Da fotografia global à justiça social: Definindo um conceito de testemunho para a arte educação baseada na cultura visual contemporânea

June 28, 2017 | Autor: Leonardo Charréu | Categoria: Visual Culture, Critical Pedagogy, Global Citizenship, Global Image Matching, Photojornalism
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DA FOTOGRAFIA GLOBAL À JUSTIÇA SOCIAL: DEFININDO UM CONCEITO DE “TESTEMUNHO” PARA A ARTE EDUCAÇÃO BASEADA NA CULTURA VISUAL CONTEMPORÂNEA

Leonardo Charréu. UFSM

RESUMO: No século XX a preocupação pelas questões sociais pareceu ter desaparecido dos artistas visuais preocupados com as questões imanentes à própria arte. No entanto, são hoje recuperadas por alguns fotógrafos, cujas fotos, mais do que visualizarem, constituem testemunhos indesmentíveis de uma realidade que é preciso desvelar em conjunto com os estudantes e perceber as narrativas que induzem sobre o mundo. O que constitui o cerne da proposta crítica e performativa de cultura visual é que muito do essencial de uma imagem permanece invisível aos nossos olhos. Palavras Chave: Imagem global, Cidadania Global, Cultura Visual, Fotojornalismo, Pedagogia Crítica.

ABSTRACT: During the XX century the concerns about social issues seemed to have vanished from artists mainly focused on issues inherent to the art itself. However, it´s now recovered by some photographers whose pictures rather than vizualising constitute evidence of an undeniable reality that we must unfold together with students and understand the narratives about the world it induzes. What is the core of a critical and performative visual culture proposal is that most of the substance of an image remains invisible to our eyes. Keywords: Global Image, Global Citizenship, Visual Culture, Photojornalism, Critical Pedagogy

1. Formar-se arte-educador na contemporaneidade, a escolha de um “lugar” de onde olhar o mundo (e intervir?).

No final dos anos oitenta, início da década de noventa, alguns autores começaram a definição de uma nova área de estudos estruturados dentro de um campo de conhecimento extremamente amplo, localizado num “entre-lugar” algures entre as Ciências Humanas e as áreas relacionadas com o visual, como as Belas Artes, a Fotografia, o Design, os Estudos dos Mídia, a Arte Digital e outras áreas que, a partir das décadas acima assinaldas, começaram a ser permeabilizados por uma série de teorias críticas (pós-estruturalismo, desconstrucionaismo, pósmodernismo construcionismo, estudos feministas, estudos culturais, etc.). Desde então, o termo "Cultura Visual" se tornou cada vez mais popular entre os educadores de arte, começando a surgir divergências opondo os arte-educadores

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tradicionais (que apenas buscam as relações de mediação e de apreciação estética) àqueles que, agora consideradas (e assumidas) testemunhas, acreditam em um tipo participativo e ativista de arte-educação. Esta postura busca dar voz e relevo a quem tem estado sempre socialmente em posições de retaguarda (forçada), destacando as injustiças e atrocidades cometidas em todo o mundo, por vezes, até, com uma presença bem discreta e camuflada dentro de nossas próprias comunidades (como o racismo, a exploração no trabalho em condições desumanas, a desigualdade de gênero, a violência doméstica sobre as mulheres, etc.). Esses educadores de arte com preocupações mais sociais contrastam com os arte-educadores que acreditam que o único caminho a seguir é o de sempre, isto é, a busca da apreciação estética sob as premissas kantianas e de acordo com as habilidades técnicas e os processos validados e adquiridos nas faculdades tradicionais de belas artes. Não tem sido fácil a coexistência destes dois posicionamentos num mesmo ambiente universitário. Em boa verdade as pontes entre estes dois polos, socioconstrucionista de um lado, e estético-apreciativo do outro, estão ainda por estabelecer. Ou porque ambos os lados se receiam e preferem ignorar-se, ou porque a criatividade, que talvez seja necessária para a aproximação de posições (em projetos, programas, articulações) não existe, não é promovida e nem sequer é minimamente esboçada. A tendência, portanto, em muitos lugares é para que uma determinada balcanização (todos contra todos) persista e impeça os departamentos e as faculdades de artes visuais se conectarem transdisplinarmente com outros ambientes académicos do campus, preferindo isolar-se num gueto, cómodo e autoprotector, a arriscarem interagir com outas áreas do conhecimento académico. Também é justo afimar que o oposto também ocorre, como assinala Campos (2011, p.238), mas com tendência crescente para o reconhecimento da importância da imagem por parte das ciências sociais: a relação entre as ciências sociais e a imagem nunca foi fácil, e continua minada por uma série de dogmas e resistências. Porém, e curiosamente, nunca como agora a imagem e as plataformas audiovisuais despertaram tanto interesse em jovens estudantes e investigadores de ciências sociais.

