Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: a laude e o dolo, os cimentos do discurso da Reconquista

July 24, 2017 | Autor: Antonio Rei | Categoria: Medieval Chronicles, Portuguese Reconquista, Reconquista, Laude and Dolo
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in Del Nilo al Guadalquivir - II Estudios sobre las fuentes de la conquista islámica. Homenaje al Profesor Yves Modéran / Actas dos II (2009) e III (2010) Colóquios Internacionais sobre Fontes Não Árabes sobre a Conquista Árabe, Univ. Granada / Univ. Alcalá de Henares, Real Academia de la Historia, 2013, pp. 83-96;

DA CRÓNICA MOÇÁRABE DE 754 À CRÓNICA GENERAL DE AFONSO X: A ‘LAUDE’ E O ‘DOLO’, OS CIMENTOS DO DISCURSO DA RECONQUISTA

ANTONIO REI Investigador Integrado Instituto de Estudos Medievais – Univ. Nova de Lisboa Bolseiro FCT [email protected]

RESUMO O louvor (laude) da Hispânia e a tristeza (dolo) pela sua perda nas mãos dos muçulmanos, foram os elementos emocionais e discursivos constantes no discurso ideológico da “Reconquista”, que se constatou, pelo menos, entre a Crónica Moçárabe de 754 e a Crónica General de Afonso X. Palavras-chave: Crónicas, Reconquista, Laude, Isidoro de Sevilha, Dolo, Afonso X ABSTRACT The praise (laude) of Hispania and the sorrow (dolo) by it’s follow in the hands of the Muslims, were the everlasting emotional and discursive elements presents in the ideological speech of the “Reconquest”, who is detectable, at least, between the Mozarabic Chronicle of 754 and in the General Chronicle of Alphonse Xth. Key-words: Chronicles, Reconquest, Laude, Isidore of Seville, Dolo, Alphonse Xth.

1. A “RECONQUISTA” E O SEU DISCURSO A chamada “Reconquista” teve também, e como é natural, o seu discurso legitimador1. Aquele discurso teve os seus primórdios pouco depois da chegada dos muçulmanos à Península Ibérica, nos princípios do século VIII, mais exactamente em 7112; e o mesmo discurso foi emergindo e manifestando-se desde então, praticamente até aos finais do século XV, quando a cidade de Granada, a última capital do Islão hispânico, se rendeu aos Reis Católicos, em 2 de Janeiro de 14923. O discurso em causa foi tendo as suas naturais e consequentes actualizações de acordo com as diferentes épocas em que surgiram os respectivos relatos e com as relatadas realidades coevas. Por exemplo, não poderia ser igual, e não o foi efectivamente, o discurso da “Reconquista” no período anterior ou no logo posterior à conquista de Toledo, a antiga capital dos monarcas visigodos4. Ao longo daqueles oito séculos as realidades políticas, militares e diplomáticas foram sofrendo alterações, com as diferentes conjunturas, com os avanços e recuos das fronteiras; e, da mesma forma, paralela e sincronicamente, o discurso da “Reconquista”, foi acompanhando de perto todas aquelas mutações. Aquele discurso foi produzido para que se tornasse um arauto em que se exaltavam as vitórias e em que se propagavam os seus ecos, afirmando sempre serem as 1

Sobre o conceito de ‘Reconquista’ e a sua difusão nos reinos cristãos peninsulares, v. J. Maravall, El concepto de España en la Edad Media, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1981 e L. Krus, “Tempo de Godos e Tempo de Mouros. As Memórias da Reconquista”, in Passado, Memória e Poder na sociedade medieval portuguesa, Patrimónia, Redondo, 1994, pp.102-127; e IDEM, “Os Heróis da Reconquista e a Realeza Sagrada Medieval Peninsular: Afonso X e a Primeira Crónica Geral de Espanha”, in idem, pp.129-142. 2

R. Mantrand, As Grandes Datas do Islão, Lisboa, Ed. Notícias, 1991, p. 18: “Entrada de Târiq na Península Ibérica, ano 711 / 92 da hégira”. 3

4

IDEM, idem, p. 78: “rendição de Granada, 1492 d.C. / 897 h.»

