Da História Militar e da Estratégia - Livro completo

August 28, 2017 | Autor: Francisco Garcia | Categoria: Military History, International Relations, War Studies, Strategy
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EXÉRCITO PORTUGUÊS ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO

DA HISTÓRIA MILITAR E DA ESTRATÉGIA Estudos de homenagem ao General Loureiro dos Santos Coordenação de Francisco Proença Garcia e Abílio Pires Lousada Colaboração de Artur Pina Monteiro António Barrento José Luís Pinto Ramalho Alexandre de Sousa Pinto Rodrigues Viana José Antunes Calçada Américo Henriques Fernando Pinto Simões João Vieira Borges Nuno Lemos Pires Luís Barroso Francisco Proença Garcia Abílio Pires Lousada Manuel Garrinhas Carriço Luís Falcão Escorrega Carlos Dias Afonso Paulo Rodrigues Jorge Rocha

LISBOA 2013 3

Título DA HISTÓRIA MILITAR E DA ESTRATÉGIA Estudos de Homenagem ao General Loureiro dos Santos © Edição Exército Português Estado-Maior do Exército COORDENAção Francisco Proença Garcia Abílio Pires Lousada Ano e Local: 2013, Lisboa Tiragem: 300 exemplares ISBN: 978-989-96561-4-7 Depósito Legal: 353413/13 Execução Gráfica J.M.G. – Art. Pap., Artes Gráficas e Publicidade, Lda. © Todos os textos são da responsabilidade exclusiva dos respectivos autores. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transcrita por qualquer forma ou processo (electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópias, xerografia ou gravura) sem autorização prévia, por escrito, dosautores e dos editores.. Exceptuam-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica da obra. Casos de transgressão incorrem em procedimento judicial.

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sumário

O EXÉRCITO EM TEMPOS DE MUDANÇA ........................................................................... General Artur Pinto Monteiro

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GENERAL LOUREIRO DOS SANTOS. O PROFESSOR MILITAR ...................................... General António Barrento

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ELABORAÇÃO DAS GRANDES OPÇÕES PARA O CONCEITO ESTRATÉGICO DE SEGURANÇA E DEFESA NACIONAL ........................................................................... General José Luís Pinto Ramalho A HISTÓRIA MILITAR EM PORTUGAL ................................................................................. Tenente-General Alexandre de Sousa Pinto

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O NOVO AMBIENTE ESTRATÉGICO: UMA REFLEXÃO SOBRE AS MUDANÇAS NA DISTRIBUIÇÃO DO PODER INTERNACIONAL .......................................................... Major-General Rodrigues Viana

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A INFORMAÇÃO PÚBLICA E O SEU IMPACTO NO SUCESSO DA CAMPANHA MILITAR – DA CRIMEIA ÀS FALKLAND ................................................................... Major-General Antunes Calçada

75

A CAMPANHA DE 1805. AUSTERLITZ ................................................................................... Coronel Américo José Henriques

97

O «TESTAMENTO» DO CZAR PEDRO I. UMA LEITURA EM GEOPOLÍTICA ................... Coronel Fernando Pinto Simões

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UMA ANÁLISE DA OBRA E DO PENSAMENTO DO GENERAL LOUREIRO DOS SANTOS ............................................................................................................................. Coronel Tirocinado João Vieira Borges A GUERRA MUDA (1789-1815) ................................................................................................ Tenente-Coronel Nuno Lemos Pires AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES E O CONTROLO DO USO DA FORÇA. UMA PERSPETIVA CLAUSEWITZIANA ................................................................................. Tenente-Coronel Luís Fernando Machado Barroso

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O SISTEMA DE DEFESA ANTIMÍSSIL DA ALIANÇA ATLÂNTICA ................................... Tenente-Coronel Francisco Proença Garcia

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DA GUERRA DE ÁFRICA1960-1975. ANÁLISE ESTRATÉGICA E MILITAR .................... Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada

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A GRANDE ESTRATÉGIA DA CHINA. VISÃO, OPERACIONALIZAÇÃO E LINHAS DE ACÇÃO A MÉDIO PRAZO .............................................................................................. Tenente-Coronel Alexandre Carriço TEORIZAÇÃO SOBRE ESTRATÉGIA MILITAR: ÂMBITO, OBJETO E PLANEAMENTO Major Luís Carlos Falcão Escorrega A EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS DE COAÇÃO MILITAR NO ESPAÇO PORTUGUÊS (SÉCULOS VIII-XIII) ........................................................................................................ Major Carlos Dias Afonso

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249

A EUROPA NO PLANO MUNDIAL .......................................................................................... Capitão de Artilharia Paulo Rodrigues

269

A DEFESA MILITAR DE PORTUGAL NOS ANOS DA II GUERRA MUNDIAL ....................... Sargento-Ajudante Jorge Silva Rocha

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O EXÉRCITO EM TEMPOS DE MUDANÇA

General Artur Pina Monteiro

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O EXÉRCITO EM TEMPOS DE MUDANÇA General Artur Pina Monteiro

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livro agora levado à estampa intitulado “Da História Militar e da Estratégia. Estudos de Homenagem ao General Loureiro dos Santos”, pretende homenagear um General distinto que é simultaneamente um ilustre historiador militar e um insigne estratega. Nas suas obras está patente que possui longa experiência e os seus vastos conhecimentos da História e do contexto internacional, sendo hoje de consulta obrigatória para qualquer interessado nestas áreas científicas. Este livro conta com a colaboração de dezoito militares do Exército, de diversos postos, com ligações consolidadas ao estudo e reflexão histórica e estratégica. Os seus textos vão da recordação memorialística, à descrição de batalhas históricas, ao estudo da segurança internacional, passando pela análise da obra e do pensamento do General Loureiro dos Santos. Como Comandante do Exército não podia deixar de apoiar esta iniciativa conjunta dos Tenentes-Coroneis Abílio Lousada e Proença Garcia, de homenagear o General Loureiro dos Santos, uma vez que além de lógica e oportuna, homenageá-lo é sobretudo um acto de justiça porque, também, a sua intervenção e reconhecida notoriedade e credibilidade pública, muito dignificam o Exército e a Instituição Militar.

Enquadramento estratégico A atual conjuntura internacional revela-nos que o Estado soberano está em risco, motivado pela flexibilização do conceito de fronteira e pela aceitação de situações de cidadanias múltiplas e de governança partilhada. Nesta percepção, o conceito de segurança modificou-se, orientando-se para riscos mais difusos na forma, na origem e no espaço, e novos atores têm surgido de forma imprevisível, potenciando as condições para a eclosão de conflitos. O espaço alargou a segurança, a qual passou a contemplar outros interesses que não meramente os interesses vitais, materializados, por vezes, longe da base territorial dos Estados. 9

A defesa nacional tem, obrigatoriamente, de procurar corresponder a este conceito alargado de segurança e de flexibilização de fronteiras, através de uma articulação das várias componentes, com espcial acuidade na fronteira dos interesses e em quadros coletivos e cooperativos. Esta realidade coloca aos Estados novos desafios, manifestando-se novas e diferentes ameaças, interdependentes, de múltiplas naturezas, dinâmicas, polimorfas, assimétricas e globais, que não reconhecem fronteiras mas que, no entanto, as consequências da sua existência ou atuação se manifestam no interior das tradicionais fronteiras políticas e de soberania dos Estados. Face à ineficácia do estado e dos seus tradicionais instrumentos de política externa e de segurança, assistimos a um impulsionar do desenvolvimento gradual de uma nova conceção de segurança alargada, abrangendo outras dimensões para além da militar, forçando a adoção de uma estratégia de resposta holística, sendo a eficácia da mesma subsidiária da adequada coordenação multi-institucional e de uma arquitetura de segurança cooperativa onde as diferentes organizações, diferenciadas nos objetivos e capacidades se devem complementar. Neste pano de fundo alguns países e Organizações Internacionais passaram a exigir às suas Forças Armadas (FA) novas missões, novos requisitos de força, novas capacidades e mesmo novas estruturas de força, de forma a torná-las capazes de fazer face às novas ameaças e de poderem atuar em todo um alargado espectro do conflito. Esta evolução levou a que os líderes mundiais, políticos e militares, começassem a encarar uma nova realidade, que nos parece inevitável: rever o papel das FA em missões de segurança no espaço de soberania. A defesa dos valores constitucionais da República e da sua integridade territorial, a garantia da soberania e da independência nacional, a segurança dos cidadãos e a sua liberdade individual e política constituem funções e deveres permanentes do Estado de Direito Democrático. Para a sua consecução é necessário assegurar: • A preservação de uma defesa militar autónoma de natureza dissuasória e defensiva, evitando riscos de perda da solidariedade dos parceiros, da coesão da segurança coletiva e da individualidade nacional; • A disponibilização de uma estrutura militar de defesa como um dos meios através dos quais o Estado pode revelar a vontade coletiva de soberania; • Capacidade para cumprir as missões militares necessárias para garantir a soberania, a independência nacional e a integridade territorial do Estado; • Capacidade de vigilância e controlo do território nacional; • Capacidade para organizar a resistência em caso de agressão; • O apoio à política externa do Estado como vetor para a afirmação internacional de Portugal. 10

Dispositivo Este quadro acaba por ser definidor da Missão do Exército, sendo fundamental a sua ação de presença em todo o território nacional (continente e arquipélagos), contribuindo ainda para o reforço da coesão e identidade nacional e para a preservação da ocupação populacional e institucional do território nacional, potenciando a segurança pela proximidade às populações através da prontidão de apoio, sempre que for solicitado, com a capacidade dual dos seus meios, materiais e humanos. É com este racional que o Exército defende como indispensável a manutenção de um dispositivo equilibrado, entre a sua indispensável dispersão territorial e a concentração racional de capacidades criticas e de campos de treino. Este dispositivo, integrante de um sistema de forças flexível, estruturado com base em três Comandos de Brigada alicerçados em diferentes tipologias de capacidades, não pode deixar de ter em conta que o tempo dos povos, vai para além das conjunturas e dos circunstancionalismos, pelo que não podemos deixar de equacionar o desenvolvimento e manutenção da possibilidade de, por mobilização e requisição, fazer crescer os efetivos, aprontando as forças consideradas necessárias em situações de crise ou de qualquer contingência que afete ou comprometa a Segurança e Defesa Nacional. Esta capacidade de crescer por mobilização torna-se mais pertinente face ao actual sistema de serviço militar profissionalizado e, também, quando o potencial humano nas fileiras tende a situar-se em níveis mínimos.

Participação na segurança interna, e no desenvolvimento e bem-estar Uma outra área em que o Exército não pode estar ausente e por isso está disponível para exercer parte do seu esforço, prende-se à necessária articulação entre FA e Forças de Segurança, na ordem interna, numa estratégia de emprego dual. Atualmente as FA nas Missões Específicas têm previsto o modo de atuação complementar e supletivo das valências próprias das Forças de Segurança. Falta, no entanto, a legislação própria para, entre outros temas, definir concretamente o espaço de intervenção, a cadeia de comando e os responsáveis, numa abordagem integrada da segurança nacional. A utilização das FA no âmbito interno pode ser otimizada, sem que daí não saia afetada a competência para cumprirem as suas missões primárias, intrinsecamente militares, que são a sua verdadeira razão de ser. Nesta ordem de ideias, o Exército está hoje, como sempre, preparado e disponível para garantir o emprego das suas capacidades em cenários nacionais, quer em ações de prevenção e combate a agressões e às ameaças transnacionais, quer no âmbito de missões em proveito do desenvolvimento e bem-estar. Este empenhamento envolve sobretudo as vertentes do combate à poluição, de 11

atividades de informação geográfica, de ciberdefesa, o apoio de evacuação médicosanitária, a proteção NBQR, o apoio à melhoria de acessibilidades, e ainda outras ações em reforço/apoio e complemento das Forças e Serviços de Segurança e dos Órgãos de Proteção Civil, seja em situações de calamidade ou no contributo para a melhoria do bem-estar dos portugueses. Assim, é possível ao Exército com os seus meios proceder ao levantamento de uma Unidade Militar de Ajuda de Emergência que possibilite aprofundar a ligação e capacidade de resposta militar com a rede de entidades responsáveis em situações de catástrofe e calamidade. Para a consecução destes desígnios entendemos que o foco do investimento deve concentrar-se em equipamentos de indiscutível utilidade tática e estratégica que permitam resultados operacionais significativos a custos materiais e humanos mais baixos, e sempre que possível, numa perspetiva de possibilidade de emprego dual dos recursos, procurando a eliminação de todas e quaisquer formas de duplicação de meios públicos pelo que no âmbito da Estratégia Militar Genética devem ser dadas orientações em áreas como obtenção e manutenção dos recursos materiais e humanos, do armamento e equipamento, às infraestruturas, passando pelos sistemas de comunicações e informação.

Estrutura do Exército No âmbito da estrutura superior do Exército e tendo por objetivo sobretudo o racionalizar de recursos, estão a ser conduzidos estudos para possíveis ajustamentos organizacionais. O Comando do Pessoal, Órgão Central de Administração e Direção, poderá ver reforçada as suas atribuições, passando a ser responsável pela obtenção, administração, formação e pelos serviços de apoio aos recursos humanos do Exército. Neste sentido, para além de uma possível alteração estrutural, deverão ser envidados esforços de modo a desenvolver novos modelos integrados de recrutamento, de gestão, de racionalização e de administração dos efetivos do Exército, para podermos gerir pessoas portadoras de motivação e de um conjunto de competências e qualificações que são estratégicas para o futuro da organização. Neste modelo de transformação dinâmica, mais importante do que reavaliar estruturas é integrar processos, procedimentos e mecanismos de modo a otimizarmos recursos, quer sejam humanos, materiais ou financeiros. A cultura organizacional e a gestão de Recursos Humanos, ao longo dos tempos sempre estiveram interligadas, relação esta que pode ser otimizada. As práticas de gestão de Recursos Humanos  - recrutamento e seleção, formação, avaliação, remuneração, entre outras, são consideradas expressão de cultura da organização; no entanto, nos dias de hoje deverá verificar-se uma influência cada vez mais vincada da gestão dos Recursos Humanos na cultura organizacional. 12

Em relação às Unidades de Formação e tendo como referência a Escola Prática dos Serviços, modelo implementado em 2006 e hoje consolidado, o Exército vai com este conceito de economia de recursos, melhorar o rácio formadores/formandos e reforçar os vários saberes residentes nas atuais Escolas Práticas, criando a Escola Práticas das Armas cuja estrutura será orientada para o levantamento de uma organização em rede, centrada na Escola e articulada com pólos formativos nas Unidades Operacionais, à custa dos recursos humanos e materiais que as integram. A área da Saúde Militar tem sido e continuará a ser objecto de particular atenção por parte do Exército. Neste domínio é total o apoio à consolidação do modelo do Hospital das FA, e ao seu desenvolvimento, pela importância acrescida de que se reveste para a Família Militar. Assume ainda importância crucial para o Exército uma nova estrutura de apoio sanitário da componente operacional, articulada com o Hospital das FA, e para a qual está prevista a criação de uma Unidade de Saúde Operacional, onde se polarizará toda a gestão e treino das unidades de apoio sanitário à componente fixa e operacional do Exército, promovendo economia de recursos, humanos e materiais. Ciente da verdadeira dimensão da Família Militar, dos militares na situação de Reserva e de Reforma, num momento em que os aspetos sociais ainda refletem o respeito pela condição dos militares, o Comando do Exército continua empenhado na garantia da continuação do apoio social, nomeadamente, através do Instituto de Ação Social das FA, do subsistema Assistência na Doença aos Militares e do Complemento de Pensão. Num momento de constrangimentos, e conhecedores do impacto das medidas restritivas no sistema remuneratório dos homens e das mulheres, militares e civis, que prestam serviço no Exército, relevamos a serenidade, a confiança e o profissionalismo demonstrado no dia-a-dia, em prol das missões que são atribuídas ao Exército.

Recursos humanos O elemento central, e o último recurso em qualquer conflito, em qualquer Exército, são os homens e as mulheres que nele servem. Para tal, os Exércitos são responsáveis pela obtenção, pela formação, pelo treino operacional, pela projeção e pela sustentação das suas Forças. Durante o último ano, e tendo em conta as orientações definidas pela tutela, foi possível garantir um nível razoável de incorporações nas fileiras, satisfazer o nível de qualidade exigido na formação, manter o grau de treino operacional necessário para o nível de ambição de projeção e sustentação de Forças. 13

O efetivo atual do Exército em militares e civis significa uma redução de cerca de 5.500 homens e mulheres em relação ao pessoal necessário, para guarnecer a totalidade da sua estrura orgânica. Contudo, é importante sublinhar que o efetivo autorizado, em função das restrições orçamentais, necessita de adequado fluxo através das incorporações e ingressos que foram descongeladas em 2012 e que permitem a manutenção de níveis aceitáveis de pessoal. No âmbito das promoções e incorporações, a proposta de orçamento para 2013 não parece introduzir restrições acrescidas à sua efetivação o que permitirá evitar turbulências desnecessárias e continuar a estabilizar a estrutura orgânica, a gestão de carreiras e a manutenção do efectivo do Exército, embora nos patamares mínimos autorizados. A racionalização dos efectivos dos quadros permanentes, em curso até 31 de dezembro de 2013, será feita em função da previsão normal de passagens à situação de reserva, bem como através da redução de ingressos de pessoal, nomeadamente, no corrente ano de 2012 se traduziu em menos 30% no 1º ano da Academia Militar. As restrições orçamentais e a contenção da despesa apontam para que o efetivo do Exército não venha a aumentar, sendo desejável que se enquadre nos atuais patamares como fator de estabilidade, no processo de revisão estrutural que está em curso. Contudo, quando se avalia o ambiente estratégico que nos rodeia, não podemos deixar de constatar que este é evolutivo, quer quanto à diversidade dos riscos e ameaças, quer no que respeita às formas de resposta. As tendências nacionais e das organizações internacionais apontam no sentido de novas formas integradas de empenhamento da componente militar, para poder atuar em todo o espectro da nova conflitualidade. Assim, o Exército continua a privilegiar a sua componente operacional, nas vertentes ligeira, média e pesada, garantindo uma capacidade de resposta aos compromissos internacionais de Portugal e às ameaças e riscos no âmbito do contexto internacional. Tal implica uma natural reavaliação de estruturas, requisitos de forças e de capacidades, para ser possível responder de forma adequada às novas exigências de segurança e defesa seja no plano externo, seja no seio do território nacional.

Equipamentos O produto final do Exército reside na sua capacidade operacional, a qual se deve apoiar em forças credíveis, que se distingam pela eficiência, de modo a serem reconhecidas pelos nossos aliados nas diversas organizações de segurança a que pertencemos. Este desiderato exige, entre outros aspetos, a modernização dos armamentos e equipamentos do Exército, o qual tem vindo a ser desenvolvido através da Lei de 14

Programação Militar, no âmbito dum processo de transformação e modernização que, como todos os processos de mudança, está em permanente avaliação, nunca concluído e adaptável aos condicionamentos político-estratégicos e às restrições orçamentais. A prioridade no reequipamento foi consubstanciada na aquisição de material moderno e interoperável, procurando-se adequar os meios às necessidades dos atuais Teatros de Operações. Por isso, o plano de modernização inclui as viaturas blindadas médias Pandur, tornando-se essencial garantir a coerência deste projeto – ainda que os meios possam ser alterados –, e as viaturas blindadas ligeiras, mais facilmente projetáveis e que conferem às forças, em Operações, uma proteção adequada. Constitui-se ainda como projeto estruturante para empego dos meios do Exército, uma capacidade de Helicópteros Ligeiros, apesar de se reconhecer e compreender as dificuldades conjunturais na obtenção de todos os meios operacionais desejáveis. Este é um projeto que não pode, nem deve ser abandonado, importando definir os moldes em que deve ser prosseguido este objetivo. O Exército está aberto a novas formas organizativas de partilha, que potenciem a utilização desta capacidade no plano nacional, em missões de interesse público.

Participação no esforço Nacional O Exército português vive e viveu sempre num tempo tríbulo, evocando os que nele serviram no passado, avaliando o tempo em que vivemos e olhando para os caminhos do futuro. Nesta época em que as palavras redução, ajustamentos, racionalização, reorganização, rentabilização, redimensionamento e sustentação são constantes nos objetivos a atingir pelo Estado Português, o Exército com uma ambição saudável e construtiva, não tem estado alheio, estando a desenvolver estudos no sentido de neste novo paradigma, valorizar o seu património, nomeadamente, os seus recursos humanos, as infraestruturas e os equipamentos. O Tempo presente é particularmente difícil para o País, não podendo nenhum português ignorar e por conseguinte, também os militares que servem no Exército, sentem e vivem de igual forma, os sacrifícios que lhes são exigidos em nome da continuação de Portugal. Neste contexto restritivo, o Exército contribui para o reforço de um clima de coesão, de estabilidade e de segurança, através da demonstração da sua unidade e disciplina, na defesa dos valores mais altos que norteiam a sua existência coletiva como Nação Independente. Os valores cultivados em permanência pelo Exército devem ser partilhados com a população portuguesa, na expressão de um sentimento de unidade, de capacidade e de esperança no sucesso a alcançar na batalha contra o tempo de soberania limitada em que Portugal vive e que afeta a liberdade de ação nacional. 15

Neste tempo em que verificamos no País confluências negativas de diversas situações de crise, importa que o Exército continue a contribuir para a solidez das FA. Assim devemos ter sempre presentes a ética, o respeito pelos valores militares, o espírito de resiliência e o exercício de uma conduta individual e coletiva que seja geradora de segurança, respeito e credibilidade no seio da sociedade nacional. O Comando do Exército está convicto que os seus militares reconhecem e sentem, que no actual quadro do País, ganha importância acrescida o significado de ser soldado, e por isso é sabido que a prioridade do Comando tem sido centrada nas questões que afetam a gestão dos recursos humanos, seja no plano individual ou coletivo. Neste domínio sublinhamos que o Comandante do Exército não abdica de ser responsável por resolver as questões dos subordinados quando se situam na sua área de competência. Como também não deixa de colocar de forma leal, franca e transparente, junto da tutela as questões que carecem de solução ao nível político. Tem sido através do dialogo com a tutela e em estreita e solidária cooperação entre os Chefes Militares, que tem sido possível ultrapassar dificuldades, de que destacamos o descongelamento das promoções e das incorporações no passado ano de 2012.

Palavras finais O Exército colabora no esforço nacional de contenção orçamental, mas não pode deixar de alertar para que a diminuição da capacidade de produzir segurança pode acarretar riscos não desprezáveis para o desenvolvimento e para o bem-estar social. Podemos transformar a crise económica e financeira em crise de segurança correndo o sério risco de irrelevância no seio da Comunidade Internacional. Neste sentido o Exército continua ao serviço do país e do seu papel na comunidade internacional, para como produtor de segurança, com créditos firmados, continuar, na medida do possível, a garantir a participação em Organizações Internacionais de Segurança e Defesa e outras onde se possa projetar poder através do emprego do Exército, como instrumento de política externa. Neste texto que integra o livro de homangem a um General que se constitui referência no pensamento estratégico nacional, o Comandante do Exército Português expressa o seu orgulho e satisfação não só pelo profissionalismo, sentido de dever e excelente desempenho dos Oficiais, Sargentos, Praças e Funcionários Civis, que prestam serviço quer em território Nacional, quer nos diversos teatros de operações e demais missões de apoio à política externa, exortando a todos para a confiança no futuro, com espirito empreendedor, e de respeito pelo código de conduta, inerente ao estatuto da condição militar, resistindo a apelos externos, para ações públicas à margem da ética que regula a postura e a atitude dos militares, no serviço ou fora dele. 16

GENERAL LOUREIRO DOS SANTOS O PROFESSOR MILITAR

General António Barrento

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General Loureiro dos Santos – O Professor Militar General António Barrento

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ara esta homenagem ao general Loureiro dos Santos, que vai da história militar à estratégia e que, neste âmbito, pode ir dos livros que já escreveu aos elevados cargos que desempenhou ou às suas frequentes intervenções nos media, actividades em que ele olha para o mundo conflitual e para nós, propomo-nos lembrar algo que está a montante de tudo isso – José Alberto Loureiro dos Santos, Professor. A razão desta minha escolha decorre do facto de poucas pessoas terem tido a fortuna de usufruir de um contacto tão variado e estreito com o homenageado, quando do seu desempenho de funções docentes. Desde logo, em 1970, quando, frequentando o 1º ano do Curso de Estado-Maior, fui seu aluno; depois, após 1976, quando ambos estivemos colocados como professores no IAEM. No meu Curso de Estado-Maior, o então major Loureiro dos Santos era professor de organização militar. Conforme era costume naquela época e naquele curso os professores militares, por desempenharem simultaneamente outros cargos na estrutura superior das Forças Armadas (FA)., dispunham de pouco tempo para a sua actividade didáctica no IAEM. Intencionalmente ou talvez também por isso, apesar de o curso ser muito exigente, o ensino era muito do tipo “do it yourself”. Eram raras as aulas magistrais. Para cada sessão os oficiais alunos estudavam o assunto que o professor previamente indicara, e a aula era normalmente preenchida com um interrogatório sobre essa matéria, podendo acontecer que uma parte da apresentação ou debate proporcionasse a apreciação ou chamada de atenção para aspectos doutrinários importantes. Na cadeira de organização seguia-se, também, de um modo geral, esse modelo. Porém, logo na primeira aula apercebemo-nos de que o professor não estava prioritariamente interessado em que soubéssemos as leis que tratam da nossa organização militar, pois preferia que tivéssemos pensado na razão de ser dessas leis, da sua situação no quadro nacional, das suas consequências. Mais do que conhecer pormenorizadamente a organização (o que também era desejável) eramos obrigados a pensar os porquês dos normativos sobre as várias estruturas, 19

obtenção dos recursos humanos e materiais, funcionamento, situações de emprego, limitações, etc. A cadeira não era um prolongamento e actualização da matéria de organização que há alguns anos nos fora ministrada na Escola do Exército, mas a procura de entender a razão de ser da organização, dos objectivos e finalidades a atingir, das várias estruturas e das diversas funções dos seus componentes, do relacionamento da instituição militar com o poder político. Diga-se em abono da verdade que o major Loureiro dos Santos não era o único professor que colocava o “descobrir” e o “entender”, acima do simplesmente “conhecer”, mas numa matéria em que o desfolhar dos diplomas a tornava mais fácil, ainda que monótona, esta abordagem era, para nós, nova, interessante e motivadora. Tínhamos que analisar com profundidade as leis, estudarmos a sua evolução, confrontá-las com os objectivos da instituição militar, lançar um olhar crítico, pensar na paz e na guerra. Este contacto com o Professor, para além da natural tensão ligada ao interrogatório permanente em que estávamos a ser avaliados, foi muito importante para conhecermos melhor o Exército que tínhamos e para pensarmos no Exército que deveríamos ter. Quando em 1976 se reiniciaram os cursos no IAEM, o tenente-coronel Loureiro dos Santos era professor de história militar e eu dava técnicas de estadomaior e pertencia também à secção de táctica. Porque em algumas matérias, como a estratégia e a história militar, se requeria dos professores particular apetência para as ministrar e uma preparação mais aprofundada, a direção do IAEM encorajou alguns professores das áreas das técnicas e tácticas a, para além das suas funções docentes, seguirem as aulas dos professores dessas matérias, tendo em vista uma possível utilização futura nessas cadeiras. O major Rebelo Gonçalves e eu disponibilizámo-nos a assistir e acompanhar o ensino da história militar, pela admiração que tínhamos pelo professor e porque a história militar nos cativava; ambos gostávamos de história e tínhamos tido boas classificações em história militar no Curso de Estado-Maior; entendíamos que ela era imprescindível para uma boa formação dos quadros do Exército; víamos na história o único “laboratório” possível da guerra, já que os exercícios e manobras, apesar de importantes, não são mais do que aproximações grosseiras; e porque dando-nos a conhecer as guerras passadas, conseguimos vivê-las sem que se consumissem vidas e bens, mas apenas tempo para o estudo, a reflexão e o debate. Estando em sintonia com o professor da cadeira nesta necessidade da história militar, encontrávamos também nela demonstrações de espírito de defesa e manifestação de virtudes que devem possuir os chefes militares; de exemplos que vão da estratégia à táctica, da organização à logística, da política à geopolítica, da psicologia à sociologia, que são matérias curriculares dos cursos de carreira dos oficiais do Exército; sabíamos que não se encontrando na história militar, fórmulas para a resolução dos problemas militares, nomeadamente no campo operacional, nela descobrimos pistas e indicadores preciosos; e que reflectir sobre 20

ela é acrescentar a outros conhecimentos, e à nossa experiência pessoal, sempre limitada, à vasta experiência de muitos que nos antecederam. Apesar de a história se caracterizar pela continuidade, os momentos das grandes mutações, pelas alterações que produzem, devem merecer-nos uma particular atenção. Arnold Toynbee vê na viagem de Vasco da Gama um desses momentos, de grande viragem na vida da humanidade, ao ponto de nomear o período histórico que antecedeu a viagem do nosso navegador, de período pré-gâmico. De forma semelhante o tenente-coronel Loureiro dos Santos procura na história militar os momentos das grandes mutações produzidas pelas alterações dos quadros políticos e tecnológicos e que fizeram evoluir significativamente os instrumentos de coacção, as estruturas militares, as formas de combater, os meios de fazer a guerra. Assim, ainda que a matéria ministrada fosse claramente história militar, o pensamento e o discurso do Professor levava-nos para além dela, para a descoberta dos instrumentos militares da época e para as suas consequências na guerra. Ou seja, a matéria de história militar não era um fim, mas um meio necessário para o entendimento das doutrinas das ciências militares. Ainda que a história fosse também um elemento de cultura, a história militar era, ali, essencialmente instrumental. Como professor dessas matérias o tenente-coronel Loureiro dos Santos utilizava uma extensa e selecionada bibliografia, mas seguia, em parte, a metodologia que Eric Muraise utilizara na “Introduction à l’Histoire Militaire”, acrescentando-lhe uma análise pessoal e aprofundada, que muito contribuía para o interesse com que acompanhávamos as suas aulas. Os instrumentos de coacção que caracterizavam as diferentes épocas, com as suas potencialidades e limitações, eram a resultante natural das situações tecnológicas, com as suas inovações, e dos referenciais políticos e sociológicos dessas mesmas épocas. Com esta análise tornava-se claro o aparecimento dos diversos exércitos, estruturas, meios e doutrinas, que eram utilizados na guerra, que a influenciavam, que iam “escrevendo” a história. Dado que os aparelhos militares existem para que o poder político, quando necessário, os utilize para mostrar ou para aplicar a violência organizada, aquilo que verdadeiramente os distingue, e sem o qual os exércitos são apenas dispendiosas e inúteis, é a sua capacidade para realizar o combate. É esta capacidade que lhes permite dissuadir, defender ou atacar. Por esta razão o tenente-coronel Loureiro dos Santos individualizou e caracterizou os “elementos essenciais de combate”, isto é, aquilo que mais importante se manifesta e contribui para os resultados, quando o combate se realiza. São esses elementos, de valor variável com as épocas e muito ligadas a tecnologia então utilizada, que “desenham” os aparelhos militares que vão surgindo através dos tempos. Felizmente toda esta elaboração intelectual foi registada, em 1979, no livro “Apontamentos de História para Militares”, e que, pelo aparecimento de uma moderna dimensão da guerra, foi recentemente revisto e actualizado. Assim, surgiu 21

a “História Concisa de como se faz a Guerra”, livro que tive a honra e o prazer de apresentar publicamente, em que o general Loureiro dos Santos trata agora, também, do quadro psicológico em que decorrem certos conflitos actuais, do surgimento de novas ameaças, da importância das percepções. Neste quadro, para que possamos manter a determinação sem perdermos a lucidez, há que considerar a “informação” como um novo e muito importante elemento essencial de combate, podendo este, só por si, ser responsável pela vitória ou pela derrota. Como se pode calcular, assistir às aulas de história militar do tenente-coronel Loureiro dos Santos foi um privilégio, particularmente para o major Rebelo Gonçalves e para mim, porque depois de cada sessão, no seu gabinete, travávamos um interessante diálogo em que apresentávamos as nossas dúvidas e comentários. Depois daquele período de atenção à história militar, muito enriquecedor, também eu vim a ser, dois anos mais tarde, professor de história militar1, o que me deu muito prazer, por ter sido obrigado a “mergulhar” ainda mais profundamente na história e pela oportunidade, de que usufruí, de poder saciar o meu apetite histórico. Uma outra experiência veio a suceder em 1981 e 1982, quando o então coronel e depois brigadeiro Loureiro dos Santos foi chefe da secção de estratégia e professor de estratégia. Nessa altura eu estava na táctica e era professor de história militar, cadeira pertencente à secção de estratégia. Esta condição de proximidade, bem como e vivência anteriormente descrita, fez com que a sequência das nossas aulas, ao Curso Superior de Comando e Direcção, fosse coordenada e concorrente. Para apoio de várias sessões de estratégia, eu apresentava aulas de história militar com exemplos, internacionais ou nacionais, que ilustravam, ou sustentavam a doutrina estratégica em foco ou, no mínimo, suscitavam pontos de reflexão. Por exemplo: imediatamente antes ou depois de serem tratados os princípios da guerra, apresentava na história militar campanhas ou batalhas que os sublinhavam e permitiam a sua discussão; ao tratar-se das crises, mostrava casos históricos que sustentavam a doutrina; as doutrinas de subversão e contra-subversão foram acompanhadas de exemplos históricos ilustrativos. Além desta interessante colaboração, pude acompanhar as suas aulas, nas quais havia assuntos muito pouco tratados quando da minha preparação estratégica, como os “conflitos e a teoria dos jogos”, as crises2, e certos elementos do planeamento estratégico cujo estudo foi então desenvolvido. O brigadeiro Loureiro dos Santos, com os conhecimentos que tinha, a permanente actualização que fazia através da leitura de variados autores, e a metodologia seguida em que procurava o debate de ideias, dava aulas que causavam 1

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Outro tanto veio a suceder com a matéria da Estratégia, a cujas aulas assistia o capitão Fontes Ramos, que também veio a ser depois professor da estratégia, o que me levava a gracejar, dizendo-lhe que só conhecia dois professores de estratégia capitães: o Lidell Hart e ele! Só tinha estudado as crises quando frequentei a Escola Superior de Guerra em Paris.

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o mais vivo interesse naqueles que tinham oportunidade de as seguir. E também aqui, como na história militar, ele deixou registado em livros muito do seu saber, das suas ideias, das suas preocupações. No âmbito da sua acção como professor, cabe ainda recordar a elaboração do documento sobre a Zona de Operações Terrestres. Em 1932 o coronel Miranda Cabral leccionou e escreveu as “Conferências sobre Estratégia”. Este trabalho notável sobre as possibilidades de defesa do T.N. tinha também um interesse prático para o IAEM, porque permitia que os temas tácticos, no território nacional, tivessem um fundamento geográfico-táctico lógico. Tendo porém passado 50 anos sobre as “Conferências”, mesmo contando com a constância dos elementos geográficos, sucedera uma evolução acentuada nos meios militares, nos conceitos, e até na geografia, em consequência da acção do homem. Por estas razões o Director do IAEM., o general Ramires de Oliveira, lançou o desafio de fazermos a sua actualização. Era, por um lado, uma homenagem ao autor, mas, por outro, construía-se uma base actualizada para a elaboração dos temas táticos. O brigadeiro Loureiro dos Santos presidiu e coordenou o grupo de trabalho, de que também eu fiz parte, tendo nascido o documento denominado por “Elementos para a defesa da Zona de Operações Terrestres (ZOT) de Portugal”. A acção do general Loureiro dos Santos em cargos de responsabilidade, como escritor militar, ou como interventor e comentador nos media, é conhecida e reconhecida por muitos dos nossos concidadãos. A sua acção como professor, sobre um universo muito mais restrito, marcou porém todos aqueles que foram seus alunos. Para mim, que tive o privilégio de pertencer a este último grupo e até, em pequeno grau, de ser seu colaborador, foram experiências inesquecíveis e muito valiosas para a minha formação. Homenagear o General Loureiro dos Santos é pois uma atitude lógica, dada a elevada qualidade do seu vigor intelectual, a sua preocupação com as FA e com a defesa do nosso País. Mas, por tudo isto, homenageá-lo é também um acto de justiça.

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ELABORAÇÃO DAS GRANDES OPÇÕES PARA O CONCEITO ESTRATÉGICO DE SEGURANÇA E DEFESA NACIONAL

General José Luís Pinto Ramalho

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Elaboração das Grandes Opções para o Conceito Estratégico de Segurança e Defesa Nacional General José Luís Pinto Ramalho

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m resposta ao convite que me foi dirigido pelo Exmº Professor Luís Fontoura, Presidente da Comissão para a Revisão do Conceito Estratégico de Segurança e Defesa Nacional, produzi um texto que a seguir reproduzo, para inclusão na obra de homenagem ao General Loureiro dos Santos, por duas razões: em primeiro lugar, a grande admiração, estima, respeito e amizade que tenho por ele, como pensador, militar e estratego, como académico e como camarada e amigo; em segundo, porque em tantas oportunidades, temos discutido e refletido sobre estas matérias.

Contribuição para os Temas de Reflexão. Objectivos Nacionais Permanentes – O Espaço Estratégico de Interesse Nacional Uma primeira palavra para expressar a minha concordância com a validade actual dos Objectivos Nacionais Permanentes, pelo seu carácter abrangente e consensual, uma vez que desde há muito se encontram inscritos em documentos fundamentais, como a Constituição da República e a Lei da Defesa Nacional e nunca foram postos em causa, aquando das diversas revisões que foram efectuadas naqueles documentos. Estes objectivos têm a ver com a garantia da independência nacional, com o assegurar da integridade territorial, com a salvaguarda da liberdade e segurança das populações, a protecção dos seus bens e do património nacional, a garantia da liberdade de acção dos órgãos de soberania, o regular funcionamento das instituições democráticas e a possibilidade de realização das tarefas fundamentais do Estado, o contribuir para o desenvolvimento das capacidades morais e materiais da comunidade nacional, de modo a que possa prevenir ou reagir pelos meios adequados a qualquer agressão ou ameaça externa, assegurar a manutenção ou o restabelecimento da paz em condições que correspondam aos interesses nacionais; são objectivos inerentes à condição de um Estado soberano, democrático, independente, moderno e que procura a promoção social, material e moral da sua população, daí a sua aceitação e não contestação desde 1974. 27

A questão que deve ser colocada de imediato, é quais deverão ser os Objectivos Nacionais Actuais, tendo em conta a Conjuntura Estratégica em que vivemos, as nossas Vulnerabilidades e as Potencialidades de que dispomos, perante os desafios que se nos colocam, os riscos e ameaças, reais ou potenciais, com que nos confrontamos e cuja concretização ou não, podem pôr em causa ou contribuir para a consecução dos objectivos nacionais permanentes. Nesse sentido, uma reflexão acerca da envolvente internacional e das suas implicações para a segurança de Portugal é indispensável. Fomos sempre um país que, em termos de política externa e na procura do exercício de influência e de poder e de aquisição de recursos, (como forma de aumentar o poder nacional), nunca se limitou ao espaço regional, antes pelo contrário, sempre se aventurou para espaços mais alargados de inserção e de participação. É esta atitude estratégica que deve levar à definição de um conceito, ultimamente algo esquecido e considerado, de Espaço Estratégico de Interesse Nacional (EEIN), onde convivem duas realidades estratégicas – o espaço dos interesses nacionais permanentes e o espaço dos interesses nacionais conjunturais. O país tem assim de clarificar e identificar, onde, como e com que meios, faz a defesa desses interesses nacionais, que prioridades têm de estabelecer, que riscos aceita assumir, que ameaças tem de acautelar, em que alianças e organizações internacionais decide participar e que orientações deve dar às estratégias gerais, que devem concretizar os grandes desígnios nacionais – a Segurança, o Bem-Estar e a Justiça Social.

A Envolvente Internacional – a Segurança de Portugal no Mundo Parece legítimo poder referir-se a existência de um espaço de soberania, onde se faz a defesa dos interesses permanentes da nação, com especial ênfase, quando esta coincide com o estado, como é o caso nacional e, como temos uma natureza fragmentada, torna-se necessário garantir um espaço de circulação, aéreo e marítimo, que ligue as diversas parcelas; é também neste espaço que se define o território nacional, incluindo o mar territorial e espaço aéreo correspondente, onde está o governo e vive a esmagadora maioria da população nacional e que materializa os núcleos geo-histórico e geo-económico da nação portuguesa. Desta identidade e coesão estado-nação, pode tirar-se uma primeira grande conclusão: ser aceitável uma avaliação, em termos de desenvolvimento regional e uma coordenação no sentido da sua promoção, mas considerada como artificial e perversa qualquer divisão política que afecte aquela unidade; as autonomias dos Açores e da Madeira justificam-se por uma adjacência, que é mais política do que territorial e marcada pela geografia, pela circulação e pela especificidade/carência dos seus recursos e que devem propiciar o desenvolvimento; no caso do continente, devem merecer reflexão argumentos de interioridade, que em termos de distância à capital não serão mais do que da ordem dos quatrocentos quilómetros. 28

Tem de ser considerado em paralelo, pelas implicações no anteriormente referido, a nossa inserção no espaço de integração política, de desenvolvimento e de segurança, materializado pela União Europeia, caracterizado pelas transferências de soberania, pela moeda única, pela partilha da ZEE, pelo espaço Scheng, pelas implicações para a agricultura, pescas, pecuária e indústria, pela circulação de pessoas, bens e capitais etc.; estamos perante um ambiente estratégico, em que os interesses nacionais convivem ou se chocam, com os interesses do aprofundamento da construção europeia e dos poderes que a impulsionam, por vezes, num claro ambiente de coacção sistémica da própria organização. O país é membro fundador da OTAN, um espaço euro-atlântico de defesa colectiva, prevenção de conflitos e de gestão de crises, que hoje é um indiscutível instrumento da preservação da paz e da segurança internacional, actuando sem constrangimentos fora da área tradicional do Tratado, em processo de alargamento a novos membros e a novas parcerias, incluindo a Rússia. É uma aliança que vai ser confrontada no futuro próximo, com uma estratégia americana mais balanceada para o Pacifico e onde a participação dos seus membros se afirma pela solidariedade política, pela partilha de custos, o”burden-sharing” e, sobretudo, pelo cometimento de tropas nas operações militares que decide conduzir. A estratégia nacional de afirmação político-diplomática exerce-se num quadro de relacionamento bilateral e multilateral, que tem como “fora” privilegiados a ONU e a OSCE; são conhecidos, o empenho e a determinação nacional no sentido das nomeações como membro não permanente do Conselho de Segurança, para a presidência da Assembleia Geral e outras Agências, assim como na OSCE. É um espaço global onde é necessário definir com clareza que interesses nacionais devem ser prosseguidos ou defendidos, em ambiente bilateral ou multilateral, estabelecidas prioridades para áreas de especial interesse para Portugal, como sejam a África, o espaço regional (Espanha e Maghreb/Mediterrâneo) e os países emergentes (BRIC), de referir ainda que, em todas estas áreas estratégicas o país tem participado em “fora” multilaterais, constituindo clara oportunidade para a diplomacia económica e para o acesso a novos mercados. Este é também um espaço de Solidariedade e de Segurança Internacional, onde se legitimam as operações de apoio à paz, sejam de combate ou humanitárias; no espaço regional permanecem potenciais focos de tensão, quer com o vizinho histórico, a problemática da escassez da água, das pescas e a demarcação definitiva da fronteira terrestre, quer no caso da margem sul do mediterrâneo, a imigração ilegal, o tráfego de drogas e o Terrorismo. De especial interesse para Portugal a afirmação do espaço da Língua e da Cultura Portuguesa, em que participam o Brasil, os PALOP, Timor e as Comunidades Portuguesas que configuram a Diáspora Lusíada e cujo instrumento dinamizador é constituído pelas políticas de cooperação, em especial a técnico-militar. Neste 29

espaço estratégico está constituída a CPLP, que deve ganhar capacidades no domínio da prevenção e gestão de crises, designadamente para situações como a vivida actualmente na Guiné-Bissau, ampliando a sua capacidade de intervenção política; é uma evolução bem percebida pela ONU, que passaria a poder contar com uma organização falando a mesma língua, com países de diversos continentes, pertencentes a organizações e alianças diversificadas (EU; OEA; MERCOSUL, UA, ASEAN, OTAN CEDEAO, CEEAC e a SADC) e liberta dos interesses das organizações sub-regionais africanas. O espaço da lusofonia está organizado no quadro da CPLP e, tendo em consideração a localização geoestratégica dos vários países membros, relativamente ao atlântico sul, configura-se a oportunidade de participação na construção e efectivação de um qualquer mecanismo de segurança que venha a ser institucionalizado para aquela área geográfica; este é também um espaço que propicia a Portugal, uma mais-valia de diferenciação e de poder negocial, relativamente aos outros espaços em que o país participa. De lamentar, o fim da participação de Portugal, na operação de paz, conduzida no Líbano a UNIFIL, onde estava a ser implementada uma parceria inovadora, com grande potencial futuro para a CPLP, com o beneplácito da ONU e constituída pela integração de uma pequena unidade de Timor no contingente português, presente naquele território. Identificados os interesses nacionais a prosseguir e a defender em cada um destes grandes espaços, define-se um outro, de grande interesse político, de contorno conjuntural e que tem a ver com o esforço de aquisição da indispensável informação estratégica, constituindo a sua identificação, a orientação adequada para o serviço de informações da república e para a ligação deste com organizações e serviços congéneres, aliados ou amigos. Desta reflexão pode concluir-se que o EEIN é um grande espaço, diversificado, geoestratégico e geopolítico, que abrange o território nacional e outras áreas e actores internacionais de grande importância estratégica para a defesa e concretização dos interesses nacionais permanentes e actuais, com dois domínios de consideração prioritária: um, onde se jogam os interesses permanentes da nação portuguesa; outro, que tem em conta a evolução, as realidades, os riscos, as ameaças e as oportunidades da conjuntura internacional e onde se procura a defesa e a afirmação dos demais interesses nacionais. É para esta realidade estratégica que devem ser indicados os grandes objectivos às estratégias gerais, económica, político-diplomática, psicológica (valores nacionais) e militar. Face à crise económica que o país vive, estão identificadas vulnerabilidades neste domínio, que carecem de correcção, fomentando a agricultura, as pescas, a pecuária, a competitividade das empresas, a indústria de valor acrescentado, a capacidade de exportar e ganhar novos mercados, a aposta nas novas tecnologias (nanotecnologias, biotecnologia, materiais compósitos, células de novas energias, da informação etc.) e sobretudo na inovação. 30

As políticas de educação, com exigência e combate ao facilitismo, de formação profissional, de emprego, de saúde, de habitação e justiça social, devem merecer especial atenção, explicitadas por uma política de verdade, que não se refugie em afirmações de opções inevitáveis, a par de uma comunicação social a que se exija responsabilidade, rigor, isenção e postura deontológica, pois constituem factores de coesão e estabilidade social, indispensáveis à aceitação de sacrifícios, por todos, com vista à recuperação do país – aquilo que hoje se denomina por Boa Governação. No domínio da educação, dos valores e da igualdade de oportunidades e de criação de condições de participação no processo de afirmação da cidadania, é urgente libertar a sociedade civil da hegemonia partidária, em termos de acção plena na vivência democrática, motivando os jovens, a partir da escola, através de uma adequada e isenta formação para a cidadania, para a defesa do ambiente, para a aceitação e prática dos valores nacionais, para o conhecimento da história nacional, para a defesa dos direitos humanos e para o voluntariado e solidariedade social. No quadro político-militar, na actual conjuntura estratégica e com o fim da guerra fria, há uma clara alteração da importância geoestratégica nacional, que se baseava no carácter funcional que representava no contexto de uma estratégia de contenção de blocos, transferida agora para a necessidade da afirmação nacional de país produtor de segurança, no quadro da segurança cooperativa, criando a oportunidade para uma possível função de articulação, fruto dos vários grandes espaços, em que o país se insere. A segurança e o desenvolvimento têm vindo a ser procurados, através da integração em grandes espaços, implicando que os actores que compõem esses conjuntos sistémicos, se não possam alhear da relação entre aqueles dois desígnios e, face aos interesses em jogo, o processo decisório assuma particular importância, pelo que estar presente, participar e partilhar as consequências das decisões, tem de ser uma responsabilidade inalienável, para a qual é indispensável, também, a capacidade para assumir estas últimas, campo onde a estratégia geral militar é chamada a dar respostas. A disponibilidade política nacional para se assumir como um país que conta, no quadro da segurança cooperativa, tem tido expressão nas operações de apoio à paz, conduzidas pela ONU, pela OTAN e pela EU, nos teatros do Afeganistão, do Kosovo, da B-H, do Líbano e no combate à pirataria, numa referência aos mais recentes; para além do prestígio e reconhecimento internacional trazidos ao país, essa participação já deu excelentes indicações que devem ser tidas em conta na futura orientação para a estratégia geral militar, relativamente ao tipo de forças militares necessárias, ao seu carácter expedicionário e ao treino e tipo de armamento e equipamento de que devem dispor. Em suma, é necessário pugnar pela adopção de opções estratégicas para as diversas estratégias gerais que mantenham o país como parceiro internacional credível, como actor pleno da cena internacional, em que os atributos do Estado 31

soberano se exercem na plenitude, sendo capaz de afirmar a sua posição política, os seus objectivos e interesses nacionais, os seus princípios e valores, em quaisquer situações, quer junto de aliados e amigos, quer perante opositores.

Riscos Potenciais, Ameaças Externas. Âmbito Nacional – Riscos e Ameaças Nas duas últimas décadas, assistimos a alterações na ordem mundial que provocaram no Sistema Internacional, a emergência de diversos pólos de poder, dando-lhe um carácter multidimensional, complexo e instável. A queda do Muro de Berlim e a fragmentação da União Soviética, originaram um conjunto de acontecimentos de natureza estratégica, que alteraram profundamente a conjuntura internacional; de um paradigma de equilíbrio estratégico baseado na dissuasão nuclear, passou-se para uma realidade conflitual, tornada global pela informação em tempo real e pela cobertura dos “media”, que impede o seu confinamento territorial, assumindo preponderância e prioridade, realidades como o conflito assimétrico e, em especial, o terrorismo cada vez mais violento, transnacional e disseminado. O terrorismo continuará a estar presente na conflitualidade actual e futura, manifestando-se, quer por actos espectaculares, com elevado número de baixas e assinalável dimensão das destruições, quer pelo forte impacto psicológico junto das populações, condicionando a acção política e a opinião pública, criando junto dos “media”, uma informação influenciada pelo facto. O carácter global do terrorismo, a sua organização subversiva e em rede, radicalismo e ausência de respeito pela vida humana, faz admitir a hipótese de poder aceder a meios biológicos, químicos e radioactivos, tornando clara a possibilidade da ameaça de emprego de uma arma de destruição massiva, seja uma “dirty bomb” ou acções lançando mão de meios químicos ou biológicos e criando preocupações novas quanto às medidas de prevenção e controlo das consequências, envolvendo as forças armadas, os meios normais da protecção civil e de socorro e, também, a própria sociedade civil. Embora uma acção desta natureza possa parecer, pela dimensão do número de baixas que causaria, a par do pânico que geraria, pouco provável, uma avaliação ponderada por parte de especialistas, não a rejeita, reconhece inclusive que se está perante uma impossibilidade de uma retaliação objectiva sobre os seus autores e aponta para que o recurso a este tipo de acção, por parte do terrorismo internacional, não só como muito provável, mas ainda pior, como uma questão de tempo. São inequívocos factores de tensão e instabilidade internacional a proliferação de armas de destruição massiva (ADM), os regimes ditatoriais, baseados em personalidades e na sustentação militar, muitas vezes com apetência para a criação de arsenais de ADM, a insurgência em estados falhados, os senhores da guerra, o 32

incremento do crime internacional organizado, que alimenta a pirataria e outras acções, que põem em causa a segurança energética, o seu acesso e distribuição e a livre circulação de pessoas e bens. A globalização propiciou aquisições contraditórias, desde a informação que põe em causa regimes ditatoriais, mas também torna conhecidas as realidades e consequências de uma crise económica/financeira, a par da evidência do fosso de desenvolvimento entre sociedades afluentes e sociedades quase tidas como dispensáveis. Neste ambiente é mais nítida a percepção dos custos de energia, em particular do petróleo e do custo dos alimentos, assim como da partilha de rendimentos e o acesso ao desenvolvimento, à saúde, à educação e ao emprego, aspectos que contribuem para agudizar outros factores de tensão e de instabilidade. No período pós segunda guerra mundial, contactavam-se as massas populares através da rádio e da televisão; qualquer acção político-militar que visasse alterar uma liderança política tinha como um dos seus objectivos prioritários, aqueles meios de comunicação, para difusão da sua mensagem e impedir que outros a contrariassem. Hoje, a comunicação de massas, por vezes da sua própria iniciativa, faz-se por satélite, por telemóvel, pela Internet e pelas redes sociais, de maneira mais rápida e mais abrangente e de difícil controlo ou impedimento. A associação destes meios tecnológicos, com a disponibilidade de grandes massas jovens instruídas, mas desempregadas e desocupadas, sem acesso ao desenvolvimento e a um futuro próximo de realização pessoal e profissional credível, cria um universo disponível para transformações radicais, para aceitar e praticar a violência, carente de qualquer tipo de organização, permissível aos apelos do populismo e do fundamentalismo radical ideológico e xenófobo. Radicalismo incrementado ainda pelas migrações massivas, desordenadas, provocadas ou ilegais, de deslocados ou refugiados, pela desagregação da estrutura do Estado e pelos grandes flagelos sociais, decorrentes da fome, ou do desrespeito pelos direitos humanos. O fim da guerra fria e a declaração política do fim das ameaças, criou no contexto estratégico internacional uma nova avaliação dos riscos, com um carácter multidimensional e geograficamente disseminados: passaram assim a ser identificados aqueles que são inerentes ao uso da violência (guerra/conflitos abertos, terrorismo, proliferação de ADM, grande criminalidade internacional organizada/máfias, pirataria, tendências radicais utilizando meios violentos) e outros considerados novos. Nestes, estão agrupados os que decorrem da introdução de factores de desequilíbrio do Eco-Sistema (o fenómeno El Niño, as alterações climáticas, a erosão das costas, a subida do nível das águas dos mares, o efeito de estufa, a escassez da água, a desertificação, a diminuição da camada de ozono, o degelo acelerado, chuvas e cheias glaciares, os terramotos e os “tsunami”, a erupção de vulcões, os tufões, as derrocadas e os deslizamentos de terras e os grandes incêndios 33

(sazonais). A realidade e dimensão destes acontecimentos ultrapassam, normalmente, as capacidades de resposta nacionais e apela à solidariedade internacional, o que não dispensa a adequada preparação nacional para os enfrentar e a participação nos mecanismos internacionais de resposta. Devem ser considerados também os riscos ligados à evolução da tecnologia e a utilização gravosa da mesma, sem considerações ambientais e ecológicas, caso dos lixos tóxicos, da poluição, das chuvas ácidas, os acidentes industriais, envolvendo produtos químicos, biológicos ou radioactivos e os “apagões” de quaisquer naturezas; também aqui se verifica, por vezes, face à dimensão dos acontecimentos, uma incapacidade nacional para lhes dar resposta, sendo indispensável a cooperação internacional. Por último, os riscos designados por novos vírus biológicos/sanitários, que dão origem às pandemias e à perturbação dos ciclos alimentares, ao normal funcionamento dos mercados e à própria circulação das pessoas; os vírus tecnológicos, que afectam o processo produtivo industrial e os vírus informáticos, que podem causar a disrupção do normal funcionamento das tecnologias de informação e a utilização segura do ciberespaço. A realidade conflitual actual abriu, para o emprego da coacção e da estratégia militar, dois novos ambientes operacionais, o espaço e o ciberespaço, onde a problemática da defesa e da segurança, passa a ter de ser considerada e preparados os meios de resposta para acções gravosas que aí possam ser levadas a cabo, impedindo a sua normal utilização; no caso do espaço cósmico, nos próximos dez anos, admite-se que a sua utilização comercial ultrapasse a militar e que passem a ser reais e indispensáveis os mecanismos que garantam a sua utilização, em permanência e em segurança. As tecnologias e sistemas de informação face ao seu carácter globalizante e sistémico, a par do que representam para o normal funcionamento da sociedade, constituem-se hoje como mais um espaço de aplicação do poder e da coacção, um novo Teatro de Operações, a merecer as mesmas preocupações de segurança e de defesa que os tradicionais espaços onde a violência pode ter lugar. É hoje indispensável “patrulhar a Web”, vigiar as auto-estradas da Informação para as proteger e garantir a sua utilização e, se necessário, atacar os eventuais perturbadores do sistema; a Internet, os “media” e as telecomunicações são vias e campos de actuação gravosa, através da utilização das ciber-ferramentas, acessíveis em termos comerciais, dos vírus, das armas de rádio frequência e do eventual efeito EMP; a incapacidade nacional para assumir estas responsabilidades determinará uma grave vulnerabilidade e a atitude irresponsável de só nos apercebermos de que o “sistema” está comprometido, quando colapsa. O ciber-terrorismo e a ciber-guerra são realidades da actualidade, podendo criar uma realidade parodoxal, de um país poder estar sujeito a uma situação de guerra, de ataque às suas infra estruturas fundamentais, políticas, financeiras, produtivas, de 34

controlo do espaço aéreo, de gestão da informação, etc., sem saber quem a conduz; um “hacker” pode, na actualidade, pôr em causa o sistema de funcionamento de uma sociedade, sendo também já uma realidade que as organizações radicais utilizam hoje a “Web” para obter fundos, promover o recrutamento, disseminar propaganda e ideias força, obter informações e conseguir e garantir apoios à estrutura subversiva. Estamos na actualidade a lidar com um novo espaço de aplicação da estratégia e com um recurso da mesma natureza, com uma característica diversa dos seus atributos, este, quanto mais se usa mais se amplia e a sua difusão é geradora de um efeito “spill over” e está na base do conhecimento, da inovação e do empreendorismo; é um novo espaço e um recurso que materializa um factor de poder, diferenciador na cena internacional e um instrumento para influenciar ou coagir. Ignorar esta situação é assumir uma atitude de menoridade estratégica, que reduz o poder do Estado e a liberdade de acção política dos seus decisores. Estudos internacionais recentes estimam que, dentro de dez, quinze anos, cerca de 60% da população mundial possa estar concentrada em centros urbanos, fazendo prever que os conflitos futuros tenham a sua solução naquele ambiente, intra-estatal e entre populações, focalizando-se na conquista dos espíritos e mentes, numa batalha de percepções e não, na conquista de territórios, respondendo a comunidade internacional a essas situações, com coligações multinacionais conjunturais. Tendo presente a experiência operacional recente nos diversos teatros onde as nossas Forças Nacionais Destacadas têm actuado, é legítimo prospectivar que no futuro próximo a conflitualidade seja fundamentalmente terrestre, com um ambiente beligerante de significativa intensidade, com carácter urbano, privilegiando a assimetria, mas tirando partido da tecnologia, dos sistemas de informação e da acção dos “media” e do impacto da informação global em tempo real, capaz de inibir os espíritos e limitar a liberdade de acção e determinação dos decisores políticos. A experiência da conflitualidade actual diz-nos também que os conflitos abertos ganham-se ou perdem-se nos teatros de operações terrestres. A posse de melhor tecnologia, não dispensa a colocação e presença de tropas no terreno, com efectivos adequados à missão atribuída e aos objectivos que se pretenda alcançar; não ter estes aspectos na devida consideração, corresponde a evidenciar a sua insuficiência no teatro de operações, aumentando o risco de um maior número de baixas nas nossas forças, a uma maior necessidade de apoio aéreo, quer em helicópteros, quer em aviões de combate para apoio às forças terrestres, a maiores riscos de baixas civis e danos colaterais, maior necessidade de apoio das forças locais, nem sempre devidamente aptas a poder fornecê-lo e, também extremamente penalizador, tornar mais difícil a consecução dos grandes objectivos da campanha, designadamente, menor progresso nas áreas da reconstrução e do desenvolvimento, por ausência do ambiente de segurança necessário. 35

Respostas – Instrumentos e Âmbito de Actuação Centrarei a minha reflexão no instrumento de actuação decorrente da estratégia geral militar, as Forças Armadas, particularizando alguns aspectos da sua componente terrestre, o Exército. Existem na actualidade novos paradigmas que têm de ser considerados na formulação da estratégia geral militar, em termos nacionais: é incontornável que a defesa dos interesses nacionais se faz num quadro estratégico da segurança cooperativa, fora do país, nas novas fronteiras estratégicas do interesse nacional, nos EEIN em que nos inserimos, construindo um conceito amplo de Segurança, em que é difusa a fronteira entre a interna e a externa. A Segurança integra também um carácter psicológico, potenciado por uma informação em tempo real, difundida sistematicamente pelos “media” que, dando a conhecer novas oportunidades, níveis de bem-estar e de desenvolvimento, cria, simultaneamente, frustrações e necessidades urgentes de cada vez mais recursos, estimula a atracção das cidades, o alargamento das regiões urbanizadas, quer do litoral, quer gerando megacidades de difícil gestão, contribuindo para a desertificação do interior e para pressões demográficas, que levam a migrações descontroladas, com as consequentes implicações na tranquilidade social. Situações como estas que afectam o desenvolvimento, a estabilidade social e a normal acção governativa, a par de outras, como sejam o desequilíbrio demográfico nacional e a sua influência nos programas de apoio e segurança social, despovoamento do interior, quebra de natalidade, pobreza e desigualdade, deficiente distribuição de serviços de saúde, de educação, de justiça e do estado social, iliteracia, fraca autoestima e orgulho nacional, antes de se constituírem riscos ou ameaças, em termos nacionais, são atitudes e comportamentos que decorrem da ausência de políticas económicas e sociais adequadas, no sentido da necessária resposta ou que o Estado não consegue concretizar. Também do ponto de vista político, existe uma objectiva disponibilidade para participar nos grandes acontecimentos da segurança, designadamente nas operações de apoio à paz, sob a égide das grandes organizações internacionais, a ONU, a OTAN e a EU, em coligações multinacionais e isto, num ambiente de forte contracção dos orçamentos de defesa, de efectivos e do reequipamento. No caso concreto das Forças Armadas, foi abandonado o sistema de conscrição e assumida a sua profissionalização, sendo necessária uma grande capacidade operacional, face ao ambiente conflitual com que irão ser confrontadas e às exigências dos teatros de operações onde serão empregues, grande prontidão e um carácter expedicionário; paralelamente, é-lhes exigida a aptidão para a realização de operações conjuntas e combinadas. Assistimos também a um criterioso escrutínio das operações militares, quer pelo direito internacional, quer pelas organizações internacionais, quer ainda 36

pela presença e acção dos “media” nos teatros de operações e junto das forças militares, tornando acessível à opinião pública a informação em tempo real, reduzindo a realidade do conflito (causas, razões, motivações, interesses das partes, consequências, etc.), às imagens transmitidas. Na conjuntura estratégica actual, em que é ténue a fronteira entre a paz e a guerra, as Forças Armadas têm de evidenciar a sua capacidade para desempenhar a missão constitucional da defesa militar da Pátria e responder igualmente aos desafios da construção da paz, às exigências da abertura à sociedade e às realidades da modernidade e da inovação. Vivemos hoje num mundo marcado por um arco de instabilidade que se estende pelo Norte de África, prolonga-se pelo Médio Oriente e pelo Sudoeste da Ásia, que evidencia também uma tensão entre a cultura ocidental e o islamismo, a par do terrorismo transnacional; nesse ambiente, assistimos igualmente à proliferação de tecnologias que permitem o acesso aos mísseis balísticos e às armas de destruição massiva e temos dúvidas quanto ao potencial comportamento futuro de grandes poderes como a China e a Índia. É necessário antecipar a mudança estratégica, quer da ameaça e do seu carácter qualitativo, quer das capacidades para lhe fazer face, quer ainda dos ambientes operacionais onde será necessário intervir (para além dos tradicionais, também o espaço e o ciberespaço), considerando ainda que já hoje esse ambiente cortou com algumas realidades do passado; com a informação em tempo real aproximámos o fim da distância, quebrámos as limitações da noite, ultrapassámos a camuflagem tradicional e penetrámos a profundidade dos oceanos, entrámos na era da informação electrónica, da imagem radiológica e electrónica, da visão termal e optrónica, da integração multimédia, da interactividade e da conectividade, tudo isto potenciado pelas nanotecnologias. Também o carácter fluido e híbrido das operações militares, em ambiente assimétrico, introduziu uma compressão nos níveis de decisão e execução estratégica, operacional e táctico; aquilo que se passa num “check-point” poderá ser extremamente penalizador para os objectivos da campanha, o que obriga a uma nova preocupação na formação de quadros e tropas, em especial os comandantes dos baixos escalões, a lidar com a ambiguidade e com as situações de incerteza e a fomentar o espírito de iniciativa e de autonomia de decisão, no quadro final das operações. A estratégia militar tem vindo a encontrar soluções operacionais para responder aos novos riscos e ameaças, em particular ao ambiente de insurgência e às características do conflito assimétrico, mas manda a prudência e o bom senso que a organização militar e o reequipamento sejam conduzidos para responder aos cenários conflituais mais prováveis, prevendo contudo os mais perigosos, designadamente o combate convencional simétrico entre unidades políticas. Para um país com a dimensão estratégica de Portugal, capacidades militares existentes que se 37

eliminem, ou eufemísticamente se congelem, dificilmente serão reconstituídas com oportunidade, pois não se improvisam, a doutrina de emprego e os especialistas para os meios e sistemas de armas, que as materializam. A política de reequipamento para as Forças Armadas, tem de ter em conta, naturalmente, a capacidade económica do país, mas também a prioridade das missões a desempenhar por cada um dos Ramos e um esforço harmónico de modernização entre eles. Não é isso que tem acontecido, enquanto se assiste a programas diversificados e de alta tecnologia para a Marinha (submarinos, fragatas, hélis para luta anti-submarina, navio logístico, patrulhões e demais meios navais), e para a Força Aérea (F-16, C-130, C-295, P-3 Orion, hélis EH-101 e demais meios aéreos), o Exército vê cancelados projectos estruturantes dos helicópteros médios NH-90, dos hélis ligeiros, das VTLB 4x4, da Arma Ligeira (a espingarda G-3, está ao serviço desde 1961) e truncados os programas da Pandur 8x8 e dos CC Leopard. Em termos de FND, o Exército tem estado, em permanência, em três TO. A não existência de helicópteros, médios e ligeiros no Exército, constitui uma limitação operacional grave, que não tem paralelo ao nível da OTAN, em países membros com a nossa dimensão estratégica, reduzindo as condições de emprego da Brigada de Reacção Rápida, assim como a carência de VTLB 4x4, implicou que no Afeganistão se actuasse com material emprestado pela Espanha e pelos EUA; quanto à Arma Ligeira é inexplicável a não finalização dos vários concursos lançados, que acabam por ser cancelados, sempre por razões diversas; desta vez, por informação do MDN, por já não serem permitidas as contrapartidas e o próximo concurso ser mais vantajoso, desconhece-se é quando será lançado. ATutela parece desconhecer que o Exército é um Ramo extremamente complexo, em que a capacidade efectiva e a operacionalidade decorrem da modernidade, da eficácia, da coerência, da compatibilidade, da sincronia e das sinergias dos sistemas de armas e tecnologias de informação, que servem o Comando e o Controlo, a Manobra, o Apoio de Fogos, o Apoio de Combate e o Apoio de Serviços; as opções que têm vindo a ser tomadas, até parece que se tem uma visão de grande potência, para a Marinha e Força Aérea e de emprego ainda colonial, para o Exército. As Forças Armadas, em termos da política externa e salvaguarda da liberdade de decisão política nacional, têm de ser capazes de dar resposta aos desafios da globalização, estarem aptas a actuar nos grandes acontecimentos da segurança e da protecção da paz, no quadro da ONU, da OTAN da EU e, eventualmente, da OSCE e da UA e no combate aos novos riscos e ameaças, que anteriormente foram descritos. A existência de uma capacidade militar credível funciona, do ponto de vista político, como um elemento diferenciador, entre os actores internacionais que contam, ou que são dispensáveis. Concretamente, a existência de Forças Armadas consideradas credíveis, capazes de serem parceiros em operações multinacionais, de actuarem em teatros de operações de grande exigência, sem limitações e 38

com reconhecido profissionalismo e competência, são elemento de prestígio, de afirmação e de credibilidade política do actor no contexto internacional, permitindo a este participar, ou não, em determinado acontecimento, por opção política que fundamenta e não por notória incapacidade material do seu instrumento militar para o fazer. As Forças Armadas como atributo do estado soberano, constituem-se como expressão visível da vontade de defesa do actor e da sua determinação e disponibilidade para defender os interesses nacionais, através da coacção militar, são instrumento para apoio à política externa do Estado, evitando vazios estratégicos e situações de facto consumado, permitindo caracterizar a agressão, fazer subir o nível de afrontamento, tornando-a evidente e dando tempo à política, para fazer funcionar os mecanismos político e diplomáticos, nacionais e internacionais, junto de aliados e organizações, capazes de fazerem a sua contenção. É também a única instituição, em termos nacionais, com a disponibilidade e auto sustentação para funcionar, em situações limite, de risco ou de grande exigência, em permanência e por tempo indeterminado. Têm ainda a vocação para a vigilância e protecção da estabilidade, constituindo-se como instrumento privilegiado para a gestão de crises e para a neutralização de situações de perturbação do sistema (seja a nível interno, seja a nível externo) e rege-se por um quadro de valores, em que predomina a disponibilidade, a isenção, a determinação, o patriotismo, a gestão da violência e o espírito de sacrifício, perante situações extremas de risco de vida. Às Forças Armadas e ao Exército em particular, podem ser atribuídas missões de apoio às populações e de extensão da tradicional acção das administrações civis, orientadas para a reorganização das suas condições de vida, no campo social, administrativo, sanitário e também económico; são empenhamentos complexos e prolongados, conduzidos normalmente em regiões de grande carência, por vezes em ambiente de insegurança, precursoras do desenvolvimento e do relacionamento entre comunidades em tensão. Como já se referiu, embora se reconheça que os teatros de operações actuais, sejam fundamentalmente terrestres e urbanos, o antagonista procura igualmente trazer os navios para junto da costa, quer para o exercício da pirataria, quer para atentados, assim como criar condições para que os aviões e helicópteros voem mais perto do terreno, tornando-os mais vulneráveis aos meios antiaéreos de baixa altitude; para além disso, contudo, continua a ser necessário garantir a utilização segura das SLOC (o abastecimento diversificado continua a ser vital, na guerra e na paz) e a superioridade no ar, constitui-se como requisito necessário ao sucesso na terra e no mar. A preponderância da eficácia no emprego de forças terrestres nos vários cenários ou opções militares advém, em grande medida, da sua versatibilidade, sendo perceptível a sua adequabilidade e flexibilidade de emprego, pois permitem um maior leque de opções, para as operações de baixa ou média intensidade, em 39

ambiente conjunto ou combinado, com especial rendimento operacional, no conflito assimétrico, pelo seu factor humano, do que as componentes aérea e naval, com uma índole mais tecnológica. É importante que os decisores políticos tenham presente que, num ambiente de pressão sistémica das alianças e organizações internacionais, quanto ao cometimento dos instrumentos militares nas operações multinacionais de apoio à paz, os efectivos e as unidades a colocar no terreno (“boots on the ground”), não são substituíveis por poder aéreo ou poder de fogo (“air power/fire power). O Exército dispõe hoje de uma força operacional apta para o emprego efectivo em todo o espectro da conflitualidade actual e para fazer face às novas ameaças, constituindo uma opção estruturante, correspondendo a critérios de necessidade, utilidade e proporcionalidade, face à realidade do país e às expectativas dos cenários estratégicos mais prováveis, garantindo a possibilidade de ajustamento a alterações de um cenário de emprego mais provável, para outro, operacionalmente mais exigente. Essa força operacional (FOPE), tem uma estrutura já consolidada, materializando uma possibilidade de opção entre forças mais pesadas, com maior poder de fogo e protecção blindada e forças médias ou ligeiras, estas altamente projectáveis e com grande capacidade de empenhamento em combate, dando corpo a três Brigadas, equipadas com sistemas de armas distintos, permitindo grande flexibilidade de emprego operacional. Assim foram estabelecidos para cada uma das Brigadas, níveis diferenciados de empenhamento operacional, com especial ênfase na OTAN, nas suas propostas de forças e nas NRF e no “Batle Group” da EU: a Brigada de Reacção Rápida com grande prontidão operacional e capacidade de projecção estratégica, garantindo a identidade e capacidades das várias Forças Especiais (Comandos, Paraquedistas e Operações Especiais), constituindo-se como “Initial Entry Force”, em teatros de operações de grande exigência, a par de garantir o núcleo fundamental da Força de reacção Imediata à ordem do CEMGFA; a Brigada de Intervenção constituindo um conjunto coerente de meios e capacidades médias (Pandur), orientadas para o levantamento, comando e enquadramento, de um BG da EU, sempre que Portugal seja Nação Líder desse objectivo de Forças, como aconteceu no segundo semestre de 2011, enquadrando unidades espanholas, francesas e italianas; a Brigada Mecanizada que garante a manutenção da capacidade pesada, com meios mecanizados e blindados, permitindo a geração de um Grupo de Reconhecimento, no âmbito das propostas de forças para a OTAN ou de um Agrupamento Mecanizado, no quadro das NRF. Constituem também elementos da FOPE, as Forças de Apoio Geral que são unidades de apoio de combate e de apoio de serviços, que asseguram capacidades adicionais de Força às Brigadas, assim como apoios específicos em ISTAR, Defesa Biológica e Química e Guerra da Informação; nos arquipélagos da Madeira e 40

dos Açores, estão territorialmente implantadas unidades militares geradoras de Batalhões de Infantaria e Baterias de Antiaérea de baixa altitude, com a missão de assegurar a defesa imediata, o patrulhamento e o controlo de áreas sensíveis daquelas regiões. Com esta estrutura operacional é dada resposta ao nível de ambição expresso no Conceito Estratégico Militar em vigor, permitindo colocar uma Unidade de escalão Batalhão, (dimensão táctica mínima que tem capacidade operacional para assumir a responsabilidade por uma região e tornar visível a presença políticomilitar do país), em simultâneo, em três TO distintos, em operações conduzidas pela ONU, pela OTAN e pela EU, com tem vindo a acontecer. Em alternativa, empregar num só teatro, uma Brigada.

Uma Última Consideração Tem vindo a ser referida a necessidade da articulação da Política de Defesa com a Política Económica – não se poderia estar mais de acordo, tanto mais que repetidamente se tem afirmado, que o planeamento estratégico de defesa é hoje fortemente influenciado pelas consequências da crise financeira, constituindo muitas vezes também o factor determinante na definição dos objectivos estratégicos de defesa e não, os potenciais riscos e ameaças. Deve recordar-se, no entanto, que a economia necessita de segurança para progredir e consolidar-se e que a segurança decorre também de capacidades militares, não apenas para proteger a soberania contra eventuais ameaças, mas também para participar na preservação da paz e estabilidade internacionais, designadamente na prevenção e gestão de crises. Voltando à afirmação inicial, a mesma destaca a particular necessidade de articulação da indústria de defesa (penso que a referência é à nacional), com o sistema científico (julgo que serão as Universidades), bem como a integração das capacidades militares e civis, numa cultura de partilha de recursos (quais?). Este conjunto de intenções carece de uma clarificação, sobretudo se a expectativa daí resultante é a de obter recursos para a tão falada sustentação das Forças Armadas, ou mesmo para a sua modernização e reequipamento ou, eventualmente, privilegiar a capacidade militar dual, atribuindo especial prioridade às missões de interesse público. Com realismo, importa reconhecer que a indústria de defesa nacional é, no mínimo, incipiente, à excepção de nichos de negócio, no domínio das tecnologias de informação (e na maioria das vezes em sub-contratação), que dificilmente podem ser um competidor internacional, num mercado sobredimensionado, excedentário e marcado por uma competição feroz entre a Europa e os EUA, com outros intervenientes, caso da Rússia e da China e outros actores, tidos como “menores”, 41

por exemplo a Alemanha, a França, o Reino Unido e o Brasil; também não será o mercado interno (Forças Armadas e Forças de Segurança Interna), que conseguirá garantir a sua sobrevivência, nem a mesma é capaz de suprir as necessidades em grandes sistemas de armas e grandes equipamentos. Afigura-se mais lógico, mais realista e mais vantajoso, a participação em projectos cooperativos, com uma repartição séria e justa da relação “cost share” e “work share” e não, a tradicional saga das contrapartidas, quer pela transferência de tecnologia, trabalho garantido à indústria nacional, que não exclusivamente a de defesa, participação no mercado internacional e nos desenvolvimentos subsequentes do projecto e, muito importante para as Forças Armadas, o acesso a meios de equipamento e sistemas de armas que, de outra forma, seria incomportável. Tudo isto são razões e argumentos para não se entender a decisão do MDN de colocar em causa o único projecto cooperativo em que Portugal participa, há vários anos, o do Helicóptero NH-90, que já custou ao país cerca de 90 M €, mais os gastos na preparação dos pilotos, dos mecânicos e na adaptação de infra estruturas, cuja saída implica a perda de uma fatia substancial dos 130 M €, em “work share”, atribuídos pelo contracto inicial à indústria nacional, para além das decorrentes penalizações que, em Dezembro de 2011 poderiam chegar a cerca de 250 M €. No custo do projecto para o futuro, que tem vindo a ser salientado pelo MDN, não tem sido explicitado que, nesse valor, está incluído um contracto de manutenção, de cerca de 260 M €, com sobressalentes, para um período de dez anos, após entrarem em funcionamento operacional, as dez aeronaves – situação única, em qualquer contracto de aquisição de meios aéreos realizado até agora, pelo país. Tendo em conta os custos reais e potenciais da saída do projecto, (o que já se pagou e as previsíveis penalizações), continuando o país e o Exército sem as aeronaves, não parece que, designadamente em tempo de crise, esta seja a melhor forma de defender a economia nacional, tanto mais que, perante a divulgação pelo Tribunal de Contas, do acréscimo de custos de projectos, que não do Exército, de 42% passando de 275 M €, para 390 M € e de 50%, passando de 244 M €, para 364 M €, por opções aquisitivas do MDN, se continua a dar justificações no sentido da “bondade” das mesmas. Quanto às transferências de verbas, também mencionadas pelo TC, corresponderam à descapitalização de outros projectos, objectivamente do das “Pandur”, em quase 100 M € e, muito provavelmente, no do NH-90, gerido pela DGAED/MND, tudo isto numa LPM planeada em 2006 que nunca conseguiu realizar a verba inscrita de 290M €, proveniente da alienação de material de guerra, (F-16, Fragatas e helicópteros PUMA) e com sucessivas cativações, que hoje atingem 40%.

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A HISTÓRIA MILITAR EM PORTUGAL

Tenente-General Alexandre de Sousa Pinto

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A HISTÓRIA MILITAR EM PORTUGAL Tenente-General Alexandre de Sousa Pinto

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um livro em que se pretende homenagear um militar distinto que é simultaneamente um ilustre estratega, cujas obras neste campo da ciência são de consulta obrigatória para qualquer interessado nessa área científica e têm por base os seus vastos conhecimentos da História Militar de Portugal e do Mundo tendo, como professor do antigo Instituto de Altos Estudos Militares, publicado, em 1979, para uso dos seus alunos, um interessantíssimo trabalho intitulado Apontamentos de História para Militares. Evolução dos Sistemas de Armas. Apontamentos para a História da Subversão em Portugal e que é membro da Academia das Ciências de Lisboa, pareceu-me que poderia ser interessante nele apresentar um ponto da situação do que se passa no nosso País relativamente à História Militar. É o que procurarei fazer nas linhas que se seguem.

1 – Antecedentes Em todos os tempos a guerra ocupou um lugar fundamental na historiografia, nomeadamente na historiografia ocidental. Não foi, certamente, por puro acaso que até ao século XX a história nos relatava os factos político-militares ocorridos ao longo dos tempos; eram os chefes políticos e os generais os protagonistas dos acontecimentos sendo que, em muitos casos, uns e outros coincidiam na mesma personalidade. Estava-se perante uma história feita de heróis, de acontecimentos políticos e batalhas decisivas que cumpria uma função social e política bem precisa: a da formação de identidades e memórias nacionais1. A I Guerra Mundial com os seus horrores torna a guerra como qualquer coisa odiosa que é preciso esquecer, onda que é seguida pelos estudiosos, nomeadamente nas academias onde, no pós-guerra a partir dos anos trinta, com a escola dos Annales e outras correntes, se conduz a história político-militar até então vigente para abordagens diversificadas que vão da economia ao social ou da demografia ao 1

BARATA e TEIXEIRA, «Introdução Geral», Nova História Militar de Portugal, Vol. 1, p. 11.

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cultural, preferindo o colectivo e a sociedade ao individual, deixando definitivamente a exclusividade da função patriótica e adquirindo um discurso científico. A história militar, tratada em círculos fechados essencialmente por militares reformados e amadores no melhor sentido do termo, mantém as características anteriores, perde interesse para os académicos e para os estudiosos e entra em franca crise, da qual só começa a emergir na década de setenta.

