistema de gestão escolar e o Estado permite entender o processo de privatização de novo tipo que vem se desencadeando, desde anos 1990, no país, marcado, sobretudo, pela atuação de intelectuais oriundos de organismos da Sociedade Civil no interior da Sociedade Política, como no caso em tela, onde a atuação do Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), atual Falconi Consultores de Resultado se faz presente em várias prefeituras e estados prestando consultoria de gestão para implantação do sistema GIDE. Desse modo, propõe-se analisar as políticas públicas de educação a partir do quadro teórico-metodológico de Antônio Gramsci, sobretudo o conceito de Estado ampliado. A concepção de Estado formulado por Gramsci superou tanto a visão liberal quanto a visão de uma matriz marxiana: o Estado não seria nem “sujeito da história” e, muito menos, “sujeito do modo de produção capitalista”. De acordo com a historiadora Sônia Regina Mendonça (2014), o Estado, na concepção gramsciana, dever ser compreendido como uma condensação de relações sociais, atravessado pelo conjunto das relações de classes existentes na própria formação histórica, incorporando os conflitos na sociedade geral. A característica do Estado Capitalista Ocidental, no contexto em que Gramsci viveu, consistia de fato um espaço de consenso – e não só de coerção. Neste sentido, que é formulado o conceito gramsciano de Estado, entendido como conjunto formado pela sociedade política e a sociedade civil, resultando no Estado Ampliado, conforme escreveu Gramsci: Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo também leva a certas determinações do conceito de Estado, que é usualmente entendido como sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo, para conformar a massa popular segundo o tipo de produção e a economia de um momento dado), e não como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre toda a sociedade nacional exercida através das organizações ditas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas, etc.), é especialmente na sociedade civil que operam os intelectuais. (2001:224)

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A sociedade civil é formada por um conjunto das organizações, responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, a igreja, os partidos políticos, sindicatos, as organizações profissionais e a imprensa. (COUTINHO, 1992). E a sociedade política refere-se ao Estado em seu sentido restrito. Dessa forma, ambas servem para conservar uma determinada base econômica, de acordo com os interesses de uma classe principal. No entanto, a forma delas encaminhar a conservação é distinta: na sociedade civil, as classes buscam exercer sua hegemonia mediante a direção política e o consenso. Já na sociedade política, as classes exercem uma dominação mediante a coerção. (Idem,1992). O segundo ponto de distinção entre a sociedade civil e sociedade política, de acordo com Coutinho (1992), seria em relação à materialidade (social-institucional) própria de cada esfera. Na sociedade política tem seus portadores materiais nos aparelhos repressivos de Estado, os portadores materiais da sociedade civil são os aparelhos privados de hegemonia, isto é, organismos de participação política ao quais se adere voluntariamente. Assim, a luta de hegemonias não é apenas luta entre “concepções de mundo”, ela é também luta dos aparelhos que funcionam como suportes materiais dessas ideologias, organizando-as e difundindo-as. (Bianchi 2008). No entanto, Gramsci não perde de vista o momento unitário entre essas esferas. A figura do intelectual é central, na elaboração e divulgação da hegemonia, no pensamento gramsciano. O marxista sardo entendia como intelectual “todo estrato social que exerce funções organizativas [...] seja no campo da produção, seja no campo da cultura e na política-administrativa” (GRAMSCI, 2002:93). Por isso, Gramsci formulou o conceito de intelectual orgânico para distinguir de intelectuais tradicionais. Orgânico é aquele que participa que age que ajuda na formulação de uma nova hegemonia ou se engaja na manutenção da hegemonia existente. No capitalismo, os intelectuais são majoritariamente orgânicos da classe burguesa, mas isso não que dizer que não se tenha intelectuais orgânicos da classe trabalhadora. A atuação dos intelectuais é compreendida enquanto ação coletiva que não se restringe à sociedade civil, mas se estende a inserção dos interesses partidários junto aos organismos estatais da sociedade política (Ministérios, Secretarias, Comissões públicas). Os intelectuais orgânicos atuam na sociedade civil, podendo se inserir em agências da sociedade política estratégicas às suas respectivas frações da classe dominante. (LAMOSA, 2014)

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Assim, analisar as políticas públicas educacionais a partir do referencial do pensador marxista Antonio Gramsci precisa, antes de tudo: [...] verificar quem são os atores que integram esses sujeitos coletivos organizados, a que classe ou fração de classe estão organicamente vinculados e, sobretudo, o que estão disputando junto a cada um dos organismos do Estado restrito, sem jamais obscurecer que Sociedade Civil e Sociedade Política encontram-se em permanente inter-relação. Pensar o Estado significa, portanto, verificar, a cada momento histórico, que eixo central organiza e articula a Sociedade Civil enquanto matriz produtiva e, ao mesmo tempo, como essas formas de organização da sociedade Civil articulam-se no e pelo Estado restrito, através da análise de seus agentes e práticas. (MENDONÇA, 2007, p. 15)

Neste sentido, para Mendonça, o passo inicial deve ser o mapeamento dos aparelhos privados de hegemonia, verificando-se a organização de suas demandas, assim como mecanismo da inscrição de seus quadros junto a um organismo de Estado. A insurgência de novos modelos de gestão do trabalho no contexto da recomposição burguesa A crise estrutural do capitalismo na década de 1970 levou o esgotamento do modelo de desenvolvimento fordista, da administração keynesiana, do Estado de bem-estar social e da gestão pública burocrática, diante disso, as pressões para uma refuncionalização do Estado capitalista nos 1980 e 1990 estão articuladas, segundo Behring (2008), a um movimento de recomposição burguesa em busca do amento das taxa de lucro, esse movimento se deu tanto na esfera estrutural, por meio da adoção do modelo japonês, o toytismo, quanto na esfera superestrutural, com uma ampla reforma no aparelho estatal, redefinido os mecanismos de mediação de conflito de classe. Nesse contexto de crise do capital, a gestão contemporânea colocada no cenário das transformações neoliberais, se converte em importante peça dos capitais privados na busca da saída dessa crise. (GURGEL, 2003). A ideologia neoliberal ascende nos anos 1980-90 no Brasil, atribuindo à sociedade civil o estatuto de uma terceira esfera, ao lado do Estado e do mercado. Nesse contexto, a participação da sociedade civil se amplia no interior do Estado, onde diversos aparelhos privados de hegemonia passam a divulgar a ideia de gerenciar de forma mais flexível e rentável as políticas públicas sociais. Apesar da via neoliberal ter sido aberta no breve governo do presidente Fernando Collor, foi, sobretudo, a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso que se aprofundaram as

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políticas e jurídicas orientadas pelo do Consenso de Washington em conformidade com o FMI e o Banco Mundial. (LEHER, 2010) Sendo assim, este modelo se consolidou a partir da contrarreforma2 do Estado de 1995, com a criação do Ministério da Administração Reforma do Estado (MARE), chefiado por Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro na gestão do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. A Reforma Gerencial do Estado e se materializou no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), segundo Bresser Pereira (1997: 18-19), os componentes básicos da reforma do Estado dos anos de 1990, são: (a) a delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal através de programas de privatização, terceirização e “publicização; (b) a redução do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário através de programas de desregulação [...] (c) o aumento da governança do Estado, ou seja, da sua capacidade de tornar efetivas as decisões do governo, através do ajuste fiscal, que devolve autonomia financeira ao Estado, da reforma administrativa rumo a uma administração pública gerencial; (d) o aumento da governabilidade.

A reforma educacional do governo Cardoso foi um desdobramento do contexto mais amplo da Reforma do aparelho do Estado, pois “a questão educacional” foi definida como questão de eficiência do sistema de ensino e esta foi fortemente referida à questão gerencial do setor educacional e da escola. Neste sentido, os sistemas escolares foram submetidos ao um processo de privatização de novo tipo, isto é, a lógica empresarial passa a permear na instituição pública de modo a constituir a sua cultura. Nessa conjuntura, todo o processo de produção pedagógica foi submetido à lógica do mercado: gestão escolar, relações ensino-aprendizagem, conteúdos programáticos, princípios pedagógicos do currículo e avaliação dos resultados. (SANTOS, 2012). Na educação básica pública, essa relação com mercado se deu por meio de parcerias público–privadas na formulação de novos modelos de gestão do trabalho escolar. No contexto nacional, este processo tem se materializado na insurgência de novos modelos de gestão do trabalho escolar, entre estes modelos, foi elaborado e vem sendo difundido no país a “Gestão Integrada da Escola” (GIDE), formulada pelo INDG, atual Falconi Consultores de Resultado.

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O conceito de contrarreforma é utilizado para compreender as alterações realizadas no Estado, a partir da década de 1990, tinha o objetivo de flexibilizar, quando não retirar, os direitos trabalhistas e sociais conquistados no processo de ampliação estatal pós-1930.

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O Instituto teve origem na Fundação Cristiano Ottoni (FCO), na Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas, que, na década de 1980, o grupo de engenheiros, em especial, Vicente Falconi e José Martins de Godoy iniciou o movimento Qualidade Total com a ajuda de engenheiros japoneses da Union of japanese Scientistist and Engineers (JUSE). A FCO foi o principal organismo da sociedade civil a formular e difundir programas de Gestão da Qualidade total, no contexto brasileiro no final da década de 1980. No início da década de 1990, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por meio de seus intelectuais, assimilaram as principais ideias difundidas por Falconi e Godoy, adaptando-as para o campo educacional. Para essa agência da sociedade política, qualquer esforço que proporcionasse à melhoria da qualidade na educação deveria ser no sentido de modernizar a gestão da educação, por meio da gestão da qualidade total. Dessa forma, as primeiras experiências com o gerencialismo aplicado à gestão das escolas públicas foram no estado de Minas Gerais ainda na década de 1990. Foi nesse período, que o governo de Hélio Garcia, do Partido das Reformas Sociais – PRS, implementou o Programa de Qualidade Total em Educação (PQTE), o qual foi concebido em 1992 pela Fundação Cristiano Ottoni (FCO), seguindo orientações teóricas do Controle da Qualidade Total (CQT) da gestão japonesa. Em 1997, com a necessidade de ampliar a sua atuação e atender à enorme demanda de empresas que procuravam por consultoria em gestão e necessitavam de novos patamares de resultados, foi criada a Fundação de Desenvolvimento Gerencial (FDG), com a finalidade de difundir as melhores técnicas e metodologias gerenciais existentes na época, sobretudo o método PDCA, conhecido também como ciclo de Shewhart ou ciclo de Deming, foi introduzido no Japão após a guerra, idealizado por Shewhart e divulgado por Deming, quem efetivamente o aplicou. O ciclo de Deming tem por princípio tornar mais claros e ágeis os processos envolvidos na execução da gestão, como por exemplo na gestão da qualidade, dividindo-a em quatro principais passos (Planejar, Checar, Executar e Agir) Foi a partir de 2003, que a FDG passou a atuar somente em projetos sem fins lucrativos, prestando serviços a instituições escolares carentes. Nesse momento, foi fundado o Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), organização que se tornou líder em consultoria de gestão com foco em resultados no Brasil. Em 2001, o INDG junto a Fundação Brava (órgão financiador) iniciou um projeto piloto de gerenciamento da qualidade total, em algumas escolas estaduais do Ceará, conhecido como Programa de Modernização e Melhoria da Educação Básica 1081

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(PMMEB). O PMMEB foi desenvolvido em duas vertentes: uma direcionada a área pedagógica e outra ao programa 5S. Foi nesse contexto que se desenvolveu o sistema de Gestão Integrada da Escola (GIDE). A GIDE foi formulada a partir de um estudo minucioso da interface de três instrumentos de planejamento e acompanhamento (Projeto Político Pedagógico, Plano de Desenvolvimento da Escola e Programa de Modernização e Melhoria da Educação Básica), os intelectuais do INDG buscaram a construção de único instrumento de gestão com foco na melhoria do processo ensino e aprendizagem e consequentemente, em resultados, procurando diminuir a dispersão de energia e talento devido ao uso de diferentes instrumentos de gestão, como também viabilizar uma melhor utilização dos recursos existentes acompanhamento e avaliação de planos e resultados de forma integrada; implementação de ações corretivas em tempo hábil e padronização de melhores práticas. Em 2011, Falconi rompeu com Godoy e fundou Falconi Consultores de Resultados, por sua vez Godoy criou o Instituto Áquila. O modelo de gestão do trabalho da Falconi tem sido incorporado na administração pública, através de convênios firmados entre a organização privada e estados da federação. Sendo assim, a partir do quadro teórico-metodologico proposto por Antonio Gramsci, o INDG é analisado, neste trabalho, como um aparelho privado de hegemonia, exemplo de articulação da classe dominante para manutenção de hegemonia. O que é possível verificar a partir do mapeamento da Governança deste “suporte material da ideologia” gerencial. O conselho administrativo, da Falconi Consultores de Resultado, antes INDG, é composto por um presidente, o próprio Vicente Falconi Campos, um vice-presidente Edson Bueno, fundador da AMIL e três conselheiros, Carlos Alberto Sicupira sócio-fundador da 3G capital, Marcel Hermann Telles, também da 3G capital e Pedro Moreira Salles, presidente do Itau-Unibanco. Desse modo, a partir deste mapeamento compreende-se que se trata de diferentes representantes de frações da classe dominante brasileira (Comercial, Industrial e Bancária), compondo um único aparelho privado de hegemonia. Dessa forma, os intelectuais orgânicos desta classe são responsáveis pela inserção dos interesses de suas respectivas frações no interior das agências da sociedade política, como modo de obter a direção das políticas públicas. (LAMOSA, 2014).

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Os principais intelectuais orgânicos INDG são os engenheiros Vicente Falconi e José Martins Godoy, atual Áquila e do novo modelo de gestão do trabalho escolar implementado a partir da GIDE é Maria Helena Pádua Godoy, também Áquila. Assim o gerencialismo, materializado na GIDE, é entendido, como uma ideologia, isto é, “uma concepção de mundo, que se manifesta em todas as manifestações de vida individuais e coletiva [...] que organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc”. (GRAMSCI, 1979, p-p.16-62). Desse modo, o papel da empresa de consultoria Falconi Consultores de Resultado no contexto da Reforma gerencial da administração pública é inserir seus intelectuais orgânicos no interior de agências da Sociedade Política para divulgar o gerencialismo nas escolas públicas e assim por meio da hegemonia conservar as relações sociais de produção capitalista. A implementação e desenvolvimento do programa “gestão integrada da escola” na rede estadual de ensino do Rio de Janeiro Em 2007, Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) do governo federal, assimilou cinco metas: a) toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola; b) toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos; todo aluno com aprendizado adequado à sua séria; todo jovem de 19 anos com o Ensino Médio concluído; investimento em Educação ampliado e bem gerido, para atender as necessidades mínimas de aprendizagem propostas pelo movimento empresarial Todos pela Educação para serem cumpridas até 2022. Segundo Leher (2010), é a influência empresarial, no contexto do governo Lula é sem paralelo na história da educação brasileira e isso significa, concretamente, que as agências do capital estão incidindo sobre a educação popular de maneira inédita. Esse grupo de empresários originou-se do “Movimento Brasil Competitivo” (MBC), criado em 2001. O MBC, na ocasião também presidido pelo empresário Jorge Gerdau Johannpeter, que tem uma longa relação de parceria em projeto de modernização da administração pública com Vicente Falconi e o INDG. No início de 2007, Sérgio Cabral, logo após de ser eleito governador do Rio de Janeiro pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) aderiu ao Programa Modernizando a Gestão Pública (PMGP), do Movimento Brasil Competitivo (MBC). O trabalho começou pela área fiscal. Na Secretaria da Fazenda e na Procuradoria Geral do Estado, para aumentar a arrecadação. E na Secretaria de Planejamento e Gestão, para redução de custos. 1083

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A parceria do INDG com a SEEDUC foi iniciada em setembro de 2010, logo após a divulgação do ranking do IDEB de 2009, quando o resultado do Ensino Médio deixara a rede estadual na penúltima posição do país. Para organizar o “choque de ordem,” na educação Cabral nomeou para o cargo de secretário de educação, no lugar da analista de sistema Tereza Cristina Porto Xavier, o economista e financista Wilson Risolia Rodrigues. A GIDE é definida pela Secretaria de Estado de Educação d Rio de Janeiro (2011) como o sistema de gestão para o conjunto de unidades escolares da rede estadual que contempla os aspectos estratégicos, políticos e gerenciais inerentes à área educacional com foco nos resultados tendo como referência as metas do IDEB, estabelecidas pelo Ministério da Educação (SEEDUC, 2011). Para dar início do Programa de Educação do Estado, em fevereiro de 2011, a SEEDUC e o INDG selecionaram e treinaram um grupo de 250 professores da própria rede que passaram a exercer o cargo de Integrantes de Grupo de Trabalho (IGTs)93. A partir de 2012, a parceria entrou numa nova etapa e o INDG transferiu parte de suas atribuições iniciais à SEEDUC. Disto, se originaram duas alterações: os IGTs passaram a compor uma carreira de estado com regime jurídico próprio, transformando-se em Agentes de Acompanhamento de Gestão Escolar, e o GTT tornou-se num grupo permanente denominado Comitê da GIDE. Assim, a implementação da GIDE depende, sobremaneira, da integração do AAGE com a comunidade escolar, e a regularidade das “visitas” dilui o estranhamento e a tensão que podem advir da intervenção da secretaria de educação nas escolas. Dessa forma, AAGE poder ser analisado como intelectuais orgânicos do tipo urbano: Os intelectuais de tipo urbano cresceram juntamente com a indústria e são ligados às suas vicissitudes. A sua função pode ser comparada à dos oficiais subalternos no exército: não possuem nenhuma iniciativa autônoma na elaboração dos planos de construção; colocam em relação, articulando-a, a massa instrumental com o empresário, elaboram a execução imediata do plano de produção estabelecido pelo estado-maior da indústria, controlando suas fases executivas elementares. Na média geral, os intelectuais urbanos são bastante estandartizados; os altos intelectuais urbanos confundem-se cada vez mais com o autentico estado-maior industrial. (GRAMSCI, 2001, p.13)