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Ainda assim parece-nos que muitos arte-educadores se estão formando agora sob paradigmas arte-educacionais mais focados no social do que no estético. E estas novas formas pedagógicas e sócio-políticas de interação com a sociedade pode mudar, de algum modo, o foco didático-pedagógico do arte educador. Este professor de arte, consequentemente, deve desenvolver novas habilidades que são bastante diferentes do talento do desenho à mão livre, da sensibilidade à cor ou da composição fotográfica otimizada. Interesses e preocupações relativas a questões sociais exigem habilidades críticas de leitura visual sobre o que se passa no mundo. Estes processos são os alicerces de uma educação artística que ainda está à procura de um tipo de velocidade de cruzeiro ideal em um mundo ele próprio profundamente marcado pela diferença e pela divergência. Para um número significativo de arte-educadores, questões como os direitos humanos ou a justiça social, parecem pertencer ao campo das ciências sociais (Sociologia, Antropologia, Filosofia, História, Direito, Ciência Política, etc.). De acordo com a atribuição de responsabilidade para os outros, muitos arte-educadores pretendem apenas responder melhor aos complexos problemas estéticos de suas épocas. Na realidade, estes educadores de arte estão apenas respondendo segundo as mesmas premissas de uma certa ideia clássica de arte e de artista, na qual o que acontece na vida diária deveria ser separada de uma visão etérea daquilo que pensam que a arte poderia ser. A partir desta posição particular, os artistas visuais não devem retratar a vida social e cultural ao seu redor, antes devem focarse nas premissas, por vezes tautológicas, da própria arte. Mas o que foi boa parte do século XX ao nível do desenvolvimento da chamada forma plástica senão uma longa “investigação” levada a cabo pelos artistas e pelos críticos de arte, sobre os limites da arte e do próprio conceito de arte? Para onde ir agora? Na verdade existe um mundo que se tornou agora definitivamente global e visual. Esta mudança reclama igualmente novas formas de aproximação e de interação entre o estético, o pedagógico e o social, com a visualidade de permeio.

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2. Dando sentido às representações do mundo expressas nas fotografias globais No entanto, para se poder situar dentro de uma linha de educação crítica para a compreensão performativa da cultura visual o arte educador deve ser, em primeiro lugar, um fazedor e/ou selecionador de imagens (Hernández, 2007, utiliza o termo “catador”). Assistimos, pela primeira vez na história da humanidade, a uma intencionalidade e consciência prévia do fazedor/produtor de imagens relativamente ao efeito expectável e ao impacto das mesmas tendo em conta a audiência global que vão ter.

Figura 1: Vitimas do desmonoramento em 24 de Abril de 2013 do Rana Plaza, uma fábrica têxtil em Daca, no Bangladesh. Mais de mil mortes confirmadas. (Fotografia © Facebook de Taslima Akhter)

A imagem que nos serve de ilustração (e de potencial documento para um projeto de culura visual), tirada pela fotógrafa bengali Talisma Akhter, ela própria professora de artes visuais, para além de activista social em prol da justiça e da segurança no trabalho, pela sua força expressiva, foi rapidamente conhecida a partir do momento que foi postada numa famosa rede social da internet, passando rápidamente para a prestigiada revista Time e para os órgãos de comunicação social

