Da \"Era das barcas\" à \"Era das pontes\": os debates que engendraram a Travessia Régis Bittencourt

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DA “ERA DAS BARCAS” À “ERA DAS PONTES”: OS DEBATES QUE ENGENDRARAM A TRAVESSIA RÉGIS BITTENCOURT FROM “AGE OF BOATS” TO “AGE OF BRIDGES”: DEBATES THAT ENGENDERED THE TRAVESSIA RÉGIS BITTENCOURT

Eduardo Pacheco Freitas Mestrando em História (PUCRS/Cnpq) [email protected] Resumo: A construção da Travessia Régis Bittencourt reveste-se de inúmeros significados sociais, políticos, técnicos e econômicos, não somente para a cidade de Porto Alegre, mas também para o estado do Rio Grande do Sul e para o Brasil, e, até o presente momento, não foi ainda realizado nenhum estudo sobre o tema. Na década de 50 o Brasil passou por um acelerado processo de industrialização e urbanização, havendo a necessidade urgente de modernização do seu sistema rodoviário, e é nesse contexto que se insere a Travessia Régis Bittencourt. O sistema de barcas que fazia o transporte entre a Capital e a metade sul do estado apresentava-se completamente obsoleto no início daquela década, significando com isto enormes transtornos para a sociedade e para a economia gaúcha. Daí a necessidade, muito discutida pelos debatedores à época, de superação da “era das barcas” e início de uma “era das pontes”. Portanto, é objetivo deste artigo, em linhas gerais, analisar os debates técnicos, políticos e midiáticos que estiveram na gênese da Travessia Régis Bittencourt e as projeções que estes agentes históricos fizeram para o papel desta obra sobre a economia e a sociedade rio-grandense. A pesquisa circunscreve-se a três períodos principais: 1) o ano de 1953: processo de concorrência pública para execução da obra; 2) o ano de 1955, onde se dá o início das obras e 3) 1958, ano de conclusão e inauguração da Travessia. Palavras-chave: Urbanização. Bittencourt. Ponte do Guaíba.

Industrialização.

Desenvolvimentismo.

Travessia

Régis

Abstract: The construction of the Crossing Régis Bittencourt is of numerous social meanings, political, technical and economic, not only for the city of Porto Alegre, but also for the Rio Grande do Sul State and Brazil, and by the this time, has not yet done any studies on the subject. In the 50 Brazil has undergone an accelerated process of industrialization and urbanization, there is an urgent need for modernization of its road system, and it is in this context that the Traverse Régis Bittencourt. The ferry system that made transport between the capital and the southern half of the state had become completely obsolete at the beginning of that decade, meaning with this enormous problems for society and for the state's economy. Hence the need, much discussed by panelists at the time, to overcome the "age of the boats" and the beginning of an "age of the bridges." Therefore, the aim of this article, in general, analyze the technical, political and media debates that were the genesis of the Crossing Régis Bittencourt and projections that these historical agents made for the role of this work on the economy and the Rio Grande society. The survey is limited to three main periods: 1) 1953: public bidding process for the works; 2) the year 1955, where it gives the start of work and 3) in

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1958, year of completion and inauguration of the Crossing. Keywords: Urbanization. Industrialization. Developmentalism. Régis Bittencourt crossing. Guaíba’s bridge.

Introdução Na década de 50 do século passado o Brasil passou por um notável crescimento econômico, refletido na forte industrialização e urbanização do período. É neste contexto que surge a Travessia Régis Bittencourt, importante obra rodoviária construída com o objetivo de superação da precária travessia do Guaíba realizada até então pelo serviço de barcas entre as cidades de Porto Alegre e Guaíba. Naquele momento, tal serviço já não atendia a crescente demanda, oriunda do tráfego de veículos e passageiros que aumentava constantemente desde a década de 40. A obra, fruto de parceria entre o governo federal e o governo estadual, foi uma solução rodoviária encontrada após longos debates técnicos, políticos e midiáticos, que serviram para a decisão final a respeito de qual o melhor projeto e qual a melhor localização da obra. Portanto, o foco desta pesquisa, que resultará em dissertação de mestrado, está voltado para estes debates técnicos, políticos e midiáticos, ocorridos entre os anos de 1953 e 1958, em Porto Alegre/RS, e que estiveram na gênese da Travessia Régis Bittencourt, bem como para as projeções que os agentes históricos fizeram para o papel desta obra sobre a economia e a sociedade rio-grandense. A pesquisa, que foi realizada com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil, circunscreve-se a três períodos principais: 1) o ano de 1953: processo de concorrência pública para execução da obra; 2) o ano de 1955, onde se dá o início das obras e 3) 1958, ano de conclusão e inauguração da Travessia. A discussão técnica ocorreu através dos boletins publicados pelo Daer, onde diversos engenheiros debateram a respeito de qual a melhor forma e a melhor localização para a travessia a seco do Guaíba. Este debate, por sua vez, ganhou a imprensa e ampliou-se nos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, trazendo políticos, jornalistas e populares à discussão, bem como, a opinião destes veículos também sendo expressa através de sucessivos editoriais ao longo do processo de planejamento e execução da obra. Paralelamente, temos os debates ocorridos na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, onde as diversas forças políticas atuantes naquele período discutiram a necessidade e a viabilidade da travessia a seco