2 – Evolução As duas guerras mundiais, que mobilizaram não só exércitos mas toda a sociedade, tornam impossível uma história que ignore o contexto, exigindo uma nova abordagem científica que percorra o caminho trilhado pelos outros campos historiográficos, interdisciplinar, alargando o seu âmbito da estratégia e da táctica para a logística, a organização, a saúde ou a experiência do combate e do combatente. Segundo o Professor António Pedro Vicente a «nova história» abarca a estratégia, o estudo dos seres humanos que compõem os exércitos, a análise das consequências das guerras, as relações entre os civis e os militares e o posicionamento dos exércitos nos espaços nacionais e, especificando mais concretamente, inclui ainda a análise dos objectos (artefactos), a uniformologia, a simbiótica ou a vexilogia2. É esta nova visão da história militar que, em 1969, leva académicos e militares em França à criação de uma comissão de história militar rapidamente transformada em comissão internacional com sete países fundadores, na qual estão hoje federadas quarenta e quatro comissões nacionais, entre as quais a Comissão Portuguesa de História Militar (CPHM), fundada em 1989 pela mão do General Manuel Themudo Barata que, como militar e académico, detinha o saber de experiência feito e o conhecimento científico que lhe permitiram ser a ponte entre estes dois mundos. Em Portugal, para além da CPHM, surgiu também, no âmbito da Marinha, a Academia de Marinha, cujos trabalhos seguem os caminhos anteriormente vistos. O mesmo se diga para o Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM), as Academias Militares do Exército (AM) e da Força Aérea (AFA) ou a Escola Naval (EN), a Direcção de História e Cultura Militar do Exército (DHCM), a Comissão Cultural da Marinha (CCM) ou a Comissão Histórico-Cultural da Força Aérea (CHCFA). Também algumas das diferentes Faculdades de Letras ou de Ciências Sociais e Humanas das Universidades públicas ou privadas criaram cursos e mestrados em História Militar. É hoje em Portugal indiscutível a interligação existente entre académicos e militares, com benefícios evidentes para ambos e, principalmente, para a historiografia militar portuguesa. Há, nos dias de hoje, em Portugal um razoável número de militares com licenciaturas, mestrados e doutoramentos em História, há um grande número de 2

VICENTE, «História Militar, História de Portugal, Sua Abordagem nas Universidades», Actas do II Colóquio da Comissão Portuguesa de História Militar, Lisboa, 1991.

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académicos interessados nestes temas, e um número sucessivamente crescente de teses académicas em história militar, movimento seguido pelas editoras que têm vindo, também elas, a dedicar-lhe um incremento de publicações. Esta situação é reconhecida pelas velhas Academias que, todas elas – Academia Portuguesa da História, Academia das Ciências de Lisboa e Sociedade de Geografia de Lisboa – elegeram nos últimos anos para membros efectivos e correspondentes um número relativamente elevado de militares reconhecidos por elas pelos seus conhecimentos académicos nesta área do saber. Paralelamente, a CPHM, a Academia de Marinha, o IESM e os organismos dos três Ramos referidos acima (AM, EN, AFA, DHCM, CCM e CHCFA) incluem académicos entre os seus membros e detêm protocolos com diferentes Universidades.

3 – Um “caso de estudo” Não me sendo possível proceder no curto prazo de tempo disponível a uma pesquisa sistemática a todas as instituições e organismos referidos, irei apresentar o caso da CPHM, que presumo não ser muito diferente do que com os outros se passará, para, extrapolando, por ele se poder fazer um ponto da situação da História Militar em Portugal no início da segunda década do século XXI. É missão da CPHM (DL 59/98 de 17 de Março) promover, estimular e coordenar a investigação histórico-militar no âmbito da defesa nacional e divulgar os respectivos resultados; promover o conhecimento da história militar portuguesa e apoiar a celebração de eventos relacionados com a identidade e a independência nacionais; realizar encontros, seminários e conferências de carácter históricomilitar; desenvolver relações com as universidades no sentido de estimular o ensino da história militar; assegurar a representação internacional na sua área de intervenção, nomeadamente a representação e participação de Portugal na Comissão Internacional de História Militar; publicar estudos, obras bibliográficas e outros documentos relacionados com as suas funções; e, finalmente, organizar, manter e disponibilizar publicamente bases de dados relativas a assuntos de história militar. Para o cumprimento desta vasta missão dispõe a CPHM de um presidente, um secretário-geral e um conselho científico, tendo como serviços um centro de documentação e informação e um secretariado. O conselho científico é constituído por 40 membros efectivos e 20 correspondentes, coopetados pelos membros efectivos em cada momento existentes entre investigadores portugueses de reconhecido mérito científico no âmbito da história militar. Para promover, estimular e coordenar a investigação histórico-militar no âmbito da defesa nacional e divulgar os respectivos resultados, a CPHM tem organizado anualmente, desde a sua fundação, colóquios de história militar cujos temas são definidos em conselho científico e para os quais convida especialistas de renome nacionais ou estrangeiros e aceita inscrições de jovens investigadores em princípio de 47

carreira, publicando depois as respectivas actas. No corrente ano estamos a organizar o XXI Colóquio, estando já publicados 28 volumes com mais de uma dezena de milhar de páginas que encerram 682 conferências de investigadores portugueses e 60 de estrangeiros cobrindo todas as épocas e leque de áreas temáticas. Nos últimos cinco anos tem vindo também a organizar-se umas jornadas de memória militar que pretendem documentar os feitos de organismos ou personalidades militares em prol do desenvolvimento do País fora do âmbito da sua actividade própria e específica e das quais também já se publicaram as respectivas actas que contém os trabalhos apresentados por 42 conferencistas nacionais. No sentido de estimular a investigação neste âmbito foi criado o Prémio de Defesa Nacional de História Militar que tem vindo a ser atribuído desde 1990 havendo já 31 vencedores (alguns ex-aequo) de entre largas dezenas de concorrentes com obras de grande valia. Para promover o conhecimento da história militar portuguesa e apoiar a celebração de eventos relacionados com a identidade e a independência nacionais, tem, paralelamente, a CPHM vindo a patrocinar a publicação de obras com interesse neste campo científico editadas por diversas editoras, do Norte ao Sul do País, através da compra de um número variável de exemplares mas suficientemente atractivo para garantir o interesse comercial da edição, exemplares esses que, posteriormente, a CPHM distribui pelas bibliotecas militares, das Academias, das Faculdades de Letras ou de Ciências Sociais e Humanas das Universidades, das Autarquias e onde os interessados ou o grande público as pode encontrar e consultar; tais patrocínios são responsáveis pela publicação de 122 obras que cobrem, também elas, todas as épocas e temas da «nova história militar» tendo havido iniciativas e/ou o apoio às de outros no sentido de comemorar acontecimentos de importância na história militar de Portugal sendo de realçar a sessão comemorativa da Conquista de Madrid na Guerra de Sucessão de Espanha pelo Marquês das Minas, as comemorações das batalhas de Aljubarrota ou das da Guerra da Aclamação, ou as muitas actividades integradas no Bicentenário da Guerra Peninsular, estando em preparação as que comemorarão o centenário da I Guerra Mundial. Quanto à realização de encontros, seminários e conferências de carácter histórico-militar, de iniciativa própria ou participando nos de iniciativa alheia, tem sido uma constante ao longo dos anos quer no País quer no estrangeiro. Estas iniciativas têm contribuído fortemente para o prestígio de que a CPHM hoje desfruta aquém e além fronteiras e como delas são, normalmente, editadas actas também estes trabalhos são susceptíveis de consulta pelo público interessado. No desenvolvimento das relações com as universidades pode dizer-se que a CPHM dispõe hoje em dia de protocolos de cooperação com muitas delas, nomeadamente com a Universidade de Lisboa e a Universidade Nova de Lisboa, com a Universidade de Coimbra, a Universidade do Porto, a Universidade de Évora ou a Universidade do Minho. De todas estas universidades e de outras, públicas e privadas, há ilustres mestres sentados no nosso conselho científico, daqui resultando 48

actividades conjuntas do maior interesse, a nossa participação em cursos de pósgraduação ou de mestrado organizados pelas diferentes universidades ou organizados em parceria e, como consequência lógica, um grande número de interessantes teses académicas que ultimamente têm surgido sobre temas de história militar. Para assegurar a representação internacional na nossa área de intervenção temos vindo a participar em todos os congressos da Comissão Internacional de História Militar que, desde 1989, têm passado por Espanha, Suíça, Itália, Turquia, Polónia, Canadá, Áustria, Bélgica, Suécia, Grécia, Estados Unidos da América, Roménia, Marrocos, Alemanha, África do Sul, Holanda, Brasil e Bulgária, procurando neles apresentar comunicações de reconhecidos especialistas portuguesas no respectivo tema, membros do nosso conselho científico a maioria das vezes, o que tem sido reconhecido pelos nossos pares internacionais através dos convites que nos são endereçados para participarmos na própria Comissão Internacional (o Gen Themudo Barata foi vice-presidente e temos portugueses em todos os Comités – dos Arquivos, Bibliográfico e de Educação – cujos trabalhos são sempre apreciados e elogiados). A CPHM foi convidada a organizar os XXIV Congresso (em Lisboa, em 1998, A Guerra e o Encontro de Civilizações a Partir do Século XVI) e o XXXV (no Porto, em 2009, A Guerra no Tempo de Napoleão), que constituíram um autêntico sucesso, com a presença de 148 comunicantes (120 estrangeiros e 28 portugueses) e cujas actas, com respectivamente 830 e 1365 páginas, editadas pela CPHM, são de consulta obrigatória nos meios científicos internacionais pelo seu interesse e qualidade. Finalmente, na área da organização, manutenção e disponibilização de bases de dados podemos referir o incremento ultimamente dado ao nosso Centro de Documentação e Informação que, mercê das nossas publicações e patrocínios, de doações de autores, editores e amigos ou de heranças, como é o caso do Senhor Coronel Nuno Valdez dos Santos que nos legou a sua biblioteca temática de história militar, tendo começado do zero, dispomos já de uma biblioteca com alguns milhares de livros e documentos relativos a esta área científica que obviamente está ao dispor de quem a quiser consultar. Em resumo diremos que ao longo destes anos editámos 42 obras e patrocinamos 122. Participámos em 21 congressos da Comissão Internacional, tendo organizado dois deles, e em vários organizados por Comissões Nacionais para os quais fomos convidados. Organizámos e/ou participámos em todos os seminários, colóquios e congressos, nacionais e estrangeiros, para que fomos convidados num número da ordem das dezenas em cada ano. Criámos uma biblioteca especializada e de qualidade acessível a todos quantos nos procuram. Podemos, por isto, referir a terminar, sem falsa modéstia, que o trabalho desenvolvido contribuiu decisivamente para um panorama completamente diferente do existente há vinte anos e, ainda, que o ponto de situação actual não nos envergonha relativamente a qualquer outro país dos considerados mais avançados nesta área científica.

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ANEXOS A) COLÓQUIOS DA CPHM



Nacionalidade Português Estrangeiro 18 1 41 1 24 2

Colóquio I II III IV

24

2

V

25

2

VI VII VIII

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IX X

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XI

20

4

XII

24

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XIII XIV

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2 6

XV

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50 78 43 44 60 6 682

3 20

- Pres Honra CIHM - Pres CIHM - VPres CIHM - França - VPres CIHM - Italia - Pres Com Suíça - Itália - Se Geral CIHM - Suíça - Pres Com Romenia - Romenia - Pers Com Polónia - Dep Ens Ex Brasil (1) - Brasil (3) - Vogal CIHM - Pres Com França - Espanha - França - Tunisia (2) - Marrocos (2) França - Vogal CIHM (2) - Pres Com Suiça - VPres Com Marrocos - Marrocos (2) - Pres Com Brasil - Brasil OHSJDeus (a)

1

Espanha

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B) CONGRESSOS DA CIHM ORGANIZADOS PELA CPHM

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   D) Participação da CPHM em outros Congressos Internacionais 



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E) PUBLICAÇÕES

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F) RESUMO

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Portugueses 682 28 42 44 

Jornadas Participação em Congressos Internacionais  ToTAIS    

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O NOVO AMBIENTE ESTRATÉGICO: UMA REFLEXÃO SOBRE AS MUDANÇAS NA DISTRIBUIÇÃO DO PODER INTERNACIONAL

Major-General Rodrigues Viana

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O NOVO AMBIENTE ESTRATÉGICO: UMA REFLEXÃO SOBRE AS MUDANÇAS NA DISTRIBUIÇÃO DO PODER INTERNACIONAL Major-General Rodrigues Viana

A

identificação dos principais elementos com capacidade para determinar a evolução do sistema internacional, ou seja o ambiente estratégico que o rodeia, é fundamental à compreensão das mudanças em curso nas dinâmicas internacionais e, consequentemente, ao processo de decisão que visa a adaptação das políticas nacionais ao atual ambiente estratégico. O presente ensaio pretende refletir sobre as novas dinâmicas do sistema internacional, argumentando que são perceptíveis mudanças na distribuição do Poder, quer ao nível das suas diversas dimensões quer dos atores, que potenciam a necessidade de ordenamento do sistema multilateral, bem como um reforço do conceito de segurança cooperativa. Neste sentido, esta reflexão centrar-se-á em quatro questões interrelacionadas: uma primeira, sobre a mudança na estrutura de distribuição do Poder Internacional; uma segunda, sobre o impacto geopolítico dessa mudança nalgumas regiões do mundo; uma terceira, sobre as principais tendências de evolução com implicações na estrutura do sistema internacional; e uma última sobre o imperativo do multilateralismo e da segurança cooperativa. Num contexto internacional em que predomina a incerteza, falar sobre a evolução do sistema internacional e o novo ambiente estratégico não constitui tarefa fácil. “A certeza da incerteza, não tem precedentes”1. Por isso, muitos analistas optam por sustentar o seu método de estudo na compreensão dos principais fatores de mudança e na identificação das principais ‘linhas de força’ que caracterizam a evolução e estruturação do sistema internacional, uma metodologia partilhada na presente reflexão.

1

Expressão atribuída a um dos participantes na 39ª Conferência de Comandantes dos Colégios de Defesa NATO, realizada em maio de 2010, em Istambul.

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As mudanças na distribuição do poder internacional Ao revisitar um texto que escrevi há 10 anos, no capítulo intitulado “Reflexões sobre o Sistema Internacional Contemporâneo2, pude constatar que identificava alguns elementos caracterizadores da realidade internacional, à época, mais ou menos consensuais: i) a mundialização do sistema, decorrente da globalização dos fenómenos políticos, da economia, dos mercados e da informação, a par da “globalização das ameaças”; ii) o elevado grau de interdependência de todos os tipos de atores no sistema internacional; iii) a heterogeneidade e complexidade do sistema com grandes disparidades de bem-estar e de justiça; iv) a crescente vulnerabilidade dos Estados a intrusões externas incluindo terrorismo transnacional, o crime organizado, as crises económicas induzidas e a especulação financeira por grupos privados; v) o esbatimento das ideologias que alimentaram o conflito central no período da Guerra Fria; vi) o ressurgimento dos nacionalismos e fundamentalismos religiosos; vii) a crescente importância dos atores não-estatais; viii) a relevância dos meios de comunicação social na vida moderna enquanto vetor de poder; ix) a acrescida importância da dimensão económica do Poder, configurando uma ‘estrategização’ da economia com propensão para alterar o quadro conceptual; x) a emergência de novos polos de poder que configura uma tendência para a descentralização e regionalização do poder internacional; xi) a força crescente das tensões entre as dinâmicas de integração e de fragmentação. Do ponto de vista estratégico, destacava, também, alguns ingredientes marcantes: i) a consolidação do estatuto dos Estados Unidos da América (EUA) como única superpotência com capacidade para projetar poder à escala global, reunindo os quatro requisitos decisivos que caracterizam um poder global (militar; económico; tecnológico; cultural); ii) a forma como a China se estava a aproximar do estatuto de superpotência, com uma evolução significativa ao nível dos fatores de poder económico e militar; iii) a globalização do cenário estratégico decorrente de um mundo globalizado; iv) a alteração da natureza dos conflitos – ‘A Era dos Conflitos Assimétricos’ - com acentuadas assimetrias no plano dos objetivos, dos meios e dos métodos utilizados; v) o fenómeno de desestruturação dos Estados (“Estados Frágeis” ou Estados-problema); vi) a alteração da tipologia das crises internacionais (crises internas que se internacionalizam) e a consequente tendência interventora da comunidade internacional; vii) e, finalmente, o dado estratégico de maior relevância à época, a alteração qualitativa da natureza da ameaça, onde avulta a nova dimensão do terrorismo transnacional pelo seu caráter de ameaça global. Já no tocante à estrutura e distribuição do Poder no sistema internacional (discussão sobre a polarização do futuro sistema internacional) mandava a prudência 2

VIANA, Vítor Rodrigues, Segurança Coletiva: a ONU e as Operações de Apoio à Paz. Edições Cosmos, Instituto da Defesa Nacional, 2002.

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não arriscar a sua caracterização definitiva. Todavia, considerava, na altura, que a definição dos vários polos do poder mundial e a forma como se manifestariam no futuro os respetivos poderes, dependeria da resposta às seguintes questões: i) onde terminaria o recuo estratégico da Rússia; ii) como se orientariam as prioridades dos EUA; iii) até onde iria o Japão; iv) como evoluiria a China, a grande incógnita do séc. XXI; v) que Europa iriamos ter. O revisitar destes tópicos, passada uma década, evidencia a permanência de muitas linhas de continuidade no sistema internacional. E os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, contrariamente ao anunciado por alguns analistas, não conduziram exatamente a um novo modelo de ordenamento internacional. Porém, este exercício retrospetivo, também permite constatar que vivemos numa época de mudança na configuração da relação de forças que antecipa alterações na estrutura do Poder Internacional. A mudança que está em curso nas relações de forças entre os Estados já originou consequências em termos de distribuição do poder mundial, fazendo emergir novos polos. Mas a evolução mais notória prende-se com a transformação operada nos fundamentos económicos do Poder, isto é, com a renovada importância do fator económico na distribuição do poder mundial. É verdade que o Poder assenta numa diversidade de bases e no equilíbrio e interdependência entre as suas várias dimensões – política, militar, económica, tecnológica e cultural. Mas também é certo, como sublinhou Raymond Aron, que os fatores do Poder variam consoante a época e não são imutáveis.3 Atualmente, o Poder tem um carácter mais difuso e a globalização da economia veio dar uma crescente importância ao fator económico do Poder. Por outro lado, é sabido que o fortalecimento do potencial económico tem importantes repercussões nos outros elementos do poder, como o militar, o tecnológico e mesmo o político. De facto, a atual crise económica e financeira é essencialmente Ocidental, não estando a atingir, na mesma dimensão, o forte crescimento de muito países do Sul e do Oriente. Está a funcionar como um importante acelerador de transferência de riqueza e a acentuar ainda mais a transição do Poder do seu centro tradicional nos últimos séculos – o Ocidente – para Sul e Oriente. Se retomarmos as questões antes levantadas, quanto à distribuição do Poder no sistema internacional, poderemos ensaiar as seguintes respostas: a Rússia reemergiu como potência que afirma a sua esfera de influência, mantendo a paridade nuclear estratégica com os Estados Unidos; os EUA mantêm-se ainda como a maior potência mundial, mas parecem estar a entrar num período de retração na cena internacional e de primado das questões económicas internas (embora existam limites para esse retraimento, já que os interesses dos Estados Unidos continuam a ser globais); o Japão “estagnou”; a China consolidou o 3

ARON, Raymond, “Paz e Guerra entre as Nações”, 2ª edição, editora Universidade de Brasília, Brasília, 1986.

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seu estatuto de grande potência em ascensão (uma das cinco “Ilhas do Poder Global”, na classificação de Loureiro dos Santos4); a Europa, apesar do seu potencial para se tornar muito mais importante como polo de poder mundial (se se tornar politicamente coesa), enfrenta uma grave crise financeira que afetou fortemente o projeto de integração europeia e a solidariedade e solidez do seu núcleo, a Zona Euro. Se considerarmos, adicionalmente, a emergência de potências de dimensão continental como a Índia e o Brasil, e de outros poderes regionais crescentes, tudo sugere uma ordem internacional que tende a evoluir e a estruturar-se de forma multipolar, com “5 grandes potências no seu núcleo duro: EUA, China, Índia, Rússia e Brasil”5. O impacto geopolítico da mudança Uma segunda reflexão prende-se com uma conhecida tendência nos estudos de segurança que adverte para os riscos acrescidos de conflito nestes períodos de transição de poder hegemónico e de grandes mudanças nos equilíbrios de poder regionais e globais. Isto não significa, necessariamente, conflito armado direto porque a ocorrência de uma grande guerra entre grandes potências tornou-se muito pouco provável face aos efeitos dissuasores das armas nucleares. Mas uma transição deste tipo comporta inevitavelmente incertezas e tensões e torna também mais arriscada a previsão e a tomada de decisões. Esta reflexão incentiva a uma ponderação sobre o impacto geopolítico das mudanças a que aludimos, nas diferentes regiões do globo. Por razões de economia de texto abordarei, brevemente, apenas três regiões: a Europa; o Norte de África e o Médio Oriente; e a Ásia. A Europa Quanto à primeira, centrar-me-ei na União Europeia (UE). Em termos de PIB, a União Europeia continua a ser, no seu conjunto, a região mais rica do globo. O seu modelo social tem permitido alcançar elevados índices em termos de desenvolvimento humano e condições únicas de bem-estar e de qualidade de vida das populações. Porém, a desaceleração económica, já manifesta antes de 2008, bem como as repercussões da crise financeira internacional, agudizaram 4

5

SANTOS, José Alberto Loureiro dos, “As Guerras Que Já Aí Estão e as Que nos Esperam se os Políticos Não Mudarem. Reflexões sobre Estratégia”, Vol. VI, Editora Europa-América, Lisboa, 2009. Idem.

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divisões internas e evidenciaram quebras de solidariedade e problemas estruturais que poderão condicionar negativamente a estabilidade regional. Tudo aponta para que a grave crise – económica, social e política – com que a UE se confronta a inibirá de desempenhar um papel global na cena internacional nos próximos anos. De facto, acentuou-se a fratura entre as ‘várias europas’ pela forma como a Alemanha se comportou face à crise financeira grega, o que gerou uma profunda desconfiança, especialmente dos Estados mais pequenos, quanto à solidariedade na União Europeia. O impacto da crise económica e financeira internacional no desenvolvimento das políticas europeias vem potenciando medidas de contenção e de reajustamento e a política de segurança e defesa não será, certamente, exceção. Por isso, a capacidade da União Europeia projetar poder globalmente, e de garantir a segurança na sua vizinhança próxima, poderá ser fortemente condicionada se ocorrerem reduções excessivas nos orçamentos para a segurança e defesa. Mas se a Europa quer manter-se próspera, tem também de ser segura. Os “Fins” últimos a alcançar são um espaço seguro e um espaço desenvolvido. E aqui, os países periféricos passam a ter uma importância central. Isto significa que – aproveitando a crise para fazer ajustamentos – não devem ser descurados os desafios de segurança e que os orçamentos da defesa devem ser encarados na Europa, não como um luxo, mas como uma evidente necessidade. A reorientação das prioridades estratégicas dos EUA para a Ásia-Pacífico e a retração do seu dispositivo de forças militares na Europa (consignada na nova Diretiva Estratégica para a Defesa, publicada em janeiro de 20126) reforçam esta evidência, por força do seu inevitável impacto na NATO e consequente necessidade da Europa assumir um acrescido empenhamento na defesa europeia e na segurança da sua vizinhança próxima. Na atual conjuntura internacional a prioridade da Europa, em termos de relacionamento, deve dirigir-se para três países, uma região e um continente. Os três países a que nos reportamos são os Estados Unidos, a Rússia e a Turquia. Os EUA, pela necessidade de reforçar a agenda multilateral, fortalecer o vínculo transatlântico e assegurar a indispensável convergência estratégica, numa conjuntura em que as prioridades dos Estados Unidos se orientam para a região da Ásia-Pacífico. A Rússia, face ao objetivo estratégico de desenvolver uma parceria construtiva no domínio da segurança energética e de outras dimensões tradicionais de segurança para fazer face a ameaças comuns. E a Turquia, pela sua importância para a segurança europeia e elevado valor geoestratégico. 6

“Sustaining U.S. Global Leadership: Priorities for 21st Century Defense”, Department of Defense, January 2012 (disponível em http://graphics8.nytimes.com/packages/pdf/us/20120106-PENTAGON.pdf).

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Quanto à região, referimo-nos ao Mediterrâneo ou, mais concretamente, à região do Norte de África e Médio Oriente. Trata-se de uma região crítica para a segurança da Europa que reclama uma ação estratégica integrada por parte da União Europeia. Relativamente ao continente, falamos de África. Porque se trata de um continente em acelerada mutação, com enormes recursos naturais e energéticos7 - que apontam para um forte potencial de crescimento económico8 - mas também pela persistência de dilemas de segurança que potenciam a gestação de ameaças à segurança internacional9. A crise económica e financeira deixará marcas profundas. Por isso, sendo certo que os esforços necessários para superar a crise do euro constituem o principal desafio atual, o peso da conjuntura não pode continuar a afastar a União Europeia do aprofundamento do seu projeto de integração nem da ponderação sobre o papel que a Europa pode e deve ter no mundo. E é também necessário, desde já, começar a preparar o período pós-crise. Como referiu Samuel Huntington, a União Europeia, desde que se torne politicamente coesa, reúne todos os atributos para assegurar a sua projeção internacional e tornar-se um importante polo de poder mundial: população, recursos, riqueza económica, tecnologia e força militar potencial e efetiva.10 É necessário, sobretudo, que se transforme numa entidade politicamente coerente, solidária, com uma política externa e de segurança e defesa ativa e devidamente coordenada. São múltiplos os cenários que se podem antecipar para o pós-crise. Como muitas são as incógnitas. A crise abriu clivagens profundas entre o centro e a periferia que urge ultrapassar. O futuro do processo de integração europeia dependerá, em larga medida: da forma como a União Europeia irá superar a crise da zona euro (que terá de ser inclusiva e solidária) e reverter a perda de adesão dos cidadãos; da capacidade que demonstrar para restaurar a sua credibilidade perante os atores internacionais de relevo; e dos equilíbrios internos de poder que irão emergir entre a Alemanha, a França e o Reino Unido após o fim da crise.

Por isso o continente africano também é cada vez mais um palco de disputa estratégica pelos recursos. Em 2010, África registou um sólido crescimento económico – média de 4,7% depois de 2,3% em 2009, mais significativo na África subsariana do que no Norte - e uma melhoria nos indicadores de desenvolvimento social, particularmente nas áreas da saúde e da educação. 9 De facto, a existência de Estados frágeis ou em colapso tem implicações em termos de segurança, com expressão visível nos fenómenos do terrorismo e da pirataria, nas ramificações regionais do narcotráfico e na projeção da criminalidade organizada, associada aos vários tipos de tráficos transnacionais. 10 HUNTINGTON, Samuel P., “The Clash of Civilizations?”. In Revista Foreign Affairs, New York, Summer volume 72, n.º 3, 1993. 7 8

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O Norte de África e o Médio Oriente No que concerne às mudanças geopolíticas, à escala global, é incontornável referir o Norte de África e Médio Oriente. Esta é, desde logo, uma região fulcral para a segurança da Europa, em razão da sua proximidade geográfica, do seu potencial energético, e dos riscos associados às vulnerabilidades de natureza política, económica e social que têm moldado a sua evolução. A sucessão de situações de ruptura e transição política no Mundo Árabe, que no médio prazo poderão constituir possíveis fontes de estabilidade democrática, podem gerar, no curto prazo, fraturas nos equilíbrios estratégicos e tensões geopolíticas desestabilizadoras da segurança regional e internacional. Se olharmos para esta região, do ponto de vista político-estratégico, vemos que as últimas cinco décadas foram marcadas por uma permanente instabilidade que podemos caraterizar nas seguintes linhas de continuidade: debilidades estruturais dos Estados, designadamente ao nível da sua legitimidade política; imprevisibilidade dos sistemas de alianças; disputas pela hegemonia regional; a persistência do conflito israelo-árabe; a importância do fator energético. Os países desta região, mais pobres em recursos, foram fortemente afetados pela crise atual, agudizando tensões sociais e políticas. Vive-se um período de instabilidade cuja extensão geográfica, e impacto ao nível interno e externo, é difícil de prever. No entanto, ao contrário do período revolucionário das décadas de 1950 e 1960, o foco dos protestos atuais das populações é muito mais motivado por aspirações centradas na prosperidade económica e nas liberdades políticas, do que em slogans anti - Ocidentais. Ainda não sabemos para onde caminham as “primaveras árabes”, mas não restam dúvidas que constituem um dado novo na equação estratégica regional e internacional. Já houve mesmo quem afirmasse que as suas consequências estratégicas podem vir a rivalizar com a queda do muro de Berlim e com o 11 de setembro. Para já, os históricos acontecimentos em curso no Mundo Árabe revelaram que poderemos estar a assistir ao fim de um ciclo de um conjunto de regimes ditatoriais no Norte de África e mesmo no Médio Oriente. Trata-se de uma mudança gerada por movimentos portadores dos valores dos direitos humanos e das liberdades, muito motivados por sentimentos de frustração de novas gerações ambiciosas, e nalguns casos qualificadas, em relação aos resultados económicos e sociais desses antigos regimes. Os processos de transição política que se verificam na região constituem oportunidades para a expansão da democracia e dos seus valores neste espaço. Mas também não se podem ignorar os riscos normalmente associados a estes processos de transição que podem gerar instabilidade e degenerar em novas divisões políticas e territoriais. 63

Persistem os riscos de proliferação nuclear, bem como algumas tendências para o extremismo. Os conflitos existentes e a porosidade das fronteiras potenciam situações de vazio de poder e a expansão da insegurança para espaços contíguos como o Sahel - onde a instabilidade política, económica e social facilita a presença e ação da al Qaeda, para além de criar condições propícias ao desenvolvimento de todo o tipo de tráficos. Qualquer análise sobre esta região deverá ter em conta quatro ingredientes políticos fundamentais: a evolução dos processos de transição política; o Processo de Paz no Médio Oriente; a possibilidade de um Irão “nuclear” e suas consequências para o regime de não-proliferação; e o risco de expansão do fundamentalismo religioso. Os riscos transnacionais são sobejamente conhecidos e é do interesse do Ocidente promover um forte desenvolvimento económico e sistemas pluralistas fundados em normas constitucionais robustas, capazes de evitar o risco de surgimento de novos autoritarismos. As transições políticas não poderão ter sucesso sem um forte apoio económico. Sem mais emprego e justiça social não será possível garantir processos de transição sustentáveis. Para isso, é necessário desenvolver uma visão estratégica integrada para a região, fundada: na promoção da Paz e da segurança cooperativa; numa abordagem multilateral privilegiando o diálogo com a Liga Árabe, a União Africana, o Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico e a Organização da Conferência Islâmica; nos princípios partilhados do relacionamento político e democrático; no desenvolvimento económico e ulterior integração nos mercados; na tolerância religiosa e no diálogo intercultural. Em suma, se não houver uma ação estratégica integrada e coerente para a região, o risco de as revoltas degenerarem em tensões geopolíticas graves e rupturas nos equilíbrios estratégicos é significativo. A prossecução de uma política de cooperação e desenvolvimento assertiva nos planos bilateral e multilateral é, por isso, determinante para o futuro da região. A Ásia Finalmente a Ásia. Trata-se do maior dos continentes e uma região em crescimento económico acelerado. A afirmação do potencial económico da Índia e da China alterou a balança económica internacional e a rápida ascensão destas grandes potências tem suscitado receios não só no Ocidente, mas também no resto da Ásia. A China é um “país continente” e um gigante populacional (cerca de 1.320 milhões de habitantes). É uma potência em acelerado crescimento económico. Tem uma diáspora muito dinâmica em toda a região da Ásia-Pacífico que alguns 64

observadores compararam a uma “comunidade económica da Grande China” (ou a “cortina de bamboo”). Os chineses emigrantes canalizam as exportações chinesas e investem na China. Este colosso asiático investe fortemente no estrangeiro, em troca de recursos minerais e energéticos particularmente na Ásia Central, em África e na América do Sul. Após a eclosão da crise económica e financeira internacional tem apoiado e adquirido títulos de dívida dos Estados mais afetados pela crise financeira. A grande incógnita é saber se esta tendência de forte crescimento económico irá continuar, e por quanto tempo, face ao impacto nas suas exportações da crise financeira internacional. No domínio militar a China tornou-se o segundo país do mundo com mais gastos na defesa, a seguir aos Estados Unidos da América, e tem vindo a aumentar o seu poder naval e a investir num ambicioso programa espacial. É também uma potência nuclear de expressão média. Tem como um dos seus principais objetivos estratégicos garantir o abastecimento de combustíveis fósseis e outras matériasprimas que a continuação do seu crescimento económico acelerado exige. Outro objetivo permanente é o controlo do mar do Sul da China, por onde transitam os petroleiros provenientes do Golfo Pérsico, bem como das ilhas do mar da China, ricas em recursos estratégicos e combustíveis fósseis. De todos os atores globais, a China é o que mais se aproxima do estatuto de superpotência e parece ser aquele que tem mais hipóteses de vir a desafiar a liderança dos EUA. A Índia é também um país de dimensão continental, com uma população de mais de 1.100 milhões de habitantes e uma economia em acelerada expansão. Dispõe de um potencial militar importante e tem vindo a cuidar dos seus instrumentos de defesa, incluindo no domínio espacial. A preocupação com as situações internas de insurreição e com o vizinho Paquistão, a par do objetivo de controlo do oceano Índico, não lhe permitem descurar a dimensão militar do seu potencial estratégico. Trata-se, tal como a China, de uma potência nuclear com um arsenal de capacidades médias. A ascensão paralela destas duas grandes potências acentuou os dilemas de segurança regionais, num continente onde a competição estratégica é potenciada pela persistência de disputas territoriais, de movimentos secessionistas e a existência de Estados frágeis. Persistem focos de tensão críticos no Afeganistão e no Paquistão, em Caxemira, nos mares do Sul da China e na Coreia do Norte e Japão. As encruzilhadas estratégicas que constituem o Afeganistão e o Paquistão permanecem como uma questão crucial para a segurança internacional e o maior desafio para a Aliança Atlântica, por representarem o núcleo central do terrorismo global. A estabilização destes dois países é essencial para a segurança dos estados membros da OTAN e o interesse comum de combate ao terrorismo transnacional também faz crer que não seja do interesse da China e da Índia o prolongamento dos conflitos no Afeganistão e no Paquistão. 65

Em síntese, a grande fluidez das dinâmicas político-económicas e de segurança do continente asiático continuarão a influenciar direta e indiretamente a prosperidade e a segurança do Ocidente.

As grandes tendências Feita esta reflexão sobre os fatores de mudança na distribuição do Poder internacional e sobre o seu impacto nalgumas regiões do mundo, que tendências podemos então antecipar com influência na evolução do sistema internacional? O aumento da conflitualidade e a multiplicação de crises estratégicas indiciam transformações substanciais no sistema internacional e no ambiente de segurança dos Estados. Confirmando muitas das tendências já observáveis após o final da Guerra Fria, a primeira década do novo milénio revelou acontecimentos estruturantes no funcionamento do sistema internacional. A evolução do processo de globalização resulta, por um lado, em oportunidades e desenvolvimentos positivos face ao potencial de incremento das relações entre diferentes regiões do mundo, porém, resulta também numa mais fácil difusão de ameaças e riscos, cada vez mais de natureza transnacional. Desde logo, a projeção de redes terroristas e do crime organizado, a proliferação de armas de destruição maciça, o fenómeno de desestruturação dos Estados e o potencial devastador dos ataques cibernéticos. Os efeitos não regulados da globalização resultaram, entre outros, na maior crise financeira mundial das últimas décadas, com origem nos EUA e particular incidência na Europa. Uma crise que veio tornar um cenário estratégico cada vez mais complexo e difícil. Assiste-se, por outro lado, a uma transição do poder a nível internacional, através da ascensão de novas potências, com importantes índices de crescimento económico, que se refletem numa redução do poder relativo de potências tradicionalmente dominantes. A emergência de novas potências, como a China, a Índia e o Brasil, tornou o mundo tendencialmente multipolar. A criação do G20, por iniciativa dos EUA, pôs uma vez mais em destaque o desajustamento da velha arquitetura internacional face à realidade atual, já que consagra a institucionalização de um fórum de debate com a participação das principais economias mundiais, cuja agenda inclui tópicos de natureza política e económica. Por outro lado, a revolução tecnológica associada à Internet promoveu a emergência de um novo espaço de importância estratégica e económica vital, o ciberespaço, dando origem a novas formas de comunicação e mobilização mas, ao mesmo tempo, criando a possibilidade de ciberataques, com forte potencial destrutivo. 66

Paralelamente, o cenário de segurança regional e global alterou-se com a natureza crescentemente difusa do poder militar e da sua aplicação, a proliferação de programas de investigação e desenvolvimento de armas de destruição e dos seus vetores, os avanços nas novas tecnologias militares e a disseminação de tecnologia dual e de formas de combate assimétrico. Estas mudanças determinaram a emergência de um importante fator nivelador de poder, potenciando o desafio do “fraco” ao “forte”. Isto torna mais imprevisível e mais complexa a garantia de paz e segurança internacionais. Finalmente, a multiplicação de fatores de enfraquecimento e fragmentação de Estados tem por vezes levado ao colapso da autoridade estatal em vários territórios, a conflitos étnico-religiosos, guerras civis e de secessão, dando origem a Estados frágeis e a conflitos prolongados de extrema violência, cuja resolução é extremamente complexa. A estas grandes tendências não podemos deixar de acrescentar outras que se mantêm, desde há muito, como sejam as assimetrias demográficas e de desenvolvimento, a disputa estratégica pelo domínio dos recursos escassos e não renováveis e a crescente propensão para a democratização dos regimes. Do mesmo modo, é ainda importante considerar alguns fatores de evolução que poderão ter incidências na redistribuição do poder global e nos equilíbrios regionais. Desde logo, as dimensões estratégicas da transição internacional criaram novos desafios à preponderância dos Estados Unidos, que se traduzem numa revisão das suas prioridades. De facto, é visível uma deslocação dessas prioridades para a Ásia-Pacífico, que se prende com a crescente preocupação dos EUA relativamente às ambições da China. Não surpreende, por isso, a primazia atribuída pelos EUA às questões económicas internas e uma certa retração, em termos estratégicos, na cena internacional. De resto, a esta retração não será alheia a erosão do potencial económico e militar do país por força do empenhamento simultâneo em duas frentes de guerra: Iraque e Afeganistão. A acrescida importância do “fator económico” na distribuição do poder mundial é um dado que não se pode ignorar. A maior divergência a que vimos assistindo no sistema internacional reside, justamente, no flagrante contraste entre o peso das economias emergentes, e da sua realização, e as sérias dificuldades e vulnerabilidades com que se confrontam os países ocidentais no domínio económico, designadamente os EUA e a União Europeia. A China é hoje um gigante económico e as potências emergentes ganham peso relativo, em termos geoeconómicos, não estando tão dependentes da procura ocidental. Dispõem, agora, de uma maior gama de opções para o crescimento da sua economia. Os designados BRICS representam atualmente, em conjunto, um PIB de cerca de 25% do total mundial, em termos de paridade de poder de compra das moedas nacionais. Representam cerca de 45% da população mundial. O espaço territorial que ocupam equivale a 30% da parte terrestre do globo. 67

Ora esta transformação em fatores fundamentais de geração do Poder, o crescimento económico pujante nalgumas regiões e as fortes recessões noutras, a emergência de novas grandes potências - quer no espaço asiático, quer na América Latina - a crescente importância estratégica da Ásia, e a reorientação estratégica dos Estados Unidos, são suscetíveis de alterar os equilíbrios regionais com implicações decisivas no campo da segurança e antecipam mesmo transformações substanciais nos equilíbrios internacionais. Do mesmo modo, não deixarão de afetar os equilíbrios de poder entre os Estados, ainda que de uma forma difícil de prever.

Multilateralismo e segurança cooperativa As grandes tendências antes descritas e as alterações na distribuição e natureza do poder internacional evidenciam um cenário estratégico marcado pela incerteza e por ameaças e riscos de natureza global que exigem respostas cada vez mais eficazes por parte das organizações multilaterais de segurança e defesa coletiva. Por isso, uma reflexão sobre o atual ambiente estratégico ficaria incompleta se não fizéssemos uma menção, ainda que breve, às instâncias de cooperação multilateral e à segurança cooperativa. Não vamos aqui discutir o desajustamento da arquitetura internacional ainda vigente face à realidade atual das gradações de poder entre as principais potências reconhecida pela institucionalização do G20 - e às limitações do sistema de Bretton Woods e da ONU. Ou seja, da necessidade de reformar o sistema multilateral em que assenta a atual ordem internacional. Nem tão pouco trazer para esta reflexão as teses sempre em confronto sobre os fundamentos e as virtualidades dos sistemas de ‘segurança coletiva’ e de ‘balança de poderes’ para ajuizar sobre o que melhor permite enfrentar os ‘dilemas de segurança’. Partimos antes da evidência de que a ascensão de novos atores e a natureza global das atuais ameaças e riscos exige respostas igualmente globais, que reclamam uma cooperação internacional reforçada e um quadro multilateral de ação fundado na segurança coletiva e na noção de segurança cooperativa. A Organização das Nações Unidas (ONU) No centro do “sistema” de segurança coletiva está a ONU. A Organização das Nações Unidas, com o seu caráter global, tem uma centralidade incontornável enquanto organização tutelar no que concerne à segurança coletiva, sendo a sede de legitimidade jurídica internacional. Após o final da Guerra Fria, a ONU revitalizou-se e foi de certo modo obrigada a responder a um conjunto vasto e mais exigente de desafios. As múltiplas funções 68

e tarefas que assumiu, associadas à complexidade do ambiente internacional e ao inaudito número de solicitações, evidenciaram, porém, importantes vulnerabilidades institucionais e deficiências de funcionamento da Organização, particularmente no contexto das designadas ‘novas missões’. A forte expansão das operações de paz e humanitárias da ONU, como resultado do otimismo do fim da Guerra Fria, foi acompanhada de várias controvérsias e problemas, que de certa forma não deixaram de constituir elementos condicionadores da ação da Organização: a alegada dicotomia de algumas intervenções; a falta de coerência na aplicação de alguns princípios fundamentais do direito internacional; a capacidade excedida face ao elevado número de solicitações decorrentes do aumento da conflitualidade regional; as dificuldades acrescidas em razão da alteração da natureza dos conflitos (predominantemente intraestatais e, consequentemente, diferentes daqueles para os quais a ONU foi concebida); o limitado acordo entre as grandes potências quanto aos fundamentos da segurança coletiva. As dificuldades no terreno e as lições apreendidas resultaram na revisão de alguns objetivos e de doutrina, merecendo especial destaque, pela sua importância, o documento aprovado pelos Estados membros, na Cimeira Mundial de 2005, sobre a ‘Responsabilidade de Proteger’. No essencial, este documento afirma o compromisso dos membros das Nações Unidas de prevenir atrocidades como o genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Todavia, apesar de algumas mudanças qualitativas e do inegável contributo em prol da paz decorrente das operações de paz levadas a efeito pela ONU11, subsistem sérias limitações estruturais e constrangimentos à sua ação. Sublinho apenas duas: uma primeira, de capital importância - pelas suas repercussões ao nível do processo de decisão e implicações no domínio da segurança coletiva - que se prende com os problemas de representatividade relacionados com a composição do Conselho de Segurança; uma segunda, relacionada com a evidente falta de recursos e de vontade política para pôr em prática as decisões que têm sido tomadas pela Organização. Em suma, o reforço das Nações Unidas, enquanto organização de segurança coletiva e principal instância de regulação, continuará a depender essencialmente da evolução do sistema internacional e da vontade dos seus Estados membros, e em particular das grandes potências, em conferir-lhe os meios e recursos necessários para cumprir o papel que lhe é consignado pela sua Carta constitutiva. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) No plano da segurança, a OTAN continua a ser essencial para defesa coletiva da Europa e para a promoção da estabilidade internacional, assentando a sua ação em quatro pilares essenciais: uma comunidade de valores, fundada nos princípios 11

Alguns insucessos que se verificaram não podem ser apenas imputados à ONU.

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da liberdade, democracia e do Estado de direito; uma aliança militar, que garante a defesa coletiva dos seus membros, ao abrigo do artigo 5º do Tratado fundador; uma estrutura militar integrada que lhe confere capacidades únicas na gestão de crises e conflitos, através de forças militares robustas e integradas; e, finalmente, o pilar da dissuasão, elemento central na estratégia da Aliança face à prossecução do seu principal objetivo – a segurança da Comunidade Ocidental. Criada num contexto de bipolaridade, a OTAN sobreviveu ao fim da Guerra Fria e foi capaz de se adaptar às novas realidades estratégicas. Num contexto pós11 de setembro de 2001, os Aliados souberam assegurar uma nova funcionalidade para a OTAN no plano da segurança internacional, procurando garantir a segurança da Comunidade Ocidental. As lições apreendidas e os novos desafios de segurança confirmaram a necessidade de transformação conduzindo a um novo conceito estratégico, aprovado na Cimeira de Lisboa, em 2010. Aí se reafirmam as missões tradicionais da Aliança, de defesa dos seus Estados membros ao abrigo do artigo 5º do Tratado de Washington, e de consulta política mútua em questões de segurança e defesa. Como também se enfatiza o estatuto da OTAN como aliança regional com responsabilidades na promoção da estabilidade internacional e a necessidade de desenvolvimento de um diálogo político e do estabelecimento de parcerias e diálogos de segurança com outras organizações e Estados. Uma das questões centrais que dominaram o debate, na antecâmara da Cimeira de Lisboa, foi justamente a delimitação geográfica das missões. O caso do Afeganistão, onde OTAN tem não apenas a sua principal missão, mas também um importante teste à sua credibilidade, fora daquela que é a sua tradicional área de intervenção, é paradigmático. Trata-se de um exemplo claro de situações de instabilidade e conflito, para além das fronteiras da OTAN, que podem traduzir-se numa ameaça direta à segurança do território e das populações dos Estados aliados. Ora, nestes casos, a OTAN deve estar preparada para uma resposta adequada, mas sempre como um parceiro global de segurança (e não como global cop como alguns preconizaram). Este papel acrescido na promoção da estabilidade internacional, que o novo conceito assumiu, justifica também o enfoque dado às parcerias e aos diálogos de segurança com parceiros estrategicamente relevantes, incluindo a União Europeia e a Rússia. É ainda de sublinhar o destaque dado no novo documento orientador da OTAN à noção de Comprehensive Approach, ou seja, uma abordagem integrada para a articulação de meios civis e militares na resposta aos desafios de segurança. O que reflete que das lições apreendidas resultou o consenso na Aliança de que a natureza difusa e predominantemente não-convencional das ameaças e riscos à segurança requer não apenas o recurso ao vetor militar, mas também um esforço integrado civil-militar de proteção das populações e de reconstrução 70

das estruturas do Estado. Na Cimeira de Lisboa foi também introduzido o conceito de Smart Defense com o objetivo de acompanhar a transformação tecnológica com investimentos inteligentes de forma a potenciar as capacidades da Aliança. Trata-se de um conjunto de desenvolvimentos importantes que determina o rumo da Aliança para a próxima década. Resta saber qual o impacto na OTAN resultante da redução da presença militar norte-americana na Europa, pese embora os discursos dos seus responsáveis reafirmarem que a orientação prioritária dos EUA para a Ásia-Pacífico não significa o abandono do Atlântico. Todavia, não podemos deixar de perceber que está implícito nas declarações oficiais um reconhecimento da necessidade de uma Europa mais ativa no âmbito da segurança do espaço euro-atlântico. Os EUA não desejarão o enfraquecimento da OTAN, mas sim o reforço do seu pilar europeu. Poi isso, assume uma importância única e primordial o reforço do vínculo transatlântico. A União Europeia (UE) e a sua política de segurança e defesa Independentemente dos avanços e recuos dos diversos Tratados da União Europeia, a política europeia de segurança e defesa tem sido, nos últimos anos, uma das áreas mais dinâmicas do processo de integração. Como exemplos desse dinamismo destacaria: no plano político, a aprovação da Política Comum de Segurança e Defesa; no plano estratégico, a ratificação de uma Estratégia de Segurança Europeia12; no plano operacional, a condução, desde 2003, de mais de vinte missões e operações, sendo que onze missões e três operações ainda decorrem atualmente em diversas áreas regionais. O Tratado de Lisboa veio conferir um novo impulso à integração europeia em matéria de segurança e defesa, definindo que a União está preparada para assumir novas responsabilidades em matéria de segurança, através do reforço de uma capacidade militar própria. Porém, o atual momento de crise vivido na UE – seja ao nível da solidariedade europeia, seja das restrições orçamentais – poderá ter consequências significativas para o desenvolvimento da política externa, de segurança e defesa, colocando em risco os progressos alcançados até à entrada em vigor do Tratado de Lisboa. No novo quadro normativo, a União procurou reforçar, na dimensão das políticas europeias, a nova Política Comum de Segurança e Defesa, potenciando um fortalecimento do pilar europeu da Comunidade Transatlântica, e refletindo uma vontade política no sentido de uma integração mais profunda em matérias de segurança e defesa. Contudo, o primeiro ano de entrada em vigor demonstrou alguma estagnação da implementação do que foi consignado no Tratado. 12

Estratégia de Segurança da União Europeia de 2003, atualizada e reforçada em 2008 (relatório Solana).

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Desta consagração, destacam-se os instrumentos – no plano institucional, das capacidades e operacional – que visam dotar a União Europeia de condições que lhe permitam tornar-se um ator internacional de referência, não apenas no plano da segurança mas, essencialmente, no plano da defesa europeia. A Política Comum de Segurança e Defesa define um quadro de interesses comuns de segurança e defesa dos Estados membros, incluindo cláusulas de defesa mútua e de solidariedade que preveem ações coletivas de assistência mútua. O Tratado consignou, também, os mecanismos de cooperação reforçada e de cooperação estruturada permanente, o que permitirá aos Estados membros que o desejem, avançar mais e mais rapidamente na segurança cooperativa. A União Europeia soube antecipar, na prática, a doutrina OTAN da Comprehensive Approach, através de uma adequada articulação de meios civis e militares nas suas missões. Em suma, com a aprovação do Tratado de Lisboa, a UE dispõe de capacidades para assumir novas responsabilidades como ator de segurança. Porém, isto só será possível se os Estados membros assumirem a defesa europeia enquanto objetivo prioritário. Um objetivo que depende de dois elementos fundamentais: em primeiro lugar, o reforço do processo de adaptação das culturas estratégicas dos Estados membros; em segundo lugar, de uma evolução na geração de capacidades, de forma a orientar a sua aplicação, em particular, para a prevenção de conflitos, gestão de crises e processos de reconstrução de Estados. A crise económica e financeira da UE terá, seguramente, impacto no ritmo de aprofundamento da dimensão de segurança e defesa da União. Ao reajustarem e reformularem as suas políticas de defesa, sob pressão das dificuldades orçamentais, os Estados membros estão, naturalmente, a influenciarem a Política Comum de Segurança e Defesa. A crise é, por isso, também, um importante teste à vontade política no sentido de uma integração mais profunda em matérias de segurança e defesa e à capacidade de ação coletiva europeia. A tendência para a redução das despesas no domínio da segurança e defesa não poderá ser levada ao ponto de comprometer o objetivo fundador de consolidar um espaço de segurança e estabilidade de que todos beneficiem. As responsabilidades da União Europeia enquanto pilar europeu da Comunidade Transatlântica e ator no campo da segurança internacional obrigam-na a atuar com inteligência estratégica. Racionalizando, seguramente, mas não descurando o necessário investimento em defesa que terá de ser seletivo e baseado numa clara hierarquização de prioridades estratégicas. O contexto de fortes restrições orçamentais veio dar relevo à partilha de capacidades por via do designado Pooling and Sharing que tem sido encarado como uma prática de ação a desenvolver no quadro da Política Comum de Segurança e Defesa, e como uma fórmula eficaz para equilibrar a relação custo-eficácia no emprego de meios militares, em clima de austeridade generalizada. Não podemos, 72

contudo, ignorar que esta opção política tem um potencial de secundarização de um dos instrumentos consignado no Tratado de Lisboa, as cooperações estruturadas permanentes, quando aplicadas à dimensão de segurança e defesa. As ações de Pooling and Sharing que a UE pretende impulsionar estão orientadas para três vertentes principais de cooperação: uma vertente de partilha de capacidades (ou ações de sharing), destinada a incentivar o desenvolvimento comum de capacidades; uma vertente de agregação de capacidades (ou ações de pooling), que fomente um nível de cooperação organizado em torno de capacidades utilizadas numa base coletiva e integrada; e, finalmente, uma vertente orientada para ações de cooperação, que promovam a formação de nichos de capacidades. As iniciativas de cooperação europeia, como o Pooling and Sharing, pese embora resultando da dificuldade dos Estados europeus atuarem individualmente na gestão de crises e na resolução dos conflitos, são já elas próprias um efeito geoestratégico do impacto duradouro da crise económica internacional iniciada em 2008, na medida em que potenciam a contenção de custos e o reajustamento orçamental. O processo de Ghent, iniciado em Setembro de 2010 e a proposta conjunta Germano-Sueca, de dezembro do mesmo ano, vieram reiterar a determinação europeia no encontro de soluções inovadoras e eficazes para enfrentar o impacto da crise financeira na área da defesa, explorando oportunidades que as modalidades de cooperação de Pooling and Sharing oferecem. Mas é preciso que o Polling and Sharing seja isso mesmo: uma resposta europeia. Nesta matéria, devem ser incentivadas iniciativas de desenvolvimento partilhado de capacidades que respondam a requisitos nacionais e europeus, mediante a adoção de regras claras que garantam uma utilização eficaz deste instrumento mas que também coíbam ações de diretórios que possam descaracterizar o conceito de Política Comum de Segurança e Defesa consagrado no Tratado de Lisboa. Por fim, é absolutamente fundamental aprofundar a parceria estratégica entre a União Europeia e a OTAN que, aliás, foi mais uma vez sublinhada no novo conceito estratégico da Aliança Atlântica. Mas o efetivo aprofundamento desta parceria deve começar, desde logo, pela articulação de uma visão estratégica comum de segurança e defesa, sem a qual a complementaridade entre parceiros não se pode estruturar de forma estável e permanente. No plano operacional, e neste mesmo espírito de complementaridade, torna-se necessário articular não apenas as prioridades mas também as missões. É fundamental rentabilizar as capacidades civis e militares de atuação de ambas as organizações, não só em todo o espectro de conflitos mas também ao nível da gestão de crises, agilizando a partilha de informações e evitando duplicações de meios. Em suma, devem ser reforçadas e ampliadas as bases que sustentam os Acordos Berlim Plus, como vetor fundamental desta parceria estratégica. 73

Mas tudo o que foi dito só será possível se a defesa europeia for considerada um objetivo essencial no âmbito da União Europeia. É de salientar que, nesta reflexão, foram referidas as três principais organizações multilaterais que têm evoluído num quadro dos ideais de segurança coletiva e segurança cooperativa e que assumiram princípios orientadores comuns relativamente à ‘Responsabilidade de Proteger’ e à ‘Segurança Humana’. Porém, no âmbito do sistema multilateral em que assenta a ordem internacional têm vindo a desenvolver-se outras importantes potenciais ‘comunidades de segurança’13, fundadas na partilha dos mesmos ideais. De facto, não podem ser ignorados os desenvolvimentos verificados num número muito significativo de organizações regionais e sub-regionais, no domínio da segurança, embora com variações em termos de capacidade de resposta. Falamos, entre outras, de organizações como a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), a União Africana (UA), a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADCC), a União das Nações da América do Sul (UNASUL) e o Conselho de Defesa Sul-Americano, a Associação das Nações do Sueste Asiático (ASEAN) ou mesmo a Liga Árabe (LA). Este potencial de descentralização das responsabilidades em matéria de segurança, em organizações regionais e sub-regionais sob a égide geral da ONU, e tendo por base a aplicação do conceito de segurança cooperativa, constituiria um importante elemento de estruturação do sistema internacional, numa óptica da gestão de equilíbrios e seguindo o princípio de que “é preferível um equilíbrio regulado e institucionalizado do que um equilíbrio não regulado sob anarquia”14. Em suma, a interpretação do ambiente estratégico atual indica-nos importantes alterações na distribuição do Poder internacional. A atual arquitetura institucional tem revelado fragilidades na capacidade de resposta aos novos desafios, decorrentes de novos riscos e ameaças, novas dimensões de distribuição do Poder – económico, político e estratégico – e emergência de novos atores. Neste sentido, é imperiosa a reforma do atual sistema multilateral, através do reconhecimento desta nova distribuição de poder, bem como das necessidades decorrentes do atual ambiente estratégico, através de um reforço dos instrumentos de segurança cooperativa. Tal não poderá deixar de ser feito através do impulso e valorização da relação entre a ONU e as organizações regionais e sub-regionais, em representação dos seus estados-membros, sempre no espírito da Carta fundadora das Nações Unidas e da garantia da legitimidade das ações internacionais.

DEUTSCH, Karl W. “Political community and the North Atlantic area; international organization in the light of historical experience”. Princeton: Princeton University Press. 1957. 14 KUPCHAN, Charles A. and KUPCHAN, Clifford A., “The Promise of Collective Security”, revista International Security, volume 20, n.º 1, 1995. 13

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A INFORMAÇÃO PÚBLICA E O SEU IMPACTO NO SUCESSO DA CAMPANHA MILITAR Da Crimeia às Falkland

Major-General José Antunes Calçada

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A INFORMAÇÃO PÚBLICA E O SEU IMPACTO NO SUCESSO DA CAMPANHA MILITAR – DA CRIMEIA ÀS FALKLAND1 Major-General José Antunes Calçada

1. Introdução

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uando me foi solicitada a colaboração nesta obra de homenagem ao General Loureiro dos Santos, manifestei, desde logo, a minha inteira disponibilidade. Trata-se de uma personalidade ímpar no panorama militar português, uma das referências intelectuais da minha geração. Recordo, com saudade, a forma generosa e “didáctica” como, na qualidade de Director do então Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM), me recebeu e enquadrou quando, jovem Major, ali fui colocado como Professor. O presente trabalho tem por base o Trabalho de Investigação Individual(TII) realizado pelo autor aquando da frequência do Curso de Promoção a Oficial General (CPOG) no Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM). Sendo uma condensação de um trabalho maior apresenta naturais limitações de que antecipadamente pedimos desculpa, solicitando a compreensão dos eventuais leitores. Assim, a um capítulo “enquadrador” – Da Guerra e da Estratégia – segue-se a análise histórica do Impacto da Informação Pública durante o período que medeia entre a Guerra da Crimeia e o Conflito das Falkland para, por fim, extrairmos algumas conclusões.

2. Da Guerra e da Estratégia a. Generalidades No século XIX o termo estratégia era utilizado somente em relação ao sector militar. Tratava-se da “arte do general”. Hoje, pelo contrário, o seu emprego está “inflacionado”. É utilizado nos campos económico, comercial, dos desportos de 1

Texto escrito de acordo com a antiga ortografia.

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competição, em todos os sectores em que exista uma interacção entre dois ou mais actores, que persigam objectivos contrapostos. No âmbito militar, aquele que nos interessa, a estratégia possui uma especificidade muito própria. Estádio intermédio entre a política e a táctica, configura-se como o elemento que as torna coerentes e que, de acordo com as circunstâncias, se aproxima, chegando às vezes a parecer confundir-se, de uma ou de outra. A sua referência é a guerra, que é um “acto de violência destinado a forçar um adversário a submeter-se à nossa vontade”2. Nela encontra a sua expressão mais profunda, assumindo-se como “a arte da dialéctica das vontades empregando a Força para resolver o seu conflito”3. Desta definição de estratégia (total) do general Beaufre ressalta o facto da força ser o meio, o instrumento de que a vontade se serve para levar a melhor sobre o adversário. O que se considera, neste caso, Força leva-nos de volta à concepção “trinitária” da guerra de Clausewitz e aos elementos que a compõem. b. Clausewitz revisitado Com o fim do mundo bipolar e do confronto “racional” entre Estados, poder-se-ia colocar a questão de saber se teríamos entrado num mundo “pósclausewitziano”. Em nosso entender as teses do general prussiano continuam a ter plena validade. Com efeito, elas podem explicar os conflitos internos, incorporar as emoções geradas no povo pelos meios de comunicação social, ter em conta a racionalidade limitada da política e a relutância em aceitar baixas. A essência da guerra, segundo Clausewitz, é caracterizada por aquela que ele chama de “surpreendente trindade” constituída pela violência originária que é um impulso natural cego, pelo jogo das probabilidades e acaso que dela faz uma livre actividade da alma e pela sua natureza subordinada à política que faz com que seja um instrumento da razão do Estado. A teoria da guerra de Clausewitz considera não só as forças racionais mas também as a – racionais e as irracionais. Deste modo, às forças racionais corresponderá o Estado, às forças a – racionais as forças armadas e às irracionais o povo. Daqui derivam algumas críticas que hoje em dia são lançadas à permanência dos conceitos do general prussiano: as guerras não seriam já travadas com fins políticos mas por razões de justiça, de religião, de sobrevivência de grupo; não seriam combatidas pelos exércitos mas pelos povos que determinariam, com as suas emoções, as escolhas dos governos. A nossa opinião é diferente. A metáfora “clausewitziana” dos três pólos será suficientemente flexível para explicar as novas realidades mesmo que o sistema internacional se esteja a tornar menos “vestefaliano” e que as fronteiras entre conflitos internos e externos 2 3

CLAUSEWITZ, Carl Von, (1976). Da Guerra. 1ª ed., Lisboa: Perspectivas e Realidades, pag 73. BEAUFRE, André (1965). Introduction a la Stratégie. 3ª ed., Paris : Librairie Armand Colin, pag.16.

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seja mais “porosa”. Com efeito, a tríade de Clausewitz será mantida pela vontade (que mais não é que Força Moral) que confere unidade às suas três componentes. Se tal vontade desaparece ou enfraquece, mesmo numa só das componentes – governo, povo, exército – a derrota será segura. Alguns exemplos históricos, adiante referidos, parecem provar tal verdade. A derrota surgiu porque uma ou mais das componentes sucumbiu. Só compreendendo o significado profundo desta tríade e a interacção entre as suas componentes se poderá compreender a essência do fenómeno guerra e dos seus mecanismos. A estratégia, portanto, deve utilizar os elementos a- racionais e irracionais intervenientes no conflito, tornando-os desse modo instrumentos da racionalidade das suas acções. Por isso se poderá afirmar que, tal como no passado, continua a ser absolutamente indispensável à estratégia equacionar o emprego das Forças Morais ao lado das Forças Materiais. Será do seu correcto “balanceamento” e emprego que dependerá a vitória. c. As Forças Morais As forças morais são “transversais” aos três elementos referidos acima. A estratégia deverá, assim, actuar por forma a elevar as forças morais dos respectivos elementos – governo, povo, forças armadas – ao mesmo tempo que deve “manobrar” para diminuir as do adversário. A importância das forças morais na preparação e na conduta de um conflito não é uma novidade da idade contemporânea Já Sun Tzu referia que “aquele em que os soldados, de alto a baixo da hierarquia, estão unidos em torno do mesmo objectivo alcança a vitória4”. De igual modo considerava que a acção estratégica deve sempre tender a provocar desordem no inimigo, a minar o consenso e a confiança da população e do exército em relação aos chefes políticos e militares: “quando a confusão e a suspeita reinam no seio dos exércitos, os inimigos aproveitam para criar dificuldades”5. Clausewitz coloca no centro da sua teoria da guerra as forças morais e os factores psicológicos. “(...) encontrando – se as grandezas morais entre os mais importantes elementos da guerra. É o espírito que impregna toda a guerra. Ele impõe – se antecipadamente à vontade que guia e move toda a massa de forças (...) o estado de espírito da população onde a guerra se desenrola (...) podem exercer uma influência (...)”6. Porque as forças morais existem e podem ser determinantes, a preparação para a guerra não deverá ser apenas material mas também espiritual. E não apenas das forças armadas mas de toda a população. Se isto é verdade para o nosso lado também o é, em sentido contrário, para o adversário. Será neste enquadramento que 4 5 6

SUN ZI. (1990). L’Art de La Guerre. 1ª ed., Paris : Economica, pag. 107. Idem, pag. 107. CLAUSEWITZ, Carl Von, op. cit. pág. 209.

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poderemos incluir a propaganda e a acção psicológica, por exemplo, que mais não serão que acções atinentes a diminuir a coesão, espírito combativo e hostilidade por parte dos exércitos e população inimigos. As forças morais de um exército e de uma nação serão, pois, um “campo de batalha” onde teremos de manobrar a fim de nos colocarmos numa situação de “potencial relativo de combate” favorável. d. A Informação Pública e a Estratégia Sendo um verdadeiro interface entre os governos e as chefias militares por um lado e a opinião pública por outro, a informação pública – de que os meios de comunicação social são o principal veículo – terá uma grande importância na “manutenção e desenvolvimento do moral” de tropas e população. Na acepção de Clausewitz, a informação pública e os meios de comunicação social serão, pois, instrumentos que poderão servir para controlar e desenvolver as forças irracionais e a – racionais da sua tríade. Como tal podem e devem ser equacionados pela política, estratégia total e estratégia militar como um dos vectores de que estas se podem servir para, aumentando a nossa força moral, “forçar um adversário a submeter-se à nossa vontade”. Isso mesmo foi entendido por exemplo pelo Departamento da Defesa dos EUA que na sua Joint Publication 3 – 61 estabelece: “a actividade de assuntos públicos7 contém a propaganda e a desinformação adversária providenciando um fluxo contínuo de informação cuidada, atempada e credível aos militares, às suas famílias, aos OCS e ao público. Esta capacidade permite aos assuntos públicos ajudar a derrotar os esforços do adversário para reduzir a vontade nacional, degradar o moral e virar a opinião pública mundial contra operações amigas8”. Presume-se, obviamente, que se encarregarão da operação inversa em relação ao adversário! e. Elementos de Síntese Em teoria, parecerá lícito poder sintetizar o que acima foi referido, dizendo: • A guerra é uma actividade onde concorrem forças racionais, a – racionais e irracionais; • A estas forças corresponderão os governos, os exércitos, os povos; • A vontade será o “traço de união” de governos, exércitos, povos; • No âmbito da força concorrem não só os aspectos materiais mas também os morais; 7

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Assuntos Públicos é a actividade que, através da sua vertente Informação Pública, serve de ligação entre a Administração da Defesa e os OCS. JOINT PUBLICATION 3-61 (2005). Public Affairs Doctrine. Washington, DC : Department of Defense, pag. I-3.

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• À estratégia competirá desenvolver e empregar tais forças (morais e materiais), aumentando o potencial próprio e reduzindo o do adversário; na sua dialéctica de vontades tentará acentuar o seu “traço de união” e eliminar o do inimigo; • A informação pública – designadamente através dos OCS – e a informação interna servem para comunicar com os povos e os exércitos, respectivamente; serão, pois, instrumentos capazes de contribuir para aumentar ou diminuir as forças morais de, pelo menos, dois dos componentes da tríade clausewitziana; A estratégia deverá ser capaz de, utilizando correctamente a Informação Interna, fortalecer as Forças Morais dos seus exércitos; utilizando a Informação Pública, deverá ser capaz de fortalecer as Forças Morais da sua população, enfraquecer as dos exércitos e populações inimigas e “colocar” a opinião pública mundial de acordo com as suas acções.

3. Da História a. Elementos de Análise (1) Até à Guerra da Crimeia Nos séculos que antecedem a revolução francesa a opinião pública pouco ou nada contava. Com efeito, o carácter absoluto do poder exercido pelo “soberano”, ainda por cima tendo como origem o divino, fazia com que aos povos nada mais restasse que acatar os comandos do poder político. Como não contava, a opinião pública também não carecia de ser informada. Com o advento da revolução francesa, corolário do movimento iluminista e que tinha tido um primeiro “capítulo” na independência americana, a soberania passa a residir no povo. Este passa a delegar o seu exercício em representantes por si escolhidos num processo que se vai avizinhando, em passos lentos mas inexoráveis, do sistema de sufrágio universal. Com um breve interregno – a restauração absolutista que se segue ao Congresso de Viena – a marcha da História ao longo do Século XIX conduziu a uma progressiva extensão do sistema democrático representativo a quase todos os países da Europa Ocidental e da América do Norte. Este desenvolvimento das relações entre poder político e povo soberano foi acompanhado de um paralelo desenvolvimento da importância da imprensa e da sua difusão. A opinião pública passou a “existir”, a ter a capacidade de escolher os seus representantes, a ter que ser informada. 81

Uma das tarefas essenciais e exclusivas do poder político sempre foi a de declarar a guerra e fazer a paz. Assim, tal como para todos os outros assuntos atinentes ao governo de um Estado também a guerra com todas as suas implicações passou a ser objecto de interesse da opinião pública. Tal facto traduziu-se no tratamento cada vez mais profundo do tema “guerra” por parte da imprensa. O poder político passou a ter que “prestar contas” ao eleitorado, a imprensa desenvolveu-se, o público passou a estar interessado. A informação da opinião pública torna-se incontornável. Para os governos – em última análise a opinião pública podia derrubá-los – e para a imprensa – se não informassem sobre a guerra não vendiam. É neste contexto que se chega à guerra da Crimeia que acabou por introduzir alterações substantivas no modo como a opinião pública se relaciona com o fenómeno guerra. (2) Guerra da Crimeia (1853 – 1856) O conflito da Crimeia foi o primeiro a contar com a presença de enviados especiais para cobrirem os acontecimentos. Com efeito, coube ao jornalista britânico, enviado pelo “The Times”, William Howard Russel a honra de ser o primeiro “correspondente de guerra”9. “Russel fez desde logo a experiência dos primeiros choques com os militares por causa das suas informações sobre o estado das forças britânicas (...). O mau humor dos militares britânicos tinha as suas razões. Dada a celeridade das novas vias de comunicação, receava-se que os despachos do campo de batalha para os jornais podiam condicionar a própria condução da guerra, provocando potenciais reacções da opinião pública – ou arriscando-se mesmo a “passar” informações ao inimigo”10. A guerra da Crimeia combatida em lugares distantes por objectivos dificilmente compreensíveis para quem não estivesse por dentro dos “mistérios” da diplomacia internacional, foi seguida pela opinião pública britânica com uma atenção e um interesse sem precedentes na História. Era um dos resultados da difusão maciça da imprensa e do rápido crescimento das técnicas de comunicação que se seguiram à invenção do telégrafo (1837). As notícias de uma guerra combatida entre o Mar Negro e o Cáucaso chegavam ao público londrino ao fim de poucos dias, nas páginas do quotidiano The Times e de outros jornais. Foram precisamente as reportagens contando as miseráveis condições em que os feridos eram mantidos que fizeram com que Florence Nightingale surgisse para introduzir métodos modernos de enfermagem no campo de batalha. Estas reportagens traduziram também para PEREIRA, Carlos Santos in MOREIRA, Adriano (coord) (2004). Informações e Segurança – estudos em honra do General Pedro Cardoso. Lisboa: Prefácio. Pag 180 e seg. 10 PEREIRA, Carlos Santos, op cit. 9

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o grande público a visão da incompetência dos Comandantes britânicos (cujo expoente máximo foi a “Carga da Brigada Ligeira” em Balaclava) o que fez com que uma vitória (a Rússia acabou por aceitar cláusulas pesadas no Tratado de Paris) se transformasse – no “julgamento” popular e na descrição histórica – numa “derrota moral”. A não existirem tais reportagens, só o resultado final contaria e os erros, as hesitações, a impreparação do Comando, o desprezo pela vida dos próprios soldados, passariam despercebidos da opinião pública. Seriam apenas uma amarga recordação na alma de alguns sobreviventes. De tal forma foi importante o contributo da imprensa para retirar conclusões deste conflito que o Exército britânico, na sequência da polémica instalada no final da guerra, acabou com o sistema da “compra de comissões”, forma única de se ascender a oficial e que foi considerada a principal razão da incompetência dos Comandantes. Sem as reportagens de guerra enviadas da Crimeia, estamos em crer que isso, por exemplo, nunca teria sucedido. Por outro lado, as notícias da Crimeia acabaram por favorecer o apoio maciço a uma guerra que, no momento do seu início, gozava de muito poucos apoiantes fora do governo. Jornalismo e guerra encontravam – se pela primeira vez estreitamente inter – ligados e foi evidente o quanto se apoiavam mutuamente: a guerra dava à imprensa uma série inesgotável de acontecimentos, crónicas e imagens a “propor” aos leitores com a certeza de os interessar; o jornalismo – para além das intenções dos correspondentes – acabava por criar um interesse notável pela guerra, favorecendo a difusão de uma mentalidade de carácter nacionalista, mesmo em países que, até esse momento, a isso tinham estado imunes. Aquilo que tinha sucedido, em escala reduzida, na Guerra da Crimeia, reproduziu-se de forma muito mais importante nos conflitos sucessivos. O jornalismo de guerra tornou-se desde então uma das mais significativas “especialidades” da “industria da Informação”. (3) Guerra Civil Americana (1861 – 1865) “A Guerra Civil Americana constituiu o terreno ideal para o florescimento da nova tribo (i.e. os repórteres de guerra). Centenas de jornalistas abandonaram a rotina das suas redacções para irem cobrir o conflito no terreno”11. Porque se tratou de um conflito interno motivado por razões políticas fortes, a Guerra Civil Americana dividiu profundamente a sociedade. Os jornalistas não ficaram indiferentes a essa divisão. Dificilmente poderiam ser objectivos nas suas crónicas. Assim, as reportagens eram eivadas de subjectivismo, servindo, antes de mais, 11

SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. Da Crimeia a Dachau. 5ª ed., Lisboa: Gradiva, pág. 28.

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para fazer a propaganda do campo com o qual se estava de acordo. Sabendo da importância das forças morais e estando conscientes da influência que as reportagens podiam ter sobre o moral da população civil, ambos os contendores estabeleceram a censura e o sistema da acreditação12. Foi neste conflito que surgiram pela primeira vez, de forma sistemática, os comunicados de guerra13. Deste modo, facilitava-se o acesso à informação por parte da população e dos jornalistas, para além da possibilidade que isso introduzia de se poder “gerir a informação” a disponibilizar. A partir de 1862 o período das grandes e sanguinárias batalhas começou. Após a batalha de Antietam em Setembro de 1862 a Proclamação de Emancipação feita por Lincoln tornou a liberdade dos escravos um objectivo de guerra14. Deste modo, a União não só podia a partir desse momento contar com a mobilização dos afro-americanos como “impedia”, em nome da Moral, potências estrangeiras de apoiarem a Confederação. A imprensa nortista, sublinhando constantemente a justiça da causa da União – a luta contra a escravatura – fez com que quase todos os países terceiros (por livre opção ou por pressão das opiniões públicas) estabelecessem um embargo ao Sul. Tal facto acabou também por se revelar decisivo para a asfixia económica dos Estados Confederados e consequentemente para o condicionamento da conduta da guerra aos níveis estratégico e operacional. (4) I Guerra Mundial (1914 – 1918) Para explicar o desencadear da primeira guerra mundial podemos encontrar uma causa próxima (o assassinato do Arquiduque Francisco Fernando em Sarajevo) e causas profundas. Estas, bem mais importantes, radicam-se nas escolhas políticas e económicas efectuadas pelas grandes potências europeias nos vinte e cinco/ trinta anos antecedentes. Numerosos eram os motivos de atrito entre os estados europeus. Com efeito, a “ordem de Bismarck” – um bloco continental dominado pela Alemanha e que incluía a Rússia a Áustria e a Itália, o isolamento da França e a neutralidade da Inglaterra a quem era dada liberdade na corrida às colónias – pertencia ao passado. Em seu lugar assistiu-se a uma corrida colonial da Alemanha e, portanto, a um desafio à Inglaterra, o que levou a prazo à constituição de alinhamentos alternativos, dos quais a constituição em 1904 da “Entente Cordiale”, entre a França e a Inglaterra, se veio a revelar o mais importante e determinante. Às questões, de ordem política e económica, acima afloradas há que juntar fenómenos de carácter ideológico e cultural muito significativos. Assim, pudemos 12 13

14

PEREIRA, Carlos Santos. Op cit, pág. 181 A título de curiosidade salienta – se que é nesta altura que surge a expressão OK com o significado de que tudo estava bem. OK não é mais do que o acrónimo de “zero killed”, presente nos comunicados de guerra sempre que não se registavam baixas. Coisa pouco frequente, aliás!! MITCHELL, Reid (2003). La Guerra Civile Americana. 1ª ed., Bologna: Il Mulino, pag 97.

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assistir neste período ao crescimento do nacionalismo que, ao contrário da tradição liberal do século anterior, se traduzia agora por pulsões anti-democráticas, de agressividade imperialista, de vontade de poder, de mitologia autoritária. O ambiente era, portanto, receptivo ao confronto. A opinião pública e os intelectuais coincidiam no encarar da guerra como um fenómeno não só inevitável como até desejável. No início do conflito assistiu-se, pois, a uma unanimidade quase total no apoio à guerra de parte a parte. No dizer de Martin Gilbert os povos da Europa “estavam loucos de alegria com a guerra”15. Num tal enquadramento, quer os decisores políticos quer os chefes militares podiam contar com o apoio total das respectivas opiniões públicas. Com a excepção dos Bolcheviques na Rússia, de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht na Alemanha e de pequenos grupos na França e Inglaterra, até os movimentos socialistas e sindicais apoiaram os respectivos governos uma vez a guerra desencadeada. Eram as Nações, mais do que os Estados, que estavam em guerra – uma guerra total. O apoio das populações era, por isso, considerado fundamental. Convinha, pois, fazer com que a imprensa não se encarregasse de “toldar” o ambiente. Nesse sentido, inicialmente, a França recusou – se a admitir repórteres nas zona de combate. Tal facto “resultava de uma desconfiança do aparelho militar em relação à imprensa. Essa desconfiança tinha a sua origem em 1870, quando o invasor prussiano capturou 83.000 soldados franceses em Sedan após o Le Temps ter revelado os movimentos das tropas franceses na região”16. A censura foi imposta à semelhança do que aconteceu com a Inglaterra. Foram criados pelos dois aliados Gabinetes de Imprensa com “a missão de exercer a censura, punir os infractores e planear a operação de propaganda”17. De qualquer forma quer dum lado quer do outro da Mancha o que subsistia era o estilo propagandístico da imprensa que mais não fazia do que repercutir os “humores” da opinião pública. O mesmo era verdade na Alemanha. Prevalecia o ambiente de “união sagrada” em torno dos objectivo nacionais estabelecidos pelos respectivos governos. Após um início caracterizado pelo movimento a guerra cedo se transformaria num combate contínuo e sangrento a partir de posições entrincheiradas. Quem resistisse melhor ao desgaste material e humano ganharia. Ao longo dos anos de 1915 e 1916 assistiu-se a uma sucessão de batalhas das mais sangrentas que a História Militar tinha até então presenciado. As carnificinas de Verdun e do Somme, para só citar os exemplos mais conhecidos, encarregaram-se de desagregar a coesão nacional (em ambos os lados das trincheiras) até aí existente. As populações começaram a revoltar-se contra o arrastar, aparentemente sem solução, do conflito 15

16 17

GILBERT, Martin (2000). La grande Storia della Prima Guerra Mondiale. 1ª ed., Milano: Mondadori, pag 31 e seg. SANTOS, José Rodrigues dos, op cit, pag 52. Idem, pag 53.