O Sistema de Gestão Integrada da SEEDUC-RJ é iniciado pela formulação do “Marco Referencial” de cada unidade escolar, composto pelo “marco situacional”, “marco doutrinal” e pelo “marco operativo”. O desempenho das escolas é medido pelo Índice de Formação de Cidadania e Responsabilidade Social (IFC/RS) formado pelas avaliações interna e externa. Com o objetivo de acompanhar a avaliação da rede estadual do Rio de Janeiro, foi criado o Índice de 1084

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Desenvolvimento da Educação do Rio de Janeiro (IDERJ), em 2013. O IDERJ é a referência do Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ) Em relação ao IF, o SAERJ apreende as informações a partir do programa “Conexão”, através do qual professores e diretores de escolas preenchem dados e informações. Em relação ao IDERJ, o governo submete os alunos dos 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e dos três anos do Ensino Médio a prova denominada como “Saerjinho”. Desde a Portaria Nº 174, em 26 de agosto de 2011, os docentes estão impelidos a assimilar o SAERJ, introduzido pela GIDE, como instrumento de avaliação dos alunos. Um dos aspectos centrais no sistema de gestão instituído através da GIDE é a política de “remuneração variável” para os docentes, instituída pela Resolução 4669, de 4 de fevereiro de 2011. Embora a SEEDUC-RJ negue que o bônus esteja vinculado à GIDE ou ao IFC-RS das escolas, no Planejamento Estratégico a “remuneração variável” é apresentada como bonificação de acordo com o desempenho da unidade escolar. Segundo a política de bonificação citada da SEEDUC-RJ, “o sistema de bonificação vai recompensar os servidores da Educação por bons resultados e trabalho em equipe. É a valorização dos profissionais ligados diretamente a melhoria dos indicadores” (SEEDUC, 2011). Lamosa e Macedo (2015), chamam atenção para o caráter contraditório da implantação da GIDE no Rio de Janeiro, segundo os autores o programa tem se desdobrado em dois movimentos: de um lado o governo estadual tem divulgado os resultados que possibilitou o avanço para segunda posição no ranking do Estado no IDEB, como reflexo da implantação da GIDE e de outro é possível verificar que esse novo modelo de gestão de trabalho escolar tem sido responsável pela acentuação da precariedade e desprofissionalização do trabalho docente e acrescentando pelo sucateamento das escolas públicas. Atualmente o ex-secretário de educação Wilson Risolia foi contratado pela Falconi Consultores de Resultado como líder do setor educacional, o que mostra a inserção de agentes da sociedade política na interior da sociedade civil tornando ainda mais complexa as relações sociais no Estado Ampliado brasileiro. Coincidentemente com sua saída da pasta da educação, o estado do Rio de Janeiro atravessa uma das maiores crises da história, o que levou os docentes iniciar uma greve que durou cinco meses e os discentes a um processo de ocupação das escolas, como uma forma de denunciar a precarização da infraestrutura e do ensino. Considerações finais 1085

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Sendo assim, este trabalho analisou o INDG como um aparelho privado de hegemonia que buscou inserir seus intelectuais no interior da sociedade política, a fim de dar direção às políticas publicas educacionais, para dar materialidade a pesquisa investigou a implementação e desenvolvimento do sistema de Gestão Integrada da Escola na rede de ensino do estado do Rio de Janeiro. O estudo concluiu que análise da inserção da GIDE na SEEDUC permitiu entender a relação entre a insurgência de novos modelos de gestão do trabalho escolar no contexto da reforma gerencial da administração pública. Ao fazer o mapeamento desse organismo da Sociedade Civil, a qual classe ou fração de classe pertence este aparelho privado de hegemonia, como, também, o seu projeto de divulgação da ideologia gerencial na administração pública, sobretudo, na educação. Deste modo, conclui-se que a GIDE instituiu nas escolas novas formas de controle do trabalho docente, por meio de plano de metas, avaliações externas e currículos minimalistas, o que despolitiza as escolas e favorece a dominação de classe. Além de intensificar a precarização do trabalho docente. Desse modo, se faz necessário construir um modelo contra-hegemônico de gestão escolar, que vise à formação do homem integral, conforma analisou Gramsci. Referencias Bibliográficas BIANCHI, Álvaro. O Laboratório de Gramsci. Filosofia, História e Política. São Paulo: Alameda, 2008. BRESSER PEREIRA, L.C. A Reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997. (Cadernos MARE da reforma do Estado; v. 1). 58p. COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo do seu pensamento político. Rio de Janeiro:Campus, 1992. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Os intelectuais, O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 2001. ___________ . Cadernos do Cárcere. Vol.3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MACEDO, Jussara Marques de. & LAMOSA, Rodrigo de Azevedo Cruz. A regulação do trabalho docente no contexto da Reforma Gerencial da Educação. Revista Contemporânea de Educação, Vol. 10, n.º 2, pp. 133-152, Jul.-Dez. 2015. 1086

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_________Estado, classe social e educação: uma análise crítica da hegemonia do agronegócio. 2014. 434 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, 2014. LEHER, Roberto. “25 anos de Educação Pública: notas para um balanço do período”. In: Trabalho, educação e saúde: 25 anos de formação politécnica no SUS. Rio de Janeiro: EPSJV, 2010. p.p 29-72 MENDONÇA, Sonia R. de. O Estado Ampliado como Ferramenta Metodológica. Marx e o Marxismo v.2, n.2, jan/jul 2014. SANTOS, Aparecida de Fátima Tiradentes dos. Pedagogia do mercado: neoliberalismo, trabalho e educação no século XX. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2012. pp.11-67

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A REAÇÃO SINDICAL AOS NOVOS MODELOS DE GESTÃO DO TRABALHO ESCOLAR: hegemonia e contra hegemonia no Rio de Janeiro Carlos Maurício Franklin Lapa1

RESUMO O presente trabalho analisa a reação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE-RJ) ao novo modelo de gestão do trabalho escolar na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro. O trabalho toma como objeto de análise a ação sindical na organização e luta dos trabalhadores contra a reforma gerencial do Estado brasileiro, tomando como referência analítica a contribuição do pensamento gramsciano. O objetivo é verificar a pertinência das categorias gramscianas “Estado Ampliado”, “Hegemonia”, “Aparelho Privado de Hegemonia” para a compreensão da reação sindical ao Programa “Gestão Integrada da Escola” (GIDE), implementado na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro. Neste sentido, a pesquisa analisou os cadernos de tese dos congressos sindicais, os jornais sindicais e o material de propaganda produzidos pelo SEPE-RJ, no período de 2011 a 2016, ou seja, desde o primeiro ano de implantação da GIDE na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro, até a mais recente greve liderada pelo sindicato. A análise dos dados nos leva a conclusão de que a reação sindical tem se limitado à crítica aos fenômenos reflexivos do novo modelo de gestão do trabalho escolar. Esta limitação está evidenciada nas formulações presentes em diversas teses congressuais que centraram suas críticas nos aspectos fenomênicos da GIDE: plano de metas, Programa Conexão, Sistema de Avaliação da Educação, Programa de Bonificação. Este aspecto, por consequência, se expressa nos materiais oficiais, tais como o Jornal Diário de Classe e inúmeros panfletos produzidos pelo SEPE-RJ e distribuído na ocasião das greves realizadas no período investigado. Enfim, a reação sindical ao novo modelo de gestão do trabalho escolar, embora crítica e combativa, não apresenta contribuição substantiva para uma ação contundente e bem fundamenta, capaz de disputar o consenso e apresentar para a sociedade um projeto contra hegemônico de gestão do trabalho escolar alternativo à GIDE, voltado para os interesses históricos da classe trabalhadora. Introdução 1

Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

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O presente trabalho analisa a reação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEPE-RJ) ao novo modelo de gestão do trabalho escolar na Rede Estadual de Ensino do Rio de Janeiro. O trabalho toma como objeto de análise a ação sindical na organização e luta dos trabalhadores contra a reforma gerencial do Estado brasileiro. Foi estabelecida como referência empírica a formulação realizada por intelectuais, coletivos e individuais, responsáveis pela inserção dos novos modelos de gestão do trabalho escolar nos sistemas estaduais e municipais de ensino no país. Para coleta de dados, utilizou-se de revisão de literatura e de análise de fontes bibliográficas primárias e secundárias. O quadro conceitual que orientou as análises produzidas neste artigo tem sua origem nos debates que vêm identificando a difusão de novos modelos de gestão do trabalho escolar no Brasil enquanto um desdobramento da reforma gerencial do Estado brasileiro, iniciada no país ainda nos anos 1990, que inseriu na administração pública instrumentos de controle sustentados pelo argumento de aumento da eficiência e produtividade. O modelo gerencial de administração pública, autorreferenciado na competitividade e na racionalização dos recursos materiais e humanos, vem se desdobrando na racionalização e flexibilização do trabalho nos órgãos e instituições estatais; a instituição de contrato temporário de trabalho, terceirização e o trabalho voluntário; a desregulamentação de direitos dos servidores públicos; parcerias entre o setor público e privado, desde a formulação até a implementação de serviços públicos, incluindo aqueles ligados às agências estatais responsáveis pela educação pública. A reforma gerencial do Estado inseriu novos modelos de gestão do trabalho, sob a justificativa de ser fundamental para a eficiência e qualidade do serviço público. Na educação pública, a reforma na gestão do trabalho escolar vem produzindo como efeito, a reorganização nas estratégias educacionais, tendo como referência o modelo gerencial de controle de resultados e racionalização dos recursos humanos e materiais. A Reforma Gerencial do Estado e seus desdobramentos na educação pública A evolução dos sistemas de ensino é determinada no período contemporâneo pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas e pelas relações de produção, sendo seus princípios definidos pela correlação de forças políticas em conflitos e consensos, organizados na Sociedade Civil. Neste sentido, as políticas públicas educacionais, 1089

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incluindo aquelas dirigidas pela Reforma Gerencial do Estado brasileiro, são compreendidas neste trabalho enquanto a condensação das lutas travadas em uma sociedade organizada em suas bases econômicas e sociais pelo sistema do capital, com suas contradições e crises. A crise estrutural do sistema do capital tem sua origem desencadeada a partir da década de 1970. A crise estrutural do capital, segundo István Mészáros (2009), demandou um duplo movimento por parte da burguesia, objetivando a recomposição das taxas de acumulação. Na esfera estrutural, as relações de produção instituídas pelo fordismo foram progressivamente substituídas por novas formas de organização do trabalho, num estágio denominado por Harvey (2003) como “acumulação flexível”. Na esfera superestrutural, vem sendo pautada uma profunda reforma do Estado, a partir da reorganização dos mecanismos de mediação dos conflitos entre capital e o trabalho, tendo por referência um “novo modelo gerencial de administração pública”, pautado na competitividade e na racionalização dos recursos materiais e humanos. Neste novo modelo de gestão do trabalho, destacam-se a racionalização e a flexibilização dos contratos de trabalho (contrato temporário de trabalho, terceirização e trabalho voluntário); a desregulamentação de direitos dos servidores públicos; as parcerias entre os setores público e privado na implementação de serviços públicos (venda de pacotes educacionais, projetos e materiais didáticos), a partir da noção de público-não estatal. Neste sentido, os critérios de qualidade e de produtividade do serviço público passam a ser referenciados pelas estratégias de gestão aplicadas no mercado, sob o argumento de que os modelos difundidos no meio empresarial forneceriam as melhores formas de aplicação de recursos públicos, sobretudo em áreas como educação e saúde. Neste sentido, a emergência dos novos modelos de gestão do trabalho na administração pública se estendeu à educação pública sob o argumento de que a qualidade das escolas seria atingida através do aumento da produtividade do trabalho escolar. A insurgência dos novos modelos de gestão do trabalho na educação ocorre no contexto em que a escola pública brasileira vem sendo ampliada em, pelo menos, dois sentidos: tanto no universo de matrículas nos sistemas estaduais e municipais de ensino, quanto em relação à jornada do tempo escolar. Segundo Algebaile (2009), a escola pública, desde os anos 1990, vem se “ampliando para menos” (idem, p. 68), assumindo inúmeras 1090

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funções, sem um proporcional aumento das condições (financiamento, infra-estrutura, etc). Neste sentido, os novos modelos de gestão do trabalho escolar se insurgem com a promessa de realizar na educação a reforma administrativa necessária para o aumento da produtividade, instituir novas formas de parceria e realização de novas formas de trabalho (trabalho voluntário, por exemplo), destinando às escolas o papel de assumir o protagonismo na busca por formas alternativas de financiamento (parcerias públicoprivadas) em busca da ampliação da jornada escolar. Este processo pode ser verificado em políticas públicas que objetivam a ampliação da jornada escolar no Brasil, a partir da instituição de formas novas de contrato de trabalho, ou mesmo trabalho voluntário, como é o caso do Programa Mais Educação (Portaria Interministeriais nº 17/2007 e nº 19/2007), instituído pelo governo Federal, que ampliou nos últimos anos o tempo de jornada escolar através da criação do contra turno nas escolas. A ampliação da jornada escolar vem sendo prevista nos últimos vinte anos, segundo Costa (2015), desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB nº 9.394/96, art. 34) que propôs a conjugação de esforços para que as redes escolares urbanas estabelecessem um regime de escolas de tempo integral (LDB nº 9.394/96, art. 87, § 5º). Quanto ao financiamento, desde o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), em vigor desde 2007 (Lei nº 11.494), garantiu recursos adicionais para matrículas em tempo integral. Em 2007, foi lançado o Programa Mais Educação (PME), “principal política do governo federal para o ensino fundamental, que visa ampliar os tempos, espaços e oportunidades de aprendizagem de crianças e adolescentes de escolas em situação de vulnerabilidade.” (COSTA, 2015, p. 3) Nas Portarias Interministeriais que instituíram o Mais Educação (PI nº 17/2007 e PI nº 19/2007) é possível identificar que o programa institui nas escolas públicas o trabalho voluntário, baseado na lei do voluntariado (nº 9.608/1998) que considera que o serviço voluntário é atividade não remunerada e sem vínculo empregatício, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social (art. 1º). Entre as ações socioeducativas indicadas para o contraturno escolar estão as “oficinas”, ministradas por voluntários denominados “oficineiros”, que recebem uma ajuda de custo mensal (Idem). O programa Mais Educação, longe de ser exceção, corresponde, enquanto

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política pública, a uma conjuntura de insurgência dos novos modelos de gestão do trabalho escolar no Brasil. Fundamentos Teóricos e Históricos dos Novos Modelos de Gestão do Trabalho Os desdobramentos da Reforma Gerencial do Estado na Educação Básica brasileira se deram a partir da interseção entre as orientações dos organismos internacionais, cujas referências documentais se multiplicaram durante a década de 1990, a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990, e a elaboração de intelectuais, individuais e coletivos, responsáveis por realizar a mediação entre a formulação internacional e a realidade brasileira. Esta parte do trabalho resulta da análise desta interseção, compreendendo que o processo de reforma gerencial que atravessou o Estado brasileiro resulta desta relação forjada no interior da classe dominante. Entre as referências documentais elaboradas a partir da conferência em Jomtien está o documento da Comissão Econômica Para América Latina e o Caribe (CEPAL, 1993) que, a partir da crise estrutural do capital e seu desdobramento - o desemprego estrutural, passa a associar a educação à promessa de equidade. Outra referência é o relatório da UNESCO (1996), conhecido como Relatório Jacques Delors. No Brasil, o marco regulador da reforma educacional foi o Plano Decenal de Educação (1993), elaborado ainda no governo do presidente Itamar Franco (1992-1994). Neste relatório, os intelectuais coletivos da reforma educacional afirmam que a “educação deve transmitir, de forma maciça e eficaz, cada vez mais saberes e saber-fazer evolutivos, adaptados à civilização cognitiva, pois são as bases das competências do futuro.” (DELORS, 2001). No que se refere aos teóricos responsáveis pela mediação entre os documentos de referência produzidos pelos organismos internacionais e a realidade brasileira, Guiomar Namo de Mello é um expoente, principalmente na difusão de uma formulação que associam os principais problemas educacionais e as desigualdades sociais à gestão da escola pública brasileira, ausência de instrumentos quantitativos de controle, baixo rendimento das instituições de ensino: “No Brasil, a tradução desses objetivos estratégicos em objetivos de gestão deveria ter, como ponto de partida, os problemas de má qualidade do ensino e baixo desempenho dos estabelecimentos escolares públicos, que têm levado a

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educação a reforçar as desigualdades sociais, mais do que a contribuir para compensá-las.” (MELLO, 2005, p. 64).