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em todo o mundo, online e impresos. Acabou por se constituir como um emblema da tragédia que se abateu sobre essa fábrica que desmoronou no Bangladesh matando mais de uma milhar de trabalhadores. À revista Time a fotógrafa revelou não conhecer as vitimas. Mas garante que sempre que olha para aquele casal, abraçado no momento da morte, "é como se me dissessem: Não somos um número, não somos só mão-de-obra barata. Somos seres humanos como vocês. A nossa vida é preciosa e também temos sonhos" (in: www.publicoonline.pt). Ora parece que muitas empresas ocidentais fazem uma leitura muito pessoal do valor da vida humana, porque ninguém imagina que os encomendantes não conheçam as miseras condições de trabalho em que labutam diariamente cerca de quatro milhões de bengalis (29 mil milhões de doláres em 2012 e 80 % das exportações do Bangladesh, o segundo maior exportador de vestuário, graças ao seu modelo económico baseado num valor de mão de obra baixissímo). O abraço daquele homem e daquela mulher - para lá da manifestação de uma estranha beleza em um tema tão mórbido, a morte trágica - não só se tornou símbolo, como também ampliou o desastre e, sobretudo, agitou consciências em todo o mundo ocidental (Figura 2).

Figura 2: Jovens ativistas em Madrid manifestando-se à frente de lojas multinacionais que tinham ecomendas com a fábrica têxtil de Daca (Fotografia © Lluis Gene APB) Foto reproduzida com autorização expressa do autor. Fonte: Jornal “O Publico” online de 13/05/2013

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Bem depressa se percebeu que a tragédia era mais ou menos anunciada. A incisiva BBC logo revelou que as multinacionais de vestuário de vários países europeus (a Primark, El corte inglês, a Mango, a C&A; a H&M, a Zara e Bershka) estavam entre as empresas que encomendavam maciçamente no Bangladesh à fábrica desaparecida. Esta tragédia revelou que só pagando 10 a 20 cêntimos por hora a cada trabalhador no Bangladesh é que as multinacionais conseguem saciar a procura têxtil no voraz mercado consumista ocidental, mantendo, simultaneamente margens de lucro obscenas. Simultaneamente, a industria têxtil europeia pura e simplesmente desapareceu, lançando no desemprego centenas de milhar de pessoas que vieram engrossar a imensa legião de pessoas sem emprego na Europa, situação que ameaça tornar-se um desastre social de consequências imprevisíveis. A recolha de assinaturas na internet e o ativismo espontâneo levado a cabo por jovens numa série de países, com o respaldo de uma imprensa séria e responsável (a BBC, o New York Times, o El País, etc.) que logo deu eco a estas manifestações de desagrado, veio a originar que em apenas três semanas depois da tragédia, as empresas multinacionais têxteis tenham chegado a acordo sobre um plano com valor legal para financiar medidas de segurança e anti-incêndio nas fábricas têxteis do Bangladesh. Outra consequência, favorável aos trabalhadores, foi o facto do Governo do Bangladesh ter decidido aumentar o salário mínimo da indústria têxtil e ter anunciado que irá reunir uma comissão de representantes das fábricas, líderes sindicais e elementos governamentais, para decidir as novas condições laborais. Uma promessa que tinha sido feita pela primeira-ministra do país poucos dias após a tragédia (www.opublicoonline.pt, de 13 de maio de 2013). Foi preciso que uma tragédia de gande dimensão tivesse acontecido para que a mudança se operasse. A fábrica, cemitério antecipado para mais de mil pessoas, que foram enterradas vivas, curiosamente, tinha nome a fazer lembrar um de hotel estrelas: Rana Plaza. A foto de Talisma Ahkter, que nos serviu de guião, é também um documento extraordinariamente ambivalente, e que levanta um conjunto de dúvidas (e considerações de natureza ética) que podemos exprimir num conjunto de perguntas que, seguramente, levariam por sua vez a outras, num processo de apuramento contínuo e rizomático bem caraterístico dos estudos de cultura visual:

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-

Em que medida se tem direito (e se se pode) fotografar alguem (morto) que já não pode reclamar o direito de reserva de imagem ou de anonimato?

-

Qual, ou quais, os limites éticos para o uso de imagens da morte? Que finalidades educativas, estéticas e/ou sócio-políticas para esse uso?

-

O que se pode aprender com esta imagem para além daquilo que expressa explicitamente?

-

Que narrativas se podem desenvolver com jovens adolescentes a partir da imagem, sobretudo, que possam ultrapassar as dicotomias tradicionais (patrão/trabalhador; local/global;

rico/pobre;

ocidente/oriente;

nacional/multinacional;

marxismo/capitalismo;

acomodação/emancipação;

resignação/resistência)? -

Como podemos discutir, com jovens adolescentes, o estético a partir do ético e vice-versa?