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face aos sofrimentos de que padeciam e as tropas acabaram por protagonizar os enormes motins de 1917. A imprensa reflectia este estado de espírito diminuindo desta forma a liberdade de acção dos executivos. A solução passou pela formação de governos de unidade nacional onde convergiram as oposições. A juntar a este clima de “tudo ou nada” que passou a prevalecer de parte a parte a partir do final de 1917, há que juntar dois factores importantes e que são mais ou menos contemporâneos: a entrada em guerra dos EUA e a Revolução Russa de Outubro de 1917. Se o segundo facto permitiu à Alemanha fazer uma paz separada a Leste o que por sua vez lhe permitiu a concentração a Oeste e o lançamento da grande ofensiva da primavera de 1918 (última tentativa germânica de ganhar), o primeiro facto permitiu aos Aliados não só equilibrar o potencial relativo de combate nos momentos decisivos da ofensiva alemã, como de seguida tornou possível a sua ofensiva final vitoriosa. Duma forma geral poderemos dizer que a I Guerra Mundial decorreu sempre num ambiente mediático favorável a ambos os contendores nos respectivos países. A imprensa, antes de tudo, serviu os propósitos de moralizar populações e tropas, já que sentia que estava em causa a sobrevivência das respectivas nações. Só assim foi possível conter os descontentamentos de 1917 e manter até ao fim (mesmo na Alemanha) o apoio das opiniões públicas a governos e comandantes responsáveis pela morte de tantos milhões de pessoas. Em ambos os casos – vencidos e vencedores – a opinião pública, a informação pública e a imprensa funcionaram como “multiplicadores do potencial”. Estiveram ao lado de comandantes e tropas, até ao fim. (5) Guerra Civil de Espanha (1936 – 1939) Nas eleições de Fevereiro de 1936 as forças de esquerda apresentaram-se coligadas na “Frente Popular” que conquistou o governo da República, entretanto proclamada em 1931. O governo de Manuel Azaña tentou de imediato levar a cabo uma reforma agrária e estabelecer a laicização do Estado. A reacção da Igreja, dos proprietários rurais e do Exército não se fez esperar. Em Julho de 1936 as tropas de Marrocos sob o comando do general Franco marcharam sobre Madrid com a intenção de derrubar o governo. A insurreição militar recolheu a adesão da maioria do Exército. Foi o início de uma duríssima guerra civil que destruiu o país e que acabou por durar três longos anos. Formaram-se dois campos opostos e irreconciliáveis: por um lado, uma coligação de elementos tradicionalistas e de inspiração mais ou menos fascista em torno do Exército e da Igreja, por outro, todos os partidos ditos democráticos e de esquerda. Estes campos opostos atravessaram toda a sociedade espanhola, designadamente a imprensa, que tomou partido por um lado ou outro agindo desta forma como veículo interno e externo de propaganda. A informação pública mais 86

não foi, durante todo o conflito, que um instrumento ideológico ao serviço de uma das facções em luta. Neste sentido, a imprensa republicana apresentou a guerra civil como a luta entre a democracia e o fascismo clamando pela ajuda de todos os países democráticos, a imprensa nacionalista apresentou a guerra como uma cruzada contra o comunismo. Ambos os contendores puderam contar com auxílio externo. O lado nacionalista com a ajuda oficial da Alemanha e da Itália que para o efeito “tornearam” o embargo decretado pela Comissão de Não – Intervenção18. O lado republicano com o apoio da União Soviética e dos voluntários das brigadas internacionais. A França e a Inglaterra optaram por cumprir o pacto de não intervenção, o que se veio a revelar uma verdadeira sentença de morte para a República19. Dadas as características de conflito interno, marcadamente ideológico, imprensa e opinião pública dificilmente poderiam ter uma posição isenta e equidistante. Estavam ao serviço de uma causa, servindo os interesses da parte com a qual estavam de acordo. A informação pública foi usada, por parte de ambos os contendores, como veículo de propaganda e de justificação das opções tomadas. Não teve, portanto, um impacto directo no sucesso ou no insucesso de uma ou outra facção. Saliente-se, no entanto, que a imprensa nacionalista se congregou, sem dúvidas nem desfalecimentos, em torno da figura de Franco, enquanto que os jornais republicanos nunca perderam de vista os interesses próprios do partido ou da facção a que pertenciam. Neste sentido, poder-se-á afirmar que terão contribuído, de algum modo, para enfraquecer, dividindo, o lado republicano. Enquanto na facção nacionalista a unidade se foi afirmando ao longo do conflito, no lado republicano aconteceu precisamente o contrário. Deste ponto de vista, a liberdade de acção consentida pela imprensa e pela opinião pública nacionalistas ao general Franco foi muito maior que aquela que a imprensa e a opinião pública republicanas proporcionaram aos seus líderes. (6) II Guerra Mundial (1939 – 1945) A precariedade dos equilíbrios internacionais, fruto da Paz de Versalhes, a crise económica dos anos trinta, o advento dos regimes de características autoritárias e/ ou fascistas e, sobretudo, da feroz ditadura nazi, foram as principais causas da II GM. Após a anexação da Áustria e da região dos Sudetas, a 1 de Setembro de 1939 o exército alemão atravessou a fronteira polaca, obrigando a Inglaterra e a França a entrarem em guerra. A partir daí o avanço germânico pareceu irresistível: em três anos, quase toda a Europa caiu sob domínio nazi enquanto o Japão se apoderava do Extremo Oriente. Mas entre 1942 e 1943 o louco desígnio de Hitler 18

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Comissão instituída em Londres, em 9 de Setembro de 1936, a que aderiram 27 países e que se propunha impedir intervenções externas em Espanha. Na prática, nunca funcionou! PRESTON, Paul (1999). La Guerra Civile Spagnola. 1ª ed., Milano: Mondadori, pag 124.

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começou a sofrer os primeiros duros golpes: as derrotas de El-Alamein em África e sobretudo de Estalinegrado na Rússia, fizeram com que a sorte das armas se transferisse para os Aliados. Estes, nos últimos dois anos de guerra prosseguiram o seu avanço imparável apoiados, em muitos países, por acções de forças da resistência. O desembarque da Normandia e, mais tarde, o lançamento de bombas atómicas em Hiroxima e Nagasaqui, acabaram por colocar um ponto final num conflito sangrento, que custou à Humanidade 60 milhões de mortos. A IIGM foi, como é bem sabido, uma guerra total. Os países em luta lançaram mãos de todos os instrumentos ao seu alcance para obterem vantagens face ao adversário. Sendo caracterizado por ter sido um conflito marcado pela luta ideológica, a propaganda assumiu um papel importantíssimo. A “diabolização” do inimigo era permanente. A imprensa, absolutamente controlada nos países do Eixo (Itália, Japão, Alemanha) e na União Soviética, estava ao serviço dos respectivos governos e difundia as mensagens consideradas necessárias ao esforço de guerra. Na Alemanha, por exemplo, era tutelada pelo Ministério da Propaganda (de Josef Goebbels). Deste modo, nestes países a informação pública era um mero instrumento de coacção psicológica ao serviço do Estado. Nas democracias em guerra o panorama não era, na prática, muito diferente, já que por um lado “os franceses tinham um sistema de controlo muito apertado, obrigando os repórteres a fazerem as suas crónicas em quadruplicado, de forma a passarem pelo crivo sucessivo de três censores e os britânicos acabaram com os improvisos ao microfone, acabaram com os improvisos nas reportagens, a circulação dos repórteres foi restringida”20. No entanto, convém destacar que no caso da imprensa das democracias (EUA incluídos) a censura visava evitar quebras de segurança e não opiniões e análises (neste caso funcionava a auto-censura dos editores que impediam a publicação ou difusão de crónicas eventualmente desmoralizantes ou derrotistas). Os jornais e rádios estavam, sem sombra de dúvida, ao lado dos governos, dos chefes militares, dos combatentes, dos objectivos de guerra. Deste ponto de vista, de uma forma ou de outra, a informação pública funcionou como um instrumento de união em torno dos objectivos nacionais, o que teve um impacto significativo na manutenção do moral e na adesão da opinião pública à actuação dos exércitos. No caso dos aliados contribuiu para a vitória, no caso das potências do eixo talvez tenha contribuído para atrasar a derrota. (7) Guerras Coloniais da França: Indochina (1945 – 1954) e Argélia (1956 – 1962) No período pós IIGM a França viu – se envolvida em dois conflitos coloniais que se vieram a revelar dramáticos e que acarretaram consequências importantes do ponto de vista político. 20

SANTOS, José Rodrigues dos, op. cit. pag 362.

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A Indochina Francesa (aquilo que hoje em dia consiste no Vietname – no tempo colonial dividido em Tonkin, Annam e Cochinchina – no Camboja e no Laos) era um território submetido a diferentes regimes de controlo por parte da França, que iam desde o protectorado nos casos do Laos, Camboja e Annam até à administração directa nos casos da Cochinchina e Tonkin. Após a IIGM, o território que hoje constitui o Vietname, e que tinha estado ocupado pelos japoneses durante a guerra, foi reocupado pela França, o que frustrou as expectativas de independência, entretanto proclamada a 2 de setembro de 1945, de uma parte significativa do povo vietnamita. O resultado foi a declaração de guerra feita pelo líder da Frente para a Independência do Vietname (Vietminh), Ho Chi Minh. A luta, que da fase de guerrilha evoluiu para um verdadeiro conflito convencional com o apoio logístico fornecido pela China após 1949 (tomada do poder por Mao Zedong), passou por várias fases, sempre com as dificuldades francesas a crescer (excepção ao ano de 1950 em que o comando de De Lattre fez a diferença), até à derrota total em Dien Bien Phu em Maio de 1954. A imprensa de esquerda, em todo o mundo, veiculou a mensagem do Vietminh, exaltando a sua luta pela “liberdade” e independência. Na própria França os jornais de esquerda (com particular destaque para o L’Humanité, orgão do PCF) estavam contra o esforço de guerra, pois reflectiam posições políticas decorrentes da “guerra fria”, então em pleno desenvolvimento. Tal facto acabou por condicionar as escolhas dos sucessivos governos franceses, frágeis, de curta duração e sem forma de estabelecer uma adequada política de informação pública, conduzindo-os à busca da batalha decisiva e final e contribuindo, de forma importante, para “empurrar” o General Henri Navarre (Cmdt-Chefe na altura) para o desastre de Dien Bien Phu21. A Argélia, cuja sublevação acontece um ano após a Conferência de Bandung, acabou por ser quase uma repetição da Indochina. Com algumas diferenças, muito importantes. Desde logo o sentimento em relação à terra – para muitos franceses, mesmo de esquerda, a Argélia era um prolongamento da França, um departamento como tantos outros da França metropolitana. Depois porque as forças armadas francesas, tendo aprendido com o desastre da Indochina, adaptaram-se quase na perfeição ao tipo de conflito da Argélia. Do ponto de vista exclusivamente militar, a guerra foi ganha pela França, o que faz com que a independência da Argélia ainda hoje seja vista, por alguns sectores da sociedade francesa, como um abandono puro e simples de populações e território. A informação pública, durante a Guerra da Argélia, reflectiu as divisões dilacerantes da sociedade francesa. Certa imprensa enaltecia o esforço dos militares, outra parte denegria constantemente as suas acções (o que levava muitos militares a considerarem-se traídos pelos seus compatriotas). O “ambiente mediático” 21

ROY, Jules ( ? ). A Batalha de Dien Bien Phu. 3ª ed., Lisboa: Bertrand.

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condicionava, obviamente, os políticos e os militares. Neste caso, a pressão teve como consequência a adopção do Plano Challe (do nome do Cmdt-Chefe da altura, general Maurice Challe), que foi decisivo para derrotar as forças da FLN (Frente de Libertação Nacional argelina). Os militares sentiram sempre, no entanto, que o seu esforço era em vão, era inglório, como aliás se veio a verificar. A “paz dos bravos”, negociada já com De Gaulle no poder, pôs fim ao conflito da Argélia e conduziu-a à sua independência22. (8) Guerra do Vietname A Guerra do Vietname é o primeiro conflito da História em que o público recebe imagens em directo, em bruto e comentadas de hora a hora. Este facto constituiu a entrada da guerra na mediatização a todo o custo, por força das características muito próprias do jornalismo televisivo e da sua necessidade de imediatismo e de imagens “espectaculares”. Foi possível constatar as relações recíprocas de causalidade existentes entre os fenómenos de “atolamento” mediático no terreno da opinião e de “atolamento” militar no terreno da guerrilha e da contra guerrilha. O poder e o impacto das imagens televisivas, desencadeando um vasto movimento de protesto anti-militarista e pacifista, fez com que passasse a haver a consciência, junto dos Órgãos de Comunicação Social e dos Estados-Maiores, do peso político dos primeiros e da sua influência sobre a liberdade de acção dos segundos. A partir de 1965, sob a presidência de Lyndon Johnson, os EUA vão entrar naquilo que se convencionou chamar de “escalada” do conflito. Os efectivos americanos no Vietname chegarão ao número impressionante de 550.000 homens. Embora seja quase um lugar comum afirmar que a opinião pública americana estava contra a intervenção no Vietname, tal facto só é verdadeiro após a escalada de 1965. A “escalada” militar americana de 1965 esbarrou imediatamente com um movimento de oposição pública organizado que, com o passar dos meses, cresceu desmesuradamente até se transformar num dos maiores movimentos na História da nação americana”23. A oposição crescerá ainda mais após a Ofensiva do Tet levada a cabo pelo Vietname do Norte em finais de Janeiro de 1968. Com efeito, é após este dramático acontecimento e a consequente demonstração da fragilidade americana, apesar dos efectivos impressionantes, que a opinião pública se começa a interrogar sobre os fundamentos e as razões da presença e do esforço americanos no Sudeste Asiático. E se isto foi verdade para a opinião pública também o foi para os decisores políticos e os jornalistas. As dúvidas sobre o modo como a intervenção 22

23

O sentimento dos militares franceses está bem expresso na carta do centurião Marcus Flavinius, apresentada em LARTÉGUY, Jean (1989). Os Centurões. 10ª ed., Lisboa: Bertrand. Este livro constitui uma expressão eloquente, embora ficcionada, do drama que atravessou a sociedade francesa durante os dois conflitos coloniais. HALL, Mitchell K. (2003). La Guerra del Vietnam. 1ª ed., Bologna: Il Mulino pag 75 e seguintes.

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estava a ser conduzida não pararam de surgir de todos os lados, inclusive da parte da “entourage” do Presidente Johnson que até aquele momento tinha estado de acordo no essencial – a vitória a todo o custo. Talvez a frase do célebre jornalista Walter Cronkite, aos microfones da CBS, resuma o estado de espírito após a ofensiva do Tet: “que diabo está sucedendo? Pensava que estivéssemos a ganhar esta guerra?24. A ofensiva do Tet, associada ao ataque a Khe Sanh, saldou-se por uma vitória táctica americana. A vantagem estratégica e política ficou nas mãos dos nortevietnamitas. O impacto desse momento constituiu o início do fim do envolvimento americano no Vietname, mas, tal como a lenta aproximação e retirada de um tufão asiático, a saída das ruínas iria demorar mais do que a tempestade (...). Militarmente, o Tet foi uma clara vitória americana; psicologicamente, foi o inverso25. A pressão da opinião pública tornou-se “insuportável”. Essa pressão reflectiu-se de forma decisiva na conduta da guerra quer ao nível político, quer nos níveis estratégico e operacional. A título de exemplo, refira-se que Johnson decidiu terminar com a operação “Rolling Thunder”26, circunscrevendo os bombardeamentos à região imediatamente a norte da zona desmilitarizada e anunciou a sua não recandidatura às eleições presidenciais de final de 1968. Foi decidido o fim da escalada militar e a progressiva “vietnamização” da guerra, bem como a abertura de negociações. A principal preocupação de Johnson dizia respeito à desagregação da frente interna27. A prazo foi decidido, já com Nixon no poder, o fim da presença militar dos EUA no Sudeste Asiático em geral e no Vietname em particular. A informação e a opinião públicas tinham influenciado, de forma decisiva, a condução e os resultados da Campanha Militar americana. (9) Campanhas de África (1961 – 1974) As campanhas que travámos em África durante treze anos podem ser enquadradas, por um lado no âmbito das consequências da Conferência de Bandung de 1955 e dos movimentos anti-coloniais que se lhe seguiram, por outro na guerra fria e nos conflitos por “procuração” que a caracterizaram. Portugal, vivendo num regime autoritário e que considerava os territórios ultramarinos como parte integrante da Pátria, reagiu e sustentou uma luta que acabou por desgastar o próprio regime e o levou, a prazo, à própria queda. 24 25 26

27

HALL, Mitchell K., op cit, pag 89. SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. De Saigão a Bagdade. 2ª ed., Lisboa: Gradiva, pag 28. Bombardeamento sistemático do Vietname do Norte que se tinha iniciado em 2 de março de 1965 conforme HALL, Mitchell K., op. cit. pag 38. HALL, Mitchell K., op cit pag 96.

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As forças armadas, qualquer que seja o ponto de vista político com que se observe o conflito, cumpriram de forma exemplar o seu papel de instrumento militar do estado. A forma como souberam adaptar-se ao ambiente operacional e à missão, a forma como inovaram, designadamente na utilização da acção psicológica e na “conquista das populações”, é hoje amplamente reconhecida. A opinião pública portuguesa evoluiu na maneira como encarou a guerra, à medida que o tempo passava. “Numa primeira fase a adesão à causa ultramarina foi sincera”28. O regime e os OCS è óbvio que contribuíram para isso. “A propaganda funcionou”29. Mas é indiscutível que a opinião pública apoiava a defesa do ultramar e considerava que dessa luta sairíamos vitoriosos. A partir de meados dos anos sessenta, com a extensão do conflito a Moçambique e à Guiné, e com uma “aceleração” bem marcada depois da morte política de Salazar em Setembro de 1968, a opinião pública muda a sua percepção do conflito. Os próprios militares começam a questionar a legitimidade da nossa presença em África. Estas mudanças de sentimento podem ser atribuídas a várias causas: a imprensa portuguesa, de uma forma geral, sentiu-se mais livre com a “primavera marcelista” e, embora continuando sujeita à censura, já não estava tão receptiva à propaganda; a imprensa estrangeira pressionava constantemente o governo português; os militares atingiram o ponto de saturação ao verificar que o “tempo que estavam a ganhar” não servia para o regime encontrar uma solução política. “Quando ocorre o golpe militar de 25 de Abril de 1974 ninguém sai à rua a defender as teses salazaristas/marcelistas sobre o ultramar”30. Poderemos afirmar que a informação e a opinião públicas durante a Guerra de África, não tendo influenciado directamente a conduta e o resultado das campanhas militares (a censura impedia-o), acabaram por ter um impacto não negligenciável na queda do regime, o que se traduziu no fim da missão ultramarina das forças armadas. (10) Guerra das Malvinas/Falklands O conflito pela posse das ilhas Malvinas/Falklands, entre a Inglaterra e a Argentina, tem vindo a arrastar-se desde meados do século XIX. O último desenvolvimento dramático ocorreu entre 2 de Abril (invasão argentina) e 14 de Junho de 1982 (data da rendição argentina às forças britânicas). A Argentina, governada naquele tempo por uma Junta Militar, encontrava-se no meio de uma crise económica e política gravíssima. A decisão de invadir as ilhas Malvinas/ Falklands é hoje em dia entendida como uma tentativa da Junta desviar a atenção da população dos referidos problemas internos. A intenção era obter um consenso 28

29 30

BALSEMÃO, Francisco, in IAEM (2000). Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). 1ª ed., S. Pedro do Estoril: Atena e Lisboa: IAEM, pag. 75. Idem. Ibidem, pag. 77.

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nacional em relação ao governo militar, em torno de um objectivo por todos assumido. A resposta da Inglaterra e do seu Governo, na altura chefiado por Margareth Thatcher, não se fez esperar. As forças britânicas reconquistaram as ilhas ao fim de cerca de 2 meses de combate. Na Argentina, a questão da posse das ilhas Malvinas/Falklands é absolutamente consensual. Por isso, a imprensa colocou-se sem hesitações ao lado da Junta na sua decisão de reconquistar as ilhas (a censura, que era permanente, neste caso nem seria necessária!). A opinião pública também. Foi possível ver enormes e sinceras manifestações de apoio a Galtieri (Presidente argentino) em frente da Casa Rosada em Buenos Aires31. Do lado inglês o consenso foi também alargado. A Sra. Thatcher obteve, na Câmara dos Comuns, uma votação esmagadora de apoio à reocupação das ilhas (33 votos contra, em 646!)32. Uma sondagem realizada pela London Weekend Television a 21 de Maio, data dos primeiros desembarques britânicos, “indicava que 76% era a favor da ofensiva”33. Os ingleses estabeleceram restrições de acesso ao teatro de operações por parte de jornalistas britânicos, impediram a presença de jornalistas estrangeiros e controlaram os artigos antes da sua publicação. Em nome da segurança e não como restrição á liberdade de opinar. A informação e a opinião públicas de ambos os contendores sustentaram o esforço de guerra e apoiaram as decisões dos respectivos governos. Não terá sido por falta de apoio popular e da imprensa que os argentinos se renderam. b. Elementos de Síntese Como se pode verificar foram analisados, de forma sucinta, os seguintes tipos de conflito: • 1 Guerra Imperial, típica do século XIX (Crimeia) • 2 Guerras Mundiais (I e II) • 1 Guerra pela posse de território disputado entre dois Estados (Falklands/ Malvinas) • 2 Guerras Civis (americana e espanhola) • 2 Conflitos de tipo colonial (Indochina/Argélia e África Portuguesa) • 1 Guerra Revolucionária com participação de grande Potência (Vietname) Do ponto de vista da importância assumida pela informação pública diria o seguinte: 31 32 33

DOBSON, C., MILLER, J. e PAYNE, R. (1982). Malvinas contra Falklands. 1ª ed., Lisboa: Europress, pag 12. Idem, pag. 112. Ibidem, pag. 112.

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• Nas guerras mundiais, no conflito das Malvinas e nas guerras civis, a informação e a opinião publicas de ambos os contendores tomaram parte, voluntariamente, no “esforço de guerra”; a informação pública nem sequer se esforçou por parecer objectiva: porque sentia que estava em causa a própria sobrevivência nacional (guerras mundiais); porque apoiava a disputa de território considerado “chão sagrado” e, portanto, não sujeito a discussão (Malvinas); ou porque o conflito, sendo interno e visando a conquista do poder, reflectia posições extremadas, e não “moldáveis”, de carácter político e económico; • Nos conflitos coloniais e na guerra revolucionária, a “conquista dos corações e das almas” assumiu um carácter determinante; as potências coloniais (nos casos da Indochina/Argélia e da África Portuguesa) e a grande potência interveniente (Vietname) foram percebidas, por uma parte muito significativa das opiniões públicas e da informação pública, como estando ilegitimamente presentes – porque o colonialismo era sentido como um fenómeno ultrapassado, ou porque a presença da grande potência era considerada uma ingerência imperial; nestes conflitos, marcados pela ideologia, sobressaíram as “referências aos quadros de valores” presentes na imprensa; • Na guerra do Vietname o aparecimento da televisão no “campo de batalha” assumiu uma importância fundamental. Sempre que esteve em causa a sobrevivência nacional, a posse de território considerado “sagrado” ou a luta fratricida, a informação pública reflectiu, sem discussão e com concordância quase total, o sentimento generalizado da “sua” opinião pública e as posições dos respectivos governos. Para ambas as partes em confronto a legitimidade da luta não oferecia discussão. A manobra “mediática” pelo apoio da opinião pública tornou-se desnecessária, por não haver “almas” ainda por conquistar; a contribuição da informação pública para a vitória ou derrota foi importante mas não terá sido determinante. Nas outras situações – coloniais e de “ingerência” – colocou-se às próprias informação e opinião públicas, e por maioria de razão às de países terceiros, a questão da legitimidade. A presença colonial e a ingerência foram apresentadas como ilegítimas por aqueles que a elas se opunham. As potências visadas não conseguiram convencer a informação e a opinião públicas do contrário, tendo o Tempo (favorável à lassidão) jogado sempre contra as potências coloniais e a grande potência “ingerente”. Nestes casos, a manobra mediática assumiu uma importância fundamental. A informação pública terá contribuído para o insucesso das campanhas militares de França, Portugal e EUA, neste último caso reforçada pelo aparecimento da televisão no campo de batalha. 94

4. Conclusões O impacto da Informação Pública no sucesso da campanha militar, no período em análise, resultou: (1) Da incapacidade dos jornalistas produzirem informação objectiva, pelas suas naturais limitações humanas e pelos “referenciais ideológicos” que os enformam, o que aliado ao facto de essa informação poder influenciar as Forças Morais, verdadeiro cimento aglutinador dos Povos, dos Exércitos e dos Governos, “obrigou” a um especial cuidado no tratamento dessa informação. A quebra no elo de ligação – as Forças Morais e a sua expressão mais eloquente, a Vontade – levou à derrota. O tempo, aliado da lassidão, concorreu para a diminuição daquela Vontade. (2) Da constatação de que existirá uma constante histórica: sempre que não estão em causa objectivos vitais ou intervenções percepcionados como justas, a tendência dos Media, das oposições políticas e da própria opinião pública será a de questionar a realização daquelas intervenções. (3) Da forma mais ou menos hábil com que as lideranças políticas e militares souberam lidar com a imprensa e da força das convicções com que enfrentaram as adversidades. (4) Esquematicamente, teremos:

Informação Pública

Questiona Legitimidade, Justiça, Tempo, Letalidade

Pode influenciar as Forças Morais-Vontade

Governo

Povo

Exércitos

derrota possível

derrota possível Derrota Possível

derrota possível

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Epílogo A Informação Pública, desde que existe, sempre influenciou de forma mais ou menos decisiva as Campanhas Militares. A sua influência é vertical (interfere nos níveis político, estratégico, operacional e táctico) e horizontal (revela-se sobre governos, povos, exércitos), pois actua directamente sobre a alma humana. A “tese” subjacente ao presente trabalho é a de que será essa influência sobre a alma humana, logo sobre as Forças Morais, que “traduzirá” o impacto da Informação Pública no sucesso da campanha militar. Os homens, quando combatem e arriscam a sua vida, apenas pedem o respeito e o apoio das populações que servem e dos OCS que as informam. Como dizia Napoleão: “Quatro gazetas fazem pior que 100.000 Soldados em campanha”.

Bibliografia Obras referenciadas no texto • BEAUFRE, André (1965). Introduction a la Stratégie. 3ª ed., Paris : Librairie Armand Colin. • CLAUSEWITZ, Carl Von (1976). Da Guerra. 1ª ed., Lisboa: Perspectivas e Realidades. • DEPARTMENT OF DEFENSE USA (2005) Joint Publication 3-61-Public Affairs Doctrine. Washington, DC: Department of Defense. • DOBSON, C., MILLER, J. e PAYNE, R. (1982). Malvinas contra Falklands. 1ª ed., Lisboa: Europress. • GILBERT, Martin (2000). La Grande Storia della Prima Guerra Mondiale. 1ª ed., Milano: Mondadori. • HALL, Mitchell K. (2003). La Guerra del Vietnam. 1ª ed., Bologna: Il Mulino. • IAEM (2000). Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). 1ª ed., S. Pedro do Estoril: Atena e Lisboa: IAEM. • LARTÉGUY, Jean (1989). Os Centuriões. 10ª ed., Lisboa: Bertrand. • MITCHELL, Reid (2003). La Guerra Civile Americana. 1ª ed., Bologna: Il Mulino. • MOREIRA, Adriano (coord) (2004). Informações e Segurança – Estudos em Honra do General Pedro Cardoso. 1ª ed., Lisboa: Prefácio. • PRESTON, Paul (1999). La Guerra Civile Spagnola. 1ª ed., Milano: Mondadori. • ROY, Jules ( ? ). A Batalha de Dien Bien Phu. 3ª ed., Lisboa: Bertrand. • SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. Da Crimeia a Dachau. 5ª ed., Lisboa: Gradiva. • SANTOS, José Rodrigues dos (2002). Crónicas de guerra. De Saigão a Bagdade. 2ª ed., Lisboa: Gradiva. • SUN ZI (1990). L’Art de La Guerre. 1ª ed., Paris : Economica. 96

A CAMPANHA DE 1805. AUSTERLITZ

Coronel Américo José Henriques

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A CAMPANHA DE 1805. AUSTERLITZ Coronel Américo José Henriques

Q

uartel General do Grande Exército em Posoritz, campo de batalha de Austerlitz, madrugada do 12 Frimário ano XIV (3 de Dezembro de 1805). Rodeado por todo o seu Estado-Maior e Comandantes dos diferentes Corpos de Exército, o Imperador Napoleão Bonaparte acaba de assinar, para ser lida de imediato às tropas, a proclamação mais famosa de toda a sua formidável carreira: “Soldats, je suis content de vous; vous avez, à la journée d’Austerlitz, justifié tout ce que j’attendais de votre intrepidité…..et il vous suffira de dire:J’étais à la bataille d’Austerlitz pour que l’on vous reponde: Voilà un brave!”….. ……Todos os acontecimentos políticos e militares que conduziram à batalha de Austerlitz, corolário da genial campanha de 1805, arrancam da assinatura do tratado de paz de Amiens e do desmoronar das esperanças nele depositadas não só pela França e Inglaterra, mas por toda a Europa de então. Assinado a 25 de Março de 1802 pelos representantes do Primeiro Cônsul, General Bonaparte, e do governo britânico de Sir Henry Addington, o tratado de Amiens vinha por fim a mais de dez anos de guerras permanentes, ao longo das quais as Monarquias mais tradicionalistas da Europa haviam tentado inutilmente jugular aquilo a que chamavam o “monstro revolucionário”, nascido em Paris naquele inesquecível 14 de Julho de 1789. Resultante das vitórias de Napoleão em Marengo e de Moreau em Hohenlinden, o tratado de Amiens, tal como a anterior Paz de Luneville, acabava assim por vir ao encontro da vontade dos povos europeus, fartos que estavam do terrível cortejo de destruição e morte que tinha acompanhado, em particular, a guerra da “segunda coligação”. Mais favorável à Republica Francesa do que à sua arqui-rival do outro lado da Mancha, o tratado de Amiens levantou entre os franceses uma tal onda de entusiasmo popular, um tal fervor de gratidão pela obra politica, social e militar até ali materializada no génio de Napoleão, que o governo da Republica, dando voz à esmagadora vontade da nação, elevava o Primeiro Cônsul à suprema magistratura do estado e atribuía-lhe o titulo de Cônsul Vitalício, com direito de hereditariedade. 99

Desagradável, senão humilhante, para a Inglaterra, o tratado de Amiens reconhecia à França a posse de todos os territórios conquistados na Europa, e obrigava a Inglaterra a devolver-lhe as colónias conquistadas durante a guerra, a entregar o território do Cabo da Boa Esperança à Holanda, e a devolver Malta à soberania da Ordem dos Cavaleiros Hospitalários. Vitória inquestionável da diplomacia francesa e reflexo da glória militar da Republica, Amiens aparecia como a paz duradoura por todos ambicionada, e no entanto…. ….. E no entanto o tratado fracassou de forma estrondosa, com queixas e culpas de parte a parte, mais ou menos verdadeiras, mais ou menos justificadas. Clamava a França que os ingleses não abandonavam Malta, não abrandavam as pressões comerciais, mantinham ao largo das costas francesas as suas poderosas Esquadras e, pecado dos pecados, apoiavam à descarada todas as intentonas e toda a propaganda dos emigrados realistas acolhidos à sua protecção, e permitiam a constante humilhação do Primeiro Cônsul pela imprensa britânica. Retorquiam os ingleses que a má fé de Napoleão era mais do que evidente, e para o provar apontavam as ocupações da Holanda, da Republica Cisalpina, de Génova, Elba e Piemonte, todas em operações executadas durante a elaboração do tratado. Alem disto, a expedição francesa a Santo Domingo, muito embora destinada a resgatar a ilha das mãos dos rebeldes de Toussaint l’Ouverture, tinha de ser vista como um sinal claro do reacender da rivalidade colonial e, com dados comprovativos bem à vista, a crescente actividade de espionagem nas costas e portos ingleses e irlandeses, era motivo bastante para considerar a segurança britânica em perigo iminente. E como se tudo isto não bastasse, a visita do Coronel Sebastiani às potencias do Mediterrâneo Oriental e a venda da Louisiana aos Estados Unidos por 80 milhões de francos, eram vistas pelo governo britânico como evidentes preliminares de uma situação de conflito. Assim, aqueles meses preciosos de Março de 1802 a Março de 1803, tempos inapreciáveis para a consolidação de uma paz tão ambicionada, foram gastos na luta diplomática e politica que sempre esconde o nascimento de um conflito, e foram, esta é a verdade histórica, aproveitados pelas grandes potencias europeias para a preparação, mais ou menos secreta, mais ou menos discreta, das suas máquinas militares. Em Março de 1803, pese embora as nuvens de fumo da diplomacia, tudo indicava que a guerra era inevitável, e assim, quando em 10 de Maio o governo Addington lançou um ultimato à França e a 16 de Maio uma fragata inglesa atacou um comboio comercial francês no canal da Mancha, ninguém no mundo da politica europeia de então ficou surpreendido. A guerra pelo poder na Europa e no mundo, a grande guerra imperial do século XIX, a guerra que só iria acabar na “morne plaine” de Waterloo, acabava de começar. A partir de 16 de Maio de 1803, data da declaração de guerra da França à Inglaterra, os acontecimentos políticos e militares no continente europeu 100

precipitaram-se em catadupa. Assim, do lado francês, Napoleão considerou que uma guerra puramente naval contra o seu inabalável inimigo, dado o estado lastimoso da Marinha de Guerra francesa, a grande vitima militar do passado terror revolucionário, apenas podia conduzir ao desastre. No entanto, a enorme superioridade do Exército saído das guerras da Revolução, se devidamente acompanhada por uma manobra de estratégia naval audaz e competentemente dirigida, tinha, no seu entender, a capacidade de permitir uma invasão vitoriosa da Inglaterra, com o consequente ditar de uma paz definitiva que garantisse à França uma posição dominante sobre a Europa e, certamente, sobre o mundo. Do lado britânico, onde William Pitt iria regressar à chefia do governo, a situação criada pela ruptura da Paz de Amiens levara uma vez mais o poder politico a encarar os problemas inerentes à fraqueza do Exército e, como sempre, a garantir a segurança do território insular com a força extraordinária da sua Marinha, aliada à enorme capacidade económica dos comerciantes da City. Analisando mais em detalhe o pensamento estratégico das duas grandes potencias em conflito, vemos que, do lado da França e sob um ponto de vista global, o isolamento da Inglaterra era capital, não só para permitir uma invasão bem sucedida, mas também para lhe negar a possibilidade do habitual recurso ao arregimentar de aliados para levantar coligações. Assim, a diplomacia francesa, superiormente dirigida por Talleyrand, procurou desde o inicio garantir a neutralidade da Rússia e da Prússia, já que quanto à Áustria, e dadas as violações da Paz de Luneville por parte da França, as coisas pareciam de difícil solução. No que respeita à Rússia, a sua tão desejada neutralidade viu-se comprometida de má maneira pela antipatia que o Czar Alexandre I, ao contrário do seu pai, sempre sentiu pela França, antipatia agravada pela ambição francesa sobre os estados alemães e, muito especialmente, pela alarmante aproximação tentada por Talleyrand face à Turquia. Quanto à Prússia, a sua neutralidade parecia à partida garantida pela concessão do Hanover, recentemente ocupado pelos franceses. No campo das alianças, a França contava com a Espanha e, alem desta, com Baden, Baviera e Wurtenberg, os pequenos estados alemães que estavam na origem da antipatia do governo de São Petersburgo…. Sob um ponto de vista militar, podemos resumir o planeamento da invasão de Inglaterra ao lançamento de uma grande operação anfíbia a realizar nas costas de Kent, operação essa que seria protegida pelo isolamento do canal da Mancha, durante um período mínimo de 48 horas, por parte da Esquadra Francesa. Para garantir este isolamento, Napoleão concebeu uma manobra que levaria a Esquadra do Mediterrâneo, forte de 11 navios de linha comandados pelo Almirante LatoucheTreville, a zarpar de Toulon para Oriente (enganando Nelson e a Esquadra Inglesa que bloqueava aquele porto), fazendo-se depois de vela para o estreito de Gibraltar, juntar de seguida no Atlântico a Esquadra Espanhola do Almirante Gravina e, enquanto o Almirante Ganteaume forçava o bloqueio de Brest para “amarrar” a 101

Esquadra do Almirante Cornwallis, navegar para o canal da Mancha e garantir o seu isolamento durante 48 horas. Então, e a coberto deste isolamento, o “Exército de Inglaterra”, forte de 160 mil homens comandados por Napoleão, deixaria os seus estacionamentos em Etaples, Boulogne, Vimereux, Ambleteuse, Calais, Dunkerque e Ostende e, embarcando em mais de duas mil embarcações de todos os tipos, rumaria à costa inglesa e à vitória. Porém….porém uma Esquadra não se comanda como um Exército, e muito menos naquele tempo da navegação de vela e, para piorar ainda mais as coisas, o Almirante Latouche-Treville morreu da febre contraída em Santo Domingo, e para o substituir, Decrés, então Ministro da Marinha, indicou o infeliz Almirante Villeneuve. O destino da Esquadra Francesa e o desastre de Trafalgar estavam traçados. E sob um ponto de vista politico, depois de atentados frustrados, conjuras desmontadas, plebiscitos esmagadores e desesperadas lutas de interesses, em 2 de Dezembro de 1804, na Catedral de Notre Dame de Paris e em presença do Papa Pio VII, Napoleão Bonaparte coroava-se a si próprio como “Imperador eleito pela vontade da Nação”. Analisando agora o comportamento estratégico de William Pitt, começamos por admirar a sua determinação, a sua frieza e, acima de tudo, a sua preocupação permanente em afastar o conflito das costas do seu país. Regressado ao poder em Maio de 1804, Pitt encontrou uma Inglaterra extremamente preocupada com toda a actividade militar francesa nos acampamentos de Boulogne, e (mal endémico na sua História….) ciente da fraqueza do seu Exército para se opor a uma invasão. Assim, a sua atenção virou-se de imediato para a segurança que as Esquadras podiam garantir ao território insular, e procurou garantir que a guerra iria ter lugar no continente europeu e, acima de tudo, levada a cabo pelas potências continentais. No entanto, e considerada a hipótese de um fracasso diplomático, Pitt organizou de forma magistral a defesa do território inglês e das suas costas com base no pequeno Exército Permanente, mas, muito especialmente, à custa do levantamento de um sistema de tropas territoriais, judiciosamente dispostas na costa e na profundidade do território. Este sistema de tropas estava destinado a apoiar de imediato as forças militares permanentes dispostas defensivamente nos pontos da costa mais facilmente abordáveis por um desembarque, mas estava igualmente preparado para passar à “guerrilha” no caso de um muito possível fracasso da estrutura defensiva mais avançada. Porém, o esforço principal de toda a defesa recaía sobre o Exército que estava a ser preparado e instruído nos campos de manobras de Shornecliffe sob o comando competentíssimo de Sir John Moore. Com este General ombreavam na liderança das forças regulares soldados que, tempos depois, iriam entrar na lenda: Stuart, Hill, Crawford, Dundas. Entrincheirados em Dover, Chatham, Chelmsford, cobertas as costas por baterias de artilharia e obras defensivas, 100 mil homens das tropas permanentes, o chamado Regular Army, e mais de 80 mil milicianos, esperavam, naqueles meses de 1803 e 1804, a chegada do Exército de 102

Invasão. Enquanto isto, no mar sempre dominado pelas suas Esquadras, as forças navais britânicas de Nelson, Calder, Collingwood, Campbell, Cornwallis e Keeth, bloqueavam e patrulhavam Brest, Toulon, Rochefort, Cádiz. E alimentando todo este sistema, no campo das informações e espionagem, uma rede de agentes actuava em França e nas cortes onde a diplomacia francesa tinha mais peso. Curiosamente, um destes agentes, famoso pela correspondência deixada para a posteridade sob o nome de código de “L’ Ami de l’ Angleterre” (nunca se veio a saber quem era….), reportava para Londres desde os gabinetes das Tullerias, de Saint Cloud e do Luxemburgo!!! Sabendo do poder do inimigo, e recorrendo a todos os processos para o anular, o governo britânico também ajudou “certas” acções “secretas”… …. Falésias de Biville na Normandia, 20 de Agosto de 1803. De bordo do navio inglês “El Vencejo” desembarca em França o primeiro grupo de emigrados realistas com a missão específica de “neutralizar” o Primeiro Cônsul. Arregimentando pouco tempo depois homens da coragem temerária de Coster de Saint-Victor, Armand e Jules de Polignac, do marquês de Riviere e, acima de todos, de George Cadoudal, estes intrépidos e idealistas monárquicos, veteranos da “chouanerie” vendeana e prontos a jogar a vida pela causa dos Bourbons, constituíram, juntamente com os Generais Pichegrou, Dumouriez e Moreau, o núcleo duro de uma conspiração que iria conduzir não só à sua perda mas, em 21 de Março de 1804, ao fuzilamento do Duque d’Enghien (totalmente alheio à conspiração) e ao imediato desatar, contra Napoleão, do ódio implacável das Monarquias europeias. E se é permitida uma “nota de rodapé” sobre este assunto, convém dizer que nem o Conde de Artois, nem o Duque de Berry, e muito menos ainda o futuro Luís XVIII, mereceram o heróico sacrifício dos homens da falésia de Biville…. Porém, o trágico fuzilamento do Duque d’Enghien, teve como consequência imediata a materialização do sonho de William Pitt, objectivo estratégico de toda a sua actividade diplomática, e sorvedouro inevitável de mais de um milhão de libras anuais: A formação da “terceira coligação” contra a França. Obra prima do tacto diplomático e do poder do dinheiro inglês, a “terceira coligação” teve as suas raízes mergulhadas na chamada “Liga da Neutralidade Armada”, organização que, juntamente com a Paz de Luneville, sucedeu, em Fevereiro de 1801, à derrota da “segunda coligação”. Envolvendo a Prússia, a Rússia, a Dinamarca e a Suécia esta Liga teve curta duração, pois não viveu para além de 1801 e terminou com o assassinato do Czar Paulo I e a vitória de Nelson em Copenhaga. Porém, o medo dos avanços territoriais e ideológicos da Republica Francesa e o interesse comum de russos e suecos nos assuntos do Báltico, ligou estas Coroas aos interesses da Áustria e de Nápoles, também elas objecto da força militar de Napoleão, e das perdas territoriais ditadas pela vitória francesa de Marengo. Ciente da necessidade de pressionar a França desde Leste para a obrigar a abandonar os projectos de invasão da Inglaterra, Pitt constituiu, em Maio de 1804, 103

a “Liga Europeia para a restauração da paz e do equilíbrio de poder”, organização que ao envolver a Áustria, a Rússia, a Suécia, Nápoles e a Inglaterra (e muito embora sem um carácter de aliança militar), constituía uma evidente ameaça contra a França. Foi pouco depois da morte do Duque d’Enghien que, em Maio de 1804, o senado francês ofereceu a Napoleão a coroa imperial, coroa que, votada em esmagador plebiscito, deu a Napoleão o título de Imperador em 2 de Dezembro de 1804. Conhecendo a vaga de revolta que o fuzilamento de d’Enghien tinha levantado nas cortes europeias, Pitt encontrou-se em 19 de Janeiro de 1805 com o embaixador russo em Londres e propôs-lhe a formação de uma aliança militar contra a França, a troco de um papel preponderante de São Petersburgo na futura politica europeia. Já ligada à Áustria pela “Liga”, a Rússia procurou alargar a nascente aliança à corte de Viena, o que foi facilitado pela coroação de Napoleão como Rei de Itália em Janeiro de 1805. Inimigo irreconciliável da França, o Rei da Suécia assinou, em Janeiro de 1805, uma aliança militar com a Rússia, tendo como objecto a resistência à ambição francesa na Alemanha e o equilíbrio de poder na Europa, curiosamente o “cavalo de batalha” da manobra diplomática de William Pitt. Assim nascia a “terceira coligação”, aliança que, prontamente alargada à Áustria e a Nápoles (e com o acordo da Turquia) obrigava à mobilização de 180 mil russos, 315 mil austríacos e 12 mil suecos, que, pagos por Londres pelo subsidio anual de 1.250.000 libras, deviam marchar contra a França. Quanto à Prússia, muito embora a sua antipatia relativamente à França fosse notória, a verdade é que a perspectiva da posse de Hanover sem disparar um tiro levava-a, por enquanto, a manter um estado de “neutralidade oscilante” que, se por um lado irritava as potencias aliadas, por outro convinha perfeitamente aos planos de Napoleão. Entrava o mês de Agosto de 1805 quando, ciente das exigências e animosidade da Áustria, a par da agressiva atitude russa, Napoleão começou a alimentar a ideia de matar à nascença o perigo que uma invasão de mais de 500 mil homens representava para a vida do Império. Sem dúvida que é deste rolar de acontecimentos que data o planeamento da imortal campanha de 1805, por muitos autores chamada “campanha da Alemanha”, mas não podemos esquecer o papel fundamental que as Marinhas Francesa e Inglesa tiveram igualmente na decisão do Imperador. Efectivamente, desde Janeiro de 1805 que o Contra-Almirante Villeneuve, sucessor de Latouche-Treville no comando da Esquadra do Mediterrâneo e agora encarregado de levar por diante a empresa de isolamento do canal da Mancha, tentava romper o bloqueio a Toulon e sair para o Atlântico. Como parte da sua missão para atrair os ingleses, Villeneuve devia juntar os seus navios com os do Contra-Almirante Missiessy ao largo das Antilhas e depois navegar rapidamente para a Mancha. Porém os franceses falharam o seu objectivo, como o voltariam a falhar mesmo depois de Villeneuve, reforçado pela Esquadra Espanhola de Frederico Gravina, ter conseguido chegar a Martinica. Constantemente receoso de enfrentar 104

os navios ingleses que o seguiam, especialmente quando Nelson lhe aparecia no caminho, o melhor que Villeneuve conseguiu foi chegar até ao cabo Finisterra, travar uma escaramuça com um pequeno esquadrão inglês comandado por Calder, retirar para Vigo e, abandonando o projecto de isolamento da Mancha, regressar a Cadiz onde Nelson o bloqueou. Confrontado com o fracasso do seu sonho naval, e com a Esquadra de Gantheaume bloqueada em Brest, o Imperador abandonou a ideia de invadir a Inglaterra, e lançou-se rapidamente para a fronteira do Reno. Sem dúvida que o resultado desta primeira fase da guerra tinha sido favorável a William Pitt e à sua estratégia, mas era agora que o génio de Napoleão, inigualável no combate em terra, ia ditar a sua lei. Animados, melhor seria dizer “fanatizados”, pelas grandiosas cerimónias da entrega das medalhas da “Legião de Honra” em Boulogne, e das “Águias” às diferentes unidades no Campo de Marte em Paris, cerimónias que tiveram lugar entre 16 e 18 de Agosto de 1805, os soldados do “Exército de Inglaterra”, a partir de então chamado de “Grande Exército”, receberam ordem para marchar para Leste. Reunidos naquele que muitos autores consideram o mais perfeito aparelho militar da História, os soldados do “Grande Exército”, numa força total de 188 mil homens, estavam organizados em sete Corpos de Exército, Guarda Imperial, e Reserva de Cavalaria e Artilharia a Cavalo. Para os comandar, elevados agora ao título de Marechal de França, estavam alguns dos nomes que a memória dos homens fez entrar no imaginário da lenda: 1º Corpo, Bernardotte; 2º Corpo, Marmont; 3º Corpo, Davout; 4º Corpo, Soult; 5º Corpo Lannes; 6º Corpo Ney; 7º Corpo, Augereau; Guarda Imperial, Bessieres; e Reserva de Cavalaria, Murat. Debruçado sobre os mapas da Alemanha desde o dia 5 de Agosto de 1805, o Imperador ditou a Daru, Intendente Geral do Grande Exército, todo o plano para levar as suas tropas de Boulogne na costa de Calais até à margem esquerda do Reno. E fê-lo a coberto do maior segredo, sem que lhe faltasse incluir o mais pequeno pormenor, quer em datas e unidades, quer em itinerários e áreas logísticas. De uma actividade diplomática febril, em 22 de Agosto renovou a oferta de Hanover à Prússia para lhe garantir a neutralidade, assinando depois alianças com Wurtenberg e Baviera. A Berthier, seu Chefe de Estado-Maior, revelou que era sua intenção ganhar vinte dias aos movimentos do Exército Austríaco para, marchando sobre o Danúbio, vencê-lo separado dos russos. Para garantir a segurança estratégica do corpo principal do seu Exército, enviou Massena, antes do fim de Agosto para Itália, e já em Setembro, Gouvion Saint-Cyr contra os napolitanos, uma vez que estes tinham aderido à coligação no dia 10 daquele mês. E tudo isto feito com uma precisão matemática, alternando o ditar das ordens, com o ditar de cartas para outros destinatários e sobre os mais diversos assuntos. Absolutamente fantástico! Quanto aos aliados, os seus planeamentos apontavam para uma marcha do Exército Austríaco do General Mack sobre o Danúbio, abrindo o caminho para a sua junção aos Exércitos Austro-Russos concentrados na Galicia, criando assim 105

uma massa de decisão capaz de levar de vencida a linha do Reno. Suportando este ataque principal, o Arquiduque Carlos devia cair sobre a Itália do Norte, enquanto que napolitanos, russos e ingleses marchariam ao seu encontro apoiados nos Apeninos, e suecos e russos atacariam na Pomerania…. Aproximava-se o fim de Agosto, e as unidades do Grande Exército começaram os seus movimentos naquela que passou à História com o nome de “Manobra de Augsburgo”. Os Corpos de Exercito de Bernardotte e de Marmont, 1º e 2º, tinham como base de partida o Hanover e a Holanda. Bernardotte concentrou as suas Divisões (17 mil homens) em Goettingen e daí, a 6 de Setembro, marchou para Sul direito a Wurzburg, onde chegou a 27 de Setembro. Reforçado por 20 mil bávaros, o 1º Corpo de Exército marchou então para Weissenburg. Porém, como naquela altura os austríacos de Mack já se encontrassem concentrados em Ulm, Memmingen e Stockach, era imperioso para a manutenção da rapidez do movimento sobre o Danúbio (para impedir uma possível junção de austríacos e russos), que Bernardotte cruzasse o território de Anspach, violando assim a neutralidade prussiana. Isto feito, já nada podia travar a entrada da Prússia na coligação, o que sucedeu em 3 de Novembro, quando, em Potsdam e junto do túmulo de Frederico o Grande, Frederico Guilherme, Alexandre I e a rainha Luísa da Prússia (no dizer de Napoleão, o único homem da família!), assinaram essa mesma adesão. Obrigava-se a Prússia a actuar contra as comunicações do Grande Exército além Reno, mas reservava-se o direito de só entrar em operações com os seus 100 mil homens na segunda semana de Dezembro de 1805. Assim, a Napoleão urgia andar mais depressa, cada vez mais depressa. Em 2 de Setembro de 1805, um correio imperial chegou a galope ao QuartelGeneral do 2º Corpo de Exército em Zeist, na Holanda, com as ordens de marcha para Marmont. Partindo dos seus estacionamentos no mesmo dia 2, os 24 mil homens do 2º Corpo de Exército marcharam para Mayence apoiados na margem esquerda do Reno e daí para Francforte e Wurzburg, onde chegaram a 1 de Outubro. Juntamente com as tropas do Eleitor da Baviera marcharam então para Munique e, uma vez ali chegados, a segurança estratégica do flanco Sul da “Manobra de Augsburgo” estava garantida. A marcha do centro do Grande Exército para o Reno começou em 27 de Agosto de 1805, quando a Divisão de Couraceiros de Nansouty, pertencente à Reserva de Cavalaria de Murat, iniciou o movimento do escalão de reconhecimento. Partindo de Ambleteuse a 2 de Setembro, o 3º Corpo (de Davout) seguiu por Cassel, Namour e Mannheim, onde chegou a 25 de Setembro. A 29 de Agosto saiu de Boulogne o 4º Corpo (de Soult) que por Douai, Cambrai, Sedan e Metz, alcançou Spires em 25 de Setembro. O 5º Corpo (de Lannes) deixou Vimereux a 30 de Agosto, e por Estrasburgo chegou a Metz em 24 de Setembro. Saindo de Etaples a 28 de Agosto, o 6º Corpo (de Ney) avançou a marchas forçadas por Peronne, La Fere, Nancy, e chegou a Hagenau a 25 de Setembro. A 22 de Setembro, a Guarda Imperial já tinha 106

montado o Grande Quartel-General em Estrasburgo, enquanto que a Reserva de Cavalaria de Murat, desde 16 de Setembro que ocupava as saídas da Floresta Negra em Pirmasens, Schlettstadt, Molsheim e Obernheim. Quanto aos 14 mil homens do 7º Corpo (de Augereau), a sua missão era cobrir o flanco direito do Grande Exército, da Floresta Negra aos Alpes Tiroleses. Vivendo do campo e recebendo todo o apoio das populações francesas que os vitoriavam, os soldados do Grande Exército conseguiram fazer uma marcha formidável da costa até ao Reno, e em tempo tão reduzido, que quando as suas colunas se preparavam para atravessar o rio ainda os Exércitos Aliados estavam na Morávia, concentrados em Olmutz, com o Exército de Mack isolado na região de Ulm. Enquanto Napoleão lançava a sua ofensiva sobre a Alemanha, os aliados debatiam-se com os profundos desentendimentos que, desde o começo das operações, marcaram todo o relacionamento entre eles. Assim, os austríacos, por decisão do Conselho Aulico, tomaram como Teatro Principal de Operações a Itália, e para aí mandaram o Arquiduque Carlos com um Exército de 95 mil homens (a quem os franceses opunham os 50 mil do 8º Corpo de Exército de Massena). Defendendo o Tirol, estavam os 23 mil homens do Arquiduque João, que eram igualmente o elemento de ligação entre o Arquiduque Carlos e o Arquiduque Fernando que, nominalmente, comandava os 58 mil homens que Mack concentrara na região de Ulm. Quanto a esta ultima força, a sua missão envolvia a defesa das saídas da Floresta Negra e a cobertura do avanço dos Exércitos Russos de Kutusov e Benningsen. Uma vez feita a junção dos austro-russos em Ulm, o Comando Supremo Aliado passaria para o Imperador Francisco da Áustria, e o Exército Austro-Russo avançaria, pela Floresta Negra, Suábia e Francónia, sobre Estrasburgo. De acordo com o comprometimento do Czar, Kutusov, com 35 mil homens, devia chegar à Baviera antes de 20 de Outubro, imediatamente seguido dos 40 mil homens de Buxhowden, enquanto que o Exército de Bennigsen, forte de 20 mil homens, operaria desde essa data na Boémia e na Francónia. Mas o Estado-Maior Aliado esqueceu-se que os russos ainda usavam o calendário Juliano, o que lhes marcava a junção para dez dias depois da data prevista pelo calendário gregorian. O plano de Napoleão para ganhar uma vitória decisiva sobre os aliados era muito simples. A coberto de uma série de fintas nas saídas da Floresta Negra a cargo da Cavalaria de Murat, o Grande Exército tornearia Ulm pelo Norte a partir do Reno (e direito ao Danúbio em Donauworth e Neuburgo), atacaria os austríacos concentrados em Ulm (e com a retirada cortada), avançando depois contra os russos para os vencer numa batalha decisiva. Garantindo a segurança estratégica da manobra no Teatro Alemão, Massena “agarrava” o Arquiduque Carlos na Itália, Gouvion Saint-Cyr impedia o desembarque aliado em Nápoles, e Brune ficava a defender Boulogne de um possível ataque inglês. E o que mais impressiona quem estuda esta campanha… é que foi precisamente isto o que sucedeu! 107

A passagem do Reno pelo Grande Exército começou ainda em 25 de Setembro, quando o 5º Corpo de Lannes avançou de Estrasburgo para Freudenstadt, através da Floresta Negra. Com Mack “hipnotizado” pelas fintas de Murat nas saídas da Floresta Negra, a 3 de Outubro as testas dos Corpos de Exército ocupavam a linha Estugarda-Ansbach, com Lannes e Ney em Estugarda. Marchando entre 12 e 40 quilómetros por dia, as tropas (com a guerra a alimentar a guerra, sobrevivendo à custa de batatas, cebolas, e do pouco mais que apanhavam, e sofrendo um tempo que piorava a olhos vistos), conseguiram o feito memorável de, em 15 de Outubro, terem o 6º Corpo a fechar Ulm pelo Norte; os 2º, 4º e 5º Corpos, concentrados entre os rios Iller e Lech, bloqueando Ulm por Sudeste e pela linha do Danúbio; o 1º e o 3º Corpos na linha do Isar para, eventualmente, parar os russos; e o Grande QuartelGeneral em Augsburgo. Porém, desde 8 de Outubro que estas mesmas tropas, como se mais não tivessem feito do que um agradável passeio pelo campo, combatiam contra as forças austríacas de Ulm que, sentindo-se apanhadas numa armadilha mortal, se batiam com a coragem do desespero. Primeiro foi Dupont que se cobriu de glória em Wertingen, na margem Norte do Danúbio, quando a sua Divisão enfrentou uma força de 25 mil austríacos. Depois, em 14 de Outubro, foi a vez de Ney ganhar o sangrento combate da ponte de Elchingen, vitória que lhe iria valer o título de Duque, e que abria definitivamente a possibilidade de cercar Ulm. E tão certa era essa possibilidade que, na noite de 14 para 15 de Outubro, o Arquiduque Fernando abandonou Ulm com 6 mil cavaleiros, tão prontamente perseguidos por Murat, (numa das acções de cavalaria mais brilhantes da sua carreira), que deles só 11 esquadrões conseguiram a junção com Werneck (em Heidenheim). Nessa acção, concluída com as vitórias de Trochtelfingten e Neustadt, conseguiu Murat a rendição de 12 mil austríacos e uma fama imortal. As cargas de Murat, chamadas então de “tempestade cavaleira”, juntamente com a vitória de Ney em Michelsberg, levaram à inevitável rendição de Mack em 20 de Outubro de 1805. Na manhã de 21 de Outubro, 25 mil infantes e 2 mil cavaleiros do Exército Austríaco do General Karl Mack von Leiberich, depunham as armas perante o Grande Exército formado em parada nas encostas do Michelsberg. Chegara ao fim a “Manobra de Augsburgo”. Austerlitz ia agora começar. Aquela mesma hora e naquele mesmo dia, a milhares de quilómetros de distancia e ao largo de um cabo da costa atlântica espanhola, a Esquadra Inglesa de Lorde Horatio Nelson acabava igualmente de ganhar aquela que foi, por tudo o que consigo originou, a verdadeira batalha decisiva das “Guerras da Revolução e do Império”: A batalha de Trafalgar. Absolutamente ciente de que uma paragem prolongada do Grande Exército no Danúbio, em expectativa estratégica, ou uma retirada para a linha do Reno em manobra defensiva, abriria aos aliados a possibilidade de concentrar na Baviera e no Palatinado mais de 120 mil austríacos e 100 mil russos, e que essa concentração levaria à imediata adesão da Prússia à coligação, Napoleão decidiu avançar o 108

mais rapidamente possível contra os russos de Kutusov, por forma a impedir a sua junção com o Exército que o Czar concentrava na Morávia. Sabendo que Kutusov se encontrava em Braunau, no rio Inn, desde 20 de Outubro, Napoleão ordenou ao Grande Exército que marchasse de Augsburgo para Munique no dia 21 e, com os flancos cobertos pelo 6º Corpo de Ney no Tirol, e pelo 1º Corpo de Bernardotte sobre Salzburgo, avançou a marchas forçadas, e entrou com o grosso das suas tropas em Braunau no dia 29 de Outubro. Procurava o Imperador forçar Kutusov a aceitar batalha, mas o Marechal russo, considerando muito bem que os seus 40 mil homens não podiam aguentar no Inn até à chegada do Exército de Buxhowden (então ainda em Olmutz), resolveu retirar por Krems para Norte do Danúbio e, coberto por uma poderosa guarda de retaguarda de 15 mil homens comandados por Bagration, internar-se na Morávia ao encontro de Buxhowden e do Czar. Com Ney no Tirol, Augereau em Ulm e o 2º Corpo de Marmont em Leoben, o Grande Exército avançou para Viena e, a 5 de Novembro, a sua força de cobertura, comandada por Murat, repeliu Bagration no combate de Amstetten. Sempre na busca de “agarrar” Kutusov, o Imperador mudou o seu Quartel-General para Linz e aí, com três Divisões tiradas aos Corpos de Ney, Lannes e Marmont, formou um novo Corpo de Exército comandado por Mortier. E foram os dragões de Klein, a cavalaria deste novo Corpo, que no dia 11 de Novembro iniciaram o combate de Durrenstein, contra os russos de Miloradovitch e Doctorov. Foi depois deste combate, indeciso tacticamente mas de grande importância para a acção retardadora planeada por Kutusov e Bagration, que os russos evacuaram a margem direita do Danúbio e deixaram desguarnecida a estrada para Viena. Com Viena considerada “cidade aberta”, o Imperador entrou na capital austríaca em 13 de Novembro, depois de Murat e Lannes, com tropas do 5º Corpo (os famosos granadeiros de Oudinot) e da Reserva de Cavalaria terem, num audacioso “golpe de mão”, garantido a posse da ponte de Tabor sobre o Danúbio. No seu Quartel-General estabelecido no palácio imperial de Schonbrunn, Napoleão recebeu no dia 14 a notícia de que Massena, no dia 30 de Outubro, tinha repelido o Arquiduque Carlos no Adige (na “segunda batalha de Caldiero”), obrigando-o a retirar, através da Venécia e do Frioul, para os Estados Hereditários dos Habsbourgos. Tendo agora o seu flanco estratégico Sul seguro durante algum tempo, o Imperador marchou então o Grande Exército para Norte do Danúbio. Deixando a Davout a ligação com o 2º Corpo de Marmont, e a Mortier a guarnição de Viena (e a guarda dos seus depósitos e paióis), Napoleão mandou avançar para a Morávia, pela estrada de Znaim, os Corpos de Soult, e Lannes, mantendo-se em Viena com toda a Guarda Imperial. Seguindo as forças de cobertura de Murat, no dia 15 de Novembro os franceses apanhavam finalmente Kutusov em Hollabrunn, e estabeleciam contacto com a sua guarda de retaguarda. O combate de Hollabrunn, que envolveu os couraceiros franceses de Hautpoul e Nansouty, mais os dragões de Walther e os granadeiros de Oudinot, contra os hussardos austríacos e os cossacos 109

de Nostitz (cobrindo as unidades ligeiras de Kiew, Azoff e Podolia, para além dos fuzileiros de Narva e Novgorod), foi “tempo perdido” para Napoleão, já que Kutusov, uma velha raposa da arte da finta e da decepção, aproveitou brilhantemente as horas gastas no vai e vem das mensagens para uma possível capitulação, e escapou com os seus 40 mil homens para Brunn e Olmutz, iludindo Murat, e arranjando a este Marechal uma séria reprimenda do Imperador. Furioso por ter sido enganado em Hollabrunn, Napoleão saiu de Viena em 17 de Novembro e, seguido da Guarda a marchas forçadas pela estrada de Znaim, entrou em Brunn (capital da Morávia) no dia 20, aí estabelecendo o seu Quartel-General. Preocupado com a situação politica aberta pela adesão da Prússia à coligação e pela vitória de Nelson em Trafalgar (…onde a Inglaterra ganhou uma batalha mas perdeu um homem…), o Imperador enviou reconhecimentos em todas as direcções e, em 22 de Novembro, já estava ciente da força e posição do inimigo. De acordo com os relatórios chegados a Brunn, os austro-russos, nominalmente comandados pelos Imperadores Alexandre e Francisco, mas tendo como Comandante de campo o Marechal russo Mikail Iladorich Golenichev Kutusov, estavam concentrados em Olmutz, 50 quilómetros a Norte de Brunn, numa força de cerca de 90 mil homens. Tendo como Chefe de Estado-Maior o General austríaco Weyrother, este enorme Exército Aliado reunia os Corpos Russos de Bagration (13 mil homens), Przebyswskyi (10 mil homens), Langeron (11, 700 homens) e Doctorov (8. 500 homens), mais o Austríaco de Kollowrath (23. 900 homens), para além das Cavalarias de Lichtenstein (4.600 homens) e Kienmayer (5.100 homens), e da Guarda Imperial Russa do Grão-Duque Constantino (8.500 homens). Para Noroeste de Brunn, e a cerca de 140 quilómetros desta cidade, concentravam-se em Praga os 9 mil homens do Arquiduque Fernando, enquanto que muito longe para Sul de Brunn, a mais de 200 quilómetros de distancia e vigiados por Ney e Marmont, estavam os 80 mil homens do Arquiduque Carlos, desviados do Teatro Principal por um erro histórico do Conselho Aulico. Fruto do Tratado de Potsdam, 100 mil prussianos estavam-se a concentrar na Saxónia, mas tudo indicava que só poderiam entrar em operações na segunda semana de Dezembro. Perante este quadro estratégico, impunha-se a Napoleão obrigar os aliados a travar batalha, e que essa batalha tivesse lugar o mais rapidamente possível … e fosse uma vitória esmagadora e decisiva. Assim, e como base da manobra que o seu génio começava a desenhar, o Imperador concentrou em Brunn o 5º Corpo de Lannes (12.700 homens) e os 5.500 homens da sua Guarda Imperial (comandada por Bessiéres). Chamou de Viena o 3º Corpo de Davout (10.500 homens) e deixando Mortier a guarnecer a capital austríaca, concentrou o 1º Corpo de Bernardotte (19 mil homens Chegados de Iglau) em Znaim, e enviou os 5 mil homens da Reserva de Cavalaria de Murat, como força de cobertura, entre Brunn e Olmutz. Para um castelo e uma pequena vilória, a menos de 15 quilómetros a Leste de Brunn, Napoleão destacou os 24 mil homens do 4º Corpo de Soult. Chamava-se essa vilória, Austerlitz. 110

Quem vai pela estrada de Brunn para Olmutz, percorre um terreno de suave compartimentação transversal, limitado pelos rios Schwartzawa (que atravessa Brunn) e Morawa (que atravessa Olmutz). Quebrando a monotonia do terreno, a cerca de 10 quilómetros de Brunn, aparece uma pequena linha de alturas correndo no sentido Norte-Sul, de onde se destacam (a Norte da estrada) o mamelão de Bosevitz, chamado pelos franceses de Santon, e (a Sul da estrada) o planalto de Pratzen e os seus dois pequenos cabeços, o Prazberg e o Stare Vinohrady. Marcando, a Oeste, estas elevações, corre (de Norte para Sul) a ribeira de Goldbach, pontuada pelas aldeolas de Schlapanitz, Puntowitz, Kobelnitz, Sokolnitz, Telnitz, Moenitz… Para Oeste desta linha o terreno é plano, e está marcado pelas vilórias de Turas (mais a Norte) e de Raigern (mais a Sul). Em Moenitz, o Goldbach encontra o ribeiro de Littawa, que vindo de Noroeste bordeja o Pratzen em Austerlitz, Krenowitz e Augezd, aldeias que se encontram a Leste e Sudeste do planalto. Em frente ao Santon, e a Leste do riacho e aldeia de Bosenitz (que o limita até ao Goldbach), estão as aldeias de Girzikowitz e Blaschowitz, e a Norte da estrada de Olmutz (e ainda, mais para Norte de Bosenitz) estão dois lugarejos, Posoritz e Raussnitz, de onde, para Sudeste, saem as estradas que em Austerlitz se ligam à grande estrada da Hungria. E de Brunn, na direcção de Raigern e Znaim, sai (para Sul) a grande estrada de Viena, a principal via de comunicação da Morávia. Limitando a Sudeste todo este terreno, estão os lagos de Kobelnitz, Satchan e Moenitz (hoje já não existem…) que naquele fim de Outono de 1805, já se encontravam gelados. Ainda hoje, quem se desloca pela estrada de Brunn a Olmutz e tem o cuidado de olhar para a direita, ao ver esse terreno que sobe suavemente do Goldbach e forma um planalto…vê o coração do campo de batalha de Austerlitz. Durante o tempo que mediou entre a sua chegada a Brunn e o dia da batalha, Napoleão percorreu cuidadosamente todo o terreno acima descrito, e ali pensou na forma perfeita de destruir, de forma decisiva, o Exército Austro-Russo. Vendo perfeitamente que o planalto do Pratzen era o “terreno decisivo”, o Imperador concebeu uma manobra capaz de atrair o inimigo por forma a garantir que esse “terreno decisivo”, para além de “decisivo” se tornasse na “posição central”, tão querida ao seu ideal de manobra. Assim, decidiu que o Pratzen seria abandonado aos austro-russos como se os franceses estivessem apavorados e quisessem retirar para Viena pela estrada de Brunn (e a coberto do Goldbach), enquanto que para melhor simular esse temor ao inimigo, a região de Sokelnitz, Telnitz e Moenitz ficaria pobremente guarnecida (como se o Exército Francês se concentrasse à pressa em Brunn para fugir), o que constituía um “convite obrigatório” para um envolvimento que cortasse o Grande Exército do caminho de Viena. Para melhor convidar o ataque do inimigo, Napoleão abandonou Austerlitz e todo o terreno além do Goldbach, como se quisesse apoiar naquele ribeiro uma desesperada orla anterior da sua zona de resistência. Convencendo os austro-russos de que temia ser 111

envolvido pela sua esquerda, o Imperador decidiu concentrar no Santon um grande aparato de tropas…. Como num livro aberto pelo génio napoleónico, a imortal manobra de Austerlitz acabava de nascer…. Era o dia 23 de Novembro de 1805. Simples, manhosa, decisiva, e de um completo cinismo, a manobra de Austerlitz convidava o inimigo a marchar sobre o Pratzen, “terreno decisivo”, mas com toda a evidencia levava-o a concentrar toda a sua força sobre o espaço “aberto” de Sokolnitz, Telnitz e Moenitz, para um envolvimento que cortasse as comunicações e a retirada aos franceses. Claro que para agarrar os franceses ao terreno, a força que os fixasse no Santon tinha que ser importante… Mas a grande massa de manobra seria concentrada a Sul do Pratzen, e com as forças que o ocupassem. E aí…. …E aí o Grande Exército cairia velozmente sobre o Pratzen desocupado, ganharia a “posição central”, e destruiria por partes o inimigo partido em dois. Para materializar esta manobra, Napoleão concentrou na sua esquerda, no Santon e à sua volta, os Corpos de Lannes e Bernardotte, toda a Guarda Imperial e a Cavalaria de Murat. Estendido entre Puntowitz e Moenitz, o Corpo de Exército de Soult exercia o esforço inicial, defendendo as aldeias de Kobelnitz, Sokelnitz e Telnitz, com a Divisão Legrand e a Cavalaria Ligeira de Margaron. Porém, e para surpreender o inimigo “embalado” no envolvimento por este flanco, o Corpo de Exército de Davout avançava desde Viena, para ocupar o terreno entre Kobelnitz e Moenitz e parar o inimigo na sua marcha para Turas. Mas era no centro deste “tabuleiro de xadrez” que o Imperador visualizava a decisão da batalha. Para isso, ainda Soult, com as Divisões Vandame e Saint Hilaire, marcharia sobre Pratzen e Stare Vinohrady (logo que o inimigo abandonasse o planalto) no que seria seguido pelo Corpo de Bernardotte, pela Reserva de Cavalaria, e pela Guarda (se fosse caso disso), para agarrar a posição central. E uma vez tomado o Pratzen, rebater sobre a esquerda (onde Lannes detinha a direita aliada) e sobre a direita (atacando o flanco das forças detidas por Davout), para arrumar a questão e a batalha. Enquanto Napoleão traçava em Brunn o destino do Exército Austro-Russo, os Comandantes aliados planeavam em Olmutz uma vitória que julgavam certa. Animados pelo temor demonstrado pelos primeiros movimentos do inimigo, e recebendo inúmeros relatórios referindo a sua retirada, fraqueza do flanco direito e múltiplas tentativas de evitar o combate, Alexandre, Francisco, Weirother, Liechtenstein, e toda a juventude sedenta de glória que os cercava, ansiavam por começar a batalha que iria arrumar de vez o “monstro revolucionário” Para os animar ainda mais no seu desejo, Napoleão enviou Savary com medrosas propostas de suspensão de armas, e pedidos aflitivos de uma conferência de paz. Como resposta, os aliados zombaram da situação desgraçada do Imperador (do “chefe do governo francês”, como eles lhe chamavam) e, num desprezo humilhante, mandaram-lhe um dos pedantes mais famosos do Exército, o Príncipe Dolgoruki, com a proposta de paz… a troco do regresso da França às sua fronteiras naturais, e do imediato abandono da Bélgica e da Holanda. 112

Recebido pelo Imperador nos postos avançados do Santon, Dolgoruki foi de tal maneira arrogante e provocador, que Napoleão e o seu Estado-Maior só por milagre não perderam a cabeça com ele. Durante todo o dia 1 de Dezembro, as pesadas colunas aliadas desceram a estrada de Olmutz e, como se tivessem ouvido os estudos de Napoleão, ocuparam o planalto do Pratzen e a estrada de Olmutz em Posoritz. Numerosas patrulhas e esquadrões de Infantaria e Cavalaria Ligeira começaram então a reconhecer as passagens do Goldbach entre Kobelnitz e Telnitz, numa altura em que os franceses recolhiam todas as suas patrulhas para lá do Goldbach…. Aldeola de Krenowitz, Quartel-General Aliado, fim da tarde de 1 de Dezembro de 1805. Enquanto o Marechal Kutusov, que tanto avisara quanto à loucura de menosprezar Napoleão, dormia num sofá, os Imperadores Francisco e Alexandre assinavam a ordem de operações concebida pelo Estado-Maior do General Weirother. Segundo essa ordem, o Exército Austro-Russo, forte de 85.700 homens, marcharia na madrugada de 2 de Dezembro, por forma a, com o ataque principal, envolver a direita do inimigo, empurrando-a para a linha Turas-Puntowitz e cortando-lhe a retirada para Viena, Posteriormente, as forças de envolvimento, juntamente com as forças do ataque secundário lançado contra a esquerda francesa, meteriam o inimigo entre dois fogos, obrigando-o à rendição ou ao aniquilamento. Para lançar o ataque secundário, o Corpo do Príncipe Bagration marcharia contra o Santon, e daí para Brunn. Quanto ao ataque principal, comandado pelo General Buxhowden, seria lançado a coberto da Cavalaria do General Kienmayer, e teria a sua massa de manobra formada pela coluna do Tenente-General Docturov, que marcharia do Pratzen sobre Telnitz; pela coluna do Tenente-General Langeron, que marcharia do Pratzen sobre Telnitz e Sokolnitz; pela coluna do Tenente-General Przybyszewsky, que desceria do Pratzen para atacar Sokolnitz e Kobelnitz; e pela coluna do TenenteGeneral Kolowrat que, seguindo a coluna de Przybyszewsky, atacaria Kobelnitz. Um vez passado o Goldbach e derrotada a direita francesa, as quatro colunas avançariam para a linha Turas-Puntowitz, e daí atacariam Schlapanitz. Entre os ataques de Bagration e de Buxhowden, os 82 esquadrões da Cavalaria do Príncipe de Liechtenstein atacariam na direcção de Blasowitz e contra o flanco sudeste do Santon, em apoio do ataque secundário. A Guarda Imperial Russa do grão-duque Constantino, constituiria a Reserva em Austerlitz. Cabeço do Santon, Quartel-General Imperial, noite de 1 de Dezembro de 1805. Depois de ter instruído cada um dos seus Comandantes na especificidade da sua missão, o Imperador resolveu visitar os bivaques das tropas. Entrava o dia 2 de Dezembro, aniversário da coroação em Notre-Dame, e os soldados do GrandeExército, em toda a linha de batalha, levantando archotes acesos na ponta das 113

baionetas e dos sabres, aclamaram Napoleão com gritos de “Viva o Imperador!!!”… que ecoaram como um aviso sinistro para todo o Exército Austro-Russo. Depois de se ter certificado dos movimentos do inimigo a caminho da armadilha de Telnitz, o Imperador recolheu ao seu bivaque no Santon. Poucas batalhas na História Militar terão seguido tão a par e passo, tão momento a momento o traçado no planeamento, como a batalha de Austerlitz. Os primeiros combates do duelo entre 74 mil franceses e 85 mil austrorussos, tiveram lugar em Sokelnitz e Telnitz quando, na madrugada gelada e densa de nevoeiro de 2 de Dezembro, as unidades ligeiras de Kienmayer abordaram as aldeias para forçar a linha do Goldbach. Por volta das sete da manhã, as colunas de Buxhowden, abandonando o planalto do Pratzen, começaram a atacar as Brigadas da Divisão Legrand e os Esquadrões de Margaron, numa luta desesperada que as tropas francesas não pareciam ser capazes de suportar. Subitamente, e para espanto dos Comandantes aliados, Regimento atrás de Regimento da Infantaria Francesa, como se saídos do chão, fizeram a sua entrada na batalha. Era o Corpo de Exército de Davout que, seguindo rigorosamente o planeado, chegava de Viena a marchas forçadas para selar no Goldbach a armadilha tão criteriosamente preparada. Perante este inesperado reforço da “débil e condenada” direita francesa, Kutusov enviou em reforço de Buxhowden mais e mais tropas retiradas do Pratzen. Entrincheirados nas aldeias e usando o Goldbach como obstáculo, os homens de Legrand e das Divisões de Davout transformaram o flanco direito francês num verdadeiro sorvedouro para as três colunas que as atacavam, e nem Przybyszewsky, nem Langeron, nem Docturov, conseguiam resolver a situação. Por volta das 9 da manhã, e quando um sol magnifico subia no horizonte por detrás do Pratzen, Napoleão, vendo o planalto, o “terreno decisivo”, fracamente ocupado, deu ordem a Soult para o conquistar. E batendo tambores, luzentes de baionetas e bandeiras, as Divisões Vandamme e Saint Hilaire avançaram a passo de carga para travarem no Pratzen um furioso combate. É que vendo então o logro em que havia caído, o Comando aliado deu ordem a Kolowrat para defender o planalto até ao último homem, e à Guarda Imperial Russa, reforçada com parte da Cavalaria de Liechtenstein, mandou que carregasse de flanco a Infantaria Francesa. Combates terríveis sucederam então no planalto do Pratzen, com Vandamme e Saint Hilaire formados em quadrados para receberem as cargas de Cavalaria, e manobrando de seguida para formar em coluna e abrir em linha contra a Infantaria de Kolowrat e Miloradovitch. Confrontado com um desastre total, o Imperador Alexandre (que pessoalmente presenciou esta fase da batalha), deu ordem a Miloradovitch para retirar para Austerlitz. Foi então que a Cavalaria da Guarda Imperial Rrussa atacou no Pratzen. E foi também então que o General Rapp, à frente da Cavalaria da Guarda Imperial Francesa, lhe saiu ao caminho… A derrota dos russos foi total, devastadora, e o planalto do Pratzen ficou finalmente em mãos francesas. 114

Enquanto os combates se sucediam na direita e centro dos franceses, Lannes, Bernardote, e Murat com a Reserva de Cavalaria, desbaratavam a direita russa e obrigavam Bagration a abandonar o campo de batalha. Depois…depois a batalha de Austerlitz estava decidida (mesmo antes de começar…). O Corpo de Soult e partes dos de Bernardotte e Davout, rodaram para Sul e vieram abrir em linha nas ladeiras do Pratzen que dominam o vale do Littawa. Dali, o fogo de Artilharia e as cargas à baioneta sobre os russos detidos em frente do Goldbach, foram o dobre de finados para milhares de homens que, ou se rendiam em massa, ou se afogavam no lago gelado de Satschan (batido impiedosamente pela artilharia francesa), única e traiçoeira via para fugir aquele desastre… Campo de Batalha de Austerlitz, 4 e meia da tarde de 2 de Dezembro de 1805. A batalha que liquidava a “terceira coligação” chegava ao fim, e com ela a “Campanha de 1805”. 11 mil prisioneiros, 27 mil mortos e feridos, 180 canhões e 45 bandeiras, selavam o maior feito de armas da História da França e o apogeu militar do génio de Napoleão. “Soldats, je suis content de vous…”.

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O “TESTAMENTO” DO CZAR PEDRO I UMA LEITURA EM GEOPOLÍTICA

Coronel Fernando José Pinto Simões

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O “TESTAMENTO” DO CZAR PEDRO I UMA LEITURA EM GEOPOLÍTICA Coronel de Artilharia Fernando José Pinto Simões

Preâmbulo

N

o dia 8 de Janeiro de 1980, na Sala de Professores do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, o então Coronel de Artilharia José Alberto Loureiro dos Santos chamou a atenção do autor para um artigo do “Diário de Notícias”do dia, intitulado ”Da expansão russa no Golfo Pérsico à subjugação da Europa Ocidental”, dizendo: “leia, isto é consigo”; Depois, entregou-me o Jornal. Agradeci, li e utilizei, ainda nesse ano lectivo, e noutras circunstâncias adequadas. Passaram mais de trinta e dois anos. A leitura de hoje é PARA SI.

1. Apresentação Em 8 de Janeiro de 1980 o “Diário de Notícias”publicou na Secção Internacional um Artigo não assinado com o titulo “ Da Expansão Russa no Golfo Pérsico à Subjugação da Europa Ocidental – Segundo o Testamento do CZAR Pedro I”, como sendo um documento de “flagrante actualidade”. É apresentado como “tradução do texto integral publicado em “History of Persia”. Refere ainda que “mais parece um texto dos nossos dias do que um documento escrito há mais de dois séculos e meio”. É esse documento que se transcreve de seguida: “PREAMBULO – Em nome da santíssima e indivisível Trindade, eu Pedro I, imperador e autocrata de todas as Rússias, a todos os nossos sucessores no trono e 119

Governo da nação russa. O Todo-Poderoso, a quem devemos a existência, leva-nos a pensar que o povo russo, constantemente guiado pela sua luz e apoiado na sua Força Divina, é chamado a ser no futuro a raça dominante na Europa. Esta ideia é-nos sugerida pelo facto de as nações europeias terem na sua maior parte chegado a um estado decrepitude e declínio, ou, em qualquer caso, disso se aproximarem a passos largos. Daqui resulta que as referidas nações deveriam ser conquistadas por um povo jovem e novo, quando este último tiver alcançado a plenitude da sua força e poderio. Vejo na próxima invasão das nações ocidentais e orientais pelo Norte um movimento periódico determinado pela Providência, que da mesma forma regenerou o povo romano por meio da invasão dos bárbaros. Esta emigração de homens do Norte é como o refluxo do Nilo, que em certas épocas alimenta com os seus detritos as terras ocidentais do Egipto. Descobri que a Rússia é esse rio, e por isso aqui vivo. Os meus sucessores farão dela um grande mar para fertilizar a Europa depauperada e, se os meus descendentes souberem como canalizar as águas, as suas ondas inundarão todas as margens que a queiram limitar. É justamente para isso que deixo estas instruções e que as recomendo a atenção e observação constante dos meus descendentes. I.

Manter a Rússia num estado de guerra permanente, tendo os soldados sempre prontos e só lhes dando descanso para fins de recuperar as finanças do país e melhorar o exército. Escolher o momento mais favorável para o ataque, fazer a paz suceder-se à guerra e a guerra á paz no interesse do engrandecimento e maior prosperidade da Rússia.

II.

Atrair, por todos os meios possíveis, de entre os povos mais inteligentes da Europa, oficiais durante a guerra e sábios em tempo de paz por forma a progredir a Rússia a expensas de outras nações e sem perda das nossas vantagens.

III. Em todas as circunstâncias, tomar parte nos negócios e discussões na Europa, sejam eles quais forem, e especialmente nos que respeitem á Alemanha, que, como nosso vizinho mais próximo, nos interessa mais directamente. IV.

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Dividir a Polónia, e manter neste reino uma permanente desorganização e contínuo ressentimento, conseguido relativamente às outras potências, recorrendo ao ouro, influenciando as assembleias polacas e corrompendoas, por forma a obter um papel decisivo na eleição dos reis, na nomeação de elementos simpatizantes, cuja protecção nos servirá de justificação para a entrada das tropas moscovitas, que lá deverão permanecer até chegar a oportunidade para uma ocupação permanente.

