Da falibilidade congênita do entendimento humano – breve ensaio sobre “O ovo e a galinha”, de Clarice Lispector

May 24, 2017 | Autor: Ygor Raduy | Categoria: Friedrich Nietzsche, Clarice Lispector
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Da falibilidade congênita do entendimento humano – breve ensaio sobre “O ovo e a galinha”, de Clarice Lispector.1 Ygor Raduy2

Neste breve artigo, intenciona-se tecer algumas considerações sobre o texto “O ovo e a galinha” de Clarice Lispector. O objetivo é pôr em destaque as divergências entre o texto de Lispector e a ideia de “realismo” literário. Entende-se aqui “realismo” na acepção lata de criação artística verbal que toma a “realidade” como princípio orientador da narrativa. Para tanto, buscase estabelecer um diálogo entre a literatura e a filosofia: algumas ideias de Nietzsche (especialmente acerca do entendimento) têm por escopo esclarecer de que forma e por que razão pode-se dizer que a narrativa de Lispector distancia-se daquilo que normalmente entende-se por “realismo” no campo literário. Segundo nossa leitura, nos seis ou sete parágrafos iniciais de “O ovo e a galinha” a narradora condensa a perspectiva estético-filosófica que será adotada ao longo da narrativa, sendo justamente esta perspectiva que aqui nos interessa. Assim, nosso objetivo não é empreender uma análise exaustiva do texto, mas sim focar a atenção especialmente em seus primeiros parágrafos. A nosso ver, tais parágrafos iniciais servem como “premissas” ou como um “preâmbulo” do que virá a seguir. Consideramos que tal preâmbulo traz claramente indicadas as vias percorridas pelo texto de Lispector alternativas ao pacto ficcional realista.

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Ensaio apresentado como conclusão da disciplina “Teoria da ficção” ministrada pela prof. Raquel Illescas Bueno durante o segundo semestre de 2016. 2 Doutorando em Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná.

É importante apontar que, segundo nosso entender, a ideia de “realismo” aplicada à arte se encontra fundamentada em dois pressupostos básicos intimamente relacionados. O primeiro deles diz respeito ao conhecimento. Trata-se de uma noção cara ao platonismo, mais tarde retomada pela filosofia escolástica e que permeia toda a história do pensamento ocidental: a suposta capacidade do entendimento humano de conhecer as coisas de forma incondicionada. Segundo tal ideia, o sujeito cognoscente estaria apto a apreender diretamente, sem qualquer interferência perspectivística, a essência do objeto como ele realmente é. Importante observar que tal capacidade encontra-se tradicionalmente assegurada por alguma instância transcendente ( seja “Deus”, “”razão”, “substância” ou similares). Na linguagem da filosofia escolástica, tal célebre noção é conhecida como “adequatio intellectus ad rem”, isto é, “adequação do intelecto às coisas”. A segunda noção que subjaz à ideia de realismo, inseparável da anterior, diz respeito à linguagem. Trata-se de uma ancoragem (diríamos, um encaixe) entre dois polos: de um lado, a linguagem (verbal, no caso que nos interessa); de outro lado, aquilo que se convencionou chamar de “realidade”. Em outros termos, tal encaixe é resultado de uma “confiança” (uma “crença”, em termos nietzschianos) de que a linguagem é capaz de assumir um papel especular que reflete fielmente aquilo que se considera o “real”. O pacto ficcional realista parece assentar-se sobre a ideia de linguagem como “representação”, como “reflexo” do real. Dito de outra forma, a linguagem aparece aí como um instrumento translúcido que age como mero mediador entre o receptor e os elementos representados. Representação esta cujos elementos podem ser racionalmente processados e compreendidos pelo leitor.