Após a conquista, em 1085, de Toledo, a antiga urbs regia da monarquia visigótica, Afonso VI adoptou mesmo o título de ‘imperador’: Imperator totius Hispaniae e imperator super omnes Hispaniae nationes constitutus, títulos que a chancelaria começou a usar relativamente aquele monarca, depois da conquista de Toledo (1085) (v. A. Rucquoi, História Medieval da Península Ibérica, Lisboa, Ed. Estampa, 1995, p.167). Sobre a questão ‘imperial’ na Hispânia do século XI, v. ibidem e J. M. Salrach Marès, “Feudalismo y expansión (siglos XI-XIII), in Historia de España (dir. A. Domínguez Ortiz), XII vols., Barcelona, Ed. Planeta, 1989, vol.III: Al-Andalus: musulmanes y cristianos (siglos VIII-XIII), pp. 255438, p. 315.

mesmas vitórias, marcas gloriosas do favor divino. Da mesma forma, aquele discurso era, geralmente, omisso quanto aos insucessos e às derrotas, as quais passava por alto, dava pouco relevo, ou até, simplesmente, silenciava. Depois de uma grande e decisiva conquista ou vitória, as crónicas posteriores faziam um novo ponto de situação, exaltavam os heróis das presentes e das passadas glórias, e exortavam as gentes a seguir os sinais de fé e de bravura dos seus antepassados, e dos novos guerreiros conquistadores (quais emanações dos antigos heróis), na prossecução da conquista e da reocupação do espaço peninsular que ainda continuava sob o domínio do Islão. O objectivo final seria o de escorraçar, definitivamente, os muçulmanos das terras da Hispânia. É nesses momentos, em que há que chamar e juntar as gentes, e em que se deve procurar tocá-las no mais fundo das suas almas, que devem entrar em cena os elementos anímicos mais fortes, os factores emocionais mais poderosos. Pois, relatar, de forma prosaica e simples, que uma determinada cidade foi conquistada, é, apenas, noticiar uma realidade objectiva. Pouco mais é que um mero registo cronológico, seco e descarregado de qualquer emotividade.

2. ELEMENTOS DISCURSIVOS DINÂMICOS As Crónicas que foram escritas entre os meados do século VIII e os finais do século XIII, mais exactamente desde a Crónica Moçárabe de 7545, até à Crónica

5

A chamada Crónica Moçárabe de 754 (também conhecida como Continuatio Hispana). A designação de ‘Continuatio Hispana’ ou ‘Continuatio Isidoriana Hispana’ ficou a dever-se a T. Mommsen (v. Crónica Mozarabe de 754 [ed. crít. e trad. cast. de J.E. Lopez Pereira), Anúbar Ed., Saragoça, 1980, p.19; C. Sanchéz- Albornoz, “La Crónica del Moro Rasis y la Continuatio Hispana”, Anales de la Univ. de Madrid, Letras, III, 3 [1934]; e CMR, ed. D. Catalán e M. Andres, p. XXXV). Sobre edições e questões textuais relacionadas com esta Crónica, v. Crónica Mozarabe de 754 (ed. crít. e trad. cast. J.E. Lopez Pereira), Anúbar Ed., Saragoça, 1980, em especial pp. 7-21; e M. Díaz y Díaz, “La historiografia hispana desde la invasión árabe hasta el año 1000” in, De Isidoro al siglo XI, Barcelona, Ed. El Albir, 1976, pp. 203-234, pp. 207-210; e IDEM, “La transmisión del Biclarense”, in De Isidoro al siglo XI, pp. 117-140; pp. 135-140; J.E. Lopez Pereira, “La cultura del mundo árabe en textos latinos hispanos del siglo VIII”, in Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI Congresso da UEAI, Universidade de Évora, 1986, pp. 253-271, pp.267-269; B. Sanchez Alonso, Historia de la historiografia…, pp. 105-108.

General de Afonso X6, têm em comum dois elementos, aos quais chamamos os “cimentos” do discurso da “Reconquista”. Porque os designamos daquela forma? Porque, como o cimento, são eles os elementos aglutinadores, agregadores e estruturalmente dinâmicos do discurso. São eles que estabelecem interdependências textuais, fazem a ligação entre os elementos objectivos do discurso e os transformam, por intermédio da emoção que implicitamente carregam em si. E, dessa forma, aqueles textos passam a ser poderosos instrumentos impregnados de ideologia, como verdadeiras bandeiras, ou autênticos gritos de guerra. São, aqueles elementos emotivos, os factores que no discurso nunca se alteram, são os que sempre lá estão, ali onde faz falta tocar o âmago da alma dos guerreiros cristãos. Os factos relatados alteram-se, mas a forma como são relatados, não; mantêmse, em função e como consequência daqueles mesmos factores de aglutinação.

