DA COMPREENSÃO DO SER ÀS ESTRELAS QUE CINTILAM

July 19, 2017 | Autor: Rita Almeida | Categoria: Conhecimento, Avicena
Share Embed


Descrição do Produto

DA COMPREENSÃO DO SER ÀS ESTRELAS QUE CINTILAM

Ao percorrer cronologicamente o contexto da história da Humanidade, desde o momento da organização da sociedade em grupos nômades e sedentários, como as tribos e clãs, até a formação das sociedades hodiernas, torna-se crível afirmar que a busca do conhecimento e suas especificidades permeiam o desenvolvimento humano. Entrecruzada ao ato de conhecer, a investigação para os fenômenos existentes tanto na natureza visível quanto invisível das coisas que o cercam, delineiam e transformam o ser humano. O conhecimento partindo da própria realidade constitui o escopo do saber ativo, condição e poder humano de, através da observação e racionalização do que acontece à sua volta, explorar e assimilar os eventos e modificar a realidade exordial. A verdade absoluta é tão mitológica quanto os unicórnios, a mantícora ou os hipogrifos do Medievo. Pensar na verdade como uma construção histórica de pensadores, em seus respectivos

contextos,

confere

credibilidade às gradativas formulações do

pensamento, integrando encadeamentos e refutações em relação a seus antecessores. O conhecimento científico, por conseguinte, valoriza a averiguação e a ratificação, permeadas por leis e sistemas que intencionam explicar de modo racional o objeto da observação, metodologicamente preterindo as soluções sem provas concretas. Destarte, ao defrontar a intrincada trajetória do uso dos animais em experimentos científicos e o avanço do estudo da Neurologia, observou-se relevante lacuna nos achados históricos sobre célebre personagem: Avicena. Nascido em Bucara, Pérsia (980 d.C), atual Uzbequistão, o costume árabe que posiciona o nome dos antepassados masculinos ao nome próprio da criança do sexo masculino e posteriormente ao nome do adulto o de seu filho primogênito, cunhou Abu Ali al-Hussain ibn Abd-Allah ibn Hassan ibn Ali Ibn Sina. O nome Avicena é uma latinização da tradução hebraica (Aven Sina) da parte final de seu nome (Ibn Sina).

A casa de seu pai, Abd-Allah, ocupante de importante posição na administração imperial, era ponto de encontro de estudiosos e o menino cresceu estudando a lei islâmica, filosofia, matemática, literatura e medicina. Aos dez anos, sobressaía entre seus contemporâneos ao completar o estudo do Corão, parte da literatura árabe e persa corrente. Ainda muito jovem, completou os estudos em medicina e, aos dezessete anos, curou o rei Nuh Ibn Mansur, após várias tentativas fracassadas de outros médicos. Após sua recuperação, o rei quis recompensá-lo, mas o jovem médico apenas pediu permissão para usar a Biblioteca Real do Palácio, que continha acervo raro e de difícil acesso. Ibn Sina era considerado um polímata, escrevendo tratados sobre assuntos variados tais como matemática, astronomia, química, geologia, medicina, lógica, paleontologia, alquimia, filosofia, gramática, música e poesia. Dedicou-se obstinadamente ao estudo de toda a filosofia e a ciência disponível dos “antigos”, como eram chamados os autores gregos e latinos. Pressupondo a unidade da filosofia, Avicena procurou conciliar as doutrinas de Platão e Aristóteles, utilizando as ideias do Estagirita para provar a existência de Deus, alegando que, Nele (Deus), existência e essência são iguais: Deus é igual à sua essência e fonte do ser de outras coisas. Após a morte do pai e a queda do reinado, viajou extensamente, trabalhando durante o dia como médico e se reunindo à noite com as mentes brilhantes da região para discussões filosóficas e científicas. Serviu sucessivamente a vários soberanos persas como médico e conselheiro, viajando com eles de um lugar a outro, e apesar de conhecido pelo seu perfil sociável, dedicou um bom tempo aos trabalhos literários, residiu por muitos anos em Hamadan, principal rota comercial da época, desfrutando de fama e bons rendimentos. Escrevendo proficuamente neste período, sua obra mais conhecida como filósofo é o Kitab al-shifa (A Cura da ignorância)), enciclopédia composta por dezoito volumes sobre lógica, ciência naturais, matemática e metafísica, que teve um impacto decisivo especialmente sobre Tomás de Aquino, padre dominicano, filósofo, doutor da Igreja católica.