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do Guaíba. Considerações sobre os objetivos da pesquisa A construção da Travessia Régis Bittencourt - não apenas por sua característica mais conhecida: o vão móvel da Ponte do Guaíba - reveste-se de inúmeros significados sociais, políticos, técnicos e econômicos, não somente para a cidade de Porto Alegre, mas também para o estado do Rio Grande do Sul e para o Brasil, e, até o momento, não foi realizado nenhum estudo sobre o tema. Na década de 50 o Brasil passou por um acelerado processo de industrialização e urbanização, havendo a necessidade urgente de modernização do seu sistema rodoviário, e é nesse contexto que se insere a Travessia Régis Bittencourt. O sistema de barcas que fazia o transporte entre a Capital e a metade sul do estado apresentava-se completamente obsoleto no início dos anos 50, significando com isto enormes transtornos para a sociedade e para a economia gaúcha 494. Da mesma forma que hoje, quase seis décadas após sua inauguração, há a necessidade de construção de uma segunda ponte, que garanta maior fluidez de tráfego, naquele período ocorreu fenômeno bastante semelhante ao atual: a urgência de substituição de um sistema de travessia obsoleto por outro mais moderno. Portanto, há a possibilidade, com este estudo, de traçarmos um paralelo entre os dois momentos, algo que atribuirá um sentido ainda mais importante para a pesquisa. Por fim, lembramos que a maior parte das fontes que serão utilizadas para este trabalho jamais foram pesquisadas, da mesma forma que não há um trabalho acadêmico dedicado exclusivamente ao estudo da construção da Travessia Régis Bittencourt. É importante destacarmos a escolha dos três enfoques (midiático, político e técnico) que diz respeito a: 1) importância dos meios de comunicação de massa para o debate público e para a formação de uma opinião pública sobre o tema; 2) ao posicionamento das forças políticas atuantes no estado naquele período sobre esta questão, a partir das demandas defendidas na Assembleia Legislativa; 3) e à discussão técnica promovida pelo Daer, que determinou a escolha do projeto vencedor (forma e local da obra) e que viabilizou a construção da travessia a seco do Guaíba. Destes enfoques, podemos efetuar a delimitação mais precisa dos objetivos a serem atingidos com esta pesquisa. Como objetivo central da pesquisa procuramos examinar o processo de construção da Travessia Régis Bittencourt, naquilo que

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De acordo com TILL (2005, p. 150), este era um dos “problema crônicos” do período, que afetava não somente “a população porto-alegrense como a população gaúcha em geral”.

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chamamos de sua “gênese”: 1) os debates ocorridos entre os engenheiros nos boletins do Daer; 2) os debates ocorridos na Assembleia Legislativa do estado; 3) as discussões realizadas na grande imprensa, através dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias. Deste objetivo central, surgem outros objetivos, mais específicos, tais como a necessidade de compreendermos o significado da obra para estes três agentes históricos, no sentido de como ela foi planejada e quais as foram as projeções sobre o seu papel na sociedade e na economia do estado. Identificar, a partir da análise da comparação das fontes, onde as opiniões e projeções a respeito da obra variam e/ou se aproximam.Analisar o processo de decadência da economia gaúcha entre a década de 40 e 50, que coincide com o planejamento e execução da obra, em suas relações com a mesma. Analisar as relações entre imprensa, desenvolvimento e urbanização no Brasil, na década de 50, com enfoque regional. Analisar o uso eleitoral da “Ponte do Guaíba” no pleito de 1958, a partir das denúncias veiculadas na imprensa e dos debates na Assembleia. Contudo, já é possível afirmar, a exemplo da imprensa da época, que naquele momento o Rio Grande do Sul passava de uma “era das barcas” (Figura 1) para um “era das pontes” (Figura 2). Discussão teórico-metodológica O corpus 495 documental com o qual trabalharemos é, de certa forma, heterogêneo. Para a análise dos debates técnicos, utilizaremos os boletins do Daer e em relação aos debates políticos, nos valeremos dos Anais da Assembleia Legislativa. Finalmente, ao trabalharmos com a imprensa como fonte, encontraremos editoriais, matérias jornalísticas e "a pedidos", tanto no jornal Correio do Povo, quanto no Diário de Notícias. Todas estas fontes se tratam de documentos escritos e impressos, mas que expressam perspectivas diferentes acerca da mesma questão: a travessia a seco do Guaíba. Contudo, essa diversidade é fundamental para a construção do objeto a que nos propomos. Sendo assim, optamos pela metodologia de análise qualitativa textual (MORAES, 2003), já que é um método que serve perfeitamente para a análise de fontes documentais em forma de textos, pois permite a desconstrução destes em unidades menores de maneira a possibilitar

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Entendemos corpus aqui como um material de análise constituído de produções textuais, compreendidos como produções linguísticas que se referem a um fenômeno específico em um determinado período de tempo. São produtos que manifestam discursos e que “podem ser lidos, descritos e interpretados, correspondendo a uma multiplicidade de sentidos que a partir deles podem ser construídos” (MORAES, 2003, p. 194)