2.1.

A ‘Laude’

A ‘laude’, ou melhor a ‘laude Spaniae’, o Louvor da Hispânia, entrou na historiografia hispânica pela mão do Bispo Isidoro de Sevilha, o qual, para além da sua acção religiosa e cultural, foi ainda também um teorizador político7.

6

ALFONSO X, Primera Crónica General, (ed. R. Menendéz Pidal), II ts., Madrid, Ed. Gredos, 1977. Sobre a mais famosa obra de Afonso X, a Primeira Crónica Geral de Espanha, mas também relativamente aos substratos ideológicos do discurso nela presente, v. L. Krus, “Os Heróis da Reconquista e a Realeza Sagrada Medieval Peninsular: Afonso X e a Primeira Crónica Geral de Espanha” in Passado, memória e poder na sociedade medieval portuguesa, Redondo, Patrimonia, 1994, pp. 129-142, em especial as pp. 140-141 e ns. 26 e 28. 7

Este Laudes Spaniae de Isidoro de Sevilha surgiu no momento em que o Louvor da Hispânia foi finalmente assumido de forma completa, inclusivamente, e pela primeira vez de forma explícita, no próprio título identificativo. Literariamente este texto pode considerar-se o auge dos cânticos da cultura Antiga e latina em louvor da Hispânia. O léxico amealhado ao longo de mais de milénio e meio foi prodigamente utilizado, e a condição sacral e imperial da Hispânia, intimamente associada à monarquia visigótica, é pela primeira vez afirmada de forma explícita. (A. Rei, O Louvor da Hispânia na Cultura Letrada Medieval Peninsular. Das suas origens discursivas ao Apartado Geográfico da Crónica de 1344 , Tese de Doutoramento (Ph.D. Thesis), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2007, policop. p.94). A influência posterior deste emblemático texto da Laudes Spaniae em obras de séculos seguintes, como as de Lucas de Tuy, as de Rodrigo Ximenez de Rada, e também na Crónica General de Afonso X, são provas da sua evidente sobrevivência por se tratar de um texto ideologicamente muito poderoso. (IDEM, ibidem, p.96). Sobre a vida e a obra de Isidoro de Sevilla, v. “Isidoro (San)”, Enciclopédia Universal Ilustrada Espasa-Calpe, Barcelona, Hijos de J. Espasa, EA, 1926, t. XXVIII (2ª parte), pp. 2062-2064; Perez de Urbel, “Las letras en la época visigoda”, pp. 379-431, in Historia de España – Menéndez Pidal, III, Madrid, Espasa-Calpe, 1940 (Isidoro de Sevilla: pp. 397-415); e J. Gros y Rager, “San Isidoro de Sevilla”, in Biblioteca Electrónica Cristiana, www.multimedios.org/

Instrumentalizando valores veiculados pela Igreja, quer nos seus princípios doutrinais, quer nos seus rituais8, procurou criar uma super-estrutura que sacralizaria, legitimaria e reforçaria a monarquia visigoda, una monarquia que, electiva e não dinástica, foi sempre endemicamente débil. As proximidades do poder visigótico foram uma realidade para o Santo Bispo hispalense, inclusivamente, poderemos chamá-la de uma quase realidade familiar. Dizemos isto porque não podemos esquecer que Isidoro foi tio materno de dois monarcas visigodos, decisivos no processo que conduziu à aproximação a Roma, e ao abandono da chamada “heresia ariana”. Isidoro de Sevilha era irmão da mãe de Hermenegildo, o filho revoltado de Leovigildo e que ficou conhecido como “o reimártir”9; e também de Recaredo10, o sucessor do mesmo Leovigildo, e que,

docs/d001388, 2003, 4 pp. Sobre su origen aristocrática, v. P. Henriet, «Sanctissima patria. Points et thèmes communs aux trois œuvres de Lucas de Tuy», in «Chroniqueur, hagiographe, théologien : Lucas de Tuy (1249) dans ses œuvres» (dir. P. Henriet), Sorbonne-Collège d'Espagne, Paris, Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales 24 (2001), pp.249-278, p. 258. 8