Outro importante intelectual na defesa da reforma da gestão do trabalho escolar que se destacou pela difusão de sua produção foi Sérgio Costa Ribeiro. Os professores, segundo Ribeiro (1994), cumpririam papel determinante para o rendimento das escolas, sendo necessário realizar uma reforma da gestão do trabalho do trabalho docente com o objetivo de aumentar a eficácia escolar e combater a cultura da reprovação que prejudica o fluxo escolar. No mesmo contexto da formulação dos intelectuais orgânicos da reforma gerencial, formam-se no país organizações empresariais responsáveis por difundir e defender a ampliação dos desdobramentos da reforma gerencial do Estado brasileiro na educação. Neste contexto, empresários reunidos em movimentos como “Brasil Competitivo” (MBC), organizado em 2001 sob a liderança do empresário Jorge Gerdau, e mais tarde no Movimento Todos Pela Educação, organizado, em 2006, por diversos empresários, maioria dos quais vinculados ao próprio MBC, formaram um bloco social, reunindo, em torno de uma mesma agenda, distintas frações de classe: banqueiros, industriais, setor de serviços, investidores nacionais e internacionais. Sob o lema “Todos pela educação”, os empresários passaram a se autodenominar – também com o apoio de governos e demais segmentos da sociedade civil, alguns dos quais representantes da classe dos trabalhadores – como os salvadores da “escola falida”. A escola que formará este trabalhador de novo tipo, assim como a formação oferecida por esta instituição pública de ensino, deverá moldar sujeitos conformados ao “desemprego estrutural”, capaz de empreender e sobreviver às crises sucessivas do capital. O papel do trabalho docente nesta conjuntura torna-se incentivar a formação de futuros empreendedores (MACEDO & LAMOSA, 2015). Trabalho docente no contexto de ampliação da escola pública As propostas para o trabalho docente, principalmente aquelas oriundas dos intelectuais do capital (Banco Mundial, Unesco, Fundo Monetário Internacional, Programa para a Reforma Educacional na América latina/PREAL), têm produzido, segundo Macedo e Lamosa (2015), como desdobramento, os processos de desprofissionalização do trabalho docente. Neste sentido, diversos autores no campo da educação têm analisado as modificações que este processo tem acarretado na composição desta categoria em um

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contexto de ampliação da escola pública (SHIROMA, 2004; OLIVEIRA, 2000; MACEDO, 2011; SANTOS, 2012). No Proyecto Principal de Educación en América Latina y el Caribe - PRELAC (2002), atribui-se ao docente o protagonismo na tarefa de implementar a reforma e melhorar os indicadores escolares. Difunde-se a ideia de que a qualidade da educação depende dos professores; estabelece-se uma correlação entre preparação profissional dos professores e sua prática em sala de aula, cujo foco é o de elevar os indicadores de desempenho dos alunos. Sob a justificativa da elevação da qualidade da educação, almejase forjar o professor eficaz que “faz mais com menos” (SHIROMA, E.O.; EVANGELISTA, 2010). No PRELAC (2002), a intensificação da precariedade do trabalho docente nas últimas décadas é minimizada pelo discurso que sustenta que a profissionalização desses trabalhadores, os professores, deve estar associada à lógica das competências, da eficácia e dos saberes tácitos. Com isso, a profissionalização defendida no PRELAC (Idem) refere-se à lógica da desprofissionalização docente, ou seja, do enfraquecimento do caráter específico da profissão. Este movimento carrega em si, a fragilidade da formação (inicial e continuada), a perda de direitos e a precarização das condições de trabalho, a estandardização do trabalho e a exclusão dos professores no processo de formulação de políticas educacionais. A solução para superar a falta de reconhecimento social docente tem sido incentivada por meio de iniciativas exitosas como diferentes prêmios que são oferecidos segundo processos avaliativos do trabalho, bem como do rendimento do aluno. Ligado a esta questão, encontra-se o tema do desempenho docente, que traz em seu arcabouço outros fatores que estão a ele relacionados, como a questão da formação, dos recursos, da carreira, dos formadores e dos incentivos. Neste sentido, o objetivo dessa política é “semear o espírito de competição entre os professores, reforçado por meio da remuneração diferenciada por desempenho, buscando minar a solidariedade nessa categoria.” (SHIROMA, 2004, p. 10). Além disso, ao gestor escolar são atribuídas metas de eficiência e/ou eficácia, que muitas vezes encontram ressonância nas lutas por acesso e permanência nas escolas de educação básica. Ao invés de estarem submetidos à conformidade a procedimentos preestabelecidos, os gestores escolares e educacionais são convidados a se comprometer 1094

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com resultados. Instala-se, neste sentido, um modelo de gestão do trabalho escolar orientado por resultados e que objetiva obter melhorias mediante a reelaboração de práticas orientadas para o cumprimento de metas. A insurgência dos novos modelos de gestão do trabalho escolar, segundo Shiroma (2004), resulta de uma reforma educacional posta em prática em todo o mundo, que está pautada pelos princípios da gestão e que visa “transformar os diretores escolares em gerentes executivos”, ao mesmo tempo em que são vistos como “arrebanhadores de recursos e os professores, em técnicos” (SHIROMA, 2004, p. 11). Assim, a reforma educacional no Brasil tem seguido um processo mundializado que cria instrumentos para aprofundar a heteronomia do trabalho docente e, por consequência, a expropriação do conhecimento dos professores. (LEHER, 2010). . Os novos modelos de gestão do trabalho escolar criaram, segundo Macedo & Lamosa (2015), currículos reducionistas para a formação do trabalho docente, procedimentos tecnicistas, perda do controle e a separação entre concepção e execução, movimento percebido a partir dos anos de 1990, com as várias estratégias do capital para formar o trabalhador em uma sociedade do desemprego estrutural. Esta nova regulação renovou, segundo Oliveira (2004), duas teses muito difundidas no Brasil, destacadamente ao longo da década de 1980, sobre a desprofissionalização e a proletarização do trabalho docente. A principal implicação do novo modelo de regulação é a perda do protagonismo do educador na produção do conhecimento. Este é o principal aspecto que atualiza a formulação proposta por Oliveira (Idem). A instituição de metas, avaliações externas e a difusão de novos modelos de gestão contratados junto a fundações e institutos pelas secretarias estaduais e municipais de ensino retiram da escola pública e, principalmente, dos profissionais de ensino a autonomia para elaborar o projeto pedagógico das instituições públicas de ensino. Neste contexto, os professores vêm perdendo sua autonomia para conduzir o processo de ensino-aprendizagem, elemento indispensável à carreira docente, sendo cada vez mais orientados por exames externos elaborados para responder as avaliações do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) ou aquelas elaboradas por instâncias estaduais, como no Rio de Janeiro o Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ). Os 1095

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estudos mais significativos a respeito da reorganização do trabalho docente datam de duas décadas atrás. Foi nessa conjuntura que as teses de desprofissionalização e proletarização do magistério se popularizaram no debate acadêmico brasileiro. De acordo com Enguita (1991), um grupo profissional pode ser considerado como uma categoria autorregulada de pessoas que trabalham diretamente para o mercado, numa situação de privilégio monopolista. Nas últimas décadas, o trabalho docente, assim como a escola pública, assumiu as mais variadas funções que requerem deste profissional exigências que estão além de sua formação (SHIROMA, 2003). A escola pública tornou-se uma espécie de posto avançado de realizações de ações assistenciais, de caráter compensatório, englobando programas governamentais e ações voluntárias (ALGEBAILE, 2009). Estas conjunturas contribuem para um sentimento de desprofissionalização que se acentua com a perda da identidade profissional, resultando em uma reestruturação do trabalho docente, podendo alterar, inclusive, sua natureza e definição. (OLIVEIRA, 2004). Neste sentido, tem se proliferado, a partir desse contexto, distintas formas de precarização do trabalho docente: o aumento dos contratos temporários nas redes públicas de ensino, o arrocho salarial (a perda de poder aquisitivo real), o respeito a um piso salarial nacional, a inadequação ou mesmo ausência, em alguns casos, de planos de cargos e salários, o descumprimento dos tempos de atividades extraclasse, a perda de garantias trabalhistas e previdenciárias oriunda dos processos de reforma do Aparelho de Estado têm tornado cada vez mais agudo o quadro de instabilidade e precariedade do emprego no magistério público. A Gestão Integrada da Escola: novo modelo de regulação e a intensificação da precariedade do trabalho docente O desdobramento da contra-reforma do Estado na educação brasileira tem se materializado na insurgência de novos modelos de gestão do trabalho escolar. A partir destes modelos vem se instituindo no interior das escolas instrumentos de controle do trabalho sob o argumento do aumento da eficiência dos investimentos públicos em educação. Entre estes modelos de gestão do trabalho escolar, foi elaborado e vem sendo difundido no país a “Gestão Integrada da Escola” (GIDE), formulada pelo instituto Falconi.

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A GIDE foi largamente difundida no país, através de parcerias entre seus formuladores e as secretarias de estaduais de ensino, sendo instituído de forma diversificada em cada estado. Alguns estados vêm implementando a reforma gerencial da educação através do modelo da GIDE. O modelo GIDE foi elaborado por um grupo de intelectuais, organizados na Fundação de Desenvolvimento Gerencial (FDG). A FDG foi fundada em 1998 com a responsabilidade de difundir técnicas e metodologias gerenciais no país. Em 2003, a Fundação redirecionou sua atuação para projetos eminentemente assistenciais, sem nenhuma contraprestação financeira por parte das escolas. A FDG passou a atuar somente em projetos sem fins lucrativos, prestando serviços a instituições carentes. Naquele momento, foi fundado o Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG), organização que se tornou líder em consultoria de gestão com foco em resultados no Brasil. O INDG era uma sociedade anônima, de capital fechado, não familiar. A instituição era especializada na transferência de conhecimento gerencial voltados à obtenção de resultados nas organizações privadas (indústria e serviços) e públicas, incluindo diversas prefeituras, governos estaduais e no próprio governo federal. O INDG realizou consultoria em centenas de empresas privadas e órgãos públicos brasileiros, bem como em vários países, especialmente na América do Sul, América Latina, América do Norte e Europa. Desde outubro de 2012, o INDG passou a se chamar FALCONI Consultores de Resultado. A experiência da FALCONI no trabalho de consultoria na área pública tem se estendido a todos os entes da federação (federal, estadual e municipal) e Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Essa parceria público-privada tem sido responsável pela implantação de um sistema gerencial totalmente focado em resultados de curto, médio e longo prazos. Em quase todos os casos, o foco de atuação está em quatro frentes de trabalho: redução de despesas, identificação das “melhores práticas” e eliminação dos “desperdícios”; aumento da eficiência da arrecadação com técnicas modernas de análise e identificação de oportunidades para o combate à sonegação e omissões no recolhimento dos tributos (aumentar receitas sem aumentar impostos); aumento da eficiência operacional; planejamento estratégico com desdobramento de metas; e gerenciamento de projetos por meio de um método estruturado, padronizado e que garanta um bom planejamento e o atendimento dos prazos e orçamentos estabelecidos. 1097

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Em relação à educação pública, a FALCONI apresenta a GIDE como novo modelo gerencial de gestão do trabalho escolar. Em 2015, a GIDE vem sendo implementada nos seguintes estados: Ceará, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais, Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Ela é apresentada por seus formuladores como um modelo de gestão com base científica que contempla aspectos estratégicos, pedagógicos e gerenciais. No contexto mais amplo da reforma gerencial da educação, a GIDE é um dos modelos que atualmente vem sendo implementado nas redes estaduais e municipais, sob a justificativa da necessária reforma da administração pública em direção a uma gestão mais eficiente, com o estabelecimento de metas e instrumentos de controle sobre o trabalho escolar, capaz de assumir a histórica tarefa de desenvolvimento da educação (LAMOSA; MACEDO, 2015). No Rio de Janeiro, a GIDE foi apresentada como novo modelo de gestão da rede estadual de ensino pela SEEDUC, em 2011, após ter sido divulgado, um ano antes, o ranking dos estados no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). O Estado ficou na vigésima sexta posição e o novo modelo foi apresentado como a política pública para a melhoria na avaliação externa. A GIDE é definida pela SEEDUC-RJ (2011) como o sistema de gestão para o conjunto de unidades escolares da rede estadual que contempla os aspectos estratégicos, políticos e gerenciais inerentes à área educacional com foco nos resultados, tendo como referência as metas do IDEB, estabelecidas pelo Ministério da Educação (SEEDUC, 2011). A principal intelectual do novo modelo de gestão do trabalho escolar implementado a partir da GIDE é Maria Helena Pádua Godoy, tendo escrito todos os livros de referência distribuídos nas escolas públicas da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro pela SEEDUC-RJ. Não foi possível, em função da delimitação proposta na pesquisa que resultou neste artigo, verificar se os mesmos livros foram distribuídos nos demais estados em que a GIDE vem sendo desenvolvida. Em “Gestão Integrada da Escola” (GODOY. 2009) é possível identificar que há na formulação do novo modelo de gestão do trabalho escolar uma clara centralidade nas estratégias que visam atender as demandas provocadas a partir das avaliações internacionais produzidas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A GIDE, enquanto um modelo de gestão do trabalho escolar, instituiu nas redes de ensino em que foi implementada um sistema de gestão organizado a partir de instrumentos 1098

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de verificação de desempenho das escolas públicas. No Rio de Janeiro, o Sistema de Gestão Integrada da SEEDUC-RJ é iniciado pela formulação do “Marco Referencial” de cada unidade escolar, composto pelo “marco situacional”, “marco doutrinal” e pelo “marco operativo”. O desempenho das escolas é medido pelo Índice de Formação de Cidadania e Responsabilidade Social (IFC/RS) formado pelas avaliações interna e externa, capacidade de auto sustentação, condições ambientais e aspectos relacionados ao processo de ensinoaprendizagem. Com o objetivo de acompanhar a avaliação da rede estadual do Rio de Janeiro, foi criado o Índice de Desenvolvimento da Educação do Rio de Janeiro (IDERJ), em 2013. O IDERJ é a referência do Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ), sendo definido a partir da multiplicação de dois índices: índice que indica o tempo médio dos alunos para a conclusão de um nível de ensino (IF) e índice que indica a proficiência dos alunos na apreensão das competências ao final de um nível de ensino (ID). Em relação ao IF, o SAERJ apreende as informações a partir do programa “Conexão”, através do qual professores e diretores de escolas preenchem dados e informações. Em relação ao ID, o governo submete os alunos dos 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e dos três anos do Ensino Médio a prova denominada como “Saerjinho”. Desde a Portaria Nº 174, em 26 de agosto de 2011, os docentes estão impelidos a assimilar o SAERJ, introduzido pela GIDE, como instrumento de avaliação dos alunos. A avaliação interna é composta por quatro itens: índice de aprovação de alunos sem progressão parcial (dependência), índice de permanência e evasão escolar, índice de alunos alfabetizados no 3º ano do Ensino Fundamental e adequação idade série. Destaca-se, na avaliação interna, a ênfase na regulação do fluxo escolar, aspecto considerado fundamental na Reforma Gerencial da Educação, devido ao custo considerado financeiramente alto de uma repetência. Um dos aspectos centrais no sistema de gestão instituído através da GIDE é a política de “remuneração variável” para os docentes, instituída pela Resolução 4669, de 4 de fevereiro de 2011. Embora a SEEDUC-RJ negue que o bônus esteja vinculado à GIDE ou ao IFC-RS das escolas, no Planejamento Estratégico a “remuneração variável” é apresentada como bonificação de acordo com o desempenho da unidade escolar. O servidor que conseguir atingir o limite máximo das metas poderá receber até três vencimentos-base a mais por ano (SEEDUC-RJ, 2011). 1099

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A avaliação externa proposta pelo IFC/RS é medida pelo desempenho dos alunos na Prova Brasil, no caso das turmas de 5º e 9º ano do ensino fundamental, no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e no Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (SAERJ). A avaliação do item “Ensino-aprendizagem” no IFC/RS dividese entre quatro segmentos: gestores, professores, alunos e pais. Em relação aos gestores o índice propõe medir a “lotação completa do quadro de professores” em cada regional administrativa e pedagógica. Em relação aos docentes os itens avaliados são mais numerosos, propondo medir: o registro das práticas bem-sucedidas na sala de aula, a execução dos planos de curso, a frequência, atratividade das aulas e o cumprimento do currículo mínimo definido para cada disciplina e enviado às escolas no início do ano. A avaliação dos alunos mede, além do desempenho nas avaliações externas (Prova Brasil, Saerjinho e ENEM), a capacidade da escola na recuperação dos alunos e a frequência destes nos dias letivos. No caso do SAERJ, no Rio de Janeiro, a SEEDUC-RJ criou o “Currículo Mínimo”, enviando para as escolas e professores uma proposta curricular minimalista que deve servir de referência para as avaliações externas. Em relação aos pais o IFC-RS propõe medir a participação destes nas reuniões escolares. A implementação da GIDE no Rio de Janeiro tem se desdobrado em dois movimentos contraditórios. Por um lado, o governo estadual, responsável pela execução do modelo gerencial de gestão do trabalho escolar, tem divulgado os resultados que possibilitou o avanço para a segunda posição no ranking dos Estados no IDEB, como reflexo do exitoso desenvolvimento da GIDE na rede de ensino. Por outro lado, no entanto, é possível verificar que o modelo gerencial de gestão tem tido desdobramentos em relação ao trabalho escolar, sendo responsável pela intensificação da precariedade do trabalho docente. Conclusão O artigo conclui que os desdobramentos da reforma gerencial do Estado na Educação Básica brasileira se deram a partir da interseção entre as orientações dos organismos internacionais e a realidade educacional do país. A principal implicação do novo modelo de gestão do trabalho escolar é a perda do protagonismo dos professores. Este é o principal aspecto que atualiza as teses de proletarização e desprofissionalização