Tomemos como exemplo o primeiro período de Madame Bovary. Ali, lemos: “Estávamos na sala de estudos quando o diretor entrou com um novato sem uniforme e com um servente carregando uma carteira enorme.” (FLAUBERT, 2015, p. 13). Desde a primeira sentença do romance de Flaubert, o leitor é levado a uma série de inferências que o situam dentro de um certo ambiente mais ou menos familiar: a sala de estudos, o diretor, o servente, o novato sem uniforme, a carteira enorme – tudo, desde as primeiras palavras da narrativa, leva-nos a crer, entre outras coisas, que estamos frente a um ambiente escolar onde vigora uma hierarquia social. Ou ainda, que a aparição do novato esteja a causar certa perturbação na ordem cotidiana da escola. A escritura de Clarice Lispector que lança graves suspeitas sobre ambos os pressupostos. Em primeiro lugar, a suspeita de que o entendimento humano – plasmado em linguagem – possa apreender algo que independa da perspectiva humana, isto é, algo “em si”, intocado pelas categorias através das quais tal entendimento organiza e classifica os elementos do entorno. Em segundo lugar, a suspeita da ideia de linguagem como representação, ou seja, como artifício especular capaz de representar com neutralidade os elementos do entorno. A seguir, tentaremos clarificar a conexão entre tais suspeitas caras à filosofia de Nietzsche e o texto de Clarice Lispector, especialmente no que diz respeito à primeira das questões, àquela relativa ao entendimento. Na narrativa de Clarice Lispector (a própria autora hesita em chamála de “conto”), é possível dizer, com alguma segurança, que pacto ficcional realista é rompido de forma drástica. De fato, “O ovo e a galinha”, ocupa um lugar singular dentro da obra da escritora. Entre os próprios “aficionados” por Lispector, o texto é comumente classificado como “hermético”. Além disso, vale notar que em duas ocasiões, a própria escritora afirma não compreendê-lo. Uma das ocasiões ocorreu durante a célebre entrevista

concedida por Lispector à TV Cultura em 1977. A outra, durante o Congresso Mundial de Bruxaria, ocorrido em Bogotá em agosto de 1975. Clarice Lispector, convidada para o evento, escolhe para apresentação justamente “O ovo e a galinha”. Antes da leitura do texto, a escritora diz algumas palavras, entre as quais: (...) E alguém vai ler agora em espanhol um texto que eu escrevi, uma espécie de conto chamado “O ovo e a galinha”, que é misterioso mesmo para mim e tem sua simbologia secreta porque, se vocês tentarem apenas raciocinar, tudo o que vai ser dito escapará ao entendimento. Se uma dúzia de ouvintes sentir o meu texto, já me darei por satisfeita. E agora por obséquio ouçam “O ovo e a galinha”, que é misterioso mesmo para mim e tem uma simbologia secreta. Eu peço a vocês para não ouvirem só com o raciocínio porque, se vocês tentarem apenas raciocinar, tudo o que vai ser dito escapará ao entendimento. Se uma dúzia de ouvintes sentir o meu texto, já me darei por satisfeita. (GOTTLIEB, 2013, p. 537)

Aparentemente a fala de Lispector não nos auxilia a compreender o caráter desviante do texto em relação ao realismo literário e à própria produção da escritora. Porém, se atentarmos para o binômio entender/sentir posto em relevo por Lispector, talvez possamos inferir a aparição ainda tímida de uma questão primordial que perpassa o texto e que diz respeito a uma fissura entre o entendimento e a realidade. Contudo, vamos ao texto verificar de que forma as questões que apresentamos são plasmadas literariamente. Em “O ovo e a galinha”, o pacto ficcional realista parece subsistir em alguns pontos, para imergir em outros. Veja-se o início do texto: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Até aí, as coisas parecem caminhar normalmente – temos uma narradora (mais à frente o gênero feminino da instância que narra será definido) em terceira pessoa que se dirige ao leitor a partir de um espaço doméstico (a cozinha) bem reconhecível. Em seguida: “Olho o ovo com um só olhar.” (idem) Ainda temos algo plausível segundo a ancoragem realista. Já na terceira sentença,