Isidoro de Sevilha, como bispo exerceu um magistério que não se limitou apenas à sua diocese: ele foi escritor e bispo, conselheiro régio, organizador de Concílios e defensor do catolicismo e da Igreja. Entre os Concílios que dirigiu sobressai o IV de Toledo, em 633. Aí ficou estabelecida a unção régia, aquando da subida ao trono de um novo monarca: sagração e legitimação do novo príncipe através de rituais litúrgicos, à imagem dos ritos da monarquia judaica do Antigo Testamento, numa tentativa de fortalecer uma monarquia débil, porque estruturalmente electiva. (Especialmente sobre a actividade de criação literária de Isidoro e das circunstâncias que envolveram as suas principais obras, v. M. Díaz y Díaz, “Isidoro en la Edad Media Hispana”, in De Isidoro al siglo XI, Barcelona, El Albir, 1976, pp.141-201, pp.143-146). 9

A conversão de Hermenegildo e a sua revolta coincidiram com a altura em que o cristianismo ariano, desde há séculos associado aos Visigodos, estava a ser então particularmente apoiado por Leovigildo. O facto da morte de Hermenegildo ter ocorrido em circunstâncias pouco claras, forneceu o pretexto para que mil anos mais tarde fosse considerado um paladino do cristianismo romano contra a heresia ariana, tendo sido mesmo canonizado. Sobre Hermenegildo e sobre os protagonismos que lhe são atribuídos, enquanto primeiro monarca hispânico que seguiu o cristianismo romano e teria morrido mártir em consequência da sua fé, veja-se o aproveitamento que Filipe II e os seus descendentes directos fizeram daquela figura, ao promoverem e conseguirem a sua canonização (v. A. Rei, O Louvor da Hispânia …, II.7 e II.8); Sobre este príncipe visigodo, a sua vida e o seu conflito com seu pai, Leovigildo, e de como tudo isso deu matéria para uma mitificação, que acabou florescendo no século XVI, mil anos depois dos factos, v. R. de Oliveira Andrade Filho, “A Tirania de um Santo na Antiguidade Tardia (Século VI)”, in www.members.tripod.com/bmgil/afro20.html. 10

Recaredo, com a sua conversão ao cristianismo romano, tornou-se ‘o novo Constantino’, (João de Santarém, Crónica, [ed. C.C. HARTMANN], pp. 146-147; v. ainda J. Orlandis, “El Rey Visigodo Católico”, Actas del III Congreso de Estudios Medievales: De la Antiguedad al Medievo. Siglos IV-VIII, Madrid, Fundación Sanchez-Albornoz, 1993, pp. 53-64, pp.56-57 e 64; J.-P. Leguay, “O «Portugal» Germânico”, in Nova História de Portugal [dir. J. Serrão e A.H.de Oliveira Marques], vol. II, pp. 11-115, p.74). Recaredo, se pela sua conversão ao cristianismo romano se assemelharia, aos olhos da sua época, a Constantino, no entanto, pelo seu empenho na conversão do reino seria o ‘novo Teodósio’, o novo

abandonando o arianismo, finalmente fez ajoelhar a monarquia visigoda ante o cristianismo de Roma, e com ele a maioria do alto clero e alguns grandes senhores. A mãe de ambos, Teodora ou Teodosia, esposa de Leovigildo, era, portanto, irmã de Isidoro, e de todos os outros irmãos11, todos santos, sendo ela mesma a única excepção. Ainda assim, ela terá tido, certamente, um papel muito importante e muito marcante em todo o processo educativo dos seus filhos. A proximidade que ambos ganharam relativamente ao cristianismo romano, a ela o terão ficado a dever. No seu texto laudatório Isidoro de Sevilha exaltou as excelências da Hispânia, as quais fazem dela a mais excelente terra da Criação Divina. Colocada no fim do mundo (finis terrae), lá onde o sol morre, é uma terra abençoada, e reservada aos bons, aos eleitos pela graça de Deus12, quer entre os vivos, quer entre os mortos13. Menos de oitenta anos depois de o bispo hispalense ter escrito esse texto monumental, o Islão chegava a estas terras, e o reino visigodo, ou o que ainda restava da defensor fidei (A. Rucquoi, ob.cit., pp.16 e 40), coincidindo ainda também Recaredo com Teodósio no facto de em serem ambos ‘filhos da Hispânia’. 11