Se as potências vizinhas levantarem dificuldades, tranquilizá--las por algum tempo, dividindo o país até podermos reaver tudo aquilo que tivermos cedido. V.

Escolher sempre princesas alemãs para os nossos príncipes por forma a promover alianças de família, reunir os nossos interesses e assim trazer a Alemanha para o nosso campo, reforçando a nossa influência.

VI.

Induzir a Suécia a atacar-nos, de maneira a termos um pretexto para a subjugar. Em seguida, isolar a Dinamarca da Suécia e favorecer a rivalidade entre estes dois países.

VII. Dar preferência a uma aliança com a Inglaterra no comércio, sendo esta a potência que tem maior necessidade de nós para a sua marinha, enquanto ao mesmo tempo nos pode ser extremamente útil para o desenvolvimento da nossa própria marinha. Trocar a nossa madeira e produtos pelo seu ouro e estabelecer relações permanentes entre nós, no que respeita às suas mercadorias e sector naval, o que será do interesse deste país no que toca à navegação e ao comércio. VIII. Expandirmo-nos sem cessar para Norte, ao longo do Báltico, e para Sul, em direcção ao Mar Negro. Provocar Conflitos Permanentes IX.

Aproximarmo-nos o mais possível de Constantinopla e da Índia. Quem aí dominar será o verdadeiro soberano do Mundo. Em consequência, provocar conflitos permanentes, não só na Turquia como também na Pérsia. Estabelecer estaleiros no Mar Negro, ocupando pequenos territórios em volta deste mar e também do Báltico, duplamente necessários à conse-cução deste nosso projecto. E com a decadência da Pérsia, penetrar tão fundo quanto possível no Golfo Pérsico, restabelecendo, se possível, o antigo comércio com o Levante, avançado até à Índia, que é o entreposto do Mundo. Chegados a este ponto, deixaremos de necessitar do ouro inglês.

X.

Procurar manter de forma cautelosa a aliança com a Casa de Áustria, aparentando apoiá-la na sua política de futura dominação da Alemanha, acicatando nos bastidores o ressentimento entre príncipes. Procurar induzir a Áustria a solicitar a assistência da Rússia por um outro meio, e exercer sobre o país uma espécie de protecção que poderá preparar um futuro domínio. 121

XI.

Interessar a Casa de Áustria na expulsão dos turcos da Europa, neutralizar o seu ressentimento no momento da nossa conquista de Constantinopla, quer aliciando-a à guerra com as grandes potências da Europa ou concedendo-lhe uma parte dos territórios conquistados, que lhe retiraremos mais tarde. Conquistar a Alemanha e a França

XII. Procurar unir em torno de nós todos os gregos desunidos e cismáticos que se encontram dispersos pela Hungria e Turquia, constituir o seu centro, o seu suporte, para estabelecermos antecipadamente o nosso predomínio absoluto, por meio de uma espécie de supremacia automática e sacramental, como amigo que proporciona protecção contra todos os inimigos. XIII. Com a Suécia desmembrada, a Pérsia subjugada, a Polónia esmagada, a Turquia conquistada, o nosso exército reagrupado, o Mar Negro e o Mar Báltico guardados pelos nossos navios, devemos seguidamente propor separadamente, e discretamente, primeiro, à Corte de Versalhes, depois à de Viena, a partilha do império universal. Se uma delas aceitar, o que é quase certo, se soubermos lisonjear a respectiva ambição e orgulho nacional, utilizá-la-emos para esmagar a outra. Finalmente aniquilar a que resta, desencadeando uma luta que não será perigosa, pois que a Rússia possuira já a maior parte da Europa. XIV. Se (o que não é impossível) as duas potências rejeitarem o projecto da Rússia deveremos saber acicatá-las uma contra a outra, fazendo com que se enfraqueçam mutuamente. Depois, tirando vantagem do momento decisivo, a Rússia deverá fazer avançar as suas tropas, agora reagrupadas, sobre a Alemanha, enviando ao mesmo tempo duas armadas consideráveis, uma partindo do Mar de Azof e a outra de Arcangel com tropas asiáticas; com a assistência destas duas armadas, avançando pelo Mediterrâneo e pelo oceano, a França será invadida por um dos lados e a Alemanha pelo outro. Conquistados estes dois países, o resto da Europa ficará facilmente sob o nosso jugo, sem necessidade de combate. É assim que podemos e devemos subjugar a Europa.

2. Estabelecimento do texto Não tendo sido possível o cotejo do texto com a fonte indicada, procuraramse outras com vista ao estabelecimento de uma base de partida sobre a qual fosse possível fazer uma leitura. 122

Assim, foram encontradas as seguintes: – “TESTAMENTO DE PEDRO, O GRANDE CZAR DE TODAS AS RÚSSIAS” 1 Cujo texto é muito semelhante ao apresentado, embora com a ordem dos pontos em que se divide não coincidente e com a referência de que foi publicado no Ocidente, pela primeira vez em França, em 1807. Não contém, no entanto, o preâmbulo. – “TESTAMENTO POLÍTICO POR PEDRO EL GRANDE” 2 Cujo texto é totalmente coincidente com o apresentado (preâmbulo incluído), e em que o Autor, Jean Mayer, refere que foi esboçado em 1710, após a Victória de Poltava, revisto em 1722 e consolidado em 1730. O autor traduz e reproduz do francês “el texto entero e exacto” que se encontra em “ L’Histoire De Pologne” de Léonard Chodzko, Paris, 1839. Salienta que o documento, mesmo que seja apócrifo, não deixa de ser genial. – “LE TESTAMENT DE PIERRE-LE-GRAND OU LA CLEF DE L’AVENIR – par Mgr Gaume, 1876”3 Cujo texto é também totalmente coincidente com o apresentado. Refere, ainda, que Pedro I traçou, deste modo, novo caminho que conduziria os seus sucessores à dominação universal – qualquer que seja a autenticidade do documento. – “TESTAMENT OF PETER THE GREAT” 4 Cujo texto – que não inclui o preâmbulo – é, no restante, totalmente coincidente com o apresentado. É referido no artigo (não assinado) que se trata de um texto apócrifo e tendencioso. – “TESTEMENT DE PIERRE LE GRAND” 5 Cujo texto (que também não inclui o preâmbulo) é, ainda, coincidente com o apresentado. 1 2 3 4 5

http://www.luiznogueira.com.br/noticiasluiz.php?=2628 editoria=ensaios http;//www. letras libres.com/revista convívio/testamento - político (PDF) catholicapedia.net/c 347-Mgr-Gaume-Testament….Paris, 12DEZ1816, pag 1e2. http://en.wikipedia. org/wiki/usec:Rossavia/Testament Chaliand, Gerard, Anthologie Mondiale de la Stratégie.Robert la Foffont, Paris,1990,pág 680 e seg.

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Deste modo, adoptar-se-á para “leitura” o texto publicado no “Diário de Notícias”, acima transcrito, com a opinião de que apócrifo, ou não, tendencioso, ou não, é um documento importante, que deve ser analisado.

3. Breves Notas Biográficas de Pedro I, O GRANDE 6 Nasceu em Moscovo a 9 de Junho de 1672 (30 de Maio do mesmo ano, segundo o calendário Juliano) e faleceu em S. Petersburgo em 8 de Fevereiro de 1725 (28 de Janeiro no mesmo calendário); foi Czar da Rússia e primeiro Imperador do Império Russo, de 1682 a 1725 (em Portugal, reinados de D. Pedro II: Setembro 1683 a 09 Dezembro 1706 e de D. João V: 01 Janeiro 1707 a 31 Julho 1750).7 Constatando que a Rússia se encontrava técnica e socialmente atrasada em relação ao Ocidente, resolve empreender a sua modernização. Organizou em 1697 uma expedição à Europa Ocidental (Grande Embaixada) a fim de obter conhecimentos técnicos militares e náuticos para o seu País e apoio face Império otomano. Durante os 18 meses desta expedição, incógnito e sob o pseudónimo de Pedro Mikhailov, fez-se passar por marinheiro, trabalhou como carpinteiro num estaleiro da Holanda, estudou anatomia e cirurgia e visitou museus e galerias de arte. No regresso, trouxe consigo centenas de mestres, técnicos e letrados. Trouxe também livros científicos e cartas topográficas; mandou traduzir para russo diversas obras em francês, holandês, inglês e alemão. Em 1717 viaja novamente pela Europa Ocidental, nomeadamente pela Bélgica. Em 1703 manda edificar o complexo urbanístico da cidade de São Petersburgo – nova capital da Rússia e pólo de abertura à Europa Ocidental (concluído, apenas, em 1725).

4. Uma Leitura em Geopolítica a. Preâmbulo “Em nome da Santíssima e indivisível Trindade, eu, Pedro I, imperador e autocrata de todas as Rússias, a todos os nossos sucessores no trono e governo da nação Russa”. – Menção dos seus títulos e afirmação de fé; – Foi aclamado Imperador de todas as Rússias pelo Senado em 1722; 6 7

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro I da R %C3%B Asia. http.//pt.wikipedia org/wiki/anexo:lista –de-reis-de-Portugal/passim

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– No que se refere a Portugal e à época, pode encontrar-se um paralelo da titularia régia na numismática nacional, por exemplo, na moeda de D. João V denominada “Português”, 1718, ouro, com as seguintes legendas8: Anverso: IOANES. V. D. G. REX. PORT. ETALG. CIT. ET. VLTR. / MARE. IN. AF. D. GVI. C. N. C. E. A. P. I. ETC. Abreviaturas de IOAN. QUINTUS. DEI GRATIAE REX PORTUGALIAE ET ALGARBII CITRA ET ULTRA IN AFRICA DOMINUS GUINEE. CONQUISITIONIS. NAVEGATIONIS COMMERCII ETHIOPIAE ARABIAE PERSIAE INDIAE ETC. JOÃO V PELA GRAÇA DE DEUS REI DE PORTUGAL E DOS ALGARVES D’AQUEM E D’ALÉM-MAR, EM ÁFRICA, SENHOR DA GUINÉ, DA CONQUISTA, NAVEGAÇÃO E COMÉRCIO DA ETIÓPIA ARÁBIA, PÉRSIA, ÍNDIA, ETC. Reverso: IN HOC SIGNO VINCES, (POR/COM ESTE SINAL VENCERÁS) Numa alusão à visão do Imperador Constantino, em 312, pouco antes da sua vitória sobre Maxêncio na batalha da Ponte de Mílvia. b. “Manter a Rússia num estado de guerra permanente … . Escolher o momento mais favorável para o ataque, fazer a paz suceder-se à guerra e a guerra à paz, no engrandecimento e maior prosperidade da Rússia”. – Alusão à importância do factor Político/Diplomático do Potencial Estratégico e percepção “avant la lettre” da ligação guerra-política, exposta por Clausewitz9: “A Guerra é uma simples continuação da política por outros meios. Vemos que a guerra não é um simples acto político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação da atividade política, o seu exercício por outros meios. O que é próprio da guerra é o carácter particular dos seus meios … . Porque a intenção política é a finalidade e a guerra o meio, pois não se pode conceber o meio independentemente do fim”. 8 9

VAZ, J. FERRARO, “LIVRO DAS MOEDAS DE PORTUGAL” 1973, pg 311. Clausevitz, Carl Von, “Da guerra (Vom Kriege)”, Berlim 1832, Livro I, Capítulo I, nº 24, in “Anthologie Mondiale de la Stratégie, pág 825, Tradução do autor.

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c. “Atrair, por todos os meios possíveis, de entre os povos mais inteligentes da Europa, Oficiais durante a guerra e sábios em tempo de paz por forma a (fazer) progredir a Rússia a expensas de outras nações e sem perda das nossas vantagens. Realce da importância do factor Científico do Potencial. d. “Dividir a Polónia e manter neste reino uma permanente desorganização e contínuo ressentimento …”. “Escolher sempre princesas alemãs para os nossos príncipes, por forma a promover alianças de família …”. “Induzir a Suécia a atacar-nos de maneira a termos o pretexto para a subjugar. Em seguida, isolar a Dinamarca da Suécia e favorecer a rivalidade entre estes dois países.”; – Evoca: • Por um lado, o “Príncipe” de Nicolau Maquiavel (1469-1527) em que se indica aos governantes como governar e manter o poder absoluto, mesmo com uso da força militar e a criação de inimigos (embora no contexto da unificação italiana); • Por outro, a “Raison d’Etat”, pela qual o bem do Estado justifica o emprego de quaisquer meios, visto que os seus interesses estão acima de qualquer coisa (ideologia, religião ou qualquer outra consideração). e. “Dar preferência a uma aliança com a Inglaterra no comércio, sendo esta a potência que tem maior necessidade de nós para a sua marinha, enquanto … nos pode ser extremamente útil para o desenvolvimento da nossa própria marinha. Trocar a nossa madeira e produtos pelo seu ouro e estabelecer relações permanentes … no que respeita … (ao) sector naval”…; – Percepção da necessidade de ter (e manter) um poder naval (militar e de comércio), pois uma grande potência tem de ter, simultaneamente, poder terrestre e naval; – Inclui-se no factor Económico do Potencial. f. “Expandirmo-nos sem cessar para Norte, ao longo do Báltico, e para o Sul em direcção ao Mar Negro”; – Quebra do isolamento geográfico: • Assegurar uma saída a Norte para o Báltico (controlo dos estreitos de Kategat, Skagerat, Sund, Grande Belt e Pequeno Belt) e, posteriormente, para o Atlântico; 126

• Assegurar uma saída a sul, para o Mar Negro e, depois, para o Mediterrâneo (estreitos do Bósforo e dos Dardanelos). g. “Aproximarmo-nos o mais possível de Constantinopla e da Índia. Quem aí dominar será o verdadeiro soberano do Mundo”; – Domínio da porção do “Rimland” de Spykman que vai desde a Alemanha (a começar na Suécia) até à Índia, como expansão territorial e como forma de assegurar saída para o mar (Oceano Índico), em consequência da “fatalidade” geográfica da situação da Rússia. Eventualmente, exercício do poder marítimo na região. h. “Penetrar tão fundo quanto possível no Golfo Pérsico, restabelecendo, se possível, o antigo comércio com o Levante, avançando até à India que é o entreposto do Mundo”; – Domínio do estreito de Ormuz que, para nós portugueses, evoca imediatamente, Afonso de Albuquerque (1453-1515) com a conquista de Ormuz em 1507, Goa em 1510 e Malaca em 1511. i. “Interessar a Casa de Áustria na expulsão dos turcos da Europa, neutralizar o seu ressentimento no momento da nossa conquista de Constantinopla …” – Expulsão dos “infiéis” da Europa cristã e reconquista de Constantinopla, tomada pelos turcos em 1453; – Consolidação da presença no Rimland. j. “Com a Suécia desmembrada, a Pérsia subjugada, a Polónia esmagada, a Turquia conquistada, o nosso Exército reagrupado, o Mar Negro e o Mar Báltico guardados pelos nossos navios, devemos seguidamente propor separadamente e discretamente, primeiro à Corte de Versalhes e depois à de Viena, a partilha do império universal.” – A Suécia era, à época, o conjunto das actuais Suécia e Finlândia; – Posição forte sobre o Rimland e plano de ação político/diplomático. k. “se … as duas potências rejeitarem o projecto da Rússia, devemos acicatálas uma contra a outra …. Depois, tirando vantagem do momento decisivo, a Rússia deverá fazer avançar as suas tropas, agora reagrupadas, sobre a Alemanha, enviando ao mesmo tempo duas aramadas consideráveis …, avançando pelo Mediterrâneo e pelo oceano, a França será invadida por 127

um dos lados e a Alemanha pelo outro. Conquistados estes dois países, o resto da Europa ficará facilmente sob o nosso jugo sem necessidade de combate.

É assim que podemos e devemos subjugar a Europa”. – A concepção desta operação conjunta introduz, implicitamente, o domínio do Heartland de Mackinder, que se completaria com o território alemão, a “adicionar” a parte russa.

5. Notas Finais / Conclusão a. Não é garantida a autenticidade do “testamento” atribuído ao Czar Pedro I. De qualquer forma, tal não diminuiu a sua importância do ponto de vista geopolítico, nem da sua análise; b. O documento não é datado; mas, atendendo ao período do reinado do Czar – 1682 a 1725 – terá de estar compreendido entre estas duas datas. Mais provavelmente depois de 1717, data da sua segunda grande viagem; c. É verdadeiramente um texto geopolítico, pois revela a influência da geografia na Política e na Estratégia através da consideração de factores geográficos (estáveis: território, posição, comunicações e instáveis: recursos, comércio, estruturas políticas e sociais); d. Não expende uma teoria global assente numa “cartografia” mundial estruturada; e. Releva o facto de que uma grande Potência, para o ser, tem de ser, simultaneamente, terrestre e marítima (não cabe aqui referência ao Poder Aéreo). Mas também releva o papel do Comércio,(terrestre, mas, sobretudo marítimo); f. Considera a sede geográfica do poder numa faixa terrestre que engloba as actuais: Turquia, Pérsia (Irão), Emiratos Árabes, Omã e Índia, incluindo, implicitamente, o Afeganistão e o Paquistão. Configura uma faixa importante do Rimland de Spykman que, juntamente com a europa Ocidental, quase completa esta área. 128

As características desta faixa, à época, seriam: posição de charneira; acesso ao Mediterrâneo e ao Índico, recursos e domínio do Comércio Mundial. g. O poder Mundial seria assegurado da seguinte forma: – Poder terrestre: território russo de então juntamente com o da Alemanha, o que configura o Hertland de Mackinder; – Poder marítimo: Domínio (controlo) da maior parte do Rimland de Spykman (nele incluída a Europa Ocidental) e, portanto, o Báltico, permitindo a saída para o Atlântico Norte. A saída “natural” da Rússia para o Atlântico é por Arkangelsk, mesmo assim condicionada pela calote de gelo, do Árctico, isto é, pelo clima. h. Explicita um Plano Estratégico para a conquista da Europa: – Nos aspectos político e Diplomático; – No aspecto Militar: duplo envolvimento, utilizando o Poder Marítimo – ao Norte sobre a Alemanha e ao Sul sobre a França – e o Poder Terrestre em ação frontal sobre a Alemanha. i. Conjuga as potencialidades do Heartland e do Rimland.

NOTA: - Por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

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UMA ANÁLISE DA OBRA E DO PENSAMENTO DO GENERAL LOUREIRO DOS SANTOS

Coronel Tirocinado João Vieira Borges

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Uma análise da obra e do pensamento do General Loureiro dos Santos Coronel Tirocinado de Artilharia João Vieira Borges

1. Introdução

Q

uando nos anos oitenta servi como subalterno e depois como capitão no então Centro de Instrução de Artilharia Antiaérea de Cascais (CIAAC), os camaradas de armas, os escritos das revistas, as paredes da cidadela e as pedras da parada D. João IV lembravam-me regularmente, com elevação, o General Loureiro dos Santos, ex-Comandante da Unidade e distinto oficial do Exército. Entretanto, o privilégio e a honra do meu contacto directo com o General Loureiro dos Santos só viria a ter lugar no âmbito da Revista de Artilharia, em 1990, quando desempenhei as funções de secretário do então Presidente da Revista (nas instalações provisórias de Oeiras e posteriormente nas do Castelo de S. Jorge) e Director do Instituto de Altos Estudos Militares (IAEM). Durante essa saudosa e atribulada direcção da Revista, em que o General Loureiro dos Santos assumiu inesperadamente as funções de Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME – em substituição do General Firmino Miguel que falecera em trágico acidente de viação), encontrava-me nas funções de Comandante da 4.ª Companhia de Alunos da Academia Militar. Esse contacto, simultaneamente profissional e pessoal com o General Loureiro dos Santos, marcou-me profundamente pelo exemplo de trabalho, de rigor, de trato esmerado, de bom senso, de coragem moral, e de excepcional dedicação postos ao serviço da causa pública através do Exército. Mais tarde, e já depois do General Loureiro dos Santos ter passado à situação de reforma, fui seu aluno no mestrado de Estratégia no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e testemunha do seu elevado sentido pedagógico e grande conhecimento das matérias relacionadas com a história militar, a estratégia e a segurança e defesa em geral. Foi depois meu orientador da tese de Mestrado, tendo-me apoiado com o seu saber, incentivado com o seu exemplo e estimulado com palavras sempre desafiantes. A partir de então acompanhei ainda mais de perto 133

a pessoa e a obra, desde as conferências e palestras, aos escritos, passando pelas intervenções públicas nos diferentes órgãos de comunicação social. Nas minhas diferentes actividades e em resposta às minhas solicitações como professor da Academia Militar, assessor do Instituto da Defesa Nacional ou Comandante do Regimento de Artilharia Antiaérea nº 1 (RAAA1), o General Loureiro dos Santos disse sempre Presente, como aliás responde regularmente aos apelos dos camaradas de armas, da Artilharia, do Exército, das Forças Armadas, de Portugal e dos Portugueses. Compreenderá agora melhor o leitor a razão do meu regozijo, mas sobretudo da honra e do privilégio que tive em aceitar o desafio que me foi lançado pelo Estado-Maior do Exército (EME) para escrever algumas páginas sobre a obra e o pensamento do General Loureiro dos Santos. O facto de ter participado no lançamento da grande maioria das obras que publicou, de as ter lido e citado e de as ter reflectido com os meus alunos, dá-me assim uma responsabilidade acrescida, que traduzirei por uma (haverá com toda a certeza outras) análise da obra e pensamento. Pertencendo à geração que beneficiou da sua luta (e da de outros camaradas e amigos como o General Ramalho Eanes e o General Espírito Santo) com a espada e a pena por um Portugal livre, independente e democrático, a análise será sempre marcada pelas palavras parcialidade, agradecimento, respeito, consideração e estima. Para um melhor entendimento da obra e pensamento, começarei por uma biografia resumida do General Loureiro dos Santos. Seguir-se-á uma análise da obra escrita, tendo por base os livros publicados entre 1979 e 2012, e uma metodologia de análise que transcenderá as meras recensões, no sentido de identificar grandes linhas metodológicas que facilitem a identificação do pensamento, cautelosamente resguardado para um último capítulo, necessariamente incompleto, parcial e discutível.

2. Do Soldado ao Político, Diplomata, Professor e Comentador O General José Alberto Loureiro dos Santos nasceu em Vilela do Douro – Paços, concelho de Sabrosa (Vila Real), a 2 de setembro de 1936, em plena Guerra Civil de Espanha. Iniciou os seus estudos em Vila Pouca de Aguiar, tendo seguidamente frequentado o Liceu Rodrigo de Freitas no Porto, onde lhe foi atribuído o prémio nacional dos liceus (1953), em reconhecimento das suas elevadas capacidades intelectuais. Terminado o Liceu, Loureiro dos Santos optou pela carreira militar, tendo frequentado a Escola do Exército, entre 1953 e 1956, e terminado como primeiro classificado do curso de Artilharia. 134

Como oficial de Artilharia foi promovido sucessivamente a Alferes (1957), Tenente (1959), Capitão (1961), Major (1969), Tenente-Coronel (1976) e Coronel (1979). Serviu na Escola Prática de Artilharia e no CIAAC, pouco antes de embarcar para uma comissão na Região Militar de Angola, entre 1962 e 1965, inicialmente como Comandante de Bateria de Artilharia Antiaérea 386 e mais tarde como adjunto da Repartição de Operações. De volta ao continente, serviu no Centro de Instrução de Condução Auto nº 3 de Elvas e logo no ano seguinte frequentou o curso de Estado-Maior no IAEM (entre 1966 e 1969) com a classificação de Distinto e pouco depois o Curso de Comando e Estado-Maior do Exército Brasileiro (em 1971 – onde fez um doutoramento em Ciências Militares). A partir de então, não mais deixaria de ser “o Professor”, não só do IAEM, mas também do Instituto de Altos estudos da Força Aérea, do Instituto da Defesa Nacional e mais tarde do ISCSP, muitas vezes em acumulações com funções de elevada responsabilidade. As contingências da “condição militar” e da “guerra do ultramar” levariam o então Major de artilharia a uma nova comissão em África, a partir de 1972 em Cabo Verde, missão que seria interrompida pelo 25 de Abril de 1974 – altura em que, com 36 anos foi Encarregado do Governo, delegado da Junta de Salvação Nacional e Comandante-Chefe das Forças Armadas em Cabo Verde (entre Maio e Setembro de 1974). O Major Loureiro dos Santos voltaria ao continente para servir no EME (como Adjunto na Repartição de Gabinete), e pouco depois no Estado-Maior General das Forças Armadas, como Adjunto do Gabinete, Secretário Permanente do Conselho da Revolução (entre março e agosto de 1975) e Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (VCEMGFA a 6 de Abril de 1977 - por inerência de funções membro do Conselho da Revolução), então como Tenente-Coronel graduado em General. Neste período pós revolucionário, participou no planeamento e execução das operações que contiveram o golpe do 25 de novembro de 1975. Terminadas as suas funções enquanto VCEMGFA (exonerado a seu pedido, no início de 1978) voltou a ser professor no IAEM e assessor no IDN, mas por pouco tempo. Foi depois empossado nas funções de Ministro da Defesa Nacional (MDN) dos IV e V Governos Constitucionais (com Carlos Mota Pinto – entre 22 de novembro de 1978 e 7 de julho de 1979 - e depois com Maria de Lurdes Pintassilgo – entre 7 de Julho de 1979 e 3 de janeiro de 1980). Após o exercício das funções governamentais voltou ao Exército como Coronel Comandante do CIAAC, entre 1980 e 1981. Interromperia estas funções para servir no IAEM como professor do Curso Superior de Comando e Direcção, tendo então sido promovido a Brigadeiro (1982) e indigitado como Director do Departamento de Operações do EME. 135

Como oficial general (Tenente-General em 1987), Loureiro dos Santos viria a desempenhar várias funções, algumas delas em acumulação e de que destaco: Comandante da Zona Militar da Madeira e Comandante-Chefe das Forças Armadas na Madeira (1985-1987); Director da Arma de Artilharia; QuartelMestre General do Exército; e Director do Instituto de Altos Estudos Militares, de onde saiu (para o desempenho das funções de Chefe do Estado-Maior do Exército (e Director da Revista de Artilharia em acumulação no biénio 1990/1) entre 1991 e 1992. Entretanto, deixaria estas nobres funções, na sequência de um exemplar pedido de demissão, quando entendeu (no âmbito da famosa lei dos Coronéis) “não ter condições para conseguir que o poder político anuísse a pontos de vista seus, alicerçados na opinião generalizada dos seus subordinados, sobre assuntos essenciais para a sua carreira…” (2000:244). Com a passagem à situação de reforma, o General Loureiro dos Santos fechou uma porta que limitava a sua liberdade enquanto chefe militar, abrindo simultaneamente outra porta (situada em Carnaxide) ao serviço da Nação, enquanto observador e comentador atento das questões de Segurança e Defesa. Efectivamente, desde então, o General Loureiro dos Santos ganhou um espaço único na sociedade portuguesa, enquanto comentador respeitado (e por isso ouvido e lido) sobre assuntos de Estratégia, Segurança, Defesa e Relações Internacionais em vários órgãos de comunicação social. O General Loureiro dos Santos foi entretanto agraciado, entre outras, com as seguintes condecorações: Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo; Grau de Comendador da Ordem Militar de Avis; Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique; cinco medalhas de serviços distintos (uma de ouro e quatro de prata); duas medalhas de mérito militar (1.ª e 2.ª classes); medalhas de ouro e de prata de comportamento exemplar; medalhas Comemorativas das Campanhas de Angola e das Comissões de Serviços Especiais – Cabo Verde; Medalha de Ouro do Município de Sabrosa (2012); Medalha de Ouro do Município de Vila Pouca de Aguiar; Medalha de Mérito, Grau Ouro do Município de Oeiras. Possui ainda as seguintes condecorações estrangeiras: Medalha do Pacificador do Brasil, grãcruz da Ordem de Mérito Militar com distintivo Branco, de Espanha; grã-cruz de Mérito Naval, de Espanha; Grande Oficial da Medalha da Ordem de Mérito da República Italiana; Grã-Cruz da Ordem do Mérito Militar, do Brasil. Entretanto foi Presidente da Assembleia Geral da Associação dos Militares na Reserva e na Reforma (ASMIR) e é sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa (um marco significativo no reconhecimento dos militares mais ilustres, como o seu antecessor na secção de letras, o General Câmara Pina) e membro do Conselho Cientifico do Centro de Investigação de Segurança e Defesa do Instituto de Estudos Superiores Militares (IESM – sucessor e herdeiro do IAEM), do Conselho de Honra do ISCSP e membro (cooptado) do Conselho Geral da Universidade Nova de Lisboa. 136

Após esta curta (e limitada) resenha, fica então o leitor com uma noção mais realista da dificuldade do autor em analisar a obra do General Loureiro dos Santos, Soldado por convicção, Político pelas contingências (da revolução de 25 de abril de 1974), Diplomata por natureza, Professor pelo saber e Comentador por reconhecimento (dos camaradas em particular e dos portugueses em geral).

3. Da obra escrita A metodologia adoptada para a análise da obra do General Loureiro dos Santos passa pela leitura cuidada de todas as obras publicadas e de acesso ao grande público, desde os “Apontamentos de História para Militares”, editado pelo IAEM em 1979, às “Forças Armadas em Portugal”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos em 2012. A leitura tem uma ordem cronológica, com especial ênfase para as dedicatórias e para a evolução de temáticas que possibilitassem um levantamento posterior do pensamento, designadamente das áreas da Estratégia, da organização, dos conceitos e da história. Como complemento, não deixarei de sublinhar os prefácios de ilustres conhecedores da pessoa e da obra do General Loureiro dos Santos, desde o saudoso General Firmino Miguel ao General Ramalho Eanes, passando pela jornalista Luísa Meireles e pelo Professor Doutor Medeiros Ferreira. Assim, esta opção passou por não efectuar qualquer estudo sobre as centenas de artigos publicados em jornais e revistas (Baluarte, Nação e Defesa, Diário de Notícias, etc.), o que é atenuado pelo facto de algumas dezenas deles terem sido incluídos nas obras em análise. Entre esses artigos, gostaria de destacar os que o então Alferes e Tenente publicou na Revista de Artilharia, em 1959, com cariz essencialmente técnico da Arma (“referenciação pelo som” e “exortação” aos cadetes de artilharia). Nos anos setenta, o Major Loureiro dos Santos voltou à Revista de Artilharia, mas já com artigos de História Militar e Geopolítica (Mackinder), numa demonstração dos seus interesses pessoais por estas temáticas e com uma escrita simultaneamente cuidada e didáctica. Mais tarde, nos anos oitenta e noventa, publicou artigos como Brigadeiro e General, essencialmente enquanto Director da Arma e Presidente da Revista (editoriais). Comecemos então pelos Apontamentos de História para Militares, publicado em plena guerra-fria (1979) pelo IAEM e quando desempenhava as funções de Ministro da Defesa Nacional. Incentivado pelo General Themudo Barata (seu director no IAEM), Loureiro dos Santos dedicou o livro ao seu IAEM, por aquilo que lhe ensinou, mas também porque foi uma das organizações que mais influenciaram a sua carreira. O livro inclui duas partes essenciais: a “evolução dos sistemas de coacção”; e os “apontamentos para a história da subversão em Portugal”, que constituiu uma adaptação actualizada de um trabalho escrito em 1968/69 (durante o curso de Estado-Maior). 137

Este livro de História Militar foi fundamentalmente dirigido aos oficiais do IAEM, para quem ainda hoje (no IESM) constitui uma referência. Loureiro dos Santos começou por destacar a necessidade do estudo da História (“o estudo da história tem por objecto o passado e por finalidade o presente e o futuro”; 1979:10), algo que nunca descurou ao longo da sua vasta obra. A questão conceptual da guerra (“um facto histórico permanente e sempre presente mesmo quando ausente”) também está nela presente, não só na perspectiva de Clausewitz, mas na sua visão pessoal de que “tem por objectivo uma situação de paz mais vantajosa”. Eric Muraise (Introdução à História Militar), Raymond Aron (Pensar a Guerra, Clausewitz), Arnold Toynbee (Um Estudo da História) e Fuller (Influência do Armamento na História), são alguns dos autores e obras que mais o influenciaram na sua análise de factos da História Militar, centrados normalmente no estudo da evolvente política e da envolvente técnica dos períodos em estudo. Trabalhou com particular cuidado “a influência da técnica na ciência-arte da Guerra” e os “elementos essenciais do combate” (fogo, choque, movimento, protecção e o comando/ligação), assumidamente estruturais nas suas análises dos conflitos. No seu respigar da antiguidade clássica ao Portugal do final do século XX, onde Clausewitz (Da Guerra) e Maquiavel (O Príncipe e a Arte da Guerra) assumiram algum protagonismo, sublinhou então que “o exército das democracias é aquele que se baseia no serviço geral, pessoal e obrigatório.” (1979: 41). A segunda parte da obra deduz algumas conclusões de interesse para uma possível subversão, tendo por base uma análise estratégica da História de Portugal. Ao longo do livro dirigiu algumas mensagens aos políticos e militares de então, designadamente no que respeita à legitimidade do poder de que dependem as Forças Armadas (FA; o principio da subordinação das FA ao poder político) e à necessidade de reformar a estrutura superior da defesa nacional, utilizando uma metodologia comparativa com exemplos das democracias europeias (França, Inglaterra, Bélgica…). Mais recentemente (em 2010), esta obra foi reeditada (com o título História Concisa de Como se Faz a Guerra) exclusivamente na sua primeira parte, a qual foi melhorada e actualizada, com especial destaque para a inclusão de um novo capítulo sobre “a era da informação” (“uma era não definitivamente caracterizada, mas bem distinta da anterior” – a era electrónica-nuclear) nos sistemas de coacção militar. O agora General Loureiro dos Santos tratou, com especial pormenor, os fundamentos da “era da informação”, a guerra nos novos teatros de operações, a guerra da informação e as ameaças e respectivas respostas, tendo como referência vários estudos de casos actuais, desde a Guerra do Afeganistão à Guerra dos Cinco Dias na Geórgia. O livro Forças Armadas, Defesa Nacional e Poder Político foi publicado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em 1980, quando Loureiro dos Santos 138

era Coronel e Comandante do CIAAC. Sem qualquer dedicatória, reúne artigos publicados entre 1976 e 1980 e diz fundamentalmente respeito à reestruturação das Forças Armadas (o mais marcante dos quais publicado na revista Baluarte, em 1976), com contributos que seriam em parte atendidos na Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei 29/1982). Nesse período instável, interessava democratizar o Estado e as FA e as suas mensagens iam no sentido de os militares contribuírem para a estabilidade, a segurança e o bem-estar. Reestruturar as FA em 1980 (e atribuir-lhe novas missões e dependências) era uma tarefa ciclópica, que exigiu de Loureiro dos Santos uma grande determinação, uma enorme coragem moral e um conhecimento profundo do País. Buscando na História de Portugal e nas obras de autores consagrados as amarras para discorrer sobre o presente e o futuro de Portugal, Loureiro dos Santos usou uma linguagem cuidada, rigorosa, legalista e sobretudo com sentido de Estado. Já então “os portugueses, ansiosos por estabilidade e segurança, desejando atingir os padrões europeus […] veem-se perante a necessidade de modificar o seu «género de vida» e de se reencontrarem nas suas verdadeiras fronteiras.” (1980:39). A sua voz relativamente à necessidade de Portugal manter os seus compromissos na NATO foi então determinante, face a visões mais politizadas e menos objectivas. As justificações geopolíticas e geoestratégicas rigorosas desarmavam militares e civis menos informados ou demasiado sectários em termos políticos. Nesta obra já apelava à criação de um Secretariado-Geral da Defesa Nacional, que idealmente deveria integrar militares e civis para apoio do Presidente da República e do Primeiro-Ministro (1980:74). Numa perspectiva global da segurança (em que as FA Portuguesas eram o instrumento que garantia o cumprimento da vontade livremente expressa do Povo a que pertenciam; 1980:97), apelava também ao apoio das Forças de Segurança Militarizadas, quando fosse ultrapassado o limite das suas possibilidades (1980:90). A linguagem utilizada nos seus escritos e discursos tinha na altura uma vertente pedagógica acentuada, claramente orientada para a formação de militares e civis entusiasmados pela revolução, mas sem a noção do papel das FA enquanto instituição nacional num país democrático. Por isso, Loureiro dos Santos insistia na necessária isenção partidária das FA, entendida como “emanação do próprio pluralismo político, tendo em vista o interesse nacional ou o bem comum” (1980:109). Os seus contributos para a Lei de Defesa Nacional foram tanto institucionais, no exercício de funções de Estado, como pessoais, enquanto professor que publicava as suas reflexões em revistas ou jornais (então alvo de rigoroso escrutínio…). Para Loureiro dos Santos, o que era necessário era “que o país dispusesse de um sistema de organização da defesa nacional” (1980:199). O rigor imposto nos seus trabalhos foi especialmente orientado para as questões conceptuais relacionadas com a segurança e a defesa, justificando as suas posições com exemplos de países europeus democráticos. 139

O último texto do livro, já escrito enquanto Comandante do CIAAC, diz respeito às relações entre as FA e o Poder Político, onde envia uma mensagem clara às elites políticas no sentido de “não renegarem a história, e de não confundirem o acessório com o essencial, a conjuntura com as linhas de força definidoras de orientações e o sectário com o nacional” (1980:290). Em 1983, o então Brigadeiro publicava as Incursões no Domínio da Estratégia, numa altura em que desempenhava as funções de Director do Departamento de Operações do EME. Nesta obra, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, reproduziu a maior parte das suas lições enquanto professor de Estratégia do Curso Superior de Comando e Direcção, no IAEM, no ano lectivo de 1981-1982. Os agradecimentos desta obra estenderam-se dos seus alunos aos camaradas que então serviam no IAEM, em especial ao seu professor do Curso de Estado-Maior, o então Coronel Abel Cabral Couto. Para além de tratar com grande clareza a teoria das relações internacionais, a teoria geral da guerra, a teoria geral da estratégia, a estratégia da época nuclear e a estratégia da guerra subversiva, apresentou dois trabalhos colectivos sobre os temas “Desenvolvimento de um cenário de crise” e “O Futuro da Estratégia e a Estratégia do Futuro”. Neste livro ficou clara a diferença entre as aspirações nacionais (configura o que o Estado-Nação pretende ser), os objectivos nacionais (expressam aquilo que o Estado-Nação programa atingir) e os interesses nacionais (desejam o que o EstadoNação pretende salvaguardar), linguagem estruturante por parte de Loureiro dos Santos nas suas análises políticas e estratégicas (1983:45). As citações de Clausewitz estendem-se ao longo de todo o livro, muito para além da teoria geral da guerra e designadamente da parte conceptual. O planeamento estratégico (influenciado pela escola francesa de Beaufre e Poirier) e o planeamento de forças surgem como uma novidade nesta altura, devidamente adaptada à situação portuguesa da época através da apresentação de um modelo, naquilo que constitui sempre o objectivo dos estudos e análises de Loureiro dos Santos: criar um Portugal melhor hoje do que ontem. Naturalmente, esta obra tornou-se rapidamente numa referência obrigatória no domínio da Estratégia (não exclusivamente militar) em Portugal. Em 1991, o IAEM publicou a obra Como Defender Portugal, talvez a mais representativa do pensamento (com sentido estratégico) de Loureiro dos Santos. Este livro reúne os artigos publicados desde 1986, com a curiosidade do prefácio do General Mário Firmino Miguel (então CEME) ter sido entregue para edição poucos dias antes da sua súbita morte. O livro foi então dedicado “ao Militar insigne, ao Político ilustre, e ao Amigo sincero.” (1991:5). Para o General Firmino Miguel, o livro constitui “uma análise com perspectiva histórica da evolução do pensamento da Nação relativamente à sua segurança e à aplicação da estratégia global que lhe correspondia.” (1991:11). O livro exibe acima de tudo um “quadro global de grande coerência e unidade intelectuais” (1991:8) 140

e sobre Portugal “faz evidenciar naturalmente os fundamentos e as constantes das linhas de orientação estratégica que tão proficuamente utiliza na análise dos factores estratégicos e políticos e na construção dos conceitos de defesa militar…” (1991:9). Efectivamente, Loureiro dos Santos reflecte a sua perspectiva histórica de defesa militar de Portugal, dividindo-a nas seguintes partes: da fundação a D. Dinis, quando o eixo dos conflitos tinha predominantemente a direcção Norte-Sul; a longa e fértil época entre D. Dinis e a restauração; do fim da Guerra dos Trinta Anos à Conferência de Viena; e da Conferência de Viena aos nossos dias. As conclusões do seu estudo deixam-nos algumas lições claramente estruturantes de que destacaria (1991:38-39): – “a partir da época em que Portugal passou a situar-se no caminho das Grandes Potências Marítima e Continental, o seu espaço territorial tornou-se essencial para a Potência Marítima, que dele frequentes vezes necessitou como base de operações”; – “da natureza repartida do oceano do espaço territorial português, exploraram os nossos antepassados, como potencialidade, a capacidade de defesa em profundidade e a possibilidade de recuperar o domínio de Portugal a partir de uma das suas parcelas”. Nas conclusões do artigo intitulado “Forças Armadas Portuguesas: Uma Perspectiva Histórica”, lança um alerta devidamente justificado pela história militar portuguesa: “sempre que se verificaram situações de grave crise interna, política, económica, social e de segurança, acompanhada da sensação de vergonhosa dependência externa, existiu o apelo aberto ou velado à intervenção da Força Armada contra o poder estabelecido e que, como consequência imediata ou mediata de tal apelo, essa intervenção se veio a concretizar, independentemente do êxito ou fracasso de tal concretização.” (1991:57). Para os menos avisados nunca deixou de lembrar a necessidade de uma estratégia defensiva no quadro regional em que “a defesa terrestre imediata e próxima do território nacional será o mínimo que Portugal deve estar em condições, em todas as circunstâncias de salvaguardar” (1991:91). Por outro lado, no quadro global assume que é fundamental a participação de forças militares portuguesas ao abrigo de compromissos assumidos, no sentido dar a necessária liberdade de acção quanto ao uso do próprio território nacional, mas também de “reforçar a credibilidade em termos de política externa.” (1991:150). Entre outras questões mais polémicas, o General Loureiro dos Santos discorre sobre o significado nacional do Serviço Militar Obrigatório, não só em termos conceptuais, mas também na análise dos diferentes factores influenciadores das decisões a tomar. Destacou então que “Forças Armadas inteiramente profissionais são mais susceptíveis de serem manipuladas ideologicamente e de se transformarem 141

num poderoso instrumento de força ao serviço de uma facção política que pretenda instalar uma autocracia” (1991:152) e que “Portugal não possui capacidade económica para se dar ao «luxo» de manter umas Forças Armadas exclusivamente constituídas por soldados profissionais” (1991:155)1. Mais adiante e a propósito de um conceito estratégico de defesa nacional, salientou que “As opções estratégicas de Portugal devem visar intransigentemente a defesa dos interesses nacionais e terem como base de partida real a sua Geografia bem como a sua História” (1991:217). Era já o cerne de uma metodologia orientada para a Segurança e o Desenvolvimento de Portugal e sustentada na História. Em 2000, o General Loureiro dos Santos publicou, com chancela das publicações Europa-América, o primeiro volume de uma colecção intitulada Reflexões sobre Estratégia, que se estenderia, com grande sucesso editorial, até ao sexto volume editado em 2009. Efectivamente, encontrando-se numa situação (de reforma) que lhe dava maior liberdade de acção, o General Loureiro dos Santos passou a ser ainda mais interventivo na sociedade civil, quer como comentador, quer como escritor. O primeiro volume desta colecção foi dedicada aos netos “para que vejam como é perigoso o mundo em que vivem, e onde agora dão os primeiros passos”. O ano seguinte, com o 11 de setembro, daria razão a esta dedicatória, afastando o avô do convívio com os seus em face da sua frequente intervenção nos órgãos de comunicação social. O livro foi prefaciado pelo Professor Doutor José Medeiros Ferreira, amigo de longa data, e de cujas palavras destaco: – “Com os escritos de Loureiro dos Santos, o leitor encontrará sempre a intencionalidade da descoberta e o esforço intelectual e profissional para desvendar o que possa estar encoberto…” (2000:15); – “este livro … conjuga a capacidade estratégica, política e militar com a capacidade didáctica da difusão de conceitos, conhecimentos, análises e propostas concretas.” (2000: 19). O livro tem na “Introdução à situação internacional” uma adaptação das teorias geopolíticas ao mundo contemporâneo e caracteriza essa mesma situação internacional em três palavras que marcariam o léxico em Portugal: volátil, incerta e perigosa. Loureiro dos Santos caracterizou ainda, de modo particularmente feliz, os mitos (casos da solidariedade internacional, da legalidade internacional e dos direitos humanos) e as realidades na “segurança e defesa”. Loureiro dos Santos volta a reflectir sobre a organização superior da segurança e defesa nacional, reforçando a necessidade da criação de um 1

Mais tarde, Loureiro dos Santos chegou a considerar um sistema misto que incluísse um núcleo permanente de carácter voluntário profissional e um contingente nacional, com base no serviço militar obrigatório, cuja mobilização era enquadrada pelo núcleo profissional.

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Secretariado-Geral da Segurança Nacional, na dependência do PrimeiroMinistro e de um Conselho Superior de Segurança Nacional na dependência do Presidente da República. Nesta linha de pensamento propõe ainda a elaboração de um documento classificado, o Conceito Estratégico de Segurança Nacional, que deveria ser submetido como segredo de Estado (2000:87-89). Para sustentar o seu posicionamento caracteriza em pormenor os conceitos e a prática da “segurança e defesa”2, assim como as necessárias e adequadas linhas de acção para que o aparelho militar português (desde a componente operacional ao ensino superior militar, passando pela cooperação internacional) se integre no novo Portugal decorrente da situação internacional (caso do capítulo “Forças Armadas – Situação e Evolução”). Na “estratégia em acção”, vai ao encontro dos conflitos de então (Kosovo, Timor, Chechénia) e das questões militares e de segurança em Portugal (como a nomeação dos chefes militares, o associativismo militar, o caso dos submarinos, etc.), terminando com palavras que infelizmente continuam a ter especial acuidade mais de uma década depois: “os militares não podem ser cidadãos de segunda…A democracia não é compatível com menoridades desta natureza” (2000:277). Reitera a sua satisfação pelo investimento de Portugal no “braço longo das FA”, na maior integração entre a política externa e a política de defesa, no consolidar do novo papel das FA de Portugal enquanto instrumento indispensável da política externa (Bósnia, Kosovo, Eurofor, Euromarfor, Angola, Moçambique…). Nesta altura, o General Loureiro dos Santos estava particularmente empenhado na defesa do associativismo militar, na linha dos seus escritos de 1979, quando propôs a criação de uma provedoria das Forças Armadas para defesa dos direitos dos militares enquanto cidadãos. No entanto, o seu posicionamento em nada feria a hierarquia das Forças Armadas, circunscrevendo o papel das associações ao tempo de paz e sem interferência na área operacional, incluindo o apoio logístico e administrativo nos domínios doutrinário, organizacional e disciplinar (2000:247). Para Loureiro dos Santos, as organizações socioprofissionais (que se tornam necessárias em função das forças militares estarem a ser gradualmente afastadas da estrutura do Estado – caso das nomeações das chefias militares) podem inclusivamente constituir óptimos auxiliares no exercício do comando, à semelhança do que se passa noutros países da NATO. No segundo volume da colecção, Segurança e Defesa na Viragem do Milénio, editado poucos dias depois do 11 de setembro de 2001, mais uma vez teve a coragem de defender Portugal, defendendo as suas Forças Armadas, a começar pela dedicatória: 2

Segurança é um estado ou uma situação a atingir, abrangendo um conjunto de actividades para alcançar esse estado ou situação, actividades de vária natureza correspondentes aos diversos sectores das estratégias gerais (económicofinanceiras, política externa, política interna, cultural, transportes, comunicações, energia e militar, etc.). Defesa traduz tudo o que se refere à actividade militar (2000:86).

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“Às Forças Armadas Portuguesas que, apesar de não estarem a merecer a atenção do poder político, com a prioridade que a sua dignidade e as actuais responsabilidades estratégicas de Portugal exigem, se têm comportando com elevado patriotismo, mostrando excepcional profissionalismo nos vários teatros de operações onde têm actuado. À Associação dos Oficiais das Forças Armadas (AOFA) que, apesar da incompreensão de muitos, tem desempenhado um papel de alto mérito para a dignificação das Forças Armadas.” (2001:11). Com prefácio de Luísa Meireles, “todo o texto é um tremendo libelo acusador ao poder político, cujo desinteresse para com a «coisa militar» a tem feito decair a limites impensáveis... Organização, equipamento, modalidades de emprego, tudo é decidido caso a caso, ad-hoc… com as necessárias consequências técnicas e económicas gravosas.” (2001:23). A partir deste livro, os escritos de Loureiro dos Santos são ainda mais dirigidos ao grande público, numa linguagem simples que começa por trabalhar o Estado da Segurança e Defesa no Mundo (estudando e analisando os vários conflitos), para depois tirar as necessárias e mais adequadas ilações para Portugal. Independentemente de tratar com mais acuidade as questões tecnológicas, sociais, económicas ou militares, Loureiro dos Santos nunca deixa de destacar a Segurança e Defesa em Portugal (acompanhando as medidas dos sucessivos ministros, da racionalização de recursos à profissionalização do serviço militar). Acompanha com particular atenção a evolução da União Europeia (e em especial a Política Europeia de Segurança e Defesa), da NATO, dos EUA no quadro da luta contra o terrorismo transnacional e naturalmente de Portugal, sem deixar de sublinhar a evolução das suas FA (redução de efectivos, profissionalização, sistema de forças, integração das mulheres, necessidade de modernização e de reforço do orçamento, etc.). Acompanha ainda a crescente globalização, a consolidação da era da informação, o domínio das ameaças de cariz global, o declínio dos EUA e o gradual protagonismo da China e da Ásia/Pacífico nas relações internacionais, com a consciência de que “as estratégias com maior utilização nos conflitos actuais são a económico-financeira e a mediático-cultural, além da diplomática.” (2001:48). No meio das inúmeras análises e conferências sobre o 11 de setembro, o General Loureiro dos Santos teve ainda tempo, em 2002, para participar na colecção “Batalhas de Portugal” publicando um livro (que não considera de investigação histórica) sobre Ceuta 1415 – A Conquista. Limitado pela metodologia da colecção, não deixou de marcar o livro com a sua análise estratégica do ambiente geral e particular, de desenvolver o processo de decisão estratégica, de trabalhar com especial rigor a expedição e a batalha e de deixar as necessárias e adequadas mensagens para os dias de hoje (“porque a História é uma realidade que não há maneira de poder ser alterada…”). Na linha do que aprendeu com o General Câmara Pina, não deixou de visitar Ceuta “para analisar rigorosamente o terreno, estudar nos documentos 144

geográficos e urbanísticos existentes a sua configuração, com a finalidade de pôr de parte as opções contadas por diversos autores que trataram o tema desde que ele ocorreu, tendo chegado à conclusão que muitas delas eram inexequíveis, dados os condicionamentos geográficos existentes.” (2010). O terceiro volume, A Idade Imperial, foi editado em 2003 e foi marcado pelas repercussões do 11 de setembro para o Mundo, para os EUA e para Portugal. Esta obra foi prefaciada pelo General Ramalho Eanes (considerado por Loureiro dos Santos como “uma das figuras chave na implantação do regime democrático em Portugal” 2003:11), que destaca a determinada altura: “Abre-nos Loureiro dos Santos, janelas de entendimento sobre a situação que a nova condição imperial dos EUA configura para os diferentes países, organizações regionais e até para a globalização em curso” (2003: 23). Os EUA são tratados neste livro como a potência imperial que “tenta evitar a anarquia global e impedir o surgimento de uma potência rival”. A nova era da Idade Imperial é profusamente caracterizada por Loureiro dos Santos, a que se segue uma visão prospectiva relativamente ao “futuro da Estratégia”, tanto a nível global, como regional e nacional. Faz de imediato o reajustamento do posicionamento estratégico de Portugal e levanta as novas capacidades para as FA. Deixa ainda algumas mensagens relativas a casos concretos da segurança em Portugal e relembra as contribuições da História para a segurança nacional. Entretanto, Loureiro dos Santos assume o conceito anglo-saxónico de segurança (2003:266) de que Portugal não se pode alhear e reitera algumas das suas propostas anteriores como o Gabinete para a Segurança Nacional (que compara ao Nacional Security Council dos EUA), na dependência directa do Primeiro-Ministro (2003:271). Nesta nova linha conceptual, recorda ainda a necessidade do Conceito Estratégico de Segurança Nacional (enquanto Lei) ser trabalhado ao nível dos diferentes ministérios e não exclusivamente pela Defesa. Propõe ainda a criação de um Conselho de Segurança Nacional na dependência do Presidente da República (em substituição do Conselho Superior de Segurança Nacional). Relembra ainda a necessidade de reforçar o vector militar como instrumento de afirmação nacional, na mesma altura em que critica o poder político por descurar as Forças Armadas deixando-as num estado “à beira da paralisia ou já paralisadas” (2003:373). O quarto volume, intitulado Convulsões, foi publicado em 2004 e dedicado “a todos aqueles que, nas vésperas do dia 25 de Abril, arriscaram as suas vidas e carreiras, bem como das suas famílias, para que Portugal e os portugueses tivessem passado a participar do espaço dos países democráticos.” (2004:11). Volume ainda marcado pelas consequências do 11 de setembro, designadamente pela invasão do Iraque, pela estabilização do Afeganistão e pelo 11 de março, pelo equilíbrio entre liberdade e segurança e pelo alargamento estratégico para Leste, tem um assumido entendimento da evolução do esforço estratégico global do Atlântico para a Ásia Pacifico. 145

Relativamente ao nosso País, o seu sentido prospectivo já antecipava o que os políticos não queriam ver: “Em Portugal encontramo-nos em situação económica difícil e ainda não foi resolvida a questão orçamental. Continua sem existir uma estratégia nacional orientadora e mobilizadora; a estratégia de segurança e defesa mantém-se com muitas fragilidades. As Forças Armadas então numa situação de debilidade confrangedora e as medidas que lhe estão a ser aplicadas são desgarradas…”. (2004:14). Ao longo da obra reforça a importância do Portugal Atlântico, Peninsular, Europeu e Português, e do Triângulo Estratégico Português materializado pelo Continente, Açores e Madeira (numa perspectiva diferente de Paiva Couceiro). O quinto volume, intitulado O Império debaixo de fogo (2006), foi dominado pela crise do poder global dos EUA, fruto do seu isolamento na guerra contra o terrorismo e do falhanço no Iraque. Mais uma vez (metodologia habitual nesta colecção) começa por caracterizar a situação internacional como enquadramento de um último capítulo relativo à situação (presente e futura) da Segurança e Defesa em Portugal. Loureiro dos Santos analisa profundamente a estratégia de segurança dos EUA e critica a opção da administração Bush em classificar o terrorismo transnacional ou catastrófico como uma ameaça (que levou a deslocar as opções para a esfera do emprego da força militar) em vez de uma táctica, ou seja, ”como um método ou táctica de actuação, que envolve a utilização de processos por combatentes não cobertos pela lei internacional, atacando civis.” (2006:40). No caso de Portugal, mais uma vez alerta para factos estruturais: “está em vias de esgotamento o modelo económico-social de criação, obtenção e distribuição de riqueza, em que temos vivido desde 25 de Abril de 1974, encontra-se profundamente alterado o ambiente estratégico que nos condicionou nessa altura e justificou o modelo de segurança e defesa prosseguido desde aquela data, por um outro, que nos afecta actualmente e nos afectará no futuro previsível. […] Um modelo mais ágil e ligeiro, sem meios militares pesados, orientado prioritariamente para as novas ameaças, está ao nosso alcance em termos económicos…” (2006:273-274). Com a coragem habitual, e por razões diferentes, volta ao tema do associativismo militar, insistindo na sua utilidade para os Chefes Militares, mas chamando simultaneamente a atenção para que não ultrapassem os seus direitos pois “a opinião pública é muito sensível ao comportamento menos adequado dos militares, o que, a verificar-se, se virará contra eles.” (2006:287). Entretanto, Loureiro dos Santos edita em 2008 A Ameaça Global – O Império em Cheque, obra específica, que reúne os seus artigos publicados sobre a Guerra do Iraque entre agosto de 2002 e março de 2008. Dedica-a “às valorosas Forças Terrestres dos EUA - Exército e Marines -, pelo seu profissionalismo, noção do dever, determinação no cumprimento da missão e dedicado espírito de sacrifício, 146

bem demonstrados ao longo destes últimos anos, nos teatros de operações onde têm estado empenhadas, particularmente no Iraque e no Afeganistão.” (2008:11). Neste livro tentou responder “às grandes questões estratégicas de natureza geral que a guerra ia levantando”, dar explicação aos acontecimentos mais significativos, “à luz dos princípios da estratégia” e mesmo da tática e prever a evolução do conflito e das suas consequências. É uma obra sobre um período da ordem internacional dominada pelos EUA, necessariamente unipolar sem contestação e em que conclui: “a guerra do Iraque produziu alterações na forma como os EUA abordavam as grandes questões mundiais. De uma postura predominantemente unilateral para uma atitude em que prevalece o multilateralismo e se procuram ou aceitam soluções negociadas. De uma visão idealista que assentava na crença de que o hard power tudo resolvia e tudo alcançava, para uma abordagem realista dos problemas, caracterizada pelo recurso mais frequente ao soft power, sem descurar a importância e o emprego adequado da força, incluindo a força militar.” (2008:9). O sexto volume da colecção, publicado no final de 2009 com o título As guerras que já aí estão e as que nos esperam, foi organizado com a mesma metodologia dos anteriores, desde a caracterização do mundo em transição e dos olhares sobre o mundo globalizado, ao Portugal em transição (passando pelos EUA, pela NATO, Médio-Oriente, Afeganistão, Cáucaso e Europa). O livro foi dedicado aos militares das Forças Armadas e da GNR e outros membros das Forças e Serviços de Segurança, pelos relevantes serviços que prestam à segurança e defesa de Portugal. Este volume incorpora a “prevista” crise económica e financeira, assim como o aumento de poder das potências emergentes, com a consequente alteração da relação de forças mundial. Com uma nova América presidida pelo democrata Barack Obama e uma estratégia mais multilateral, numa era da informação em que as potências em ascensão como a China e a Índia buscam mais fontes energéticas e alimentares, para Loureiro dos Santos os equilíbrios não são necessariamente mais fáceis de encontrar. No que respeita ao Portugal em transição, reitera a necessidade de um novo Conceito Estratégico de Segurança Nacional, mas sobretudo a desconsideração de que têm sido alvo os militares das FA. Face à situação de degradação das FA e dos militares em geral, deixa mais uma vez uma mensagem aos políticos e à sociedade: “Leiam os sinais preocupantes que estão a vir à superfície relativamente ao que sente a Instituição Militar, dêem atenção aos chefes militares e corrijam as injustiças.” (2009:373). Mais uma vez refere que “conviria substituir na Constituição a expressão “defesa nacional” pela expressão “segurança nacional”, que deveria ser alargada a toda a legislação que a abrangesse.” (2009:294). Apresenta ainda subsídios para um Conceito Estratégico Nacional, segundo a identificação de duas grandes linhas de abordagem: “ameaças que é necessário preservar e linhas de orientação gerais 147

e específicas (a cada sector – não militares e militar) para lhes fazer face; e reforço da massa crítica nacional para gerar capacidade de encaixe, de resistência e de reacção.” (2009:297). Num dos últimos capítulos aborda a questão da segurança ciberespacial (ao tornar-se indispensável nas sociedades tornou-se numa das suas maiores vulnerabilidades) como uma área de esforço nacional e militar e a necessidade de se levantar uma Estratégia Nacional de Informação. É a demonstração clara da sua capacidade de adaptação aos novos tempos da era da informação, socorrendo-se de peritos civis e militares e aplicando depois a sua matriz de análise. Após um período curto de interregno, imposto por razões de saúde, o General Loureiro dos Santos voltou à escrita com o livro Forças Armadas em Portugal, dedicado “À Instituição Militar, o último esteio da Pátria. Aos militares portugueses, tantas vezes glorificados e outras tantas desprezados, mas sempre cumprindo o seu dever. Que pode incluir o sacrifício máximo.” (2012:11). Esta última obra, editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, tem um cariz simultaneamente informativo e formativo, numa altura em que a crise financeira limita a liberdade de acção de Portugal enquanto Estado soberano. O General Loureiro dos Santos começa este livro com um enquadramento relativo ao “Poder Nacional e as FA”, relembrando que não existe bem-estar nem liberdade sem segurança, e que, num país democrático, são os soldados que, em última instância, cuidam da segurança dos cidadãos quando falharem todos os outros instrumentos à disposição do Estado. Trabalha depois, com especial cuidado, uma segunda parte relativa às “Razões para que Portugal tenha FA”, onde sublinha a posição geoestratégica de Portugal e a importância de continuar a ser um país produtor e fornecedor de segurança. Nas terceira e quarta partes caracteriza as FA Portuguesas (como estão organizadas e que missões desempenham), sublinhando a moldura legal da estrutura das FA, no âmbito da Segurança Nacional e da Defesa, onde compara a rendibilidade entre as FA Portuguesas e as da Bélgica, da Holanda e de Espanha, e onde destaca alguns “indicadores”, como o fim do serviço militar obrigatório, a profissionalização militar, a modernização de armamentos e equipamentos e a participação em operações de paz e acções humanitárias e na cooperação técnico-militar. Desenvolve ainda a relação entre o Estado (militares versus poder político; relação dos chefes militares com os órgãos de soberania) e a Nação (valores cívicos, ensino superior militar, percepções sobre as FA, condição militar…) e as suas FA, antes de umas conclusões sucintas mas marcantes, de que destacamos: “Ao longo da nossa História, as Forças Armadas portuguesas têm mostrado que constituem o mais sólido e firme bastião da continuidade de Portugal livre e soberano e o mais fiel guardião dos valores nacionais. Na actualidade, as forças nacionais destacadas têm atuado em todas as partes do mundo – em terra, no mar e no ar –, mostrando a sua elevada capacidade e eficiência e prestigiando o nosso país.” (2012:125). 148

No final da leitura das cerca de 130 páginas, que incluem alguns sinais preocupantes ao poder político, a maioria dos leitores ficará seguramente mais conhecedor das Forças Armadas Portuguesas, mas simultaneamente marcado pela principal mensagem que o General Loureiro dos Santos transmitiu no dia do lançamento do livro, ou seja, que “nenhum país cumprirá de graça as missões que nos competem. Nenhum dos nossos parceiros estará disponível para nos defender, nem sequer para nos apoiar, se não formos nós a garantir a parte substancial da nossa segurança. Até porque as crises financeiras e económicas conseguem levarnos os anéis, mas as crises de segurança além dos anéis podem arrancar-nos os dedos…, quando não as próprias vidas.”.

4. Do pensamento Apos a leitura das principais obras publicadas pelo General Loureiro dos Santos, reforçamos a ideia de que a política de defesa e segurança em Portugal foi claramente marcada pelo autor nos últimos quarenta anos, quer de modo directo, através da sua intervenção em funções institucionais (desde MDN a CEME), quer de modo indirecto, enquanto comentador e autor prolífero. A maioria das obras publicadas inclui artigos relativos à sua intervenção pública em conferências, revistas e jornais, devidamente organizados e interligados. Os temas são sempre actuais (muitas vezes sensíveis ou mesmo tabu para as chefias militares), associados à análise, crítica e contributos para situações concretas ligadas à segurança e defesa: defesa de Portugal, lei da defesa nacional e das forças armadas, lei do serviço militar, conceito estratégico de defesa nacional, programas do governo, racionalização das Forças Armadas, associativismo militar, condição militar, relação entre os militares e o poder político, etc. A postura do General Loureiro dos Santos é normalmente a da defesa dos interesses de Portugal e das suas Forças Armadas (às quais se orgulha de pertencer), assente numa matriz de constantes e variáveis da História de Portugal. No seu pensamento, Portugal está sempre primeiro e as Forças Armadas constituem o pilar fundamental para que haja segurança, o investimento indiscutível para que um futuro de paz sustentada. A metodologia (à luz dos estudos de Estado-Maior) inclui normalmente a caracterização do ambiente geral, a que se segue o estudo da situação particular, a análise de possíveis modalidades de acção e a opção pela defensa dos interesses de Portugal e das suas Forças Armadas. Mesmo no caso da análise mais política e estratégica de conflitos espalhados pelo Mundo, tem sempre o cuidado de analisar as consequências para Portugal (comparando por vezes com outros países) ou as opções estratégicas de Portugal no novo contexto. Os princípios e a trilogia da estratégia (meios-objectivos-ameaças) estão presentes ao longo dos seus escritos 149

e intervenções, sempre consistentes em termos doutrinários, simples e claros na apresentação, mas suficientemente flexíveis para acolherem a inovação e fazerem face a novas situações. O General Loureiro dos Santos nunca confunde o acessório com o essencial, nem a conjuntura com as linhas de força estratégicas, sustentadas pela História Militar de um País com mais de oito séculos. Entre os pensadores que mais o influenciaram estão certamente Clausewitz, Fuller, Gaston Bouthoul, Beaufre, Raymond Aron, Eric Muraise, Liddel Hart, Thomas Schelling, Walter Laqueur, Sun-Tzu, Mao Tse-Tung e Maquiavel. No entanto, não deixa de citar nas suas obras autores portugueses como Kaulza de Arriaga, Ramires de Oliveira, Lopes Alves, Cabral Couto, Firmino Miguel, Ramalho Eanes, Martins Barrento, António de Albuquerque, Araújo Geraldes, Garcia Leandro, Lyon de Castro, José Medeiros Ferreira e Luísa Meireles (e inclusivamente o apoio permanente de António Teixeira e José Paulo). O General Loureiro dos Santos tem tido a coragem de defender a instituição militar (“à beira da paralisia”) e os militares aos olhos da sociedade em geral e dos políticos em particular, mas simultaneamente de chamar a atenção (pelo menos desde 2003) para a degradante situação económica, financeira e social do País. A sua ligação privilegiada aos militares fez com que transmitisse, de modo mais vincado, a situação degradante a que temos assistido de “tratamento desigual” dos militares no sentido pejorativo, de destruição dos estandartes da disciplina e da acção de comando dos chefes militares, de depauperação do sistema social de portugueses que juram dar a vida pela Pátria. Podemos assim concluir que o General Loureiro dos Santos tem um pensamento claramente estratégico, individualizado, coerente e sustentado, reformador, de sentido prospectivo e orientado prioritariamente para a defesa dos interesses de Portugal enquanto Estado-Nação e das Forças Armadas Portuguesas enquanto “último esteio da Pátria”.

5. Considerações finais O General Loureiro dos Santos é um dos mais ilustres militares da sua geração, que combateu pela democracia e pela liberdade e que, como soldado, político, diplomata professor e escritor, vem servindo Portugal nas áreas da estratégia, da segurança, da defesa e das relações internacionais, sem deixar de defender as suas fortes convicções. Militar superiormente inteligente e com profundos conhecimentos militares e culturais, teve na vida académica uma parte importante da carreira, a qual se prolongaria na situação de reforma, como professor, escritor e comentador, 150

tendo-se tornado numa referência incontornável, pelo menos em Portugal, em assuntos de História Militar, de Estratégia, de Segurança e Defesa e de Relações Internacionais. Na parte que diz respeito ao comentador e escritor3 sobre assuntos de segurança e defesa, o General Loureiro dos Santos tornou-se num símbolo da Instituição Militar e numa referência como militar e como cidadão para a sociedade civil como um todo. É lido, ouvido e estimado pelos seus pares, pelos responsáveis políticos e pelo cidadão comum. Constitui um exemplo de inteligência, de capacidade de adaptação a novas situações, de visão estratégica, de espírito de bem servir a Nação, mas também de coragem moral, de camaradagem, de capacidade pedagógica invulgar, de defesa permanente dos interesses nacionais, de grande seriedade e capacidade diplomática, de grande cultura multidisciplinar e de pensamento livre… com sentido de Estado. Termino estas linhas tal como comecei. Orgulhoso de continuar a privar (e a aprender) com o General Loureiro dos Santos, e de ter tido o privilégio e a honra de reler a sua obra e de sobre ela poder reflectir, comungando com os leitores (sobretudo sobre os assuntos da “espada”) através da “pena” que o General sempre usou com destreza ao serviço da Nação. Deixo, no entanto, as palavras finais ao saudoso General Mário Firmino Miguel, que no prefácio da obra “Como Defender Portugal”, antecipava já aquilo que viria a ser uma realidade: “É, pois, o General Loureiro dos Santos … uma figura e uma personalidade marcante na comunidade intelectual portuguesa ligada à estratégia, à geopolítica e à geoestratégia, com projecção no mundo académico e na vida social nacional.” (1991:7).

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Muito especialmente após o seu afastamento da vida activa. Na sequência da passagem à reforma prometeu publicamente intervir no debate que a nossa democracia permite, quando o entendesse conveniente e a sua experiência e conhecimentos ao seu alcance justificassem.

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Bibliografia MaoTse-Toung (2004), Problemas Estratégicos da Guerra Subversiva, estudo introdutório do General José Alberto Loureiro dos Santos, Edições Sílabo, Lisboa. Santos, José Alberto Loureiro dos (1979), Apontamentos de História para Militares, IAEM, Lisboa. Santos, José Alberto Loureiro dos (1980), Forças Armadas, Defesa Nacional e Poder Político, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Vila da Maia. Santos, José Alberto Loureiro dos (1983), Incursões no Domínio da Estratégia, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Santos, José Alberto Loureiro dos (1991), Como Defender Portugal, Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa. Santos, José Alberto Loureiro dos (2000), Reflexões sobre Estratégia, Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2001), Segurança e Defesa na Viragem do Milénio – Reflexões sobre Estratégia II, Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2002), Ceuta 1415 – A Conquista, Prefácio, Lisboa. Santos, José Alberto Loureiro dos (2003), A Idade Imperial – Reflexões sobre Estratégia III, EuropaAmérica, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos, Meireles, Luísa (2003b), E depois do Iraque? General Loureiro dos Santos responde a Luísa Meireles, Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2004), Convulsões Ano III da “Guerra” ao Terrorismo – Reflexões sobre Estratégia IV, Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2006), O Império Debaixo de Fogo - Reflexões sobre Estratégia V, Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2008), A Ameaça Global – O Império em Cheque; A Guerra do Iraque em Crónicas (De Agosto de 2002 a Março de 2008), Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2009), As Guerras que já aí estão e as que nos esperam-se os políticos não mudarem – Reflexões sobre Estratégia VI, Europa-América, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2010), General Câmara Pina, Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, Lisboa. Santos, José Alberto Loureiro dos (2010a), História Concisa de Como se Faz a Guerra, EuropaAmérica, Mem Martins. Santos, José Alberto Loureiro dos (2012), Forças Armadas em Portugal, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa.

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A GUERRA MUDA (1789-1815)

Tenente-Coronel Nuno Lemos Pires

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A Guerra Muda (1789-1815) Tenente-Coronel Nuno Lemos Pires

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as guerras é habitual conhecermos melhor as versões contadas pelos vencedores. É natural, venceram, querem contar, podem fazê-lo, muitos querem demonstrar que fizeram parte da vitória, outros pretendem provar que são feitos da “mesma fibra”. Também há muitos que escrevem para as estudar, analisar, interpretar o que aconteceu e, como a maioria das referências são as escritas pelos vencedores, existe uma tendência, diríamos infelizmente normal, de usar mais estes relatos, porque estão em maior número ou, em muitos casos, porque são mesmo os únicos testemunhos. Depois há um segundo fenómeno associado aos relatos e testemunhos de guerras. Escreve quem sabe escrever e escreve quem pode e gosta de escrever. Ou seja, dependendo da época em análise, a esmagadora maioria dos combatentes não sabia nem ler nem escrever e, a não ser que alguém tentasse transcrever os seus testemunhos, estes perderam-se. Escrever implica ainda tempo e recursos. Muitos não têm nem uma condição nem outra, não têm tempo porque trabalham para sobreviver, não têm recursos porque papel, caneta (pena) e tinta são um luxo para famílias pobres. Em consequência, os relatos de guerras foram e são habitualmente contados pelos mais habilitados e com mais recursos, por alguns profissionais como jornalistas e escritores, e quanto mais recuamos no tempo são geralmente nobres e oficiais da mais elevada patente que decidiram contar ou contratar para editar as suas memórias. Por último há um terceiro acontecimento pouco referido. Os relatos das guerras são quase sempre escritos por quem está (ou observa) as grandes batalhas, nos combates mais significativos, nas ações dos exércitos “de primeira linha”. Poucos ou quase nenhuns contam as pequenas escaramuças feitas pelas populações, as ações de guerrilhas, das milícias ou das ordenanças. A razão é simples, uma vez que não produzem efeitos espetaculares não atraem cronistas. Porque as pequenas ações, quando analisadas individualmente, raramente provocam alterações significativas são esquecidas e ignoradas, e porque são feitas por “gente comum”, na sua maioria, sem tempo, sem recursos e fundamentalmente preocupadas em garantir a sua 155

própria sobrevivência dos mais próximos, não têm como nem quem lhes possa contar os feitos. É uma parte fundamental da guerra, a soma e a permanência desta ações provocam e alteram o decurso da mesma mas, quase sempre, esquecida e pouco contada. Durante as Guerras da Revolução (1789-1815) o papel desempenhado pelas populações foi fundamental. Estas guerras trouxeram para o campo de batalha o fervor revolucionário e as motivações ideológicas de centenas de milhares de soldados e simples cidadãos. Foi uma guerra combatida por gente em uniforme e sem uniforme, foi uma guerra entre o povo e com o povo. Em Portugal foi uma guerra que envolveu toda a nação e a que poucos puderam escapar. Os relatos sobre o povo português na luta pela sua sobrevivência foram mesmo muito esquecidos, raramente contada, por vezes deliberadamente omitida. Para centenas de milhares de “anónimos combatentes” e de milhares de “ações de combate” esquecidas, as guerras da Revolução foram, pela ausência de relatos, uma guerra “Muda”. Vamos contar um pouco sobre a parte “muda” da guerra. Lembrar o enorme esforço das populações portuguesas, tantas vezes esquecidas no resultado final da vitória aliada (anglo-portuguesa) e que durante muito tempo, apenas foi atribuída à glória de alguns, quase sempre britânicos e de elevada patente. Para tal iremos utilizar, exclusivamente, o pensamento do estratega e historiador militar, General Loureiro dos Santos. Assim, em todas as referências bibliográficas apenas colocaremos, entre parêntesis, a data da publicação e página respetiva (porque o autor é sempre o mesmo). No final do texto está a bibliografia que contém as referências completas das obras consultadas da autoria do Sr. General. A sua obra é tão vasta que pudemos, num trabalho que se destina a um livro em sua homenagem, cruzar os nossos pensamentos e reflexões com as suas e, desta forma, encontrámos um meio de “excelência” para dar significado e enquadramento “estratégico” ao nosso estudo. Sendo um período histórico muito alargado vamos tentar evitar cair no que Loureiro dos Santos apelida de “tentação das sínteses” (2010:20) mas, devido à limitação de espaço, dificilmente as deixaremos de as fazer. Assim iniciamos com uma possível síntese do período em análise. As guerras, no final do século XVIII, não eram apenas combatidas por Exércitos ditos tradicionais. Os Exércitos, em si, também tinham evoluído desde o princípio do século, crescido em equipamentos, meios e, enormemente, em número de combatentes. De poucas dezenas de milhares de soldados para os incríveis números que em breve ultrapassariam os centenas de milhares. Em 1812, na Campanha da Rússia, ultrapassariam mesmo a barreira do meio milhão de homens. A guerra tinha mudado o seu “rosto” e para além de enormes exércitos, havia inúmeras organizações e grupos de combatentes, por vezes espontâneos, que acorriam ao combate. Estes grupos, também de números muito elevados, praticamente não 156

foram contabilizados, nem para o combate e menos ainda para contagem final das baixas. Combateram e morreram pela sua pátria mas apenas se contaram os mortos em uniforme que estavam presentes nos exércitos de primeira linha, ou seja, uma tremenda injustiça que importa repor. O Cidadão, nas guerras da Revolução, em especial na França “revolucionária”, adquiriu um papel central. Naturalmente que se assistiu a muitas manipulações da informação, ideologias e políticas de oportunidade, mas efetivamente, o cidadão “comum” adquirira, ainda que conjunturalmente, uma voz própria. Mais tarde, por causa de imensos abusos, da anarquia vigente e mesmo de um certo caos instalado, a voz do “cidadão” ficou perdida no meio do fervor revolucionário que levou inclusivamente a uma insana campanha de terror na jovem República Francesa (1793-1795). Muitos que gritaram nas ruas de Paris não se aperceberam dos efeitos das suas ações no futuro, “os homens não têm consciência da sua posição no devir histórico” (2010:15) e como tal não tiveram a perceção que essa imensa revolta de 1789 ainda fosse hoje considera como a “Revolução”. Um marco, que se utiliza para descrever períodos históricos e alterações profundas na sociedade, é o antes e depois da Revolução Francesa de 1789. A força das populações era, à data, um dos fatores intangíveis mais importantes do potencial estratégico da Nação. O “sentimento nacional/sentido de destino” gritado e mostrado pelo voluntarismo nas ruas de Paris e pela presença em massa nas fileiras do exército “nacional”, são uma marca forte destes momentos revolucionários e que se traduzem na “vontade de o país se autogovernar” (2012:17). A adesão voluntária e fervorosa das populações começou efetivamente a perder ímpeto a partir de 1793. Em Setembro de 1792, junto ao moinho de Valmy, dá-se um importante evento, são milhares de indisciplinados voluntários, comandados por experientes militares como Kellerman e Dumouroiez, que enfrentam e obrigam à retirada os orgulhosos exércitos austríacos e prussianos (2010:135). Nos anos seguintes este tipo de recrutamento, voluntarista mas caótico, irá sendo substituído por um sistema de conscrição, de massas, legislado, de carácter universal e obrigatório. Em pouco tempo será um sistema adotado em muitos países e por diferentes regimes políticos (2010:76). Um fenómeno “revolucionário” que coloca voluntários ao lado de profissionais exponenciados por uma outra revolução, a industrial, que permitia o acesso a tecnologias e meios crescentes, resulta numa expansão global dos efeitos da guerra (2010:64 e 117). Entre outras consequências, a organização das forças para o combate, é agora tão importante como a organização da nação para a guerra (1979: 15 e 2010: 21). Na “Nação” todos contam: civis e militares, políticos, diplomatas e comerciantes, exército de primeira linha, milícias e ordenanças. É o conceito de “Nação em Armas” que se estabelece em França, primeiro levado pela ideologia de “liberdade, igualdade e fraternidade” e depois pelo “culto do imperador” (2010:66) e que, como conceito, se vai espalhando em muitos países no mundo. 157

Loureiro dos Santos propõe, como um método possível para analisar a evolução na história militar, o recurso aos denominados “elementos essenciais de combate” (1979: 25 e seguintes e 2010: 31 e seguintes): fogo, choque, movimento, proteção e comando/ ligação. Nas guerras da revolução todos os elementos estão presentes e serão exponenciados. O “movimento” materializa-se em 1805 na inovadora manobra de Napoleão Bonaparte em Ulm permitindo separar forças para as poder bater por partes. A “proteção” afirma-se na “muralha” nas linhas de Torres Vedras em 1810 barrando decisivamente a progressão francesa em direção a Lisboa. O “fogo” é elucidativo na força da artilharia que dizima milhares em Borodino em 1812 durante a malograda campanha da Rússia. Por último, a “comunicação” demonstra a sua indispensabilidade pela ausência, quando a ligação não se faz entre os corpos franceses na Península Ibérica em 1813 e no choque final entre as formações em Waterloo em 1815. Até ao final do século XVIII ainda podíamos circunscrever a ação armada à área onde se desenrolavam as operações militares mas, a partir da revolução francesa, a guerra passa a afetar diretamente não só as tropas como, de forma muito intensa, as populações em geral (2010: 66), e assim a abrangência passa a ser (muito mais) geográfica, psicológica e demográfica. Assim passamos a analisar os efeitos de cada um dos elementos essenciais de combate muito para além do “campo de batalha”. A “Grande Estratégia” implica uma visão sobre o movimento de forças, de populações e na forma como as interligar. As campanhas não se fazem mais de batalha em batalha e nem sempre serão batalhas a garantir o desfecho decisivo de determinadas campanhas. Na Guerra Peninsular torna-se evidente esta forma de entender a guerra, será o desgaste, a ação contínua sobre as forças francesas que levarão a uma vitória aliada e as grandes batalhas, relevantes e marcantes, não serão em si a única explicação para a retirada final para além dos Pirinéus. A crescente participação dos povos na guerra também implica que o poder exercido pelos governos e pelos generais no comando dos exércitos passe a estar menos isolado da vontade e sentir dessas mesmas populações. O “Poder era o intérprete da vontade geral da comunidade” (2010: 135) e, ainda que de forma marginal, muito longe da “plena democracia representativa” dos sistemas políticos atuais, o “despotismo iluminado” foi dando lugar a um crescente liberalismo e a uma crescente e afirmativa voz das populações. Portugal, consciente dos “ventos de mudança” causados pela revolução francesa, temeu pelos seus territórios, espalhados em cinco continentes. A guerra generalizada que se seguiu iria colocar, frente a frente ou de forma indireta, as grandes potências europeias e, consequentemente, despertando o apetite ancestral pelos territórios portugueses. Assim, nos anos seguintes, iriamos assistir a inúmeros ataques, disputas, ou mesmo, ocupações. Portugal hesitou de início afrontar a França mas, a partir de 1793, participa (tímida e discretamente) em ações armadas, em terra e no mar, contra as forças armadas francesas um pouco por todo o mundo e de forma 158

quase contínua até 1817. No entanto a sua diplomacia “pública” foi a de tentar a neutralidade, evitar a todo o custo que o território português na Europa entrasse nos projetos e ambições expansionistas francesas. Tentou mas não conseguiu. No final de 1807 acabaria por se registar a entrada de tropas francesas e espanholas para ocupar Portugal. Nessa altura, como ainda hoje, sabia-se que um país com a dimensão europeia de Portugal não teria possibilidades de vencer uma guerra convencional contra os maiores e melhores exércitos do mundo: o Francês reforçado com o Espanhol. A dimensão europeia de Portugal, quando comparada com países como a Espanha ou semelhantes, que pouco ultrapassa algumas das regiões desses “grandes” países europeus (como a Andaluzia, Catalunha, Galiza), traduzia-se numa capacidade “de encaixe estratégico reduzida” (2009b:137). Como tal a estratégia para resistir teria de ser outra. Não era possível “apostar” numa defesa direta do território nacional. Portugal, para se opor às grandes potências, procurou sempre duas soluções, cumulativas, por um lado associar-se a uma grande potência (historicamente a Inglaterra) e por outro, preparando a sua população para fazer uma forte resistência ativa contra o invasor, privilegiando assim, no caso de se tornar impossível a defesa direta do território, o uso de estratégias assimétricas (2009b:138). Sempre dentro de uma estratégia global, de coerência no emprego de meios, que possibilitasse uma natural coordenação das ações dos exércitos com a das populações. Para além do papel tradicional dos exércitos, de ocupar, conquistar e defender o terreno, estão bem presentes também as suas tarefas essenciais no contacto direto com as populações, para lhes garantir segurança, para lhes explicar a razão dos seus combates, para as incluir no âmbito dos sentimentos, afetos e emoções (2012:22). No caso Português foi, e é, um exército das populações onde as populações são exército, um “corpo militar que emerge da população do país” assente em “estruturas militares por regiões” (2012:64). Este é o “segredo”, secular, da defesa e soberania de Portugal. Quando possível expõe-se em batalha e bate-se como os melhores (como o foi em Aljubarrota em 1385 ou em Montes Claros em 1665) mas, contando sempre com o apoio e a vontade de resistir da população que o legitima, reforça e complementa como força de combate (como veremos entre 1807 e 1814). Mais do que apostar em fortes exércitos do tipo mercenários, Portugal incentivou o espírito dos valores, os tais outros fatores intangíveis do potencial estratégico de uma nação, assentou parte da sua estratégia em valores e moral das forças, das suas populações. Os valores nacionais “não são específicos dos militares, todos os portugueses refletem esses valores” (2009b:140) ou “não são apenas valores dos combatentes, mas sim de todos os que integram o corpo social português” (2003:235). Para mobilizar os portugueses para a resistência contra um possível invasor foi preciso procurar o apoio dos mesmos à causa que se defendia, pois este é um elemento crucial do “potencial estratégico global” de um país (2003:202). 159

Naturalmente que a defesa e a existência de valores nacionais, alicerçado num velho Estado-Nação, como era Portugal à época, foi importante, mas houve outros valores que também se demonstraram vitais para garantir a resistência ao invasor, como os valores religiosos. Além de uma “luta” contra os “pedreiros livres” emergentes surgiu a organização popular liderada pelos sacerdotes, e em especial, pelo “baixo” clero” no interior do País (2003:344). A força do potencial estratégico “população” ficou visível na forma como se conjugou o esforço convencional de defesa com o poder da insurreição popular e na forma do uso de “táticas e guerrilha e terrorismo” (2003:345). Esta componente essencial da estratégia de defesa foi essencial e obteve efeitos “muito significativos, se não decisivos, em todo o teatro de guerra” (2003:345), que constituíram “a base da guerrilha que assolou e desgastou as tropas de Napoleão” (2012:65). Dos 300.000 franceses empregues na guerra contra Portugal e Espanha, cerca de 230.000 eram empregues fundamentalmente para o controlo “das águas territoriais e respetivas populações, a que a insurreição generalizada obrigou” (2003:345). Para vencer esta guerra era preciso mais do que vitórias ou derrotas, era preciso ter a convicção das populações de que era possível derrotar os melhores entre os melhores, porque o que “interessa na guerra, mais do que a realidade é de facto a ilusão” (2009a:72). Tão importantes são as corretas informações sobre o estado das forças como são os “sentimentos e emoções” de quem se combate. Entre os principais pensadores que se debruçaram sobre a Guerra Peninsular encontram-se Jomini e Clausewitz. Ambos incidiram o seu estudo sobre a estratégia militar propriamente dita mas não deixaram de alargar o seu estudo para a estratégia total, em especial, Clausewitz, que ao abordar as restantes componentes da estratégia, deu um significativo destaque ao papel das populações no esforço global de guerra (2005:329). Jomini fez uma leitura demasiado “geométrica” da história (2005:329) e como tal não chegou à abordar a estratégia das restantes componentes, ou seja, não olhou para além dos exércitos em campanha, não percebeu a força do “exército das populações”. Mas os inúmeros autores que interpretaram e exponenciaram o pensamento de Clausewitz, quando tinham de ilustrar o poder das “populações” na guerra contra Napoleão, ilustravam os seus argumentos através das ações da “guerrilha espanhola” sem se referir ao esforço das milícias, ordenanças e guerrilhas portuguesas1. Infelizmente ainda hoje se houve falar muito mais das guerrilhas espanholas do que do esforço essencial das populações portuguesas. É ainda afirmado em muitas 1

Do autor existe uma descrição mais detalhadas do que são e do que fizeram as milícias e ordenanças no período compreendido entre 1808 e 1811: “Milícias e Ordenanças no Norte de Portugal durante as primeiras invasões Francesas” (2009), no I volume de o “O Porto e as Invasões Francesas”, Câmara Municipal do Porto e Edições Público, pp. 157 - 192; “O papel das Milícias e das Ordenanças na Terceira Invasão” (2011) no III volume do livro “O Exército Português e as comemorações dos 200 anos da Guerra Peninsular”, Edições Exército e Tribuna da História, Lisboa, pp. 75-104.