Estas questões, para além de muitas outras secundárias, poderão ser aquelas que permitirão fazer essa passagem, por vezes difícil de vislumbrar, entre o mundo situado fora da escola e o mundo construído a partir de significados que os jovens precisam de aprender. Mesmo que desse mundo se tome conhecimento por uma série de imagens terríveis com que é necessário desconstruir. Elas revelam, nas suas margens, a hipocrisia invisível que tende a ficar camuflada nos discursos otimistas que circulam no senso comum acerca das vantagens da globalização. Compramos barato no ocidente, mas a que preço em vidas humanas no oriente?

3. A ideia de "Testemunho", como um conceito de orientação para uma educação crítica das artes visuais baseada da compreensão da cultura visual Um número significativo de outros autores contemporâneos (Hooper-greenhill, 2000; Mitchell, 2002 & bryson, 2003, Hernández, 2007) enfatizam a importância do papel do "social" em arte analisado sob diversas lentes críticas. De acordo com essas correntes de pensamento, não é apenas o formalismo ou a apreciação estética essencialista que é o conteúdo mais importante de uma educação abrangente de arte visual. A consideração do "observador" e "o que" é realmente visto são fundamentais para uma educação inclusiva de arte que assume, por vezes,

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propósitos de resistência cultural, na medida em que contesta os valores culturais contemporâneas dominantes, como o hiper-consumismo e até mesmo uma espécie de hedonismo radical e selvagem que caracteriza cada vez mais o comportamento das pessoas em nossas sociedades ocidentais. Nessas abordagens críticas a arte-educação baseada em cultura visual trabalha no sentido de chegar a uma "teoria social da visualidade", com foco em questões: "O que é tornado visível?", “Quem vê?”, "Como ver?”, “Como sou visto?”. Nestes questionamentos saber e poder estão interligados. Examina o ato de ver como um produto de tensões entre imagens, ou objetos externos, e processos de pensamento internos (Hooper-Greenhill, 2000, p.14). Assim, questões importantes como os direitos humanos, e as imagens através das quais podem ser identificados e mapeados, poderia ser estabelecido como um marco conceitual para apoiar fins educacionais extremamente importantes. Considerando o ponto de vista de William Mitchell (2002, p.170), "A cultura visual nos ajuda a ver que mesmo algo tão amplo como a imagem não esgota o campo da visualidade e que o estudo da imagem visual é apenas um simples componente desse campo maior" onde podemos incorporar implicitamente preocupações sociais fundamentais, como os direitos humanos em todas as suas dimensões. Completando a ideia central de Mitchell, Norman Bryson (2003, p.232) argumenta que: o estudo da estrutura e das operações de regimes visuais e os seus efeitos coercitivos e normalizadores, já é uma das características que definem a cultura visual como distinta da história da arte tradicional, e na medida em que isto é assim, é uma área em que locais e ocasiões para a análise cultural, a resistência e a transformação são obrigados a proliferar e a se multiplicar em conjunto com as próprias tendências expansivas do regime.

A ideia socialmente pertinente de "resistência" e "mudança" parece pertencer a uma área ativa de preocupações que envolvem a defesa dos direitos humanos. Consequentemente, um tipo de arte-educação que busca inocular uma genialidade criativa no aluno, persistindo na idéia de "arte pela arte", não é definitivamente um dos objetivos reais da educação artística baseada na performatividade crítica da cultura visual. Kerry Freedman (2003, p.49) sublinha a importância de dois contextos interrelacionados:

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"o contexto de produção e o de visualização desempenham um papel importante na determinação de quais as formas particulares, imagens e objetos da cultura visual são considerados academicamente objetos materiais dignos de estudo. A importância da cultura visual é, em parte, influenciada pelo papel central que a arte visual tem desempenhado, historicamente, nas formas como vemos e representamos o nosso mundo, mas também foi influenciada por outras formas visuais que fizeram a passagem por cima e por fora das disciplinas artísticas. Uma educação em cultura visual deve ser pensada a partir de posições interdisciplinares e extradisciplinares que permitem que a informação de dentro e de fora da escola possa ser conectada aos temas escolares.