Além de Isidoro de Sevilha, mais três irmãos seus foram também canonizados: Leandro, Florentina e Fulgêncio. Uma outra irmã, Teodósia ou Teodora, foi esposa do rei visigodo Leovigildo e mãe de dois filhos, famosos por diferentes razões, Hermenegildo, o «rei-mártir», e o seu irmão, o rei Recaredo. Sobre a sua origem aristocrática, v. P. Henriet, «Sanctissima patria. Points et thèmes communs aux trois œuvres de Lucas de Tuy», in «Chroniqueur, hagiographe, théologien : Lucas de Tuy (1249) dans ses œuvres» (dir. P. Henriet), Sorbonne-Collège d'Espagne, Paris, Cahiers de linguistique et de civilisation hispaniques médiévales 24 (2001), pp.249-278, p. 258. Se llamaria ‘Teodora’ (y no ‘Teodósia’) y fue madre de Hermenegildo y de Recaredo, este ultimo el monarca que acabó por convertir la monarquia visigoda al cristianismo romano. El padre de Isidoro y de sus hermanos, Severiano, era dux de Cartagena”. Sobre todas estas relacões familiares, v. L. M.V. de São Payo, A Herança Genética de D. Afonso Henriques, Porto, Centro de Estudos de História da Família da Universidade Moderna do Porto, 2002, p. 229. 12

Sobre as excelências da Hispânia v. A. Rei, O Louvor da Hispânia…, passim, mas ver em especial “II.1.1. A Hispânia mítica”, pp. 47-53. 13

«Não eram as riquezas naturais e as excelentes condições climáticas, por si sós, que faziam da Hispânia um lugar sagrado (embora o conjunto de todas aquelas qualidades pudesse dar origem a tal entendimento); pelo contrário, aquele conjunto de riquezas, prodígios e condições benéficas surgira lá apenas como uma confirmação mais da sua condição de lugar sagrado, eleito pelo divino, situado no limite entre o conhecido e o desconhecido, entre a Orbe e o Grande Mar Oceano, entre o dia e a noite, entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, e, como tal, portadora das respectivas marcas da sua condição excepcional, relativamente a muitas outras terras, situadas no âmago do mundo então conhecido. Um outro aspecto relativo à condição sagrada do espaço hispânico é o facto de ele constituir, enquanto ‘finisterra’, o cenário de uma série de episódios ou de seres mitológicos, todos eles marcados pelos conceitos de ‘fim’, ‘noite’, ‘morte’, ‘imortalidade’ e ‘eleição’» (A. Rei, idem, p. 49)

sua alma, refugiou-se entre as montanhas das Astúrias e por entre as folhas das Crónicas, muitas delas escritas por cristãos, já mais ou menos arabizados, os chamados “moçárabes”.

2.2.

O ‘Dolo’

É então, na ressaca da perda do poder político-militar por parte das elites visigodas, que, pelas mãos daqueles escribas, aparece o outro elemento que vai ajudar a constituir a componente ligante do discurso histórico-ideológico que foi sendo glosado ao longo de quase seis centúrias: trata-se do ‘dolo’. O ‘dolo’ é o pesar, a tristeza, a dor e o pranto manifestados pela perda do domínio sobre a terra hispânica, e também pela perda da graça de Deus que vem junto com esse senhorio sobre as terras do Fim do Mundo, o outro Paraíso que, perto de onde o sol morre, emulava com o Paraíso, que se situava no extremo oriental do Mundo, lá onde o mesmo sol nasce. Surge pela primeira vez na Crónica de 754, e, a partir de então, será um elemento recorrente nos discursos cronísticos, até à Crónica General do Rei-Sábio14. A necessidade de Redenção impunha-se; era ela o que, realmente, haveria que re-conquistar. As conquistas e as vitórias no mundo eram apenas o sinal de que Deus os tinha perdoado e de que estavam, novamente, nas Suas graças. Era, de alguma maneira, a realização da parábola do regresso do filho pródigo à casa de seu Pai.