Tomás de Aquino desponta como o maior nome da Escolástica, método de pensamento crítico dominante no ensino nas Universidades medievais europeias (1100 a 1500), nascida nas escolas monásticas cristãs e que procurava conciliar a fé cristã com um sistema de pensamento racional, especialmente o da filosofia grega. Em 1022, a morte do príncipe para quem trabalhava em Hamadan, provocou a mudança para Ispahan, na região central do Irã, em que finalizou o Al-Qanun fi altibb (O Cânone da Medicina), o maior trabalho desenvolvido por Ibn Sina, com aproximadamente um milhão de palavras. Esta obra foi muito bem recebida pela comunidade científica e compreendia cinco livros: Generalidades, Matéria médica, Doenças da cabeça aos pés, Doenças não específicas de órgãos e Drogas compostas. Demonstrou, após exaustivos estudos, que o medicamento deve ser usado em pacientes que apresentem apenas uma doença, provem a eficácia em todos ou quase todos os casos e, ainda, que testes feitos apenas em animais não provam sua aplicabilidade nas pessoas. O livro sobre drogas compostas continha uma lista extensa de preparados simples, tratados sobre venenos, um segmento acerca da preparação e manipulação de medicamentos e, ainda, uma longa lista de receitas e fórmulas medicinais. Ao longo do Medievo, as extensas e valiosas observações sobre o comportamento, anatomia e fisiologia animal, foram preservados nos escritos médicos orientais. Ibn Sina relatou os métodos de infecção de doenças contagiosas como a tuberculose, varíola e sarampo transmitidos através de microorganismos na água e no ar, o papel da água na disseminação de doenças, descreveu a meningite e pormenorizou partes do olho. Descobriu a etiologia de inúmeras doenças, como a ancilostomose (parasita que chamou de verme circular), diferenciou a paralisia resultante de uma razão interna dentro do cérebro e a paralisia resultante de uma razão externa, detalhou o acidente vascular cerebral causado pelo excesso de sangue e discriminou a cólica intestinal da cólica renal.

Efetuou diversas cirurgias extremamente críticas, tais como a remoção de tumores iniciais, o corte da laringe e traqueia e a remoção do abscesso da membrana cristal no pulmão. Em seus livros, abordou as doenças venéreas e algumas patologias ginecológicas, como obstrução vaginal, aborto, miomas uterinos e aquelas que poderiam atingir a mulher no pós-parto, como as hemorragias e infecção puerperal. Abordou, ainda, a cárie dentária, recomendando a limpeza e a retirada da deterioração do dente afetado assim como a importância da prevenção através da higiene bucal. Uma de suas exortações mais famosas tem uso consagrado e recorrente na terapêutica moderna: a música e as narrativas bem contadas afiguram-se como magníficos remédios. Durante meio milênio, este livro e outros livros serviram como bibliografia básica nas escolas de medicina como as Universidades Montepellier e Louvain e, nos cinquenta anos que se seguiram à invenção da prensa tipográfica de Johannes Gutenberg (datada de 1445), o Cânone foi impresso quinze vezes. Seu relato ainda é a base dos testes clínicos modernos de eficácia de drogas medicinais. O Cânone exerceu tamanha influência que Paracelso, ilustre médico e alquimista do Renascimento, o queimou em praça pública como protesto pela liberdade de pensamento. Aclamado como um dos precursores da falsafa (filosofia árabe), em companhia de Ibn Árabi e Ibn Rushd (Averróis), Ibn Sina é considerado um dos “três pilares” da civilização muçulmana e a defluência progressista alastrada pela tríade ultrapassou as fronteiras do Islã, abarcando os ambientes cristão e judaico, repercutindo por séculos. A filosofia de Ibn Sina é uma tentativa de construir um sistema coerente e abrangente que esteja de acordo com as exigências religiosas da cultura muçulmana e, como tal, ele pode ser considerado o primeiro grande filósofo islâmico. A influência de Ibn Sina na Europa medieval principiou através das traduções de suas obras realizadas primeiramente na Espanha, tornando-se base para discussões sobre a filosofia islâmica e teologia filosófica. No início do período moderno no Irã, seus postulados metafísicos foram abordados sob um diferente e criativo aspecto pelos pensadores da escola Masjid-i-