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obras que a “guerrilha” nasceu em Espanha. De facto, os portugueses falaram pouco dos seus feitos em batalha, e ainda menos as populações, que foram muito parcas a contar as suas ações. No outro lado da fronteira criaram-se mitos, escreveram-se inúmeras descrições, romancearam-se vidas de guerrilheiros. Os espanhóis fizeram e fazem bem, nós é que fizemos mal em não contar, salvo raras exceções, poucas são as descrições da fundamental ação das “gentes” portuguesas. Porque estas gentes não a contaram, relembramos, ficou esta parte importantíssima da guerra, muda. Se não fosse Clauzewitz também não se conheceriam tão bem as outras componentes da estratégia. Para a História tinham ficado somente os principais feitos dos comandantes britânicos, escritos pela pena de Oman, Napier ou os dos comandantes Franceses, revelados nas memórias Junot, Soult e Marbot ou os relatos “romanceados” da bravura guerrilheira espanhola. Mesmo os “raros cronistas” portugueses da época, embora tenham referido o esforço das populações, deram um grande destaque à ação das forças regulares e falaram pouco das populações no seu esforço direto, como Cláudio de Chaby e Acúrsio das Neves. Mas vamos analisar com um pouco de mais detalhe o esforço português, em especial, das populações, na Guerra Peninsular. Portugal estava na altura, mais uma vez, entre os interesses da potência marítima britânica e da terrestre francesa e, quer quisesse quer não, viu-se envolvido numa guerra que não desejou (2005:330). Entrando com mais pormenor na descrição da guerra na Península Ibérica, uma das áreas de maior importância, foi a fronteira entre Portugal e Espanha. A fronteira separou a França e a sua aliada, Espanha, dos territórios portugueses até 1808 e a partir desta data, quando a Espanha mudou a sua posição e decidiu combater os franceses, entre o território base das forças aliadas britânicas e portuguesas contra o território ocupado pelos franceses. Parece por isso evidente que a fronteira terrestre entre os dois países peninsulares tenha ganho uma enorme importância, em especial, até ao ano de 1812, quando se passou à ofensiva estratégica anglo-portuguesa para libertar Espanha do jugo francês. A defesa da fronteira portuguesa foi permanente e, durante a maior parte do tempo, vigiada e defendida pelas populações raianas. Esta fronteira é uma das mais antigas no mundo, resultado de “uma inteligente ação política externa de D. Diniz que leva à assinatura do Tratado de Alcanizaes (1297) com Castela (…) alinhandoas quando possível por acidentes geográficos naturais que facilitassem a sua defesa” (2002:23). O Exército aliado Anglo-português de Wellington não tinha efetivos nem capacidade para estabelecer uma linha defensiva contínua ao longo da fronteira. A estratégia seguida para vigiar e defender os cerca de 800 km de fronteira entre Espanha e Portugal foi recorrer às fundamentais milícias e ordenanças portuguesas. Os comandantes regionais nomeados eram quase sempre portugueses, Sepúlveda, Freire de Andrade e Silveira a Norte, Alorna e depois Miranda Henriques ao centro, Paula Leite no Alentejo e Algarve. 161

Wellington sempre contou com as populações, na forma organizada, ou através do seu espírito de sacrifício para lutar ou abandonar os seus bens e recursos. Podia utilizar o seu exército anglo-português com toda a liberdade operacional na Península, fazer incursões em Espanha, como em 1809 sobre Talavera ou em 1812 sobre Madrid, porque confiava nas forças de segunda (e terceira) linha do Exército Português para lhe garantirem a defesa do seu santuário, Portugal. Mesmo dentro de Portugal podia movimentar-se livremente porque a área estava segura pelas milícias e ordenanças e, onde tais organizações não tivessem a necessária presença e eficácia, sabia que podia contar com a iniciativa local comandada por párocos, por aventureiros, por guerrilheiros de circunstância. As pequenas organizações de milícias e ordenanças não podiam efetuar significativas manobras militares e obter vitórias em grandes batalhas mas podiam utilizar dois dos princípios mais importantes da guerra: a segurança e a surpresa (2009a:122). Aplicando o princípio da segurança impediram a atividade de reconhecimento e de busca de informações dos franceses sobre o exército aliado anglo-português e, atuando sempre pela surpresa, causaram, além das baixas diretas, acima de tudo, um clima de incerteza, de medo, entre as tropas francesas, que sempre e crescentemente, limitaram mais as suas ações na Península Ibérica. Mas esse esforço e o grande significado estratégico não foi nem contado nem devidamente reconhecido. Podemos ler inúmeros relatos sobres as Batalhas do Vimeiro ou da Roliça que ocorreram em Agosto de 1808, mas praticamente nada sabemos sobre a primeira grande derrota das forças francesas na Península Ibérica, em Junho desse ano, conhecida como a Batalha dos Padrões da Teixeira (ou da Régua). Nessa Batalha, o mais temível general francês, o “maneta” Loison, foi derrotado pelos 3.000 (seriam 10.000?) bravos portugueses, razoavelmente coordenados e apoiados por Francisco da Silveira nas encostas do Marão. A palavra “comandados” seria forte demais até porque no comando direto das inúmeras e variadas forças estavam Oficiais das Milícias, das Ordenanças e do Exército, Monsenhores, Abades e Cónegos, Mestres-Escola, etc. (uma descrição interessante e feita em cima do acontecimento pode ser encontrada na Minerva Lusitana nº9 de 21 de Julho de 1808). Milícias, ordenanças, guerrilhas, religiosos e populares, até umas poucas de peças de artilharia, numa manobra tática (possível) de envolvimento, fixação e ataque em profundidade, assente numa enorme capacidade de sacrifício dos populares, naturalmente, a par de muito caos e desordem típicos de forças constituídas “adhoc”. Esta Batalha (quase muda nos relatos internacionais) garantiu a Portugal a primeira grande vitória internacional sobre os invasores franceses. Com a Batalha dos Padrões da Teixeira ficava quebrado “o mito da invencibilidade das tropas napoleónicas” (2005:332). Porque nesta batalha não havia britânicos ou espanhóis praticamente não foi contada, porque foi um exército de populares, os “puristas” da estratégia militar 162

decidiram ignorá-la, no entanto, foi uma vitória “grande”, intensa, da alma da defesa portuguesa, foi o verdadeiro grito de liberdade. Foi a demonstração da enorme força da melhor arma que uma nação dispõe: a vontade de se defender. Já em 1801 Manuel Godoy, o principal responsável pelo governo de Espanha e também o planeador da ofensiva espanhola contra Portugal na famigerada “guerra das laranjas” tinha ficado admirado pelo efeito multiplicador do potencial estratégico português possibilitado pelas milícias e ordenanças. Em 1808 seriam as milícias e ordenanças a empurrar “o melhor exército do mundo” para uma área limitada entre Lisboa e Badajoz. Quando Wellington chegou e desembarcou em Agosto de 1808 para derrotar definitivamente as tropas francesas de Junot podia contar com um “exército de voluntários” portugueses que garantiam a defesa e a segurança de 9/10 do País, desde o Minho a Trás-os-Montes até ao Algarve. No mês anterior, Junot desesperava por manter a linha aberta para Espanha e não hesitou em ordenar o massacre das populações em Beja ou Évora que teimavam em se apresentar em terreno aberto perante os corpos bem treinados do exército francês. Morreram dezenas de milhares e os portugueses aprenderam uma dura lição: de que não poderiam continuar a combater dessa forma. Em 1809 privilegiar-se-iam táticas de guerrilha que transformaram a invasão de Soult no norte de Portugal num inferno permanente. Quando as diminutas e ainda pouco eficazes forças “convencionais” portuguesas se tentaram opor ao bem treinado Exército de Soult, foram de novo, massacradas em Braga e no Porto. Mas enquanto o exército francês ocupava o Porto, Silveira com as suas forças “populares” fecharam o caminho ao invasor. Soult conquistou o Porto mas Silveira reconquistou Chaves, Soult tentou avançar para sul e os portugueses avançaram no norte pela Galiza para cercar e ajudar a libertar Vigo. No resto do país, nas fronteiras, foram colocadas inúmeras forças a vigiar e a defender. Os franceses tentaram mas não conseguiram ligar-se junto a Bragança, ou nas Beiras e menos ainda no Alentejo. O elemento essencial de combate, “comando e ligação”, estava comprometido entre os corpos franceses devido à ação das forças portuguesas. Estavam lá as milícias e as ordenanças. Mas para a História, dos 4 meses que durou esta tentativa fracassada dos franceses na denominada segunda invasão, ficaram os inúmeros relatos sobre a tomada do Porto por Wellington e as crónicas sobre o avanço do General Beresford para Norte. Muito pouco, mesmo muito pouco, sobre as decisivas ações dos portugueses de Silveira e nada, praticamente nada, sobre o enorme esforço permanente de defesa nas fronteiras entre Espanha e Portugal. Para além dos efeitos diretos do combate contra o invasor, estavam também os efeitos indiretos, porque o empenhamento de uma parte significativa do exército francês na tentativa de conquistar Portugal resultou num “enfraquecimento das forças que atuavam em outros teatros de operações mais decisivos a nível global” (2005:334). Também este esforço de fixação e cometimento do esforço francês foi esquecido, quem lê 163

algumas obras sobre a guerra peninsular, até parece que tudo se resumiu às três semanas do avanço de Wellington, como se os milhares de portugueses mortos na defesa do território não tivessem existido. Na derradeira tentativa francesa, na denominada terceira invasão, nem o melhor general francês enviado por Napoleão seria suficiente para ocupar Portugal. O Marechal André Massena, o “filho querido da vitória”, seria derrotado por uma brilhante estratégia delineada por Wellington que contava com a significativa contribuição de um país “em armas”, esgotado, faminto mas determinado. Massena chegou ao Bussaco em Setembro de 1810 onde enfrentou os anglo-portugueses de Wellington e descobriu que tinha a sua retaguarda permanentemente atacada pelas milícias e ordenanças portuguesas. Reforçou os pontos de abastecimento e deixou para trás inúmeros efetivos. As tropas francesas, quando procuravam abastecimentos na “terra queimada” determinada por Wellington, eram constantemente atacadas pelas populações locais. Quando tentou mandar mensageiros a França, estes raramente chegaram a meio do percurso e nunca conseguiam atingir a fronteira. Apenas conseguiu passar o futuro General Foy, que teve de levar de escolta, três batalhões de franceses. E, claro, se pouco se falou destas ações pouco ou quase nada se falou sobre a defesa da fronteira de Trás-os-Montes ou do Alentejo e Algarve no ano de 1810. Wellington manobrou todo o seu exército operacional entre o Bussaco e as Linhas de Torres Vedras porque Silveira, Wilson, Trant, Paula Leite, etc. mantinham o fundamental de Portugal ao comando essencialmente de forças de milícias. O esforço das populações deve ser entendido em várias dimensões. De um lado o da ação direta sobre o invasor mas também pelo esforço que recaiu sobre homens, mulheres e crianças que se viram “vítimas” de uma denominada estratégia de “terra queimada”. Embora esta estratégia impedisse o invasor de encontrar recursos, também e principalmente privava os habitantes de deles dispor para a sua sobrevivência. As populações, como parte integrante da estratégia de Wellington, tinham recebido ordens no verão de 1810 para transportar para fora do alcance das tropas de Massena “tudo o que pudesse servir-lhes, destruindo o que não fosse possível preservar” (2003:347). Quando Massena chegou, esgotado e exaurido em recursos, às denominadas Linhas de Torres Vedras em Outubro de 1810, encontrou uma muralha de fortificações e um sistema defensivo coeso, também ele erguido à custa de 150.000 trabalhadores populares. O teatro de operações ficou isolado para os franceses e os possíveis reforços impedidos de progredir. Quando, muito mais tarde do que pretendia, Massena finalmente recebeu alguns reforços, estes ficaram a meio do caminho empenhados em combates contra as milícias de Trant, Wilson, Bacelar e Silveira. Em 1812 os aliados anglo-portugueses puderam passar à ofensiva porque a defesa de Portugal estava firme. Em 1813 a enorme vitória na Batalha do mesmo 164

nome em 21 de Junho, em plena região basca com a participação de cerca de 30.000 portugueses, provocou ondas de choque por toda a Europa levando ao “apertar do cerco” das restantes nações europeias sobre Paris e Napoleão. Na Guerra Peninsular tiraram-se importantíssimas lições sobre o emprego de adequadas estratégias navais e terrestres. Sem uma adequada estratégia naval não teria sido possível inverter o avanço francês sobre a Europa, sem a indispensabilidade da estratégia terrestre aliada não teria sido possível retomar os territórios ocupados e atingir o coração de França em 1814. Sem a combinação entre uma adequada estratégia naval e terrestre nada teria sido possível (2005:332). Mas foi a combinação entre as várias componentes da estratégia que fez a diferença na guerra peninsular. Foi o esforço das populações, no resistir e no combater, com efetivos entre as forças de primeira linha, nas fundamentais milícias e ordenanças ou simplesmente, na defesa dos seus haveres e parco património, que residiu a força dos valores “intangíveis” portugueses. Magnífica lição de estratégia o que Wellington nos deu ao saber contar com todas as forças desta ancestral nação. Extraordinária a lição de coragem oferecida por uma população que nunca deixou de querer ser portuguesa. Espantosa demonstração de arrogância por todos aqueles que clamaram a glória dos seus feitos ignorando a voz dos que tanto se sacrificaram para uma estratégia coletiva que, no final, levou à derrota de Napoleão. Afinal ficou provada a “capacidade de resistência e de sacrifício notável, na defesa dos valores em que acreditam, em especial os religiosos e os nacionais” (2005: 337) por parte de uma população portuguesa “tão diversificada, com interesses e origens diferentes (…) unida por práticas e sentimentos comuns (…) submetidas à vontade do mesmo príncipe (…) com unidade e identificação” (2002:23-24). Em Portugal os comandantes sempre consultaram os seus subordinados antes das decisões finais, era assim no século XV e XVI, passou a ser ainda mais assim com o estabelecimento formal do estado-maior a partir do século XVIII. Uma forma sábia de comandar: ouvir, discutir, envolver na sua decisão os que depois a vão aplicar; finalmente decidir. Com as populações foi-se ainda mais longe, além do Rei discutir com as populações (nas cortes), foram as populações que se fizeram ouvir em determinados e vitais momentos da história de Portugal. Fizeram-se ouvir e fizeram-se notar. Porque quando não havia “estado” houve “povo”. Sem demagogias, a realidade desta “guerra muda” mostrou-nos o valor essencial das populações, primeiro na defesa do que é seu, depois, participando na defesa do que é português. Por último, contribuindo para um esforço aliado. Em muitos momentos a ação das populações foi caótica, errática e, até, contraproducente. Basta lembrarmos o terrível linchamento do comandante português em 1809, Bernardim Freire de Andrade, em Braga. Ao primeiro tiro milhares fugiam e nos momentos decisivos de alguns combates muitos populares desapareciam. Verdade. Mas também foi verdade que muitos acorreram aos 165

quartéis para se oferecerem para o exército no Verão de 1808, milhares pegaram em armas e combateram nas milícias e ordenanças, ou formaram pequenas guerrilhas. Tantos que combateram ao lado de párocos locais, de “improvisados chefes” ou mesmo sem chefes. Combateram, reforçaram e ouviram o que lhes era pedido. Fizeram a diferença. A História foi-lhes indiferente. Que a guerra “muda” se torne falada, porque se hoje existimos como Nação soberana é porque sempre o fomos e continuaremos a ser unidos na vontade de sermos portugueses. E se nos lembrarmos, sempre, que somos exército emergente de um povo que é um povo que, quando necessário, se sabe transformar em exército.

Bibliografia Santos, José Alberto Loureiro dos: (1979), Apontamentos de História para Militares, Lisboa, Instituto de Altos Estudos Militares. (2002), A conquista de Ceuta (1415), Lisboa, Prefácio. (2003), A Idade Imperial, Lisboa, Europa-América. (2005), “Algumas lições estratégicas da Guerra Peninsular”, em Guerra Peninsular – Novas Interpretações, Lisboa, Tribuna da História, pp. 329-338. (2009a), As Guerras que já aí estão e as que nos esperam se os políticos não mudarem, Lisboa, Europa-América. (2009b), “Fatores Condicionantes do Sistema de Defesa Português e do seu Funcionamento” em Forças Armadas, Uma Visão para Portugal, Lisboa, Diário de Bordo, pp. 133-146. (2010), História Concisa de como se faz a Guerra, Lisboa, Europa-América. (2012), Forças Armadas em Portugal, Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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AS RELAÇÕES CIVIS-MILITARES E O CONTROLO DO USO DA FORÇA. UMA PERSPETIVA CLAUSEWITZIANA

Tenente-Coronel Luís Fernando Machado Barroso

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As Relações Civis-Militares e o Controlo do Uso da Força. Uma Perspetiva Clausewitziana Tenente-Coronel Luís Fernando Machado Barroso

Q

objetivo deste texto é estabelecer uma base teórica de referência para as relações civis-militares em relação ao controlo político do uso da força, em situação de guerra ou de crise, baseada na obra de Carl von Clausewitz: “Da Guerra”. A principal razão para termos optado por “Da Guerra” resulta do facto de ser uma obra de referência no âmbito da estratégia, que estabelece muito claramente as referências para o estudo do fenómeno da guerra como empreendimento de uma sociedade dirigida por uma classe política e conduzida pelos militares1. Portanto, de acordo com a definição de relações civis-militares que a seguir apresentamos, aquela obra tem todos os ingredientes para fornecer o corpo de conceitos que necessitamos para descrever as relações civis-militares. Clausewitz, que viveu entre 1780 e 1831, foi simultaneamente soldado e teorizador do fenómeno da guerra. O seu mais importante trabalho foi “Da Guerra”, no qual tentou registar os elementos mais importantes da estratégia tal como os percecionava2. Publicada a título póstumo em 1832, a obra “Da Guerra” tornou-se um clássico na compreensão da relação entre guerra e política e de onde continuam a ser retirados conhecidos aforismos. Clausewitz estabelece uma base relacional entre guerra e política até ao nível das considerações e dinâmicas que regem a relação entre os líderes militares e os líderes políticos, uma vez que o seu ponto de referência é a eficácia estratégica. Para Clausewitz, a manutenção do controlo político não é apenas uma questão de princípio, mas a chave para o sucesso na guerra. 1

2

Na verdade, Carl von Clausewitz é essencialmente conhecido pelo estudo da guerra no seu livro “Da Guerra”. O seu legado em termos do estudo das operações militares tem sido negligenciado, apesar de ter elaborado um texto publicado pelo US Army War College intitulado “Two Letters on Strategy”, cujo objetivo principal era lidar com os problemas do planeamento de uma campanha colocados pelo Chefe de Estado-Maior da Prússia em 1827 (Cf. Clausewitz, Carl von (1984), Two Letters on Strategy, Edit. And Trans. Peter Paret and Daniel Moran, Fort Leavenworth: US Army Command and General Staff College, p. ix). Clausewitz, Carl von (1976), On War, Trans. and Eds. Michael Howard and Peter Paret, Princeton: Princeton University Press, p. 76.

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O modelo de análise que vamos utilizar corresponde à definição teórica das relações civis-militares. Estas descrevem a relação entre os militares de um Estado, as instituições e a população que servem, especialmente como comunicam, como interagem e como se regula a sua a ligação. Do mesmo modo, o controlo civil significa o grau de controlo que os líderes políticos utilizam para exercer a sua autoridade sobre as forças armadas3. Assim, consideramos que devemos responder às seguintes questões: Qual é a relação adequada entre o comandante e o líder político do Estado? Quais são os limites das suas responsabilidades? Que grau de controlo político deve existir sobre as operações militares? Será que atualmente há pouco espaço para a interferência dos fatores políticos? Que influência tem aquela relação na conduta da guerra? Onde está a fronteira que limita a influência política na conduta das operações militares? O que deve fazer o general se o governante faz uma leitura desadequada da situação? Tem o general o dever e o direito de desobedecer? Alguns autores têm-se debruçado sobre este importante assunto nos últimos anos, especialmente depois de um movimento “anti-Rumsfeld”, levado a cabo por alguns generais norte-americanos na reserva por causa da decisão em avançar na guerra contra o Iraque em 2003 e das críticas de quanto à estratégia seguida no Afeganistão4. Por essa razão, estabelecer uma base teórica para as relações civis-militares é um importante contributo para elevar a eficácia no emprego do instrumento militar. Neste âmbito, tem especial relevância compreender os processos de relacionamento civil-militar para determinar a linha que separa as respetivas responsabilidades e onde se confundem, que dinâmicas existem na assessoria estratégica por parte do chefe militar e que influência tem aquele relacionamento na eficácia das operações5. Iremos deixar de parte as considerações relativas aos tipos de regime e sua influência nas relações civismilitares, apesar de serem um fator extraordinariamente importante. Em regimes autocráticos, onde normalmente desempenham importantes cargos políticos, as altas patentes militares estão numa posição que lhes permite exercerem pressão que pode redundar na queda do líder político. Por essa razão, as nomeações e as promoções podem ter esse dado como fator decisivo. Por outro lado, em regimes 3

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Cf. Hooker, Jr., Richard D. (2011), “Soldiers of the State: Reconsidering American Civil-Military”, Parameters (Winter 2011-12), pp. 1-14. Cf. Cook, Martin L. (2008), “Revolt of the Generals: A Case Study in Professional Ethics”, Parameters (Spring 2008), pp. 4-15. Cf. Owens, Thomas Mackubin (2006), “Rumsfeld, The Generals, and Civil-Military Relations”, Naval War College Review, Vol. 59 (4), pp. 68-80. Cf. Desch Michael C. (2007), “Bush and the Generals,” Foreign Affairs, Vol. 86 (May/June), disponível em http://www.foreignaffairs.com/articles/62616/michael-cdesch/bush-and-the-generals# [Consultado em 28 de agosto de 2012]. Relativamente à influência das relações civis-militares e eficácia das operações Cf. Brooks, Risa A. (2007), “Civil-Military Relations and Military Effectiveness: Egypt in the 1967 and 1973 Wars”, em Brooks, Risa e Elisabeth A. Stanley (Eds.), Creating Military Power: The Sources of Military Effectiveness, Stanford University Press, p. 107.

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democráticos há uma tendência para o não envolvimento dos militares nas atividades políticas em tempo de paz. Porém, em tempo de guerra, a sua relação deve ser muito mais próxima. Isto é tanto mais evidente quanto é a dificuldade em caracterizar atualmente o fenómeno da guerra, especialmente devido ao facto de o Estado estar a deixar de ter o monopólio do uso da força, ao surgimento de atores transnacionais capazes de expandir a violência a nível global, à prevalência dos conflitos de baixa intensidade1 e à irrelevância da confrontação direta no campo de batalha. Neste âmbito, um dos autores mais relevantes é Mary Kaldor que, em muitos aspetos, exemplifica uma corrente que propõe um novo tipo de guerras. Argumenta que o pensamento de Clausewitz deixou de ser relevante porque não há lugar para uma confrontação direta entre Estados com meios exclusivamente militares7. O general Ruppert Smith afirma que os conflitos atuais não se resolvem pelo resultado de uma confrontação militar porque são os assuntos de mobilização política através do uso da violência que se tornou o seu principal objetivo8. Muitas vezes os objetivos políticos estão ausentes porque os combatentes pretendem manter um estádio de conflitualidade permanente porque procuram o lucro. A sua hipótese centra-se no facto de que este tipo de conflitos será o responsável por desintegrar o Estado-nação de Vestefália tal como o conhecemos. Adianta M. Kaldor que o fim da Guerra Fria marcou o início do fim dos conflitos entre Estados, sendo substituídos por conflitos caracterizados por uma luta civil isenta de racionalidade9. Uma outra referência é Thomas X. Hammes, que nos apresenta uma imagem de um novo tipo de conflitos que vem evoluindo ao longo do tempo10. O seu argumento baseia-se na evidência de que a guerra progrediu ao longo da História por gerações, estando a Guerra de Quarta Geração (G4G) atualmente em evidência. T. Hammes sustenta que a guerra evolui em paralelo com as mudanças mais significativas da sociedade. A G4G mudou o foco do emprego da força da destruição do adversário para a mudança de opinião dos líderes políticos adversários. Este foco não se alcança através da superioridade no campo de batalha, mas através da utilização de todas as redes disponíveis – sociais, políticas e culturais – a fim de mostrar ao adversário que o preço a pagar é demasiado elevado. O estratega da G4G pretende mostrar que os exércitos da Terceira Geração (G3G) não são Independentemente do nível de análise (estratégico, operacional ou tático), consideramos que o conflito de baixa intensidade está na faixa do espetro que engloba as operações militares que não têm como missão primária a derrota ou destruição das forças do adversário. 7 Kaldor, Mary (2005), “Elaborating the ‘New War’ Thesis”, em Duyvesteyn, Isabelle e Jan Angstrom (eds.), Rethinking the Nature of War, New York: Frank Cass, 2005, p. 221. 8 Ibid., p. 212 e 221. Para Rupert Smith o campo de batalha é o povo, o qual representa os alvos, os objetivos e as ameaças (Smith, Ruppert (2005), The Utility of Force: The Art of War in Modern War, NY: Alfred A. Knof, pp. 5-6). 9 Smith, pp. 210-220; Kaldor (1996), pp. 505-554. 10 Hammes, Thomas X. (2004), The Sling and the Stone, MN: Zenith Press. 6

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invencíveis num campo de batalha caracterizado pelas dinâmicas da globalização. Se recordarmos o conflito entre o Hezbollah e Israel, ocorrido no Verão de 2006, rapidamente se pode associar a G4G ao grupo islâmico e a G3G às Forças de Defesa de Israel (FDI). O Hezbollah capitalizou de forma soberba todos os danos colaterais, a maior parte delas provocadas intencionalmente, das FDI sobre as populações para radicalizar o conflito junto das populações libanesas11. O modus operandi do grupo Al Qaeda é também um claro exemplo de G4G. A Al Qaeda e seus franchisados pretendem evidenciar ao Ocidente que o esforço na “guerra contra o terrorismo” não produzirá os resultados pretendidos e que terá um elevado preço a pagar. Apesar de se ter vindo a assistir a uma evidente alteração – evolucionária ou revolucionária – do caráter da guerra e as forças armadas poderem deixar de desempenhar o papel principal na sua condução, a herança de Clausewitz continua a manter-se relevante. Talvez o seu mais conhecido e importante aforismo seja que a guerra é a continuação da política por outros meios12. Isto quer dizer que a guerra é um método para proteger interesses, alcançar objetivos e que tem uma natureza intrinsecamente política. Por esta razão, é também aplicável a todos os grupos ou centros de decisão política para além do Estado, colocando, todavia, a política no centro da guerra. Em Clausewitz encontramos também a guerra como um duelo entre dois adversários que atuam de acordo com as circunstâncias do momento, o qual é dominado pela fricção, pela desordem, pela fluidez e pela dimensão humana. Qual é a relação adequada entre o comandante e o líder político do Estado? Quais são os limites das suas responsabilidades? Que grau de controlo político deve existir sobre as operações militares? Será que há pouco espaço para a interferência dos fatores políticos? Responder a estas questões é um enorme desafio. Sun Tzu, que se crê ter escrito “Arte da Guerra” no século IV A.C., argumenta que a decisão de ir para a guerra deve ser meramente política, mas que o general deve atuar de forma autónoma a partir do momento em que a decisão é tomada13. Contudo, este aforismo terá uma óbvia aplicação se a finalidade da ação militar for a inequívoca vitória militar. A História está repleta de casos em que existe um excessivo controlo político sobre as operações militares e sobre a estratégia militar. Apenas para citar alguns exemplos, referimos que na recente História de Portugal, o general António de Spínola, como governador e comandante-chefe na Guiné, sofreu intensas Cfr. Barroso, Luís (2007), “Forças de Defesa Israelitas VS Hezbollah: A Guerra de 4ª Geração”, Jornal do Exército (Maio 2007), pp. 12-21. 12 Clausewitz, p. 87. 13 Quando o “general é competente e não sofre interferência do soberano será vitorioso” (Tzu, Sun (2002), A Arte da Guerra, Trad., Introd. e Notas de Luís Serrão, Queluz: Edições Coisas de Ler, p. 35). 11

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influências na sua estratégia por parte de Marcelo Caetano14. Durante a 2ª Guerra Mundial, Adolf Hitler influenciou de forma determinante a conduta das operações, especialmente a partir de 1941 aquando da preparação e invasão da União Soviética15. Estes dois exemplos referem-se a duas guerras com caráter diferente – subversiva e clássica, respetivamente. Porém, em ambos os casos, a intervenção do líder político foi em sentido contrário ao da avaliação militar. Mais recentemente, a decisão em avançar para a invasão do Iraque em 2003 pela coligação liderada pelos Estados Unidos da América e a conduta das operações deixaram muitas marcas nas relações entre os líderes militares e os políticos, com consequência que todos sabemos16. A obra escrita por Clausewitz é essencialmente conhecida por causa dos aforismos que relacionam a guerra com a política, devendo por essa razão ser considerada uma obra de referência no estudo das relações civis-militares e no uso da força. Antes de mais, temos de ter em conta que o general prussiano considerava a guerra como uma atividade humana única, que se distinguia das outras devido a alguns dos seus atributos: inerência do perigo, a incerteza, a dimensão humana e o acaso. Além do mais, considerava que a guerra não poderia ser analisada sem estar enquadrada pelo contexto político e social. A reflexão orientada na teoria da guerra é uma componente crucial na educação dos líderes militares e um aspeto essencial para o estudo da relação entre meios e fins. Para Clausewitz, esta relação focaliza-se na orientação política do uso da força. A guerra é uma atividade especial por causa da natureza específica dos meios empregues, e “os meios” da guerra são sempre o combate17. Ao mais baixo nível da guerra – nível tático – é mais fácil definir aquela relação, uma vez que os meios são as forças de combate e o objetivo é a vitória18. Porém, aos níveis estratégico e operacional da guerra os meios são muito mais variados e os fins estão mais relacionados com os objetivos que levam à paz19. Este aspeto é central para respondermos às questões formuladas anteriormente, uma vez que indica o domínio da atividade política sobre os assuntos estritamente militares. Curiosamente, em “Da Guerra”, Clausewitz não refere as relações civis-militares em tempo de paz, quando o foco é gerar os meios e organizá-los para utilização em tempo de guerra20.

Cf. Rodrigues, Luís Nuno (2010), Spínola: Biografia, Lisboa: a Esfera dos Livros. Ver o Capítulo 3. Cf. Manstein, Erich Von (2004), Lost Victories, Zenith Press, pp. 176-177 16 Cf. West, Bing (2008), The Strongest Tribe: War, Politics and the Endgame in Iraq, NY: Random House. Ver especialmente o Cap. V e Cap. XV. 17 Ibid., p. 95. 18 Ibid., p. 142. 19 Ibid., p. 143. 20 Ibid., pp. 131-132. 14 15

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A guerra, como atividade humana singular, tem como meio principal o combate, o qual decorre num ambiente de incerteza, exaustão física e pressão psicológica. A relação entre a guerra e outras atividades políticas baseia-se no facto de que aquela é apenas uma ramificação, sendo por essa razão uma atividade não autónoma21. A guerra é o produto de forças políticas que se mantêm ao longo do tempo, razão pela qual a origem da guerra é política e é uma atividade não autónoma com objetivos por si definidos e moldados. Assim, a lógica política da guerra estabelece as características desejadas para a paz que se lhe segue22. Por ser um ato de força para compelir o adversário, em termos abstratos não há limites para a sua utilização na prossecução dos objetivos pretendidos. Porém, a realidade impede que a guerra seja absoluta porque não se resume a um único e curto confronto. Isto deriva do facto de os recursos de um Estado, próprios ou resultantes de alianças, não poderem ser utilizados de uma vez só23. Este é mais um fator que reforça o aforismo de que a guerra é a continuação da política por outros meios, a sua causa, quem lhe estabelece os objetivos e se mantém como fator supremo na sua conduta24. Um outro ponto de referência quanto à relação entre os assuntos políticos e guerra é a sua conceção trinitária: a violência primordial; o jogo das probabilidades e do acaso; e subordinação à política25. Cada um destes elementos pode caracterizar um determinado tipo de guerra. Contudo, é o domínio da finalidade política que assume em Clausewitz a importância principal, uma vez que a política é a inteligência orientadora e a guerra apenas o seu instrumento, e não o contrário. Não existe mais nenhuma possibilidade do que a subordinação dos assuntos militares aos assuntos políticos26. E quanto à conduta da guerra? Que influência tem a relação entre aqueles elementos? Clausewitz salienta que os interesses políticos que levam à eclosão da guerra podem ser encontrados num espetro alargado de possibilidades, que vão desde a sobrevivência do Estado (guerra total) a outras causas que não refletem interesses vitais em causa (guerra limitada), como o caso de se combater por um aliado27. Como a guerra é um instrumento da política, o objetivo militar deve ser visto como seu subordinado. Assim, como a conduta da guerra deve ser orientada pela racionalidade política, os interesses em causa determinam o grau de esforço a levar a cabo28. Ibid., p. 127; p. 605. Cf. Ibid., p. 70. 23 Cf. Ibid., p. 70. 24 Cf. Ibid., p. 87. 25 Ibid., p. 89. 26 Ibid., p. 607. 27 Ibid., p. 94. 28 Ibid., p. 81. 21 22

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Apesar da correspondência entre os meios e os objetivos poder explicar, em parte, o carácter de uma guerra, é importante referir que a conceção trinitária da guerra ajuda a aprofundar este assunto. Em primeiro lugar, o envolvimento do elemento “povo”, que Clausewitz considera a fonte da violência primordial, pode fazer variar grandemente o caráter da guerra, uma vez que este pode não estar disposto a pagar o preço por objetivos não vitais29. Também o jogo das probabilidades e do acaso deixa espaço ao “general” para aplicar o seu génio na batalha e tirar partido das forças morais, da dimensão humana e do perigo30. Para analisar a guerra em abstrato ou compreender uma guerra em particular, mas também para planear ou conduzir a guerra, é necessário o estudo e a interação daqueles três elementos31. Afinal, a guerra consiste numa trindade paradoxal que é afetada pelo papel do povo, pelo caráter do comandante e do seu exército e pelos objetivos políticos definidos pelo governo. É a complexa interação entre estes três elementos que mais faz variar o caráter de uma guerra e nos dá importantes pontos de ligação para as relações civis-militares conforme as definimos anteriormente e que serviram de modelo de análise. Um outro ponto que é necessário ter em consideração nas relações civismilitares é que o objetivo político pode variar durante a conduta da guerra. Isto está relacionado com o facto de a atividade política não cessar durante a guerra, podendo modificar a sua orientação uma vez que pode ser influenciada pelos acontecimentos e pelas suas consequências32. A relação entre política e guerra tem também implicações na influência contínua entre a execução das operações e o seu objetivo político. Sendo a guerra uma manifestação pura de violência, pode tomar o lugar da política fora do “gabinete” e ser regida pelas suas próprias regras33. Esta afirmação de Clausewitz indica que a guerra pode perder a sua racionalidade – subordinação à política –, apesar de referir que a linhas principais ao longo das quais progridem as operações militares, e às quais devem estar restringidas, são linhas políticas que pretendem alcançar a paz subsequente34. Pelo facto de a guerra ser um ato de política e um meio para alcançar o seu objetivo, determinar o grau de esforço que aquele objetivo justifica tem de ser uma decisão política. Esta decisão não é apenas requerida no início do conflito, mas, por causa das inerentes incertezas, deve ser continuamente avaliada35. Se influencia o esforço necessário, então também influencia a conduta das operações, uma vez que Ibid., p. 81. Ibid., p. 86. 31 Cf. Paret, Peter, “Clausewitz”, em Paret, Peter (Ed.), Makers of Modern Strategy: From Machiavelli to the Nuclear Age, p. 201. 32 Clausewitz, On War, p. 92. 33 Ibid., p. 87. 34 Ibid., p. 605. 35 Ibid., p. 92. 29 30

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Clausewitz rejeita a ideia de que existe apenas um caminho para a vitória. O que é importante é que o “general” tenha o conhecimento completo da política nacional e atue em conformidade36. Aos níveis mais elevados, a ideia de uma solução puramente militar não faz muito sentido, porque nenhum objetivo pode ser definido com ignorância dos fatores políticos37. Um importante elemento relativo à ideia de que a política é a inteligência que governa as operações militares, é o reconhecimento do facto que o governo tem um importante papel na determinação do sucesso das operações militares. Neste âmbito, Clausewitz refere que o governo é o custódio dos interesses do povo, pelo que o “general” não serve o governo em si mesmo, mas toda a comunidade38. Apesar de subtil, em “Da Guerra” há também espaço para a crítica à ação política. Clausewitz serviu nas forças prussianas durante as guerras napoleónicas, tendo sido capturado pelos franceses em outubro de 1806 e ficado retido em França, uma experiência que considerou humilhante. A sua estadia em França permitiulhe obter contacto direto com a sociedade e cultura francesas e a oportunidade para estabelecer as suas diferenças em relação à sociedade prussiana. Clausewitz considera que a derrota dos prussianos se deveu principalmente ao facto de o seu governo não ter utilizado a guerra como instrumento da política externa e de ter dado uma missão impossível ao seu exército. Além do mais, a sociedade prussiana considerava que a guerra era assunto apenas do foro militar39. Portanto, Clausewitz criticava o seu governo por não ter sabido envolver a sociedade prussiana. Assim, considera que a chave para o sucesso militar de Napoleão estava relacionada com as mudanças na sociedade que os seus adversários não conseguiram identificar. Afinal, a principal marca da Revolução Francesa não foi a revolução dos métodos militares de Napoleão, mas as radicais mudanças na sociedade, administração e a tenacidade do povo francês em manter os ventos da revolução40. Foi o general francês que percebeu e tirou vantagem do facto de que o “coração e a têmpera” de uma nação podem ser um enorme contributo para a soma total do seu potencial político e potencial de combate41. Operando nestas condições, a mais importante das quais foi o papel do envolvimento do povo na guerra, Clausewitz considera que Napoleão merece ser elogiado pela sua determinação em perseguir “objetivos grandiosos”. Na realidade, aperfeiçoou e explorou o potencial das suas forças armadas, tendo sido considerado por si como “Deus da Guerra”42. Por conseguinte, os governos podem também Cf. Ibid., p. 94; p. 111. Cf. Ibid., pp. 607-608. Cf. Clausewitz, Two Letters on Strategy. 38 Ibid., p. 607. 39 Paret, “Clausewitz”, pp. 191-192. 40 Ibid., p. 609. 41 Clausewitz, On War, p. 202. 42 Ibid., p. 583. 36 37

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contribuir para o sucesso do seu país se interpretarem com precisão os fundamentos das relações internacionais. Tudo depende de afiliações políticas, interesses, tradições, linhas de ação política e personalidades dos príncipes e ministros43. Todavia, é importante notar que a habilidade para analisar estes fatores deve ser do líder político e não do comandante militar. Para além disso, deve assegurar a mobilização dos necessários recursos a tempo de serem utilizados. Esta proposição leva-nos a questionar como Clausewitz considerava ser julgado o mérito de uma determinada estratégia. Uma estratégia ótima alcança os objetivos políticos com o mínimo de recursos. Assim, o príncipe pode demonstrar o seu génio gerindo a campanha através da adequação dos seus objetivos e meios. Neste caso, o génio é demonstrado não pelo método da ação mas pelo seu sucesso em relação aos objetivos pretendidos44. Aplicar o máximo esforço onde e quando não é justificável por motivos políticos é meio caminho para o desastre, uma vez que objetivos “menores” não são suficientes para motivar as pessoas ao sacrifício extremo e o esforço de guerra pode vacilar por razões domésticas45. Por isso, os meios devem ser proporcionais aos fins46. Isto não implica apenas uma gestão judiciosa dos recursos, mas também a procura de outras linhas de ação para além do uso da força máxima para alcançar os objetivos47. Na realidade, Clausewitz sublinha que o governante pode escolher a guerra como o caminho mais adequado para alcançar os seus objetivos políticos, mas deve também considerar que ao fazê-lo está a assumir o preço a pagar pela sua opção. Apesar de considerar que a atividade central na guerra é o combate, não significa que este ocorra sempre, uma vez que só se deve levar a cabo se as probabilidades de sucesso forem elevadas48. Como é lógico, deve estabelecer-se uma criteriosa comparação entre o preço a pagar em território, população e outros recursos com os objetivos a alcançar. Apesar de Clausewitz ser relutante em estabelecer comparações, considera que o povo pode pretender pagar um preço elevado pela sobrevivência da sua comunidade política49. Ou seja, quando a sobrevivência está em jogo, Clausewitz considera dever haver pouca relutância na aplicação dos meios. A política deve permitir todas as operações militares, e, na medida em que a sua natureza violenta o admita, deve ter uma influência continua no decurso da campanha50.

Ibid., p. 569. Ibid., p. 177. 45 Cf. Ibid., p. 78; p. 585. 46 Ibid., p. 602. 47 Ibid., p. 93. 48 Cf. Ibid., p. 97. 49 Cf. Ibid., p. 286; p. 483. 50 Cf. Ibid., p. 87. 43 44

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Onde está a fronteira que limita a influência política na conduta das operações militares? Que relação deve existir entre o governante e o comandante militar? A natureza do objetivo político, o esforço pretendido por cada um dos lados e a situação política de cada um são fatores que influenciam decisivamente a conduta da guerra51. Em “Da Guerra”, Clausewitz não delimita claramente a fronteira para a influência da política sobre a conduta das operações. Todavia, se o governante perceciona que as movimentações militares produzem os efeitos contrários ao que espera, deve influenciá-las52. Porém, a falta de compreensão da “gramática” da guerra por parte do governante pode ter impacto negativo nas operações militares. Este aspeto será obviado se o líder político estiver familiarizado com os assuntos militares. Contudo, isso pode não ser decisivo desde que tenha acesso à assessoria militar sempre que necessite53. Quanto à influência do nível político sobre a conduta das operações, Clausewitz dá-nos a entender que é ao nível estratégico da guerra que aquela é mais significativa e, como vimos anteriormente, corresponde ao nível em que os objetivos políticos devem ser adequados aos meios disponíveis. Quanto ao nível operacional e tático da guerra, Clausewitz é menos taxativo e até ambíguo. Considera que o governante não os deve influenciar, uma vez que as considerações políticas nada têm a ver com o “emprego de guardas ou de patrulhas”, exemplificando deste modo o nível tático. Porém, considera também que aquelas considerações podem ser importantes nos planos de guerra, das campanhas e às vezes da batalha54. Portanto, há aqui uma certa ambiguidade que pode ter resultado do facto de ter falecido sem acabar a obra. O plano da batalha é geralmente tomado como sendo da esfera da tática. Se as considerações políticas são importantes neste nível, Clausewitz não define um limite claro para essa influência. Como referimos, apesar de considerar que o governante pode não estar preparado para lidar com os assuntos militares, também não nos refere que não se deve envolver no controlo das operações militares. Assim, tal como ao mais alto nível da guerra, o governante não deve ter em conta apenas as considerações militares, deve reconhecer que ao nível tático as operações militares com objetivos limitados podem ter efeitos inerentemente políticos. Uma outra explicação pode residir no facto de o comandante dever identificar claramente que tipo de guerra enfrenta e atuar de acordo com esse quadro geral55. Dado que Clausewitz não estabelece claramente a divisão para a esfera de influência do comandante e do governante, é necessário saber como é que perceciona Ibid., p. 602. Ibid., p. 608. 53 Ibid., p. 608. 54 Ibid., p. 606. 55 Ibid., p. 88; p. 111; p. 222. 51 52

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a relação entre aqueles dois. Se o príncipe é o general, como foi o caso de Napoleão, então deve ter as características de governante e de comandante. Se por um lado o general deve ter as perícias necessárias para avaliar a situação política, deve também ser perito na utilização dos meios ao seu dispor56. Neste caso não existem tensões entre os dois. Uma outra possibilidade é o príncipe e o general serem duas pessoas diferentes. Neste caso, Clausewitz dá primazia ao governante. Refere que é esperado que as principais linhas de ação na guerra sejam resultado de forte influência política57. Para além do estabelecimento dos objetivos políticos, que são da responsabilidade do governo, espera até que as considerações mais importantes sobre o potencial do exército e seu sistema logístico sejam assuntos da política58. Por conseguinte, o general aceita os recursos dados pelo seu governo e aplica-os o mais eficazmente possível. Clausewitz considera também importante que exista muita proximidade entre o general e o político, considerando que o comandante deve ter lugar no gabinete para que os seus membros possam ser envolvidos nas atividades militares e viceversa59. Porém, não faz referências explícitas a situações de tensão entre os dois. Por essa razão, o que deve fazer o general se o governante faz uma leitura desadequada da situação? Tem o general o dever e o direito de desobedecer? Clausewitz dá-nos poucas indicações a esse respeito, referindo que a obrigação do general é não favorecer o inimigo e que nesse caso não se trata de uma verdadeira guerra60. Portanto, considera como ponto de partida a existência de harmonia entre os dois níveis. Possivelmente, Clausewitz considera que o papel do líder militar é apoiar o líder político na sua máxima capacidade e que a última opção é sempre do governante. Se considerarmos as democracias ocidentais, em que a eleição do governante é da responsabilidade do povo, o argumento para o controlo civil do instrumento militar é ainda mais forte. Apesar de Clausewitz não referir qualquer limite na influência do líder político, espera que a sua influência seja extensiva para que a guerra seja um verdadeiro instrumento da política. Ao considerarmos que a obra “Da Guerra” é uma das principais referências na doutrina estratégica nos países ocidentais, devemos tê-la em consideração também no âmbito das relações civis-militares. Como se pretendeu demonstrar, em Clausewitz existe um conjunto de pontos que são extremamente claros e importantes na definição de um corpo de conceitos naquele âmbito. Ibid., p. 112. Ibid., p. 608. 58 Ibid., p. 89; 196; 337; p. 360, 59 Ibid., p. 608. 60 Ibid., p. 604. 56 57

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O primeiro a ter em conta é o de que a guerra, sendo um ato de política, deve ser dominada pelas suas considerações. A finalidade da guerra é alcançar um objetivo político, pelo que os objetivos militares decorrem dessa dependência. Além do mais, como a atividade política não termina com o início da guerra, durante a sua conduta as considerações políticas continuam a exercer a sua influência nas operações militares. Por seu lado, com a finalidade de levar a cabo com sucesso as políticas do Estado, é importante que o comandante não seja apenas um bom general mas que seja imbuído do espírito do governante e com sólidos conhecimentos da política nacional e política internacional. Um segundo ponto a referir é o facto de os líderes políticos se envolverem claramente na conduta das operações militares. Para Clausewitz, o governante representa os interesses de toda a comunidade. Em conjunto com o comandante, o governante procurará os meios necessários para obter sucesso na guerra, defendendo desse modo os interesses da população e assegurando que os objetivos compensam o esforço de toda a comunidade. Por essa razão, os dois, comandante e líder político, devem estar em permanente contacto, sendo ideal que o comandante tenha assento no seu gabinete. Afinal, se o governante não tem perícia nos assuntos militares deve socorrer-se dos conselhos do líder militar. Em terceiro lugar, apesar de Clausewitz esperar que alguns detalhes operacionais estão para além da influência do líder político, isso não delimita uma linha clara para separar as suas responsabilidades. Assim, podemos considerar que em cada caso o governante e o comandante devem acertar os respetivos âmbitos de atuação. Se estiver em causa a sobrevivência da comunidade política é lógico que a linha de separação seja muito ténue, uma vez que os objetivos políticos são muito parecidos com os militares, orientando-se na derrota militar inequívoca do seu adversário. Onde “Da Guerra” tem pouca expressão é na possibilidade de tensão entre o comandante e o governante. Possivelmente, tal como deve ser conhecedor do potencial interno e da situação externa, Clausewitz considera que o líder político, ao dever conhecer os meios que tem á sua disposição, também considera dever manter harmoniosas as relações com o comandante. No mínimo deve socorrer-se dos seus conselhos. Clausewitz não nos dá sugestões quanto à possibilidade de intervenção do general contra ordens suicidas do governante nem que tipo de autonomia deve ter na conduta das operações militares. Porém, a conceção trinitária orienta-nos para a responsabilidade do general na relação entre o povo e o príncipe. Ler Clausewitz continua a ser um desafio para estadistas e para comandantes. O estadista deve pensar como estrategista e deve estar familiarizado com os assuntos militares. O comandante, por seu lado, deve ser um claro conhecedor dos assuntos de política nacional para saber qual o seu verdadeiro contributo para a consecução dos objetivos do país.

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O SISTEMA DE DEFESA ANTIMÍSSIL DA ALIANÇA ATLÂNTICA

Tenente-Coronel Francisco Proença Garcia

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O Sistema de Defesa antimíssil da Aliança Atlântica Tenente-Coronel Francisco Proença Garcia

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ste breve ensaio elaborado para o livro de estudos em homenagem ao General Loureiro dos Santos versa um tema estratégico e ao mesmo tempo, podemos dizer que muito querido pela Artilharia. A sua organização contempla quatro tópicos. Com o primeiro procuramos saber a resposta aos motivos que levam a Aliança a desenvolver esta capacidade militar; em segundo lugar interessa perceber como é desenvolvido o sistema. Falar em defesa antimíssil na NATO implica hoje abordar a temática da cooperação com a Rússia, tema a abordar no terceiro tópico e, por último, falaremos em novas formas de dissuasão e no reforço do link transatlântico. Deve precisar-se que este estudo resulta de reflexões do autor, que teve um empenhamento continuado ao longo de três anos como conselheiro militar na Delegação Portuguesa junto da NATO, onde, entre outros assuntos, acompanhou as negociações da defesa antimíssil quer no âmbito dos Aliados, quer destes com a Rússia. As ideias aqui expressas são baseadas exclusivamente em informação aberta e não classificada.

Porquê? A ameaça colocada pelo dilema da proliferação de armas de destruição massiva (ADM) cria uma alteração significativa na segurança internacional. Aproximamo-nos, a passos largos, de uma situação de não retorno, em que o desgaste dos Tratados pode levar a um efeito de cascata na proliferação, sendo os casos mais problemáticos identificados no Médio Oriente e no Golfo Pérsico, onde se prevê que se o Irão adquirir esta capacidade, a Arábia Saudita e a Turquia lhe seguirão as passadas. A Comunidade Internacional deve preocupar-se com esta situação, dado que há um incremento de actores estatais e não-estatais que procuram construir/ obter as suas próprias ADM. Estes podem depois constituir-se em fontes de 183

proliferação, assumindo particular relevo a ameaça que constitui a possibilidade de grupos terroristas terem acesso a tecnologia nuclear e poderem chantagear, destabilizar ou concretizar acções de terror. Hoje são nove os Estados identificados com arsenais nucleares, de um total de 12 que têm programas de armamento nuclear. Há ainda um total de 27 países que possuem mísseis balísticos. Um outro perigo prende-se com a criação de stocks elevados de material nuclear e radioactivo, estando algumas quantidades armazenadas em condições que oferecem pouca segurança. O factor humano desempenha também um importante papel. Há cientistas que trabalham no sector que expressaram a sua disponibilidade em trabalhar para Estados considerados proliferadores. Um outro exemplo surge com Qadeer Khan, “pai” do programa nuclear paquistanês, que criou o Walmart do sector privado da proliferação. Ao que tudo indica, Khan foi o grande responsável pela proliferação Sul-Sul, tendo criado uma rede internacional clandestina relacionada com a proliferação de tecnologia de armamento nuclear, do Paquistão para a Líbia, Irão e Coreia do Norte. Nestas circunstâncias, o risco de acesso por elementos terroristas a tecnologia nuclear aumenta significativamente, e não podemos deixar de ter em conta que a liderança da al-Qaeda tem tentado, de forma sustentada, adquirir, furtar ou conceber uma ADM. Esta persistência na proliferação, para além dos motivos de prestígio internacional e mesmo de economia, acontece sobretudo pela percepção de segurança que a posse de uma arma nuclear confere, nomeadamente quanto a uma eventual intervenção militar norte-americana. Mas a proliferação também se prende com a crença existente entre os estados com capacidade nuclear, do atual e contínuo valor daquele tipo de armamento, o que nos conduz ao círculo da dissuasão, incentivando aqueles que o não possuem, a adquiri-lo. O atual Conceito Estratégico, assinado em novembro de 2010 em Lisboa, carateriza o ambiente estratégico contemporâneo, considerando que a área euroatlântica se encontra em paz e que a ameaça de um ataque convencional, embora não podendo ser ignorada, é baixa; porém a aquisição e desenvolvimento de capacidades militares modernas em diversas regiões do mundo, com consequências difíceis de prever para a estabilidade internacional, nomeadamente para a segurança do espaço euroatlântico, onde se inclui a proliferação de mísseis balísticos, que coloca uma ameaça real e crescente. No atual complexo ambiente estratégico, a Aliança considera como principal ameaça, que terá de enfrentar durante os próximos 10 a 15 anos, a proliferação de ADM e o Terrorismo nuclear. 184

Mas apoiemos as nossas afirmações nas palavras do Secretário-Geral da NATO, proferidas no verão de 2011 no Royal United Services Institute em Londres: “As we sit here discussing missile defence, some people elsewhere in the world are discussing missile attack” 1 Alguns Estados têm capacidade de atingir o território Europeu, outros podem vir a ameaçar interesses da Aliança, em consequência da evolução tecnológica e do infindável desafio do combate à proliferação de ADM. O Secretário-Geral da NATO, considera assim que aliados não podem permitir que o seu espaço possa vir a ser violado ou atacado, sendo a NATO responsável pela defesa das suas Forças, do seu território e também pela protecção de cerca de 900 milhões de pessoas que vivem no espaço transatlântico. Os sistemas de defesa antimíssil (MD), que descreveremos adiante, estão a ser desenvolvidos para fazer face a uma possível ameaça de mísseis balísticos e, na Cimeira dos 60 anos da Aliança que teve lugar em Estrasburgo/Kehl, com base na análise técnica e político-militar, foi decidido que a ameaça deveria ser abordada por prioridades, motivo pela qual se entende que no imediato, a principal ameaça balística que a Aliança poderá enfrentar é proveniente do Médio Oriente, nomeadamente do Irão2. Irão que actualmente tem potencial conhecimento científico e tecnológico para desenvolver armas nucleares e desenvolve programas de enriquecimento de urânio e de produção de plutónio, e será capaz de desenvolver, construir e testar um engenho nuclear de um desenho simples, em dois ou três anos, após decisão para o executar, podendo levar cinco anos para transitar de um engenho simples para o desenvolvimento de uma ogiva nuclear capaz de ser acoplada num míssil balístico. Em paralelo com o programa nuclear, o Irão desenvolve mísseis balísticos, com o objectivo aparente de ser capaz de projectar ogivas nucleares para além das suas fronteiras. Esta, recordamos, é uma ameaça que politicamente é assumida como hipotética, pois apesar de o Irão desenvolver todas estas capacidades, não há evidência que procure ameaçar territórios, Forças ou populações da Aliança.

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O discuros intitulado “How NATO can defence against ballistic missile attack”, pode ser consultado na íntegra em http://www.rusi.org/events/ref:E4CF77C90E3362/info:public/infoID:E4DF8CB5F15F42/ Mark Fitzpatrick (2010) considera que há evidências que o Irão procura uma capacidade de armas nucleares devido, sobretudo, ao ambiente de secretismo em que o seu programa nuclear está envolvido; à falta de lógica económica das suas aquisições; ao desenvolvimento tecnológico de mísseis balísticos; e, aos laços militares para o programa e atividades relacionadas com o nuclear.

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Como? Na Cimeira de Lisboa foi reafirmado que a proliferação de mísseis balísticos coloca uma crescente ameaça às Forças, territórios e população dos Aliados, sendo que a MD constitui parte de uma resposta mais alargada para conter essa ameaça. Mas, ao falarmos em MD na NATO temos de abordar o tema em duas grandes áreas: Defesa de Teatro e Defesa Territorial.

Active Layered Theatre Ballistic Missile Defence (ALTBMD)3 O Programa do ALTBMD tem em vista o desenvolvimento de uma capacidade de defesa antimíssil capaz de conferir proteção às forças NATO em Teatros de Operações, fundamentalmente para mísseis balísticos com alcances até 3000 Km. O estudo de viabilidade deste Programa foi lançado em julho 2001 como resposta à proliferação das tecnologias ligadas ao emprego de mísseis balísticos e à existência de equipamentos capazes de alcançar partes do território da Aliança (podendo, mesmo, transportar ADM). Em março de 2004, o Conselho do Atlântico Norte aprovou o programa ALTBMD que foi posteriormente ratificado pelos Chefes de Estado e de Governo na Cimeira de Istambul. Este programa desenvolve-se por fases de implementação e baseia-se na integração dos diferentes sistemas em uso nas nações NATO. A Interim Operational Capability ou fase interina, foi concluída este ano e garante já proteção às curtas distâncias, estando atualmente em desenvolvimento a Initial Operational Capability que servirá para apoio à NATO Response Force, à qual se segue uma Full Lower Layer TMD C2, implementada através da estrutura de comandos fixa e móvel da Aliança; e, por último, a Integrated Upper/Lower Layer C2. A arquitectura final espera-se que seja atingida em 2017. Na cimeira que aprovou o novo Conceito Estratégico e que decorreu em Lisboa, os Estados membros aprovaram o objetivo do programa de comando, controlo e comunicações do ALTBMD, ser expandido para que a proteção seja garantida às populações e territórios dos Estados membros da Aliança. Atualmente decorrem estudos para verificar a viabilidade da integração deste sistema no novo sistema norte-americano, sendo que o ALTBMD, é a base do sistema de defesa antimíssil territorial da Aliança.

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Sobre esta temática podemos desenvolver na documentação oficial da NATO, editada no seu site: http://www.nato.int.

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Defesa antimíssil Territorial Foi na Cimeira de Praga em 2002 que foi decidido o lançamento de um estudo de exequibilidade do ambicioso projecto do Territorial Missile Defence4, que tem como objectivo proteger não só as forças, como o território e as populações das nações da Aliança e, a 17 de setembro de 2009, o Presidente Obama apresentou uma nova visão para a defesa antimíssil, o que veio alterar os trabalhos em curso na Aliança. A solução apresentada caracteriza-se essencialmente por se desenvolver em quatro fases até 2020 e foi designada como Phased Adaptive Approach (PAA). Na Cimeira de Lisboa este foi um dos temas centrais. O projecto tem como objectivo proteger as forças, o território e as cidades com mais de 125.000 habitantes. A capacidade de defesa antimíssil será desenvolvida a partir da arquitectura do Sistema Integrado de Defesa Aérea da Aliança, constituindo uma estrutura integrada dos dois sistemas (defesa aérea e antimíssil). O Sistema a criar baseia-se nos diversos contributos nacionais. Os EUA disponibilizaram o seu actual modelo, o PAA, que deverá ser complementado com os sistemas de outros Aliados, tendo a NATO de fornecer o sistema de Comando, Controlo, Comunicações e de Gestão de Batalha, que será criado a partir da expansão do Sistema ALTBMD. O projeto teve por base, por um lado, uma reavaliação da ameaça balística, nomeadamente por o Irão progredir mais rapidamente do que estava inicialmente previsto na sua capacidade de produção de mísseis de curto e médio alcance e, por outro lado, aproveitar a tecnologia e os meios disponíveis – os navios Aegis com interceptores SM-3 Block I-A – para fazer face à ameaça. Desta forma antecipa-se a efectiva proteção do território europeu em alguns anos. O sistema deverá evoluir em quatro fases5: • A partir de 2011, a operacionalização do projecto terá, essencialmente, por base os interceptores móveis colocados a bordo de navios no Mediterrâneo oriental. Capacidade de defesa para mísseis de curto e médio alcance (entre 1.000 e 3.000 km); • A partir de 2015, numa segunda fase, o sistema será complementado por interceptores terrestres, localizados no Nordeste europeu; • Até 2018 será efectuado o alargamento para o dobro da área de cobertura graças ao novo interceptor (SM-3 Block IIA) desenvolvido em cooperação 4

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Tratámos este assunto detalhadamente no artigo: O Regresso do Nuclear e a Aliança Atlântica; In Estratégia. Lisboa: Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Vol. XX, p. 107-148. Podemos detalhar sobre o sistema quer no site da NATO quer no site da Agência de Defesa antimíssil, norteamericana.

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com o Japão e a instalação de três novos “sites”, dois em terra (Roménia em 2015 e Polónia em 2018) e um no Mediterrâneo. Nesta fase também se terá novas capacidades de detecção e deverá cobrir todo o território e populações dos países da NATO contra MRBM/IRBM (até 5500 km); • Finalmente, em 2020, o sistema deverá ter capacidade de interceptar mísseis intercontinentais (+ 5.500 km), conferindo cobertura completa do território europeu da Aliança.

Esta abordagem terá menores custos do que outras apresentadas anteriormente, será mais flexível e adaptável, apresenta uma maior capacidade de sobrevivência e garantirá o princípio fundamental da indivisibilidade da Segurança para todos os membros da Aliança, sendo que, a arquitectura se desenvolve face à evolução da ameaça, tendo sido decidido que a prioridade na resposta deve antes incidir sobre os mísseis de curto e médio alcance, relativamente aos quais o Irão, como já referimos anteriormente, dispõe de capacidade desenvolvida. Quanto aos mísseis intercontinentais, a revisão efectuada concluiu que o acesso a uma tecnologia fiável e disponível não será uma realidade, no curto e médio prazo. 188

Este projeto ilustra bem os benefícios da Smart Defence conseguida com as economias de escala de abordagens multinacionais, tendo a Aliança anunciado a Interim NATO BMD Capability na Cimeira de Chicago em maio de 2012, capacidade que permite a máxima cobertura, com os meios já disponíveis, assente sobretudo no USS Monterey, equipado com o sistema de combate Aegis. Na declaração de Chicago é feita uma ressalva extremamente importante, o acordo do Conselho para um pré-arranjo de regras de comando, controlo e de procedimentos, tendo em conta ainda as consequências da interceção compatível com os requisitos de cobertura e proteção requeridos. Em Chicago foi também aprovada a nova postura de Defesa e Dissuasão da Aliança, onde vem reafirmada a importância das forças nuclares e da defesa antímissil, sendo esta capacidade aqui tida como puramente defensiva e complementar e não uma substituta da dissuasão nuclear. O documento sobre a revisão da postura conclui que a NATO deve manter capacidades de largo espetro, necessárias para a sua defesa contra ameaças à segurança das suas populações e território, mantendo-se assim uma appropriate mix de capacidades, onde se incluem forças convencionais. Todo este sistema deve ser avaliado de uma forma global, inserido no âmbito de uma estratégia de dissuasão norte-americana que engloba diversos parceiros. Na Ásia o Japão, a Coreia do Sul e Taiwan; no Médio Oriente Israel, Arábia Saudita, Kuwait e Turquia e, na Europa, a Alemanha, Holanda, Espanha e Grécia, todos dotados de sistemas Patriot. De lembrar que a Espanha e Noruega possuem também navios Aegis.

Cooperação com a Rússia O diálogo com a Rússia é fundamental em áreas cruciais para a segurança internacional, como sejam as discussões em torno do controlo de armamento, desarmamento e não proliferação, armas convencionais e nucleares, defesa antimíssil, segurança energética, bem como de tudo o que se relaciona com o espaço e o ciberespaço. Acresce que este relacionamento é igualmente relevante para as operações que decorrem no Afeganistão, no combate ao terrorismo, ao tráfico de droga e à pirataria. Este relacionamento não é, contudo, isento de percalços. Para que seja eficaz e efetivo, para que seja consequente e para que beneficie ambas as Partes, terá sempre de se basear na confiança mútuas, nos princípios da transparência e reciprocidade, sem que tal signifique um direito de veto da Rússia sobre os destinos da NATO. Há um acordo de princípios, negociar sobre assuntos em que se concorda discordar (agree to disagree). 189

O MD é no entanto central em todas as negociações com a Rússia. De entre os programas em curso no âmbito do Nato Russia Council (NRC), é de destacar a cooperação a nível Theatre Missile Defence. Este programa tem como objectivo conseguir a interoperabilidade entre os meios da Rússia e da NATO, com o consequente aumento da eficácia global do sistema. A mais recente doutrina militar russa considera o alargamento da NATO uma das principais ameaças à sua segurança, isto em paralelo com o desenvolvimento do eventual sistema antimíssil, perturbadores da actual estabilidade e alinhamento no campo do nuclear, bem como da militarização do espaço e a projecção de sistemas de armas estratégicas não nucleares6. A Rússia reserva o direito de empregar armas nucleares em resposta à utilização deste tipo de armas ou de qualquer outro tipo de ADM contra si ou contra os seus Aliados, ou também de qualquer outro tipo de armas contra a Federação, desde que a existência do Estado esteja sobre ameaça, Deixa no entanto a “porta aberta” para negociações no que ao MD diz respeito, pois admite a possibilidade da criação de mecanismos para a regulação e cooperação bi e multi-lateral neste âmbito. Tudo depende do papel que lhe for atribuído e do grau de participação no processo de decisão. Mas porquê a preocupação e a insistência com o envolvimento russo no MD? Com efeito, a Rússia possui capacidades de deteção, identificação e tracking de um qualquer disparo, que seriam não só um contributo útil, como um corte nos custos de todo o projeto MD territorial. Esta cooperação é ainda fundamental pelas consequências associadas aos destroços que surgirão após a interceção/destruição de um qualquer míssil cujo alvo se localize em certas regiões da Europa, uma vez que o território russo terá a probabilidade de ser o território mais afetado7. Os EUA referem e forçam mesmo no seio da Aliança esta eventual cooperação com os russos na partilha de informação e na área dos radares, aproveitando a sua oferta, em 2007, de utilização das instalações em Karbala (Azerbeijão), e, em Armavir (Rússia), devido à sua capacidade para uma deteção precoce de lançamentos a partir do Irão. Esta cooperação deve assentar numa relação de confiança, no acordo de princípios e objetivos políticos, mas as Autoridades russas continuam a mostrar 6

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Na doutrina vem expresso :”(…) The main external military dangers are: a) the desire to endow the force potential of the North Atlantic Treaty Organization (NATO) with global functions carried out in violation of the norms of international law and to move the military infrastructure of NATO member countries closer to the borders of Russian Federation, including by expandig the bloc (…) c) the deployment (buildup) of troop contingents of foreign states (groups of states) on the territories of states contiguous with the Russian Federation and its allies and also in adjacent waters (…)”. Podemos detalhar em http://russianforces.org/ blog/2010/02/new_russian_military_doctrine.shtml. Podemos detalhar sobre esta temática no artigo do autor: O Regresso do Nuclear e a Aliança Atlântica.

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preocupação quanto às fases III e IV do sistema e, desde março de 2011 que pretendem obter garantias legais que os futuros intercetores não afetam o equilíbrio estratégico e que o sistema não está dirigido para a Rússia. Recordamos que na perceção da ameaça, a Rússia não equaciona o Irão como capaz de desenvolver misseis intercontinentais, precisos, num futuro previsível, e que o único ator com essa capacidade na região é a própria Rússia. Os EUA tentam explicar que a capacidade de interceção do sistema European Phased Adaptive Approach não se destina, nem tem capacidade de intercetar mísseis intercontinentais. Porém, apesar das garantias de que o programa MD não se destina a fazer face aquela nação8, mas fundamentalmente à ameaça crescente do Irão, os russos, caso não sejam membros activos no processo, rogam-se no direito de considerar ameaça, todo o míssil que cruzar o seu espaço e de tomar as medidas que entenderem por adequadas, assumindo atualmente uma posição interessante, definida pelo seu Representante Permanente junto da Aliança, Embaixador Rogosin como de “trust but verify”. No fundo tudo dependerá do papel que for atribuído à Rússia e do grau de participação no processo de decisão. Quando a Aliança Atlântica convidou a Rússia para cooperar num modelo de defesa antimíssil do território europeu, previa a existência de dois sistemas independentes e coordenados, não abdicando a NATO da sua responsabilidade exclusiva pela defesa do território dos seus Aliados. A insistência do então Presidente, Dmitry Medvedev num sistema único, com uma componente de comando e controlo centralizada, e dividido em sectores regionais, veio de algum modo atrapalhar a metodologia pensada para o prosseguimento deste importante mandato dimanado de Lisboa. A Aliança em 2011 apresentou uma proposta de criação de dois centros conjuntos, um mais no âmbito técnico para fusão de dados (joint NATO-Russia 8

O Secretário Geral, Anders Rasmussen enfatizava na Chatam House em Londres a 4 de julho de 2012: “(…) But I have three points to make. Firstly, we have explained to the Russians and we have had experts on both sides to meet. We have explained to the Russians that our system is not designed to attack Russia or undermine Russian deterrence policies. So technically it’s not designed to threaten Russia. Secondly, politically of course we don’t have any intention to attack Russia. Actually 15 years ago we signed a joint document called The Founding Act. In that Founding Act, Russia and NATO declared that we will not use force against each other. We stay committed to that declaration; I hope the Russians do the same. We are prepared to reiterate that political commitment. And thirdly we have suggested that the best way for Russia to see with their own eyes that our system is not directed against Russia would be to engage in practical cooperation. In concrete terms, we have suggested the establishment of two jointly staffed centres that could create a framework for exchange of data, preparation of joint exercises, the elaboration of joint threat analyses, etc., so they could see with their own eyes that our system is not directed against Russia. Well so far we have not reached a conclusion. The dialogue will continue and I hope at a certain stage we will reach an agreement (...)”. Para mais detalhes consultar http://www.nato.int/cps/ en/natolive/opinions_88886.htm

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Missile Data Fusion Centre), e outro para negociações e trabalho de estado-maior (Joint Planning Operations Centre). Estes centros permitirão a obtenção de um panorama operacional comum. A informação fluirá para o Centro através dos sensores da NATO e da Rússia. O conceito apresentado mantém dois sistemas independentes, protegendo NATO o território da Aliança e a Rússia o seu território; esta independência de sistemas permite que o ciclo de controlo de disparo fique também ele independente do centro conjunto de processamento de dados. Na Cimeira em Chicago foi novamente enfatizada a proposta de um regime transparente, baseado na troca regular de informação acerca das capacidades de defesa antimíssil da Aliança e da Rússia. Uma cooperação assente nestas bases é entendida pela NATO como a melhor forma de a Rússia ter assim as suas garantias de segurança relativamente aos seus planos e capacidades. Dois anos após a Cimeira de Lisboa, é possível testemunhar evoluções nas posições russas em relação ao desafio lançado pela NATO. Da reunião do NRC ocorrido a quatro de julho de 2011, em Sochi, o Secretário-Geral da Aliança reiterou na conferência de imprensa, o empenhamento da Aliança e da Rússia no estabelecimento de um ambiente de confiança recíproca em prol da segurança internacional, considerando que esta postura dará um novo impulso ao compromisso estabelecido pelo programa de defesa antimíssil da Aliança. Rogosin, embora não ocultasse ainda algum ceticismo, reconhecia que o sistema antimíssil da Aliança é possível de concretizar com a Rússia ou contra a Rússia. Um ano volvido sobre Sochi, em Chicago, foi reafirmado o empenho da Aliança em se manter ligado a estados terceiros, numa base caso a caso, de forma a incrementar a transparência, confiança e a incrementar a efetividade da defesa antimíssil. Na declaração final da Cimeira é enfatizada a manutenção do empenho da cooperação com a Rússia, avançando formalmente com as mesmas propostas concretas de cooperação e de garantias de que esta capacidade não mina a estabilidade estratégica e que esta também não se dirige à Rússia, mas que se destina sim a ameaças hipotéticas que possam emergir fora da área euro-atlântica, encorajando ainda declaração, a continuação do diálogo com o propósito de se alcançar um acordo de cooperação.

O link transatlântico Esta questão demonstra a importância do papel crítico do fortalecimento do link transatlântico e não pode também ser desligada da presença nuclear norteamericana na Europa. Enquanto esta se mantiver, a NATO deve desenvolver a defesa antimíssil como um elemento da sua postura defensiva cada vez mais importante, acrescentando assim um importante vector de dissuasão pela 192

negação. Um sistema de defesa antimíssil efectivo pode ser complementar e eventualmente, a seu tempo, o substituto da nuclear sharing, como meio de manter os EUA empenhados na Defesa Europeia; acresce que alguns Estados-Membro, não sentirão a necessidade de desenvolver os seus próprios meios nucleares, e ainda, este sistema não manterá na Aliança o estatuto diferenciador entre países nucleares e não nucleares. Recordamos que as atuais Forças nucleares disponíveis para a Aliança já não se destinam a ser empregues contra um país ou alvo específico e o seu emprego é extremamente remoto, sendo a sua função política, enviando uma mensagem de dissuasão clara por parte da Aliança. Esta capacidade continua a proporcionar uma resposta gradual e proporcional a um qualquer risco emergente, evitando uma escalada massiva; mas e sobretudo, continuam a dar a clara indicação política que mantêm o link transatlântico e o garante da Extended Deterrence, ficando sempre um sinal político negativo com a sua retirada.

Reflexões Finais A Aliança Atlântica conduziu um longo processo de negociações para em Chicago apresentar a sua capacidade interina de defesa antimíssil. Esta capacidade, que surge oficialmente para fazer face a um inimigo identificado no médio-oriente, vem demonstrar a necessidade de uma smart defence para ameaças consideradas globais e que só são possíveis de enfrentar através de investimentos multinacionais, que envolvam os elementos de uma organização de segurança e defesa coletiva. Porém, num mundo onde as prioridades estratégicas mudaram, na base deste justificativo operacional militar, de proteção de todas as forças, do território e populações da Aliança, encontramos dois grandes argumentos políticos de extrema importância e que passam não só pelo estreitar de relações com a vizinha Rússia, mas, e sobretudo, pelo reforço do link transatlântico, sendo que, para nós como cidadão europeu, a verdadeira importância político-estratégica do Programa de defesa antimíssil é a garantia de manutenção do foot print norte-americano no Velho Continente.

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Bibliografia e outras fontes: • FITZPATRICK, Mark (2010) – Iran’s Ballistic Missile Capabilities: A net assessment. International Institute for Strategic Studies, London. • GARCIA, Proença (2010) – O Regresso do Nuclear e a Aliança Atlântica; In Estratégia. Lisboa: Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e Academia Internacional da Cultura Portuguesa, Vol. XX, p. 107-148; • NATO (2010) – Active engagement, modern defence. Strategic Concept for the Defence and security of the members of the North Atlantic Treaty Organization. Brussels. • RASMUSSEN, Anders (2011) – How NATO can defence against ballistic missile attack, disponível em http://www.rusi.org/events/ref:E4CF77C90E3362/info:public/ infoID:E4DF8CB5F15F42/. • RASMUSSEN, Anders (2012) – NATO – delivering security in the 21st century, disponível em http://www.nato.int/cps/en/natolive/opinions_88886.htm. • SIPRI (2010) – Yearbook, Stockholm. • TNO (2007) – Missile Defence, an overview. The Hague. • http://russianforces.org/blog/2010/02/new_russian_military_doctrine.shtm • http://www.mda.mil/system/paa.html. • http://www.nato.int.

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DA GUERRA DE ÁFRICA 1960-1975 Análise Estratégica e Militar

Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada

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DA GUERRA DE ÁFRICA 1960-1975

Análise Estratégica e Militar Tenente-Coronel Abílio Pires Lousada

Nota de Agradecimento

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o General José Alberto Loureiro dos Santos, o militar português a quem todo o cidadão nacional reconhece saber estratégico de professor; o cidadão que todo o militar tem como exemplo de comandante.