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docente. Neste contexto, os professores vêm perdendo sua autonomia para conduzir o processo de ensino-aprendizagem, elemento indispensável à carreira docente. Nas últimas décadas, o trabalho docente, assim como a escola pública, assumiu as mais variadas funções que requerem deste profissional exigências que estão além de sua formação. Tais exigências contribuem para um sentimento de desprofissionalização que se acentua com a perda da identidade profissional, resultando em uma reestruturação do trabalho docente, alterando, inclusive, sua natureza e definição. É importante destacar que em momento algum na história da carreira docente no Brasil os professores tenham gozado da autonomia profissional desejada e pautada nos principais movimentos em defesa da educação pública. Entretanto, a investigação realizada sobre os desdobramentos dos novos modelos de gestão do trabalho escolar sobre o trabalho docente identificou que estes estiveram associados à introdução na administração pública, incluindo as próprias instituições de ensino da Educação Básica, de novos instrumentos de controle do trabalho. Referenciais Bibliográficas ALGEBAILE, Eveline. Escola pública e pobreza no Brasil: ampliação para menos. Rio de Janeiro: Lamparina. Faperj, 2009 BRASIL. MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO (MARE). Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília (DF): Câmara da Reforma do Estado, 1995. Disponível em: < http://www. bresserpereira.org.br/ documents/ mare/ planodiretor/ planodiretor.pdf>. Acesso em: 13/05/2015. BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. _______. Lei n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o serviço voluntário. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9608.htm, acessado a 18 de março de 2015. _______. Portaria Interministerial n. 17, de 20 de abril de 2007. Institui o Programa Mais Educação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2007. _______. Portaria Interministerial n. 19, de 20 de abril de 2007. Estabelece as diretrizes para a cooperação entre o Ministério da Educação e o Ministério do Esporte, com o

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objetivo de definir critérios visando a construção de quadras esportiva ou infra- estrutrura esportiva em espaços escolares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2007 CEPAL. UNESCO. MEC. Educação e conhecimento: eixo da transformação produtiva com eqüidade. 1993. OTTONE, Ernesto (uma visão sintética). MEC/INEP: Brasília (DF), 1993. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/me001682.pdf >. Acesso em: 17/05/2015. COSTA, Regis A. da. Ampliação da jornada escolar e o negócio da educação: a atuação do CENPEC (1993-2006). Anais da 37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08 de outubro de 2015, Pp. 1-18, UFSC – Florianópolis. DELORS, Jacques (Org.). Educação um tesouro a descobrir: Relatório da UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (1996). 6ª Ed. São Paulo: Cortez; Brasília: MEC: UNESCO, 2001. ENGUITA, M.F. A ambigüidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarização. Revista Teoria e Educação, n. 4, p. 1127-1144, 1991. LAMOSA, Rodrigo de Azevedo Cruz. Estado, classe social e educação: uma análise crítica da hegemonia do agronegócio. 2014. 434 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, 2014. LEHER, Roberto. 25 anos de educação pública: nota para o balanço de um período. In Trabalho, educação e saúde: 25 anos de formação politécnica no SUS/ Organizado por Cátia Guimarães, Isabel Brasil e Márcia Valéria Morosini. Rio de Janeiro:

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no

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MESA 21: A SOCIEDADE CIVIL DISPUTA A EDUCAÇÂO BÁSICA Coordenação: Marco Vinícius Moreira Lamarão (PPGE-UFRJ) RESUMO: Esta mesa coordenada reúne três pesquisadores da área da educação cujos referenciais teóricos utilizam as contribuições do filósofo Antônio Gramsci para analisar as disputas entre setores organizados da sociedade civil em torno da educação pública básica. O primeiro dos trabalhos apresenta a atuação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e sua formulação para a implementação da educação integral nas escolas do ensino básico. Já a segunda pesquisa busca apresentar a mercantilização da educação e a consequente precarização do trabalho docente na rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro. Já a terceira pesquisa busca analisar a atuação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação no município de Itaboraí e sua atuação no conselho do FUNDEB daquele município e a possibilidade de os trabalhadores instrumentalizarem este espaço para a sua luta em prol da educação pública brasileira. Conceitos como materialismo histórico, Estado Ampliado, Guerra de posição e transformismo são alguns dos conceitos gramscianos utilizados pelos pesquisadores.

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A AMPLIAÇÃO DA JORNADA ESCOLAR E O TERCEIRO SETOR: a atuação do CENPEC Regis Arguelles da Costa1 RESUMO Tendo por recorte o período que vai de 1993 a 2006, o artigo investiga a atuação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), uma organização não-governamental (ONG) sediada em São Paulo, na divulgação de uma proposta para a ampliação de jornada das redes públicas de ensino junto a sociedade civil e política. A partir de um diálogo com os debates contemporâneos sobre as noções de público e privado na educação, buscamos compreender criticamente os sentidos pedagógicos e as estratégias de convencimento utilizadas pela ONG que, em síntese, advogam uma maior participação do terceiro setor nas políticas públicas de tempo integral. Avaliamos também a assimilação desse conjunto de proposições junto ao Programa Mais Educação (PME), política pública de ampliação de jornada lançada pelo governo federal no âmbito do Plano de Desenvolvimento da Educação, de 2007. A investigação fez uso dos diversos materiais assinados pelo CENPEC e seus intelectuais, desde os projetos coordenados pela ONG, a uma produção voltada para a academia e para gestores públicos. As reflexões direcionadas a esse corpo documental fundamentaram-se nos conceitos de Estado ampliado e hegemonia, de Antonio Gramsci. Concluímos confirmando a atuação fundamental do CENPEC na articulação do terceiro setor em torno de um projeto para a ampliação da jornada, cujos reflexos puderam ser observados nas Portarias Interministeriais que inauguraram o PME. Tal êxito deve ser, contudo, mediado por outras preocupações motivadoras do Mais Educação que, de certa forma, resguardam funções da escola e do poder público, reforçando a ideia de um Estado gestor e de uma sociedade civil executora, atuando em sintonia na garantia do direito à educação. Palavras-chave: terceiro setor; política educacional; jornada escolar ampliada. Introdução Nos últimos 20 anos, certas organizações não-governamentais (ONGs) foram fundamentais na articulação da agenda da responsabilidade social empresarial para a educação. Esse trabalho analisa a elaboração, divulgação e assimilação de uma proposta de ampliação da

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Doutor em educação (PPGE/UFRJ). Professor substituto do SFP/FEUFF. Email: [email protected]

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jornada pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC), uma ONG paulista ligada ao Banco Itaú Unibanco. Tendo por recorte os anos de 1993 a 2006, faremos uso de variada documentação assinada pela instituição e por seus intelectuais, buscando destacar os eixos teórico-metodológicos da proposta, e as principais estratégias de divulgação dos mesmos. Em sociedades democráticas de massa, cujo padrão de acumulação capitalista é acompanhado da garantia universal de direitos políticos, a dominação política de classe deve considerar, para além das estruturas coercitivas, o momento da hegemonia social, ou do consenso. A manutenção do poder pelas classes dirigentes demanda, portanto, a organização e a divulgação de proposições econômicas, políticas e culturais para o conjunto da sociedade, através de seus intelectuais, organizados em aparelhos privados de hegemonia. Tais proposições, todavia, não miram apenas nos interesses estritos de determinada fração de classe, alerta Gramsci (2000b). Segundo ele, esta é a fase mais estritamente política, que assinala a passagem nítida da estrutura pra a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em ‘partido’, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma combinação delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas no plano ‘universal’, criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados. (pp. 41-42)

As políticas públicas para a educação são compreendidas neste trabalho como os resultados instáveis de uma complexa correlação de forças, que envolve o Estado em sentido estrito, e a sociedade civil (GRAMSCI, 2000a). Os diversos estágios das políticas públicas – da elaboração à avaliação – implicam operações complexas de hegemonia (BUTTIGIEG, 2003); buscamos, aqui, mapear as principais estratégias nesse sentido no âmbito do Estado ampliado, conforme as necessidades de manutenção, ou de ampliação, da base social de dominação. Políticas recentes têm estimulado a ampliação da jornada escolar de alunos das escolas públicas de ensino fundamental, visando a melhoria no rendimento escolar, e a oferta de oportunidades socioculturais para crianças e jovens pobres. Já encontramos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB nº 9.394/96) a determinação do aumento progressivo do tempo de permanência do aluno na escola (art. 34), e a conjugação de esforços para que as redes escolares urbanas tenham um regime de escolas de tempo integral (art. 87, § 5º). Quanto ao financiamento, o Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação 1106

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(FUNDEB), em vigor desde 2007 (Lei nº11.494), garante recursos adicionais para matrículas em tempo integral.2 Ainda no ano de 2007, foi lançado o Programa Mais Educação (PME), principal política do governo federal para o ensino fundamental, que visa ampliar os tempos, espaços e oportunidades de aprendizagem de crianças e adolescentes de escolas em situação de vulnerabilidade. Concomitante aos decretos, previsão de recursos, e lançamento de programas especiais, duas dinâmicas destacam-se no terreno da política social que, em certa medida, estão interligadas: de um lado, uma ação organizada de vários aparelhos privados associados ao empresariado, visando influenciar mais diretamente as propostas governamentais e disputar os recursos públicos, tendo por substrato a agenda da responsabilidade social empresarial (MARTINS, 2009); de outro, a reforma do modelo de gestão pública, que ofereceu espaços para privatização da ação social, ampliando a participação do terceiro setor3 em programas que antes desenrolavam-se exclusivamente no âmbito do Estado (PERONI e ADRIÃO, 2005; MONTAÑO, 2008). O estudo é atravessado por inquietações concernentes às novas configurações políticoideológicas, atuantes na sociedade civil, que interferem no tratamento da questão educacional e, mais especificamente, nas concepções e políticas contemporâneas de ampliação da jornada para a escola brasileira. Que organizações do terceiro setor e do empresariado influenciam os debates contemporâneos sobre a educação integral, e sobre a escola de tempo integral? De que maneira suas propostas são divulgadas na sociedade civil, e assimiladas pelas políticas públicas? Como essas proposições buscam equacionar alguns dos pontos nevrálgicos das políticas de jornada ampliada para o ensino fundamental, dentre os quais destacamos o papel da escola na sociedade, e a adequação tanto do trabalho docente, quanto dos tempos e espaços escolares? O texto está dividido em cinco partes, a contar desta introdução. Na seguinte, sublinharemos alguns projetos coordenados pela ONG nos anos de 1990, que permitem 2

Ver especialmente o art. 10º da Lei do FUNDEB (nº11.494/2007). De acordo com o Decreto nº 6.253/2007, art. 4º, a definição de “tempo integral” caracteriza uma jornada escolar igual ou superior a sete horas diárias. Para Menezes (2009), considera-se jornadas acima de quatro horas diárias como “tempo ampliado”. Ainda que tempo integral/ampliado não seja sinônimo de educação integral – pensada enquanto ação educacional que envolve diversas e abrangentes dimensões da formação dos indivíduos (CAVALIERE, 2010) –, partimos da premissa que qualquer proposta de educação integral implica em mais tempo de escola, dadas as funções ampliadas que são exercidas pela mesma. 3 De acordo com Garcia (2004), o terceiro setor seria composto pelas organizações sociais que não fazem parte do conjunto de instituições do Estado e do mercado. De acordo com essa caracterização, instituições sem fins lucrativos, tais quais ONGs, movimentos sociais, instituições religiosas são exemplos de atores do terceiro setor.

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caracterizar o modelo de atuação do terceiro setor na educação pública. Em Formação e proteção integrais, dentro e fora da escola, voltaremos nossa atenção para uma agenda específica de ampliação de jornada divulgada pelo CENPEC, já na década de 2000. A seção posterior cuida da assimilação dessas propostas, bem como de indicadores de resistência a elas, expressos na legislação que instituiu o PME. Por último, faremos algumas considerações finais, buscando sintetizar as discussões desenvolvidas ao longo do estudo. Tecendo redes na sociedade civil e política: os anos de 1990 O CENPEC se identifica como uma organização da sociedade civil que, desde 1987, procura atuar no campo da educação pública. Sua primeira ação educacional em escala nacional foi o Projeto Raízes e Asas, que se deu entre 1993 e 1998, contando com o apoio do Ministério da Educação (MEC), e do Banco Itaú.4 O material de divulgação do projeto, distribuído por escolas de todo país em fascículos, chamava atenção para a baixa qualidade do ensino público e, em contrapartida, sugeria estratégias de gestão escolar, avaliação, ensino-aprendizagem e trabalho docente, a fim da melhoria dos serviços educacionais. Outra tarefa do projeto foi o registro e análise de “experiências bem sucedidas” em 16 escolas públicas brasileiras (SOUZA e SILVA et al, 1995). Em muitas das estratégias do Raízes e Asas encontramos premissas caras à concepção de educação privilegiada pela ONG, como o estímulo à maior participação da comunidade na gestão da escola, a constatação de que “a escola não pode tudo”, e a associação da presença de um projeto pedagógico à melhoria dos resultados dos alunos. Escrito em linguagem acessível, os nove fascículos, de cerca de 40 páginas cada, mesclam reflexões acerca de temas geradores (por exemplo, Gestão, compromisso de todos; A sala de aula; Como ensinar; A escola e sua formação social), com relatos das experiências coletadas pelo trabalho de campo. Em 1994, foi lançado o Guia de ações complementares à escola para crianças e adolescentes, difundindo ações complementares à escola desenvolvidas por diferentes organizações sociais. A importância desse guia está justamente na divulgação de projetos educativos que foram concebidos e executados fora do espaço escolar, sob coordenação dos

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Todo o material referente ao Projeto Raízes e Asas encontra-se disponível http://www.cenpec.org.br/biblioteca/educacao/producoes-cenpec/, acessado em 18 de março de 2015.

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em

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educadores sociais5, profissional que ocupa posição chave nas propostas de jornada ampliada das ONGs, conforme veremos mais adiante. A tarefa de organizar essa publicação sugere que, 9 anos após a sua fundação, o CENPEC já era um polo importante da aproximação do terceiro setor à educação pública, aglutinando ao seu redor diversas ONGs que possuíam esse foco de ação. A posição de destaque entre as organizações do terceiro setor atingiu outro nível com a criação do Prêmio Itaú-Unicef. Com uma edição a cada dois anos, desde 1995, o prêmio é parte integrante do Programa Educação & Participação, uma iniciativa da Fundação Itaú Social e do UNICEF6, sendo coordenado pelo CENPEC. Destina-se a conhecer e dar visibilidade às “práticas de investimento em educação fora do sistema escolar, realizadas por organizações da sociedade civil”7, com o objetivo declarado de incluir aquelas práticas na agenda das políticas públicas. A organização do Prêmio Itaú-Unicef divulgou ter alcançado mais de 3.729 ONGs até o ano de 2007, dando a entender que o evento foi um dos principais responsáveis pelo enorme crescimento de organizações sociais que ofertam programas para crianças e adolescentes (CENPEC, 2008). Em outro lugar (CENPEC, 2013), a premiação é creditada como fundamental para o reaparecimento das pautas da educação integral e da ampliação de jornada no debate sobre a educação pública. O cenário acima foi parte de uma ampla investida de setores do empresariado nacional, no sentido difundir dos ideais da “responsabilidade social empresarial”, cuja implementação e desenvolvimento compõem algumas das ações estratégicas oferecidas pelo CENPEC às empresas. Dois dos organismos fundamentais nessa investida foram o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Fundado em 1995, o GIFE visa coordenar a atuação das empresas na questão social, e no desenvolvimento da “cidadania participativa”. Já o Instituto Ethos, de 1998, reúne diversas

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Gohn (2010) afirma que os educadores sociais são os tradutores socioculturais daqueles que estão à margem da sociedade. O projeto que norteia sua atuação de tradução pressupõe um trabalho de cogestão democrática junto à comunidade que será atendida, evitando que o educador seja aquele que “fala pelo outro”. O objetivo maior é a promoção da cidadania. (Ver p. 50 e ss.) 6 O Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF – foi criado no dia 11 de dezembro de 1946, por decisão unânime da Assembleia Geral das Nações Unidas. Os primeiros programas do UNICEF forneceram assistência emergencial a milhões de crianças no período pós-guerra na Europa, no Oriente Médio e na China. No Brasil, o UNICEF está presente desde os anos de 1995. Fonte: http://www.unicef.org.br/, acessado em 18 de março de 2015. 7 Ver http://educacaoeparticipacao.org.br/premio-itau-unicef/, acessado em 18 de março de 2015.