Sha, de Isfahan, madrasa (escola para estudantes do Islã), construída entre 1612 e 1637. Um princípio favorito de Avicena, que é citado não só por Averróis, mas também pelos escolásticos, e especialmente por Santo Alberto Magno era "intellectus in formis agit universalitatem”, ou seja, a universalidade das nossas ideias é o resultado da atividade da própria mente. Este é um princípio a ser entendido no sentido realista, não no nominalista e o significado intrínseco é que, embora existam diferenças e semelhanças entre as coisas independentemente da mente, a constituição formal das mesmas no campo da individualidade, universalidade genérica e universalidade específica é trabalho da mente. Para Ibn Sina, há uma distinção clara entre a existência e a essência das coisas, argumentando que a forma e a matéria não podem interagir sozinhas e por conta própria gerar o movimento, por ele denominada de fluxo vital do universo, nem gerar a própria existência. A existência tem origem em uma causa que necessariamente coloca em relação a essência e a existência, somente dessa forma a causa das coisas que existem podem coexistir com os efeitos. Pela análise ontológica do ser, Ibn Sina estabelece uma subdivisão: impossibilidade, contingência e necessidade. O ser impossível é aquele que não existe e o ser contingente é o que tem necessidade de uma causa externa a si para existir. Quanto ao ser necessário, que é único, reflete a sua essência e tem a capacidade de gerar a primeira inteligência, que deriva uma segunda, e depois uma terceira, dando sequência a todas as inteligências. O ser necessário é a causa somente da primeira inteligência e as outras são resultados indiretos desta. Para Ibn Sina, o ser necessário é Deus, conhecedor de todas as coisas particulares e universais graças à sua ciência e à sua sabedoria. Tanto Deus como o universo são eternos e não existe nem tempo nem espaço antes de Deus. Tal definição modifica profundamente a compreensão sobre a criação do mundo, não mais arbítrio de uma vontade divina, mas o resultado do pensamento divino que pensa ele mesmo. O mundo se origina de Deus como excesso de sua inteligência.

Nos estudos de Ibn Sina encontram-se também elementos da filosofia da ciência. Ao referir um método de investigação cientifica, questiona-se como é possível auferir hipóteses, afirmações que não necessitam de prova para que sejam consideradas verdadeiras ou deduções iniciais sem que elas sejam inferidas das premissas. Assim, a solução seria a combinação do método indutivo aristotélico com um método que utiliza a experimentação e a observação atenta do que se quer conhecer. Evidencia-se o apuro de suas observações no que tange, por exemplo, seus estudos a respeito da luz e das cores, constatando que luz das estrelas não se manifestam diurnamente pela maior luminosidade do sol, exigindo a escuridão para exibirem seu brilho. Seria poético ou, quem sabe, aparentemente banal se Ibn Sina não tivesse sido o primeiro a fazer esta observação. Para o filósofo, o animal munido de razão denominado homem, tem o poder de conhecer, através da alma racional, as formas inteligíveis. Essas formas inteligíveis constroem a alma racional sob três aspectos: através de uma emanação, de um prolongamento da substância e natureza divina, pela qual o homem pode conhecer os primeiros princípios, através do raciocínio e da demonstração é possível conhecer as coisas inteligíveis do mundo permeada pela lógica e, por fim, através dos sentidos. Entretanto, Ibn Sina negava a crença fundamental da filosofia aristotélica que é a união da alma e do corpo bem como o ato da criação, pois admitia que causas inferiores atuavam como instrumentos da causa primeira. Desde a origem da história da ciência no século XVIII, a ciência árabe foi citada por filósofos e historiadores das ciências, em que os primeiros a categorizaram como símbolo da continuidade do progresso do Iluminismo ou como o berço histórico das disciplinas matemáticas, segundo os historiadores. A astronomia, pelo menos entre as ciências matemáticas, é a mais solidamente ligada a sua história. Não obstante, o historiador da ciência clássica não pode esquivar-se da ciência árabe, ainda que mergulhado na doutrina da ocidentalidade da ciência clássica. Segundo tal doutrina, a ciência árabe seria um terreno de investigações sobre os traços de helenismo, onde o historiador seria o arqueólogo.