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o estabelecimento de relações entre categorias semelhantes e o aprofundamento da compreensão dos fenômenos investigados. (...) a análise textual qualitativa pode ser compreendida como um processo auto-organizado de construção de compreensão em que novos entendimentos emergem de uma sequência recursiva de três componentes: desconstrução dos textos do corpus, a unitarização, estabelecimento de relações entre os elementos unitários, a categorização; o captar do novo emergente em que a nova compreensão é comunicada e validada. (p. 192) Como temos por objetivo central deste trabalho examinar a “gênese” da Travessia Régis Bittencourt em três espaços diferentes da sociedade (técnico, político e midiático), bem como, compreender o significado desta obra para os três agentes em questão, é fundamental que possamos fazer emergir o sentido socioeconômico da Travessia em cada um dos campos citados. Em outras palavras: precisamos compreender como cada um dos agentes históricos encarou a necessidade (e as diversas variáveis) de construção da ponte, como cada um deles vislumbrou suas possibilidades e seus limites para a sociedade e para a economia estadual e como cada um deles atuou propositivamente, ou seja, atuando de forma ativa na defesa de determinados pontos de vista ou concepções que, por fim, garantiram a escolha do projeto que de fato foi executado. Neste sentido, o processo de análise textual qualitativa se torna muito interessante para a proposta deste trabalho, já que este é “um processo emergente de compreensão, que se inicia com um movimento de desconstrução, em que os textos do corpus são fragmentados e desorganizados, seguindo-se um processo intuitivo auto-organizado de reconstrução, com emergência de novas compreensões” (MORAES, 2003, p. 207). Ou seja, o objetivo, com este método, é o de buscar os sentidos dos textos nos “diferentes limites de seus pormenores”, o que se torna possível a partir da fragmentação em unidades de sentido menores, denominadas de “unidades de análise”, que em seguida, ao assumirem um significado mais completo possível em si mesmas, serão relacionadas a outras unidades de forma a nos permitir vislumbrar categorias que “constituem os elementos de organização do metatexto que a análise pretende escrever. É a partir delas que se produzirão as descrições e interpretações que comporão o exercício de expressar as novas compreensões possibilitadas pela análise” (MORAES, 2003, p. 197). Desta maneira, tendo sido fragmentados em unidades menores os textos que pertencem ao corpus a ser analisado, poderemos contar com subsídios para a construção de categorias que referenciem o fenômeno em estudo e,

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consequentemente, para sua interpretação. A descrição na análise textual qualitativa concretiza-se a partir das categorias construídas ao longo da análise. Descrever é apresentar as categorias e subcategorias, fundamentando e validando essas descrições a partir de interlocuções empíricas ou ancoragem dos argumentos em informações retiradas dos textos. Uma descrição densa, recheada de citações dos textos analisados, sempre selecionadas com critério e perspicácia, é capaz de dar aos leitores uma imagem mais fiel dos fenômenos que descreve. Essa é uma das formas de sua validação. (...) No contexto da análise textual, da forma como a compreendemos, interpretar é construir novos sentidos e compreensões afastando-se do imediato e exercitando uma abstração em relação às formas mais imediatas de leitura de significados de um conjunto de textos. Interpretar é um exercício de construir e de expressar uma compreensão mais aprofundada, indo além da expressão de construções obtidas dos textos e de um exercício meramente descritivo. (MORAES, 2003, p. 197). Devido a isto, consideramos a metodologia de análise textual qualitativa a mais adequada para a análise do corpus documental sobre o qual esta pesquisa pretende trabalhar. Por se tratar de produções textuais com origens diversas (Daer, discursos políticos, imprensa), porém, voltadas à discussão do mesmo tema, é necessário que façamos emergir os sentidos que não são captados à primeira leitura 496, de maneira que possamos compará-los entre si, buscando compreender o significado da construção da Travessia Régis Bittencourt para estes atores históricos distintos e promovendo em seguida a interpretação e descrição destes discursos nos pontos onde se aproximam e onde se distanciam. Neste último aspecto, também será útil para a pesquisa discutirmos o entendimento a respeito do conceito de “opinião” conforme Gabriel TARDE expôs: (...) apesar das divergências e da multiplicidade dos públicos que coexistem e se misturam numa sociedade, tais públicos parecem formar juntos um único e mesmo público, por seu acordo parcial em alguns pontos importantes; e é isso o que chamamos de opinião, cuja preponderância política não cessa de crescer. (TARDE, 1992, p. 49) 496

“Se um texto pode ser considerado objetivo em seus significantes, não o é nunca em seus significados. Todo texto possibilita uma multiplicidade de leituras, leituras essas tanto em função das intenções dos autores como dos referenciais teóricos dos leitores e dos campos semânticos em que se inserem. A análise qualitativa opera com significados construídos a partir de um conjunto de textos. Os materiais textuais constituem significantes a que o analista precisa atribuir sentidos e significados”. (MORAES, 2003, p. 192)

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Vejamos que aqui se apresenta um problema interessante. Se levarmos em conta que de acordo com TARDE - existe uma multiplicidade de públicos 497 na sociedade - embora haja uma convergência de opiniões desses diversos públicos em determinados temas - então o boletim técnico publicado pelo Daer, o discurso de um deputado no plenário da Assembleia e um editorial da imprensa, possivelmente endereçados a públicos diferentes, mesmo quando abordam a mesma questão, podem conter opiniões distintas entre si, porém, também podem carregar uma opinião comum, já que se trata de uma questão estratégica para o desenvolvimento do estado: a construção de uma obra que trará progresso. Neste caso, é importante que busquemos identificar a opinião expressa por cada um desses emissores, bem como as suas variações internas. A título de exemplo, com base na pesquisa que já efetuamos nos Anais da Assembleia, pudemos identificar, em agosto de 1953, manifestação contrária à construção da Travessia, por parte do deputado Lima Beck, do Partido Libertador: Sou contra no momento, o túnel ou ponte, porque entendo que obras de túnel ou de pontes, no momento, constituem aparto desnecessário, visto que o serviço de barcas, melhorado em condições modernas, com as que existem hoje, satisfaria razoavelmente às necessidades de desafôgo dos meios de transporte. (Anais da Assembleia, agosto de 1953, deputado Lima Beck). É uma opinião surpreendente, sobretudo quando verificamos, até o momento, que nas outras fontes, existe a crítica feroz contra o sistema de barcas: “o primitivismo da barca” 498 e “serviço incapaz de dar a segurança, regularidade e um escoamento satisfatório do tráfego” 499. Contudo, precisamos ter em mente o fato de que lidamos aqui com a construção de um objeto de estudo em aproximação à noção de "opinião pública". Verdadeiramente, tentamos reconstituir a "opinião pública" em relação à construção da Travessa Régis Bittencourt. Mas, para isso, se torna indispensável evitarmos qualquer tipo de anacronismo ao trabalharmos com uma “definição de ‘opinião pública’ que não era a dos atores históricos” (CHAMPAGNE, 1998, p. 69):

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Para TARDE (1992, p. 29), o público é “uma coletividade puramente espiritual, como uma disseminação de indivíduos fisicamente separados e cuja coesão é inteiramente mental”. 498 Correio do Povo, 01/10/1958, p. 4. Editorial “A era das barcas”. 499 Engº Walter HAETINGER, Boletim do Daer, nº 62/63, 1954.