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empresas de diferentes tamanhos e setores da economia brasileira, com a finalidade de ampliar e estimular uma nova conduta empresarial na sociedade (MARTINS, op.cit.). Algumas características de ações no âmbito da responsabilidade social empresarial – focalização em comunidades carentes, valorização de projetos socioeducativos fora da escola, e destaque ao papel dos educadores sociais na execução desses projetos – foram incorporadas a agenda da educação em jornada ampliada, na década seguinte. A tentativa de avaliar o papel do CENPEC na divulgação dessas e de outras propostas, bem como a penetração delas nas políticas públicas de ampliação de jornada, serão os temas a seguir. Formação e proteção integrais, dentro e fora da escola Vimos que o CENPEC, ao longo dos anos de 1990, investiu na coordenação de projetos em parceria com os setores público e privado, caracterizando-se como um dos principais articuladores de um movimento que envolveu empresas e organizações sociais interessadas em educação. Na década seguinte, a ONG voltou-se para a agenda da ampliação do tempo e das oportunidades de aprendizagem, que em 2007 tornou-se política federal para o ensino fundamental, denominada Programa Mais Educação. Parte dessa agenda já havia sido sugerida pelo Banco Mundial (1997) para o Brasil. Reafirmando que o seu principal foco na área social encontrava-se em medidas de alívio da pobreza, o Banco garantiu assistência ao governo brasileiro no desenvolvimento de políticas que propiciassem mais tempo e qualidade de ensino aos mais pobres, incluindo aí maiores oportunidades de aprendizagem. Ainda segundo a instituição, esses objetivos exigiriam definição mais clara das responsabilidades de cada ente federado, maior participação do setor privado e da sociedade civil na educação, e a melhoria da gestão escolar. A primeira ação do CENPEC que tangenciou a questão da ampliação da jornada escolar foi a publicação Educação Integral – Guia de Referência (2000). Tendo como recorte o ano de 1990 em diante, tratou-se de pesquisa bibliográfica no acervo de três universidades paulistas (PUC-SP, UNICAMP e USP). O resultado foram resumos de livros, teses, dissertações e artigos, relacionados à alguma concepção de educação integral. Essa pesquisa teve o intuito de subsidiar as discussões do Seminário Educação Integral – articulação de projetos e espaços de aprendizagem, parte de uma série de eventos do Projeto Educação Integral, do qual a ONG fazia parte. Outro objetivo da publicação, mais ambicioso, consistia em apoiar o “início de uma 1110

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reflexão sobre o marco teórico-metodológico e conceitual sobre a concepção de ‘educação integral’” (p.7, aspas no original). Apesar da uma ampliação das temáticas utilizadas na pesquisa bibliográfica, a análise que acompanhou o Guia de Referência chamou atenção para a pouca quantidade de resumos incluídos na publicação, interpretada como sinal do reduzido interesse que a comunidade acadêmica dispensava ao problema. Os trabalhos compilados indicaram uma grande variedade de abordagens teórico-metodológicas quando o assunto é a educação integral, o que é atestado pela literatura sobre o tema (COELHO, 2009). Dentre essas abordagens, o Guia destaca aquelas que dialogam com “a ideia de um currículo baseado nas vivências e experiências e numa ação pedagógica organizada por projetos ou temas geradores” (op.cit., p.4), à medida que suas metodologias integram a “vida prática comunitária” (idem, p.5); sublinha também projetos cujas atividades se passam em diversos ambientes de aprendizagem, fora da escola, e que têm por foco o desenvolvimento da autonomia do aluno. Em contraste, concepções de educação integral vinculadas à implantação de escolas de dia inteiro são criticadas, pelo seu histórico de descontinuidades, e pelas polêmicas que despertaram a respeito do arco de responsabilidades da escola. Por último, são valorizados novos desenhos de políticas públicas, através dos quais as organizações da sociedade civil funcionariam como “mediadoras sociais” e, a partir do respeito à diversidade e às diferenças, estariam franqueadas a atuar entre o Estado e as “microesferas da sociedade” (ibid., p.6), na condução das políticas públicas. Após a fase de diálogo e tomada de posição em relação ao estado da arte das concepções e práticas, as preocupações se voltaram para a difusão da problemática junto ao poder público, empresariado e terceiro setor e, ainda, para a indução de políticas públicas de educação integral em tempo integral. De acordo com Gramsci (2000a, p. 205), esse conjunto de estratégias segue o princípio metodológico da “repetição”, que é uma das mais importantes iniciativas de elaboração do consenso nas sociedades de massas. Nesse sentido, a edição de 2003 do Prêmio Itaú-Unicef promoveu mudanças significativas no sistema de premiação, e em sua estrutura organizacional. A partir dessa etapa, o critério de inscrição restringiu-se aos “programas socioeducativos desenvolvidos por ONGs e desenvolvidos no contraturno escolar” (CENPEC, 2008, p.21), alterando o nome da categoria “Ações Complementares à Escola” para “Ações Socioeducativas”. No tocante à seleção de 1111

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propostas, transferiu-se o foco da escola para o “sujeito em desenvolvimento”, que determina que a escola compartilhe suas funções com outros atores sociais. De acordo com Cavaliere (2009), tal abordagem substitui a escola de tempo integral – tal qual eram os CIEPs – pelo aluno em tempo integral, que divide seu dia entre a escola e outros espaços, onde são oferecidas atividades diversas. Em relação à estrutura da premiação, sublinhamos a participação de outras instituições na condução do prêmio,8 e a descentralização do processo de seleção e premiação, que permitiu o envolvimento de profissionais de secretarias municipais de educação e “conselheiros municipais de política social” na avaliação dos projetos inscritos (CENPEC, op.cit., p.23). Para uma maior visibilidade, foi firmada parceria com o Canal Futura, das Organizações Globo, que ficou responsável pela produção de programas cobrindo as diversas etapas do evento. A duradoura aliança Unicef, Itaú e CENPEC também reservou para 2003 o lançamento da coletânea de textos Muitos lugares para aprender, na qual foi apresentada uma concepção mais acabada das propostas da ONG para políticas de ampliação de jornada escolar. O texto de Guará (2003) incluído na coletânea – Educação, proteção social e muitos espaços para aprender – nos oferece um resumo bastante elucidativo dessa tal concepção, do qual tentaremos destacar os principais aspectos adiante.9 Considerando que o tempo dedicado à educação dos jovens está muito aquém dos desafios da contemporaneidade, a autora marca duas linhas de ação para as políticas sociais, respaldadas nos marcos da LDB, e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): melhorar a educação através de uma formação integral de qualidade, e fortalecer as ações de inclusão, pela “proteção especial aos que dela necessitam” (op.cit. p.34). Para que tais objetivos sejam efetivamente alcançados, faz-se necessária uma conjugação de esforços que envolva o Estado, as empresas e as organizações da sociedade civil. Ao prosseguir em seu raciocínio, Guará (op.cit.) qualifica a escola como espaço possuidor de especificidade dentro do processo educativo, chamando atenção, entretanto, para o fato de que “nenhuma instituição pode ou consegue hoje, isoladamente, responder por toda a 8

Por exemplo, a União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas). 9 Isa Maria F. Rosa Guará é pedagoga, doutora em Serviço Social (PUC/SP) e pós-graduada em Psicopedagogia. Ocupa a assessoria de coordenação do CENPEC e já foi vice-presidente da Fundação ABRINQ pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Assina alguns dos principais textos do grupo na defesa de uma educação integral eu incorpore o direito à proteção social e a atuação das ONGs.

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formação da criança e do adolescente” (idem, p.39). As ONGs reúnem, por sua vez, características tais como a “flexibilidade e a liberdade curricular” (ibid., p.40), além da proximidade com a comunidade, que permitem a elas associar o conhecimento às demandas da vida prática com maior facilidade que escolas, dada a rigidez curricular presente nessas últimas. Além disso, o fortalecimento da “legitimidade social” das ONGs pode contribuir, inclusive, na mobilização da comunidade em torno dos assuntos educacionais. A união da educação escolar com os projetos socioeducativos desenvolvidos pelo poder público e pelas ONGs tem por resultado, segundo a autora, uma política pública que combina educação e proteção. Essa é marca de uma concepção de educação integral voltada especialmente para àqueles em “situação social vulnerável” (ibid., p. 37), campo no qual as ONGs possuem larga experiência, muitas vezes fazendo uso de trabalho voluntário. Fundamental no arranjo descrito acima, o papel do Estado é, todavia, redefinido. Ele deve ser capaz de garantir a articulação entre as diversas políticas públicas voltadas para a infância e adolescência, além de buscar parcerias com as organizações da sociedade civil. Reproduz-se aí o conceito de “Estado-rede”, modelo cujo fim é estabelecer mecanismos de coordenação entre os múltiplos níveis institucionais em que se desenvolvem as ações dos agentes políticos (CASTELLS, 1999). As políticas contemporâneas de ampliação de jornada e a agenda empresarial para a educação O desenrolar recente de ações visando ampliar a jornada escolar, e as oportunidades de aprendizagem de crianças e jovens, foi sensivelmente impactado pelo Programa Escola Integrada, e pelo Programa Bairro-Escola, de 2006, coordenados, respectivamente, pelas prefeituras de Belo Horizonte e de Nova Iguaçu (RJ). A própria política federal, o Programa Mais Educação, explicitou sua dívida para com essas duas iniciativas (BRASIL, 2009). No ano anterior ao lançamento dos programas municipais destacados no parágrafo anterior, foi lançada revista Cadernos CENPEC, cujas duas primeiras edições expressaram uma significativa síntese da agenda da organização para a ampliação da jornada escolar. A ideia de cidade educadora, por exemplo, é articulada à concepção de que a educação está para além da rede escolar, pois abarca “proteção social, arte, esportes e cidadania” (CENPEC, 2005, p.15). Para que se efetive tal integração, as políticas educativas devem envolver toda a cidade, 1113

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incluindo aí as “relações de proximidade, geradas pela família e organizações comunitárias do microterritório” (CARVALHO, 2005, p. 51). Formam-se, assim, as comunidades/territórios de aprendizagem, capazes de “compartilhar saberes e construir ações em redes” (op.cit. p. 9).10 No número seguinte dos Cadernos, reafirma-se que o tempo integral não pode ficar sob responsabilidade exclusiva da escola, devendo ser compartilhado com os programas socioeducativos desenvolvidos pelas ONGs. Essa ação conjunta unindo escolas e ONGs é a resposta adequada à uma sociedade cada vez mais complexa e multifacetada. De acordo com Guará (2006), o protagonismo das ONGs permite, ainda, que se levem em conta as múltiplas demandas do sujeito, dado o caráter comunitário desse tipo de instituição. As parcerias entre esfera pública e privada são, portanto, fundamentais para que se ofereça educação integral associada à formação integral, dotada de sensibilidade para com o local, em oposição às políticas centradas apenas no Estado normativo e burocrático. Uma oferta de educação nesses moldes exige um projeto norteador, prossegue a autora, responsável pela integração de saberes acadêmicos e locais. Esses projetos devem contemplar às camadas mais vulneráveis da população – pessoas em situação de pobreza ou risco social –, conjugando educação com proteção social. A seguir, a autora chama a atenção para o fato de os educadores sociais poderem arejar o ensino ministrado na rede tradicional, dada a sua vivência em centros comunitários, e núcleos socioeducativos (GUARÁ, op.cit., p. 23). Todo esse debate estava em sintonia com a agenda da responsabilidade social empresarial, que ganhou força a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). O governo do Partido dos Trabalhadores (PT), que o sucedeu, já vinha mostrando, nos anos anteriores, aproximação de certos setores empresariado, causando afastamento de suas bases originárias. Saviani (2007) vê no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE, Dec. nº 6.094/07) um dos principais expoentes da relação orgânica entre o PT e a classe empresarial. Para a elaboração do PDE foram privilegiadas as interlocuções com a referida parcela da sociedade civil, o que pode ser atestado pelo próprio texto do programa, que afirma assumir

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A expressão “cidade educadora” ganhou destaque após o lançamento, em 1990, da Carta das Cidades Educadoras, na cidade de Barcelona. O compromisso firmado nesse documento exprimia o desejo das cidades signatárias de explorarem suas “possibilidades educadoras”, formais e não formais, à medida que ambas possibilidades concorrem igualmente para a formação de um cidadão responsável.

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integralmente a agenda do movimento “Compromisso Todos pela Educação”, do qual, inclusive, o CENPEC é integrante.11 O PDE agregou mais de 30 ações, em diferentes níveis e modalidades da educação brasileira. O destaque para o ensino fundamental foi o PME, que tem por objetivo de oferecer formação integral aos alunos, a partir de atividades no contraturno escolar. A oferta destina-se, preferencialmente, àqueles alunos em situação de “vulnerabilidade social”, de escolas com baixo desempenho no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que é o instrumento avaliativo da educação básica, consagrado pelo PDE. Além dessas premissas, o programa prioriza a oferta em regiões metropolitanas, e cidades com mais de 100 mil habitantes. O horizonte da educação integral expresso nas Portarias Interministeriais que instituíram o Mais Educação (PI nº 17/2007 e PI nº 19/2007) foi bastante receptivo à participação das organizações não-governamentais, e ao estímulo de parcerias com o setor privado, visando a ampliação das ações do Programa. As ações socioeducativas indicadas para o contraturno escolar não se limitaram ao currículo mínimo do ensino fundamental, contemplando os campos das artes, cultura, esporte e lazer; elas podem acontecer em espaços não escolares, e seus objetivos vão da melhoria do desempenho educacional – leia-se Ideb – à “proteção social”, agregando “compartilhamento comunitário” em uma “dinâmica de redes” (PI 17/2007, art. 1º). Tais ações, as “oficinas”, são ministradas por profissionais denominados “oficineiros”, que podem ser alunos de licenciatura, ou um educador social. Esses profissionais têm vínculo empregatício de voluntários12 e recebem uma ajuda de custo mensal para a realização das ações no contraturno, que cobrem os gastos de deslocamento. É importante ressalvar que a receptividade à agenda difundida pelo CENPEC nos anos anteriores – projetos desenvolvidos e executados por ONGs, financiados pelo poder público, mas que acontecem fora do espaço escolar, e são direcionados aos mais pobres – não significou que a proposta de ampliação da jornada desenhada no PME tenha colocado a escola pública em

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O “Compromisso Todos pela Educação” foi um movimento lançado em setembro de 2006, em São Paulo. Identificando-se como uma iniciativa da sociedade civil, o movimento conta com representantes importantes empresas ou fundações a elas ligadas, como o Grupo Pão de Açúcar, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, Instituto Itaú Cultural, entre outros. (Cf. Saviani, op.cit.). O CENPEC também integra a rede. 12 A lei do voluntariado (nº9.608/1998) considera que o serviço voluntário é atividade não remunerada e sem vínculo empregatício, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social (art. 1º). O voluntário pode vir a ser ressarcido pelas despesas oriundas do desempenho das atividades (art. 3º).

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um plano secundário. As portarias se voltam igualmente para os aspectos formais da escolarização, tais como a já citada preocupação com o reforço escolar, e com infraestrutura para a prática de esportes existente nas escolas (PI 19/2007, arts. 1º e 2º). A PI 19/2007 embasa suas medidas pela necessidade de ampliação do período de permanência na escola, conforme determina o artigo 34 da LDB/1996. Ademais, as oficinas devem estar em consonância com o projeto político-pedagógico da unidade escolar, o que reserva uma série de responsabilidades que esta deve assumir ao implementar o Mais Educação. Considerações finais Observamos algumas evidências do crescimento da mobilização empresarial em torno de questões educacionais, que teve como um dos principais atores o CENPEC. O discurso da ONG, desde cedo, sintonizou-se às ambições crescentes de ação social por parte do empresariado. Além disso, a ONG estruturou um amplo leque de conexões na sociedade civil e política, aliada a coordenação de projetos nacionais de pesquisa e gestão pedagógica. Para uma organização que reconstrói sua memória ressaltando a austeridade e o idealismo presentes sua fundação, os anos de 1990 marcaram o início de uma trajetória meteórica no campo da educação.13 As concepções de ampliação da jornada do CENPEC, sistematicamente elaboradas a partir de 2000, se pautaram pela defesa de uma maior participação das ONGs, e dos educadores sociais na educação pública, através de parcerias público-privadas, e pela gestão em rede das políticas. O foco da educação integral voltou-se para o sujeito – um “sujeito de direitos” –, assegurando proteção social à crianças e jovens, direito que seria equivalente ao da instrução formal. Recomendou-se atenção aos alunos em situação de vulnerabilidade que, para completarem sua formação, precisariam de maior assistência educacional e social. Esses seriam atendidos por voluntários, preferencialmente em espaços fora da escola. O Mais Educação foi deveras receptivo a tal agenda, o que é sugerido pela participação do terceiro setor no PDE, e pelas portarias que inauguraram o programa. Todavia, chama-nos atenção a preocupação do Programa com a melhoria de rendimento dos alunos, e com o resguardo de algumas funções no âmbito da escola. São pistas de que, longe de reduzir a 13

Para maiores detalhes sobre os primeiros 7 anos de existência do CENPEC, veja o vídeo em que a ONG comemora os seus 20 anos de existência, com depoimentos de educadores que participaram da fundação. Disponível em www.cenpec.org.br/app/video/CENPEC20ANOS.flv, acessado em 10 de março de 2015.