Página de Rosto Os ataques da União dos Povos de Angola (UPA) aos fazendeiros no Norte de Angola (15-16 de Março de 1961) e os posteriores acontecimentos na Guiné (1963) e em Moçambique (1964) obrigaram o Estado Português a alterar prioridades estratégicas, concretamente a desenvolver uma guerra de contrassubversão nos territórios ultramarinos em detrimento da conceção convencional de defesa europeia. O que se pensava, inicialmente, que seria uma rápida campanha de pacificação resumida a acções de polícia tornou-se uma campanha de desgaste estendida no tempo, que as Forças Armadas sustentaram e o poder político alienou. Os decisores políticos e as chefias militares em Lisboa não foram apanhados desprevenidos, de tal forma que quando despoletou a subversão na Baixa do Cassange e em Catete (Angola - 1960), a resposta foi imediata porque os Generais Botelho Moniz e Beleza Ferraz tinham iniciado a alteração dos dispositivos das Forças Armadas. A resposta também foi a possível, tendo em conta o tipo de «agressão», as distâncias entre a Metrópole e as três Províncias Ultramarinas, o afastamento geográfico entre estas, as condições relacionadas com o clima, a orografia, a hidrografia e a vegetação em África e as fragilidades financeiras do Estado Português. 197

Portugal conduziu a guerra de forma a minimizar o seu impacto nas estruturas sociais portuguesas e a manter um ritmo lento e de baixa intensidade na sua condução, disseminando o mais possível o encargo pelos territórios africanos. A estratégia de contrassubversão adoptada assentou nas clássicas formas de coacção: diplomática, de forma a garantir a cooperação ou a acomodação dos aliados tradicionais e conter a oposição dos países vistos como ameaça política: económica, para melhorar as condições de vida das populações autóctones, fazendo-as sentir-se parte integrante do Portugal d’áquem e d’álem mar; psicológica, que se destinava a obter apoio das populações e a desmoralizar o inimigo, fortalecendo o moral das próprias forças; militar, que visava manter a ordem pública nas províncias, anulando acções subversivas, e garantir a integridade territorial, combatendo as guerrilhas africanas. O texto analisa a Estratégia Militar desenvolvida pelo Estado Português na Guerra de África, assente em dois pontos: em que moldes foi reorganizado o aparelho militar; qual foi a metodologia do emprego de forças. Assim, no âmbito da estratégia estrutural (composição, organização e articulação dos meios), procura-se compreender a amplitude da reorganização militar portuguesa para fazer face ao conflito. A análise da metodologia do emprego de forças releva da estratégia operacional.

1. Linha Estratégica do Estado Novo É perceptível que o Conceito Estratégico Português obedece a constantes de política externa desde o século XV ao XX: a percepção contraditória entre o oceano e o continente europeu, concretamente entre o Atlântico e a Espanha, que vincou a afirmação da vocação marítima do País; decorrente dessa realidade geopolítica, um conjunto de movimentos de longa duração histórica materializados nas alianças privilegiadas com a Inglaterra; um investimento estrutural no projecto ultramarino que foi, sucessivamente, desde a Índia, até o século XVII, ao Brasil, do século XVII ao XIX, até África, nos séculos XIX e XX. Estas constantes permaneceram durante o Estado Novo, embora a conjuntura externa tenha imprimido algumas linhas de força que obrigaram o regime a reajustamentos na estratégia delineada, como aconteceu com a Guerra Civil de Espanha, a 2ª Guerra Mundial, a adesão à OTAN, e a Guerra de África. As mais constantes e fortes relações bilaterais de Portugal foram as desenvolvidas com a Espanha. Se a ameaça espanhola permaneceu equacionada, com Salazar assumiu contornos específicos, que aproximaram os dois países. O primeiro acontecimento marcante foi a Guerra Civil de Espanha (1936-1939), que implicou um problema de segurança na fronteira terrestre. O conflito, como é sabido, internacionalizou-se e Salazar, temendo um regime comunista junto às fronteiras, fez do apoio aos nacionalistas de Franco um desígnio de Estado. 198

Também a 2ª Guerra Mundial contribuiu para essa cooperação. Consciente que assegurar a neutralidade passava por igual pressuposto na política espanhola, Salazar procurou obter garantias similares de Franco. A chave do sucesso assentou na intermediação da Inglaterra e na assinatura do Pacto Ibérico de 1940, onde a neutralidade e a não-agressão mútuas ficaram vincadas. A criação da OTAN foi o terceiro acontecimento que influiu na relação entre os países ibéricos. Devido a razões geopolíticas de natureza funcional centradas nas ilhas do Atlântico, Portugal foi convidado para membro fundador da Aliança Atlântica, em 1949, o mesmo não acontecendo com a Espanha, situação que esfriou as relações na Península. Contudo, a Salazar não interessava o isolamento da Espanha, pelo que procurou conciliar os princípios e objectivos da Aliança com os do Pacto Ibérico; inviabilizada a intenção de inserir a Espanha na Aliança, obteve-se um acordo bilateral com os Estados Unidos, em 1953, incluindo-se, assim, Madrid no sistema de defesa ocidental. Quando Portugal aderiu à OTAN, a estrutura militar do País assentava num Exército de massas resultante da reorganização de 1937, situação contrária às intenções da Aliança, que pretendia que “Portugal contribuísse para a defesa euro-atlântica com uma pequena força aero-naval.1 A verdade é que a NATO acabou por influir nas prioridades estratégicas para a utilização das forças militares e na mentalidade dos oficiais. Militarmente, as prioridades foram fixadas, por esta ordem, na defesa de Portugal Continental (ilhas atlânticas incluídas), na contribuição para a defesa da Europa, na reserva geral e na defesa nos Pirenéus2. Quanto à mentalidade castrense, a cooperação inter oficiais na esfera da Aliança fez surgir “no final dos anos 50 uma geração NATO”3, geração que originou clivagens dentro das Forças Armadas e entre estas e o poder político, como aconteceu com a campanha presidencial de Humberto Delgado, em 1958, e a tentativa de golpe de Estado do General Botelho Moniz, em 1961, para depois reverter num «cerrar fileiras» entre o poder político e a componente militar, que a Guerra do Ultramar cimentou. O facto de a Aliança Atlântica não incluir as possessões a Sul do Trópico de Câncer, obrigou ao desenvolvimento de uma estratégia nacional específica para o Ultramar. Pelo que se infere, o dispositivo geopolítico do País tornou-se claramente Atlântico que, associada ao facto da sua base geoeconómica estar em África, originou um afastamento estratégico do continente europeu, quase cingido aos contactos bilaterais com a Espanha.

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António Silva Ribeiro, Organização Superior de Defesa Nacional. Uma Visão Estratégica (1640-2002), Lisboa, Prefácio, 2004. Pedro Cardoso, “Evolução do Conceito Estratégico Nacional no Século XX”, in Estratégia, Vol. IV, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. António José Telo, Portugal e a NATO. O Reencontro da Tradição Atlântica, Lisboa, Edição Cosmos, 2006.

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2. Na Antecâmara da Guerra A transformação da Política de Defesa Nacional fez-se sentir no início de 1956, devido ao processo de descolonização em África. Se, entre as duas guerras mundiais, Portugal beneficiou do estatuto imperial das potências europeias vencedoras da 1ª Guerra Mundial (Inglaterra e França), tudo mudou depois de 19454, quando África salta para o topo da agenda internacional, que apresenta 1960 como o ano marcante5. Contudo, apoiado na premissa de que as Províncias Ultramarinas eram território integrante do Conjunto Português, Salazar não enveredou pela cedência de soberania de «parcelas» africanas6. Consequentemente, Portugal perdeu o apoio da Grã-Bretanha e passou a sofrer a pressão americana7, alcançando, em contrapartida, um realinhamento com a França e Alemanha. De facto, Enquanto Washington pressionou Lisboa a encontrar uma solução política para a Guerra e a Grã-Bretanha não pôde apoiar diplomaticamente Portugal na questão indiana, o Regime procurou o apoio da OTAN nas guerras em África, esgrimindo o perigo crescente da influência soviética no Atlântico Sul. Porém, a postura out for area da Aliança impedia a utilização de meios NATO em missões não NATO, motivando o Estado Novo a esfriar as relações com a organização. Portanto, a preocupação face ao Ultramar é assumida e Salazar reafirma, em discurso de 30 de Maio de 1956, proferido na Sociedade de Geografia de Lisboa, a sua disponibilidade estratégica para a defesa do Império, afirmando que Portugal é uma Nação “sem dúvida estranha, complexa e dispersa pelas sete partidas do mundo”, mas com um sentimento comum em toda a parte de “que ali é Portugal”8. Na verdade, desde o Acto Colonial de 1930 que África era assumida 4

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Destacam-se um conjunto de factores que o favoreceram: quebra da supremacia estratégica global de uma Europa devastada; a Carta das Nações Unidas, que advoga o direito à autodeterminação dos povos; a descolonização asiática e o “patrocínio” da Conferência de Bandung, que motiva o recurso ao uso da força armada para a libertação africana; o confronto bipolar no âmbito da guerra fria, pelo qual a URSS e os EUA se substituem às potências europeias em África. Em 1960, dezoito países africanos declararam a independência, num processo que só terminou em 1994 quando a Eritreia se separou da Etiópia. Em 1963, quando o PAIGC sublevou a Guiné, Salazar ainda ameaçou os revoltosos anunciando para o Ultramar três tomadas de posição possíveis: “a mais estreita e amigável colaboração, se julgarem útil; a maior correcção se formos dispensados de colaborar; a defesa dos territórios que constituem Portugal até ao limite dos nossos elementos humanos e dos nossos recursos, se entenderem por bem converterem as suas ameaças em actos de guerra e trazê-la aos nossos territórios”: Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, Vol. 6, Coimbra, Editora Coimbra, 1967. Não obstante, os EUA demitiam-se de debater formalmente, no seio da Aliança, questões relativas à política africana portuguesa, atendendo que o bloco afro-asiático presente na ONU se aproximava dos interesses soviéticos. Acresce que tanto a França como a Inglaterra receavam uma retracção de Portugal em África e a inerente ingerência dos EUA na África Austral. António Silva Ribeiro, ob. cit.

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como uma razão de Estado: “Sem ela, seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande país”, fundamentava Marcello Caetano9. Essa obsessão com a «Pátria Negra» justificava-se, de acordo com Salazar, com a trilogia geografia, heroísmo e comércio10. Desenvolveram-se, então, mediadas estruturais de Fomento destinadas a melhorar o nível de vida das populações, acelerar o povoamento e atrair aos territórios ultramarinos os grandes capitais e as indústrias. As questões sócioeconómicas sobrepunham-se a qualquer acto militar ostensivo de imposição da soberania É a partir de 1958 que o Regime assume que um conflito no Ultramar era inevitável, equacionando uma inversão estratégica, ou seja, dar prioridade a África em detrimento da OTAN, da Europa e da Espanha. No entanto, as opiniões divergiam entre os que argumentavam que a defesa dos territórios portugueses passava por uma maior aproximação à OTAN e os que entendiam que a reorganização se devia fazer no sentido de privilegiar a defesa dos territórios ultramarinos. Efectivamente, em 1959, enquanto o Ministro da Defesa, General Botelho Moniz, ainda considerava que no contexto de guerra fria a Europa constituía o teatro a privilegiar, o Ministro da Marinha, Almirante Quintanilha Dias, defendia a necessidade de mais navios de “alto mar” e o Subsecretário da Aeronáutica, General Kaúlza de Arriaga, pedia mais meios aéreos, Salazar afirmava que “o certo é que temos uma guerra no Ultramar e ela será de guerrilhas. Para isso, temos que estar preparados”. Enquanto isso, o Ministro do Exército, Brigadeiro Afonso de Almeida Fernandes, aconselhava numa directiva datada de 29 de Abril: “a urgente disponibilidade de unidades terrestres que, pela sua organização, apetrechamento e preparação possam ser empregadas na execução de operações de tipo especial: operações de segurança interna de contra-subversão e de contra-guerrilha”11, para actuarem na Guiné, em Angola e em Moçambique. Em 25 de Janeiro de 1960, a Directiva do General CEMGFA provocou uma alteração profunda nos objectivos estratégicos nacionais, apontando para a preparação de uma guerra no Ultramar, face às seguintes ameaças: acção insidiosa dos países vizinhos; guerra subversiva conduzida no interior dos territórios; sublevação12. Depois, a 25 de Novembro desse ano, o Conselho Superior de Defesa Nacional procedeu a uma readaptação estratégica do emprego de forças: o esforço militar da Europa foi transferido para África; reduziu-se a cooperação com a Espanha na defesa peninsular nos Pirenéus a uma atitude mais política que militar; 9

Valentim Alexandre, “O Império Africano (Séculos XIX-XX) - As Linhas gerais”, in O Império Africano. Séculos XIX e XX, Lisboa, Edições Colibri, Setembro de 2000. 10 P. John Cann, Contra-Insurreição em África 1961-1974. O Modo Português de Fazer a Guerra, S. Pedro do Estoril, Atena, 1998. 11 António Silva Ribeiro, ob. cit. 12 Francisco Proença Garcia, Análise Global de uma Guerra. Moçambique 1964-1974, Lisboa, Prefácio, 2003.

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foi revisto o plano de defesa interno do Território Nacional e os compromissos com a NATO sofreram novos ajustamentos13. 1961 é o ano horribilis de Oliveira Salazar: em Janeiro/Fevereiro desenvolve-se a Operação Dulcineia e o sequestro do paquete Santa Maria, pelo Capitão Henrique Galvão; em Fevereiro, o assalto à prisão, postos de polícias e de alfândega em Luanda por activistas negros; em 15-16 de Março, a UPA acomete as fazendas no Norte de Angola chacinando brancos e negros; em Abril, ocorre a tentativa de golpe militar pensada pelo Ministro da Defesa, General Botelho Moniz; em Dezembro, a União Indiana ataca as possessões portuguesas de Goa, Damão e Diu. Nesse ano, o Estado Novo assumiu a inevitabilidade de uma guerra nos domínios africanos, com a convicção que estava em causa a integridade do território, a preservação do Regime e a sobrevivência do próprio Estado, objectivos vitais pelos quais se predispôs a combater. Acontece que, em 1960, o estado de prontidão das Forças Armadas era preocupante. Para além das dificuldades de ordem financeira, impunha-se uma reafectação de meios (humanos e técnicos), um novo conceito de instrução e treino e uma harmonização de mentalidades no seio das Forças Armadas, necessários para uma remodelação profunda do aparelho militar adequável à nova tipologia de conflito. Portanto, a partir de 1961 a “geração NATO”, que pensou a guerra de contrassubversão e adequou o aparelho militar, cedia o passo à “geração MATO”14, que a sustentou durante treze anos. De facto, os ataques da UPA aos fazendeiros do Norte de Angola, obrigam o Estado Novo a adoptar medidas. Enquanto na metrópole as notícias eram silenciadas, em Angola o terror tomava conta das populações e a insegurança sentia-se pela primeira vez. Quando, a 1 de Maio desse ano, um corpo expedicionário desfila em Luanda a guerra seguia o curso dos acontecimentos precedentes15. Uma guerra que duraria 13 anos em Angola, 11 anos na Guiné, depois de o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) pegar declaradamente em armas em 1963 16, e 10 anos em Uma prática constante ao longo da década de 1950: fixação de compromissos (1951-1953); definição de compromissos (1954-1956); consolidação de compromissos (1957-1959); alteração de compromissos (1959-1961): Silva Ribeiro, ob. cit. 14 «Da NATO para o Mato» é um feliz trocadilho da autoria de João Vieira Borges, “Da Segunda Guerra Mundial à Guerra Colonial”, in O Pensamento Estratégico Nacional, Lisboa, Edições Cosmos/IDN, 2006. 15 Em Angola, a reocupação de toda a região foi conseguida através do empenhamento de forças portuguesas em operações militares de grande envergadura, as quais, apesar do êxito inicial, não puderam impedir o progressivo alastramento das acções de guerrilha a outras regiões de Angola. Estas acções foram da iniciativa não só da UPA, mas também, e sobretudo, do MPLA e, mais tarde, da UNITA. 16 Na Guiné, as acções de guerrilha foram iniciadas pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) em Janeiro de 1963, com um ataque ao quartel de Tite, a Sul de Bissau. As operações estenderam-se rapidamente a quase todo o território, em contínuo crescendo de intensidade, que exigiu o empenhamento de efectivos cada vez mais numerosos. 13

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Moçambique, cabendo à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) o ónus da insurreição, a partir de 196417. A instrução militar passou, então, a incorporar as técnicas de contra-guerrilha, com O Exército na Guerra Subversiva a servir de manual do treino militar, enquanto um conjunto de oficiais procedeu à recolha de ensinamentos e lições aprendidas em conflitos similares: no Quénia aprendeu-se a recrutar nas forças adversárias; na Malásia a retirar apoio da população e a garantir mobilidade; na Argélia, assimilouse as valências das unidades de quadrícula e de intervenção, extrair as vantagens de emprego dos meios aéreos e desenvolver um eficaz sistema de informações; no Vietname, a captação das populações foi o ensinamento recolhido18.

3. Reorganização Militar Foram umas Forças Armadas de massas, com elevados efectivos e baixo nível de equipamentos e armamentos, que combateu nos três teatros de operações em África19. As limitações de ordem política, financeira e tecnológica impediram a constituição de forças mais adequadas ao cumprimento das missões, como seria o caso, no Exército, de unidades de cavalaria ligeira, com viaturas blindadas para abertura de itinerários e escoltas a colunas e, na Força Aérea, aeronaves de transporte e de combate modernos e adequados à tipologia do conflito. Quando a guerra estalou, as forças portuguesas em Angola contavam com 6 500 militares, dos quais 1500 eram europeus e 5 000 recrutados localmente, numa altura em que as Forças Armadas Portuguesas contavam 79 000 efectivos, dos quais 58 000 pertenciam ao Exército, 8 500 à Marinha e 12 500 à Força Aérea20. Espalhavam-se por toda a província e não estavam preparados para repelir uma subversão em grande escala. A máquina de guerra portuguesa foi incapaz de levar para a região efectivos em número suficiente até 1 de Maio de 1961, e demorou até 13 de Junho para reocupar o primeiro e pequeno posto administrativo de Lucunga21. Contudo, perto do final de 1961, Portugal movera 40 422 das suas tropas europeias para as três colónias e, no final do conflito, em 1974, Portugal tinha 217 000 homens em armas, dos quais 149 000 se localizavam nos três palcos africanos22. Em Moçambique, a FRELIMO executou a primeira acção em Setembro de 1964, com um ataque à localidade de Chai, no distrito de Cabo Delgado, estendendo depois a sua acção ao Niassa, a Tete e ao centro do território. 18 P. John Cann, ob. cit. 19 Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Guerra Colonial. Angola - Guiné – Moçambique, Lisboa, Diário de Notícias, 1995. 20 P. John Cann, ob. cit. 21 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (19611974), 2º Vol., Lisboa, Estado-Maior do Exército, 2ª edição, 1998. 22 P. John Cann, ob. cit. 17

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Porém, os problemas com o recrutamento existiram e foram graves, principalmente ao nível dos quadros. À míngua de pessoal do quadro permanente, desgastado por sucessivas comissões, o governo reforçou o quadro de complemento para o exercício de funções e a execução de tarefas para as quais não tinham suficiente qualificação23. Em 1974 a situação era extremamente preocupante, pois nas fases de instrução básica e especial todos os quadros eram, na prática, oficiais e sargentos milicianos. E, assim, com o decorrer das campanhas, foi evidente a degradação da preparação técnica e da formação moral na instrução ministrada na Metrópole, com consequências ao nível da eficácia das unidades. Se o início do conflito coincidiu com um período de entendimento entre o Poder Político e as Forças Armadas, a sua continuação e as exigências crescentes da afectação de recursos humanos para o «alimentar» preocupou as chefias. O voluntarismo inicial dos oficiais e sargentos, a quem eram permitidas comissões de quatro anos seguidos ou seis alternados, deu lugar à imposição, por manifesto cansaço do Ultramar24. Quanto às praças, que eram obrigadas a uma comissão de dois anos, o moral começou a diminuir, principalmente quando as rendições passaram a sofrer atrasos e o número de refractários cresceu. A solução foi o recuso ao recrutamento localizado, a denominada africanização dos efectivos. Inicialmente, a finalidade destes efectivos era a autodefesa das populações e a actuação como guias ou pisteiros. Mas rapidamente esta norma foi subvertida, criando-se unidades que se tornaram verdadeiras forças operacionais. Para se ficar com uma ideia do crescimento destas forças de segurança, milícias e organizações paramilitares, no início da guerra, em 1961, a percentagem média das topas africanas no quadro das tropas metropolitanas era da ordem dos 20,9%, atingindo os 38,7% em 1974, com uma distribuição desigual: triplicou em Angola (de 14,9% para 42,4%), duplicou em Moçambique (26,8% para 53,6%) e manteve-se praticamente inalterável na Guiné-Bissau (cerca de 20%).25. 23

Por razões de ordem financeira, tanto Salazar como Caetano não reforçaram os quadros, como exigia a situação, argumentando que “os quadros eram duradouros e a guerra temporária”:. Luís salgado de Matos, “A Orgânica das Forças Armadas Portuguesas”, in Nova História Militar de Portugal, Vol. 4, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2004. 24 Luís Salgado de Matos, ob. cit. 25 Comissão para o Estudo das Campanhas de África; Nuno Severiano Teixeira, “Portugal e as Guerras de Descolonização”, Nova História Militar de Portugal, ob. cit. Foi em 1966, em Angola, que surgiram as primeiras Tropas Especiais (TE’s), constituídas por antigos guerrilheiros capturados ou apresentados às tropas portuguesas. Em 1968, formaram-se também em Angola os Grupos Especiais (GE’s), que estavam vocacionados para actuarem nas áreas do seu nascimento ou da sua actuação. Havia ainda outros grupos como os Flechas, os Fiéis ou os Leais: os Flechas, que chegaram a ser uma dúzia de grupos, eram organizados, instruídos e controlados pela PIDE/DGS; os Fiéis, organizados em companhias de caçadores, foram recrutados entre os soldados da gendarmerie catanguesa que, a partir de 1967, abandonaram o território do Congo/Zaire, juntamente com os mercenários brancos; os Leais formavam apenas uma

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Em 1959, a Marinha interrompeu 40 anos de presença em África cingida a serviços que se ocupavam do Fomento Marítimo. Tomaram-se, então, um conjunto de medidas que permitissem a defesa das linhas de comunicação fluviais e lacustres, com o duplo objectivo de garantir a sua utilização segura e de exercer uma acção de contra-penetração, operando com as esquadrilhas de lanchas de fiscalização e de desembarque26. Paralelamente, competia-lhe desenvolver o esforço logístico mediante a ligação teatro de operações – zona do interior e apoiar as diversas unidades das forças militares e de apoio às populações. Nesse sentido, instituíram-se os Comandos Navais (Angola, Moçambique), que visavam assegurar a eficácia a nível regional e a sua correcta ligação aos centros de decisão e aos pontos de apoio da Metrópole, foram criados os Comandos de Defesa Marítimos (Cabo Verde e Guiné) subordinados aos Comandos Navais e organizaram-se unidades navais, de fuzileiros e de mergulhadores sapadores. Se, à Marinha, se deveu o controlo das vias fluviais e apoio logístico e operacional efectuado com as esquadrilhas de lanchas de fiscalização e de desembarque, operando, principalmente, no lago Niassa e no rio Zambeze (Moçambique), nos rios do Leste, rio Zaire e Chiloango (Angola) e em toda a Guiné, a actuação da Força Aérea revelou-se imprescindível para a conduta da actividade operacional das forças terrestres e da sua sustentação logística, apesar de a maioria das aeronaves estarem tecnicamente ultrapassadas, com excepção dos helicópteros e dos meios de transporte estratégicos B-707, adquiridos já na fase terminal da guerra. Assim, procedeu-se ao levantamento de infra-estruturas, concretamente, Bases Aéreas, Aeródromos Base e Aeródromos de Manobra. Nas Bases Aéreas ficavam sedeados os meios com capacidade de emprego a nível do teatro de operações, funcionando ainda como terminais de transporte aéreo estratégico que asseguravam o funcionamento das linhas de abastecimento logístico de natureza urgente a partir de Lisboa. Os Aeródromos Base estavam dotados, também, com meios aéreos e capacidade de manobra e abastecimento, enquanto os Aeródromos de Manobra, que não tinham meios aéreos atribuídos em permanência, constituíam uma malha em torno dos Aeródromos de Base vocacionados para apoio a operações prolongadas27. Ainda antes do início do conflito, deu-se prioridade de planeamento à missão de transporte, constituindo o Noratlas o avião vocacionado para essa função mas, companhia, constituída por refugiados zambianos opositores ao regime do Presidente Keneth Kaunda, que actuavam no saliente do Cazombo. Em Moçambique formaram-se alguns GE’s tendo, em 1971, sido criados os Grupos Especiais Pára-quedistas (GEP’s). Na Guiné as forças auxiliares eram todas chamadas milícias e, tal como nos outros teatros de operações, verdadeiras unidades operacionais: John Cann, ob. cit. 26 António Emílio Sachetti, “A acção da Armada nas Campanhas de África”, in Estudos Sobre as Campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Edições Atena, 2000. 27 Aurélio B. Aleixo Corbal, “O vector aéreo nas campanhas de África. Análise conceptual e estrutural”, in Estudos Sobre as Campanhas de África (1961-1974), Lisboa, Edições Atena, 2000.

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de facto, alguns tipos de aeronaves cumpriram com grande dificuldade as missões para as quais tinham sido concebidas. Como exemplo, temos o T-6, um avião de instrução utilizado sem grande sucesso pelos franceses na Argélia, o F-84, avião caça-bombardeiro já abatido e que foi, entretanto, recuperado, o B-26, avião utilizado na 2ª Guerra Mundial. O próprio Fiat G-91, avião de construção mais recente, estava no limiar de ser considerado tecnicamente obsoleto. Apesar dessa constatação, a chefia da Força Aérea não conseguiu durante os 13 anos de guerra ver aprovado qualquer projecto de modernização, que previa a aquisição do Cessna e do Aviocar para melhorar capacidades de apoio logístico às forças terrestres28. A ausência de oposição aérea e a reduzida expressão inicial da ameaça antiaérea permitiram que a Força Aérea cobrisse praticamente todo o espectro de modalidades de acção aéreas de reconhecimento, fogo e transporte29. Entretanto, a guerrilha evolui em poder anti-aéreo e adquiriu mísseis terra-ar (strella), fazendo aumentar, gradualmente, o número de aeronaves abatidas, particularmente na Guiné. Consequentemente, algumas missões essenciais para a manobra das forças terrestres, como reconhecimentos visuais e PVC, deixam de se fazer nos moldes habituais, afectando também o transporte do correio e a sustentação logística. Apesar das limitações do seu raio de acção, o Fiat G-91 é a única aeronave com poder de fogo e flexibilidade suficientes para atacar anti-aéreas, constituindo os helicópteros alouette as medidas anti-míssil, apesar de ser vulnerável às armas anti-aéreas e ligeiras, principalmente durante as manobras de aproximação e de descolagem. Seja como for, a adopção de medidas de protecção contra os mísseis diminuíram as vulnerabilidades das aeronaves e aumentaram a confiança dos pilotos, não deixando no entanto de afectar para sempre a liberdade de actuação da Força Aérea, colocando severas restrições a alguns tipos de operações efectuadas. Mas a guerra desenrolou-se, essencialmente, em terra. Assim, foi sobre o Exército que recaiu o esforço de guerra, cabendo às forças navais e aéreas apoiar as operações terrestres. Nesse sentido, acabou-se com a diferenciação entre Exército Metropolitano e Exército Colonial (que vinha do tempo das Campanhas de Ocupação Africanas, no século XIX) e atribuiu-se ao Exército a missão abrangente de “assegurar a defesa terrestre do território nacional metropolitano e ultramarino contra qualquer agressão externa e interna” 30. Foi criada a 3ª Região Militar (Angola, que incluía também S. Tomé e Príncipe), a 4ª Região Militar (Moçambique) e 7 Comandos Territoriais Independentes (onde se incluía a Guiné). Determinou-se a criação de «unidades especiais de intervenção imediata», de modo que, organizadas, apetrechadas e preparadas, pudessem ser empregues na execução de operações de segurança interna de contra-subversão e de contraguerrilha. Assim, em 1959, criou-se o Centro de Instrução de Operações Especiais, Aurélio B. Aleixo Corbal, ob. cit. Idem. 30 Decreto-Lei nº 42564, de 7 de Outubro de 1959. 28 29

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de onde saíram as Companhias de Caçadores Especiais31. Em 1962, foi retomada a ideia de se constituírem unidades especiais de contra-guerrilha, ministrandose instrução intensiva a grupos de combate e a alguns batalhões de quadrícula, que foram empenhados como grupos de intervenção. Esta experiência permitiu a criação do Centro de Instrução de Comandos (6 de Junho de 1965), que deu provas do seu valor no conjunto dos teatros de operações.

4. Metodologia de Emprego de Forças Dos princípios estratégicos aplicáveis na guerra em África salientam-se: a contra-subversão é uma luta pela população e nunca contra a população; a luta contra a subversão não pode ser levada a efeito exclusivamente pelas forças militares e estas não devem actuar unicamente pelas armas32. Portanto, a actuação contra-subversiva partia da premissa de que este tipo de guerra não se ganha pela acção militar, mas perde-se pela inacção militar, constituindo objectivo primário das Forças Armadas garantir a liberdade de acção política, governativa e administrativa33. Em 15 de Abril de 1961, o então Coronel Costa Gomes afirmava no Diário Popular que o problema das províncias africanas era um complexo de problemas do qual o militar é uma das partes que está longe de ser a mais importante34. Com opinião semelhante, para o General Augusto dos Santos os militares estavam no território para garantir a tranquilidade sócio-económica35. Portanto, a resposta exigia “uma acção coordenada e muito íntima entre as Forças Armadas, as autoridades administrativas e as populações, uma atenta vigilância na retaguarda e uma integração perfeita das acções diplomática, económicas, psicológicas e militares” 36. E, assim, os estudos efectuados evidenciam três factores importantes a reter: a necessidade de uma implantação territorial, designada por unidades de quadrícula, que efectuasse acções de nomadização, patrulhamento, protecção de itinerários e garantisse, por um lado, a segurança das populações e que as levasse a abandonar 31

Apesar da meritória capacidade operacional, as Companhias de Caçadores Especiais acabaram por ser extintas, decidindo-se, em determinada altura, “não há Caçadores Especiais, são todos normais”: As razões prendem-se com o “aligeirar” dos critérios de selecção das praças, a diminuição do número de militares do quadro permanente e a restrição do tempo de formação: António S. Soares Carneiro, “As transformações Operadas nas Forças Armadas para Responder às Exigências do Conflito em África”, in Estudos Sobre as Campanhas de África (1961-1974), ob. cit. 32 Documento Política Militar Nacional – Elementos para a sua Definição (Abril de 1959) e Estado-Maior do Exército, O Exército na Guerra Subversiva, 1963. 33 Francisco Proença Garcia, ob. cit. 34 António Silva Ribeiro, ob. cit. 35 José Freire Antunes, A Guerra de África 1961-1974, vol. I, Círculo de Leitores, 1995. 36 Comissão para o Estudo das Campanhas de África, ob. cit.

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o apoio à guerrilha e, por outro lado, que procedesse à cativação dos elementos afectos à guerrilha, com vista aos seu recrutamento e posterior aplicação contra a mesma guerrilha; a existência de forças de intervenção com elevada mobilidade, de forma a actuar em tempo oportuno contra formações inimigas; a importância de um sistema de informações integrado e coordenado para permitir o aproveitamento adequado das notícias recolhidas. Portanto, a manobra militar actuava punitivamente sobre os grupos armados que prejudicassem a manobra sócio-económica, expulsando-os da sua zona de esforço, por meio de acções de retaliação punitivas, ao mesmo tempo que procurava aliciar alguns dos seus elementos para o lado da autoridade constituída37. Assim, a reorganização territorial fixou a divisão em Comandos Territoriais, aos quais se sobrepunham uma quadrícula que tinha o Batalhão como unidade base. Porém, as unidades de quadrícula ficavam, tendencialmente, imobilizadas na área dos aquartelamentos, deixando a maioria das vezes a iniciativa das actuações operacionais aos elementos das forças de intervenção, mais aptas para operações de contra-guerrilha, ocupação de áreas sensíveis e escoltas. Porque a subversão procura apoiar-se no estado de subdesenvolvimento das populações, a doutrina de contrassubversão aponta como objectivo fundamental da guerra a conquista da adesão das populações. Ou seja, o estrato social autóctone apresenta-se como centro de gravidade estratégico da guerra. Nas regiões afectadas pela subversão, os negros passaram a ser as principais vítimas, razão pela qual as populações foram reagrupadas nos denominados aldeamentos estratégicos. Eram projectados com uma dimensão que tornasse possível a autodefesa e justificasse a implantação de equipamentos de interesse colectivo correspondentes aos seus anseios e interesses, onde o apoio sanitário, a promoção social, a manutenção da rotina quotidiana e a segurança estivessem garantidos. Face às precárias condições de transitabilidade existentes, dizia-se que em África a subversão começava onde acabava a via de comunicação. Estas tinham uma grande importância de natureza militar, pela mobilidade que conferiam às tropas nos movimentos tácticos e logísticos, bem como pelas facilidades que podiam conceder à aproximação das zonas de refúgio do inimigo. A importância era ainda maior no desenvolvimento económico dos territórios e na promoção das populações. Num continente em processo de descolonização, para Portugal os maiores problemas de controlo da subversão encontravam-se no seio de etnias cujas áreas de implantação se estendiam para o interior de territórios africanos recentemente independentes38. Concretamente, países como o Senegal e a Guiné Conakri no caso da Guiné-Bissau, o Congo Belga e a Zâmbia relativamente a Angola, a Zâmbia e 37 38

Francisco Proença Garcia, ob. cit. João José Brandão Ferreira, Em Nome da Pátria. Portugal, o Ultramar e a Guerra Justa, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2009.

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Tanzânia para Moçambique apoiavam os movimentos de libertação, autorizando a instalação nos seus territórios de campos de instrução, de bases operacionais e logísticas e, também, a circulação de materiais, de pessoas e de guerrilheiros. Situação que criou sérias dificuldades às forças portuguesas, na medida em que se tornava difícil evitar a sua entrada no território e, uma vez atravessada a fronteira, localizá-los. Operando a partir de uma Base e porque os efectivos eram reduzidos39, a guerrilha exigia dos combatentes grande rusticidade e mobilidade, características que fundamentavam a sua adaptação aos terrenos difíceis, que conheciam melhor do que as forças regulares, mais pesadas e mais lentas40. Como norma, as guerrilhas evitavam empenhar-se decisivamente com as tropas regulares, privilegiando a manobra de lassidão, materializada em emboscadas a colunas militares, ataques a aquartelamentos e utilização de minas/armadilhas nos itinerários. No entanto, os guerrilheiros africanos tinham vulnerabilidades, porquanto os laços estabelecidos pela consciência tribal criavam fracturas entre eles. Estas diferenças e os antagonismos étnicos, as diferenças culturais e ideológicas e, até, as disputas entre as chefias, minaram-lhes, em alguns casos, a disciplina e o moral, diminuindolhes a eficácia. Em escassos meses, os efectivos militares portugueses multiplicaram-se e desdobraram-se por inúmeras e distantes instalações, num teatro de operações com uma extensa linha de comunicações de onde tinham que receber quase todos os tipos de recursos necessários. Com algumas carências de determinados abastecimentos e com reabastecimentos nem sempre oportunos, o dispositivo logístico foi-se desenvolvendo e adaptando à manobra operacional, baseando-se numa logística de serviços. Numa guerra subversiva como a que Portugal suportou, o apoio logístico apresenta características próprias, a saber: descentralização e dispersão dos órgãos logísticos, com a consequente vulnerabilidade, bem como das comunicações que a servem; máxima exploração dos recursos locais; necessidade de estabelecer órgãos polivalentes para o reabastecimento; a carência dos transportes terrestres, a fraca qualidade das vias existentes e a sua extensão conferem importância acrescida ao transporte aéreo; a evacuação dos indisponíveis tem que ser realizada quase exclusivamente por via aérea; a conservação do material adquire a maior importância; os serviços técnicos são consideravelmente desenvolvidos41. A ligação Em Angola, a FNLA tinha uma força de 6 200 homens com base no Congo Belga, o MPLA estabeleceu-se em Brazaville (na Zâmbia, a partir de 1966), contando 4700 homens, e a UNITA contava apenas 300-500 guerrilheiros. Em Moçambique, a FRELIMO contava com 9600 guerrilheiros e, na Guiné, o PAIGC tinha 6500 homens em armas, em 1970. 40 Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, ob. cit. 41 Adelino Rodrigues Coelho, “O desenvolvimento da Estratégia Militar. A organização logística de apoio aos teatros de operações – o caso de Moçambique”, in Estudos Sobre as Campanhas de África (1961-1974), ob. cit. 39

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teatro de operações – zona do interior fazia-se preferencialmente por mar, sendo uma ligação morosa, podendo os meios aéreos transportarem pessoal, material e equipamentos críticos pouco volumosos. Resumindo, a componente militar portuguesa assumiu o objectivo de combater pela defesa da soberania, adequou os meios disponíveis ao binómio terreno/ inimigo e fez a guerra mediante um modelo “comportamental” que ultrapassou o simples uso da força armada, ou seja, combateu as guerrilhas, garantiu segurança e bem-estar às populações coagidas (brancas e negras) e desenvolveu uma política de fomento. Portanto, Portugal a conduzir a guerra de forma a minimizar o seu impacto nas estruturas sociais portuguesas e a manter um ritmo lento e de baixa intensidade na sua condução, traduzida naquilo que John Cann designou “o modo português de fazer a guerra”42.

5. Virar de Página Apesar do atraso da economia portuguesa, Portugal desenvolveu um estilo de campanhas de contrassubversão através de uma síntese de experiências de conflitos semelhantes e da sua própria experiência em África desde o século XV. A aplicação sistemática deste modo de pensar à ameaça colocada pelos movimentos nacionalistas foi efectuada tanto com uma perspectiva de estratégia nacional de contenção de custos e dispersão de meios, como no modo de dirigir a situação no campo de batalha. O actor que desenvolva uma guerra de contrassubversão tem contra si, por norma, o factor tempo43: Do mesmo modo, uma guerra deste tipo pode não se ganhar pela acção militar, mas perde-se garantidamente pela inacção militar, cujo fundamento estratégico pode ser a obtenção de vitória militar ou, mais usual, deter a iniciativa da guerra garantindo, dessa forma, margem negocial para o poder político encontrar uma solução adequada. Neste aspecto, o poder militar português em África cumpriu a missão, desaproveitada por um poder político incapaz de encontrar uma solução estrategicamente coerente com os objetivos de guerra: vitória militar e manutenção do satus quo (integração); garantia da iniciativa político-militar e negociação com os movimentos de libertação (independência); consulta às populações autóctones (africanas e europeias), envolvendo-as no processo decisório do futuro dos territórios. É certo que o cansaço militar do Ultramar era uma evidência em determinados sectores militares portugueses que se politizaram, assumindo que a guerra tinha que 42 43

John Cann, ob. cit. Não é uma verdade sem excepções, mas constata-se que à medida que a guerra se distende no tempo e no espaço a força moral do poder soberano decresce, a capacidade combativa diminui e o opositor ganha uma crescente liberdade de acção política e capacidade combativa.

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passar forçosamente por uma solução política. O próprio Marcello Caetano intuiu a crescente gravidade da situação, desabafando: “temos de continuar a guerra e de apostar na autonomia progressiva e participada. Agora quanto à continuação da guerra tenho as maiores dúvidas. Porque as Forças Armadas já não se querem continuar a bater, e o que desejam é fazer a paz. O moral das tropas é péssimo, e a infiltração comunista nos oficiais milicianos e nos sargentos é enorme. Não sei dizer por quanto tempo mais aguentarão o grande esforço que lhes é pedido. Suspeito de que não será por muito”44. Esta posição «alimentou» a génese de um movimento militar corporativo que propugnou o fim da guerra e, em última instância, conduziu ao derrube do Estado Novo através da revolta militar de 25 de Abril de 1974. Post Scriptum A suposta incapacidade de sustentação das Forças Armadas Portugueses nos teatros de guerra africanos dificilmente justifica a revolta militar de 25 de Abril de 1974. Na verdade, é evidente a impossibilidade de falar em derrota militar por parte das Forças Armadas Portuguesas na Guerra de África, mesmo que seja esgrimido o argumento de uma situação política insustentável. Os aparelhos militares são sempre um instrumento da política; seja na Flandres, na Guiné ou no Afeganistão os militares portugueses combatem com o objectivo único de criar as condições para que o poder político possa actuar livremente. Os poderes políticos por sua vez, por inacção, falta de visão ou convicção é que, muitas vezes, criam as condições para desaires no terreno, não dando aos militares as condições e meios para que cumpram a sua missão. Por isso, quando se fala de derrota militar não há outros critérios que não os da rendição, aniquilamento, fuga e/ou retirada dos militares e, em África, estes critérios acusaram negativo para o instrumento militar português. Refuta-se, portanto, a opinião da guerra perdida que por vezes se defende publicamente. Se fosse verdade que o instrumento militar português tinha a guerra perdida, isso significaria que os movimentos de libertação tinham a guerra ganha, isto é, que controlavam a maioria do território e as populações. Ora, isto está longe de corresponder à verdade dos factos. Para o efeito, refira-se a rapidez da resposta e a adequação do aparelho militar à tipologia dos conflitos, na condução da guerra a um ritmo lento e de baixo custo e à forma como as forças militares atuaram de forma conjunta e 44

Freitas do Amaral, O Antigo Regime e a Revolução. Memórias Políticas (1941-1975), Lisboa, Círculo de Leitores, 1995.

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se implantaram nos territórios através de uma malha com objetivos também psicossociais. E, assim, face a um inimigo com uma base de recrutamento reduzida e que padecia de coesão, a situação militar no Ultramar estava sob controlo. Situação fortalecida por um contingente militar africano que chegou aos 50% dos efetivos das Forças Armadas Portuguesas e a convicção que as populações autóctones não pretendiam a independência do espaço territorial em que viviam. Em Angola as Forças Armadas Portuguesas controlavam cerca de 98% do território, considerando-se a província politicamente sustentada, socialmente estabilizada e militarmente controlada. Em Moçambique a guerrilha estava a ser combatida e repelida, limitando a «margem operacional» da FRELIMO ao eixo Niassa/Tete, sobretudo depois da construção da barragem de Cahora Bassa. Na Guiné, apesar da complexidade crescente da situação político-militar, a iniciativa estratégica permanecia do lado português, a despeito da proclamação unilateral de independência de 1973por Nino Viera e dos acontecimentos ocorridos em Guilege. Na África Portuguesa não existiu nem se perspetivava um Dien Bien Phu no campo de batalha, nem uma retirada dos territórios sob pressão, como acabou por acontecer com a descolonização. Portanto, a revolta militar de 25 de Abril de1974 não pode ser justificada com a degradação militar da guerra, seja ao nível de uma hipotética derrota militar ou da existência de uma situação crítica no terreno (que não existiu). A conspiração que desembocou no 25 de Abril evoluiu durante cerca de um ano, várias reuniões e conheceu três fases45: (i) a primeira (Julho-Setembro de 1973) é de cariz corporativo e centrouse nas carreiras ao nível do quadro de oficiais, tendo no DL Nº 353/73, de 13 de Julho, a motivação, pois permitia aos capitães milicianos integrarem as armas de Infantaria, Cavalaria ou Artilharia, depois de um curso intensivo de dois semestres na Academia (os cadetes frequentavam a Academia durante três anos). Como a antiguidade que contava era a de Tenente (dada na segunda comissão como milicianos) e não a da frequência do curso na Gomes Freire, os capitães oriundos de cadete eram ultrapassados por aqueles, o que indiciava uma clara desvalorização da importância formativa da Academia Militar. Perante o eco dos protestos, o Ministro Sá Viana Rebelo procurou «emendar a mão», publicando o DL Nº 409/73, de 20 de Agosto que, ao salvaguardar os interesses em termos de antiguidade dos oficiais superiores sem 45

A divisão do processo, tal como se apresenta, é da autoria de Medeiros Ferreira, O Comportamento Político dos Militares. As Forças Armadas e Regimes Políticos em Portugal no Século XX, Lisboa, Editorial Estampa, 1992.

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contemplar as reivindicações dos capitães, agudizou a insatisfação dos oficiais subalternos e dos capitães «puros»; (ii) a segunda (Setembro de 1973-Fevereiro de 1974) marca a vontade, por alguns sectores das Forças Armadas, em encontrar uma solução política para a guerra; (iii) da terceira (Fevereiro-Abril de 1974) consta a decisão de derrubar o regime do Estado Novo. Entre a ditadura corporativista do Estado Novo ou a marxista-leninista pensada pela esquerda revolucionária de Abril em Portugal vingou, felizmente, a Democracia, vincada a 25 de Novembro de 1975.

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A GRANDE ESTRATÉGIA DA CHINA Visão, Operacionalização e Linhas de Acção a Médio Prazo

Tenente-Coronel Alexandre Carriço

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A GRANDE ESTRATÉGIA DA CHINA

Visão, Operacionalização e Linhas de Acção a Médio Prazo Tenente-Coronel Alexandre Carriço

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rande estratégia é uma expressão que evoca associações históricas tão instantâneas quanto fáceis, como a Guerra do Peloponeso, a realpolitik de Bismark, ou a Grande Aliança da Segunda Guerra Mundial, para além de obras como as de George Kennan, Paul Kennedy, John Gaddis e Charles Hill1. Diversos estudos foram efectuados tendo como objecto as grandes estratégias de alguns dos mais poderosos Impérios e Estados2, sendo a República Popular da China (RPC) o mais recente alvo desta lupa analítica, tendo-se multiplicado na última década as obras dedicadas à análise da sua estratégia de acordo com as três grandes teorias interpretativas das relações internacionais3. 1

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George F. Kennan (1950). American Diplomacy, 1900-1950. Chicago: University of Chicago Press. Paul Kennedy (1988). Ascensão e Queda das Grandes Potências (2 volumes). Mem-Martins: Europa-América. Paul Kennedy foi um dos assistentes de Lidell Hart. John Lewis Gaddis (1982). Strategies of Containment: A Critical Appraisal of Postwar American National Security Policy. New York: Oxford University Press. Charles Hill (2010). Grand Strategies: Literature, Statecraft, and World Order. New Haven: Yale University Press. Edward Luttwak (1979). Grand Strategy of the Roman Empire from the First Century A.D. to the Third. Baltimore: John Hopkins University Press. Edward Luttwak (1983). The Grand Strategy of the Soviet Union. New York: St. Martin’s Press. Otto Pflanze (1990). Bismarck and the Development of Germany (2nd edition). New Jersey: Princeton University Press. Donald Kagan (2003). The Peloponnesian War. New York: Viking Press. Richard Samuels (2007). Securing Tokyo’s Grand Strategy and the Future of East Asia. Ithaca: Cornell University Press. Os mais relevantes são os de Thomas Robinson e David Shambaugh (eds) (1997). Chinese Foreign Policy: Theory and Practice. Oxford: Clarendon Press. Michael Swaine e Ashley Tellis (2000). Interpreting China’s Grand Strategy: Past, Present, and Future. Santa Monica: RAND. Avery Goldstein (2006). Rising to the Challenge: China’s Grand Strategy and International Security. Stanford: Stanford University Press. Sujian Gao (ed) (2006). China’s “Peaceful Rise” in the 21st Century: Domestic and International Conditions. London: Ashgate. Ye Zicheng (2011). Inside China’s Grand Strategy: the Perspective from the People’s Republic. Lexington: ��������������� University of Kentucky Press. Os realistas estruturais advogam a noção de que a alteração na distribuição de poder e da configuração do sistema internacional causa ela própria uma modificação na identidade e na grande estratégia do país. Os liberais e construtivistas tendem a enfatizar a forma como o aparecimento de novas regras e normas no sistema internacional do pós-Guerra Fria (globalização, multilateralismo, institucionalismo) provocam uma alteração nessa mesma identidade e grande estratégia. Por fim, os defensores da teoria crítica centram-se na forma como a interacção complexa entre a identidade dos Estados e as suas grandes estratégias tornam infrutífera qualquer tentativa de explicar uma como resultante da outra.

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Esta fenomenologia derivou do crescente impacto e influência de Pequim, resultante da sua impressionante ascensão em termos de poder nacional abrangente (zhonghe guoli), sob a denominação oficial de “desenvolvimento pacífico” (heping fanzhan). O debate centrou-se – e centra-se – nas estratégias a adoptar pela China e face à China, notando-se uma profusão (e confusão) de estudos analíticos que misturam grande estratégia com estratégia nacional e com estratégia em sentido lato, num claro atropelo dos clássicos ocidentais e chineses sobre o que são cada um destes conceitos – em parte pelo facto de não ser assumido oficialmente por Pequim a adopção e condução de uma grande estratégia e de muitos países optarem pela denominação de estratégia nacional de segurança e defesa como um substituto da grande estratégia nacional (e.g. Estados Unidos, França, Reino Unido). A grande estratégia foi assim “crucificada no altar do politicamente correcto”, que tendeu a confundir “grande com grandioso”, associando-a a tendências de supremacia ou de hegemonia de um Estado, sintomatologia a que nem o Foggy Bottom (Departamento de Estado Norte-americano) escapou, com muitos dos seus diplomatas a caracterizá-la como meras “calistenias intelectuais para académicos com poucas responsabilidades e muito tempo livre”4. O presente ensaio pretende abordar de forma sumária as questões envolventes à visão e operacionalização da grande estratégia da China. Procuramos em primeiro lugar elencar sinteticamente as diferenças entre as perspectivas ocidentais e chinesas relativamente ao conceito de “grande estratégia”, sabendo que para podermos analisar a existência ou não de uma grande estratégia por parte da China, parecenos da maior importância que “não nos coloquemos no lugar de Pequim, mas antes que coloquemos Pequim no lugar de Pequim”. Com base neste referencial avançamos com a definição da visão associada a esta grande estratégia (oficiosa) de “desenvolvimento pacífico”, bem como a sua operacionalização. Terminamos com a identificação das principais linhas de acção a médio prazo, associadas à consecução da mesma.

O conceito de grande estratégia: perspectiva ocidental vs perspectiva chinesa A grande estratégia é o cume da estratégia tendo como suas dependentes a estratégia nacional, a estratégia militar, e a estratégia operacional, sendo o resultado 4

Richard Fontaine e Kristin Lord (eds) (2012). America’s Path: Grand Strategy for the Next Administration. Center for New American Security. Disponível em http://www.cnas.org/files/documents/publications/CNAS_ AmericasPath_FontaineAndLord.pdf, p. 6.

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da concatenação da teoria estratégica, da estratégia organizacional, da cultura estratégica5, e da estratégia de desenvolvimento de forças6. Em termos ocidentais, a grande estratégia gere os nexos causais entre os objectivos estratégicos de um Estado e os meios necessários à sua consecução. Segundo Barry Posen, “a grande estratégia é a conceptualização da forma como um Estado melhor pode alcançar a sua segurança sob constrangimentos nacionais e internacionais ao nível dos recursos”7. Christopher Layne define a grande estratégia de um Estado como “a visão geral dos seus objectivos de segurança e a determinação dos meios mais adequados para os atingir, o que depende da avaliação da distribuição de poder, da localização geográfica e das capacidades militares próprias e dos outros”. O 5

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Ao contrário do que é geralmente entendido, a cultura estratégica da China - à semelhança das suas congéneres de outros países - não é o resultado apenas de uma meia dúzia de Tratados e obras canónicas (algumas delas milenares) sobre a governação e a estratégia, mas igualmente de experiências históricas próprias, ideologia e memórias colectivas, como é realçado na sua ênfase milenar da “paz, harmonia entre a natureza e o homem, benevolência e boa vizinhança”. Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). The Science of Military Strategy. Beijing: Military Science Press, p. 31. Peng Guangqian, Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). China’s National Defense. Singapore: Cengage Learning Asia, p. 7.No entanto a ética confuciana não exclui a possibilidade de emprego da força para preservação da estabilidade interna caso o governo seja legítimo e benevolente. O emprego da força para fins de aquisição territorial, incremento económico ou engrandecimento estratégico é refutado. Robert Cox (2010). “Historicity and International Relations: a Tribute to Wang Gungwu” em Zheng Yongnian (ed), China and International Relations: The Chinese View and the Contribution of Wang Gungwu. London: Routledge, pp. 3-16. Cao Xufei (1999). “Tupo Zhangzheng Bianyuan: Sikao yu Chaoyue” (Avanços em Vésperas da Guerra: Pensamento e Transcendentismo). Shijie jingji yu zhengzhi nº6 (Economia e Política Mundial), pp. 29-35. O núcleo da cultura estratégica chinesa é a prossecução da harmonia étnica e da unidade nacional. Peng Guangqian, Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). China’s National Defense. Singapore: Cengage Learning Asia, p. 28. Outros cientistas políticos refutam a benevolência e harmonia desta cultura estratégica chinesa, definindo-a como assente num “paradigma parabellum” com base numa análise do período dos “Estados guerreiros”. Alastair Iain Johston (1995). Cultural Realism: Strategic Culture and Grand Strategy in Chinese History. New Jersey: Princeton University Press, pp, 109-117. A título de curiosidade refira-se que desde o início da década de noventa que o governo chinês apoiou financeiramente a produção de documentários e séries televisivas dedicadas a cada um dos clássicos da estratégia chinesa (Os Seis Ensinamentos Secretos de Tai Kung; Os Métodos de Ssu-ma; A Arte da Guerra de Sun Zi; O Wu Tzu de Wu Chi; Os Métodos Militares de Sun Pin; O Wei Liao-Tzu; As Três Estratégias de Huang Shih-kung; Perguntas e Respostas entre Tang Tai-tsung e Li Wei-kung; Cem Estratégias Não-Ortoxas; Trinta e Seis Estratagemas) bem como dos princípios da boa governação (Discursos sobre o Sal e o Ferro, o Mozi) ou ainda romances clássicos (Viagem para Oeste, Na Margem do Rio). Sobre esta ligação entre o pensamento estratégico histórico chinês e a sua aplicação ao presente, ver Yan Xuetong (2011). Ancient Chinese Thought, Modern Chinese Power. New Jersey: Princeton University Press. Harry Yarger (2006). Strategic Theory for the 21st Century: The Little Book on Big Strategy. Carlisle Barracks: Strategic Studies Institute, pp. 17-29. Barry Posen e Andrew Ross (1996). “Competing Visions for U.S. Grand Strategy”. International Security nº3, pp. 5-53. Disponível em http://www.comw.org/pda/14dec/fulltext/97posen.pdf. Existem muitas outras definições mas que não variam substancialmente desta ou da de Colin Gray que a refere como sendo o emprego de todos os recursos disponíveis a um Estado ou outra qualquer forma de segurança comunitária, na prossecução de objectivos políticos comuns. Colin Gray (2009). Fighting Talk: Forty Maxims on War, Peace and Strategy. Washington: Potomomac books, p. 82. Paul Kennedy (1991). “Grand Strategy in War and Peace: Toward a Broader Definition” em Paul Kennedy (ed), Grand Strategies in Peace, New Haven: Yale University Press, pp. 1-7.

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mesmo Layne estabelece uma metodologia prática de aferição da grande estratégia assente num processo de três passos: “determinar os interesses vitais de segurança de um Estado; identificar as ameaças a esses interesses; e decidir sobre qual a melhor forma de aplicar os recursos políticos, militares e económicos para proteger esses interesses” 8. Esta definição é distinta da avançada pelos mais importantes estrategistas chineses, que tendem a adicionar a noção de “visão particular” (tebie shi shili) sobre a melhor forma de servir e defender os interesses nacionais9. Ou seja, no caso da China a formulação da grande estratégia é assim dependente da forma como os seus líderes percepcionam e “aferem” o funcionamento do sistema internacional. Para formularem uma grande estratégia coerente, os líderes devem concretizar duas tarefas: devem seleccionar a estratégia adequada ao poder nacional e às tendências de evolução do sistema internacional; e devem ser capazes de gerirem desafios e riscos inevitáveis e inesperados que se deparem ao longo do tempo de implementação dessa grande estratégia. Tal pressupõe uma análise holística tanto do presente como das tendências de evolução futuras a médio/longo prazo. De acordo com Richard Nisbett, existe entre asiáticos e ocidentais um quadro psicológico e mental distinto que modela as diferentes formas de percepção e de pensamento: “Os chineses acreditam na mudança constante, com avanços e recuos. Têm em atenção um conjunto de eventos e procuram inter-relações entre os objectos [físicos, animais, e humanos] defendendo que não se consegue entender uma parte sem se compreender o todo, que por si é mais complexo do que parece. Os ocidentais vivem num mundo mais simples e determinista, focando a sua atenção nos objectos e nos indivíduos em detrimento da envolvente, 8

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Christopher Layne. (1993). “The Unipolar Illusion: Why New Great Powers Will Rise”. International Security nº4, pp. 5-51. Christopher Layne (2006). The Peace of Illusions: American Grand Strategy from 1940 to the Present. Ithaca: Cornell University Press, pp. 19-22. Steven Metz (2008). American Grand Strategy: Concepts, History and Futures. Presentation at the U.S. Army War College Strategic Studies, 1 de Abril. Harry Yarger (2006). Strategic Theory for the 21st Century: The Little Book on Big Strategy. Carlisle Barracks: Strategic Studies Institute, pp. 17-29. Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). Op. Cit., pp. 32-33. Liu Yazhou (2004). Da Guoce (A Grande Estratégia Nacional). Disponível em http://www.yannan.cn/data/detail.php. Liu Yazhou (2005). Xinnian yu Daode (Fé e Moralidade). Disponível em http://www.yannan.cn/data/detail.php. Yan Xuetong e Sun Xuefeng (2005). Zhongguo Jueqi Jiqi Zhanlue (A Ascensão da China e a sua Estratégia). Beijing: Beijing Renmin Chubanshe. Yang, Jiemian (2005). Da Hezuo: Bianhuazhong de Shijie he Zhongguo Guoji Zhanlue (Grande Cooperação: Um Mundo em Mudança e a Estratégia Global da China). Tianjin: Renmin Chubanshe. Chu Shulong (1999). “Zhongguo de guojia liyi, guojia liliang, he guojia zhanlue” (Interesses nacionais, Poder Nacional e Estratégia Nacional da China). Zhanlue yu Guanli nº4 (Gestão e Estratégia), pp. 1-21. Chen Peiyao e Xia Liping (2004). Xin Shiji Jiyuqi yu Zhongguo Guoji Zhanlue (O Período de Oportunidade no Novo Século e a Estratégia Internacional da China). Beijing: Time Publishers. Liu Mingfu (2010). Zhongguo Meng: Hou Meiguo Shidai de Daguo Siwei yu Zhanlue Dingwei (O Sonho da China: Pensamento de Grande Potência e Orientação Estratégica na Era Pós-Americana). Beijing: Zhongguo youyi chuban gongsi.

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julgando que podem controlar os acontecimentos porque conhecem as regras que governam o comportamento desses objectos”10. Estas diferenças podem ser uma consequência do emprego de distintos instrumentos relativos à compreensão do mundo. Com efeito, enquanto os chineses desenvolveram um pensamento dialéctico para compreenderem as relações entre objectos e acontecimentos, contextualizando-o, o pensamento lógico da herança ocidental grega privilegiou os nexos causais, onde o importante são os objectivos/ fins e não os processos. Ou seja, o pensamento estratégico oriental é mais orgânico, passível de improviso, menos mecanicista e determinista que o ocidental, pois reconhece que existe um conjunto alargado de factores e de forças que estarão sempre fora do controlo do mais brilhante resoluto estrategista. A qualidade deste baseia-se na sua capacidade em percepcionar correctamente a situação e a “propensão das coisas” ou tendências, explorando-as em seu proveito. Um estrategista chinês não elabora um plano minucioso de projecção do futuro que leve a fins pré-determinados para depois definir a melhor aplicação dos meios mais adequados para tal desiderato. Ao invés, começa por efectuar uma avaliação das forças em presença de modo a poder retirar o máximo proveito dos factores favoráveis associados a esta situação, explorando-os constantemente, independentemente das circunstâncias e obstáculos que possa enfrentar. A virtude não está assim na força e na decisão, mas na sabedoria e na perspicácia. Quem compreende realmente a forma como o sistema internacional funciona despenderá menos tempo a planear e mais tempo a efectuar avaliações dos desenvolvimentos e das tendências ou assessments. Assim se percebe porque é que os estrategistas chineses enfatizam os estudos de avaliação da situação do seu país em detrimento da prescrição de políticas a seguir (ao contrário, por exemplo, dos seus congéneres norte-americanos). Por isso é que não existe oficialmente uma grande estratégia da China. Existe sim um conjunto de consensos políticos e analíticos que permitem operacionalizar um conjunto de acções capaz de rentabilizar em proveito nacional as actuais e potenciais tendências evolutivas das forças em presença. Um estrategista chinês procura responder a três questões: quais são as tendências dominantes na actualidade? Qual é a distribuição de poder no sistema internacional contemporâneo? Quais são as fontes dos maiores desafios e ameaças à China?11 10

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Richard Nisbett (2003). The Geography of Thought: How Asians and Westerners Think Differently and Why. New York: Free Press, pp. xxi-xiii. Para uma conceptualização mais ocidental assente na resposta a três questões ver Wang Jisi (2011). “China’s Search for a Grand Strategy: a Rising Great Power Finds its Way”. Foreign Affairs nº2, p. 68. Quais são os interesses vitais do Estado? Que forças externas os ameaçam? O que pode fazer a liderança nacional para os salvaguardar? O autor refuta a existência de uma grande estratégia da China porque a forma como coloca a questões de partida são diferentes das que são colocadas pelos seus congéneres chineses.

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Tal implica a necessidade de ter em atenção a salvaguarda do interesse nacional, decomposto no caso da China na defesa da integridade territorial, na salvaguarda da defesa nacional, na defesa da soberania nacional, no desenvolvimento nacional, na defesa estabilidade nacional e na defesa da dignidade nacional12.

Visão e implementação da grande estratégia da China A grande estratégia chinesa – ainda que oficiosa – tem na condução da política externa – entendida como a aplicação de meios diplomáticos, militares e económicos por parte de um Estado com o objectivo de desenvolver e proteger os seus interesses – um instrumento fundamental. Ao contrário da sua congénere norte-americana que é mais restrita no seu enfoque porque lida com os nexos causais entre os três tipos de meios e os objectivos de segurança de um Estado, a da China não é uma descrição abrangente das políticas externas do país, sendo mais ampla no seu enfoque porque lida com a relação de forças e os factores que as modelam. É este enfoque numa lógica baseada na avaliação de tendências e nos objectivos de segurança nacional (interesses vitais) sob uma perspectiva holística que a torna tão distinta da sua congénere ocidental13. A análise da grande estratégia da China não é uma tarefa fácil, sendo o facto de existirem acérrimos debates internos entre instituições políticas, governamentais, militares e think-tanks universitários quanto à sua forma, qual a sua denominação, e como deve ser conduzida e ajustada, um espelho desta diversidade de perspectivas, o que nos obriga a um exercício de análise com base no padrão comportamental da sua política externa. Estes debates ilustram a existência de dois campos argumentativos denominados respectivamente de “internacionalistas cooperativos” e “novos nacionalistas”14. Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). Op. Cit., pp. 39-43. A envolvente externa (shi) é um dos três pilares fundamentais para uma boa compreensão e condução de uma estratégia de segurança nacional e uma política externa – sendo os outros dois a identidade nacional e a estratégia. A compreensão do shi tem sofrido uma evolução acentuada nos últimos dez anos tendo-se tornado mais plural e diversificado, que apesar de ser percepcionado como geralmente mais positivo para a China faz com que esta comece agora a ter de enfrentar situações mais complexas e difíceis no seio do sistema internacional. Zhu Liqun (2010). China’s Foreign Policy Debates. Chaillot Papers nº121, pp. 11-12. European Union Institute for Security Studies. Disponível em http://www.iss.europa.eu/uploads/media/cp121China_s_Foreign_Policy_Debates.pdf. Existem também estudos interessantes que procuram adaptar e validar a visão de Sun Tzu e do Mozi ao actual sistema internacional. Yan Xuetong (2008). “Xun Zi’s Thoughts on International Politics and their Implications”. Chinese Journal of International Politics nº2. Li Bin (2008). “Insights into the Mozi and their Implications for the Study of Contemporary International Relations”. Chinese Journal of International Politics nº2. Peng Guangqian e Yao Youzhi (2005). Op. Cit., pp. 49-53. 14 David Lampton (2008). The Three Faces of Chinese Power: Might, Money, and Minds. Berkeley: University of California Press, p. 14. 12 13

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Um campo liderado por Wang Jisi e Ding Gang, que questiona a existência de uma “verdadeira grande estratégia”15 dada a perniciosidade deste conceito bem como a dificuldade existente em conciliar a retórica de “desenvolvimento pacífico” e de “mundo harmonioso” com a prática, num sistema internacional entendido como anárquico, Lockeano e propenso ao conflito16. O outro campo, liderado por Ye Zicheng e Yan Xuetong e por um também grande número de investigadores chineses, advoga que ela existe e designa-se por “desenvolvimento pacífico”17, concordando com a afirmação de Edward Luttwak de que todos os Estados – consciente ou inconscientemente – têm uma grande estratégia (ainda que nem todas sejam criadas da mesma forma)18. A análise da grande estratégia (oficiosa) da China deve assim ser feita de acordo com a aferição de um consenso alargado existente entre a liderança política e diplomática chinesa, que expressa a importância em equilibrar operacionalmente duas grandes dimensões interdependentes: uma interna e outra externa, ambas com um fio condutor comum – o peso da memória histórica do “século da humilhação”. Desde 1840, aquando da primeira Guerra do Ópio na qual a China perdeu o seu papel de primazia regional na Ásia, que o país foi forçado a redefinir-se e a adaptarse a um sistema internacional até muito recentemente dominado exclusivamente por potências ocidentais. Os primeiros esboços associados à implementação de uma “grande estratégia de desenvolvimento pacífico” ter-se-ão iniciado aquando do 3º Plenário do 11º Comité Central do PCC em Dezembro de 1978 com a aprovação de conceitos como os de “reforma e abertura” e de “desenvolvimento da economia como tarefa central” e a posterior visão estratégica de Deng Xiaoping formulada em 1982 de que a tendência mundial era e seria cada vez mais a “paz e o desenvolvimento”. A sua operacionalização foi gradativa e sofreu dois incrementos qualitativos substanciais. Primeiro – e numa dimensão interna – a partir de 1992, após a “visita de inspecção” (nanxun) ao Sul da China de Deng Xiaoping, que potenciou a libertação dos constrangimentos políticos internos ao Wang Jisi (2011). “China’s Search for a Grand Strategy: a Rising Great Power Finds its Way”. Foreign Affairs nº2, p. 68. Ding Gang (2009). “Guojia Caifu Yunyong, Guanjian Shi Gongping” (É Justo Aplicar a Riqueza das Nações ”. Huaiqiu shibao (Tempos Globais), 13 de Março. Disponível em http://world.huanqiu.com/roll/200903/409292.html. 16 Alexandre Carriço (2012). Os Livros Brancos da Defesa da República Popular da China, 1998-2010: Uma Desconstrução do Discurso e das Percepções de (In)segurança. Lisboa: Instituto da Defesa Nacional, p. 138. 17 Ye Zicheng (2011). Op. Cit. p. 9. ��������������������������������������������������������������������� Yan Xuetong (2009). “Guojia Zuichonggao Mubiao Bushi Zhifu” (O Objectivo mais Nobre do País não é o de Enriquecer). Huaiqiu shibao (Tempos Globais), 13 de Março. http://world. huanqiu.com/roll/2009-03/409292.html. 18 Edward Luttwak (2001). Strategy: The Logic of War and Peace. Cambridge: Belknapp Press of Harvard University Press. 15

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desenvolvimento de um “Leninismo de mercado” ou de um “capitalismo com características chinesas”. Numa segunda fase – e numa dimensão externa – a partir de 1996, resultado da assimilação perceptiva das consequências negativas para Pequim e para a segurança regional asiática da crise de Taiwan em 19951996 e da crise financeira asiática de 1997, num período onde ainda estavam vivamente presentes na memória da comunidade internacional a supressão das manifestações de Tiananmen em 1989 que levaram a um embargo político, diplomático e económico à China19. O resultado foi a definição e adopção de um “Novo Conceito de Segurança” em 1997. A sua prática tem sido flexível e abrangente, assentando na participação activa, na contenção de comportamentos, na oferta de garantias, na defesa de um mercado livre, na interdependência, na criação de interesses comuns e na redução de conflitos20. O objectivo de médio prazo acoplado a esta grande estratégia parte de um pressuposto fundamental que interliga as duas dimensões referidas: a necessidade de salvaguarda da estabilidade externa e interna ao/e do país, alargando progressivamente o seu espaço e influência estratégica e diplomática para facilitar o contínuo acesso aos mercados, a capitais e a recursos naturais, potenciando o seu desenvolvimento e evitando no processo uma confrontação directa com os Estados Unidos ou outros países, durante uma “janela de oportunidade” que corresponde às duas primeiras décadas deste século. Esta moldura foi “afinada” nos últimos três anos, resultado da percepção de um declínio do Ocidente face ao Oriente, sintomatologia mais acentuada com a crise financeira de 2008 que potenciou uma nova série de debates internos – que já haviam surgido no início do século – sobre a identidade da China no contexto da sua “ascensão/desenvolvimento pacífico” e qual o seu papel no sistema internacional. Esta mais recente vaga21 teve o seu início há pouco mais de um ano, facilitada por dois acontecimentos relevantes: o facto de a China ter ultrapassado o Japão em termos de Produto Nacional Bruto, assumindo-se como a segunda maior economia mundial; e o reajustamento da política e estratégia económica, militar e de segurança dos Estados Unidos face à região da Ásia-Pacífico, visando a salvaguarda de um papel que pretende para si como liderante (ou de pivot) neste “século do Pacífico”.

Alexandre Carriço (2006). De Cima da Grande Muralha: Política e Estratégias de Defesa Territorial da República Popular da China, 1949-2010. Lisboa: Prefácio. 20 Zhang Yuling e Tang Shiping (2005). “China’s Regional Strategy” em David Shambaug (ed), Power Shift: China and Asia’s New Dynamics. Berkeley: University of California Press, p. 54. 21 As duas primeiras foram as associadas ao conceito de “ascensão pacífica” (2001-2004) e à crise financeira internacional (2008-2010). 19

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A visão de um “mundo harmonioso” A polémica de natureza semântica levantada pelo conceito original de “ascensão pacífica da China”22 e a correspondente “teoria da ameaça chinesa”(Zhongguo weixie lun)23 no seio da comunidade internacional entre 2001 e 2004, levou a China – através do Presidente Hu Jintao – a avançar com a recuperação do conceito de Robert Suettinger (2004). “The Rise and Descent of ‘Peaceful Rise’”. China Leadership Monitor nº12. Disponível em http://media.hoover.org/sites/default/files/documents/clm12_rs.pdf. Bonnie Glaser e Evan Medeiros (2007). “The Changing Ecology of Foreign Policy-Making in China: The Ascension and Demise of the Theory of ‘Peaceful Rise’”. The China Quarterly nº 190, pp. 291-310. 23 Zhang Zhaozhong (1995). Zhangzheng li women you duo yuan (Quão Afastados Estamos de uma Guerra?). Beijing: Beijing PLA Press; Zhang Zhaozhong (1999). Xia yi ge mubioa shi shei (Quem será o Próximo Inimigo?). Beijing: China Youth Press; Qiao Liang e Wang Xiangsui (1999). Chao xian zhan (Guerra sem Restrições). Beijing: PLA Literature and Arts Publishing House. Versão em inglês disponível em http://www.missilethreat.com/ repository/doclib/19990200-LiangXiangsui-unrestrictedwar.pdf. Na mesma altura surgiram livros publicados por jornalistas e académicos sobre a mesma temática. Os mais populares foram os de Cai Jianwei (ed) (1996). Zhongguo da zhanlue: lingdao shijie de lantu (A Grande Estratégia da China: Um Modelo para uma Liderança Mundial). Haikou: Hainan chubanshe; He Xin (1996). Zhonghua fuxing yu shijie weilai (O Reavivar da China e o Futuro do Mundo). Chengdu: Sichuan renmin chubanshe (2 volumes). A título de curiosidade, refira-se o regresso – após um intervalo de pouco mais de uma década - aos escaparates editoriais chineses de obras que reivindicam uma maior preponderância de poder da China no sistema internacional. Ainda que estejam longe de representar a actual estratégia do país, não deixam de ser ilustrativos quanto à “insatisfação” vigente entre alguns círculos elitistas e nacionalistas e da percepção de um maior poder relativo do país no sistema internacional. Em 1996 o livro Zhongguo Keyi Shou bu (A China Pode Dizer Não) da autoria de Song Qiang (jornalista, editor e argumentista), Song Xiao Jun (comentador televisivo nacionalista convidado com frequência pela CCTV e pela Phoenix TV), Wang Xiaodong (um gestor com formação universitária obtida no Japão), Huang Jisu (sociólogo e editor da versão chinesa da revista Journal of International Social Science) e Liu Yang (comentador conceituado de questões culturais, históricas e de economia) abriria o caminho, para em 1999 ser publicado o livro Quanqiuhua yinmou xia de Zhongguo zhi lu (A China sob a conspiração da globalização) de Wang Xiaodong (um dos editores da influente revista Zhanlue yu Guanli – Estratégia e gestão – ligada ao EPL tendo sido extinta em 2004 – e Fang Ning (professor da Universidade Normal de Pequim). O “clube da China pode dizer não” voltaria aos escaparates em 13 de Março de 2009 com uma nova obra intitulada Zhongguo bu gaoxing (China descontente: tempos auspiciosos, uma grande visão e os nossos desafios). Apesar do novo sucesso de vendas, a agência noticiosa estatal Xinhua caracterizou a obra como “um conjunto de críticas e observações de bloggers e de alguns académicos clamando por um nacionalismo embaraçoso e não construtivo”. Xinhua (2009). “Book rallying for social change fails to inspire the masses”. Disponível em: http://news.xinhuanet.com/english/2009-03/25/ content_11072198.htm. Os livros “A China Pode Dizer Não” e “A China sob a Conspiração da Globalização” estão disponíveis para leitura respectivamente em: http://www.xiaoshuo.com/readindex/index_00118540.html e em http://www.xiaoshuo.com/readindex/index_0015423.html. Refira-se que do lado norte-americano também se assistiu na mesma altura a uma exponenciação na publicação de obras sobre a denominada “ameaça chinesa” (Zhongguo weixie lun), bastando para tal consultar as publicações do politicamente conservador American Enterprise Institute, para além das obras de Constantine Menges (China: The Gathering Threat); Bill Gertz (The China Threat: How People’s Republic of China Targets America); Edward Timperlake (Red Dragon Rising: Communist China’s Military Threat to America); Stephen Leeb e Gregory Dorsey (Red Alert: How China’s Growing Prosperity Threatens the American Way of Life); Dana Dillon (The China Challenge: Standing Strong against the Military, Economic and Political Threats that Imperil America); Peter Navarro (The Coming China Wars: Where They Will be Fought and How They Can be Won); Jed Babbin e Edward Timberlake (Showdown: Why China Wants War with the United States); e Richard Bernstein e Ross Munro (The Coming Conflict with China). Para a melhor análise sobre esta questão veja-se Herbert Yee e Ian Storey (eds) (2002). The China Threat: Perceptions, Myths and Reality. London: Routledge. 22

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“paz e desenvolvimento” de Deng Xiaoping e a introduzir em 2006 uma nova conceptualização: a de “mundo harmonioso” (hexie shijie) – numa extensão da ideia confucionista de “sociedade harmoniosa”. Esta é a visão subjacente à grande estratégia de “desenvolvimento pacífico” (heping fanzhan). Para aquilatarmos sobre a validade desta estruturação do “edifício estratégico chinês”, devemos analisar a visão de “mundo harmonioso”, decompor a concepção de “desenvolvimento pacífico” com base no seu “Novo Conceito de Segurança”, bem como identificar quais os seus interesses vitais e interesses nacionais. Assente numa ancoragem de cariz histórico-civilizacional, nos inelutáveis “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica” de 1954 e no “Novo Conceito de Segurança da China” de 1997, esta conceptualização “harmoniosa” do sistema internacional pretende vincar uma certa noção de excepcionalismo chinês, desejavelmente “mais benigno e menos proselitista” que o seu congénere norteamericano, sendo ambos no entanto passíveis de coexistirem de forma pacífica (harmonia na diversidade – he er bu tong). Os quatro pilares para este “mundo harmonioso” são “a democracia, a amizade, a justiça e a tolerância”, de acordo com as seguintes guidelines: • Encarar a segurança de forma abrangente, salvaguardando a paz mundial e a estabilidade. A Carta da ONU e os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica” devem nortear a promoção da democracia nas relações internacionais através do diálogo, negociação e cooperação. As questões internas de um Estado devem ser dirimidas pela sua população. Todos os Estados devem ter direitos idênticos em termos de participação e de decisão sobre assuntos internacionais e nenhum deve tentar impor a sua vontade aos restantes. • Ter uma abordagem mais holística e colectivista relativamente ao desenvolvimento, à segurança e à prosperidade comum com base na confiança mútua, no mútuo benefício, na igualdade e na coordenação. • Prosseguir a cooperação de forma mais aberta e justa no contexto da globalização económica em curso, trabalhando em prol do mútuo benefício e do progresso comum assente num desenvolvimento sustentável e na redução das assimetrias entre os países do Norte e do Sul. • Defender a tolerância e uma sociedade mais aberta capaz de potenciar o diálogo entre civilizações e a vida em harmonia. Igualdade na diversidade e procura dos pontos comuns em detrimento das diferenças devem ser os dois dínamos de um mundo mais harmonioso24. 24

Zhang Qingmin (2011). China’s Diplomacy. Singapore: Cengage, pp. 6-9.

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Em Novembro de 2009, Zhang Xiaotong, editor do Centro de Investigação de Literatura do Comité Central do PCC, publicou nas revistas Liaowang (Perspectiva Semanal) e Qiushi (Em Busca da Verdade) um artigo intitulado “Propostas da China com Base no Conceito de Era de Hu Jintao”, onde elencou as linhas de força da visão de Hu relativamente ao posicionamento da China no sistema internacional, alicerçada numa política externa assente em “cinco teorias” separadas mas que são concatenadas de forma a consubstanciarem um todo que se pretende homogéneo. Esta visão reflecte uma auto-percepção da China como estando num patamar mais elevado que o que tinha há uma década atrás na escala de poder, descrevendo as “cinco teorias” que devem pautar o desenvolvimento de um “mundo pacífico e harmonioso” como: • O reconhecimento do facto de que estão em curso profundas alterações no mundo; • A construção de um mundo harmonioso; • O desenvolvimento conjunto; • A partilha de responsabilidades; • A participação da China nos assuntos globais25. Pela visão exposta, pode-se afirmar que Hu Jintao efectuou uma “evolução na continuidade” em termos de liturgia política oficial, ao manter que a grande estratégia da República Popular da China é de desenvolvimento pacífico e de apoio e contribuição à consolidação de um “mundo harmonioso”. É refutada a noção de que a ascensão da China tenderá a criar instabilidade regional e global, pois a globalização tornou o país dependente comercial e tecnologicamente do exterior, pelo que o recurso a meios de persuasão e influência são os mais privilegiados, não tendo o país quaisquer ambições de cariz hegemónico ou expansionista passíveis de desestabilizar (ou “desarmonizar”) um sistema internacional do qual é um dos principais beneficiários juntamente com os EUA26. Ou seja, o reconhecimento do impacto positivo ao nível interno da globalização e do multilateralismo selectivo potencia, por um lado, a sua maior participação e envolvimento em organizações internacionais, reflectindo a aceitação dos benefícios materiais que estes dois fenómenos produzem tanto no seu desenvolvimento económico como no reforço da sua imagem como “potência responsável” (zhongguo Zhang Xiaotong (2009). “Hu Jintao de shidai guan jichu shang de zhongguo de zhuzhang” (Propostas da China com Base no Conceito de Era de Hu Jintao). Liaowang (Perspectiva Semanal), 23 de Novembro. Disponível em http://dlib.eastview.com/browse/doc/21088215/23-11-09/Zhang_Xiaotong_Liaowang.pdf, p. 3. 26 Su Hao (2010). Harmonious World: the Conceived International Order in Framework of China’s Foreign Affairs. National Institute of Defense Studies. Disponível em http://www.nids.go.jp/english/publication/joint_research/series3/pdf/3-2.pdf 25

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zeren) defensora da ordem económica e de segurança vigente internacionalmente27. Por outro lado, o seu comportamento reflecte aparentemente a aceitação de uma lógica colectivista e de valores subjacentes às normas internacionais – ou seja, um reconhecimento das limitações que os Estados enfrentam na sua acção em resultado da crescente interdependência, o que faz com que tenham de aceitar custos específicos de forma a obterem benefícios comuns. Assim sendo, o contributo do país para o desenvolvimento e consolidação da visão de “mundo harmonioso” é enfatizado pelo facto de este dar preferência a arranjos de natureza multilateral através de organizações internacionais globais como a ONU, e fora e iniciativas regionais; de implementar programas de apoio ao desenvolvimento em vários países com respeito pelas diversas culturas e sistemas económicos; de defender o princípio da soberania nacional; e de desenvolver as relações com outros Estados de acordo com a Carta da ONU e os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”. A grande estratégia de “desenvolvimento pacífico” A China sempre dissimulou o seu poder – negando-o mesmo. Em 1989, Deng Xiaoping propôs uma política externa de “paz e desenvolvimento” assente em 28 caracteres, ao abrigo da qual o país devia “observar calmamente as situações; defender a sua posição; fazer face às mudanças com confiança; dissimular as suas capacidades e aguardar pela sua oportunidade; manter um low profile intencional; evitar protagonismos; e ser proactivo” (lengjing guancha; wenzhu zhenjiao; chenzhuo yingfu; taoguang yanghui; shanyu shouzhuo; juebu dangtou; yousuo zuowei)28. Os analistas chineses fazem uma destrinça entre “ordem internacional” (guoji zhixu), definida como determinadas normas destinadas a facilitar a interacção entre os Estados; e “ordem mundial” (shijie zhixu), entendida como um conjunto de normas mundiais que podem por em causa a soberania dos Estados. Esta diferenciação foi mais enfatizada a partir do momento em que o Presidente George H. W. Bush, no início da década de noventa declarou o nascimento de uma “nova ordem mundial” (xin shijie zhixu), encarada como uma nova roupagem para a preservação do domínio global e hegemónico dos EUA. Samuel Kim (1993). “Sovereignty in the Chinese Image of World Order” em R. J. Macdonald (ed), Essays in Honor of Wang Tieya. London: Kluwer Academic, p. 430. Ver ainda Allen Carlson (2005). Unifying China, Integrating with the World: Securing Chinese Sovereignty in the Reform Era. Stanford: Stanford University Press. 28 Yong Deng (2008). China’s Struggle for Status: the Realignment of International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, p. 41. Para uma discussão sobre a tradução desta estratégia formulada por Deng Xiaoping em Setembro de 1989 e a forma como é mal interpretada no Ocidente ver o artigo do influente General Xiong Guangkai (2010). “Zhongwen Cihui Taoguang Yanghui Fanyi de Waijiao Zhanlue Yiyi” (O Significado Diplomático e Estratégico da Tradução da Frase Chinesa “Taoguang Yanghui”). Gonggong waijiao jikan nº2 (Revista Quadrimestral de Diplomacia Pública), pp. 55-59. Taoguang yang hui tem três significados possíveis: (1) wo xi changdan – sofrer bastante e esperar pela vingança; (2) esconder as capacidades e evitar a liderança; (3) manter um low profile. Ver Jingbian Chengyu Cidian (2005). “Shanghai Oraz Taoguang Yanghui de Tejiu Shenmingli” (A Persistente Relevância do Provérbio Taoguang Yanghui). Disponível em http://news.xinhuanet. com/comments/2005-11/07/content_3744965.htm.