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Ao mobilizar todas as fontes disponíveis (imprensa, manifestações, assim como arquivos públicos, pesquisas ocasionais, cultura popular através de canções ou pichações, correio dos leitores e jornais privados, etc.) [os historiadores] fabricam uma “opinião pública” que, de fato, ninguém chegou a conhecer dessa forma, fazendo desaparecer ao mesmo tempo a especificidade desse objeto eminentemente histórico. (CHAMPAGNE, 1998, p. 69) Entretanto, CAPELATO (1988, p. 20) diz que “o passado é, sem dúvida, o objeto do historiador, mas hoje se admite que esse objeto é construído e reconstruído, tendo em vista as necessidades e perspectivas do presente”. Contudo, a autora reconhece o valor da imprensa como fonte: A leitura dos discursos expressos nos jornais permite acompanhar o movimento das ideias que circulam na época. A análise do ideário e da prática política dos representantes da imprensa revela a complexidade da luta social. Grupos se aproximam e se distanciam segundo as conveniências do momento; seus projetos se interpenetram, se mesclam e são matizados. Os conflitos desencadeados para a efetivação dos diferentes projetos se inserem numa luta mais ampla que perpassa a sociedade por inteiro. O confronto das falas, que exprimem ideias e práticas, permite ao pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o significado da atuação de diferentes grupos que se orientam por interesses específicos. (CAPELATO, 1988, p. 34) Este trecho é extremamente relevante, não somente para a pesquisa nos jornais, como para a análise dos discursos dos deputados na Assembleia Legislativa a respeito do contexto econômico e rodoviário do Rio Grande do Sul na década de 50 500. Em primeiro lugar, porque, como TARDE coloca, os partidos políticos “interpenetram-se facilmente porque (...) cada um de nós faz parte ou pode fazer parte de vários públicos ao mesmo tempo” (1992, p. 48) e, neste sentido, PSD e PTB, que polarizavam a política estadual e possuíam projetos de desenvolvimento diferentes, parecem fazer parte do mesmo público, que acredita na travessia a seco do Guaíba, procurando, cada um a seu modo, reivindicar a paternidade da obra. Por fim, devemos lembrar que, em nível nacional, duas correntes de pensamento econômico disputavam a hegemonia sobre o modelo de industrialização a ser seguido: neoliberalismo e

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A aliança que levou Juscelino Kubitschek ao poder era PSD-PTB, mas no Rio Grande do Sul estes dois partidos eram grandes antagonistas.

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desenvolvimentismo 501. A gênese da Travessia Régis Bittencourt: debates no Daer, na Assembleia e na Imprensa Nos anos 50, no estado do RS, a economia, muito por conta do modelo desenvolvimentista de JK (1956-1961), passa a encolher significativamente (MÜLLER, 1979) e, neste aspecto, aconteceram algumas situações paradoxais. Como exemplo, podemos citar uma das grandes demandas do estado naquele período, que era a superação do sistema de travessia fluvial realizado por barcas, havendo o desejo de que pontes (travessias a seco) substituíssem o já defasado e problemático meio de transporte que não dava mais conta do crescente tráfego de veículos e passageiros 502. Em 1944 503, quando começam as primeiras discussões a respeito de uma travessia a seco do Guaíba, a economia rio-grandense apresentava um determinado aspecto; quando as obras terminam (em 1958) o contexto econômico é outro, notadamente declinante 504. Devido a isto, é fundamental observarmos os obstáculos, que se tornavam verdadeiros “pontos de estrangulamento da economia” (MOREIRA, 2003, p. 160), sendo um deles as dificuldades referentes à travessia do Guaíba 505. Desde 1941, a travessia era realizada pelo

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Contudo, para BIELSCHOWSKY, neste período “(...) o que se põe em discussão não é mais a validade de uma política econômica de suporte à industrialização; o grande debate passa a ser o do ritmo que o governo poderia procurar imprimir o desenvolvimento urbano-industrial. Esse debate desdobrou-se nas discussões sobre o grau de tolerância admissível quanto aos desequelíbrios monetários e cambiais gerados no processo em curso e sobre a relação entre intervenção do Estado, superação dos desequilíbrios e continuidade do desenvolvimento” (2004, p. 364). 502 Conforme KIEFER, “O tempo médio de travessia era de uma hora e 30 minutos para pouco mais de cinco quilômetros de percurso. Na medida das necessidades, novas barcas foram incorporadas à frota, mas, mesmo assim, o sistema de balsas não conseguia dar conta do crescente movimento de veículos. Em 1954, funcionavam seis barcas que transportaram 246 mil veículos e 827 mil passageiros ao longo do ano. Esses números já vinham sendo dobrados a cada três ou quatro anos” (2007, p. 42). 503 O ponto inicial da pesquisa, o qual consideramos fundamental para a compreensão de como o processo de industrialização se fez acompanhar pela necessidade de melhorias e de implantação de novas rodovias, está situado na análise do Plano Rodoviário Nacional, criado por Vargas em 1944. Tal plano previa rede de estradas ligando o extremo sul ao norte/nordeste, e veio, de fato, a construir as atuais BR 116 e BR 290. (KIEFER, 2007, p. 38) 504 De acordo com MÜLLER (1979), a economia gaúcha neste período percebeu um grande “progresso industrial”, contudo, “tão logo terminara a guerra, fato que ocorreu concomitantemente à abertura do processo político à forma democrática, os obstáculos à expansão das mencionadas forças econômicas [transportes produtivos e energia elétrica para o parque fabril] emergem como uma avalanche” (p. 360361) 505 Uma das grandes discussões da época diz respeito à natureza do Guaíba, sem haver consenso sobre este ser rio, lago, estuário etc.: “até hoje ninguém sabe realmente o que é o Guaíba, isto é, qual o nome que se lhe deve dar nos mapas e nas publicações que a ele se referirem” (ASSIS, 1960, p. 13). Atualmente, o Guaíba é caracterizado pelos autores como um lago. Esta discussão pode vir a se tornar