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participação estatal, o programa se integra ao modelo de Estado gestor na garantia dos direitos sociais (CARVALHO, 2009). Tal concepção de Estado relaciona-se, sem dúvida, à transposição de estratégias empresariais de gestão no trato da coisa pública, o que rebatem na qualidade, e na seletividade classista dos serviços públicos. Resta-nos saber as diversas formas de resistência e consenso, engendradas no seio das instituições públicas de educação, diante dessa transformação significativa das relações entre o público e o privado na garantia do direito à educação. Referências Bibliográficas BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996. _______. Lei n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre o serviço voluntário. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9608.htm, acessado a 18 de março de 2015. _______. Portaria Interministerial n. 17, de 20 de abril de 2007. Institui o Programa Mais Educação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2007. _______. Portaria Interministerial n. 19, de 20 de abril de 2007. Estabelece as diretrizes para a cooperação entre o Ministério da Educação e o Ministério do Esporte, com o objetivo de definir critérios visando a construção de quadras esportiva ou infra-estrutrura esportiva em espaços escolares. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2007 _______. Decreto n. 6.094, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6094.htm, acessado a 18 de março de 2015. _______. Lei n. 11.494, de 20 de junho de 2007. Regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2007/lei/l11494.htm, acessado a 18 de março de 2015. _______. Ministério da Educação. Educação Integral: texto referência para o debate nacional. Brasília, 2009. (Série Mais Educação) BUTTIGIEG, J. A. Educação e hegemonia. In: COUTINHO, C. N. e TEIXEIRA, A. de P. (orgs.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 3950. CARVALHO, E. J. G. Reestruturação produtiva, reforma administrativa do Estado e gestão da educação. In: Educação e Sociedade. Campinas(SP), vol. 30, n. 109, 2007, p. 1139-1166. CARVALHO, M. do C. B. Educadora, protetora, saudável: uma cidade feita de pertencimento. In: Cadernos CENPEC, São Paulo, n. 1, 2005, p. 49-53. 1117

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AS METAMORFOSES NO MUNDO DO TRABALHO DO DOCENTE: uma precarização de novo tipo Amanda Moreira da Silva1 Este trabalho objetiva socializar discussões que foram levantadas em estudos e pesquisas que abordaram a mercantilização da educação e a consequente precarização do trabalho docente na rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro. Nele, apresentaremos um levantamento das principais características que têm influenciado o campo educacional, no tempo presente, que delineia um processo de reestruturação das redes públicas de ensino e, consequentemente, implica na metamorfose do trabalho docente. Observamos que o processo de enfrentamento ao desgastante cotidiano de trabalho acaba levando a adesões aos programas educacionais privatistas, como estratégia de sobrevivência dos professores. Verificamos que estas adesões não se dão, necessariamente, por acordo ideológico com tais programas, e sim, por buscarem neles, uma forma de atenuar a precarização, com uma melhor remuneração e redução do desgaste diário em várias turmas e escolas. Todavia, constatamos que tais programas, com sua lógica empresarial, refreiam a autonomia dos professores, levam a um estresse permanente em busca de metas, não oferecem ganhos salariais efetivos, e ainda aumentam e intensificam a jornada de trabalho. Por conseguinte, introduzem uma nova concepção de trabalho docente, mantendo a precarização, mas de novo tipo, o que frustra as expectativas e gera um ciclo de decepção e angústia permanente na vida destes professores. Por fim, entendemos que a relevância do trabalho consiste em reconhecer a materialidade dessas políticas em curso, que vem gerando uma metamorfose no mundo do trabalho do docente estável, e pensar, coletivamente, estratégias de resistência no nível ético-político. Palavras chave: Trabalho-educação; trabalho docente; empresariamento.

INTRODUÇÃO Compreendemos o fenômeno da precarização em um movimento de desqualificação de um determinado modo de realizar o trabalho docente, com vistas a sua requalificação em

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Professora do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (Cap-UERJ), doutoranda e mestra em educação (UFRJ-PPGE). Email: [email protected]

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outra direção e sentido, portanto, a reconfiguração metamorfoseada do trabalho docente é um dos elementos que se apresenta como questão de estudo neste texto. Para entender essa dinâmica, faremos um mapeamento dos principais fatores que, no contexto de crise estrutural do trabalho e de reestruturação produtiva, intensifica a precarização do trabalho em geral, perpassa os setores públicos de caráter estável-formal e adquire outras dimensões que não somente objetiva, mas também subjetiva. Daremos um destaque para a presença das parcerias público-privadas e os critérios empresariais de gestão, presentes nas redes públicas de ensino, pois, é através desses novos mecanismos que o governo pretende aprofundar o controle sobre a gerência do processo de trabalho. Nesse sentido, consideramos importante caracterizar a atual abordagem de precarização do trabalho docente, que se realiza por meio da “captura” da subjetividade de quem trabalha, mediante a execução de mecanismos indiretos de intensificação da exploração do trabalho que se manifestam através de um novo ethos flexível. Tais fatores nos levam a analisar como as reformas na educação básica brasileira tratam de conformar o trabalho educativo à criação de um determinado tipo de trabalhador, que seja adequado a essa reestruturação, buscando desqualificar para requalificar o trabalho docente em outra direção. Consideramos que a análise sobre as condições de trabalho deve se situar no tempo e no espaço, ou seja, no contexto histórico-social e econômico que as engendram, portanto, de acordo com o referencial marxiano, as condições de trabalho são derivadas da forma determinada de organização do trabalho no capitalismo. Tomaremos também como referência teórica as análises gramscianas de que a hegemonia nasce na produção, isto é, na fábrica, e se estende para as dimensões sociorreprodutivas como determinações recíprocas, entendendo-se aqui que o processo de trabalho capitalista engendra um determinado processo educativo que procura efetivar o trabalhador como força de trabalho a serviço do capital (GRAMSCI, 2001). No âmbito da educação, consideramos que todo o processo gerado a partir das reformas educacionais nas últimas décadas leva a uma “precarização subjetiva” (LINHART, 2009) e a uma “dessubjetivação de classe” (ALVES, 2011, 2013) que tem íntima relação com a crescente presença de setores privatistas na educação brasileira pública, principalmente aqueles representativos do setor empresarial – com sua lógica de gestão e concepção econômica de 1121

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educação tecnicista e calcada nos princípios da meritocracia e da remuneração por resultados – , e que perpassa pela necessidade de educar o professorado e quebrar a sustentação dos movimentos de resistência e contestatório da categoria. PRECARIZAÇÃO

DO

TRABALHO

DOCENTE

EM

TEMPOS

DE

REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL

Diante de uma crise estrutural do capital que se agudiza a cada novo período de queda da taxa de acumulação, um novo ajuste no aparelho de Estado favorece a recomposição, ainda que por tempo limitado. Ao mesmo tempo, a incorporação, cada vez mais acelerada de mudanças na base produtiva, exige novas habilidades da força de trabalho. Assim, a especialização e a fragmentação laborais que foram intensificadas na vigência da organização do trabalho fordista-taylorista abre espaço, a partir da década de 1970, para um novo padrão de produção capitalista, o toyotismo, evidenciando o esforço do capital em superar sua crise. O papel do Estado, nesse processo, continua a combinar a coerção e o consenso e a aprofundar os mecanismos de controle e expropriação do trabalho, incluindo o serviço público, redirecionando-o para os investimentos e a remuneração do capital privado. Neste ponto, é importante destacar que, desde a década de 1990, as reformas remodelaram o Estado no Brasil e, sob a recomposição do campo empresarial, universalizaram as formas de sociabilidade necessárias a nova etapa de acumulação capitalista. O contexto das reformas na educação pública e privatização acentuada que ocorre por dentro das redes públicas, demonstram elementos que nos ajudam a compreender a nova configuração do trabalho docente no atual estágio de “crise estrutural do capitalismo” (MÉSZÀROS, 2009) em que emerge o regime de acumulação flexível. Sendo assim, apontamos a importância de analisar a precarização subjetiva do trabalho docente, mediante a perspectiva da sua natureza ontológica e da precarização do “homem-que-trabalha”2 (LUKÁCS, 2013), pois a precarização do trabalho do tipo que ocorre hoje, sob o capitalismo global, seria não apenas 2

Tomo a conceituação de Alves (2011) de “homem-que-trabalha”, baseado em Lukács (2013), como uma expressão com potencialidade de analisar e demonstrar a relação entre individualidade e sociedade nos marcos do trabalho capitalista, onde o sujeito é constituído e constituinte nas e pelas relações sociais.

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precarização do trabalho no sentido da mera força-de-trabalho como mercadoria; mas também “precarização do homem-que-trabalha”, no sentido de “desefetivação do homem como ser genérico” (ALVES, 2013, p.86). Ao tratar do trabalho como um metabolismo social, Alves (2013) afirma que a categoria trabalho não diz respeito apenas à produção propriamente dita, isto é, o local da exploração ou produção de mais-valia: o local de trabalho propriamente dito. Ela implica a própria atividade vital ou processo entre o homem e a Natureza. O trabalho como um processo metabólico entre o homem e a Natureza implica regulação e controle social historicamente determinados. O modo de produção capitalista é um modo de organização do processo de trabalho, isto é, um modo de regulação e controle social desse processo metabólico entre o homem e a Natureza caracterizado pelo trabalho alienado/estranhado [EntfremdungArbeit] (ALVES, 2013, p.19).

Consideramos que as características que hoje encontramos no mundo do trabalho em geral, culminam na desefetivação do ser genérico, na precarização do “homem-que-trabalha” (LUKÁCS, 2013), e que tais aspectos são extremamente importantes para análise do trabalho docente, pois podemos perceber que o movimento realizado pelo empresariado brasileiro na escola básica traz consequências significativas para a organização e a gestão escolares, resultando em uma reestruturação do trabalho docente, podendo alterar, inclusive, sua natureza e definição (SHIROMA, 2003). A perda da autonomia, mesmo que relativa, do trabalho dos professores, neste sentido, seria resultado da histórica expropriação do saber docente, atualizado, na conjuntura contemporânea, pela inserção das empresas nas escolas públicas. Estas buscam requalificar o docente para atuar junto aos seus projetos e programas em detrimento do saber, da experiência e da própria formação do professor, no intuito de adequá-lo e conformálo aos novos aspectos do trabalho. Tendo esses elementos como referência para nossas reflexões, consideramos que a universalização de um modo de vida implica na sua assimilação pelo conjunto dos seres humanos imersos nessas relações sociais. Deste modo, entender como as relações se modificaram a partir da crise estrutural do capital, com a intensificação e precarização do trabalho e a consequente precarização do “homem-que-trabalha” torna-se tarefa fundamental. Assim, para construirmos meios de compreender as influências do mundo do trabalho e da produção no trabalho docente, é importante resgatar a proposição do capital em formar um 1123

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trabalhador adequado ao padrão de produção vigente. Isso nos leva a tratar do nexo psicofísico do trabalho em sentido histórico, tendo como objetivo entender as relações subjetivas da organização do trabalho em tempos de reestruturação produtiva. O desenvolvimento teórico de Gramsci (1984) em “Americanismo e Fordismo” nos ajuda a compreender tal processo quando analisa a organização do trabalho industrial fordista e aborda uma nova forma de organização das bases materiais de produção e das relações sociais, destacando as contradições das relações de trabalho na sociabilidade capitalista. Nesta parte de sua obra, o comunista italiano aborda aspectos da formação social e as estratégias utilizadas pelos setores dominantes para adaptar a força de trabalho a condições específicas, de acordo com as necessidades da indústria, explicitando “com vigor genial, as derivações ontometodológicas da constatação marxiana: trabalho e vida estão interligados” (ALVES, 2013, p.19). Em sua obra, Gramsci (1984) ressalta, especificamente, as questões político-ideológicas que contribuíram para a construção da hegemonia por meio da utilização de mecanismos de coerção e consenso junto à classe trabalhadora. Tal debate é de extrema importância, posto que as relações políticas entre as classes que se desenvolveram a partir de então ecoam nos tempos recentes sob novas roupagens. Com Gramsci, diríamos que o “novo terreno ideológico” que nasce com o toyotismo é também uma nova “atitude psicológica” que “alimenta a afirmação da aparência das superestruturas” (ALVES, 2013, p.101).

Com o intuito de analisar o trabalho docente na contemporaneidade, apontamos para novas mediações no “novo” modelo de organização do trabalho segundo o “espírito toyotista”3 (ALVES, 2013), identificando uma intensificação da “captura” da subjetividade do trabalhador no nível psicofísico, que irá, inclusive, no nosso entender, incidir nas relações dos trabalhadores docentes do setor público. Para isso tomamos como exemplo empírico os profissionais do magistério da educação básica do estado do Rio de Janeiro, que, além de terem uma baixa remuneração, que interfere objetivamente em suas condições de vida, ainda passam por uma intensa precarização advinda dos aspectos relacionados às condições de trabalho. 3

Diferentemente do que a maioria dos analistas sociais e sociólogos costumam fazer, Alves (2011) utiliza o conceito de toyotismo num sentido preciso e numa perspectiva mais ampla. Reconstitui o “conceito” procurando torná-lo mais adequado à apreensão de processos sociais e (ideológicos) universais que atingem a produção do capital, principalmente nas últimas décadas do século XX.

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Conforme observamos em nossas pesquisas anteriores4, os docentes concursados sofrem pressões no ambiente de trabalho a fim de “melhores desempenhos” e “resultados” e, em determinadas situações, não criam vínculos com uma única instituição, vivendo uma constante instabilidade e insegurança em relação ao seu local de trabalho, devido ao processo de fechamento de escolas e de turmas gerado pela “otimização” de recursos por parte do poder público. Com o fechamento de escolas e turmas, ocorre a perda da lotação na escola que estes docentes atuam, situação que os coage a irem para outras instituições de ensino, tendo que iniciar uma nova rotina de trabalho em escolas diferentes, o que implica em diferentes deslocamentos, outros espaços de atuação com novos alunos, diversas equipes de trabalho e direções escolares. Em décadas passadas, um professor que entrasse no serviço público podia esperar que passaria, até se aposentar, por uma única escola, ou no caso de ter mais de uma matrícula, em duas ou três escolas; em geral naquelas nas quais optava por trabalhar. Nessas circunstâncias, fazia sentido se identificar com as instituições de ensino em que trabalhavam, pois em geral eram aquelas em que se aposentariam ou que manteriam uma relação duradoura. Atualmente, um professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro dificilmente tem essa possibilidade. Agora, uma professora – em sua maioria mulher – pode esperar a passagem por diversas escolas antes de atingir os 30 anos de idade, conforme observamos em nossas pesquisas. Os locais de trabalho se embaraçam numa névoa de café requentado. As horas de trabalho são flutuantes e os professores podem combinar várias condições de trabalho e ter vários contratos simultaneamente. Um sistema de rotatividade no espaço de trabalho que está despersonalizando o trabalho docente, uma vez que ele não é mais a “minha escola”. Desse modo, como as pessoas podem construir uma carreira e desenvolver um perfil profissional quando podem ser movidas em curto prazo ou quando os próximos degraus da escada profissional são de repente flexibilizados? O PROFESSORADO SUBJETIVAMENTE TOYOTIZADO

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SILVA, Amanda Moreira. Valores e Usos do Tempo dos Professores: a (con)formação de um grupo profissional. 2014. 172f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

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As características gerais do “espírito toyotista” se manifestam na “captura” da subjetividade legitimada pela apologia da “vida reduzida”, voltada para o mercado e para o consumo; e na “dessubjetivação de classe” (ALVES, 2013, 2011), onde há uma diminuição das formas coletivas de resistência e individualização do poder de classe dos trabalhadores. Estas seriam expressões da degradação da individualidade pessoal nas condições históricas do capitalismo global. Um estranhamento que atinge o “em si” da pessoa humana, isto é, a base ineliminável para a formação de sujeitos pessoais de classe capazes de “negação da negação” (IDEM, 2013, 2011).

O “espírito do toyotismo” torna-se o veículo das formas derivadas de valor que impregnam a vida social. De repente, a linha de produção não está apenas na fábrica ou no escritório, mas também na repartição pública, escola ou no recôndito do lar estranhamente familiar. Portanto, trabalho estranhado e valor (como produto do trabalho abstrato) impregnam as múltiplas atividades vitais do homem (IBIDEM, 2013, p.189).

Isto posto, podemos discernir características específicas do “espírito do toyotismo” no processo de precarização do trabalho docente, tais quais: i) políticas de remuneração variável e bonificação por resultados que se manifestam através da flexibilidade na contratação salarial e cumprimento de metas de desempenho; ii) flexibilidade mental para polivalência, através das TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação), do apostilamento e da aplicação de conteúdos mínimos, que se complementam e induzem a uma redução do trabalho docente aos aspectos operacionais, ao mesmo tempo em que ampliam o número de tarefas a serem cumpridas; e iii) na eliminação de desperdício, onde observamos a imposição de políticas públicas de formação ou qualificação da força de trabalho, no sentido de adequar o trabalhador docente ao novo ethos da gestão escolar empresarial e das políticas educacionais vigentes que têm como base de sustentação a avaliação de desempenho, eficiência e produtividade. Incluem-se ainda neste ponto, as induções pela aprovação dos alunos que apresentam resultado insatisfatório e o incentivo para que os docentes atuem em “classes de aceleração”5 com alunos que apresentam distorção idade-série, visando o aumento do fluxo escolar.

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Classes destinadas a alunos com defasagem idade-série que buscam corrigir o fluxo escolar. Em geral são contratados programas educacionais privatistas para tal objetivo, como exemplo o Programa “Acelera Brasil” do Instituto Ayrton Senna presente na rede municipal do Rio de Janeiro e o Programa Autonomia da Fundação Roberto Marinho adotado pela Rede Estadual.

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Todos estes fatores são aspectos do “espírito toyotista” que acabam culminando na reconfiguração do sentido social do trabalho docente, no qual o interesse do empresariado em se inserir nas escolas passa a ser concomitante. O movimento “Todos pela Educação6”, criado em 2006, propôs a “parceria” de todos os segmentos da sociedade, incluindo, sobretudo, seus fundadores e associados, com as escolas públicas, espaço de formação de milhões de jovens em todo o país (LEHER, 2011). A força de mobilização, deste movimento está inserida em um contexto mais amplo de reorganização da sociabilidade da classe dominante no Brasil (NEVES, 2005), onde o empresariado assumiu um projeto de hegemonia e passou a ter na escola pública um espaço de difusão. No âmbito das políticas públicas de educação, o gerencialismo que os setores públicos vêm aderindo e, em especial, às redes públicas de ensino, pós contrarreforma7 do Estado, tem a atuação destacada de grupos empresariais organizados e a inserção de seus projetos privatistas nas redes escolares por meio de “parcerias” que alimentam o “espírito toyotista” com o novo ethos da gestão escolar empresarial. Este traz a racionalidade de redução de custos e de aumento dos resultados, em meio à histórica conjuntura de precarização da condição de trabalho e remuneração dos docentes. A classe empresarial tem se organizado para garantir que todos esses elementos possam ser articulados ao seu favor, perpetuando a dominação a começar pela intelectual. Neste momento, a reorganização do trabalho docente implica na expropriação cultural e intelectual da formação clássica desses trabalhadores. O que exige maior controle do processo e adequação do trabalhador docente, implicando em mecanismos coercitivos visando melhor desempenho, eficiência e produtividade, isto é, a formação do que chamamos de “professorado subjetivamente toyotizado”. Ou seja, um processo de formação de uma camada de intelectuais que são assimilados pelo projeto hegemônico. 6 6 Conforme

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inscrito no site, o “Todos Pela Educação”, criado em 2006, “é um movimento da sociedade brasileira”, “apartidário e plural”, “que tem como missão contribuir para que até 2022, ano do bicentenário da Independência do Brasil, o país assegure a todas as crianças e jovens o direito a Educação Básica de qualidade.” Seu objetivo “é ajudar a propiciar as condições de acesso, de alfabetização e de sucesso escolar, a ampliação de recursos investidos na Educação Básica e a melhora da gestão desses recursos”. Disponível: http://www.todospelaeducacao.org.br/quem-somos/o-tpe/. Acesso: 15/09/2016. A palavra “contrarreforma” dá-se pelo fato de considerar que a Reforma Administrativa do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995), não acolheu, substancialmente, demandas da classe trabalhadora, ao contrário, instaurou um processo de retrocesso nas suas conquistas. Sobre o debate reforma e contrarreforma ver Coutinho (2012).