Nestes contextos a proliferação de meios de comunicação de massa muda a nossa condição pública e cívica. Na verdade, todos nós somos "testemunhas" de tudo o que acontece no meio social e, particularmente, no espaço da mídia. Este conceito de "testemunha" tornou-se central e é a primeira etapa para a aplicação de uma arte-educação mais enfocada na justiça social. Todos nós somos testemunhas, mesmo que o nosso testemunho tenda a ocorrer em uma qualquer distância espacial ou temporal, longa ou curta, no conforto de nossas casas, ou na segurança ilusória do nosso tempo civilizado. Estamos envolvidos, moral e física, em eventos distantes que podemos ver e testemunhar. John Durham Peters (2001, p.717) afirmou seriamente que em eventos mídiados, "os olhos e os ouvidos emprestados pelos meios de comunicação tornam-se, hesitante e perigosamente, os nossos próprios ". Encontramo-nos então vivendo em um tempo definido por John Ellis (2000, p.9) como "o século da testemunha", durante o qual "o modo e o alcance da nossa compreensão perceptiva do mundo foi tremendamente alargada". Seguindo o pensamento Ellis, uma mudança importante ocorre "à medida que emergimos desse século, podemos perceber que uma profunda mudança ocorreu na maneira como percebemos o mundo que existe para além de nossa experiência imediata". A consequência mais profunda para a ideia de "educação crítica das artes visuais" que aqui sustentamos, não é apenas a da mudança na própria percepção, na verdade, não podemos ser absolvidos da nossa cumplicidade ou indiferença para com os horrores dos nossos tempos, expressos pelo desrespeito contínuo para direitos humanos básicos em todo o mundo. Não podemos ser aliviados do nosso desconhecimento desses horrores. Ellis (2000, p.9) persiste que o "eu não sabia" e "eu não me tinha apercebido" já não estão mais disponíveis como desculpa, porque

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nos encontramos em um contexto radicalmente alterado e alargado do conhecimento. Ainda que a natureza do nosso conhecimento de acontecimentos possa ser complexa, não podemos negar que o "não sabiamos" utilizada como desculpa por cidadãos não-nazistas alemãe - ou por outros cidadãos europeus ocidentais - sobre o holocausto que aconteceu na II Guerra Mundial nos campos de concentração. Este aspeto particular de se ser "forçado saber" é agora uma espécie de compromisso com uma espécie de cidadania global. Ellis disse (2000, p.9): nós sabemos e vimos mais neste século do que as gerações de qualquer século anterior viu ou soube... Vivemos em uma era de informação e a fotografia, o cinema e a televisão trouxeram-nos evidência visual.

Há menos de dez atrás, em 2004, estima-se que 28 bilhões de fotos digitais foram produzidos (HARMON, 2005). Esse número representa seis biliões de mais fotos que foram tiradas com as máquinas tradicionais de película, ainda que nessa altura o

número de pessoas possuía câmeras de filme era o dobro das que

possuiam câmara digital. Por isso, a disseminação destas tecnologias digitais tem levado um numero significativo de autores a repensar os significados e as práticas de fotografia popular, que constitui, atualmente, as primeiras origens de lotes de imagens editadas posteriores. Na realidade, as pessoas comuns, muitas vezes são as primeiras testemunhas oculares das atrocidades e horrores causados pelo terrorismo, a polícia ou abuso militar, desastres naturais etc. Hoje em dia é até frequente algumas pessoas negociarem mesmo as suas imagens (fotos e vídeos caseiros) a bons preços para a comunicação internacional. Porque há uma atração natural para transformar a imagem e algumas notícias em uma espécie de espetáculo, que é o resultado da concorrência entre as empresas de transmissão de televisão, devemos estar cientes dos problemas impostos por essa tentação. De acordo com Susan Sontag (2003, p.98-99): falar da realidade tornando-se espetáculo é de um provicianismo de tirar o fôlego. Universaliza-se os hábitos de visualização de um pequeno e educado grupo de pessoas que vive na parte rica do mundo, onde as notícias têm vindo a ser convertidas em entretenimento (...) Assume-se que toda a gente é um espectador. Sugere, perversamente, que não há verdadeiro sofrimento no mundo ".