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sistema de balsas, sistema este implantado pelo Daer 506. Contudo, ao analisarmos a documentação referente ao volume de tráfego entre 1942 e 1954, podemos verificar o aumento considerável do número de passageiros 507. No ano de 1942, por exemplo, apenas 63.373 passageiros, em 13.116 veículos, efetuaram a travessia entre Porto Alegre e Guaíba. Já, em 1946, os dados aumentam significativamente: 205.702 passageiros, em 36.990 veículos, cruzaram as águas do Guaíba entre a capital e a metade sul do estado. Em 1954, temos a medida do tamanho do aumento do fluxo: 246.000 veículos e 827.000 passageiros. Isto é, em apenas 12 anos o volume de tráfego de passageiros aumentou 12 vezes, enquanto o número de veículos teve um incremento de 18 vezes. Não são necessárias grandes especulações para imaginarmos o verdadeiro caos que se instalou nos transportes entre Porto Alegre e Guaíba. Por outro lado, é necessária uma análise aprofundada para descobrirmos os motivos que levaram a esse espantoso aumento do tráfego de passageiros na década de 40 e chegando até a metade da década de 50, quando as obras da Travessia Régis Bittencourt foram de fato iniciadas, com o objetivo claro de resolver este problema que impactava gravemente sobre o desenvolvimento econômico do estado. Uma hipótese a ser verificada - e que pode ajudar a explicar estes problemas - diz respeito a algumas características da urbanização na América Latina, neste trecho referidas por SINGER: (...) aceleração crescente, desnível entre o fraco desenvolvimento das forças produtivas e a acelerada concentração espacial da população, formação de uma rede urbana truncada e desarticulada que não hierarquiza as aglomerações segundo uma visão técnica de atividades. (SINGER, 1973, p. 69) Isto é, a macrocefalia metropolitana, sobretudo neste período onde o Brasil está deixando de ser um país com população majoritariamente rural, pode ser uma das causas de tamanho tráfego de veículos e passageiros.

interessante também em outro aspecto, quando Braudel, diz, por exemplo, que “um rio pode ser tratadopor uma sociedade como uma barreira, mas por outra, como um meio de transporte” (BURKE, 1997 p. 26). 506 Frequentemente, nos editoriais do Correio do Povo entre 1955 e 1958 é utilizada a expressão “primitivo e obsoleto” para caracterizar o sistema de barcas. 507 Dados extraídos do boletim do Daer número 36, publicado em setembro de 1947 e KIEFER (2002).

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Já sabemos que a “Ponte do Guaíba” 508 é fruto da política de transportes expressa no Plano Rodoviário de 1944 e que veio, aparentemente, atender a uma demanda historicamente situada: o crescente fluxo de veículos e passageiros iniciado nos anos 40. Agora nos resta tentar compreender a “Ponte do Guaíba” como um dos resultados concretos, 14 anos depois, do Plano Rodoviário Nacional de 1944, “que pretendia fundamentalmente, ligar o país de Norte a Sul e cortá-lo em outras direções, estendendo sobre o território nacional uma trama de vias de comunicação eficiente” 509, e, por outro lado, entendê-la como resposta a uma demanda econômica em um processo de surto econômico regional durante a guerra e de crise nos anos JK. O problema do grande tráfego levou a uma mobilização do Dner e Daer no ano de 1948 para que fosse encontrada uma solução rodoviária, já que o sistema de barcas estava congestionado. Uma das soluções apresentadas foi bastante curiosa: um túnel subfluvial ligando a ponta do gasômetro à Ilha da Pintada. Obviamente, e devido a todas as dificuldades técnicas 510 e de volume de recursos (por exemplo, a estimativa na época foi de gastos de quase 1 bilhão de cruzeiros, contra os 490 milhões estimados para a Travessia Régis Bittencourt), esta alternativa foi logo descartada, entrando em cena um dos maiores debates técnicos já ocorridos no estado do Rio Grande do Sul. Enfim, foi este debate que resultou em uma comissão técnica do Daer com a função de solucionar o problema da travessia do Guaíba. Uma das primeiras alternativas propostas foi a modernização do sistema de barcas. Entretanto, logo houve a percepção de que simplesmente investir em mais barcas não solucionaria o problema, sendo necessário investir na travessia a seco do Guaíba, que se deu muito em função de articular todo o sistema rodoviário do sul do Estado com Porto Alegre de maneira mais