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Diferentes tratamentos, graus de segurança e status são oferecidos, de modo a canalizar alguns trabalhadores dentro dos profissionais concursados para atuarem em programas privatistas-empresariais. Fator que tem contribuído para, atomizar os professores e aumentar as divisões e as hierarquias dentro da categoria docente. As redes públicas podem sedimentar os trabalhadores, mantendo e precarizando a ampla maioria dos professores, enquanto reservam para os “favoritos” os postos que preservam maiores credenciais profissionais. Isto pode ser observado na rede pública estadual de ensino do Rio de Janeiro com a formação de uma estratificação de escolas que mantém parcerias público-privadas e oferecem um ensino diferenciado e propagandeado como de melhor qualidade. Estes postos de trabalho que têm sido ocupados por muitos professores da rede pública estadual de ensino são junto aos programas e projetos de iniciativa público-privada, através dos quais conseguem uma melhor remuneração, por meio de gratificações, tempo concentrado em uma única escola e menos turmas, na procura de amenizar um pouco suas precárias condições de trabalho. Todavia, no nosso entender, a realidade vivenciada em tais programas ou escolas mantém uma precarização de novo tipo, pois, apesar de suas condições de trabalho serem modificadas, acentuam-se os aspectos de uma “flexibilidade toyotizada” (ANTUNES, 2013), o que frustra as expectativas e gera um ciclo de decepção e angústia permanente na vida destes professores. Assim, observamos que há um ciclo de precariedade advindas da “flexibilidade toyotizada” que se expressa em duas dimensões: i) nas formas que o processo de trabalho assume, na ampliação horizontal das tarefas, indicando a formação no e pelo trabalho do trabalhador flexível e ii) na intensificação dessas tarefas. Portanto, as formas gerais que o trabalho em educação assume, através dos processos, dos instrumentos de regulação e organização do trabalho escolar, do currículo como deterioração dos processos, impactam diretamente esse trabalhador e apontam para a sua “reconversão” (SHIROMA; EVANGELISTA, 2000), onde a hegemonia empresarial permite modelar um projeto de conformação dos trabalhadores no serviço público, e em especial na educação, para o trabalho flexível e também para sua atomização enquanto classe. Todo esse processo afeta a imagem do professor como um sujeito de exercício intelectual inalienável, pois a assimilação dos professores ao projeto das empresas retira destes 1128

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profissionais a autonomia na medida em que o projeto político pedagógico da escola passa a sofrer a mediação de instituições e projetos baseados no direito privado. Assim, não é a comunidade escolar que produz seus mecanismos internos de discussão do planejamento escolar e curricular, mas certos interesses empresariais passam a mediar escolhas, a partir de então determinadas por benefícios materiais (material didático, oferta de formação, etc.) e convencimentos ideológicos que são inerentes à entrada de projetos de educação privados na instituição pública de ensino. A escola “desinteressada” (GRAMSCI, 2011), aquela em que a formação dos jovens não se dá mediada por interesses privados, exige o caráter público que é antagônico ao processo de privatização exercido pelos programas privatistas-empresariais. Nesse contexto, o que se observa é que o grau de autonomia do professor vem se tornando cada vez menor, seja pela ampliação de sua jornada de trabalho, seja pelo rebaixamento de seu nível de qualificação. A perda da autonomia do trabalho docente é decorrente da expropriação dos instrumentos de produção do conhecimento, tornando-se um proletário, um entregador de conhecimento. A diminuição, ou até mesmo ausência do protagonismo do educador na produção do conhecimento é o principal aspecto que atualiza as teses de proletarização e desprofissionalização docente (OLIVEIRA, 2004). Os professores perderam sua autonomia, mesmo que relativa, para conduzir o processo de ensino aprendizagem, elemento indispensável à profissionalização da carreira docente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A teoria da classe do proletariado foi muito pensada em termos da exploração (produtivos e improdutivos) e o mesmo se aplica aos estudos de décadas passadas sobre o trabalho docente contidas nas teses de proletarização (ENGUITA, 1991; APPLE e TEITELBAUN, 1991; KREUTZ, 1986; WENZEL, 1994, JAÉN, 1991; LAWN, 2001). Nossa proposta aqui foi a analisar a precarização do trabalho docente em tempos de reestruturação produtiva do capital e de crise estrutural do trabalho, fatores que somados a entrada do empresariado nas escolas públicas, têm gerado uma metamorfose no mundo do trabalho docente e uma precarização de novo tipo. Observamos que o alargamento da jornada, a imbricação entre o tempo de trabalho e de vida, o desgaste ao ter que lidar com diversas turmas e a dificuldade em trabalhar longe de 1129

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suas residências e/ou em várias instituições de ensino, têm gerado um processo de precarização no plano da objetividade e da subjetividade; com isso, temos verificado que os docentes têm se mobilizado no sentido de preservar sua integridade física e psíquica, buscando fugir dos problemas insurgidos no trabalho. Neste viés, verificamos que o resultado tem sido a busca por saídas individuais para as questões que são de natureza coletiva, e estas saídas, muitas vezes, se dão na forma de adesões aos programas privatistas-empresariais que partem de outra concepção de trabalho docente. Embora a garantia de vínculo empregatício acompanhe a garantia de representação e os empregados estáveis sejam mais propensos a se organizar coletivamente, a segurança e confiança em confrontar seus empregadores não pode ser amplamente observada hoje na categoria docente. Com uma estabilidade meramente formal, os professores não têm segurança, já que temem ser deslocados por toda parte e instruídos para realizar tarefas fora de seus planos pessoais ou aspirações.

Assim, entendemos que as características gerais do “espírito

toyotista” se manifestam na “captura” da subjetividade onde há uma diminuição das formas coletivas de resistência e individualização do poder de classe dos trabalhadores. A nosso ver, trata-se da configuração de uma realidade que contribui para gerar um processo de atomização destes profissionais e de profunda alienação de seu protagonismo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Giovanni. Dimensões da precarização do trabalho: ensaios de sociologia do trabalho. Bauru: canal6, 2013. ______. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011. ANTUNES, Ricardo. A nova morfologia do trabalho e suas principais tendências. In: ANTUNES, Ricardo. (Org.) Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. APPLE, Michael; TEITELBAUM, Kenneth. Está o professorado perdendo o controle de suasqualificações e do currículo? Teoria & Educação. PortoAlegre, nº.4, p.62-73, 1991. COUTINHO, Carlos Nelson. A época neoliberal: revolução passiva ou contra-reforma? Revista Novos Rumos. Campinas: Unicamp. V. 49. N. 1. Jan/jun, 2012 (p. 117-126). Disponível: 1130

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A PARTICIPAÇÃO DO SINDICATO ESTADUAL DOS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO DE ITABORAÍ NO CONSELHO DO FUNDEB: transformismo ou guerra de posição? Marco V. M. Lamarão703

Esta apresentação é síntese de pesquisa de mestrado que teve como objetivo analisar o Conselho de Acompanhamento e Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (CACS-FUNDEB) no Município de Itaboraí, no período de 2011-2013. Trabalhou-se com a hipótese da existência de tensões entre as possibilidades e os limites de ação dos trabalhadores da educação no interior deste conselho, focalizando a seguinte questão central: em que medida e de que forma o CACS-FUNDEB pode ser um instrumento utilizado pelos trabalhadores da educação e demais trabalhadores na construção de uma escola pública, de qualidade, laica, gratuita e emancipatória. Por meio do quadro teórico do materialismo histórico, trabalha categorias e conceitos como conselhos, Estado Integral ou Ampliado (sociedade civil e sociedade política), guerra de posição e de movimento, transformismo, dentre outros. Analisa o conselho do FUNDEB Itaboraí através da legislação, atas de reunião, matérias jornalísticas da grande imprensa, e através do estudo de caso, por meio do acompanhamento de suas reuniões e das suas planilhas contábeis, além de outros documentos. O estudo concluiu, a partir dos resultados obtidos, que este espaço tem aspectos formadores do consenso e da sociabilidade do capitalismo financeiro, inspirados na denominada “Terceira Via”, mas pode- em determinados correlações de força- ser utilizado pelos trabalhadores da educação local e do seu sindicato em prol da valorização profissional, nos âmbitos da carreira e do salário tornando-o um instrumento na defesa do caráter público da educação. Palavras-chaves: conselhos do FUNDEB – Estado Ampliado – Rede Municipal de Educação Itaboraí. Introdução

O artigo ora apresentado é síntese de uma pesquisa que teve como objeto de análise central a participação do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro- Núcleo de Itaboraí/RJ (SEPE-Ita) no Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) de Itaboraí/RJ (CACSFUNDEB-Ita) durante o período de 2011-2013. Procurou-se responder, ao longo da análise, a seguinte questão central: se- e de que maneira- o CACSFUNDEB pode ser um instrumento dos trabalhadores

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Ex-professor da Rede Municipal de Itaboraí e, atualmente, docente do Instituto Federal Fluminense- Campus Macaé. Bacharel em História pela UFF e Mestre em Educação pela UFRJ.

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da educação e demais trabalhadores na construção de uma escola pública de qualidade, laica e emancipatória? Para tanto, partiu-se de duas hipóteses: a primeira é a hipótese histórica de que os conselhos do FUNDEB, fruto de um processo profundamente inspirado pela Terceira Via, carregam consigo um conjunto de valores, práticas e sentidos que contribuem para a conformação da nova sociabilidade do capitalismo financeiro, promovendo um processo contraditório de “expansão e esvaziamento” do sentido da “democracia”, onde esta perde a dimensão do conflito e é entendida - tal e qual a categoria de “sociedade civil”- como o espaço privilegiado do consenso, do diálogo e da colaboração. Contudo, e esta é a segunda hipótese, partindo do caráter contraditório da realidade, a participação ou não das organizações dos trabalhadores da educação não pode ser estabelecida a priori, e depende, substancialmente, da capacidade teórico-prática destas organizações no enfrentamento a esta nova realidade. Nos marcos teórico, esta pesquisa foi produzida através da perspectiva do materialismo histórico, em particular devido à utilização de conceitos e categorias como totalidade, luta de classes, Estado - este na sua acepção gramsciana, de Estado Integral conselho, democracia, entre outros. Gramsci, ao analisar o conceito de Estado, incorpora em sua análise a ideia de sociedade civil que seria formada pelas organizações a qual se adere voluntariamente (partidos políticos, sindicatos, Igrejas, revistas, jornais e Tevês, grupos empresariais, ONG´s, movimentos sociais, etc.). O Estado em Gramsci não seria somente o seu aparato stricto sensu (o qual denomina de sociedade política), mas também os diversos organismos e aparelhos que empreendem suas disputas na sociedade civil. Assim, uma importante característica do Estado deve ser percebida no seu caráter educador ou, em outras palavras, a necessidade do Estado em conformar os cidadãos em tipos mais adequados ao modo de produção hegemônico em dada sociedade. Neste caso, percebemos esta característica do Estado ao propugnar certa forma de participação, certa forma de cidadania, certa forma de democracia determinados por certo entendimento acerca do significado e da relação entre “Estado” e “sociedade civil”. Diante desta nova configuração de Estado, ainda segundo o autor italiano, a classe trabalhadora precisaria redefinir a forma de empreender a sua luta adotando não só a 1134

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perspectiva de tomada do poder (guerra de movimento), mas avançando em uma correlação de forças que continuamente lhe seja mais favorável a seus objetivos (guerra de posição). Muitas das vezes, a classe que detém a hegemonia - e a fim de mantê-la –em um determinado momento histórico, utiliza-se do “transformismo”, qual seja: a adoção de parcela das demandas - ou das lideranças - das outras classes (ou frações de classes) a se subordinar, como forma de cooptação destas classes ou frações de classes (GRAMSCI, 2011). Nesta pesquisa, foi utilizado como procedimento de investigação o estudo de caso e analisado, como base empírica, quatro séries principais de documentos: primeiro, os documentos oficiais, tanto os marcos legais do conselho em nível federal e municipal, quanto às planilhas demonstrativas do FUNDEB, produzidas pela Secretaria Municipal de Fazenda (SEMAF) e apresentada pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura (SEMEC) nas reuniões do CACSFUNDEB; segundo, os documentos produzidos pelo próprio Conselho: ofícios, requerimentos, convocações, atas das reuniões do conselho; outra importante fonte de investigação e análise foram os documentos produzidos pelo sindicato em suas atas de assembleia, ofícios expedidos e blog, entre outros; sempre que possível recorremos à análise das publicações veiculadas tanto na grande mídia quanto na mídia local, sendo esta a última série documental. O CACSFUNDEB: histórico e legislação. Foi ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso que os conselhos de acompanhamento e controle social surgiram pela primeira vez. A sua criação acompanhava uma série de reformas na estrutura do Estado denominadas de “Reforma Gerencial do Aparelho de Estado” que eram capitaneadas pelo Ministério de Administração e Reforma do Estado, cujo titular era Bresser-Pereira. Buscava-se dar ao Estado Brasileiro uma maior eficiência em suas atribuições, ao mesmo tempo em que se buscava reorientar os gastos governamentais a fim de aumentar a governabilidade do Estado. Para tanto, dividia-o em três setores. De um lado, aqueles mais estratégicos – núcleos que deveriam ser reforçados. Na outra ponta, aqueles setores que, por seu caráter mercadológico, deveriam ser entregues a iniciativa privada graças a sua dinâmica de concorrência e aperfeiçoamento: foi o caso de empresas estatais que foram privatizadas como a Embratel, a CSN, A Vale do Rio Doce, entre outras. No intermédio, ficariam áreas como a saúde, a educação e a previdência que, segundo estes intelectuais, através da propriedade pública-não estatal, poder-se-ia aliar tanto o know-how da iniciativa privada em gestão, quanto garantir a universalidade e gratuidade 1135

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garantidas na Constituição (e deveres do Estado), mantendo o financiamento público destas áreas, mas delegando a administração e execução destes recursos não mais a servidores concursados e sim através das Organizações Sociais [ONG´s e Oscips]. (BRESSERPEREIRA, 2002). Ainda, esta maior participação da “sociedade civil” (aqui, entende-se, empresas) representaria a democratização do Estado brasileiro. O FUNDEF cumpria, portanto, com duas das metas propostas, possibilitava um corte de gastos na educação, como foi notado no governo FHC e Lula da Silva (DAVIES, 2007) e, ao criar o conselho de acompanhamento e controle social (CACSFUNDEF), através da lei 9424/1996, permitia e estimulava a participação no acompanhamento e controle social das verbas do fundo. A existência legal dos conselhos, contudo, não significou a sua existência real ou eficácia. Ao contrário, muitos foram os mecanismos que os Poderes Executivos - nas distintas esferas - se utilizaram para manobrar os conselhos, desde a indicação de membros para ocupar a representação dos “setores da sociedade civil” até a existência somente formal dos conselhos, passando por muitas outras situações que, em prática, poderiam impedir o seu funcionamento (DAVIES, op. cit.; BRAGA, 2011). Algumas das críticas feitas ao conselho do FUNDEF foram incorporadas à legislação quando na criação do seu sucessor pelo então governo de Luís Inácio Lula da Silva, o FUNDEB, através da lei 11494/2006. Em especial, àquela que denunciava a forte presença do Estado no interior do conselho, em lei, de controle social. No que diz respeito à esfera municipal, o CACSFUNDEB teria 11 representantes, onde somente três destes seriam do Poder Executivo. Outras mudanças legais foram adotadas com o objetivo de resguardar e proteger a ação dos conselheiros- em especial aqueles representantes dos profissionais da educação e dos alunos- de possíveis perseguições e retaliações. Outro ponto importante foi a afirmação da entidade sindical como a responsável pela indicação dos representantes dos professores e dos funcionários da escola. Todavia, uma importante característica permaneceu em ambos os conselhos: a incapacidade técnica e a falta de formação adequada dos conselheiros com assuntos de difícil apreensão, a saber, o domínio de linguagem contábil, para além dos seus aspectos políticos, esta característica tende a tornar o conselho ato contínuo do ente que deveria ser submetido ao controle social. Segundo Davies (idem), estas características que minam a capacidade de efetiva participação social, acabam fazendo destes conselhos meros legitimadores de políticas de transferências de responsabilidade, típica do Estado neoliberal, atribuindo à “sociedade” responsabilidades inerentes ao Estado 1136