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Mas no início do século XXI tal já não era possível, por isso e sem refutar a utilidade desta “mantra”, a grande estratégia de “desenvolvimento pacífico” e os seus preceitos conceptuais começaram a ser desenhados em finais do século XX por Yan Xuetong sob a denominação de “ascensão da China”29 e Zheng Bijian, sob a denominação de “ascensão pacífica da China”, tendo sido bastante mediatizado e de forma polémica entre 2001 e 200430. Esta grande estratégia caracteriza o sistema internacional como tendencialmente multipolar (duojihua) e desejavelmente harmonioso (a visão), ao abrigo do qual a China refuta a condução de políticas hegemónicas (baquan zhuyi) e defende a paz e o desenvolvimento (heping hu fanzhan) internacionais31. De acordo com o China’s Peaceful Development Road de 2005 e o White Paper on China’s Peaceful Development publicado em 2011, o “desenvolvimento pacífico da China” parte de uma sedimentação ideológica de raízes históricas denominada de “socialismo com características chinesas”, que se desdobra em seis pilares operacionais de desenvolvimento: científico, independente, aberto, pacífico, cooperativo e comum. Estes visam a obtenção por meios pacíficos de capital, tecnologia e recursos que são essenciais à continuidade do seu desenvolvimento e à prossecução do desiderato de em 2020 a China “poder vir a ser uma sociedade moderadamente próspera e um país próspero em 2050”32. Deduz-se que o pensamento subjacente à grande estratégia da China é na sua maior parte autárquico, preocupado com, e direccionado para a manutenção do crescimento económico e preservação da estabilidade interna, reconhecendo-se no entanto que uma envolvente externa estável é primordial para tal desiderato. O conceito de segurança, os interesses vitais e os interesses nacionais O “Novo Conceito de Segurança” (Xin Anquanguan) foi apresentado inicialmente por Jiang Zemin e por Qian Qichen em 1997, respectivamente aquando das reuniões com os seus homólogos russos e da ASEAN. Em 2000 foi Yan Xuetong (1998). Zhongguo de Jueqi: Guoji Huanjing Pinggu (Ascensão da China: Uma Avaliação da Envolvente Internacional). Tianjin: Renmin Chubanshe. 30 Zheng Bijian (2005). China’s Peaceful Rise: Speeches of Zheng Bijian, 1997-2004. Brookings Institution. Disponível em http://www.brookings.edu/fp/events/20050616bijianlunch.pdf. 31 Ruan Zongze (2007). “China’s Peaceful Development from the Perspective of the Transition of the International Order” em Wang Zhongchun e Chen Senlin (eds), World Security Environment. Beijing: College of Defense Studies, National Defense University, PLA. Yu Xintian (2007). “Harmonious World and China’s Path for Peaceful Development” em Wang Zhongchun e Chen Senlin (eds), World Security Environment. Beijing: College of Defense Studies, National Defense University, PLA. 32 Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (2011). White Paper on China’s Peaceful Development. Disponível em http://www.gov.cn/english/official/2011-09/06/content_1941354.htm. Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (2005). China’s Peaceful Development Road. Disponível em http://www.gov.cn/english/2005/Dec/152669.htm. Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (1993). 29

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oficialmente incorporado na Estratégia de Segurança Nacional. Tem como pilares a segurança cooperativa, a segurança abrangente, a segurança coordenada e a segurança comum (hezuo anquan, zhonghe anquan, xietiao anquan he gongtong anquan) deixando inferir dois objectivos primordiais: a preservação de condições de estabilidade externa e interna essenciais à continuação do seu programa de desenvolvimento económico; e a redução da probabilidade de os EUA e outros países da região asiática condicionarem negativamente as aspirações regionais de Pequim. A defesa da soberania, da integridade territorial e da unidade nacional está directamente correlacionada com a garantia da continuidade de um desenvolvimento económico e social sustentável. Para o governo chinês, “a soberania da China parte do povo e pertence ao povo”, pelo que ao se defender a primeira (se necessário coercivamente) defende-se os interesses do segundo, potenciando o desenvolvimento das forças produtivas, o reforço do poder nacional abrangente, e a melhoria das condições de vida da população33. O conceito pode ser sumarizado como os “quatro nãos”: não à hegemonia; às políticas de poder; à corrida ao armamento; e às alianças militares. Operacionaliza-se com base na criação e aprofundamento das relações com outros Estados baseadas em princípios de “confiança mútua, mútuo benefício, igualdade e coordenação” que sinérgica e desejavelmente potenciarão uma segurança cooperativa. Com base neste macro-enquadramento, a liderança chinesa definiu em 2010 como interesses vitais (hexin liyi) os seguintes: • A estabilidade política do país; • A defesa da sua soberania, segurança, integridade territorial e unidade nacional; • A garantia da continuidade de um desenvolvimento económico e social sustentável34. De acordo com as sete edições dos Livros Brancos da Defesa Nacional, o Livro Branco sobre o Desenvolvimento Pacífico, bem como outros Livros Brancos de cariz sectorial, os interesses nacionais são quatro: • Desenvolvimento económico; • Unidade e defesa nacional; 33 34

Peng Guangqian, Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). Op. Cit., p. 30. U.S. Department of Defense (2011). Military and Security Developments Involving the People’s Republic of China 2011. Disponível em http://www.defense.gov./pubs/pdfs/2011_cmpr_final.pdf. Glaser, Bonnie (2011). A Shifting Balance: Chinese Assessments of U.S. Power. Center for Strategic and International Studies. Disponível em http://csis.org/files/publication/110613_glaser_CapacityResolve_web.pdf.

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• Crescimento do poder e do estatuto do país; • Reforço da identidade nacional.35 Estes podem ser sumarizados num único objectivo da grande estratégia nacional: uma China forte, moderna e próspera, desejavelmente em permanente ascensão. Como o país tem agora interesses políticos, económicos e de segurança de cariz global, esta interdependência gera oportunidades e desafios acrescidos para a implementação da sua grande estratégia, condicionando por vezes de forma excessiva (na perspectiva de Pequim) a sua latitude operativa. No plano da política externa, Pequim necessita de uma quase ubíqua quanto permanente capacidade de explicação da “benignidade” das suas acções, tendo em conta o impacto perceptivo destas sobre outros Estados bem como as possíveis respostas destes (particularmente dos Estados Unidos), ante a sua paulatina ascensão no sistema internacional. Procura assim garantir de acordo com a liturgia oficial contribuir para “a construção de um mundo harmonioso e de prosperidade comum”, aspiração e objectivo último da sua diplomacia omnidireccional. Neste contexto a condução da sua política externa assenta no princípio da independência de acordo com o seguinte racional: • A China é um país unificado e multinacional que defende a sua integridade territorial, não aceitando interferências externas relativamente a questões de unidade, integridade territorial e dignidade nacional, pelo que a oposição a quaisquer tendências secessionistas do Tibete, Xinjiang e Taiwan são um dos objectivos desta política externa independente; 35

Yong Deng (1998). “The Chinese Conception of National Interests in International Relations”. The China Quarterly nº154, pp. 308-329.People’s Republic of China Ministry of National Defense (1998). China’s National Defense in 1998. Beijing. Disponível em http://www.mod,gov.cn/database/whitepapers/1998.htm. People’s Republic of China Ministry of National Defense (2000). China’s National Defense in 2000. Beijing. Disponível em http://www.mod,gov.cn/database/whitepapers/2000.htm. People’s Republic of China Ministry of National Defense (2002). China’s National Defense in 2002. Beijing. Disponível em http://www.mod,gov.cn/database/ whitepapers/2002.htm. People’s Republic of China Ministry of National Defense (2004). China’s National Defense in 2004. Beijing. Disponível em http://www.mod,gov.cn/database/whitepapers/2004.htm. People’s Republic of China Ministry of National Defense (2006). China’s National Defense in 2006. Beijing. Disponível em http://www.mod,gov.cn/database/whitepapers/2006.htm. People’s Republic of China Ministry of National Defense (2008). China’s National Defense in 2008. Beijing. Disponível em http://www.mod,gov.cn/database/ whitepapers/2008.htm. People’s Republic of China Ministry of National Defense (2011). China’s National Defense in 2010. Beijing. Disponível em http://news.xinhuanet.com/english2010/china/2011-03/31/c_13806851. htm. Peng Guangqian, Zhao Zhiyin e Luo Yong (2010). China’s National Defense. Singapore: Cengage Learning Asia. Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (2011). White Paper on China’s Peaceful Development. Disponível em http://www.gov.cn/english/official/2011-09/06/content_1941354.htm. Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (2005). China’s Peaceful Development Road. Disponível em http://www.gov.cn/english/2005/Dec/152669.htm. Information Office of the State Council of the People’s Republic of China (1993). The Taiwan Question and Reunification of China. Disponível em http://www.china.org.cn/e-white/taiwan/index.htm.

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• A soberania é um atributo fundamental e simbólico dos Estados-nação pelo que defende a não interferência nos assuntos internos de outros Estados, bem como na formulação e condução das respectivas políticas externas e na adopção de diferentes modelos de desenvolvimento; • Ao defender a sua independência, está a advogar a democratização do sistema internacional, ao abrigo da qual todos os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos possuem os mesmos direitos no seio da comunidade internacional de acordo com os princípios da Carta da ONU; • Ao defender a sua independência, enfatiza que não participa em alianças com outras grandes potências ou blocos, particularmente no plano militar, recusando entrar em corridas ao armamento e em políticas de expansão territorial, pois a sua política de defesa nacional é de natureza puramente defensiva e refuta lógicas hegemónicas e a criação de esferas de influência. • Ao defender a sua independência, desenvolve relações de amizade e cooperação com mútuo benefício com todos os países de acordo com os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”, não julgando os outros Estados segundo uma perspectiva puramente ideológica. A sua diplomacia é omnidirecional, não sendo influenciada ou controlada por um qualquer assunto específico numa determinada janela de tempo específica; • Ao defender a sua independência, nunca cederá a pressões externas, decidindo a sua posição no plano internacional de acordo com os interesses do povo chinês e do mundo em geral36.

Linhas de acção a médio prazo da “grande estratégia” da China Desta visão abrangente de paz e boa vontade para com todos os Estados em busca de “relações cooperativas mutuamente benéficas” (huli shuangying de hezuo geju) podem-se derivar os principais objectivos da política externa e de segurança da China a médio prazo, os quais não deverão sofrer alterações pronunciadas, continuando a pautar-se de acordo com a visão normativa de “mundo harmonioso” no plano global, de um “novo internacionalismo” (xin guoji zhuyi) no plano diplomático e da continuação da aplicação do seu “Novo Conceito de Segurança” no plano da segurança. Destes vectores podem-se apontar as seguintes linhas de acção a médio prazo: • Manter e alargar uma envolvente pacífica de segurança regional e global, essencial para a continuação da implementação com sucesso das reformas económicas internas e da modernização militar, de forma a tornar a China “uma sociedade moderadamente próspera” até 2020 e “um país próspero” até 2050”; 36

Zhang Qingmin (2011). China’s Diplomacy. Singapore: Cengage, pp. 21-23.

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• Expandir as relações políticas e económicas da China com os países vizinhos através de canais bilaterais e multilaterais de forma a impedir as tentativas de contenção do seu crescente poder e influência regional por parte dos EUA e do Japão; • Desenvolver relações de cooperação militar bilateral com países vizinhos de modo a reduzir as desconfianças e o acentuar do dilema de segurança regional resultantes da modernização militar chinesa; • Promover parcerias bilaterais com outras potências e actores globais, capazes de conferirem à China uma maior liberdade de acção face aos EUA; • Procurar e ampliar áreas de interesses comuns com os EUA e o Japão passíveis de desenvolverem a cooperação bi e trilateral, mantendo a estabilidade e evitando um confronto entre as três potências; • Promover uma imagem positiva da China junto da opinião pública norteamericana, europeia e internacional; • Continuar a desenvolver a parceria estratégica com a Rússia, apesar das ambivalências que a caracterizam; • Cooperar com a Rússia em questões de segurança regional asiática, mais concretamente na Ásia Central; • Desempenhar um papel de liderança no seio da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) de forma a garantir a estabilidade na Ásia Central e a continuidade de fornecimento de energia a partir dos Estados que dela fazem parte, contrabalançando ao mesmo tempo as políticas norteamericanas nesta região (o papel da OCX é essencial para estes desideratos e mais um: no imediato e após a retracção da presença militar dos EUA e da NATO na Ásia Central, o continental balancing da China, funcionará como um contrapeso a um crescente offshore balancing da parte dos EUA à China na Ásia-Pacífico; • Recorrer a mecanismos multilaterais para constranger eventuais acções unilaterais dos EUA, incrementando no processo o estatuto da China como grande potência no seio das organizações e fora multilaterais internacionais, especialmente no Conselho de Segurança da ONU; • Encorajar a ASEAN a desempenhar um papel mais activo na segurança regional asiática, em contraponto às alianças bilaterais dos EUA na região; • Encorajar os Estados asiáticos a desenvolverem uma identidade colectiva (jiti rentong) como base para uma cooperação regional de forma a impedir as grandes potências externas à Ásia (i.e. EUA) de exercerem uma hegemonia sobre a região; • Desempenhar um papel activo e construtivo na resolução das questões de segurança regional e internacional, contribuindo para a consolidação das organizações internacionais de que faz parte, agindo como uma “potência responsável” do sistema internacional; 233

• Procurar resolver as disputas territoriais com outros países asiáticos através de meios diplomáticos, apoiados no diálogo e na negociação; • Procurar a reunificação de Taiwan à China por meios pacíficos se possível, e militares se necessário, desencorajando uma maior assertividade geoestratégica e militar dos EUA e do Japão relativamente à questão de Taiwan; • Continuar os esforços político-diplomáticos – via mecanismo multilateral das Six Party Talks – para uma desnuclearização total da Coreia do Norte, impedindo no processo tanto a sua implosão, como na sequência desta, uma eventual reunificação coreana. No entanto, e como estratégia cautelar, continuar a incrementar as relações políticas, económicas e diplomáticas com a Coreia do Sul, tanto por razões de desenvolvimento económico mutuamente vantajoso como em antecipação de uma eventual – ainda que não desejada – reunificação. • Participar em actividades relativas a questões de segurança não tradicional (terrorismo, alterações climáticas, crime organizado, etc.) demonstrando a determinação da China em implementar o estipulado no seu “Novo Conceito de Segurança”; • Desenvolver o seu soft power através da atracção gravítica da sua cultura e civilização, potenciando o incremento da sua influência regional e global, do qual o conceito de “mundo harmonioso” (hexie shijie) é um bom exemplo; • Explorar rapidamente todas as oportunidades de comércio e de investimento regional e global, criando um ambiente propício à continuação da sua “ascensão/desenvolvimento pacífico”; • Fortalecer as capacidades militares tanto para projecção continental terrestre como marítima, tidas como essenciais para a defesa dos seus interesses vitais e a prossecução do estatuto de grande potência mundial com um desejada preponderância regional asiática.

Observações finais Em si mesma, a actual estratégia da China de “desenvolvimento pacífico” não levanta grandes preocupações, porque assume – por enquanto – uma primazia da dimensão interna sobre a dimensão externa do país. No entanto devemos reconhecer que esta é uma grande estratégia para um período de transição e uma janela de oportunidade. As questões e dúvidas que se levantam são se uma vez atingido o estatuto de “grande potência mundial”, o seu comportamento se manterá ou se reivindicará a partir de uma posição de maior preponderância, alterações ao sistema e à ordem internacional que a beneficiem directamente? Não só não sabemos como não podemos saber, pelo menos por enquanto. Ainda que os actuais líderes chineses repitam nos seus discursos que “a China nunca será uma potência hegemónica, não recorrerá a políticas de poder e nunca 234

constituirá uma ameaça para os países vizinhos ou para a paz mundial”, dúvidas persistem. Não poderemos saber como no futuro os seus sucessores poderão vir a considerar os respectivos interesses nacionais e a sua defesa e responder a uma envolvente internacional que seja diferente da actual. O país pode continuar a “atravessar o rio, tacteando com os pés as pedras no leito do mesmo” (mozhe shitou guohe) – como defendeu Deng Xiaoping - mas a questão que se coloca é quando chegar à outra margem o que irá fazer? Ajudará outros a atravessarem o rio juntando-se a ela e aos Estados Unidos? Ou empurrará estes para o leito, ficando com a margem só para si? A China está uma vez mais numa encruzilhada, numa nova “fase crítica”37. Os ingredientes do seu modelo de desenvolvimento estão a aproximar-se do final do prazo de validade, requerendo correcções decisivas para garantir a continuidade do sucesso económico, da estabilidade política e social do país a longo prazo, para que esta “não desista de atravessar o rio a meio, correndo risco de afogar-se”. O país é uma grande potência regional com uma crescente influência global. Este incremento de poder tanto (auto)percepcionado como efectivo, trar-lhe-á responsabilidades adicionais, o que implicará a assumpção e/ou a criação de prescrições de políticas globais alternativas que possam ir para além da visão e da retórica “algo espiritual” de um “mundo harmonioso”, que se assemelha mais a uma panaceia do que a uma política concreta que vise a redução de hostilidades que estão a ser induzidas estruturalmente à sua ascensão, com os perigos que daqui possam advir, não apenas para Pequim como para a estabilidade do sistema internacional. Como instrumento primordial da grande estratégia a sua política externa evoluiu de forma assinalável, estando cada vez mais assente numa lógica de “defesa dos interesses nacionais, evitando males” (qiu li bihai), quando há dez anos atrás, tinha como “objectivo primário o evitar males (yi bihai weizhu), promovendo os seus interesses nacionais”. A dificuldade do Zhongnanhai estará cada vez mais em saber como pode contribuir para a manutenção de um tão delicado quanto importante equilíbrio entre o desenvolvimento global e a permanente gestão de uma conflitualidade latente e sistémica; entre a sua ascensão e o declínio relativo de outros actores; entre a sua crescente confiança e as expectativas e ansiedades que gera, principalmente no plano regional asiático – área geográfica cada vez mais determinante para a segurança e estabilidade do sistema internacional. Avizinham-se tempos interessantes… 37

Como enfatizou o Primeiro-Ministro Wen Jiabao aquando do seu relatório ao Congresso Nacional do Povo, em 5 de Março de 2012, ao advogar reformas estruturais profundas no plano político e económico, sob pena de uma estagnação e eventual colapso futuro. Wen Jiabao (2012). “Quarterly Chronicle and Documentation”. The China Quarterly nº 210, pp. 544-545.

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TEORIZAÇÃO SOBRE ESTRATÉGIA MILITAR: ÂMBITO, OBJETO E PLANEAMENTO

Major Luís Carlos Falcão Escorrega

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TEORIZAÇÃO SOBRE ESTRATÉGIA MILITAR: ÂMBITO, OBJETO E PLANEAMENTO Major Luís Carlos Falcão Escorrega “A Estratégia visa a paz e a Tática visa a vitória” (Clausewitz)

A

estratégia militar, enquanto campo de estudos, tem uma delimitação que não é fácil de definir, aliás, como a quase totalidade dos campos de estudos no âmbito das ciências sociais e políticas. Aceita-se a sua subordinação à grande estratégia e às decisões políticas, por um lado, bem como o seu papel enquadrador nas opções operacionais e táticas no quadro do emprego da força militar, por outro. Enquanto nível charneira, ao situar-se entre os níveis da concepção estratégica global e da execução militar, absorve destes as suas particularidades mas também os influencia determinantemente, sendo por isso um campo que deve ser estudado e bem compreendido por todos aqueles que têm responsabilidades políticas e militares. Interessa por isso, de uma forma necessariamente sucinta, relacionar a estratégia militar com os seus principais enquadrantes – a política, o poder, a estratégia, a coação, as operações e a tática – e dessa forma identificar o seu âmbito e situar o quadro analítico do objeto em estudo. As decisões estratégicas militares devem ser enquadradas pelas orientações e decisões políticas. A política, na sua concepção moderna, pode ser entendida como ciência e como atividade. Enquanto ciência trata dos fundamentos do Poder, das suas modalidades de aquisição e de utilização, da sua concentração e da sua distribuição, da sua origem e da legitimidade do seu exercício (Pasquino 2002, 13); enquanto atividade1 trata, lato sensu, das ações dos órgãos do Estado para conservar a sociedade política e definir e prosseguir o interesse geral (M. Caetano apud Couto 1988, 215). É precisamente no quadro deste interesse geral que se deve 1

É neste âmbito que se situa a chamada “política pública” (policy). As policies, normalmente, emanam de autoridades governamentais e constituem respostas a problemas sociais, económicos ou políticos que adquiriram importância. Implicam processos de decisão e de implementação, podendo agrupar-se em quatro grandes categorias: distributivas, reguladoras, redistributivas e constitutivas (Pasquino 2002, 251-278).

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relacionar a política e a estratégia militar. Os interesses das sociedades políticas estão relacionados com as aspirações, necessidades e preocupações dessas sociedades e envolvem normalmente quatro grandes áreas: sobrevivência e segurança, integridade política e territorial, desenvolvimento e bem-estar económico, e estabilidade. Cabendo à política prosseguir e definir o interesse geral nessas quatro áreas, através do estabelecimento de finalidades, orientações e objetivos políticos, caberá à estratégia militar (no quadro da “grande estratégia”, onde se englobam todos os instrumentos de Poder) estabelecer os objetivos estratégico-militares que contribuem para, através da utilização do instrumento militar, alcançar esses desígnios políticos nacionais. Pode-se afirmar que que à política compete sobretudo a escolha dos fins últimos e a definição do quadro geral de ação, e à estratégia militar, subsidiariamente, compete gizar os melhores métodos e meios militares para se atingirem aqueles objetivos que contribuem para alcançar a(s) finalidade(s) políticas estabelecidas e assim salvaguardar os interesses nacionais. O instrumento militar é um instrumento de Poder ao dispor das organizações políticas. A sua utilização estratégica contribui para que num conflito de interesses essas organizações alcancem os seus objetivos, impondo a sua vontade a outros, se necessário. O conceito de Poder remete-nos para a capacidade de obrigar, de fazer cumprir, de impor a vontade a outrem e, consoante as circunstâncias, pode ter sedes diferentes (conforme o tipo de conflito, interno ou internacional), usar várias componentes (militar, económica, política, informacional, etc.), e revestir-se de formas diversas (coação, autoridade, influência, persuasão, controlo, etc.). No quadro do chamado Poder militar, as discussões atuais centram-se na utilidade da força militar no contexto estratégico contemporâneo. É possível verificar que o instrumento militar nunca foi tanto utilizado como na atualidade; e, de facto, as suas diversas capacidades fornecemlhe um tal caráter de flexibilidade e adaptabilidade que o tornam imprescindível face à multidimensionalidade das ameaças atuais. Contudo, em abono da verdade, situações e conflitos recentes nos EUA, no Iraque, no Afeganistão ou em África, demonstram que é útil e inteligente utilizar de forma integrada todos os instrumentos de Poder disponíveis (diplomáticos, militares, civis, económicos, informacionais) para lidar eficazmente com uma panóplia enorme de situações, despoletadas por diversos agentes adversos, de natureza política (v.g. terrorismo), económica (v.g. interrupção de fluxos energéticos, terrestres, marítimos ou aéreos) ambiental (v.g. catástrofes naturais), tecnológica (v.g., no âmbito do ciberespaço ou da indústria química. A Estratégia Militar, enquanto ciência, atividade ou arte, é naturalmente uma especialização da Estratégia. Não cabendo neste ensaio uma análise aprofundada sobre o caráter científico da estratégia e o seu corpo axiomático, interessa escalpelizar brevemente o seu conceito. O conceito de estratégia2, tal como 2

Etimologicamente, o termo estratégia deriva do grego “strategos”, referindo-se ao general, o comandante do exército, resultando a estratégia das suas decisões. Neste âmbito aconselha-se a leitura de “Definitions of Strategy” de Edward N. Luttwak (Luttwak 2003, 267).

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o de segurança e outros, é um conceito que tem evoluído ao longo dos tempos e a sua aplicação tem-se generalizado a contextos diferentes do original (militar), tais como o político, o empresarial3, o desportivo, e outros, com as inerentes implicações conceptuais ao nível da sua natureza, sujeitos, âmbito, finalidade e instrumentos. Como denominador comum às diversas definições encontramos a estratégia enquanto método racional que visa atingir os objetivos estabelecidos afetando a decisão do adversário. Em Portugal, no quadro dos estudos estratégicos, é geralmente aceite a definição proposta pelo General Abel Cabral Couto, revista em 1998, de “ciência e arte de, à luz dos fins de uma organização, estabelecer e hierarquizar objetivos e gerar, estruturar e utilizar recursos, tangíveis e intangíveis, a fim de se atingirem aqueles objetivos, num ambiente admitido como conflitual ou competitivo (ambiente agónico).” Mutatis mutandis, para a organização política “Estado”, a sua estratégia relaciona-se com a melhor forma de gerar, estruturar e utilizar (mobilizar) os recursos nacionais necessários (militares, diplomáticos, económicos, informações, etc. – e que poderão também ser geradores de Poder) para atingir os objetivos por si estabelecidos, num ambiente “de desacordo” (que, no quadro das relações internacionais, normalmente são aquelas designadas por conflituais), tendo em vista salvaguardar os seus interesses e garantir os seus fins. Estratégia Nacional4 envolve pois todos os elementos do Poder nacional (que poderão servir também como forma de coação) que, por sua vez, são a base das respetivas “estratégias gerais”5: económica, psicológica, política e militar, etc. É ao nível destas estratégias gerais que se situa a charneira entre a concepção e a execução, i.e., entre aquilo que se quer ou deve fazer e aquilo que as condições técnicas e as possibilidades materiais permitem fazer (Couto 1988, 230). Como já referido, à estratégia compete utilizar da melhor forma os recursos, mas igualmente desenvolvê-los e organizá-los da melhor forma tendo em vista os objetivos estabelecidos. Assim, podem-se distinguir na estratégia os aspetos operacionais (ligados à utilização e emprego dos meios), os aspectos genéticos (relacionados com a geração e criação de novos meios) e os aspectos estruturais (correspondentes à composição, organização ou articulação dos meios). Normalmente, os aspetos genéticos, em virtude dos elevados custos associados e/ou outras apreciações 3

4

5

Na linguagem empresarial, é recorrente hoje em dia associar-se o termo estratégico ao nível de decisão mais elevado e ao prazo de planeamento mais alargado. Neste sentido, em que o enfoque da estratégia é o Estado, com os seus interesses e os seus elementos de Poder, Harry Yarger considera estratégia como “o emprego dos instrumentos (elementos) de poder (políticos/diplomáticos, económicos, militares e informacionais) para atingir os objetivos políticos do Estado em cooperação ou em competição com outros atores que persigam os seus próprios objetivos”. Para Yarger e para Lykke, estratégia tem fundamentalmente a ver como (métodos - ways or concepts) a liderança usará o Poder (meios - means or resources) disponível para o Estado exercer o controlo sobre um conjunto de circunstâncias e localizações geográficas de forma a atingir objectivos (fins - ends) que sustentem os interesses do Estado (2006, 5). A definição do patamar estratégico geral pode variar de acordo com a natureza dos recursos e capacidades disponíveis (associados à forma de coação), com o nível de decisão ou com a desmultiplicação dos objetivos estabelecidos.

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críticas, estão na esfera de decisão mais elevada (integral), os aspetos operacionais estão nas esferas de decisão intermédia (geral) e baixa (particular), e os aspetos estruturais, dependendo de vários fatores e considerações, encontram-se repartidos entre os vários níveis de decisão. Um último ponto relacionado com alguma confusão que surge amiúde entre estratégia enquanto ciência/atividade com o nível de decisão/condução da guerra (ou das operações em sentido lato). O primeiro tem a ver com um corpo de princípios, conceitos, conhecimentos e aplicações da estratégia, e o segundo tem a ver com o nível organizacional em que se situa a decisão (v.g. político, estratégico, operacional e tático)6. A estratégia emprega a coação, nas suas diversas formas (diplomática, militar, económica e política), para alcançar os seus objetivos. Tal como já referido anteriormente, a coação é uma das formas de que se reveste o Poder e muitos estrategistas consideram-na mesmo o principal instrumento da estratégia7. Etimologicamente deriva do latim coactio, que significa genericamente a ação de obrigar alguém contra a sua vontade; pode-se considerar que difere da coerção no sentido em que esta corresponde à efetivação da utilização da força ou da violência enquanto a coação tem um caráter potencial, ameaçando a utilização da força/ violência se determinada obrigação não for cumprida. A coação é pois instrumental para a estratégia no sentido em que a sua utilização, ao obrigar o adversário a aceitar o ponto de vista de outrem, por ameaça de utilização da força ou violência, oferece uma possibilidade muito elevada de resolução do conflito a favor do coator. A coação pode revestir duas formas principais, uma negativa (a dissuasão)8 e uma positiva (a persuasão), sendo que em ambas se pretende convencer o adversário a alterar as suas intenções. Na dissuasão pretende-se desencorajar determinada ação através da utilização ou demonstração de determinadas capacidades suficientemente dissuasoras (v.g. posicionamento ou movimentação de forças, mobilização de reservas, sanções, aquisição de capacidade nuclear, ou entrada para uma aliança militar)9. Na persuasão (muitas vezes também chamada de coação psicológica) utiliza-se um conjunto de argumentos de valor para convencer o outro a fazer o que o persuasor pretende (v.g. benefícios, apelos emocionais ou mera chantagem). A coação militar visa a capitulação adversária através da ameaça de emprego de meios militares, acenando à possibilidade de aumento de violência e confronto 6 7 8

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Ou superior, médio e inferior; ou 1º, 2º, 3º…nível, etc. Cfr. Couto “O objeto da estratégia é a coação, entendida como situação de facto e situação possível” (1988, 209). “Se o objetivo for inibir o Outro de usar meios e/ou de adotar certos comportamentos, (…) impedir a concretização das ameaças por parte do Outro, então visa-se a dissuasão do adversário relativamente a esses meios e/ou atitudes” (Santos 1983, 327). Neste âmbito, o General Loureiro dos Santos divide a dissuasão em dois tipos, o defensivo e o ofensivo. O primeiro baseia-se no levantamento de sistemas que conduzam o adversário a pensar que não é gratificante atacar (por ser muito difícil de ganhar) e o segundo baseia-se no levantamento de sistemas que permitam infringir uma punição (capacidade de exercer represálias) ao adversário caso ele tome determinada atitude. Em função dos meios pode haver dissuasão económica, psicológica diplomática e militar (Santos 1983, 330).

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militar e, em último caso, à guerra. Na teoria geral da estratégia, esta forma de coação serve ainda para distinguir estratégias (ou métodos) quanto ao estilo de ação. Assim, é geralmente aceite que quando o principal instrumento de coação for o militar estamos em presença de estratégias diretas, quando forem outros instrumentos de poder, como a diplomacia ou a economia, estamos em presença de estratégias indiretas. As operações em sentido lato materializam aquilo que se chama de “vertente operacional” da estratégia, isto é, o emprego dos meios existentes para alcançar fins estratégicos. Independentemente do nível de decisão ou condução, as operações militares podem-se caracterizar genericamente pelo conjunto de ações levadas a cabo por forças militares para se atingirem os seus objetivos. Envolvem naturalmente o seu planeamento, considerando fatores de ordem doutrinária, tática, logística e outros. Dada a variedade, o volume e a complexidade do emprego das forças militares, a condução (e responsabilidade) das operações militares foi dividida em níveis. Assim, os níveis de condução das operações militares são genericamente o estratégico10, o operacional e o tático. Ao nível estratégico as forças militares são empregues num quadro de atuação definido pela política e de uma forma sincronizada com outras iniciativas não militares (v.g. diplomáticas ou económicas), de forma a atingir aqueles objetivos de maior importância, cujo conjunto materializa a finalidade global. Ao nível operacional, sendo um nível intermédio entre o estratégico e o tático, planeiam-se e realizam-se campanhas e “grandes operações” por forma a atingir objetivos estratégico-militares (ou também operacionais). Este nível está normalmente associado uma grande quantidade e variedade de meios militares mas representa muito mais do que a mera soma dos diferentes meios e blocos táticos, pelo que a sua eficácia depende de considerações de emprego como a integração, sincronização, ritmo e criatividade: a chamada “arte operacional”. Ao nível tático das operações, as forças militares, normalmente mais reduzidas e com natureza mais ou menos semelhante, são empregues para realizar tarefas nas suas áreas de especialidade e alcançar objetivos militares adequados (v.g. a destruição de determinado inimigo, em lugar x, contribuindo assim para criar efeito y), objetivos esses que, se alcançados, constituem a base do sucesso ao nível operacional e estratégico. É pois nestes três níveis que as operações militares normalmente se desenrolam, planeiam e decidem. É importante vincar que os três níveis não são estanques; ações ao nível tático terão efeitos ao nível operacional ou mesmo estratégico, e decisões ao nível estratégico ou operacional terão necessariamente consequências ao nível tático11. 10 11

Envolvendo considerações quer políticas quer estratégico-militares. Com a evolução da tecnologia e crescentes preocupações com os efeitos político-estratégicos das ações militares assiste-se cada vez mais a uma compressão destes três níveis e a uma intromissão de responsáveis estratégicos ao nível tático, o que tem contribuído para questionar a (real) capacidade de decisão e a (fundamental) iniciativa dos subordinados.

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Resta relacionar a estratégia com o seu enquadrante inferior, a tática. Tática pode-se considerar como um conjunto de preceitos, regras e considerações que visam o cumprimento adequado e oportuno de tarefas específicas, tendo em consideração as possibilidades técnicas dos recursos disponíveis, o meio de atuação e as capacidades e intenções do adversário. Em relação à estratégia, apesar de usar a mesma lógica em relação ao adversário, o seu âmbito é mais específico, centrando-se na melhor forma de cumprir determinadas tarefas utilizando os meios disponíveis, enquanto a estratégia se preocupa mais com a conceção de objetivos, com a identificação das finalidades e com a existência ou não dos melhores recursos para materializar determinada intenção. As considerações a ter em conta na tática e na estratégia militar, apesar de subsidiárias, são assim diferentes no que se relaciona com a existência e natureza dos meios militares, com os métodos utilizados para alcançar os respetivos objetivos, com as capacidades e intenções dos adversários e, fundamentalmente, com os efeitos a obter. Feito o enquadramento genérico do campo de atuação (âmbito) da estratégia militar interessa agora sintetizar genericamente o seu objeto: o instrumento militar. Este, como refere o General Loureiro dos Santos, consubstancia o fator militar do potencial estratégico, constitui a última garantia do poder do Estado e tem a finalidade de afirmar o poder nacional, em conjugação com todos os outros vetores. Visa basicamente o objetivo de segurança e, institucionalmente, detém o monopólio de utilização da violência organizada, o que lhe assegura o grau último na escala da coerção, i.e., em última instância e como último recurso, quando for impossível que o emprego combinado de outros fatores consiga alcançar os objetivos visados e seja necessário aplicar a violência física de forma organizada (Santos 2012, 18-19). No atual contexto estratégico a utilização do instrumento militar pode assumir diversas formas, podendo-se agrupar funcionalmente em três domínios: ação, coação ou apoio. A função “acção”12 relaciona-se com as missões tradicionais das forças armadas, nomeadamente, a defesa militar do país, a guerra e a salvaguarda de interesses vitais ou muito importantes. A função “coacção”, como já referido anteriormente, visa a capitulação adversária através da ameaça de emprego de meios militares, acenando à possibilidade de aumento de violência e confronto militar e, em último caso, à guerra. A função “apoio” tem um carácter essencialmente supletivo. As capacidades das forças armadas são postas ao serviço de outros instrumentos de poder, estratégias ou sistemas; pode envolver o uso da força militar (no caso de apoio à política externa ou à segurança interna) ou, no caso das emergências, a disponibilização de determinadas capacidades (recursos humanos e materiais) 12

É no âmbito desta função que primariamente são desenvolvidos os programas de treino, adquiridos os equipamentos e desenvolvidas as capacidades. Implica normalmente a mobilização das principais capacidades das forças militares; a força militar e a violência, se necessário, são utilizadas ao mais alto nível.

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para complementar as capacidades do sistema de emergência e, assim, minimizar consequências nefastas; neste último âmbito também podem ser utilizadas as capacidades das forças armadas para, com carácter limitado, melhorar as condições de vida das populações (melhoria de estradas, construção de pontes, etc.). As possibilidades que o instrumento militar fornece ao decisor estratégico são pois muitas, o que o torna extremamente útil no campo volúvel da estratégia. A sua adequabilidade e viabilidade, mas também, a enorme flexibilidade que as capacidades das forças armadas proporcionam, torna-as vantajosas em variadíssimas circunstâncias, num contexto “securitário” complexo e indefinido. Às suas missões tradicionais foram adicionadas outras, cobrindo um variado espectro de atuação, o que implica novas capacidades e novas formas de atuar; quer seja para melhorar a segurança, para contribuir para a estabilidade e reconstrução, para auxiliar em situações de desastre, assistência humanitária, bem como conter, dissuadir, impor, influenciar, ou destruir potenciais adversários, parece pois certa a crescente importância do instrumento militar, merecendo por isso a devida atenção dos decisores. Os desafios que atualmente se colocam aos Estados, os interesses e os recursos críticos em jogo não permitem que os Governos e organizações adotem a intuição como forma de análise e o improviso como atitude13 (aspetos capazes de gerar riscos enormes) sendo que, por isso, o planeamento da ação estratégica deve desempenhar um papel capital, conferindo um carácter consciente e calculado às decisões, permitindo conduzir os acontecimentos em vez de ser arrastado por eles. Neste sentido, em virtude da criticidade dos meios e ações militares, interessa uma breve incursão no âmbito do planeamento estratégico militar. A este nível, há toda a vantagem em distinguir dois tipos de planeamento: planeamento a prazo e planeamento de circunstância. O primeiro inscreve-se na necessidade de prever o emprego futuro das forças armadas, está relacionado com as vertentes genética, estrutural e operacional14 de longo prazo e tem tradução em documentos como um Plano de Forças, Plano de Defesa, Conceito Estratégico Militar, Leis de Programação Militar, etc. O segundo destina-se a empregar, de facto, o instrumento militar e traduz-se genericamente em ordens de execução (Calçada 2001, 21). Em particular neste último tipo, importa perceber genericamente como a estratégia militar contribui para alcançar os objetivos políticos em situações de crise. Assim, num primeiro tempo é identificada ao nível estratégico-militar a contribuição que a força militar pode dar para alcançar os objetivos políticos, 13 14

Como refere amiúde o CALM Silva Ribeiro. Em Portugal, de acordo com a legislação em vigor, o CEMGFA é responsável pelo planeamento e implementação da estratégia militar operacional, competindo aos CEM´s dos Ramos formular e propor a estratégia estrutural do respetivo ramo, a sua transformação e a estratégia genética associada aos sistemas de armas necessários ao seu reequipamento.

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fornecendo ao decisor “opções de resposta militar”15 e que genericamente poderão envolver: 1) identificação de objetivos estratégicos, definição de objetivos de campanha e estado final desejado; 2) identificação de limitações políticas, financeiras ou legais ao uso da força; 3) definição de capacidades da força e a necessidade de uma reserva estratégica; 4) Estabelecimento dos arranjos de comando; 5) análise do risco militar. Após a decisão política, num segundo tempo, a estratégia militar é responsável por traduzir a orientação política em direção estratégica militar para os comandos subordinados (QG´s), os quais serão responsáveis pelo desenvolvimento de um Plano de Operações de nível estratégico-militar (NATO 2010, 1-5). Para a eficácia deste processo é necessário que ao nível estratégico-militar hajam informações que permitam apreciação adequada da situação e ser parte integrante no processo de aconselhamento e decisão política. Feita uma caracterização da estratégia militar através da delimitação do seu âmbito, da identificação do seu objeto e dos seus contributos para o planeamento global, resta sintetizar o seu conceito, ao que procederá em jeito de breve revisão da literatura. O General Abel Cabral Couto define-a “ciência e arte de desenvolver e utilizar as Forças Armadas com vista à consecução de objetivos fixados pela política” (Couto 1988, 229). Decorre da classificação da estratégia quanto ao critério “formas de coação” (ou elementos de poder nacional, segundo outros autores) e compete-lhe, com base na missão que lhe é definida pela estratégia total, repartir e combinar as tarefas que deverão ser levadas a efeito nos diversos ramos de atividade do domínio considerado e assegurar a sua execução (Couto 1988, 229). Lykke cria e aplica o modelo ends-ways-means à estratégia militar16, daí resultando que os seus fins são os objetivos militares, os seus métodos relacionam-se com a aplicação da força militar e os meios os recursos militares (pessoal, material, forças, logística, financiamento) necessários para cumprir a missão (2001, 180). Estas duas definições permitem abarcar as duas dimensões e os quatro principais ingredientes da estratégia militar: ciência e atividade; recursos militares, objetivos e métodos militares e, principalmente, génio militar, sem o qual a estratégia se resume ao mero planeamento. Uma última palavra de homenagem ao General Loureiro dos Santos no âmbito da teorização sobre Estratégia. Loureiro dos Santos escrevia em 2004 que “Portugal As quais devem considerar aspetos elementares como a adequabilidade militar, a aceitabilidade política e a exequibilidade financeira. Na sua formulação final deverão identificar objetivos estratégicos, objetivos militares, estado final, constrangimentos e restrições, análise do risco, e estratégia de saída. 16 Lykke considera ainda que existem dois níveis de estratégia militar: o operacional e o de desenvolvimento da força. As estratégias baseadas nas capacidades militares existentes são estratégias operacionais e constituem a base da formulação de planos de ação específicos no curto prazo (a este nível da estratégia também chama grande tática ou arte operacional). As estratégias de longo prazo podem basear-se em estimativas de futuras ameaças, objetivos e necessidades; são de natureza mais global, e podem exigir melhorias nas capacidades militares existentes (2001, 180). 15

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não tem um pensamento estratégico próprio”; esta afirmação faz muito sentido se aplicada ao Estado português nas últimas décadas, mas faz pouco sentido quando lemos a profunda e vasta obra do General Loureiro dos Santos e percebermos a sua riqueza conceptual e os seus enormes contributos para a estruturação de um pensamento estratégico português, principalmente no âmbito do seu planeamento estratégico. Enfim, também isto faz parte da lógica paradoxal da estratégia.

Bibliografia Beaufre, André. 2004. Introdução à estratégia. Lisboa: Edições Sílabo. Calçada, José Antunes. 2001. Elementos de estratégia militar. Lisboa: IAEM. Couto, Abel Cabral. 1988. Elementos de estratégia. Vol. I. Pedrouços: Instituto de Altos Estudos Militares. Likke, Arthur. 2001. Toward an understanding of military strategy. In U.S. Army War College Guide to Strategy. Carlisle: USAWC. Luttwak, Edward N. 2003. Strategy: the logic of war and peace. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press. Pasquino, Gianfranco. 2002. Curso de ciência política. Parede: Princípia. Santos, José Loureiro dos. 1983. Incursões no domínio da estratégia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. _____. 2012. Forças Armadas em Portugal. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Yarger, Harry R. 2006. Strategic theory for the 21st Century: The little book on big strategy. Carlisle: USAWC. OTAN. 2010. AJP-01(D) ALLIED JOINT DOCTRINE.

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A EVOLUÇÃO DOS SISTEMAS DE COAÇÃO MILITAR NO ESPAÇO PORTUGUÊS (SÉCULOS VIII-XIII)

Major Carlos Filipe N. L. Dias Afonso

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A Evolução dos Sistemas de Coação Militar no Espaço Português (séculos VIII-XIII) major Carlos Filipe N. L. Dias Afonso “Cada época fabrica mentalmente a sua representação do passado histórico” Jacques Le Goff, 1924, p. 26

1. Introdução

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análise científica da história passada faz-se com recurso a instrumentos do presente, embora este exercício acarrete riscos e responsabilidades, que são alvo de constante debate académico. Um dos principais riscos deriva de partir para a análise histórica de acordo com premissas do tempo atual, sem procurar perceber a conjuntura e mentalidades das épocas em estudo. É sabido que não é possível circunscrever em absoluto todas as condicionantes de um dado período, mas os riscos aumentam ainda mais quando se utilizam, para análise, conceitos que não tinham expressão nas mentalidades da época analisada. É o caso da utilização da Estratégia tal como a conhecemos hoje, tendo como objeto a coação. Com efeito, esta ciência conhece a sua evolução já no século XX, através de pensadores como Lidell Hart, Beaufre e, entre nós Abel Cabral Couto. Não obstante, enquanto ferramenta de análise, a Estratégia e os conceitos que encerra são de grande utilidade, pois permitem a observação das realidades medievais de um modo sistematizado, desde que se mantenha a permanente consciência de que os atores daquele tempo obedeciam a condicionantes próprias das suas épocas. Como objeto do presente ensaio, elegeram-se os sistemas de coação militar no espaço peninsular entre os séculos VIII e XIII, tendo como objetivo perceber em que medida estes sistemas evoluíram do ponto de vista da estratégia e, quando possível, procurar causas da evolução, quer a montante (no âmbito ideológico-político), quer a jusante (nos âmbitos tático e tecnológico), sempre que algum destes fatores se torne evidente. Tendo consciência de que cinco séculos de evolução dos sistemas de coação militar no espaço peninsular constituem muito tempo, torna-se necessário estabe251

lecer uma delimitação clara, mas que não prejudique o objetivo. É deste modo que, quanto aos sistemas de coação a observar, se optou por considerar “cristãos” e “muçulmanos”, de forma genérica e, quanto aos limites temporais, considerou-se como momento posterior, o final da Reconquista no território português, em 1249, ainda bem dentro do que é conhecido como “Período de Evolução Técnica Lenta”, preconizado por Eric Muraise1. Analisar o período em causa somente do ponto de vista do confronto entre cristãos e muçulmanos é perigoso e, certamente, redutor. No entanto, apesar das relações entre os diversos reinos cristãos que se foram formando, tantas vezes mais sangrentas que a própria guerra contra muçulmanos, e das convulsões internas do al-Andalus2, o “pano de fundo” que assiste a grande parte da Alta Idade Média peninsular é o facto de aqui se encontrar uma fronteira civilizacional. Entre os séculos VII e XIII, a relação entre os mundos cristão e muçulmano na Península Ibérica conheceu diversas variações, sendo possível identificar períodos em que a conflitualidade se acentuou e períodos em que se atenuou, assim como destrinçar épocas distintas através das diferentes manifestações do emprego do instrumento militar, tanto no âmbito das caraterísticas das forças e meios, como no âmbito da arquitetura militar. A divisão em épocas diferenciadas seguiu um critério relacionado com os períodos de significativos avanços e recuos territoriais das áreas de influência cristã e muçulmana, tendo sido identificados nove: (I) Invasão, 711-718; (II) Incursões e proventos de guerra, 718-866; (III) Presúrias e fixação territorial, 866-979; (IV) Recuperação do Califado, 979-1012; (V) Primeiras taifas, 1012-1086; (VI) Avanço almorávida, 1086-1144; (VII) Segundas taifas e instalação do poder almóada, 1144-1179); (VIII) Almóadas contra cristãos, 1179-1212 e (IX) Fim do domínio almóada no território português, 1212-12493. A metodologia utilizada consistiu na observação, em cada período, dos sistemas de coação militar cristão e muçulmano, ao nível da estratégia geral militar4, ascendendo ao patamar ideológico-político e/ou descendo à tática e à tecnologia sempre que for nítida a influência de pelo menos um destes níveis no primeiro. No final, elaborou-se uma síntese, que pretende retratar, de uma forma sucinta, como evoluíram ambos os sistemas “genéricos” de coação militar presentes na Península Ibérica, mais concretamente no espaço português, entre os séculos VIII e XIII. 1

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O século XV e o início da utilização intensiva da pólvora, no ocidente, surge como uma barreira separadora entre duas épocas, a de “Evolução Técnica Lenta” e a de “Evolução Técnica Rápida”. A respeito da caraterização destes dois períodos, veja-se Loureiro dos Santos, 2010, pp. 47-78. Designação muçulmana da Península Ibérica. As datas indicadas correspondem, na sua maioria, a referências mais simbólicas do que determinantes, dado que a transição entre a maioria dos períodos escolhidos ocorre de forma progressiva e estendida no tempo e não de forma súbita. Como componente fundamental da estratégia total.

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2. Dos Sistemas de Coação Militar De acordo com o preconizado por Cabral Couto, a coação militar tem como objetivo a submissão de um adversário recorrendo ao emprego de meios militares orientados contra as suas fontes de poder. Isto inclui não só o emprego efetivo da força, mas também o recurso à demonstração de “uma capacidade militar que anule ou paralise a vontade adversa” (Couto, 1987, p. 90). O presente estudo tem como objeto os principais sistemas de coação militar na Península Ibérica que atuaram no espaço peninsular, entre os séculos VIII e XIII, tendo presente que, no âmbito da estratégia total de uma entidade política, a coação militar não é única e convive com outras formas principais de coação5. Loureiro dos Santos diz-nos que, por comparação com o período de evolução técnica rápida, no período de evolução técnica lenta a tecnologia não constitui uma influência significativa na evolução dos sistemas de coação militar, destacando “a envolvente política como primeira responsável pelas principais mudanças” neste sistema de coação (Loureiro dos Santos, 2010, pp. 50-51). Se, por um lado, na Idade Média é relativamente fácil identificar quando uma alteração ideológica, com consequente mudança de sistema político tem influência no sistema de coação militar correspondente6, por outro lado, embora em menor escala, o reflexo das alterações tecnológicas também não deverá deixar de se fazer sentir7. De acordo com Eric Muraise, a partir do século V a.C. já é possível distinguir claramente dois sistemas militares diferentes, ocidentais e orientais (Loureiro dos Santos, 2010, p. 80). Em certa medida, a Península Ibérica será palco, a partir do desembarque muçulmano em Algeciras, de 711 d.C. e até à queda do Reino de Granada, em 1492 d.C., de dois sistemas de coação militar de origens diferentes que foram sofrendo adaptações relacionadas com as especificidades do que poderíamos hoje designar de Teatro de Operações da Península Ibérica.

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Como a ação psicológica, diplomática, política clandestina no interior do adversário e económica (Couto, 1987, pp. 86-87). John Keegan sustenta, por exemplo, a forma como a introdução da ideologia islâmica transformou os árabes num povo militar (Keegan, 1993, p. 259). Um outro exemplo, ainda no campo ideológico, com reflexo imediato no político, está relacionado com o papel que a Igreja desempenhou, durante os séculos XI e XII, na sustentação teórica da “guerra justa”, levando à sacralização da cavalaria e, em última análise, ao surgimento das ordens militares, com a consequente adaptação/evolução dos sistemas de coação militar cristãos (cf. Rodríguez-Picavea, 2008, pp.26-28). A título de exemplo, verifica-se que o desenvolvimento e proliferação de proteções para os cavaleiros, no século XI, provocou uma transição nos sistemas de coação militar, antes vocacionados para as incursões rápidas em território inimigo, depois predispostos para a procura da decisão nos confrontos diretos (Barroca, 2003d, pp. 123-124).

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3. Observação Período I – Invasão Do ponto de vista do mundo islâmico do século VIII, a conquista da Península Ibérica e a tentativa de avanço para território franco, além Pirinéus, representam a maior progressão para ocidente. Esta foi conseguida, em grande medida, à custa dos mawadi, diferentes tribos clientes árabes e berberes, que se foram convertendo, materializando a expansão da fé e cultura islâmicas pelo norte de África, ao longo do século anterior. Os invasores de 711, sob o comando de Tariq bin Ziyad e, no ano seguinte, sob o próprio váli de Marrocos, Muça bin Nusayr, formavam corpos diferenciados, entre os quais se encontravam unidades provenientes do Egipto, da Grécia e Pérsia, mas é de admitir que o grosso da força assentasse nas tribos berberes. Estes contingentes eram compostos por cavalaria ligeira e por massas de infantaria auxiliar, maioritariamente montada, com armas ligeiras, com preponderância para as armas de arremesso e projeção, típicas da bacia mediterrânica8 (Nicolle, 2001, p. 6). A rapidez com que, entre 711 e 716, o váli de Marrocos passou a controlar praticamente toda a Península Ibérica é reveladora da espantosa fragilidade em que se encontrava a autoridade visigoda. O modelo militar vigente até então9 desapareceu em definitivo, em boa parte devido à descoordenação entre os líderes locais, que gozavam, estatutariamente, de relativa independência em relação ao poder central. Esta independência era eficaz contra ameaças regionais, mas revelou-se inoperante face à invasão muçulmana, mais abrangente. Contra as forças visigodas, mais pesadas e bem organizadas, o sucesso muçulmano residiu na unidade de comando e na capacidade de concentrar efetivos muito superiores, no momento e local do combate10, mercê da utilização de um exército regular profissional – o ŷund. Esta capacidade estratégica era complementada, ainda, com a maior mobilidade tática de uma cavalaria e infantaria mais ligeiras. Durante este período, não se pode considerar que os conquistadores tivessem superioridade tecnológica11, mas detiveram, seguramente, superioridade estratégica Dardos, fundas e arcos curtos. O modelo militar visigodo assentava numa hoste, organizada em tiufadias (unidades de 1000 homens), divididas, taticamente, de um modo próximo do romano. Uma tiufadia era composta por dois quingentários (500 homens), cada um destes com cinco centúrias (100 homens). O escalão mais baixo era a esquadra, de 10 combatentes, comandada por um decano. Uma vez que a cavalaria era a arma principal, as tiufadias eram corpos mistos, de cavaleiros e infantes, que se apoiavam mutuamente. Crê-se que, em tempo de paz, o reino visigodo mantinha a componente de cavalaria em permanência e só mobilizava a infantaria em caso de necessidade. 10 Estas capacidades são a materialização, no sistema de coação militar, das inovadoras possibilidades que a força da ideia de Islão transferiu para a guerra (Cf. Keegan, 1993, p.259). 11 Sendo até, aceite, que não deviam existir grandes diferenças do ponto de vista do armamento individual, de parte a parte, como se verificará já no século XII (Campo, 2000, p. 19 e 24). 8 9

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e tática. Esta inovadora conceção de guerra muçulmana seria rapidamente adotada pelas próprias forças cristãs, mesmo as exteriores à Península12 e perdurou, entre nós, até meados do século XI. Período II – Incursões e Proventos de Guerra O único reduto sob controlo cristão, na Península, foi o reino das Astúrias e, em 718, a aristocracia asturiana elegeu Pelágio como rei. Um seu sucessor, Afonso I (739-757)13, desencadeou ações militares contra o sul muçulmano, não com a intenção (porque não tinha possibilidade) de ocupar território, mas para obter proventos de guerra, através do saque e da captura de prisioneiros. É no seu reinado que os muçulmanos abandonam a Galiza e retiram o seu controlo sobre as cidades do Porto, Braga, León, Simancas, Osma, Salamanca, Ávila e Segóvia, tendo esta retirada ficado a dever-se mais às convulsões atravessadas pelo mundo muçulmano do que ao resultado de ações ofensivas cristãs14. Criou-se, assim, em torno do vale do Douro, uma vasta região habitada, maioritariamente por cristãos, mas que não respondia nem ao reino asturiano, nem ao emirado muçulmano (Barroca, 2003a, p. 22). As incursões cristãs eram rápidas e apoiadas na cavalaria ligeira, normalmente sobre territórios próximos, embora haja registo, neste período, de pelo menos uma ação de grande profundidade, de Afonso II sobre Lisboa, em 798. Menos de um século depois da invasão muçulmana, a organização militar asturiana difere significativamente da visigoda e surgem novas designações para as operações levadas a cabo pelas forças cristãs, destacando-se o fossado, que consistia numa incursão em território inimigo, normalmente encabeçada por um grupo de cavaleiros acompanhados de peonagem (Contamine, 1980, p. 147)15. No lado muçulmano, o curso do século VIII no al-Andalus assistiu à redução do efetivo de arqueiros apeados e ao aumento da cavalaria ligeira (Nicolle, 2008, pp. 28-29). Há registo de incursões muçulmanas ao norte, em tudo análogas aos fossados, a partir de 791 e, até ao final do período analisado, os historiadores árabes assinalaram, pelo menos, sete grandes expedições16. Não existem evidências de superioridade tecnológica ou tática de um dos lados. Do ponto de vista estratégico assistiu-se a um reequilíbrio por parte do lado 12

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Os contingentes de cavaleiros ligeiros, incluindo a presença de arqueiros montados, passaram a figurar nos contingentes da monarquia carolíngia e noutras hostes da Europa Ocidental (Barroca, 2003c: 148). O segundo rei das Astúrias foi Fávila, com um reinado efémero, entre 737 e 739. A partir de 742 sucederam-se revoltas das tribos berberes, quer no norte de África, quer no Andalus, que obrigaram o califado omíada, com sede em Damasco, a empenhar os seus recursos militares na contenção da crise (Mattoso, 1992, p. 445). Mais tarde, já no território português, usar-se-á, por oposição, o termo “cavalgada”, que alude a uma incursão com propósitos idênticos ao fossado, mas em que só participam elementos montados (Barroca, 2003b, p. 84). Em 791, 795, 796, 816, 823, 839 e 846 (Mattoso, 1992, p. 478).

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cristão, tendo desenvolvido, ambos os lados, uma tipologia de operações assente em incursões em território inimigo com objetivo económico – de obtenção de proventos – e não de conquista. Período III – Presúrias e fixação territorial (866-979) É só com Afonso III (866-910), que a guerra começa a conduzir a uma fixação territorial. Este monarca foi responsável por um conjunto de operações ofensivas, designadas por presúrias que entre 868 e 878, colocaram a fronteira cristã ocidental ao longo do vale do Mondego17. O regresso das instituições de poder cristãs aos territórios abandonados no século anterior, levou a que as rudimentares fortificações erigidas pelas populações locais dessem lugar aos castelos de iniciativa condal (Monteiro & Pontes, 2002, p. 7). A arquitetura militar muçulmana do al-Andalus começou a tomar forma ao mesmo tempo que a sua congénere cristã. Os mais antigos castelos muçulmanos – os husun emirais e califais – eram de influência síria e caracterizavam-se por uma muralha fechada, de planta geométrica simples, guarnecida com torres nos ângulos, e ao longo dos panos mais extensos18. Afonso III transferiu a capital de Oviedo para León e, à sua morte, os seus territórios incluíam as Astúrias, a Galiza e Leão. Em breve surgiriam novas entidades políticas no seio da cristandade peninsular: em 925, em torno de Pamplona, surge o reino de Navarra e em 950, em redor de Burgos, Castela tornar-se-ia um condado independente (Contamine, 1980, p. 145). Por seu turno, o emirado de Córdova (califado a partir de 929), tornara-se uma potência regional, nitidamente mais avançada do que a Europa Cristã. Este esplendor era apoiado por um sistema de coação militar assente em territórios militares que confinavam com o mundo cristão, os thughur, diferentes das circunscrições do sul e numa hoste permanente, aquartelada em Córdova. Durante a centúria que se iniciou com Afonso III, os poderes cristãos lograram uma expansão territorial que chegava ao vale do Mondego. Pode-se dizer que esta relativa superioridade estratégica cristã reside mais na opção muçulmana de consolidar o seu espaço a sul do que num mérito de conquista pela força das armas19. Grande parte do território foi ocupado e não conquistado. Por vias diferentes, assistiu-se, em ambos os lados, ao início do processo de “incastelamento”. 17

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Posição em que permaneceria até 987, altura em que uma revitalização militar muçulmana veio alterar o equilíbrio de poderes nos sistemas de coação militar muçulmanos e cristãos, desta vez em favor dos primeiros. A alcáçova de Mérida (835) é o modelo mais perfeito encontrado na Península. Entre nós, o castelo velho de Alcoutim e o castelo das Relíquias (igualmente em Alcoutim) são os melhores exemplos (Barroca, 2003c, p. 115). Pelo menos de conquista de territórios ao mundo muçulmano. Sabe-se que os primeiros reis asturianos tiveram que vencer alguma resistência, na Galiza, não de muçulmanos, mas de líderes locais (Mattoso, 2011, p. 41).

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Período IV – Recuperação do Califado (979-1008) Entre 791 e 975, José Mattoso contabiliza, pelo menos, dezoito grandes ações ofensivas muçulmanas contra território cristão, admitindo também a ocorrência de muitas outras, em menor escala ou não narradas pelas crónicas islâmicas (Mattoso, 1992, p. 478), mas a realidade mostrou que, entre estas duas datas, foi o lado cristão que logrou uma expansão territorial que chegava ao vale do Mondego. A partir de 979 ocorreu uma mudança determinante no califado: al-Mansur ibn Abi Amir20 protagonizou uma profunda reforma militar, eliminando a forma tribal de recrutamento no al-Andalus, passando a assentar a hoste numa estrutura de mercenários berberes e cristãos que combatiam a troco de recompensas. Com o reforço dos contingentes provinciais, uma vez convocada a mobilização, concentrava-se na capital uma força impressionante, que podia depois ser conduzida em direção aos objetivos estratégicos21. O exército muçulmano profissionalizou-se e ganhou nova capacidade ofensiva, permitindo desencadear diversas operações, particularmente violentas, que fizeram com que a fronteira tornasse a recuar para o vale do Douro22. Entre estas expedições contam-se incursões em Leão, Castela, Aragão e Navarra, incluindo o saque de cidades como Zamora (981) e Compostela (997). Nesta operação sobre a Galiza, destaca-se o desdobramento do contingente em duas forças: a cavalaria evoluiu desde Córdova, por terra, conquistou Lamego, que oferecera resistência, e incorporou vários contingentes cristãos ao longo do trajeto; a infantaria deslocou-se por mar desde Alcácer do Sal. Os contingentes reuniram-se no Porto e entraram na Galiza, tendo desencadeado o assalto a Santiago de Compostela cerca de um mês depois de terem saído dos locais de partida (Barroca, 2003a, p. 27). Em consequência da profissionalização das hostes muçulmanas, as populações deixaram, gradualmente, de participar em operações militares, ficando o ofício da guerra a cargo dos soldados ao serviço do estado, um sistema que perdurará no al-Andalus (García Fitz, 2005, pp. 267-268). É principalmente a partir deste período que aumenta o contraste entre o grau de militarização das sociedades cristã e muçulmana peninsulares, tornando-se este bastante mais elevado na primeira do que na segunda. 20

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Al-Mansur é um cognome que significa “o Vitorioso”. Ao longo dos tempos, vários líderes muçulmanos receberam este cognome, destacando-se, entre outros, o segundo califa abássida de Bagdade (Abu Ja’far Abdalah ibn Muhamad). Na Península Ibérica, assumem destaque dois chefes, em contextos e épocas diferentes: ibn Abi Amir (938-1002) e Abu Yusuf Ya’qub (1160-1199). Para uma ideia da dimensão deste exército, sabe-se que, no final do século X, al-Mansur ibn Abi Amir mobilizava uma força regular de cavalaria de cerca de 12 000 combatentes (Nicolle, 2001: 12). Embora na faixa ocidental da Península alguns territórios junto ao Vouga permanecessem sob a coroa de Leão, como Arouca e Santa Maria (Barroca, 2003a, p. 28).

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Não existindo claras evidências quanto ao desempenho tático, verificouse que, entre 979 e 1008, as expedições de ibn Abi Amir e do seu filho, Abd alMalik, demonstraram a superior capacidade estratégica do califado - que até permitia combinar o movimento de forças por terra e por mar para uma operação na profundidade do território cristão. Período V – Primeiras Taifas (1012-1086) Dissensões internas do califado omíada de Córdova levaram à sua desagregação progressiva, entre 1012 e 1031, tendo surgido reinos independentes, em redor das cidades muçulmanas mais importantes, conhecidos como os primeiros reinos taifas ou primeiras taifas23. O retalhamento do espaço muçulmano no al-Andalus e as rivalidades entre as taifas resultaram num consequente enfraquecimento da capacidade militar muçulmana. No entanto, na mesma altura, o lado cristão debatiase com uma nova ameaça que assolava o norte peninsular: as incursões normandas que, sem representarem um impedimento absoluto ao avanço cristão para sul, não deixaram de se constituir num perturbador que obrigou ao redirecionamento de forças. Em ambas as partes foi, no entanto, mantida a estratégia expansionista: do lado cristão, o reino de Leão confiava a expansão à iniciativa condal, não deixando o monarca de intervir diretamente quando necessário24; do lado muçulmano, também se empreendiam expedições de conquista sobre territórios cristãos, embora limitadas pela atrição sofrida nas tensões entre taifas e pelo menor efetivo disponível, quando comparado com aquele que o califado conseguia mobilizar no período anterior. Se Afonso III das Astúrias, dois séculos antes, tinha iniciado a ocupação do norte peninsular, beneficiando do abandono do território por parte dos muçulmanos, Fernando Magno de Leão (1037-1065) passou a encarar a conquista como a forma de expansão territorial (Barroca, 2000, p. 38). Contrastando com o modelo social muçulmano que, como vimos, passara a assentar num exército profissional totalmente diferenciado do resto da sociedade, no lado cristão materializa-se a consolidação de um modelo social assente em três tipos de combatentes: (i) os infanções ou fidalgos, que participam nas operações pelos seus feudos ou pelo soldo recebido do monarca; (ii) os cavaleiros-vilãos, especialmente numerosos no vale do Douro, elementos não nobres, mas de posses económicas, que terão um papel preponderante a partir da década de 1080; (iii) os 23

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Entre elas, em 1022, Badajoz, governada pela dinastia aftácida; em 1023, Sevilha, pela dinastia abádida; em 1026, Ossónoba (Faro), governada pelos Banu Harun. Em 1044, a Taifa de Mértola foi absorvida pela de Badajoz. Em 1048, é fundada a Taifa de Silves, governada pela dinastia dos Banu Muzayn. Para uma ideia da dimensão deste exército, sabe-se que, no final do século X, al-Mansur ibn Abi Amir mobilizava uma força regular de cavalaria de cerca de 12 000 combatentes (Nicolle, 2001: 12).

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peões fornecidos pelos concelhos, de acordo com o determinado nos forais25. A este modelo estavam associadas diferentes obrigações militares, consoante o tipo de guerra pretendido, o que lhe conferia uma grande flexibilidade, quer estratégica, quer tática. Se o monarca pretendesse uma ofensiva em larga escala, convocava a hoste; se a operação fosse um fossado, constituía uma força “à medida” da expedição. No campo defensivo, o “apelido” representava a mobilização de todos os indivíduos capazes de pegar em armas (Contamine, 1980, p. 148). A partir de 1055, Fernando Magno desencadeou uma campanha que resultou na conquista de Lamego (1057), de Viseu (1058) e terminou com a conquista de Coimbra, em 1064. Com a aquisição de tão vastos espaços, o modelo condal das civitates, vigente até então, tornou-se ineficaz, sendo substituído pelo modelo das terrae, unidades mais pequenas, mais fáceis de administrar e que podiam, com recurso ao apelido, ser defendidas pelos próprios habitantes locais, liderados por uma nobreza, de origem “obscura”, no dizer de Mário Jorge Barroca, que, já no século XII, virá dar origem aos ricos-homens e a algumas das mais conhecidas linhagens da primeira dinastia portuguesa. É o modelo senhorial, que começa a tornar inúteis os pequenos castelos construídos por iniciativa das populações e os substitui por castelos centrais, de arquitetura românica, mais evoluída (Barroca, 2000, pp. 39-40). Não sabemos se a alteração da abordagem estratégica requereu alterações ao nível da tática ou se teve lugar o processo inverso. No entanto, é no período de Fernando Magno que surgem os primeiros registos de cercos prolongados, com a duração de vários meses26. Um cerco prolongado não é possível se o sitiante se encontrar impossibilitado de reabastecimento, pelo que deverá ter surgido outra alteração tática com o novo tipo de guerra: a da necessidade de emprego de forças para a manutenção de linhas de comunicação. Ao nível da técnica, o primeiro registo do uso de máquinas de cerco ocorre na conquista de Lamego, em 1057. A esta tendência para o incremento da poliorcética não deve ser alheio o modelo militar dos reinos taifas que, apesar de seguir, no plano tático (na tipologia de tropas e modo de emprego), o delineado pelos almorávidas, apresenta bastantes limitações em relação aos exércitos que o califado anteriormente conseguia mobilizar. Uma vez que, por um lado, as sociedades muçulmanas peninsulares eram menos aguerridas que as berberes e, por outro lado, a capacidade de mobilização das taifas dependia seus limites territoriais, a resultante era uma força pequena, mal armada e com limitada capacidade militar (García Fitz, 2005, p. 271). A perda de capacidade ofensiva, aliada à escassez de efetivos, levou a que, do lado muçulmano, se produzisse uma crescente procura de proteção nas estruturas defensivas, nos castelos. 25

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Entre eles, os besteiros. A partir do século XI, a besta torna-se uma arma cada vez mais popular entre os cristãos, de tal modo que a escola de tiro com arco vai declinando à medida que vão surgindo os besteiros especialistas. Estes combatentes – apesar de gente do povo – vão adquirindo um estatuto diferenciado nas hostes. O cerco de Coimbra durou de 20 de janeiro a 9 de julho de 1064 (Barroca, 2000, p. 40).

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O período das primeiras taifas é, por conseguinte, marcado por uma evolução dos sistemas de coação militar na Península Ibérica, que passam a incorporar, em ambos os contendores, técnicas e táticas de poliorcética, ao mesmo tempo que os processos de “incastelamento” ganham um grande impulso. A alteração da técnica e das táticas teve impactos significativos na estratégia: (i) as operações ofensivas passavam a ter grande duração, com implicações no sistema de recrutamento, aspeto que foi obviado, do lado cristão, com a implementação do sistema senhorial; (ii) a manutenção das linhas de comunicações passa a ser vital, porque as hostes só podem sobreviver durante longos períodos em território hostil se puderem ser sustentadas a partir de território amigo; (iii) os castelos assumem, vincadamente, a materialização de poder do monarca e não somente redutos de refúgio local, a guerra de cerco ganha convenções próprias e passa a ser o modelo de guerra dominante. Período VI – Avanço Almorávida (1086 – 1144) Ao mesmo tempo que o al-Andalus vivia sob o signo da fragmentação, desenvolveu-se, no norte de África, numa extensão que ia até à região do Senegal, uma fação berbere que defendia o cumprimento ortodoxo do islão – os almorávidas. Quando, em 1085, Afonso VI de Leão (1040-1109) tomou a cidade de Toledo, o rei da Taifa de Sevilha, receando o avanço cristão, pediu apoio a Yusuf ibn Tasufin, líder dos almorávidas. Em 1086, em Zalaca, perto de Badajoz, na sequência de uma ação ofensiva cristã, um exército almorávida composto, essencialmente, por forças marroquinas derrotou as forças de Afonso VI, constituídas por hostes cristãs peninsulares, reforçadas por cavaleiros francos. Depois da batalha, ibn Tasufin retirou de novo para Marrocos. Nos anos que se seguiram, são conhecidos mais cinco desembarques das forças almorávidas, com operações desencadeadas não contra os reinos cristãos, mas contra as taifas do al-Andalus, onde se assistia ao relaxamento dos preceitos doutrinais islâmicos e à tolerância para com cristãos e judeus. Estas foram sucumbindo ao poder berbere, de tal modo que o território muçulmano começou a recompor-se debaixo de uma autoridade única. Mais do que a batalha de Zalaca, foi a presença de um novo poder na Península que refreou o ímpeto ofensivo cristão nas décadas seguintes (García Fitz, 1998, p. 308). Contrastando com o seccionamento do al-Andalus nos reinos taifas, o poder almorávida voltou a materializar a unificação política do território muçulmano e a constituir uma ameaça séria ao lado cristão. Em pouco tempo, recuperou capacidade ofensiva do ponto de vista estratégico, de tal modo que em 1094, depois da queda da Taifa de Badajoz em mãos almorávidas, Lisboa e Sintra eram recuperadas pelos muçulmanos. 260

Período VII – As Segundas Taifas e a instalação do poder almóada (1144-1179) Passado pouco mais de um século, a partir de 1125, surgiu um novo poder no Magrebe, que tinha, muito à semelhança dos almorávidas, a sua própria interpretação rigorosa da lei islâmica – os almóadas. Estes começaram a impor-se, de tal modo que o império almorávida se viu obrigado a desviar recursos militares do al-Andalus para o norte de África. Este enfraquecimento do controlo na Península foi propício à eclosão de revoltas e movimentos secessionistas, como o que ocorreu em Mértola, em 1144, protagonizado por Ibn Qasi27, que deu início ao segundo período de reinos taifas. A conjuntura foi também aproveitada pelos reinos cristãos, através de importantes conquistas, que viriam a colocar a fronteira portuguesa na linha do Tejo. Por um processo muito semelhante àquele que trouxe os almorávidas ao al-Andalus, Ibn Qasi solicitou apoio aos almóadas, que iniciaram a sua conquista a partir do Algarve. As segundas taifas terminaram quando as forças almóadas conseguiram submeter Tavira e Silves, em 1156 e, finalmente, Mértola, em 1157. Estas novas forças marroquinas só entraram decisivamente no espaço peninsular a partir de 1163, com a subida ao poder do califa Abu Yaqub Yusuf I, al-Sahid (1163-1184) e, na década seguinte, iriam ainda debater-se com dificuldades para consolidar o seu domínio, devido aos ataques cristãos28. As populações andalusas, apesar de enquadradas por um poder estatal altamente belicista permanecem, no entanto, pouco militarizadas (García Fitz, 2005, p. 271). As hostes almóadas eram constituídas por um núcleo de soldados profissionais permanentes – murtaziqa – e por voluntários da jihad – mutaww’a. Quando necessário contavam com elementos provenientes de recrutamentos forçados – hūsūd. No lado cristão também tiveram lugar evoluções importantes. Na sequência da reforma da Igreja levada a cabo peplo papa Gregório VI, da Primeira Cruzada e da conquista de Jerusalém (1099), o início do século XII vê surgir uma nova ideologia, protagonizada por teólogos como Bernardo de Claraval, que permitem a sacralização da cavalaria, surgindo, no panorama militar, uma tipologia de forças inovadora: as ordens militares. Primeiro as chamadas “universais” (entre 1120 e 1160, templários, teutónicos e hospitalários) e, posteriormente, as ordens ibéricas (a partir da década de 1160, entre elas, Santiago, Alcántara, Calatrava, Avis). Estes freires-cavaleiros com um grau de treino superior e, acima de tudo, capazes de 27

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Figura central do ocidente do al-Andalus, na década de 40 e 50 do século XII. Auto-intitulava-se Mahdi – aquele que iria purificar o islão. Chefe militar de valor, conquistou várias praças, chegando a tentar apoderar-se de Sevilha. Fez um acordo de paz com D. Afonso Henriques e foi morto, em 1151, pelos seus homens (Nicolle, 1989: 22). No território português, cavaleiros oriundos de Santarém tomam Beja, em 1162. Geraldo Sem Pavor, conhecido entre os muçulmanos como “o maldito de Deus”, “demónio” ou “cão” (Barroca, 2003b: 46) tomou Trujillo, Évora, Cáceres, Montanchez, Serpa e Juromenha, entre 1163 e 1166. D. Afonso Henriques conquistou Coruche, Moura e Alconchel, em 1169.

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combater colocando o desempenho do coletivo acima do desempenho individual, vão constituir a “ponta de lança” dos reinos cristãos peninsulares, adquirindo, desde logo, a primazia do controlo territorial das faixas de fronteira da cristandade. Isto não impede a coexistência de modelos militares com relativo grau de independência dos monarcas, dos quais é exemplo o do caudilho Geraldo Geraldes, que tiveram facilidade em obter sucessos por conta própria, em boa medida mercê da situação de fragmentação muçulmana anterior à ascensão almóada. No que respeita ao recém-formado reino de Portugal, a guerra contra os muçulmanos do primeiro reinado é movida, nos primeiros anos, contra um poder almorávida enfraquecido; até à década de 1150, contra os reinos taifas que lhe sucederam; e, a partir da segunda metade do século XII, D. Afonso Henriques (1143-1185) tem pela frente o poder militar almóada. Durante o período de transição entre os poderes almorávida e almóada o sistema de coação militar dos reinos cristãos experimenta uma evolução significativa, pela introdução de um elemento ideológico novo que se materializa no espírito cruzado e nas ordens militares. Isto permite uma clara superioridade estratégica sobre os poderes muçulmanos em desagregação e traduz-se, espacialmente, no avanço da fronteira da cristandade, desde a linha do Mondego – Maciço Central Ibérico, na década de 1120, até à linha Alcácer – Évora – curso superior do Guadiana, a sul de Toledo, à data da morte de D. Afonso Henriques, em 1185. O sistema de coação militar muçulmano também sofre alteração, durante este período, com o emergir do império almóada, em que a componente militar do estado passa a ter um papel central. O contacto dos dois modelos, cristão e muçulmano almóada, ocorrerá nas décadas seguintes, sendo descrito a seguir. Período VIII – Almóadas contra Cristãos (1179-1212) Depois das campanhas movidas contra os muçulmanos peninsulares, o poder almóada tinha, a partir de 1179, assumido o papel de contenção das ofensivas cristãs, com bastante eficácia, por intermédio do seu modelo militar, que contrastava com todos os modelos muçulmanos anteriores pela centralidade do exército na sociedade29. Restabelecido este equilíbrio, os almóadas ganharam a iniciativa, materializada pelo ataque ao castelo de Abrantes. Em 1190, Abu Yaqub Yusuf, al-Mansur reconquistou Silves (que tinha sido tomada por D. Sancho I, no ano anterior), tomou Évora, Santarém, e Torres Novas. Cercou Tomar, sem, no entanto, conseguir conquistar a cidade aos templários de Gualdim Pais. No ano seguinte retomou Alcácer do Sal, Palmela e Almada. Em 1195, na batalha de Alarcos, perto de Ciudad Real, Abu Yaqub Yusuf derrotou um exército formado pelas tropas castelhanas de Afonso 29

Tanto o califado omíada como os almorávidas, viam no exército um instrumento de sustentação do seu poder, mas não o viam como elemento central (García Fitz, 2005, pp. 269-270).

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VIII, engrossadas com contingentes de diversas proveniências, incluindo ordens militares30, provocando uma interrupção do movimento cristão de Reconquista. O sucesso da máquina militar almóada deve-se à capacidade de comando e sustentação centralizada de um exército constituído por um núcleo regular profissional, ao qual são adicionados contingentes locais, voluntários ou não. Não é conhecida, com exatidão, a organização militar interna almóada, mas tem-se tomado como referência a exposta por Ibn Huḏayl, já no final do século XIV, que apresenta uma hoste perfeitamente articulada em unidades de efetivo nominal fixo: rā’ya de 5000 homens, alam de 1000, liwa de 200 e bend de 40 (García Fitz, 2005, p. 281). Em larga medida, o efeito da ofensiva almóada foi absorvido porque os exércitos cristãos contavam com um núcleo de ordens militares, que logrou reaver, em pouco tempo, castelos conquistados pelos muçulmanos, ao mesmo tempo que fortaleceu a defesa da linha do Tejo31. Os almóadas serão senhores do al-Andalus até à batalha de Navas de Tolosa, em 1212. A operação que conduziu às Navas começara a ser preparada dois anos antes, por Afonso VIII, e congregou forças de além-Pirinéus, de Navarra, Aragão, Leão e Portugal. A gigantesca hoste cristã partiu de Toledo e conquistou vários castelos na região de Ciudad Real, tendo, de seguida, travado um combate de encontro com o califa Muhammad al-Nasir. Durante este período, mais uma vez sem se verificar uma nítida superioridade tática de um dos contendores, aquele que logrou mobilizar uma hoste numerosa, com unidade de comando, obteve ganhos territoriais e, em combate de encontro, pôde infligir ao adversário uma pesada derrota (Alarcos e Navas de Tolosa). Período VIII – Fim do domínio almóada no território português (1212-1249) A consequência mais significativa da batalha foi o relançamento do processo de Reconquista (Barroca, 2003a, p. 58), ao mesmo tempo que anunciou o declínio do poder almóada. Em 1228, uma revolta iniciada em Múrcia dá origem a mais um breve período de reinos taifas, coincidente com um avanço significativo das forças cristãs no Alentejo e Extremadura, cujos protagonistas foram, essencialmente, os cavaleiros de Santiago: Elvas, Juromenha, Cáceres e Badajoz são conquistadas antes de 1230; Serpa, Moura, Beja, Aljustrel, Mértola e Alfajar da Pena caem em 30

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“Nos campos de Alarcos ficou toda uma geração de guerreiros, a elite da cavalaria nobre castelhana e alguns dos mais valorosos militares ibéricos, o que se reflectiu na quebra do esforço de reconquista durante os anos que se seguiram” (Barroca, 2003a, p. 52). Torres Novas, conquistada por Yacub Yusuf em 1190, foi recuperada pelos templários de Tomar em 1192. A implantação territorial das fortalezas templárias, a entrega, em 1194, da região da Guidintesta à Ordem do Hospital, e do castelo de Mafra aos cavaleiros de Évora, fizeram da linha do Tejo um obstáculo difícil de transpor pelos almóadas, mesmo depois da vitória obtida em Alarcos, em 1195.