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O nome oficial da obra é “Travessia Engenheiro Régis Bittencourt” em homenagem a um dos principais engenheiros da obra. No entanto, o nome nunca foi unanimidade, inclusive, provocando grandes polêmicas. Em 1958, o candidato ao governo do estado Leonel Brizola, prometeu durante a campanha efetuar a troca do nome para “Travessia Getúlio Vargas”, algo que acabou não acontecendo. Segundo WORM (1974, p. 74) estas foram “questiúnculas de cunho político”. A polêmica ganhou a imprensa, com muitos leitores escrevendo cartas aos jornais, em alguns casos sugerindo o nome de “Bento Gonçalves” para batizar a Travessia. No entanto, o nome que acabou sendo mais utilizado, tanto popularmente, quanto pela imprensa, foi “Ponte do Guaíba”, mesmo contando a Travessia com 4 pontes, uma delas sobre o rio Jacuí. 509 Conforme definição do Ministério dos Transportes: http://www.transportes.gov.br/conteudo/60924 510 De acordo com os projetos publicados pelo Daer, “o túnel teria 1.200m e ligaria Porto Alegre à Ilha da Pintada, exigindo-se por isso, mais 3.600m de viadutos sobre o Saco de Santa Cruz, para completar a travessia”. além disso a solução de travessia subfluvial exigiria a construção de uma torre de ventilação no meio do Guaíba (BOLETIM DO DAER, nº 62/63, 1954).

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eficaz 511. A partir do Plano Rodoviário Nacional, que privilegiava a travessia a seco, foram estudadas três alternativas: a) ao sul da capital; b) centro da cidade; c) zona norte (vencedora). É nesse sentido que se torna importante para a pesquisa a análise dos extensos artigos publicados nos boletins do Daer, que revelam a preocupação dos engenheiros em encontrar uma solução satisfatória para que o intenso fluxo de veículos pudesse fluir livremente, sem prejuízos para a economia do estado: A atual travessia por meio de barcas já apresenta uma precariedade incompatível com as necessidades da vida econômica e social do Estado. O trânsito, que já atinge e casa dos 800 veículos diários, estava a exigir solução que, embora de alto custo, viesse corrigir este emperramento ao livre e seguro transporte entre Porto Alegre e a zona sul, onde se situam, além da 2ª e 3ª cidade do Estado, uma série infindável de núcleos de produção, em franco desenvolvimento. (Engº. Walter Haetinger, Boletim do Daer, nº 62/63, 1954). Como podemos ver, o entendimento de HAETINGER é de que a economia do estado passava por um surto de desenvolvimento, porém, o estado não possuía infra-estrutura adequada para comportar o aumento do volume de transportes oriundos desta nova etapa de atividades econômicas. A sua preocupação é a de que, com a economia progredindo, ocorra que as deseconomias externas impeçam a continuidade do seu desenvolvimento. No Boletim do Daer de dezembro de 1958, portanto, datando do período de conclusão da travessia a seco do Guaíba, o sentido da obra é indicado mais uma vez, através de expressões como “obra de maior significação técnica e econômica no cenário das comunicações brasileiras”, referindo-se a importância da “Ponte do Guaíba” em possibilitar o melhor fluxo de pessoas e mercadorias, não só internamente, mas também para fora do estado; ou então sobre a travessia de barcas que “apresentava condições precárias e incompatíveis com o desenvolvimento econômico e social do Estado” indicando a consciência do autor sobre o congestionamento das barcas ser um problema que merecia atenção não somente por uma questão de aborrecimentos pontuais, mas por estar diretamente ligado às questões sócio-econômicas brasileiras; e por último, mas não menos importante, e que diz respeito a um dos problemas desta pesquisa, a indicação de que a obra estava “incluída no Plano Rodoviário Nacional, pois serviria às rodovias federais BR-2, BR-59 e BR-37”. 511

“As barcas vão custar quase o preço da ponte”, destaca o deputado Hélio CARLOMAGNO (PSD) no plenário da Assembleia Legislativa em 1953, ao defender a travessia a seco.

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Colocados estes itens, obtidos no levantamento de fontes junto ao Daer, podemos passar para outras questões que servirão para nortear a pesquisa. A mais importante diz respeito à pujante economia gaúcha no período entre 1930 e 1945 e sua posterior decadência em meados da década de 50. Como nos lembra MÜLLER, (...) podemos afirmar que, entre 1930 e 45, a economia gaúcha permitia a seus dirigentes - homens de Estado, empresários e muitos outros - alimentarem-se de um grande otimismo. Já entre o final da segunda grande guerra e meados dos anos 50, a expansão da economia gaúcha, por estar exigindo significativas mudanças ao nível de intermediação - comercialização, armazenagem e financiamentos fez com que o otimismo começasse a ceder, dando lugar a atitudes de apreensão (MÜLLER, 1979, p. 359) Nesse sentido, a pesquisa pretende investigar estas alterações econômicas ocorridas no estado do RS exatamente no período no qual chega ao fim a “era das barcas” e inicia-se a “era das pontes”, de forma que possamos entender como foi o processo de modernização da infra-estrutura de transportes terrestres no RS enquanto a economia nacional passava por um surto de industrialização, ao passo que a economia regional involuía. Ou seja: a economia, que prosperara, exigira modernizações na infra-estrutura de transportes 512, no entanto, quando estas melhorias são por fim realizadas o contexto é de crise. Outro ponto interessante a ser analisado é que o início oficial das obras da “Ponte do Guaíba” (colocação das estacas da ponte sobre o rio Jacuí) se deu em meio a grande polêmica a respeito de aumento tributário da taxa rodoviária. Tanto o Diário de Notícias, quanto o Correio do Povo, deram grande espaço ao diretor do Daer para que este rebatesse manifestação das associações comerciais que posicionaram-se de maneira contrária ao aumento 513. O diretor Parga argumentava na ocasião que o aumento é pequeno - percentual entre 1% a 2% - e lembra que no momento de desenvolvimento do estado, com grandes obras rodoviárias, se faz necessário uma cobrança maior de impostos. Destaca que, se assim não o 512