uma espécie de estranhamento vem romper o “encaixe”. Vejamos: “Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios.” (ibidem). É possível imaginar um leitor formado dentro da tradição realista a se perguntar: “Mas por que não se pode estar vendo um ovo? Por que ver um ovo torna-se ter visto um ovo há três milênios? E por que precisamente três milênios?” Questões aparentemente sem resposta. Questões que escapam ao “entendimento”. Durante este breve ensaio, tentaremos esclarecer de que forma essa “fuga ao entendimento” age dentro da dinâmica do texto clariceano. Em “O ovo e a galinha”, o leitor é lançando em um turbilhão de reflexões, constatações, historietas, enigmas sobre o ovo (e a galinha) que rompem violentamente com a lógica discursiva. Sob nossa perspectiva, tal rompimento se dá não apenas no sentido em que a narrativa se encaminha para o nonsense e para a desfiguração da expectativa de um transcurso racional do narrado (procedimento literário usado amiúde). O rompimento relevante que aqui temos em vista refere-se ao fato de que as questões postas em relevo pelo texto colocam sob grave suspeita a possibilidade de que o entendimento humano seja capaz de apreender algo a respeito da realidade. Algo – e aí está, a nosso ver, o aspecto crucial – que independa das redes de sentido já cristalizadas, responsáveis por tornarem tão “familiar” um objeto como o “ovo”. O que Clarice Lispector parece propor é um radical estranhamento do que é tido como prosaico, ou ainda, a intervenção (por vezes violenta) nas redes de significado que asseguram um estatuto fixo aos objetos (o ovo é apenas um exemplo entre inúmeros outros disseminados pela obra). Em outras palavras, a narrativa de Lispector parece indagar: “será mesmo que

entendemos aquilo que julgamos entender? Ou será que – em termos nietzschianos –herdamos esse suposto entendimento como forma de organizar, esquematizar, hierarquizar, classificar, camuflar o impetuoso vira-ser que sem o artifício apaziguador e ordenador do entendimento poderia ser fatal à vida?” Nietzsche observa, em um de seus Fragmentos póstumos:

(...) toda a história da cultura representa uma atenuação diante daquele medo diante do acaso, diante do incerto, diante do repentino. Cultura significa justamente aprender a calcular, aprender a pensar de maneira causal, aprender a se prevenir, aprender a acreditar na necessidade. (NIETZSCHE, 2013, p. 385)

É justamente nesse sentido que poderíamos tomar o já citado trecho: “Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. — No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo.” (LISPECTOR, 1998, p. 49). A impossibilidade de “ver o ovo” no presente, reiterada pela ideia de que “três milênios” separam o sujeito do objeto a ser visto remetem à milenar teia de significados, pré-conceitos, avaliações prévias que condicionam a visão (e o entendimento) do objeto. Assim, “ver o ovo é a lembrança de um ovo”: ver o ovo é vê-lo através de lentes antiquíssimas culturalmente constituídas. Assim também, “no próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo.” Há um (intransponível?) filtro que separa o sujeito do objeto, de forma que tudo o que resta a ser visto não passa de uma “lembrança”, talvez o resquício de um olhar desprovido de tais condicionamentos. Para Nietzsche, “conhecer” significa a

recondução de algo estranho a algo conhecido, familiar. Primeiro princípio: aquilo com o que estamos habituados não é mais considerado por nós como enigma, como problema. Embotamento do sentido do novo, do que produz estranhamento: tudo o que acontece regularmente não nos parece mais questionável. Por isso, a busca de regras é o primeiro instinto do cognoscente: enquanto,

naturalmente, com a constatação de uma regra, contudo, nada se acha ainda “conhecido”! ((NIETZSCHE, 2013, p.157)