Essa prática muitas vezes resultou na distorção dos resultados da ciência helênica, conquanto as fontes sejam majoritariamente helenísticas, também compreendem escritos siríacos, sânscritos e persas. O volume das contribuições é desigual, porém sua pluralidade foi essencial para a formação da ciência árabe, deliberada pela concentração de traduções científicas e filosóficas, urdida por profissionais muitas vezes antagonistas, apoiada pelo poder e fomentada pela própria pesquisa. Desse movimento, nasceu uma biblioteca com as dimensões do mundo da época e, assim, as tradições de origens e línguas diferentes, a partir de princípios de uma mesma civilização cuja língua científica é o árabe, encontraram meios de interagir para gerar novos métodos, às vezes em disciplinas imprevistas, como a álgebra. Essa característica, marcante nos primórdios da ciência árabe, acentuou-se mais tarde, nas discussões dos estudiosos dos séculos XI e XII de resultados alcançados em outros lugares e a consequente integração às estruturas teóricas. Através da ciência árabe, tornou-se possível ler numa mesma língua as traduções e a produção científica dos antigos. Em síntese, a partir do século IX, a ciência tinha o árabe como língua, e este, por sua vez, assumiu uma dimensão universal, a língua de vários povos e de todos os saberes. A correspondência científica surgiu como instrumento de colaboração e difusão da pesquisa e pode parecer aterrador que um atributo tão substancial da ciência árabe seja olvidado. Este reconhecimento permite uma percepção mais rigorosa das atividades científicas, instigando a revisão de conceitos. Para que o conhecimento da ciência árabe seja pertinente e justo, há que se compreender e contextualizar a sociedade que viu eclodir sua cultura, instituições, observatórios, métodos, escolas, etc. A história da ciência árabe possibilitou autêntica senda para a verdadeira compreensão da história da ciência clássica, do século IX ao século XVII e contribuiu para o conhecimento da própria cultura islâmica, imprimindo a dimensão que sempre teve: a de cultura científica. Apontado como o mais talentoso médico do período entre a época do Império Romano e o surgimento da ciência moderna no século XVII, sua influência se estendeu por todo o mundo islâmico e pela Europa ocidental da Idade Média.

Após sua morte, em circunstâncias não muito claras, suas obras foram traduzidas para o latim e ficaram disponíveis aos pensadores europeus. Atualmente, percebe-se a recrudescência de um movimento mundial para compilação e publicação das obras de Ibn Sina, inclusive no Brasil, através do filósofo Miguel Attie Filho, livre docente da Universidade de São Paulo, que publicou uma trilogia de Ibn Sina (2000, 2007 e 2012), encerramento de um projeto iniciado em 1996. Será lançado ainda no 1º semestre de 2014 a adaptação para o cinema do livro “O físico”, do escritor estadunidense Noah Gordon, cujo cenário é a Pérsia do século XI e um dos personagens principais, Ibn Sina. Apreende-se, finalmente, que a ciência não pode ser restrita às sociedades científicas ou imputada àqueles que escrevem e reescrevem a História da Humanidade. A disseminação do conhecimento, condição transformadora social, requer visão articulada, dinâmica e integrada, avançando da informação para o conhecimento e a sabedoria. Os desafios da educação no século XXI para todos os níveis de ensino e, especificamente, as Instituições de Ensino Superior (IES) englobam a mudança do perfil de todos os envolvidos nestes processos, tornando-os sujeitos de sua aprendizagem e autoconstrução. As mudanças atitudinais resultantes destas premissas serão requisitos intrínsecos da dinâmica da produção e representação do conhecimento. A comunidade acadêmica, percebida como produtora e disseminadora de novos conhecimentos científicos deverá sintonizar-se com a transmissão de informações atualizadas, utilizando os mais diversos canais de comunicação científica e permitindo a apreensão e a identificação de conhecimentos préexistentes. Aquele que reconhece e vivencia o saber ativo, amplia seus horizontes, possibilita o fortalecimento de ideias e ações e, consequentemente descerra o olhar para o mundo à sua volta, capacitando-se para obter autonomia cultural e intelectual. Ao conviver em sociedade, o ser humano é partícipe de um contexto múltiplo em que cada passo construído em direção ao conhecimento necessita ser compreendido como o próximo passo.

Conhecer e pensar sobre a ciência em si e, particularmente sobre Ibn Sina enriqueceu primeiramente quem escolheu fazê-lo e, posteriormente, almeja impelir quantos desejarem percorrer a mesma vereda.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.