Conforme o jornal Correio do Povo definiu, esta é a "Era das Pontes" (Correio do Povo, 09/10/1958, p. 4), onde diversas obras do gênero estão sendo concluídas em todo o estado: Ponte do Rio das Antas, Ponte General Osório (sobre o Ibicuí, na estrada de S. Maria a Uruguaiana), Ponte da Revessa, Ponte do São Gonçalo (zona sul do estado), Ponte do Jacuí, Ponte do Loreto (entre os municípios de General Vargas e S. Francisco de Assis). 513 “Terá inicio hoje mais uma etapa da travessia do Guaíba” (Correio do Povo, 21/10/1955, p. 11 e 18); “Refuta o diretor do Daer o memorial do comércio contra a taxa rodoviária” (Diário de Notícias, 21/10/1955, p. 4 e 14).

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fizessem, seriam, no futuro, considerados “tímidos e acanhados” por “não saberem em tempo devido corresponder a conjuntura que se apresentava”. O jornal não se posiciona neste momento, apenas faz o relato da discussão. Contudo, mais tarde, com a inauguração da ponte é notória a posição do jornal apoiando a cobrança de pedágio, o que caracterizaria um posicionamento liberal 514. O autor do texto especial “O pedágio na ponte do Guaiba” parece bastante inclinado a defender a cobrança do pedágio e utiliza argumentos liberais do tipo "como bom brasileiro o gaúcho acha que o estado deve prever e prover tudo". Outra questão que o mesmo autor traz e que permeia todas as edições analisadas - diz respeito à expectativa de grande desenvolvimento do município de Guaíba, devido ao advento da ponte, o que de fato não veio a ocorrer. Havia planos na época até mesmo para um aeroporto internacional nesta cidade: A travessia de Porto Alegre a Guaíba, além de permitir a passagem rápida dos veículos sobre “o rio que não é rio”, provocará sem dúvida alguma o extraordinário desenvolvimento do município de Guaíba (...) Pretende-se nessa área construir o Aeroporto Internacional de Guaíba, centros industriais e operários, tudo de acordo com a mais moderna técnica urbanística. (Correio do Povo, 25/01/1959, p. 25) Depreende-se deste trecho a forte expectativa em relação ao advento da Ponte. De certa forma, uma expectativa ingênua, como se a Ponte por si só pudesse garantir o desenvolvimento industrial e urbano da região onde fosse construída. Para finalizar a questão a respeito da cobrança ou não de pedágio na “Ponte do Guaíba”, vale destacarmos a posição do jornal Diário de Notícias 515. O periódico foi claramente a favor da cobrança, algo que expressou em seus editoriais. Por exemplo, na edição de 3 de janeiro de 1959, portanto, menos de uma semana após a inauguração da Travessia Régis Bittencourt, o Diário de Notícias defendeu enfaticamente a cobrança de pedágio em diversas pontes do estado (Taquari, Rio Pardo e Antas) e sobretudo na recém inaugurada travessia a seco do Guaíba. Como argumento principal utiliza o fato de que antes das pontes a travessia era realizada através de barcas e este serviço - embora precário - era pago. Desta forma, o pedágio nas pontes deveria ser cobrado e utilizado para a construção de rodovias "dignas deste nome" no Rio Grande do Sul. O editorial não esquece que as pontes foram construídas com recursos públicos, oriundos das Taxas de 514 515

“O pedágio na ponte Porto Alegre - Guaíba” (Correio do Povo, 25/01/1959, p. 25). “Pontes e pedágio (editorial)” (Diário de Notícias, 03/01/1959, p. 4).

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Transporte, mas é enfático em defender que a renda obtida com uma eventual cobrança de pedágio deveria ser utilizada para a construção e manutenção das rodovias. Obviamente, a ponte foi considerada uma extraordinária obra de engenharia, chamada pelo Diário de Notícias de “vedeta da cidade” 516 e “façanha técnica rio-grandense” 517. Contudo, há também a “expressão social e econômica da ponte do Guaíba”, título de um artigo assinado por Paulo Tollens na edição de 18/01/1959 do Diário de Notícias. O autor cita arquitetos que preveem uma "cidade industrial linear Jacuí-Guaiba" e prevê a conurbação 518 da cidade de Porto Alegre com cidades distantes até 3 horas de distância, considerando que isso pode gerar populações “sadias e trepidantes”. Com isso, conclui que as regiões mais pobres do estado serão iluminadas pelos costumes da capital que se torna cada vez mais metropolitana e menos açoriana... Aqui podemos estabelecer uma relação com a discussão que OLIVEN (1988, p. 6768) faz a respeito da transformação do Brasil em uma sociedade urbana. Além dos vários processos que promovem essa transformação (penetração das relações capitalistas no campo, diminuição da mortalidade infantil e expansão das fronteiras agrícolas), OLIVEN destaca mais um: (...) o quarto processo é representado pela atração que a cidade exerce sobre as populações rurais, através da expectativa de melhores condições de vida e trabalho, o que é fomentado pela constante difusão de imagens e valores urbanos através do país pelos meios de comunicação de massa. (OLIVEN, 1988, p. 68) O autor do artigo referido nada mais faz do que confirmar esta tendência de opinião a respeito das benesses urbanas e a reproduz em um jornal de grande circulação como o Diário de Notícias. Outro aspecto muito importante relacionado às obras da Ponte está no campo político. No ano de 1958 (mesmo ano de inauguração da Travessia) ocorreram eleições para o governo do estado e as duas forças políticas principais (PTB-PRP-PSP e Frente Democrática) utilizaram-se sem a menor cerimônia da obra para atingir seus objetivos eleitorais. As acusações, de ambos os lados, sobre sabotagens, foram frequentes e amplamente divulgadas em longos “a pedidos” mandados publicar tanto no Correio do Povo, quanto no Diário de Notícias. 516