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que, na prática, não passam de mera formalidade inócua. Por outro lado, havia autores que celebravam os conselhos como importante avanço da democracia (BRESSER-PEREIRA, 2002), ou mesmo que os conselhos representavam o exercício da cidadania (BALABAN, 2006) ou que transformam a cultura política e estimulavam a participação (PAZ, 2005), em suma, reconheciam suas potencialidades para além dos limites e deficiências. Itaboraí- aspectos gerais e Rede Municipal de Educação. O município de Itaboraí situa-se na área metropolitana do Rio de Janeiro tendo uma extensão territorial de 429.3 Km² e uma população estimada de 211.000 habitantes. É subdividido em oito distritos: Itaboraí, Porto das Caixas, Itambi, Sambaetiba, Visconde de Itaboraí, Cabuçu, Manilha e Pachecos. Dos 92 municípios do estado, ocupa a 66ª colocação no ranking de IDH e a 12ª em população. Esta extrema pobreza se manifesta na violência. Segundo dados de 2002 do IPEA, o município de Itaboraí ocupa a 8ª posição dos 10 municípios com maior taxa de homicídios por habitantes da região do sudeste brasileiro e a 20ª posição neste mesmo ranking dentre todos os municípios brasileiros (RESENDE, 2008). Suas principais atividades econômicas atualmente são serviços e comércio, transporte, construção civil, pecuária, apicultura, etc. Panorama econômico-social este que tem se modificado radicalmente, tendo em vista que Itaboraí será sede da mais importante obra da indústria petroquímica no Brasil: o COMPERJ (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro) a ser instalada na região de Porto das Caixas e Sambaetiba. Este empreendimento traz consequências diretas para o financiamento da educação municipal, devido à previsão de aumento das verbas locais. A política em Itaboraí, bem como em outras regiões do Rio de Janeiro, apresenta traços específicos do histórico clientelismo do Estado e das relações políticas no Brasil e, naquela região, originados do “amaralismo”, termo oriundo de Amaral Peixoto quando, em sua disputa com Chagas Freitas pelo controle político da máquina partidária que administrava o Estado e o ex-Distrito Federal, utilizavam-se de trocas de cargos de confiança no aparelho do Estado para seus aliados políticos. A rede municipal de educação é utilizada neste sentido: de servir de aparelhamento para o Poder Executivo e Legislativo de escolas públicas, indicando os diretores das escolas e controlando a contratação de mão-de-obra terceirizada como troca de favorecimento eleitoral. Poucos são os movimentos sociais organizados, de caráter popular, da sociedade civil em Itaboraí sendo o núcleo sindical dos profissionais da educação um dos mais importantes (LAMARÃO, 2013). 1137

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A rede municipal de educação era, ao longo do período de análise, composta por 85 unidades de ensino, dentre as distintas modalidades e níveis educacionais. Regida pelas Leis Complementares 18/2000 e 56/2006. Uma das grandes dificuldades da pesquisa foi a obtenção de informações referentes à Rede Municipal de Ensino seja devido a não publicitação das informações quando solicitadas ao ente público, seja pelo fato de a divulgação dos dados do censo escolar serem disponibilizados com certa defasagem em relação ao ano corrente. Isto nos impossibilitou usarmos dados referentes ao ano de 2013 com a devida atualização, por exemplo. Durante o período analisado dos dados referentes rede municipal (2009-2012), o número de matrículas na rede apresentou um crescimento irregular em números absolutos (tabela I). O total de funcionários da rede, tanto concursados quanto contratados, foi uma das informações obstruídas pela SEMEC. Embora inúmeras solicitações tenham sido feitas, requisitando esta e outras informações, a secretaria tratou de não responder muitas delas e responder parcialmente a outras. No que diz respeito ao número solicitado de profissionais da educação totais (distintas funções, estatutários e temporários), um bom exemplo, foi-nos respondido o total dos docentes estatutários, cujas informações sistematizamos na tabela II. Estes índices serão significativamente alterados em 2013, conforme veremos mais adiante. Se os índices de crescimento de matrículas ou de docentes estatutários, ao longo da série, não são expressivos, o mesmo não pode se dizer das receitas destinadas a educação municipal de Itaboraí/RJ. Conforme podemos observar nas tabelas III, IV e V, em anexo, os recursos da educação em Itaboraí experimentaram um crescimento bastante significativo. Basta dizer que, ao longo de todo o período, o total de receitas quase duplicou no Município. Três são as receitas principais do ente municipal para a sua rede municipal de educação, naquilo que é descriminado como Manutenção e Desenvolvimento de Ensino: o salárioeducação, as receitas locais oriundas do que não fora destinado ao FUNDEB dos, no mínimo, 25% previstos na Constituição e, por fim, o FUNDEB. Somente as verbas do FUNDEB são disponibilizadas em reuniões do conselho do FUNDEB, o restante das verbas da educação não possui qualquer dispositivo de controle social. A Lei orgânica do Município repete os percentuais mínimos determinados pela Constituição Federal de 1988 dos recursos vinculados para a educação: 25%. Podemos observar, com o auxílio das tabelas em anexo, a evolução, ao longo dos anos de 2009-2013, das receitas educacionais destinadas à Itaboraí. Todas as três principais fontes de 1138

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financiamento (Salário-educação, FUNDEB e receitas locais) mantém variação positiva. Devido à construção do COMPERJ, a receita que apresenta a maior variação positiva é a receita local (tabela III) que passou de R$ 26.587.366,80, em 2009, e atingiu o montante de R$ 73.778.687,60, em 2012, se tornando a mais importante fonte de financiamento, ultrapassando o FUNDEB (tabela IV) no último ano da série analisada, tendência que deve permanecer para os próximos anos. Como já foi dito, a receita local não é analisada pelo conselho do FUNDEB, ou qualquer outro conselho, tornando muito pouco transparente a aplicação desta receita.

Em 2009, o montante total dos recursos educacionais

correspondia a R$67.539.407,50 e ascendeu para R$ 145.452.808,10, no ano de 2012. Sem a correção inflacionária, este crescimento foi de, aproximadamente 115, 36% e com a correção inflacionária decaí para o não menos substancial patamar de 98,39%. Cotejando as informações orçamentárias com as informações relacionadas da rede municipal (número de matrículas, número de docentes e unidades escolares) não é possível afirmar que o aumento destas receitas refletiu em melhorias substanciais a educação municipal e sua rede de ensino. O CACS FUNDEB- Itaboraí e a participação do sindicato: limites e possibilidades O conselho de acompanhamento e controle social de Itaboraí é regulamentado pelas leis 11494/2006 (federal), 2005/2007; 2034/2007 e 2080/2008, estas três últimas no âmbito municipal. A lei 2005/2007 é outorgada ao final do ano de 2007, ultrapassado, portanto, o período determinado pela lei 11494/2007 de 60 dias. Esta lei cria o conselho, instituindo 12 membros em sua composição, no que é alterada pela lei subsequente (2034/2007) que aumenta a composição do conselho em um assento, aumentando a participação do poder executivo no conselho. Não obstante a composição pró-forma ser bastante favorável à “sociedade civil” o que se pode observar foi que a ingerência do Pode Executivo na indicação de muitos destes representantes minou esta potencial caracterização. As atribuições do conselho foram definidas na lei federal e incluem, dentre outras coisas: o acesso e acompanhamento da elaboração dos dados do censo escolar, o acesso às receitas e despesas oriundas do fundo, o acompanhamento de obras e reformas, o acompanhamento de contratos de prestação de serviços à rede, o acompanhamento do cumprimento do determinado em lei, o acompanhamento e controle sobre planilhas fiscais que indicavam os gastos efetuados com os recursos do fundo, etc. Ao final de cada ano, o 1139

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conselho do FUNDEB emite um parecer sobre as contas anuais do fundo. Todavia, não é correto dizer que o conselho tenha uma função fiscalizatória, mas sim de acompanhamento e controle social. Caso seja detectado algum equívoco, o conselho só tem poder de denúncia, devendo recorrer aos órgãos fiscalizadores (câmara dos vereadores, Ministério Público e Tribunal de Contas) para que estes procedam à investigação e as possíveis sanções. O mandato que analisamos tomou posse em fevereiro de 2011 e teve duração de dois anos, se encerrando, como a nossa análise, em fevereiro de 2013. Ao longo deste período, foi observada a existência de diversos limites ao exercício do acompanhamento e controle social, como: a falta de qualquer formação técnica da grande maioria dos conselheiros, seja inicial ou ao longo do mandato; a irregularidade temporal na apresentação das planilhas por parte do ente público; a obstrução de determinadas informações solicitadas (e ao longo da pesquisa, não respondidas); a influência do ente público na indicação dos representantes conselheiros, a presença de um presidente no conselho (por um ano dos dois do mandato) que era representante da secretaria de educação (SEMEC), em flagrante desrespeito as leis, tanto federal quanto municipal; o desrespeito na indicação do representante dos docentes (sendo o seu suplente eleito na mesma assembleia substituído por outra pessoa, ligada a SEMEC); a dificuldade para a formação de quórum nas reuniões; pouca capacidade de visitação as escolas e obras (apenas duas em dois anos); limites estes que foram sentidos em diversas pesquisas- de distintas matrizes teóricas- sobre o tema. (LIMA, 2009; BRAGA, 2011; UMANN, 2008). Por outro lado, a participação do sindicato no conselho permitiu certos avanços tanto para a organização e debates organizados pelo próprio sindicato quanto na garantia de algumas pautas centrais do movimento sindical organizado. Efetivamente, a maior conquista que esta participação pode conferir ao sindicato foi a qualificação do seu debate político, na medida em que encontrava nos argumentos contábeis e financeiros forte apoio para as suas demandas históricas. Neste sentido, ano de 2013 significou, em termos de convocação de servidores estatutários, um importante avanço, tendo sido convocados pela prefeitura mais de 1000 profissionais entre docentes e técnicos- administrativos, é certo que esta ação se deve a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público Estadual, todavia a ação que estimula o TAC, bem como um Inquérito Civil ainda em desenvolvimento, é movida pelo sindicato.

1140

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Uma segunda conquista atribuída a esta participação tem a ver com a reposição salarial dos profissionais da educação local. Um estudo realizado pelo Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (DIEESE) demonstra a evolução salarial dos profissionais da educação em Itaboraí desde 1998 (gráfico I). A metodologia consiste em, tomado como base o salário de maio de 1998, aplicar os índices de reajustes acumulados e o de inflação acumulada para medir as perdas e/ou ganhos salariais. O gráfico segue uma linha decrescente de 1998 até 2009 e então estagna e, mesmo bastante tímido, começa a tornar-se ascendente desde então. Não por coincidência, a participação do sindicato no conselho se inicia ao final de 2009. Em outubro de 2009 a perda salarial acumulada em relação a maio/1998 atingia o percentual de 42,37%, já em dezembro de 2013, este percentual atinge 32%, uma reposição equivalente a 10%, descontada a inflação do Período (aproximadamente 27%, pelo índice INPC-IBGE). Outro ponto importante foi a retomada do debate do financiamento público. Acompanhando o material de imprensa do sindicato percebeu-se que o tema do financiamento passa a ocupar importante vértice no debate. Em 2013, por exemplo, o sindicato teve clara influência no índice de reajuste salarial (LAMARÃO, 2013). Conclusão Neste sentido e buscando concluir, a nossa análise da participação do SEPE-Ita no CACSFUNDEB-Ita revelou aspectos contraditórios, ora se aproximando de características que balizam o argumento daqueles que enxergam o conselho como espaço meramente de cooptação, ora fazendo avançar o caráter público da educação municipal, seja através do acesso á informações antes inacessíveis, ou pela retomada da centralidade do debate. A instrumentalização da luta dos profissionais da educação, levou-as as conquistas mais substancias, dando-lhes melhor condição de empreender e organizar a luta por uma escola pública de qualidade. Neste sentido, as duas hipóteses levantadas para o problema (da influência ideológica da Terceira Via na constituição dos conselhos e do não apriorismo na participação ou não do sindicato neste tipo de conselho) foram validadas. No entanto, duas ressalvas se fazem importantes: a necessidade e disponibilidade do conselheiro se formar autonomamente para a atuação neste espaço e a compreensão da verdadeira natureza destes espaços, que buscam criar o consenso em torno do status quo, mais do que finalidade, a pesquisa demonstrou que este conselho é um meio de luta política. Com isto, parece-nos que a resposta mais adequada a nossa questão central (se e de que maneira, a participação no 1141

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conselho pode ser útil aos trabalhadores da educação) é: dependendo da particularidade de cada contexto político e sem perder de vista o caráter transformista destes conselhos, é possível, para determinados embates (como os de ordem financeira), que a participação no CACSFUNDEB possa ser mais um espaço a operacionalizar e instrumentalizar a luta dos profissionais da educação na importante reação à contínua precarização da carreira docente. Referências Bibliográficas: BALABAN, Daniel Silva. A importância de conselhos de alimentação escolar: o controle de políticas públicas sob a ótica da cidadania. In: SOUZA, Donaldo Bello de (org.) et alii. Acompanhamento e controle social da educação- Fundos e programas federais e seus conselhos locais. São Paulo: Ed. Xamã, págs.29-40, 2006. BRAGA, Marco Vinícius de Azevedo. O controle social da educação básica pública: a atuação dos conselheiros do FUNDEB. Brasília: UnB, Mestrado, 2011. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva nacional. São Paulo: Ed. 34/ Brasília: ENAP, 2002. DAVIES, Nicholas. FUNDEB: a redenção da educação básica?. Niterói: [s.n.] 2007. GRAMSCI, Antônio. O Leitor de Gramsci; Carlos Nelson Coutinho (Org.). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2011. LAMARÃO, Marco Vinícius Moreira. O conselho do FUNDEB no município de Itaboraí e a democracia da terceira via: uma análise crítica. Rio de Janeiro: UFRJ/Dissertação de Mestrado, 2013. LIMA, Ubirajara Couto. As práticas de participação institucionalizadas e sua relação com a cultura política: Um estudo sobre o Conselho de Acompanhamento e Controle Social do FUNDEB. Salvador: UFBA, Mestrado, 2009. RESENDE, Guilherme Mendes; et alii. Evolução Recente da Dinâmica nos Municípios Brasileiros.

Brasília:

IPEA,

2008.

Disponível

em:

http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/publicacoes/livros/dirur/dinamica_dos_municipos/Capi tulo%206.pdf;Acessado em : 05/11/2012. UMANN, Jorge Miguel Bonatto. O controle social e público da gestão financeira da educação através dos conselhos municipais de Triunfo/RS: Uma reflexão das relações governo e sociedade. Porto Alegre, UFRGS, 2008. Tabelas e Gráfico: Tabela I 1142

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Número de alunos matriculados na Educação Básica da Rede Pública Municipal Itaboraí/RJ - 2009-2012 ANO

MATRÍCULAS

VARIAÇÃO

2009

29780

-

2010

30576

2,67%

2011

30364

- 0,69%

2012

30673

1,02%

Fonte: Censo Escolar/INEP.

Tabela II Número total de docentes estatutários – Rede municipal de Itaboraí/RJ- 2010-2012. Ano

Nº total de Docentes

Variação

2010

1485

-

2011

1594

7%

2012

1733

9%

2010-2012

-

17%

FONTE: Ofício SEMEC-Ita: 163/2013.

Tabela III Evolução da Receita Vinculada Municipal – Fonte 01. Receita Constitucional 25% (Fonte 01) Variação Real (aAno

Valor (R$)

Variação (a)

2009

26.587.366,80

0%

2010

36.888.486,30

2011 2012 2009-2012

Inflação (b)

b)

38,74%

4,31%

34,43%

47.751.870,20

29,45%

5,91%

23,54%

73.778.687,60

54,50%

6,50%

48,00%

177,49%

16,97%

160,52%

Fonte: Tabela organizada pelo autor a partir de dados disponíveis no TCE/RJ704

704

Disponível em: http://www.tce.rj.gov.br/web/guest/relatorios-lrf 19h51min h.

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Acessado pela última vez em: 19/09/2016 às

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Tabela IV Evolução dos recursos FUNDEB Itaboraí ano a ano: 2009-2012 FUNDEB (líquido) Valor Nominal

Variação Real (a-

Ano

(R$)

Variação (a)

Inflação (b)

b)

2009

32.976.279,40

0%

2010

42.164.631,30

27,86%

4,31%

23,55%

2011

50.284.980,70

19,26%

5,91%

13,35%

2012

56.963.830,80

13,28%

6,50%

6,78%

72,74%

16,97%

55,77%

2009-2012

Fonte: Tabela organizada pelo autor a partir de dados disponíveis no TCE/RJ705:

Tabela V Total -Fontes Principais- (25%, FUNDEB, Salário-Educação-FNDE) Total -Fontes Principais- (25%, FUNDEB, Salário-Educação-FNDE) Valor Nominal

Variação Real

Ano

(R$)

Variação (a)

2009

67.539.407,50

0%

2010

89.002.236,50

2011 2012 2009-2012

Inflação (b)

(a-b)

31,78%

4,31%

27,47%

110.243.679,60

23,87%

5,91%

17,96%

145.452.808,10

31,94%

6,50%

25,44%

115,36%

16,97%

98,39%

Fonte: Tabela organizada pelo autor a partir de dados disponíveis no TCE/RJ706

Gráfico I Evolução do salário Real- Itaboraí

705

Disponível em: http://www.tce.rj.gov.br/web/guest/relatorios-lrf 19h52min h. 706 Disponível em: http://www.tce.rj.gov.br/web/guest/relatorios-lrf 19h54min h.

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Acessado pela última vez em: 19/09/2016 às Acessado pela última vez em: 19/09/2016 às

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Fonte: DIEESE

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