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Uma particularidade textual que se verifica na CM 754 é o facto de integrar um novo elemento discursivo, de evidente origem cristã, e que fez história, pois continua a encontrar-se em textos de séculos posteriores. Este elemento do ‘dolo’ vem a constatar-se já em pleno século XIII em obras de Rodrigo Ximénez de Rada e de Afonso X, respectivamente, De Rebus Hispaniae e Primera Crónica General, que vieram a ser compostas cerca de meio milénio depois da redacção da Crónica Moçárabe de 754. O ‘Dolo’ constata-se, como elemento exortativo, e sempre justaposto à ‘Laude’ no De Rebus Hispaniae de Rodrigo Ximénez de Rada (“Deploratio Hispanie”, in De Rebus Hispaniae sive Historia Gothica [ed. e estudo J. Fernández valverde], Turnholt, Brepols Ed., 1987, pp.106-109) e na Primera Crónica General, de Afonso X (“Del duello de los godos de Espanna” in Primera Crónica General de España [ed. R. Menéndez Pidal], II ts., Madrid, Ed. Gredos, 1977, t.I, pp. 312-314).

3. DIFERENÇAS ENTRE ‘LAUDE’ E ‘DOLO’ 3.1.

O quadro mental cristão

O quadro mental que atingira o seu culminar no século VII, com a ‘laude’, é um quadro essencial e intrinsecamente cristão. A monarquia visigoda, com a conversão ao cristianismo romano, atingira, naquele momento, e dentro de uma óptica augustiniana, o culminar “histórico” do programa da Redenção15: todos os povos anteriores chegados á Hispânia estavam apenas caminhando em direcção àquela fase final, àquele apogeu, que, pela graça de Deus, lhes tocara a eles, os Visigodos, a quem aquela terra passaria a pertencer, definitivamente, após a sua conversão ao cristianismo de Roma. Qualquer outra presença, chegada posteriormente, e real ou pretensamente invasora, era algo de anti-natural, portanto uma manifestação do mal: pelo sofrimento que, naturalmente, iria provocar; mas, e principalmente, como uma expiação de uma falta grave, do colectivo social no seu todo, ou das elites godas. A recusa de aceitação, pelos magnates visigodos, da concepção teocrática isidoriana da própria monarquia, recusa essa que conduziu a uma cada vez maior e mais violenta disputa da realeza, com guerras praticamente constantes entre os candidatos, seria a causa, o ‘pecado’, cuja expiação justificaria a presença dos muçulmanos nestas terras do Fim do Mundo16. Assim, surge o ‘dolo’, o choro pela perda da graça de Deus, e, consequentemente, pela perda da Hispânia, pelo que urgiam, ambas, ser recuperadas17.

15

Sobre o conceito cristão de história, v. J.M. A. Mendes, A História como Ciência, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pp. 38-39; R.G. Collingwood, A Ideia de História, Lisboa, Ed. Presença, 1986, pp. 67-68; C.-O. Carbonell, Historiografia, Lisboa, Ed. Teorema, 1987, p.41. 16

A invasão árabe como um castigo divino lançado sobre os finais da monarquia visigoda e dos seus grandes senhores, surge referida na Crónica Profética, a qual foi elaborada em meios eclesiásticos ovetenses no ano de 883 (v. L. Krus, “Tempo de Godos e Tempo de Mouros. As Memórias da Reconquista”, p. 118). 17

Sobre o ‘Dó’ ou ‘Dolo’ pela Hispânia, diz-nos ainda Luís KRUS: «As lamentações pela perda da Hispânia visavam um apelo à unidade cristã, o reforçar da resistência religiosa e cultural face aos novos poderes.» (Idem, p.108).

O domínio da Hispânia era, assim e por excelência, o verdadeiro indicador da graça Divina sobre as suas gentes, os senhores, os clérigos e os servos. A sua posse indicava que a comunidade humana vivia de acordo às normas cristãs; a sua perda, pelo contrário, evidenciava a necessidade de uma reparação, digamos kármica, em função de uma falta de cumprimento da Lei Divina por aquela mesma sociedade que desobedecera ao rei, o “ungido do Senhor” 18.

3.2.