Assim, um objeto tão habitual e corriqueiro como o ovo estaria, por isso mesmo, mais distante de ser conhecido do que objetos aparentemente mais “estranhos”, como, digamos, um meteorito. Justamente pela razão de que milênios de hábito esgotaram toda a capacidade de estranhamento que o objeto “ovo” poderia causar. Aí está uma das peças-chaves que agem na escritura de Lispector – o caminho percorrido é justamente o inverso. Tratase de recuperar, a despeito do entrave do habitual, o que há de misterioso nesse objeto supostamente tão trivial. Em outras palavras, o jogo que “O ovo e a galinha” encena é re-descobrir, restaurar, reabilitar, ou mais radicalmente, re-inventar o que há de enigmático e problemático no objeto. Mais à frente, lê-se: “Ver o ovo é impossível.” (LISPECTOR, 1998, p. 49). Perceba-se que Lispector aponta, logo no início do texto, para a impossibilidade de um olhar apto a ver (e compreender) o objeto – um olhar que seja desprovido de toda a carga cultural acumulada durante milênios de civilização. Essa ideia é logo a seguir poeticamente expressa pela narradora: “O ovo não existe mais. Como a luz da estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais.” (idem, p. 50) A expressão hiperbólica da inexistência do ovo, a analogia com a estrela que, apesar de emitir luz já não existe mais, remete diretamente à impossibilidade de apreendê-lo claramente através do entendimento. Porém, a narrativa não se deixa abater pelo aparente pessimismo ou ceticismo epistemológico do início do texto. Ao contrário, o leitor é lançado, a partir destas primeiras constatações, num remoinho aparentemente desconexo de reflexões. A estratégia do texto, a partir de então, é intervir ferozmente na arcaica rede de significados já cristalizados, de forma a quebrar ou pôr em questão as conexões costumeiras de sentido como forma

de liberar aquele primeiro “espanto” que é o gerador da indagação filosófica. Indagação que, no caso em questão, poderíamos condensar da seguinte forma: “por que existe o ovo?” Ou ainda: “como foi possível que algo como o ovo viesse a existir?” A nosso ver, o propósito do estranhamento resultante dessa intervenção discursiva reside na tentativa de ultrapassar o sentido estabelecido pela tradição e abrir espaço para que novos sentidos possam vir à tona. Para Nietzsche, o entendimento é basicamente um instrumento antropomórfico, isto é, sua eficácia reside em tornar o mundo humanamente compreensível, em estabelecer um fundamento segundo o qual o mundo apareça como algo assimilável pelo entendimento humano. Todavia, uma das tônicas do pensamento nietzschiano reside justamente em apontar para o fosso existente entre o entendimento e o mundo. Se o platonismo (disseminado e banalizado pelo cristianismo) elege uma entidade transcendente (“Deus” e seus sucedâneos) como garantia da validade intrínseca do entendimento, o descrédito crescente do aval metafísico – condensado na célebre metáfora da “morte de Deus” – resulta em um feroz questionamento daquilo que anteriormente garantia um “sentido” ao mundo. José Thomaz Brum observa a esse respeito:

O caráter ativo do entendimento passa a ter uma função de ordenação arbitrária e funcional. E o mundo objetivo se torna um mundo útil, em cuja esquematização interesses práticos relativos a nossas necessidades vitais tiveram papel decisivo. Estes determinaram o fato do nosso entendimento ser como é e, por extensão, determinaram também a espécie de mundo que percebemos. (...) A utilidade das categorias não prova sua universalidade ou necessidade, apenas demonstra que não podemos viver sem elas. (BRUM, 1986, p. 31-32)

Desprovido de um sentido assegurado pela instância metafísica, o ser humano se vê (sempre segundo Nietzsche) dividido entre duas alternativas:

(a) o niilismo, isto é, o desprezo por uma vida desprovida de um sentido préexistente ou (b) a arte como possibilidade de inventar o sentido. Nessa segunda alternativa, a percepção da descontinuidade entre o conhecimento e o mundo a conhecer – ou ainda, a percepção da ausência de uma legitimação transcendente para o conhecimento – desloca o ser humano de uma posição passiva de recepção de sentido para uma posição ativa (em outros termos, “artística”) que reconduz a percepção humana à condição de doadora de sentido, origem de toda significação. A partir daí, o ser humano passa de um passivo captador de verdades, para um ativo produtor de sentido(s). É exatamente essa postura sugerida pela poética de Clarice Lispector, não apenas em “O ovo e a galinha” mas – arriscaríamos dizer – em toda a sua produção literária. A esse respeito, interessa-nos trazer à baila o trecho de um pequeno texto chamado “Não entender” que Clarice Lispector publica no Jornal do Brasil em 1 de fevereiro de 1969, que consta do volume A descoberta do mundo:

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. (...) Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo. (LISPECTOR, 1999, p. 172)

O trecho citado é um dos vários exemplos, disseminados pela obra de Lispector, em que o “entender” é caracterizado como “limitação” frente à vastidão do “não entendimento”. Frente ao que acabamos de expor, a caracterização do entendimento como algo restrito frente à ausência inquietante de fronteiras do que “não se entende” remete justamente para o caráter meramente antropomórfico do entendimento contrastado com a vastidão de possibilidades de criação de sentido oferecidas pelo “mar aberto”

do que ainda não foi tornado assimilável (diríamos digerível) pela necessidade humana de compreensão. Vejamos o que diz o texto:

Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. — Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. — Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. — A Lua é habitada por ovos. (LISPECTOR, 1998, p. 50).

No trecho citado, que a nosso ver encerra o preâmbulo, a questão do entendimento ganha destaque especial. Se antes a problemática dizia respeito à impossibilidade de ver o ovo, agora ela diz respeito à impossibilidade de entendê-lo, isto é, à impossibilidade de reduzir o radical estranhamento causado pelo objeto a uma medida condizente com o ímpeto humano de conhecimento. “Entender é a prova do erro” – tal é a sentença que, segundo nossa perspectiva, condensa o impasse filosófico sugerido pela narrativa. No sentido em que “entender” é mitigar o estranhamento essencial do objeto a uma proporção humana. Em outros termos, banalizar, tornar familiar, reduzir o objeto a algo passível de ser “encaixado” dentro de uma perspectiva demasiado humana. Não se pode ainda deixar de apontar para a torção sofrida pelo cogito cartesiano que, de “cogito, ergo sum” (penso, logo existo) passa a “existo, logo sei”. A nudez da existência desprovida do entendimento asseguraria uma espécie de saber desprovido da instância cognoscente responsável pela “prova do erro”. Em outros termos, a poética de Clarice Lispector posta em relevo em “O ovo e a galinha”, parece apontar para uma espécie inédita de apreensão

do real cuja condição suficiente é a experiência da existência concomitante do sujeito e do objeto. Experiência esta desembaraçada do ímpeto cognoscente que dissolveria o objeto em categorias antropomórficas, configurando novamente “a prova do erro”. Por fim, resta atentar para a brilhante formulação supracitada que, no mesmo sentido já apontado, identifica o “não saber” com uma espécie genuína (e misteriosa) de “saber”: “O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito.” (idem) Parafraseando Lispector, gostaríamos de encerrar este breve ensaio com a asserção um tanto inusual (porém bem a propósito) segundo a qual “o que não sabemos deste inusitado texto é nos dá o texto propriamente dito.” Quanto ao fato de a Lua ser ou não “habitada por ovos” (ibidem), preferimos deixar em aberto a questão.

Referências Bibliográficas

BRUM, José Thomaz. Nietzsche – as artes do intelecto. Porto Alegre: L&PM, 1986.

FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Tradução de Ilana Heineberg. Porto Alegre: L&PM, 2015.

GOTLIEB, Nádia Batella. Clarice: Uma Vida que se Conta. São Paulo: EDUSP, 2013

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Fragmentos Póstumos. 1885-1887. Volume VI. Tradução de Marco Antônio Casanova. Forense Universitária: Rio de Janeiro, 2013.

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