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Ainda segundo Sontag, isto contece porque se assiste na contemporaneidade a uma recrudescimento daquilo que a autora considera ser uma “forma madura de ver”, que tinha sido uma das aquisições principais do projeto "moderno". Este olhar maduro é um pré-requisito para o desmantelamento tradicional de políticas baseadas em partidos, cujas ideologias estão hoje exangues, sem conseguirem oferecer debate e desacordo criativo que enfrentem um determinado pensamento único que tende a homogeneizar a visão de mundo de acordo com os valores e os modos de ver ocidentais. Podemos radicalmente dizer que o "testemunho" pertence à nossa condição histórica pós-moderna, por direito próprio, imposta por aparatos tecnológicos de difusão de imagens, e é impossível recusar as suas implicações em nossas opções de vida política e cotidiana. Descrevendo o nosso papel como testemunhas e sublinhando as nossas consequentes responsabilidades, ambos os autores deslocam resolutamente a análise do mundo da mídia voltando-se claramente para os seus fundamentos éticos. Seguindo a argumentação de Peters (2001, p.707) a principal virtude do conceito de “testemunho” é o seu poder para chamar a nossa atenção para a relação entre a "ver", "saber" e "agir" e as imanentes responsabilidades e obrigações implícitas nisso. Mas a principal característica deste posicionamento é a consciência de que ele também nos implica na dor e no sofrimento dos outros, como simples criaturas mortais. Porque o ato de ver é inerente à educação crítica baseada na cultura visual, a chamada área de "arte-educação" no currículo escolar formal parece ser o cenário ideal de exercer um dever de cidadania global comprometida - alunos, famílias e professores - analisando imagens recolhidas no ambiente (espaço próximo e mídia), sob firmes lentes socialmente sensíveis, e expondo os discursos (de poder, de resiliência, de resistência, etc) que são frequentemente cobertos por algum tipo de camuflagem ou pelo preconceito. Segundo Donna Haraway (1991, p.351): há uma diferença entre o compromisso social e o preconceito. Preconceito envolve distorção não reconhecida. Compromisso social significa que você está em busca de conhecimento para um propósito - como uma ferramenta para se opor a uma opressão - e é auto-consciente disso. Esse propósito exige que você procure saber coisas sobre a realidade com um mínimo de distorção possível.

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4. Conclusões

Considerando-se um campo apropriado - ou estratégia - para uma pedagogia crítica desenvolvida dentro de um conceito alargado de educação que tenha como principais interesses a busca de uma sociedade mais vivável, mais justa e democrática - onde atrocidades contra os direitos humanos tendem a desaparecer e não a aumentar (como parece estar a acontecer), a educação artística baseada na compreensão crítica performativa da cultura visual crítica deve tomar como seus principais objetos de análise aquilo a que se convencionou chamar de imagens globais, que são as imagens do mundo. Algumas dessas imagens são extraordinários veículos para conduzirem à desmontagem das chamadas "metanarrativas"

que

são

comumente

apresentadas

como

naturais,

universais,

verdadeiras e inevitáveis, e desalojá-las das suas posições de privilégio, de modo que outras "narrativas alternativas" se tornem visíveis e se transformem em possibilidades de inovação e renovação para vastos campos do conhecimento humano (Bal, 2003, p.22). Em nossa sociedade contemporânea hiper-mediada estas "meta-narrativas" proveem não só das vozes dos políticos tradicionais, mas também das vozes de uma incrível diversidade de atores públicos (jornalistas, estrelas do esporte, estrelas pop, artistas, personalidades culturais, etc.) e das interpretações persuasivas que se tendem a fazer de uma quantidade extraordinária de imagens de todos os tipos, onde estas personalidades são retratados muita vezes após um providencial “tratamento Photoshop” para eliminar excrecências, rugas e cicatrizes, cujo objetivo é aproximá-las de uma imagem ideal, de uma pessoa etérea e intocável, e se estabelece como modelo a seguir para gaudio da poderosa industria cosmética ocidental. Assim, uma tarefa específica de uma educação para a compreensão crítica e performativa da cultura visual é descoberta e revelação das vozes das chamadas "micro-narrativas" dos que tem estado sob rigoroso controle ou grave opressão desde há muito tempo. Outra tarefa importante dos estudos de cultura visual é a busca pela compreensão de algumas das motivações que levam à priorização do realismo que podemos alcançar com a imagem fotográfica. Isso mostraria