Diferenças discursivas

A diferença essencial entre ‘laude’ e ‘dolo’, enquanto discursos, é que a ‘laude’ exorta criando uma exaltação positiva que resulta de uma evocação da unicidade espaço - temporal da memória hispânica. Na ‘laude’, além da enumeração, o mais exaustiva possível, dos benefícios com que a Divindade cumulara as terras da Hispânia, havia ainda uma integração, no seu discurso panegírico, de todos os humanos seus naturais, ou que a adoptaram como sua, fossem eles de qualquer período histórico, e tivessem a origem ou a cultura que tivessem, passando, todos eles, sem excepção, a integrar a memória, a herança, o património cultural hispânico, dessa forma entendido como intrinsecamente compósito, complexo e abrangente. A Hispânia, como terra-mãe, integra, unifica e sacraliza. A diferença é uma bênção, uma manifestação da generosidade e do poder divinos. Pelo contrário, o ‘dolo’ busca, em paralelo com aquele repertório da munificência divina de dons à Hispânia, criar um sentimento de necessária expiação, a qual deverá tomar uma forma guerreira contra aqueles ‘outros’, os quais, ‘manifestações do mal’, e surgindo contra o plano divino, aqui tinham chegado como um castigo, do qual urgia a remissão. Neste caso e muito concretamente, evoca-se a condição ‘invasora’, estranha e estrangeira do último e mais recente dos possuidores da Hispânia: os muçulmanos. Que são, irredutivelmente, afastados daquele todo cultural e civilizacional da Hispânia, o

18

Sobre a unção régia dos monarcas visigodos, v. supra n. 8.

qual se fora construindo, fundindo, ao longo dos séculos, inclusivamente de milénios, integrando partes de todos os que por aqui tinham passado e aqui tinham deixado algo de seu.

4. HISTÓRIA E ANTI-HISTÓRIA Em função do que atrás foi dito, há, quanto a nós, muito sintomaticamente, um outro aspecto que pretendemos também realçar aqui. É o facto de, regra geral, a historiografia moçárabe se deter, temporalmente, pouco depois da chamada ‘invasão islamo – árabe’. Trata-se, quanto a nós, da expressão literária de um outro conceito fortemente ideológico, e ainda que não estruturalmente ligado, nem dependente dos elementos discursivos da ‘laude’ ou do ‘dolo’, potencia também ele, muito significativamente, o discurso da ‘Reconquista’. À luz do conceito cristão de História a presença islâmica na Hispânia era algo não-normal, não-histórico. Atentemos que, no discurso historiográfico, todos os povos anteriores ‘chegam’ à Hispânia; e apenas os muçulmanos ‘invadem’ a Hispânia. Assim, depois daquela ‘invasão’ vivia-se um período de expiação e de excepção, e, por tanto, tornava-se necessário procurar na vitória contra aquela presença, considerada estranha, a manifestação do perdão e da misericórdia divinos. Era urgente, por intermédio da conquista redentora, ‘reatar o fio da História’, que se quebrara em 711. A acção guerreira deveria dar continuidade ao exemplo que lhes fora deixado pelos heróis e pelos mártires do passado hispânico, os quais, também eles confirmando e aumentando, com o seu exemplo e com o seu sangue, a sacralidade da terra hispânica 19

19

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A Hispânia é uma Mãe de guerreiros, de oradores, de poetas, de juízes e de príncipes, pois concebeu e levou ao Império homens como Trajano, Adriano e Marco Aurélio, antes do próprio Teodósio, o Imperador que cristianisou o Império. Aparece, depois, também de índole cristã, uma nova forma de sacralização da Hispânia: uma condição sacra que já não surge em consequência do sangue derramado

No discurso da “Reconquista” a ‘laude’ era o pó, a terra, os frutos e as benesses da abençoada da Hispânia; e o ‘dolo’ era a água, o choro, as lágrimas de tristeza e saudade por aquele Paraíso Perdido. Ambos, juntos no discurso, recriavam o barro, o solo da mesma Hispânia, que haveria que recuperar, com e pela graça de Deus.

pelos heróis guerreiros, mas sim pelo sangue dos mártires, que assim se transformam nos heróis da fé cristã. (A. Rei, O Louvor da Hispânia…, pp. 74-75).

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