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mãos cristãs até 1239, ano em que D. Paio Peres Correia, comendador santiaguista de Alcácer do Sal, inicia a conquista do Algarve, que culmina em 1249, com a conquista de Ossónoba (Faro), já no reinado de Afonso III de Portugal.

4. Síntese Conclusiva Na invasão muçulmana, os contingentes berberes utilizavam o sistema de coação militar conhecido como “oriental”. Defrontaram uma organização “ocidental”, mais pesada. Venceu a mobilidade estratégica e o princípio da unidade de comando, que permitiu ao vali de Marrocos concentrar potencial esmagador nos momentos e locais decisivos e conquistar a Península Ibérica em menos de uma década. Por seu turno, as forças cristãs aprenderam e adaptaram-se: passaram a incluir nos seus contingentes a mesma tipologia de forças. Atingiu-se um equilíbrio tático, mas não um equilíbrio estratégico porque, no século VIII, os cristãos peninsulares, não tinham a capacidade de concentração de meios que o reino dos francos, por exemplo, detinha. No período que se seguiu à invasão, o reino das Astúrias beneficiou de um alívio de pressão motivado pela crise interna do califado omíada. Este desafogamento levou ao abandono de parte do território pelos muçulmanos e garantiu liberdade de movimentos cristãos para sul do Cantábrico. Têm início as operações ofensivas – fossados – levadas a cabo por ambos os contendores. Um século depois da invasão – e dos poderes cristãos terem abandonado o vale do Douro – Afonso III tem condições para reiniciar uma fixação territorial. Assiste-se, em ambos os lados, a uma preocupação de ocupação, materializada pelo desenvolvimento de fortificações mas, enquanto o califado pode assentar a sua defesa numa linha de fronteira militarizada e numa forte reserva estratégica, aquartelada em Córdova, a cristandade desdobra-se em poderes independentes, que reforçam ainda mais a necessidade de castelos para assegurar a sua defesa. A fronteira da cristandade avança agora até ao Mondego, mais pelo desinteresse muçulmano por aquele espaço, do que por fôlego militar cristão. Na transição do século X para o século XI, o califa ibn Abi Amir profissionaliza o exército muçulmano, afasta das populações do al-Andalus a obrigatoriedade de pegar em armas e renova a sua capacidade ofensiva. Neste período, a profissionalização centralizada muçulmana sobrepõe-se, com sucesso, à militarização geral da sociedade cristã. Mas este fulgor islâmico é efémero, dado que a fragmentação do califado nas primeiras taifas gera múltiplas unidades políticas que, apesar de se organizarem militarmente de acordo com o modelo preconizado por ibn Abi Amir, não conseguem mobilizar efetivo suficiente para fazer frente, agora, à sociedade cristã em que cada homem é, ao seu nível, um combatente. Durante quase todo o século XI assistimos 264

a uma inversão da eficácia dos sistemas. Aumenta a tendência, em ambos os lados, para a procura de refúgio em estruturas defensivas o que, por seu lado, catalisa o desenvolvimento de tática e tecnologia de assédio. A ascensão almorávida do final do século XI volta a trazer para a Península um sistema militar que, sob um modelo político unificado, se sobrepõe, de novo, à cristandade, conferindo aos muçulmanos superioridade ao nível estratégico. Durante o século XII, o declínio almorávida e as segundas taifas permitem nova ascensão cristã, apoiada agora na ideia de guerra santa, que se reflete também na tática (a forma de combater das ordens militares é disso exemplo) e na própria tecnologia (recupera-se a besta e os equipamentos defensivos individuais aumentam de robustez). No final do século XII e início do XIII, o poder almóada permitiu aos muçulmanos readquirirem superioridade estratégica, mas só até ao momento em que os reinos cristãos lograram um sistema de coação militar – conjuntural, é certo – unificado sob Afonso VIII, de Leão. Apesar de terem tido origens diferentes, os dois sistemas de coação militar, cristão e muçulmano, cedo se adaptaram mutuamente, no sentido do uso de soluções similares ou equivalentes em ambos os campos. Por conseguinte, durante os cinco séculos de presença islâmica na Península Ibérica, assistimos a formas de combater semelhantes e à utilização de tipologias de forças idênticas (quer através do recurso à imitação de soluções aprendidas com o opositor, quer recorrendo à utilização das mesmas forças em ambos os lados). É certo que se identifica um certo paralelismo entre as manifestações muçulmanas e cristãs, mas estas não devem ser encaradas, hermeticamente, como diretamente interdependentes. Com efeito, nos períodos abordados, a alteração dos sistemas de coação militar conta, também, com inúmeros fatores que são externos ao contexto peninsular. Na resumida descrição efetuada sobre a ocupação muçulmana do espaço peninsular até meio do século XIII, ressalta, desde logo, um aspeto: sempre que uma das entidades se encontra sob um poder forte e centralizado, existe unidade de comando, coincidindo estes períodos com as alturas de fulgor militar. Isto ocorre do lado islâmico em quatro momentos bem precisos: logo na invasão de Tariq (711-718), no governo de ibn Abi Amir (979-1008), com a ascensão dos almorávidas (1086-1144) e depois com os almóadas (1179-1212). Do lado cristão destacam-se o período das presúrias de Afonso III (866-879), da conquista territorial de Fernando Magno (1055-1064) e das operações que conduziram à batalha de Navas de Tolosa (1210-1212). É igualmente interessante verificar que, não raras vezes, os momentos de poder forte e centralizado são sustentados pelo fator ideológico. É ele que, logo em 711, confere ao islão uma coesão que permite mobilizar um vasto contingente sob um único comando e, um século mais tarde, empresta aos asturianos a noção sagrada de “Reconquista”, na procura de restaurar a instituição visigótica. Está na base da 265

ascensão do poder almorávida numa altura em que, no lado cristão, a noção de guerra santa e a sacralização da cavalaria abrem novas possibilidades estratégicas, táticas e tecnológicas. Finalmente, o fulgor almóada é também motivado por uma renovação da religiosidade islâmica. Pode, por isso, afirmar-se que, na origem de boa parte das alterações dos sistemas de coação militares, em ambos os lados, encontramos a força das ideias. Os cerca de cinco séculos percorridos no presente ensaio, inseridos no que é conhecido como período de evolução técnica lenta, apresentam-nos dois modelos militares que se foram, progressivamente, desenvolvendo e ajustando mutuamente. Contrariamente ao que uma visão superficial sugere, todo o percurso descrito se revestiu de um dinamismo assinalável onde, em cada transformação, são percecionáveis as causas principais e as consequências, podendo estas estar relacionadas com fatores de ordem político-ideológica, estratégica, tática ou técnica ou ainda com a combinação de dois ou mais fatores.

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A EUROPA NO PALCO MUNDIAL

Capitão Paulo Rodrigues

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A Europa no Palco Mundial Capitão Paulo Rodrigues

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as análises efetuadas pelos políticos e analistas de política internacional sobre qual a nova Ordem Mundial que sucederá ao fim do período Guerra-fria, ainda em discussão apesar das duas décadas que nos separam já deste acontecimento, tem ganho cada vez mais notoriedade a ideia de que caminhamos para um Sistema Internacional baseada no equilíbrio de poderes, em tudo semelhante ao que vigorou na Europa dos séculos XVII, XVIII e XIX. Mas quem serão as potências ou superpotências que disputarão este novo equilíbrio de poderes? Os EUA, a Rússia, a China, o Japão, a Índia e a Europa são os nomes mais comummente ouvidos, embora nem todos sejam consensuais entre os diversos autores especializados na matéria. Relativamente à Europa, talvez não seja muito controverso aceitar que esta deseja assumir um papel mais nítido e mais reconhecido no complexo Mundo de hoje, senão, mesmo, adquirir o já referido papel de superpotência mundial. Mas a Europa só será capaz de desempenhar este papel se conseguir, a curto e médio prazo, caminhar no sentido de se transformar numa União Político. Mais ainda, a Europa só conseguirá competir num Sistema Internacional baseado no equilíbrio de poderes se conseguir equiparar-se a todas a outras potências em todos os domínios, incluindo o militar, uma vez que “O funcionamento do novo Sistema Internacional mover-se-á em direção ao equilíbrio mesmo no campo militar, embora sejam precisas ainda algumas décadas para se chegar a esse ponto”1. Mas como se encontra a Europa em termos militares? Não na melhor das formas. Para uma Europa que se desejava kantiana, chegou o momento de enfrentar a realidade atual, assumindo que já não nos encontramos mais no período pós II Guerra Mundial, abdicar em grande medida da filosofia de Paz Perpétua e transformarse numa verdadeira potência mundial, realizando os esforços políticos e militares necessários, ou a sua decadência será cada vez maior e ficará definitivamente para trás no que concerne aos protagonistas da futura Ordem Mundial. Recuemos um pouco na História da Segurança Europeia. É uma verdade comprovada pela História do Homem que a paz não se mantém a si própria. A 1

Kissinger, Henry, op. Cit, p.13.

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humanidade sempre necessitou de desenvolver esforços não só para a alcançar, mas, de forma igualmente importante, para a preservar. A razão pela qual a espécie humana nunca foi capaz de viver sem guerra sempre constituiu um enigma para os estudiosos da natureza humana, fossem eles biólogos, sociólogos, filósofos ou, até mesmo, cientistas políticos. O filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes, adiantou uma possível resposta: o Homem não é um ser pacífico por natureza; bem pelo contrário, o seu “estado de natureza” é um estado de guerra. Segundo o filósofo alemão do século XVIII, Immanuel Kant, esta maldade da natureza humana é perfeitamente visível nas relações entre os povos. Na verdade, sempre existiu uma determinada lógica de hostilidade, um dilema de segurança a acompanhar a política mundial, mesmo quando a sua forma básica não era o sistema anárquico de estados, mas sim o sistema de império mundial ou o sistema feudal. De igual forma, a História há muito que demonstrou que a manutenção da paz através da prática do equilíbrio de poder bélico só permite breves períodos de tréguas, enquanto se tenta adiar o mais possível a próxima guerra. Entre a I e a II guerras mundiais os europeus já haviam iniciado a primeira tentativa de por cobro à política baseada no equilíbrio clássico de poder e transformar a fraqueza em virtude. Pretendiam deixar de estar dependentes do poder militar tendo, pela primeira vez, desenvolvido esforços no sentido de alcançar uma segurança coletiva. Após o final da Segunda Guerra Mundial, a Europa passou por mais um período de grandes dificuldades, uma vez que a esta quase destruiu por completo as nações europeias enquanto potências mundiais. Por um lado a incapacidade da Europa no período pós guerra em manter os impérios coloniais retirou-lhe, após cinco séculos de domínio, protagonismo na escala global, e, por outro, as economias europeias encontravam-se severamente devastadas e dependentes dos banqueiros dos Estados Unidos. Mas o facto mais marcante e definidor da mudança de política de segurança situou-se no campo emocional. Ao contrário do que havia acontecido aquando do fim da I Guerra Mundial, os europeus já não viam este conflito como o último dos últimos, mas sim como o prenúncio de que uma nova crise poderia surgir quando menos se esperasse. As duas guerras, quase simultâneas, destruíram a vontade europeia de lutar. Cento e cinquenta anos de nacionalismos exacerbados e guerras sangrentas culminaram, então, numa construção política supranacional inédita – a União Europeia. O projeto europeu, desenvolvido por Homens que viveram a tragédia e os horrores de duas guerras mundiais, apresentava-se como um projeto político original, de paz, imbuído dos valores humanistas e idealistas do pós-guerra: os Direitos Humanos, a Liberdade, a Igualdade e a Solidariedade entre os povos e os Estados, estando grande parte das suas raízes assentes na obra O Projeto de Paz Perpétua de Immanuel Kant. Os pais fundadores da União Europeia tinham, consequentemente, como um dos objetivos principais a construção de uma paz duradoira na Europa. 272

Os Estados Unidos da América esperavam, no entanto, que após a recuperação económica inicial, a Europa desenvolvesse esforços no sentido de se tornar na terceira força mundial, suficientemente capaz de enfrentar a União Soviética sem o seu apoio. Todavia, os europeus não manifestaram qualquer vontade em se tornarem nessa terceira força militar: se no início da Guerra-fria a economia europeia estava demasiada debilitada para investir na sua defesa, uma vez recuperada os europeus continuaram a não mostrar qualquer interesse no desenvolvimento de capacidades militares, pois ainda tinham bastante presente o perigo das guerras passadas. Em vez disso a Europa passou a depender dos Estados Unidos em mais um fator, o militar, para a sua própria defesa e também para a segurança mundial; a garantia nuclear americana retirava o incentivo em gastar o necessário para transformar a Europa numa potência militar. Durante o período da Guerra-fria o território europeu constituiu o palco onde era disputado o conflito entre o comunismo e o capitalismo democrático e, consequentemente, a liderança mundial no sistema bipolar da Guerra-fria. Consequentemente, a estratégia dos Estados Unidos durante este período era construída em torno da coesão do Ocidente e de boas relações transatlânticas. Com esta situação a Europa aumentava a sua importância neste sistema de forças em relação às questões mundiais. A única missão estratégica do velho continente durante este período consistia em defender o seu território dos soviéticos até à chegada dos americanos, mas até essa missão se mostrou de difícil execução, pois aquilo que os europeus gastavam na sua defesa era muito menos do que aquilo que era pretendido pelos americanos. Esta situação criou alguma tensão nas relações transatlânticas. Alguns americanos defendiam que os europeus deviam deter uma capacidade militar efetiva, sob o controlo da OTAN. No entanto os europeus tinham uma despectiva diferente; confiavam na proteção oferecida pelo “chapéu” nuclear americano e esperavam que a segurança europeia fosse mantida pelo “equilíbrio de terror americano-soviético”. Dai que se preocupassem mais com a construção da Europa, nomeadamente no que diz respeito ao fator económico. A década de 90 veio modificar significativamente este panorama. Logo no seu início, a Europa sofreu a maior alteração estratégica da sua vida, com a queda do Muro de Berlim, a autonomização dos países da Europa de Leste, a reunificação da Alemanha, a fragmentação da União Soviética e o termo do Pacto de Varsóvia. Após o fim do Sistema Internacional de Guerra-fria, o cenário de uma nova grande guerra tornou-se cada vez menos provável. Consequentemente, muitos conflitos internos e regionais que haviam sido contidos, mas não resolvidos, pela dinâmica bipolar, de forma a não perturbarem o equilíbrio geral, ganharam, então, relevância e rapidamente explodiram em conflitos e crises de extrema violência, de que constituem bons exemplos a invasão do Kuwait pelo Iraque, a 2 de Agosto de 1990, e a dissolução da Jugoslávia, em Junho de 1991. 273

Neste período, enquanto se caminhava a passos largos para a União Monetária, a discussão sobre a Segurança Europeia continuava a ser pautada por divergências históricas entre os seus principais membros. Esta ambivalência não passou despercebida na cimeira de Maastricht, realizada em 1992, onde o Tratado da União Europeia (TUE) substituiu a Cooperação Política Europeia (CPE) por um pilar de natureza intergovernamental no edifício comunitário. Nascia, assim, a Política Externa e de Segurança Comum (PESC), que passou a ser conhecida como o II Pilar da União. Quanto ao futuro da defesa da União Europeia, este tratado, que tinha por objetivo, no futuro, conduzir a uma defesa comum, refletia as ambivalências apresentadas pelos estados membros ao referir que “a política externa e de segurança comum deve incluir todas as questões relacionadas com a segurança incluindo a progressiva construção duma política de defesa comum que pode levar a uma defesa comum se o Conselho Europeu assim o decidir”. Ficava assim muito por explicar e esclarecer. Uma das principais questões que permaneciam sem resposta tinha por base uma área essencial da soberania: o arranjo de toda a arquitetura da defesa transatlântica, designadamente a eleição da instituição em que se realizaria a defesa comum: na OTAN, na UE, ou na OTAN a dois pilares. O Tratado de Maastricht, assim como a PESC a ele associada, constituíram um avanço significativo na área da segurança e defesa, não tendo, no entanto, sido suficientes para colmatar as lacunas nela existente. Este aspeto tornou-se particularmente notório com os conflitos que entretanto eclodiram no território da ex-Jugoslávia. As guerras nos Balcãs deixaram a descoberto a dura realidade que era a incapacidade militar europeia, demonstrando, de forma clara, que sem uma capacidade militar efetiva a União Europeia nunca conseguiria ser detentora do poder persuasivo e força moral que pretendia possuir no exterior. Revelava-se de carácter imperativo o desenvolvimento de um esforço no sentido de melhorar as suas capacidades bélicas. A PESD, como Política Europeia de Segurança e Defesa, subsidiária da PESC, surgiu na Cimeira Franco-Britânica de Saint Malo, realizada a 4 de Dezembro de 1998, determinando o ponto de partida da Europa da defesa. Nesta Cimeira, ocorrida durante e como consequência das guerras de secessão da Jugoslávia, a França e o Reino Unido, verdadeiros motores da Política Europeia de Segurança e Defesa, perceberam quais eram os limites das respectivas acções individuais e a necessidade de prevenir e de agir em vez de ficarem resignados à mera reacção, frequentemente tardia. Daí surgiu a vontade comum de rapidamente fazer progredir a identidade europeia de defesa, tirando as devidas ilações da tragédia bósnia e da aparente incapacidade dos europeus de resolverem conflitos nas suas fronteiras sem a ajuda norte-americana. Este acordo foi finalmente possivel graças à altereção da posição inglesa, que passou a apoiar a existência de uma capacidade militar efectiva no seio da União Europeia, permitindo,assim, um compromisso entre duas opções até aí paralelas, ou mesmo divergentes: a da França, orientada para uma 274

Europa autónoma, e a do Reino Unido, defensora de uma Identidade Europeia no seio da OTAN. Surgiam, então, três cenários possiveis de actuação para as forças da UE: em opereções da OTAN com forças da EU, em operações da UE com recurso a meios e capacidades da OTAN, ou em operações autonónomas da UE. Em Abril de 1999 realizou-se, em Washington, uma Cimeira da OTAN onde estes progressos foram fortemente aplaudidos e se reafirmou a anterior Declaração de Bruxelas de 1994 e de Berlim de 1996 que consideravam a Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD) no quadro do reforço do “pilar europeu da Aliança” um contributo para a sua “vitalidade”. Colocou-se, ainda, a possibilidade de a UE executar operações autónomas quando a OTAN “como um todo não estiver empenhada”. Através do estabelecimento dos acordos de Berlim, adoptaramse medidas para que a UE pudesse aceder a meios e capacidades colectivas da Aliança. Posteriormente, esta posição seria traduzida nos acordos “Berlim Plus” e no reconhecimento da PESD pela OTAN, em Dezembro de 2000, aquando da Cimeira de Nice. Uma prova do consenso europeu sobre o assunto da defesa europeia foi o facto do Conselho Europeu de Colónia, de Junho de 1999, instaurar definitivamente a PESD e, assim, demonstrar que os quinze membros aceitavam os objectivos estabelecidos. Durante esse encontro, Javier Solana Madariaga foi nomeado Secretário-geral/Alto Representante para a PESC(SG/HR), como havia sido já acordado em Amesterdão, função que iria acumular com a de Secretário-geral do Conselho Europeu. Javier Solana passou, assim, a articular todo o trabalho de todas as Direcções Gerais do Conselho e, simultaneamente, a representar externamente a UE, funcionando como uma espécie de Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa desta organização. A criação de estruturas político-militares permanentes em Bruxelas, como o Comité Político e de Segurança, o Comité Militar e o Estado-Maior da União Europeia, constituiu também um passo importante para a institucionalização da PESD, permitindo que em Dezembro de 2001, durante o Conselho de Laeken, esta fosse declarada apta a operar e a UE passasse a ser considerada detentora de uma capacidade parcial2 para efectuar Operações Militares, embora limitada quanto ao número de operações que podiam decorrer em simultâneo. A partir desse momento a Europa da defesa não cessou de progredir, tornando-se, aos poucos, numa realidade semelhante à dos Conselhos Europeus. O Conselho Europeu de Helsínquia, em Dezembro de 1999, permitiu definir o primeiro objectivo global (Helsinki Headline Goal 2003) de orientação da PESD. A UE deveria ser capaz de, até 2003, mobilizar uma força de intervenção à escala de Corpo de Exército (15 brigadas ou cerca de 60.000 homens), num 2

Os Franceses, liderando os Europeístas, apoiavam incondicionalmente a Declaração de Operacionalidade da EU e os Britânicos, liderando os Atlantistas, opunham-se à realização de qualquer tipo de declaração, razão pela qual a UE, na altura, só foi declarada “parcialmente” operacional.

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período que podia ir de 60 dias a um ano. A definiçao da quantidade de efectivos teve por base a experiencia da missão da NATO/IFOR, em 1996, na Bosnia e Herzegovina, tendo este objectivo vindo a comprovar-se demasiado ambicioso e nunca chegando a ser implementado. Estas forças teriam de ser militarmente auto-suficientes e dispor das capacidades de comando, de logística, de controlo e de informações necessárias. De notar que as capacidades em falta para atingir estes objectivos coincidiam com as que também não existião ao nivel da OTAN. Foi definido um plano de acção com a finalidade de resolver as deficiências dos exércitos europeus nas áreas de prevenção de conflitos, de evacuação de cidadãos, de interposição armada entre partes beligerantes e de assistência humanitária. Estes trabalhos desenvolveram-se ao longo de várias cimeiras e, perante as faltas identificadas, o Headline Goal inicial acabou por ser reformulado para um Headline Goal 2010, como oportunamente se referenciará. Perante um certo impasse em que a dada altura se encontrava o processo ECAP (Plano de Ação de Capacidades Europeias), de novo o Reino Unido e a França, apesar das suas divergências quanto ao futuro da Política de Segurança e Defesa da União, decidiram impulsionar o processo do desenvolvimento das capacidades Europeias, e na Cimeira bilateral de Le Touquet, a 4 de Fevereiro de 2003, lançam o projeto dos Battle Groups (BG). Julga-se não ser alheio a esta iniciativa o facto de a OTAN ter lançado, na Cimeira de Praga, em 21 de Novembro de 2002, a sua Nato Response Force (NRF). A “Constituição” da União Europeia, projeto por esta altura em desenvolvimento e que acabou por não se realizar devido à liquidação do Tratado Constitucional, em 2005, com os referendos negativos da França e da Holanda, falava, pela primeira vez, em cooperações reforçadas/estruturadas. Os Estados Membros que o pretendessem podiam, de forma voluntária, desenvolver em conjunto determinadas capacidades para serem utilizadas no âmbito da PESD. Após a publicação, em Dezembro de 2003, da Estratégia de Segurança Europeia, que explicitava a necessidade de se conferir à União Europeia uma Capacidade de Reação Imediata que lhe permitisse responder a uma crise que viesse a surgir na sua área de interesse3, o conceito ganha força durante a reunião informal dos Ministros da Defesa da UE, em 5 de Abril de 2004, em Bruxelas. A aprovação final veio a ocorrer em Maio, no Conselho de Ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, e passou a constituir a base do novo Headline Goal 2010. Este Headline Goal referia que a União Europeia tinha de criar entre 8 a 10 Battle Groups de modo a conferir-lhe a Capacidade de Reação Imediata em termos de Forças que esta necessitava. O conceito de Battle Group, elaborado pelo Estado Maior da União Europeia, surgiu como um conceito operacional que estabelecia a necessidade de se dotar a UE de Forças (BG), com um Comando de Forças (FHQ, baseado no comando de 3

Segundo a ESS a área de interesse da União Europeia ia desde os Grandes Lagos até à Coreia do Norte.

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uma Brigada), e cerca de 1500 militares, tendo como base o Batalhão de Infantaria e os meios de Apoio de Combate e Apoio de Serviços achados necessários. Esta Força devia ter uma prontidão até 10 dias, pronta para se projetar para um Teatro de Operações até 3000 km de Bruxelas, uma capacidade de sustentação até 90 dias sem ser reabastecida e até 180 dias caso fosse reabastecida, e ser capaz de cumprir todo o espectro de Missões de Petersberg. Após ter sido atingido parcialmente o objetivo definido em Helsínquia em 2003, na sequência do desenvolvimento do Conceito Battle Group e mediante a adoção da Estratégia de Segurança Europeia em Dezembro de 2003, os Ministros da Defesa da UE definiram um novo objetivo estratégico de desenvolvimento de Capacidades Militares a atingir em 2010: o já referido Headline Goal 2010 (HG 2010). Este novo HG para além de manter o objectivo definido em Helsinquia (60 000 homens, 60 dias, auto sustentáveis por um ano, para efectuar missões de Petersberg), estabelecia ainda que a UE devia desenvolver Capacidades Suplementares que lhe permitissem afirmar-se como um actor Global, responder de forma célere a um eventual conflito ou catástrofe natural (Capacidade de Reacção Imediata) e estar preparada para combater o terrorismo e outros eventuais novos cenários de planeamento, de acordo com o estipulado no Documento Solana. Ou seja, o espectro de missões passíveis de serem cumpridas pela UE foi alargado às missões projectadas pela Estratégia Europeia de Segurança; o ponto fundamental passou a ser a capacidade de Resposta Rápida, estabelecendo-se todos os conceitos, mecanismos e procedimentos para o alcançar (a União devia dotar-se de unidades com alto grau de disponibilidade, o que lhe permitiria desencadear uma operação, cinco dias depois do Conselho ter aprovado o conceito de gestão da crise, e desdobrar as suas forças na zona de operações em cerca de dez dias) e o HG 2010 devia assumir o consignado no HHG 2003, mas iniciando, em simultâneo, um novo processo de desenvolvimento de capacidades militares, que entrasse em linha de conta com a ameaça do terrorismo. No ano de 2008 foi apresentada e aprovada uma Declaração sobre Reforço de Capacidades, que veio esclarecer o nível de ambição para os anos seguintes. Reafirmando o objetivo dos 60 000 militares a destacar em 60 dias, a Declaração estipula que “a Europa deverá ser capaz de planificar e conduzir simultaneamente duas operações importantes de estabilização e reconstrução, apoiadas por 10 000 homens, por dois anos; duas operações de reação rápida com os agrupamentos táticos da UE; uma operação de evacuação de emergência; uma missão de vigilância ou interdição marítima ou aérea; uma operação humanitária civil-militar por 90 dias; uma dúzia de missões civis no quadro da PESD, de diferentes formatos, incluindo uma de grandes proporções (até 3000 peritos) suscetíveis de demorar vários anos.”4 4

Coronel Luís Villa de Brito em “NATO e União Europeia – A evolução conceptual”, Revista Militar, Outubro de 2010, p.1037.

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Não podemos, portanto, questionar a ambição da UE. Na prática, no entanto, verifica-se que os países não têm conseguido suprir as lacunas nem modernizar as suas capacidades na área da defesa, aplicando mal, de uma forma geral, as verbas disponíveis. Ou seja, na atualidade a União Europeia continua a apresentarse como uma entidade económica e monetariamente forte, mas politicamente frágil, sofrendo, na maioria das vezes, de falta de vontade política para ir mais além. No que diz respeito à segurança e defesa, a UE registou uma evolução muito significativa desde o Tratado de Nice, orientando o seu esforço não para a defesa comum, mas sim para uma capacidade de gestão de crises internacional. Embora esta orientação lhe permita desempenhar o papel de ator global, a UE para ser uma merecedora detentora deste estatuto e para melhor defender os seus interesses e valores, precisa de ser mais coerente nas suas ações e de mobilizar os seus recursos mais e melhor. Ou seja, precisa de apostar mais na sua vertente política. No início deste século, face às crescentes dificuldades de funcionamento efetivo das instituições europeias, foi aprovado, na já referida cimeira de Laeken, em Dezembro de 2001, uma “Declaração respeitante ao futuro da UE”, em que foi assumido o compromisso da União se tornar mais democrática, mais transparente e mais eficaz. Para responder a este compromisso foi convocada uma convenção cujos trabalhos resultariam, após longas e difíceis negociações, numa proposta de Tratado Constitucional, também conhecido como Constituição Europeia. A União Europeia, malgrado as suas profundas divergências no respeitante à intervenção no conflito do Iraque, no período pós 11 de Setembro, não interrompeu os processos de negociação, bem pelo contrário, continuou, mais determinada que nunca, o seu trabalho de aprofundamento em torno da União Política. Apenas dois meses após o fim deste conflito, os trabalhos da Convenção Europeia, dirigidos por Giscard d’Estaing, chegaram ao seu termo, com cerca de 90% da matéria, relativa à União Política, aparentemente consensual, o que permitiu a sua apresentação na Cimeira de Salónica, que marcava o fim da Presidência Grega. Mas o sonho da criação de uma “Constituição Europeia” e, consequentemente, de uma União Política, com a criação de um verdadeiro Estado Europeu sob a forma de uma confederação, caiu por terra com os já referidos referendos negativos na França e na Holanda. Iniciou-se, assim, uma crise institucional que só viria a acalmar com a assinatura, a 13 de Setembro de 2007, do Tratado de Lisboa. Este Tratado expurgou os aspetos politicamente mais controversos do Tratado Constitucional, recuperando, no entanto, muitos preceitos institucionais que pretendem reforçar e tornar mais operacional o papel da União Europeia. O Tratado de Lisboa, que entrou em vigor a 1 de Dezembro de 2009, apresenta-se como um ponto de partida para uma maior integração. Não resolverá, certamente, todos os problemas no domínio da Política Comum de 278

Segurança e Defesa (PCSD)5, mas permitirá facilitar a tomada de decisões e a adequada utilização das capacidades civis e militares. Todo o trabalho que se tem desenvolvido e continuará a desenvolver para o pôr em execução determinará a evolução da União Europeia. A sua regulamentação, como em qualquer lei nacional, é essencial para que os seus princípios possam ser postos em execução. O passar da próxima década certamente informar-nos-á sobre qual foi a evolução que este Tratado permitiu. Simultaneamente, na atualidade, a Relação Transatlântica ganhou uma nova dimensão. O mundo está a mudar, e a mudar rapidamente, seguindo uma direção que ameaça afetar negativamente, e de igual forma, os interesses da Europa e dos EUA. Felizmente os principais dirigentes políticos do Ocidente já se aperceberam desta realidade: o Presidente Barack Obama, aquando das comemorações dos 60 anos da NATO, em Abril de 2009, em Strasbourg Town Hall, afirmou: “it is a fundamental truth that America cannot confront the challenges of this century alone, but Europe cannot confront them without America”6. Paralelamente, o Secretário-Geral da NATO, na Conferência de Anders Fogh Rasmussen, realizada no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica em 2 de Julho de 2010, referiu que “a segurança da Europa e da América do Norte é indivisível e que a instabilidade e insegurança de um dos lados do Atlântico afetarão inevitavelmente o outro lado”7. É, portanto, inquestionável a necessidade premente de se reavaliar a Relação Transatlântica, de forma a melhor preparar quer a Europa quer os Estados Unidos para os novos perigos e desafios que se perfilam no horizonte. Os EUA e a Europa não querem, de forma alguma, perder o papel de ator global, já conquistado ou em fase de conquista, no Sistema Internacional atual e futuro. Para tal, e como paladinos da Civilização Ocidental e, consequentemente, dos seus valores, entre os quais se destacam a Democracia e o Respeito pelos Direitos do Homem, estas duas potências económicas têm que ultrapassar as suas divergências e unirem-se mais do que nunca na defesa de uma Civilização que tem mostrado fortes indícios de decadência. A União do Ocidente, no entanto, não é um fim em si próprio. Consiste, sim, na formação de uma entidade aberta, de uma espécie de núcleo ativo e/ ou operacional que tem por base o aparecimento, a nível mundial, de uma comunidade crescente de países democráticos, que no inicio do século XXI detêm já uma posição preponderante no mundo em geral. De uma certa forma podemos comparar o papel da Europa e dos EUA no desenvolvimento de uma União do Ocidente aos papéis desempenhados pela França e pela Alemanha, após 5

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Com o Tratado de Lisboa, a designação de Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) é substituída pela de Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). Coronel Luís Villa de Brito em “NATO e União Europeia – A evolução conceptual”, Revista Militar, Outubro de 2010, p.1027. Ibidem.

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1950, no lançamento de programas que levaram ao desenvolvimento da atual União Europeia. Numa cooperação estruturada, próxima mas livre, este tipo de parcerias costuma conduzir à formação de comunidades ou instituições. Uma parceria transatlântica efetiva e equilibrada, uma União do Ocidente ou uma União Transatlântica pode, muito bem, constituir o núcleo de uma comunidade aberta, democrática e universal. Outros Estados, de toda a parte do planeta, podem escolher associarem-se de forma mais efetiva a uma tal entidade. Um núcleo equilibrado é, no entanto, uma condição indispensável a um futuro estável e duradoiro, uma vez que uma comunidade de cariz mundial que pretenda prevalecer por um largo período de tempo só o consegue se tiver assente em princípios justos e democráticos. A visão de que a Relação Transatlântica tem que transitar para o século XXI através de uma União Europeia mais forte, de uma NATO mais forte e de uma relação mais nivelada entre elas, é um pressuposto que tem ganho adeptos inclusive nos EUA. Mas será que a ideia de uma relação mais nivelada significa que ambos os lados da parceria têm que possuir exatamente a mesma influência política e o mesmo poder militar? Não numa aliança onde, sob o valor do interesse comum, se pratica uma divisão em constante reavaliação das funções e das responsabilidades entre os seus membros. É o que se prenuncia como ideal para a Relação Transatlântica. Isto não significa, no entanto, que a UE se possa dar ao luxo de possuir uma capacidade militar significativamente inferior à dos EUA, uma vez que para se poder praticar uma divisão das funções e das responsabilidades adequadas às necessidades de cada momento é necessário que nenhum dos lados da aliança possua limitações. Tendo o capítulo da defesa assegurado pela NATO, a UE tornou-se numa potência económica e monetária, mas não militar. Desenvolveu diversos instrumentos civis que lhe permitiram, e permitem, ter uma palavra a dizer no Contexto Internacional. O seu papel na Cena Internacional só não é mais preponderante devido à sua fraqueza a nível de capacidades militares, que em grande parte resulta da falta de vontade política. Tendo-se apercebido desta realidade, a Europa está agora mais empenhada no desenvolvimento de mecanismos e capacidades militares que lhe permitam atingir o estatuto pleno de ator global, com capacidades civis e militares autónomas e suficientes para a gestão de crises internacionais. Ou seja, a UE apercebeu-se, finalmente, que para desempenhar um papel de relevo no atual Sistema Internacional, tem de adicionar ao seu inquestionável “soft power” uma igual componente de “hard power”, desenvolvendo, assim, o chamado “smart power” ou poder inteligente, considerado como o mais poderoso de todos os poderes. O próprio Joseph Nye, professor de Harvard e autor da expressão “smart power” num livro de 1990 chamado “Destinado a liderar” 280

(“Bound to lead”), explica que o “poder inteligente” é a combinação do “poder musculado” com o “poder brando”, e não descarta, portanto, o uso da força militar quando necessário. Assim sendo, a questão incontornável e inadiável para a União Europeia coloca-se, portanto, ao nível de uma complementaridade de “hard power”, ou seja, de capacidade de projeção de força militar em sustentação da ação política e diplomática, que lhe permita tornar-se numa potência não negligenciável a todos os níveis, fazendo da UE um parceiro igualmente credível nas questões de segurança coletiva e de defesa. Não nos podemos esquecer que as guerras ganham-se e perdem-se devido essencialmente às diferenças tecnológicas existentes entre as duas partes intervenientes no conflito. Em relação à maioria dos Teatros de Operações existentes no Globo, a União Europeia apresenta, na atualidade, Capacidades Militares mais do que suficientes e tecnologicamente evoluídas para poder intervir de forma autónoma sem correr grandes riscos. Os principais instrumentos militares ao dispor da UE, segundo o Headline Goal 2010, são os Battle Groups, no âmbito de forças no terreno, possivelmente o Estado Maior da União Europeia, como ator de planeamento e conduta de operações, associado à Agência Europeia de Defesa, como impulsionadora do desenvolvimento tecnológico de capacidades e meios, e cujos poderes saíram bastante reforçados do Tratado de Lisboa. Com a partilha dos meios já existentes e daqueles que ainda estão a ser desenvolvidos, nomeadamente no âmbito da projeção de forças e dos sistemas de vigilância e informação estratégica, na EDA, e combinando esta partilha com a sua gestão centralizada, a Europa poderá, a médio prazo, tornar-se num ator de grande peso na cena internacional, aproximando-se, cada vez mais, do estatuto por si pretendido de Actor Global. Mas, na nossa opinião, falta ainda levantar uma ferramenta muito importante na área das Capacidades Militares da União Europeia: o estabelecimento de um Comando Operacional para a UE. Um outro contratempo que procura ainda resolução reside na demora da tomada de decisões. Em todos os assuntos relacionados com a área da PESD/PESC as decisões são tomadas por consenso. Esta constitui a única forma de assegurar a todos os Estados Membros da UE que as decisões tomadas não vão, nesta área ainda tão delicada, contra os interesses nacionais de nenhum deles. A necessidade deste consenso faz com que, muitas vezes, as decisões demorem muito tempo a ser tomadas, prejudicando, assim, uma eventual reação atempadas a uma crise ou a um conflito. Por vezes, não é mesmo possível tomar qualquer decisão, dadas as posições irredutíveis de alguns Estados Membros. Simultaneamente, muito frequentemente as afirmações presentes nos diversos documentos relativos à PESD/PESC podem ser passíveis de diversas interpretações, devido ao seu carácter dúbio, resultante de intermináveis processos negociais. 281

Não é de mais reforçar que desde a fundação da PESD que se prevê que a União Europeia irá desempenhar um papel singular e de inigualável importância no âmbito da resolução de conflitos na Cena Internacional. Para além de poder resolver os problemas na vertente de Segurança e Defesa, através das suas Capacidades Militares, a UE pode concomitantemente resolvê-los em todas as outras vertentes, nomeadamente do ponto de vista político e económico, facto que poderá ser decisivo para auxiliar um qualquer Estado em crise a reerguer-se. Esta Capacidade, que só a União Europeia possui, é, no nosso entender, uma grande mais-valia que a UE apresenta relativamente às outras Organizações que trabalham no âmbito da Segurança e Defesa. Por último, quero apenas referir que, na atualidade, talvez seja já insuficiente colocar-nos no período pós 11 de Setembro. Talvez seja ajuizado que nos coloquemos, igualmente, num período pós queda Lehman Brothers, uma vez que para fazer frente à atual crise financeira e económica temos que acomodar, em moldes diferentes dos atuais, atores como a Rússia, a China, o Brasil, o Irão e a Arábia Saudita. Estamos, portanto, perante uma nova arquitetura e novas relações geopolíticas, que terão certamente um impacto sobre a Segurança e Defesa global e, consequentemente, sobre a Segurança e Defesa da Europa, mas de uma forma que não é possível ainda antecipar.

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Autores Vários.

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A Defesa Militar de Portugal nos anos da II Guerra Mundial «Uma aspiração patriótica, absolutamente irrealizável»

Sargento-Ajudante Jorge Silva Rocha

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A Defesa Militar de Portugal nos anos da II Guerra Mundial «Uma aspiração patriótica, absolutamente irrealizável» Sargento-Ajudante Jorge Silva Rocha “É necessário que o país se prepare para a guerra, a exemplo de outras Nações, impondo-se que o faça em tempo oportuno, pois todos são unânimes em reconhecer, que no tempo dos factos consumados (…), a futura guerra iniciar-se-á por actos violentos e brutais que não terão a anuncia-los uma prévia declaração de guerra (…).”1.

É

de aceitação mais ou menos generalizada que, apesar de não se vislumbrarem no imediato quaisquer tipo de ameaças à soberania nacional, todo o país se deve preparar para a guerra. Também Portugal não poderia deixar de considerar a hipótese de guerra e de para ela ter que se preparar. Chegados ao início da Segunda Guerra Mundial a realidade é porém outra já que os organismos militares competentes não tinham ainda, pelas mais variadas razões, efetuado qualquer planeamento sério com vista à salvaguarda da integridade territorial e da soberania do país. A conjuntura internacional, despertando poucas preocupações no seio do regime instituído, tinha dado lugar a uma excessiva afetação dos recursos militares à manutenção da ordem interna relegando para segundo plano as questões relacionadas com o planeamento da defesa militar do País. Contrariamente ao que seria doutrinariamente expectável, no período compreendido entre as duas Guerras mundiais discutem-se em Portugal opções de forças sem que tivessem sido definidas de forma clara e objetiva as estratégias de defesa e militar nacionais. Políticos e militares centravam então as suas atenções no fator de decisão mais relevante do momento, o fator orçamental, sem que tivessem 1

AOS / CLB / MMB-2, Oficio enviado pelo Major-General do Exército, Morais Sarmento, ao Ministro da Guerra em 12 de Julho de 1938.

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sido ponderados todos os elementos fundamentais da estratégia nacional de defesa. Só uma definição detalhada das necessidades de defesa nacional permite edificar e estruturar adequadamente umas Forças Armadas capazes de defender quer os interesses quer os objetivos nacionais. Escreve o General Morais Sarmento em junho de 1939: «No caso de uma organização militar para Portugal, a primeira questão a estabelecer e a resolver é a definição concreta da sua política de guerra, que parece não ter o objectivo exclusivo da defesa do território continental ou imperial, considerada abstractamente, mas sim o objectivo mais geral da defesa dos interesses nacionais seja qual for o ponto do mundo, onde tenham de ser defendidos de armas na mão»2. O muito tempo dedicado por opção do regime às questões da manutenção da ordem pública interna foi desviando as Forças Armadas daquela que deveria ser uma das suas principais tarefas – a de planear a defesa militar3 do País. Políticos e militares não tiveram em devida conta a evolução da conjuntura internacional e foram incapazes de considerar de forma séria a possibilidade de Portugal poder vir a estar envolvido, por vontade própria ou alheia, num conflito armado à escala mundial que tornasse necessária a defesa armada do País. O controlo de acontecimentos futuros está dependente, em primeiro lugar, da forma como esses acontecimentos foram previstos e, em segundo lugar, da racional escolha das modalidades de ação. Como escreveu um dia o General Cabral Couto, somente propondo-se alcançar objetivos logicamente concebidos e estabelecidos, explorando e canalizando devidamente as linhas de força que os favoreçam, contornando ou preparando-se atempadamente para enfrentar aquelas que se podem opor a esses objetivos, o homem poderá ser dono do seu destino. O desenvolvimento da ação deverá, assim, decorrer de acordo com um plano previamente elaborado onde esteja, por um lado, claramente definido o futuro a promover e, por outro lado, devidamente equacionadas as ameaças e os obstáculos a superar4. Apesar da legislação produzida na segunda metade da década de 1930 atribuir ao Governo responsabilidades na definição da política militar de Portugal e na orientação superior da preparação da defesa nacional, os anos que antecedem o início da Segunda Guerra Mundial são marcados por um certo desnorte que inviabiliza durante muito tempo a elaboração de qualquer trabalho útil e justifica, de certa forma, a inação dos diversos organismos militares. Nada havia de atualizado e, portanto, tudo tinha de ser feito de raiz. Não existia qualquer estudo sobre operações de guerra em que tivessem estado envolvidas outras potências 2 3

4

AOS / CLB / MMB-2. O general Loureiro dos Santos define “ Defesa Militar” como sendo a «Ação levada a efeito por meios militares para garantir a independência nacional, a segurança das populações e, especificamente, a integridade do território.» - Santos, José Alberto Loureiro dos, (1991), Como Defender Portugal, Lisboa, IAEM, pp. 15. Couto, Abel Cabral, (1987), Elementos de Estratégia, I, Lisboa, Instituto de Altos Estudos Militares.

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coloniais; os estudos versando eventuais projetos de operações dos exércitos estrangeiros com interesse para à defesa do País eram escassos e estavam também eles desatualizados, etc. A evolução em quatro fases dos planos de defesa desenvolvidos em resposta à conjuntura da Segunda Guerra Mundial está intimamente ligada à forma como, em três momentos distintos, se alterou em Portugal a partir da segunda metade da década de 1930 a perceção da ameaça, mas também à problemática do auxilio militar inglês. O início da Guerra Civil de Espanha provoca a primeira grande alteração na forma como era percecionada a ameaça e marca o início da primeira fase dos planos de defesa nacionais. A falta de um inimigo claramente definido e a ausência de qualquer ameaça percetível à soberania nacional tinha levado a que, no período entre guerras, pouca atenção tivesse sido dada às questões relacionadas com o planeamento da defesa militar do País. Na primeira metade da década de 1930 todas as atenções se voltam para a consolidação do regime instituído considerando-se então que, mais do que qualquer ameaça externa, só a ação de “quintas colunas” podia comprometer a segurança e a estabilidade internas. O início da Guerra Civil Espanhola vai alterar radicalmente esta visão. A ameaça deixava de ser exclusivamente interna e era agora de caráter peninsular. O alarme é geral entre a população portuguesa que pressagia uma iminente invasão terrestre por forças militares espanholas e teme eventuais ações violentas dos exilados políticos portugueses estabelecidos no país vizinho. A ameaça espanhola provocava, assim, uma alteração radical da política militar portuguesa. A prioridade à defesa terrestre dita o fim do plano de rearmamento naval iniciado em começos da década de trinta5. Em 1936 têm inicio os trabalhos com vista à edificação de uma força armada que, em três fases sucessivas, haveria de chegar às 15 Divisões! Era necessário adquirir praticamente tudo: armamento ligeiro, artilharia de diversos tipos, os primeiros tanques ligeiros, fardamento, munições, etc.. Os primeiros planos de defesa desenvolvidos em resposta à ameaça espanhola surgem em 1938 na sequência de conversações militares luso-britânicas, marcadas desde o seu início por um sem número de incidentes e desconfianças. Preocupado com a defesa dos interesses nacionais Salazar tenta por todos os meios obter a garantia de auxílio militar britânico em caso de ataque espanhol a Portugal. Mas, o apoio à causa de Franco tinha levado a um esmorecimento das relações diplomáticas e comerciais entre os dois velhos aliados. A Inglaterra atrasa deliberadamente o fornecimento de armamento a Portugal e Salazar ordena a suspensão de todas as encomendas até então celebradas com fornecedores ingleses. São tantos os entraves que Salazar decide enviar missões militares à Alemanha 5

Das duas fases inicialmente previstas no plano naval de 1930, apenas a primeira estava concluída.

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e Itália com o objetivo de aí adquirir o material necessário ao rearmamento português. Na imprensa inglesa surgem em pouco tempo as primeiras chamadas de atenção para o facto de Portugal estar a adquirir armamento alemão e italiano e o Presidente do Conselho logo trata de tirar proveito do alarme lançado pelos jornais ingleses. A pressão diplomática portuguesa intensifica-se e o Foreign Office é a cada passo relembrado da importância estratégica de algumas posições geográficas portuguesas, nomeadamente o triangulo Lisboa – Açores – Cabo Verde. A pressão portuguesa acaba por produzir os efeitos pretendidos no dia 20 de Fevereiro de 1938 com a chegada de uma Missão Militar Britânica (MMB) a Lisboa. As conversações luso-britânicas que se seguem servem para confirmar o que há muito se temia – Portugal não poderia ambicionar defender a totalidade do seu território metropolitano e a Inglaterra não poderia prestar qualquer tipo de apoio terrestre no início de uma guerra. As primeiras divergências entre Lisboa e Londres irão surgir quando a delegação portuguesa, pretendendo que a Inglaterra se envolve-se na discussão dos problemas militares de terra, mar e ar, conclui que os representantes britânicos revelavam uma maior inclinação para o estudo da defesa naval e aérea enquanto demonstravam um certo, senão total, desinteresse pelas questões da defesa terrestre portuguesa (exceção feita aos assuntos respeitantes à defesa das bases navais). Do decurso das conversações, o chefe da missão militar britânica solicita por diversas vezes ao seu homólogo português que lhe sejam dados a conhecer os planos de defesa nacionais para assim se poder estudar a forma mais adequada da Grã-Bretanha participar na defesa de Portugal. Ora, à data das conversações lusobritãnicas não existia ainda em Portugal qualquer plano de defesa oficialmente aprovado e os delegados portugueses, conscientes da lacuna existente, tratarão sempre de se afastar de respostas comprometedoras. Reagindo ao embaraço da situação Salazar acorda com o chefe da missão portuguesa, Brigadeiro Tasso de Miranda Cabral6, e Santos Costa7, a entrega de um esboço de plano de defesa, desprovido de qualquer valor oficial por não ter sido aprovado pelos organismos competentes. Cumprindo as diretrizes estabelecidas pelo ministro da Guerra, no curto espaço de um mês o Brigadeiro Miranda Cabral e o Comodoro Botelho de Sousa elaboram o designado esboço de “Plano Mínimo de Defesa do País” (PMDP) O PMDP previa a atuação conjunta de forças militares portuguesas e britânicas num cenário de invasão terrestre por forças espanholas. Assumindo a incapacidade de, com os meios existentes, defender a totalidade do território continental português, estabelece como prioritária a defesa de Lisboa mediante o pré posicionamento de forças ao longo de duas linhas defesa. 6 7

Que por essa altura era, para além de chefe da delegação portuguesa, subchefe do EME. Subsecretário da Guerra.

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O dispositivo de defesa idealizado pelos autores do Plano é imenso para a realidade portuguesa: 1 grande Quartel-General do exército em campanha, 3 Corpos de Exército a 9 Divisões; 1 Batalhão de Carros; 2 Regimentos de Artilharia pesada; 2 Brigadas de Cavalaria; 4 Regimentos de Cavalaria; 7 Batalhões de Caçadores e 3 Batalhões de metralhadoras pesadas. O poderio militar terrestre português estava reduzido por esta altura a 5 Divisões; 1 Batalhão de Carros; 2 Regimentos de Artilharia pesada; 2 Brigadas de Cavalaria, 4 Regimentos de Cavalaria; 10 Batalhões de Caçadores e 3 Batalhões de Metralhadoras. Existia por isso um défice de 4 Divisões que, na opinião de Miranda Cabral, poderiam ser obtidas mediante a mobilização de licenciados, após a aquisição ou a cedência pela Grã-Bretanha de todo o equipamento necessário á sua mobilização. Decorrido quase um ano de conversações, pouco se tinha alcançado e tudo permanecia mais ou menos como no início. O Estado-Maior britânico considerava que Portugal apenas podia contar com as unidades já existentes (5 Divisões) e com elas devia estabelecer o dispositivo de cobertura do território. Com tão poucos meios disponíveis afigurava-se-lhes impraticável a ideia de levar a cabo uma defesa avançada, tão ao gosto do chefe da delegação portuguesa (Miranda Cabral). Decorriam ainda as conversações luso-britânicas de1938 quando o MajorGeneral do Exército Júlio Morais Sarmento, envia ao Ministro da Guerra um ofício no qual chama a atenção para a necessidade do país se preparar para a guerra e os riscos que para a soberania nacional podiam advir do facto de Portugal não dispor de um plano de guerra. Reorganizado o Exército, clarificada a situação internacional de Portugal e caminhando-se para a definição do valor e alcance da Aliança Inglesa, parecia-lhe ser aquele o momento indicado para que se procedesse à elaboração de um plano de guerra ou mais corretamente, como ressalva Morais Sarmento, um plano de defesa. Em tom austero afirma «Podemos dizer, supomos com absoluta verdade, que a falta deste documento tem sido a razão exclusiva da pouca preparação militar em que nos encontramos (…)»8. Com alguma relutância o ministro da Guerra acabará por solicitar a Morais Sarmento que lhe faça chegar um questionário onde constassem as questões relacionadas com a Defesa Nacional que precisava ver esclarecidas para a elaboração dos tão necessários planos de defesa. Sem desperdício de tempo, o Major-General do Exército coloca as suas questões mas não só. Indo mais além, não deixará também passar a oportunidade para, no mesmo documento e de forma indireta, criticar a forma como tinham sido elaborados os planos de defesa apresentados à Missão Militar Britânica (MMB), ou seja sem que tenham sido ouvidos os organismos competentes. O Major-General do Exército deixava finalmente perceber a verdadeira razão da sua iniciativa ao 8

ANTT / AOS/CLB/MMB-2.

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insurgir-se contra o excessivo protagonismo alcançado por Tasso de Miranda Cabral nas conversações com a MMB e o facto dos planos entregues às autoridades inglesas terem sido elaborados com base em estudos preexistentes do mesmo autor. Morais Sarmento deixava perceber o incómodo causado pelo facto de, sendo o seu posicionamento hierárquico superior ao de Miranda Cabral e a ele lhe competir a supervisão das conversações com as autoridades britânicas, ter sido deixado completamente à margem quer das conversações quer da elaboração dos planos de defesa então apresentados. Estas críticas veladas não terão por certo sido do agrado do Ministro da Guerra. A resposta ao questionário do Major-General do Exército só irá surgir 3 meses depois sob a forma de “Projecto de Plano de Guerra português” (Plano 38) e onde uma vez mais estará presente a visão estratégica de Tasso de Miranda Cabral. Este plano é, como faz questão de salvaguardar o seu autor, um mero ensaio de “Plano de Guerra” que, dando resposta às questões colocadas pelo MajorGeneral do Exército relativamente à defesa militar do País, procura explicitar em termos gerais alguns dos conceitos que o Governo pretendia fossem tidos em conta aquando da elaboração de um documento definitivo sobre a defesa nacional. O Plano trata da hipótese de guerra na Península Ibérica, dispensando especial atenção ao território metropolitano português. Em caso de guerra caberia ao Exército assegurar, no âmbito da sua “missão normal”, a manutenção da integridade do território e a soberania do Estado. A defesa poderia então ser feita de duas formas: posicionando as forças portuguesas num dispositivo defensivo destinado a garantir a posse de uma parcela do território nacional em concordância com a “missão mínima” do Exército ou então dispondo o grosso das forças de forma a cobrir a quase totalidade do território nacional (missão máxima). A opção do Governo é clara e, não deixando de considerar as duas hipóteses, opta pela segunda. As forças deveriam então ser dispostas em posições defensivas que cobrissem a maior parte do território nacional impedindo que o inimigo marchasse sobre as cidades de Lisboa e Porto. “O Plano 38” descreve, pela primeira vez, o auxilio militar que se esperava fosse prestado pelas forças britânicas: defesa das rotas marítimas; defesa de Portugal continental e das suas possessões ultramarinas a partir do mar e, envio de forças aéreas. De fora fica o apoio terrestre numa primeira fase da guerra. Cinco meses volvidos desde a apresentação por parte do governo do projeto de “Plano de Guerra para o País”, e na sequência da assinatura do Tratado de Amizade e Não-Agressão com Espanha, o Major-General do Exército volta a dirigir-se a Salazar desta vez para interrogar se a assinatura de tal Tratado acarretaria alterações no projeto de Plano de defesa português que se encontrava ainda no EME para estudo. Respondendo à questão de Morais Sarmento o Presidente do Conselho insiste que o documento é apenas um projeto e, afirmando que o mesmo lhe tinha sido enviado para sua avaliação 292

exclusiva não encontrando por isso razão para que tivesse sido enviado ao EME para estudo. O Plano não fora ainda aprovado pelo Conselho de Ministros pelo que se revelavam extemporâneos os estudos em curso no EME. Agastado e ponderando demoradamente os termos da sua resposta, Morais Sarmento irá uma vez mais aproveitar a oportunidade para criticar as opções tomadas pelo Governo relativamente ao planeamento da defesa do País ao mesmo tempo que alerta para o risco causado pela constante ingerência da política na direção das operações militares9. O Major-General do Exército deixava bem clara a sua total discordância relativamente à opção estratégica de defesa integral do território nacional. Em sua opinião, era mais do que evidente que o Exército não estava dotado de suficientes meios humanos e materiais para garantir a defesa integral do país. A reorganização da força militar estava ainda no início e o reduzido número de Divisões então existentes inviabilizava qualquer lógica de defesa integral do país. Segundo Morais Sarmento, o projeto de Miranda Cabral, apadrinhado por Salazar e Santos Costa, estava condenado ao fracasso. Como tivemos oportunidade de mencionar, os trabalhos das primeiras conversações luso-britânicas tinham chegado ao fim com resultados pouco significativos. A desconfiança e o equívoco tinham sido uma constante e no final ficara a ideia de que, mais do que a defesa do território português, à Grã-Bretanha apenas interessava garantir a salvaguarda dos seus próprios interesses. Estava-se agora no 1º trimestre de 1939. O agravamento da situação europeia não passava, nem podia passar, despercebido ao Governo português. A probabilidade de eclosão em solo europeu de um conflito armado de grandes dimensões era agora muito elevada e as suas consequências imprevisíveis. A deterioração do ambiente de segurança europeu irá ditar que, no decorrer de contactos entre estados-maiores dos dois países, o Governo português abdique em definitivo dos objetivos de defesa avançados no projeto de “Plano de Guerra” de 1938 e solicite oficialmente ao Governo de Sua Majestade Britânica o envio de técnicos militares com vista ao estudo da modernização do dispositivo de defesa costeira para proteção de Lisboa e Setúbal. A escolha destas regiões não é aleatória e decorre das recomendações efetuadas pelas autoridades britânicas no final dos trabalhos da primeira MMB. Era impossível, com os meios então existentes, defender a totalidade do território continental português, devendo por isso empenhar-se todo o poderio militar do País na defesa de Lisboa e Setúbal.10 As autoridades britânicas respondem afirmativa e prontamente à solicitação de Lisboa e, sem colocarem qualquer condição, 9 10

ANTT / AOS / CLB / MMB-2. A vinda dos técnicos ingleses para o estudo da modernização do dispositivo defensivo daquelas duas regiões estratégicas constitui um revés para aqueles que, como Miranda Cabral e Santos Costa, preconizavam a defesa integral do território continental português.

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nomeiam para o efeito o Major-General F.W. Barron11 (inspetor de defesas fixas) e o Comandante Vaughan (técnico do Almirantado britânico). A sua chegada a Lisboa tem lugar durante o mês de Fevereiro de 1939 e os estudos prolongar-se-ão até 24 de Junho, data em que apresentam o relatório que a partir de então passaria a ser designado de “Plano Barron”. O “Plano Barron” visa a defesa marítima/costeira e antiaérea dos estuários dos rios Tejo e Sado e é elaborado a partir da fixação de zonas vulneráveis nas regiões de Lisboa e Setúbal (cidade e instalações portuárias). A defesa marítima de Lisboa seria organizada em 4 Grupos de defesa, 2 destinados ao contra bombardeamento (Grupos Norte e Sul - baterias de Alcabideche, Parede, Raposa e Outão) e 2 grupos para defesa próxima respetivamente do Tejo e do Sado (Grupos do Tejo e Setúbal - baterias da Parede, Reduto Gomes Freire, Lage e Raposeira). Ficava completa com as barragens contra lanchas torpedeiras, as zonas iluminadas, as baterias de defesa das barragens e os projetores de descoberta12. O dispositivo de defesa antiaérea pensado pelos autores do Plano contemplava a existência de pelo menos 9 zonas geográficas consideradas vitais para a sobrevivência da cidade Lisboa: o porto comercial; os cais e as docas que se estendem até Belém; os depósitos de combustíveis situados na Banática (Este da Trafaria); os ancoradouros situados a Sul e Sudeste da cidade; o Arsenal do Alfeite; a estação de caminho-de-ferro do Barreiro e as fábricas dessa localidade; a fábrica de explosivos de Vale de Milhaços; os paióis de munições e armamento situados na Serra de Monsanto e em Braço de Prata; o Centro de Aviação Naval então em construção a Oeste do Samouco (futura Base Aérea do Montijo); fábrica de munições de Barcarena e as estações de TSF13 situadas “a grandes distâncias de Lisboa”14. O dispositivo proposto no Plano para a defesa marítima de Lisboa e Setúbal não merece, partindo dos pressupostos em que assentou a sua elaboração, reparos de maior das autoridades portuguesas. A defesa dos estuários do Tejo e Sado obtêm a maior concordância por parte do Conselho Superior do Exercito (CSE) que propõe a aquisição das quantidades e tipos de equipamento propostos no Plano. No BARRON, Frederick Wilmot (1880-1963), Major General. Registo de serviço: Royal Artillery 1899; South African War 1899-1902; Gunnery Staff Course 1906-1907; Instructor in Gunnery 1909-1913; Staff College 1914; 1ª Guerra Mundial em França, Gallipoli, Mesopotamia e Pérsia 1914-1918; General Staff, War Office 1920-1924; Inspector of Fixed Defences, War Office 1934-1938; 2ª Guerra Mundial,1939-1941- Inspector of Fixed Defences, General Headquarters Home Forces and War Office; reformado em 1941. Fonte: King’s College London - Liddell Hart Centre for Military Archives. 12 Um relatório das autoridades britânicas datado, de Agosto de 1939, considera adequados os meios propostos pelo general Barron para a defesa de Lisboa tendo em conta a escala de ataque vislumbrada. Apesar de tudo, o War Office considerava improvável que tal ataque viesse a ocorrer chegando o autor do texto a interrogar-se se o valor das instalações portuárias existentes em Lisboa justificaria tamanho investimento. NA - 1/10215. 13 Telegrafia Sem Fio. 14 Sem referir quais sendo provável que se referisse as estações TSF de Alcochete e Amadora. 11

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entanto, está longe de ser perfeito. Segundo o CSE, o estudo da defesa de Portugal não podia ser efetuado de forma parcelar já que podia conduzir a uma apreciação “defeituosa” do problema e à adoção de uma solução imperfeita e inútil15. Mais, o CSE considerava que a defesa de Lisboa devia ser estudada de forma mais aprofundada englobando as vertentes terra, mar e ar e, sempre como parte integrante de um plano geral de defesa do País. O parecer do CSE relativamente ao plano para a defesa antiaérea segue o mesmo rumo de crítica. Em causa está a forma demasiado simples e esquemática como tinha sido estudado o problema já que Barron apenas se tinha preocupado com a implementação de uma barragem aérea em torno da cidade, deixando de parte a necessidade de defender todo o espaço aéreo sobre Lisboa. Em resumo, e parafraseando o General Carlos Maria Pereira dos Santos «(…) O trabalho dos referidos peritos não é para desprezar em absoluto. O que há é que reduzi-lo às proporções que realmente tem: o de uma importante contribuição para o estudo da defesa de Lisboa».16 A segunda mudança na perceção da ameaça coincide com o momento da ocupação da França. As forças do Reich passam a estar perigosamente próximas dos Pirenéus e Salazar teme que uma precipitação dos acontecimentos, coloque a Península Ibérica na rota dessas mesmas forças. Contrariando a lógica de raciocínio que seria de esperar numa altura em que o leque de ameaças se tinha diversificado, Salazar solicita à Majoria General do Exército que proceda à elaboração de um plano de guerra que considere a defesa terrestre do País na hipótese de uma guerra contra a Espanha! Procurando contrariar o mal-estar causado pela subalternização da Majoria General do Exército, o Governo inverte o rumo seguido quando da elaboração do Plano 38 e decide finalmente ouvir os órgãos a quem estava legalmente atribuída competência para a elaboração de tão importante documento. O designado «Plano 40 – Plano de Guerra Português» é aprovado em dezembro de 1940 e define 3 tipos de missões passíveis de serem atribuídas às forças do Exército em caso de guerra na Península: missão máxima, missão mínima e missão de recurso. A hipótese da Espanha, pressionada pela Alemanha, poder vir a declarar guerra a Portugal não podia ser descartada devendo, por isso, considerar-se a Espanha como inimigo provável e sobre essa constatação fazer assentar o plano de guerra. As missões máxima e mínima são definidas nos mesmos moldes das consideradas no «Plano 38»” ou seja a primeira contemplava a defesa avançada junto à raia e a segunda a defesa de uma faixa de território englobando certos pontos vitais. A novidade estava então na missão de recurso - defender o “Em hipóteses mais gerais assentam os estudos feitos pelos artilheiros portugueses e por isso mesmo os seus projectos são mais completos do que o do General Barron” - AHM / F29 / 1 / 351. 16 AHM / F29 / 1 / 351. 15

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que fosse possível com os meios existentes17. O Governo, agarrando-se uma vez mais ao irrealismo dos seus planos, opta pela defesa integral do território nacional seguida da hipótese de defesa parcelar por «(…) serem aquelas [soluções] que poderiam permitir a reunião no tempo e no espaço de todos os recursos do País e inclusivamente a chegada e desembarque de elementos de reforço vindos das ilhas adjacentes, das colónias (…)»18. Como chegariam esses reforços ao continente português é uma incógnita já que Portugal não dispunha de capacidades navais ou aéreas que permitissem uma operação de tamanha envergadura. Sobre o «Plano 40» diria o Chefe do Estado-Maior do Exército, Miranda Cabral que apesar de ser louvável a intenção manifestada de disponibilizar 12 Divisões para a defesa do País ela «(…) não passava duma aspiração patriótica, absolutamente irrealizável (…)» e que com as 5 Divisões à data existentes seria impossível ocupar e defender a totalidade do território nacional restando por isso «(…) uma defesa fragmentada, inconsistente, sem eficiência alguma, não recomendável e sempre de condenar».19 O Ministro da Marinha não era menos crítico nos comentários que envia ao Presidente do Conselho e escreve da seguinte forma «A preocupação com a fronteira terrestre desvia-nos do rumo atlântico, segundo o qual criámos o império e havemos de assegurar a sua existência».20 Decorriam ainda os trabalhos de elaboração do “Plano 40” quando Salazar, numa ação paralela despoletada pelo crescente temor de guerra na Península, desencadeia uma série de contactos diplomáticos secretos com os aliados britânicos para indagar do auxilio «(…) que nos poderia ser dado pela Inglaterra, quer imediatamente, quer no caso de se efectivar qualquer atentado contra a nossa soberania (…)».21 O Governo português, colocado perante a possibilidade de um ataque à soberania portuguesa por potência estrangeira, pretendia estar precavido contra todas as eventualidades sendo por isso importante saber se o EM britânico já tinha considerado tal possibilidade. O Governo inglês, concorda com as inquietudes manifestadas pelas autoridades portuguesas, e prontificava-se a receber em Inglaterra um oficial de EM que, de forma secreta, examinasse com os organismos militares ingleses a hipótese de Portugal vir a sofrer um ataque à sua soberania. O inimigo era agora alemão e o EM britânico previa uma força invasora de 4 Divisões, atuando 2 a Norte do Rio Tejo (1 Divisão mecanizada e 1 Divisão de Infantaria apeada) e as outras 2 a Sul do referido rio (1 Divisão motorizada e 1 Divisão de Infantaria apeada). Segundo os cálculos britânicos, sem a colaboração da Espanha, seria necessário cerca de 1 mês para que as forças terrestres inimigas ANTT / AOS / CLB / MMB-2, Pasta 1, Procº 3, fls. 507. ANTT / AOS / CLB / MMB 2, fl. 570. 19 AHM / F6 / D / 4 / 23 - 5. 20 ANTT / AOS /CLB / MMB-3 Pasta III, fl.26 21 ANTT / AOS / CLB / DNAI. 17 18

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chegassem da fronteira franco-espanhola a território português. O cenário era algo assustador mas, na ótica do EM britânico, seria possível às forças militares portuguesas resistir, com os meios existentes, numa zona de defesa extrema em torno de Lisboa (que mais tarde viriam a definir como sendo as Linhas de Torres Vedras) sendo que a ocupação dessa mesma zona se devia processar logo que fosse desencadeado o ataque. As autoridades britânicas sugeriam que se concentrasse o grosso da força numa linha de defesa imediata de Lisboa deixando a defesa do Porto e do Algarve a cargo de um mínimo de tropas locais. A defesa da totalidade do território continental estava definitivamente colocada de parte e caso a defesa parcelar proposta falhasse, não restaria outra alternativa que não fosse a transferir os órgãos de soberania para os Açores. A última hipótese equacionada no Plano 40 representava agora a única tábua de salvação possível para a manutenção da soberania nacional. O Governo inglês comprometia-se pela primeira vez a prestar uma assistência militar efetiva que englobava o auxílio na transferência dos órgãos de soberania nacional para os Açores; o fornecimento das peças de AAA (9,4cm e 40mm) necessárias à defesa daquelas ilhas e assistência técnica na sua montagem; a cedência de alguns aviões torpedeiros; disponibilização do material destinado à defesa marítima local (redes, minas, barragens, etc.); ampliação dos aeródromos existentes. Este “Plano de colaboração britânica e portuguesa em caso de emergência” aprovado em Agosto de 1942 compreendia duas fases: A 1ª fase do Plano era da inteira responsabilidade do Governo português. Era necessário proceder a um significativo aumento da capacidade de defesa do arquipélago dos Açores bem como a uma acentuada melhoria das infraestruturas existentes. Além disso seria necessário constituir reservas alimentares, de combustíveis e de munições para 60 dias. O sucesso da 2ª fase do Plano estava dependente da completa execução das ações previstas na 1ª fase do plano. Teria início no dia em que o governo considerasse não estarem reunidas as condições necessárias à manutenção da neutralidade portuguesa e estimava-se serem necessários de 12 dias a 3 semanas para que a evacuação dos órgãos de soberania para os Açores pudesse ser levada a cabo com sucesso e nas melhores condições. O Plano não sairá uma vez mais do papel e Salazar, desiludido, afirmará «(...) os delegados portugueses convidados para ajustarem com representantes militares britânicos um plano de colaboração entre Portugal e a Inglaterra para a evacuação que se tornasse necessária na hipótese de ataque ao território português continental, trouxeram de Londres um plano de medidas a tomar pelo Governo português nas ilhas adjacentes e em Cabo Verde com o objectivo de que estas não corram perigo em caso de ataque de forças alemãs e estejam preparadas para nelas actuarem forças navais e aéreas britânicas».22 22

ANTT /AOS / CLB / DNAI-2, fl. 62.

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Estava-se agora 1943 e a perceção da ameaça iria modificar-se uma vez mais. A guerra prosseguia mas começava-se lentamente a perceber para que lado penderiam os pratos da balança. A evolução dos acontecimentos internacionais força o Governo português a tomar todas as medidas diplomáticas conducentes a uma aproximação ao bloco vencedor. Ao mesmo tempo, as autoridades britânicas tentam a todo o custo reatar as boas relações com o velho aliado tendo em vista, sobre tudo, a concessão de facilidades militares nos Açores. A reaproximação dos dois velhos aliados surge assim naturalmente e, logo no início de 1943, Portugal propõe a realização de conversações com o objetivo de rever os planos de evacuação aprovados em 1942. Decorrem em Londres a partir de Setembro de 1943 e culminam com a aprovação, já após a cedência de facilidades nos Açores, de um plano para a defesa do território continental português que viria a servir de referência aos planos de defesa do pós-guerra. O Plano tinha como objetivo principal a criação das condições consideradas indispensáveis para a cooperação de forças portuguesas e britânicas na defesa de Portugal continental mas, como o chefe da delegação britânica deixa claro desde o início das negociações, não constituía qualquer compromisso oficial vinculativo. O documento apenas previa, partindo de um cenário prefixado pelas autoridades portuguesas, o tipo e calendarização de um eventual auxilio militar. Temia-se agora que a Espanha e/ou a Alemanha reagissem negativamente à presença de militares ingleses nos Açores. Portugueses e britânicos consideram pouco provável que tal reação viesse a verificar-se mas, precavendo qualquer ato menos refletido, havia que preparar o país para o pior e Portugal orientava mais uma vez as suas preocupações para a defesa terrestre do território continental. Na ótica de Miranda Cabral23, o inimigo atuaria inicialmente com uma força de 5 a 8 Divisões, precedidas ou acompanhadas de uma ou duas Grandes Unidades blindadas e de Cavalaria. Seguindo o mesmo raciocínio considerava que 4 a 5 Divisões seriam destinadas à ocupação de Lisboa enquanto as restantes avançariam seguindo o curso do rio Mondego.24 O governo português mobilizaria para a defesa terrestre do território continental, além das 3 Divisões de infantaria existentes, todas as forças de Aeronáutica e de DTCA. A missão das forças portuguesas, fixada pelas autoridades britânicas, consistiria, inicialmente, em retardar o avanço das forças invasoras sobre a Península de Setúbal, Lisboa, Porto e Coimbra25 ao mesmo tempo que garantia a posse dos principais portos (Porto, Lisboa e Setúbal) por forma a permitir o livre desembarque das forças militares britânicas que iriam, num segundo momento e com a cooperação das forças portuguesas, lançar a contraofensiva. Mais pormenorizadamente, a Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME). AHM / F15 / 7 / 290 / 59. 25 Seguindo esta ordem de prioridades. 23 24

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participação portuguesa no Plano passaria pela criação de 2 núcleos de defesa (Norte e Sul). A força do núcleo Norte, composta por 1 Batalhão de infantaria, 1 Grupo de Artilharia de montanha e um Batalhão de Metralhadoras, teria por missão impedir a invasão pela fronteira Norte. Resistindo inicialmente na zona da Guarda aguardaria o desembarque das forças britânicas (1 Brigada) após o que retiraria sobre o Porto. A força Sul seria constituída por 3 Divisões de Infantaria concentradas da seguinte forma para a defesa de Lisboa: Divisão A, Pontes de Santarém – Setil; Divisão B, zona de Arraiolos – Évora -Montemor e, Divisão C, pontes de Belver - Abrantes. Como se pode verificar, uma Divisão estaria empenhada na proteção dos acessos à cidade de Setúbal (local de desembarque das forças britânicas) e as restantes duas na defesa das travessias sobre o rio Tejo. As forças navais portuguesas ficariam responsáveis pela defesa local dos portos nacionais, pela luta antissubmarina e desminagem das rotas de aproximação a esses mesmos portos. Teriam também a seu cargo a escolta e proteção dos navios mercantes portugueses, sendo auxiliadas nesta tarefa pela aviação naval que também estaria empenhada em patrulhas antissubmarino ao longo das costas portuguesas. O auxílio militar inglês processar-se-ia da seguinte forma: em Z26+16 seria enviado 1 Batalhão de infantaria, 1 Grupo de elementos destinados a preparar a chegada do grosso das forças britânicas e alguns sapadores mineiros que iriam reforçar os sapadores portugueses empenhados nas destruições destinadas a retardar o avanço das forças invasoras; em Z+29 chegariam a Portugal duas Brigadas destinadas à defesa de Lisboa e Porto e 1 Regimento blindado (cerca de 50 carros de combate); em Z+46 seria a vez de chegarem as restantes unidades destinadas a completar o dispositivo de defesa – 1 Corpo de Exército a duas Divisões de Infantaria (menos um grupo de brigada) e 1 Divisão Blindada (menos 1 Regimento blindado)27. O apoio aéreo previsto pelas autoridades britânicas contemplava a instalação de radares e centros de interceção em Lisboa e Porto; o envio de 2 Esquadrilhas de caça, 2 de bombardeiros, 1 de reconhecimento e 1 de caça noturna. O auxílio aéreo britânico passaria também pelo ataque aos centros vitais espanhóis a partir de diversos pontos situados na periferia peninsular em particular no Norte de África. À semelhança de conversações anteriores, os trabalhos de revisão dos planos de defesa portugueses chegam ao fim com resultados pouco favoráveis aos interesses portugueses. Nos moldes em que tinha sido redigido, o plano de cooperação militar anglo-português para a defesa de Portugal poucas hipóteses teria de vir a ser posto em prática. Tasso de Miranda Cabral, referindo-se ao trabalho dos representantes portugueses e à forma como a delegação britânica tinha conduzido as conversações, escreve: 26 27

Dia Z – dia em que as autoridades inglesas aprovassem oficialmente a prestação de auxilio. AHM-F26 / 13 / 336 / 241.

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«É evidente que, se mais não fizeram ou conseguiram, foi porque tiveram de lutar com um adversário profundamente agarrado à sua tradicional política de situações pouco precisas, vagas e por vezes nebulósicas, para que lhe seja sempre possível tomar, no momento critico, a solução que melhor convier aos interesses da Inglaterra.»28 Os planos de defesa são documentos vitais para a consecução dos objetivos políticos e estratégicos dos Estados e foram-no claramente para o regime salazarista no conturbado período da II Guerra Mundial. Uma leitura mais atenta dos documentos que acabamos de descrever permite constatar a existência de duas questões fulcrais em torno das quais se desenvolvem, a partir da segunda década de 1930, a política militar e o planeamento de defesa português. Nos anos que medeiam entre 1935 e 1943, as autoridades portuguesas revelam quase sempre uma estranha fixação na implementação de um dispositivo de defesa avançada da fronteira terrestre portuguesa e, consequentemente, na criação de uma força militar colossal que no máximo da sua força rondaria as quinze divisões. À data do início da Segunda Grande Guerra tinham já sido gastas avultadas somas de dinheiro com o rearmamento do Exército no entanto, o ramo terrestre da força armada nacional estava ainda muito distante do poderio ambicionado por Salazar, Santos Costa e, de certa forma, Tasso de Miranda Cabral. Em 1940 apenas 3 Divisões tinham recebido o seu armamento ligeiro e as dificuldades de aquisição de armamento pesado de características modernas eram enormes. A ambição desmedida dos decisores portugueses é por diversas vezes notada pelas autoridades militares britânicas que, de forma mais realista, consideravam que as forças militares portuguesas dificilmente poderiam aspirar defender a totalidade do seu território continental. O número de anos que nos separa dos acontecimentos então vividos possibilita já uma mais distanciada e clara apreciação das verdadeiras razões por trás do aparente desfasamento existente entre os objetivos estratégicos de defesa traçados pela cúpula decisora nacional e os planos realmente aprovados no período em apreço. Em nossa opinião, o desfasamento é efetivamente apenas aparente na medida em que todos os indícios apontam no sentido da continuidade de objetivos há muito tempo ponderados e estabelecidos: a sobrevivência e perpetuação do regime salazarista no pós-guerra. A segunda questão que gostaríamos de realçar está relacionada com o auxílio militar britânico em caso de guerra. Reavivando os acontecimentos vividos durante as Guerras Peninsulares, o planeamento luso-britânico para a defesa militar de 28

AHM-F15 / 7 / 290 / 62.

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Portugal trás uma vez mais à superfície o receio de subordinação à estratégia britânica tendo em conta que a preservação da soberania nacional estava uma vez mais dependente da velha Aliança Inglesa. Salazar tenta a todo o custo evitar que a Grã-Bretanha se imiscua em demasia nas questões da defesa de Portugal temendo que esse envolvimento viesse a condicionar as ações e opções das autoridades portuguesas. A evolução dos acontecimentos acabará por, em nossa opinião, confirmar que os receios do Presidente do Conselho não eram totalmente infundados na medida em que, voluntária ou involuntariamente, Portugal ficará cada vez mais dependente do auxílio militar britânico. Os interesses estratégicos de Portugal e da Grã-Bretanha eram distintos e as conceções defendidas pelas autoridades britânicas potenciavam fundadas dúvidas relativamente às verdadeiras intenções dos velhos aliados. A questão do auxílio militar britânico a Portugal em caso de agressão externa domina, assim, parte significativa do planeamento militar luso-britânico. Portugal pretende uma definição concreta desse auxílio mas a Grã-Bretanha não pretende comprometer-se em demasia. Será logo a partir das primeiras conversações militares luso-britânicas (1938) que se perceberá que não existia qualquer intenção da Grã-Bretanha vir a envolver-se num conflito terrestre cujos resultados seriam de duvidoso interesse para as aspirações britânicas. A ideia de que à Grã-Bretanha apenas interessava salvaguardar os seus próprios interesses ganha terreno entre aqueles que, como Tasso de Miranda Cabral, não escondiam o seu desagrado pela excessiva dependência da assistência britânica. As autoridades britânicas apenas estavam interessadas na segurança que as costas portuguesas podiam conferir às principais rotas marítimas do Atlântico e às ligações a Gibraltar e ao Mediterrâneo. Contrariando aquelas que eram, megalómanas ou não, as conceções de defesa dos organismos militares portugueses, a Grã-Bretanha tratará sempre de colocar a tónica na defesa de Lisboa e dos Açores. Receava-se que a Grã-Bretanha apenas estivesse interessada em servir-se do território português para defender os seus interesses sem salvaguardar os de Portugal no entanto, as autoridades portuguesas revelarão ao longo de todo o processo de planeamento uma estranha aceitação passiva das conceções estratégicas britânicas. Assumia-se que o interesse da Grã-Bretanha se resumia à obtenção de facilidades de diverso tipo em território português havendo que tirar o maior benefício possível da situação. Em jeito de conclusão podemos afirmar que, efetivamente, a defesa militar de Portugal nos complexos anos da Segunda Guerra Mundial dificilmente poderia ter ido mais além do patamar das aspirações patrióticas e bem-intencionadas dos decisores políticos e militares de então.Com escassos meios militares próprios e sem garantias de auxílio externo, a defesa militar do território continental português teria sido meramente simbólica. 301

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