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provavelmente um conjunto de interesses estéticos, sociais e políticos reais, que estariam subjacentes à preferência pelo realismo. Mas, sob um ponto de vista estritamente didático, se pudéssemos ter consciência de que a nossa capacidade de responder às nossas experiências com "frescura e pertinência ética" emocionais (Sontag, 2003, p.97) está sendo esgotada pela difusão persistente de imagens vulgares e inócuas, iriamos seguramente melhorar as nossas habilidades de julgamento de "imagem educacionais" que poderiam ser ativos importantes para uma educação crítica das artes visuais eficaz focada na busca de solução para os problemas persistentes que afetam nossos tempos. Uma primeira tarefa, consistirá portanto na selecção e classificação de imagens entre bilhões delas, que são hoje produzidas de uma forma imparável, em dezenas de suportes tecnológicos diferentes. Torna-se, enfim, um pré-requisito absoluto a requerer a necessidade de um primeiro olhar crítico na fase inicial de um projeto de trabalho para a compreensãoo crítica e performativa da cultura visual. Por

isso,

uma

característica

importante

para

o(a)

educador(a)

contemporâneo(a), para além das suas competências de catador de imagens (Hernández, 2007) e sua habilidade seletiva das mesmas, é a sua formação sensível humana, que deve naturalmente atravessar uma formação acadêmica fortalecida com leituras críticas pertinentes e, principalmente, reforçada com a integração em redes colaborativas de pares envolvidos em objetivos comuns, como a importante questão da defesa dos direitos humanos em um mundo que continua, com demasiada frequência, a dizer-nos que não temos nada garantido à partida relacionado aos nossos direitos individuais ou sociais.

NOTA 1 (única): À maneira de posfácio Na perspectiva de que se pode aprender e ampliar leituras e interpretações nos processos e materiais documentais que permitiram a elaboração deste texto, pareceu-me importante “quebrar o protocolo” e publicar o conteúdo do mail de resposta da fotografa Talisma Kahfter ao meu pedido de autorização para a publicitação da sua foto. Leitores sensíveis às problemáticas discutidas anteriormente saberão ler nas entrelinhas (pede-se tolerância para alguns erros no inglês de duas pessoas que ... não são english native speakers). De: taslima akhtfer [email protected] Para: Leonardo Charréu [email protected] Data: 10 de Maio de 2013 às 18:22

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Assunto: Permission to use your photo in an academic presentation Dear Leonardo Thanks for your email. I'll be happy if you show it in a presentation. Actually now I teach visual anthropology and photography at Pathshala south Asian Media Academy. I want that world should know about the cheapest labors working condition of in our country. Sometimes owner and government try to say that the activist and workers are trying to make conspiracy against industrialization. Which is a same old story against workers right. But as an activist and photographer I want to say that I , all activist, trade union activist and workers want development of industrialization. We believe that without improving the condition of workers with their proper wage and safety it cannot be possible. And it’s not only our local issue it’s an international issue too. Because buyer buy product from our country in a very cheap rate and our labor has become the cheapest labor in the world. International buyers also not careful about the rate of payment of worker and the safety issue. So Owner, Government and buyer also responsible for this. International buyer should careful about their supply chain also. Through my photograph for last five years I am trying to campaign against low wage of workers and insecure working condition of workers. I am writing you this things because the reason is that I want to give emphasis on my point. Hope you will agree with me. And I don’t want to use my photograph in any propaganda of destroying our industry. I want to save our industry. Without proper wage and good working condition we cannot save our industry, Hope I can clear my position. Pls let me know if I can do anything for you. Though now I am busy enough with that collapse of workers. I with our friends working to help them Today death toll crossed 1000. And a miracle happened a female worker Reshma rescued alive. I was there and so happy that Reshma alive. Nice to talk with you Best wishes for your presentation Taslima.

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Leonardo Charréu Doutorado em Belas Artes pela Universidade de Barcelona, Espanha. Professor Adjunto I no Centro de Artes e Letras da Universidade Federal de Santa Maria (CAL- UFSM). Membro efetivo do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte Educação e Cultura (GEPAEC). Desenvolve estudos sobre formação de professores de artes visuais e sobre cultura visual e práticas de visualidade contemporâneas.

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