“Ponte: a vedeta da cidade” (Diário de Notícias, 04/01/1959, capa e p. 12). “Ponte do Guaíba: façanha técnica rio-grandense” (Diário de Notícias, 06/01/1959, p. 11-12) 518 Conforme CHOY, “o termo foi criado por Patrick Geddes, para designar as aglomerações urbanas que invadem uma região toda, pela influência atrativa de uma grande cidade.” (CHOY, 2013, p. 2) 517

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Um caso emblemático do uso eleitoral da ponte aconteceu no início do mês de setembro de 1958, portanto, em torno de 30 dias antes do pleito. O vão central da ponte sobre o Jacuí desabou e segundo o Daer o acidente não ocorreu nem por falha técnica, nem por “pressa” em concluir a obra dentro do prazo 519. Logicamente, este seria o posicionamento esperado pelo órgão, que, ao menos em um primeiro momento procuraria eximir-se de qualquer responsabilidade 520. No entanto, com o passar dos dias o caso foi apropriado pelas duas forças contendoras naquela eleição 521. Durante a inauguração da Ponte da Revessa, o governador Meneghetti, em seu discurso, afirmou que o vão havia ruído devido a um ato de sabotagem. Da mesma forma afirmou que a Travessia como um todo não havia ainda sido aprontada devido a atos de sabotagem. Como não poderia deixar de ser, no dia seguinte houve uma grande reação por parte dos defensores de Brizola, que concorria com Walter Peracchi. “Leviandade do governador”, “insensata declaração”, foram algumas das expressões usadas. Assim como o uso exaustivo de uma fotografia realizada em torno de uma hora antes do desabamento 522 para rebater as acusações de Meneghetti, que na verdade, aproveitava o acidente para acusar e enfraquecer o candidato do PTB, Leonel Brizola. Considerações finais Os sentidos da Travessia Régis Bittencourt para o Brasil, para o estado do Rio Grande do Sul e para sua capital são inúmeros, indo desde o fascínio provocado sobre a sociedade à época devido sua monumentalidade, passando pelos aspectos práticos como a significativa melhoria na mobilidade entre as duas margens, até as expectativas econômicas e sociais que a obra gerou. Como visto, os motivos para a construção da obra se deram em um primeiro momento devido ao crescente aumento do tráfego de veículos e passageiros que o antigo sistema de barcas não possuía mais condições de atender satisfatoriamente. Igualmente, consideramos a 519

“Ruiu o vão central da ponte do JacuÌ” (Correio do Povo, 02/09/1958, p. 27-28); “Técnicos do Daer e da firma ABC investigam as causas do acidente” (Correio do Povo, 03/09/1958, p. 13 e 16); “Dirigido ao Executivo pedido de informações sobre a queda de um vão na ponte do Guaíba” (Correio do Povo, 04/09/1958, p. 7). 520 “Explicações oficiais do Daer sobre a queda de um vão na ponte do Guaíba” (Correio do Povo, 11/09/1958, p. 7) 521 “O pronunciamento da Revessa” (Correio do Povo, 26/09/1958, p. 20); “Sabotagem na Ponte do Guaíba” (Correio do Povo, 26/09/1958, p. 20); “Sabotagens (a pedido)” (Correio do Povo, 28/09/1958, p. 35). 522 “Uma foto de rara oportunidade: a estrutura prestes a desabar” (Correio do Povo, 03/09/1958, p. 16); “Fotografia que desmente” (Correio do Povo, 26/09/1958, p. 20)

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obra um dos frutos do Plano Rodoviário Nacional de 1944, que privilegiava as travessias a seco e previa uma rede de rodoviais por todo o país. Um aspecto interessante, que devemos levar em consideração, é o grande crescimento da economia gaúcha no período da guerra e a posterior crise na década de 50. A Travessia Régis Bittencourt é planejada e executada durante esse período de transição. Da mesma forma, pudemos identificar a importância dos debates ocorridos no Daer, de modo a se definir qual o melhor projeto e a melhor localização para a construção do complexo de pontes. Estes debates, não restritos ao campo técnico, espalharam-se pela imprensa e adquiriram relevância na Assembleia, onde também é possível identificarmos divergências a respeito da necessidade da obra. Por sinal, em relação aos debates, sobretudo aqueles ocorridos na imprensa, fica evidente a grande expectativa advinda da simples construção da Travessia. Os coetâneos imaginaram que, a partir da realização desta obra, todo uma nova realidade urbana e industrial se instalaria em Porto Alegre e regiões próximas, de forma a se constituir uma cidade industrial conurbada, tendo como sua artéria mais importante a Travessia Régis Bittencourt. Afinal, como percebeu e caracterizou a imprensa pouco antes da inauguração da obra, o Rio Grande do Sul supostamente deixava para trás uma época de atraso e entrava em um novo período da sua história. Terminava a “era das barcas” e iniciava a “era das pontes”. A era das barcas

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Figura 1: Editorial “A era das barcas” (Correio do Povo, 01/10/1958, p. 4) A era das pontes

Figura 2: Editorial “A era das pontes” (Correio do Povo, 09/10/1958, p. 4)

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