Da história ocidental das mulheres ao conceito de gênero - Introdução para formações

July 24, 2017 | Autor: Michele Escoura | Categoria: Feminismo, Género
Share Embed


Descrição do Produto

Da história ocidental das mulheres ao conceito de gênero Michele Escoura Em “Mulheres: igualdade e especificidade”, Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro trazem a tona um grande panorama histórico da situação das mulheres em nossa sociedade. De simples “costela de Adão” à conquista da cidadania plena é uma longa trajetória ainda não completada pelas mulheres.

Inicialmente as autoras retomam o Iluminismo como um importante momento de reflexão dos Homens. Contudo, através de alguns autores do século das luzes, como Rousseau, percebemos que essas luzes de fato só viriam iluminar os homens. Por mais que os ideais de liberdade e igualdade fossem, nesse período, as principais reivindicações, eles não alçavam as mulheres. Há nesse momento, entre a maioria dos filósofos e pensadores, uma dúvida generalizada quanto à capacidade humana e intelectual da mulher. Para eles, as mulheres eram seres incompletos, desprovidos de muitas das capacidades cognitivas presentes num homem. Esse tipo de visão, como destacam as autoras, contribuiu para a construção de argumentos que, ao fim, justificavam as discriminações contra as mulheres. As ideias iluministas desembocaram, mais tarde em duas grandes revoluções: a Americana e a Francesa. Esses dois grandes eventos de nossa história foram um marco em relação às modificações nas estruturas sociais ocidentais e na busca pela cidadania das mulheres. A Revolução Americana, de 1776, foi importante para as mulheres de modo que todos e, principalmente, todas, as cidadãs americanas foram chamados a construir a nova nação. As donas de casas eram ali, a representação de todos os valores morais que o novo caráter cívico buscava incorporar. A brecha aberta pela nova responsabilidade para com a nação dita do povo livre, servirá de justificativa para que procurem interferir mais na 1 vida pública e lutem pela emancipação feminina.

Já na Revolução Francesa, as mulheres desempenharam uma participação intensa em todo o processo revolucionário. Desse modo, durante 1

Ibid. p. 268.

esse processo, elas adquiriram alguns direitos civis e passaram a reivindicar outros tantos. Olympe de Gouges chegou a propor a Declaração dos Direitos da Mulher e Cidadã como forma de estender, efetivamente, os direitos aclamados na revolução para as mulheres. Porém, com o fim do processo revolucionário, os direitos concedidos às mulheres foram revogados e Olympe guilhotinada, sob a acusação de se desviar das virtudes de seu sexo. Esses eventos, por muito tempo esquecidos, foram retomados e reavivados a partir do século XIX, com uma nova onde de mulheres em busca de seus direitos. Com o desenvolvimento do capitalismo, a partir das revoluções industriais de meados do século XVIII, os padrões econômicos e culturais foram amplamente modificados. Nesse contexto, uma mulher que não trabalhasse fora, por exemplo, indicava um elevado status social, uma vez que deveria ter um marido com sucesso econômico provendo-a e a toda família. No século XIX, foi reforçado o ideal da “mulher doméstica”, aquela restrita ao ambiente privado, enquanto que a esfera pública era reservada aos homens. Uma mulher respeitável, dentro desses padrões, era aquela que cumpria bem sua função como mãe e esposa. No âmbito jurídico, as mulheres foram vistas, por muito tempo, como “menores” e incompletas, sendo forçadas a relegar ao marido (se solteiras, ao pai) sua tutela. A superioridade do homem, que deve proteger a mulher, decorre da 2 idéia da fragilidade do sexo feminino.

A mulher e os filhos eram vistos como propriedade de um patriarca. O direito ao divórcio, assim que instituído, foi largamente utilizado por mulheres, vítimas principalmente de violências e maus tratos. Podemos aqui destacar que, se em certa medida, um homem considerava a esposa como sua propriedade, então para ele era plenamente justificável e legítima a aplicação de violências sobre ela a fim de mantê-la “na linha”. A influência da tradição vitoriana cercou, definitivamente, as mulheres dentro do lar. Criou-se o ideal da “moça de família”, no qual todas as moças deveriam

de

identificar

ou

se

encaixar.

Os

papéis

considerados,

essencialmente, como femininos foram alçados como obrigação a todas as

2

Ibid. p. 272.

mulheres “respeitáveis”. É interessante, contudo, a forma como algumas mulheres desse período se utilizaram desse ideal para, através de estratégias, agenciá-lo e corrompê-lo: o alargamento dos espaços de atuação da mulher se deu, inicialmente, a partir da valorização das próprias virtudes e papéis tido como femininos (“devoção incondicional”, “afetividade”, “mansidão”, “responsabilidade de zelar pela moral”): as mulheres deveriam “tomar conta” da sociedade, assim como faziam em seus 3 lares.

O agenciamento de ações propriamente atribuídas às mulheres, como a filantropia, por exemplo, proporcionou a entrada delas nos ambientes públicos, antes reservados aos homens, e mais: aumentou o contato entre mulheres de diversas camadas sociais, fazendo surgir uma “consciência de gênero” e, posteriormente, reivindicações para pôr fim nos desequilíbrios sociais entre homens e mulheres. Desequilíbrios esses que se faziam presentes já no próprio processo educacional das meninas e dos meninos. Por um longo período somente os homens tiveram acesso às instituições de ensino: essa diferenciação entre a educação deles em relação às mulheres contribuiu, ainda mais, com as desigualdades entre os sexos. Havia um maior destaque para a educação masculina em detrimento da feminina, o que refletia, nada mais que, a desvalorização da mulher na sociedade. O crescimento urbano proporcionou o aumento do número de mulheres no mercado de trabalho, especialmente nas indústrias. Porém, seus salários dificilmente – para não dizer nunca – ultrapassava dois terços do que os homens recebiam pelo desempenho da mesma tarefa. Isso significava uma grande dependência das mulheres em relação aos seus pais e esposos. Para a grande maioria das mulheres, tolerar alguma violência 4 doméstica era melhor que viver sem um companheiro.

As trabalhadoras eram obrigadas, como mulher, a desempenhar os trabalhos domésticos de manutenção da casa e da família e também de trabalhar “para fora”, a fim de complementar a renda familiar. Era a característica “dupla jornada” que muitas mulheres, até hoje, estão submetidas. Até o século XIX, as trabalhadoras estavam sujeitas a condições precárias de

3 4

Ibid. p. 274. Ibid. p. 277.

trabalho e, como agravante, eram rejeitadas pelos sindicatos (masculinos). Uma vez que a mão-de-obra feminina era mais barata que a masculina, o setor industrial priorizava a contratação das mulheres - como um meio de diminuição dos custos da produção -, o que gerou grande revolta dos homens que viam seus empregos serem “tomados” pelas mulheres. Fora da proteção dos sindicatos, elas eram submetidas a realidades desumanas no ambiente industrial. Foi nesse contexto que surgiram movimentos reivindicatórios pelos direitos trabalhistas das mulheres. É enganoso pensar que as mulheres entraram no mercado de trabalho somente em meadas do século XX, como exército de reserva nas duas grandes guerras. Elas representavam uma importante camada dentre o número de trabalhadores já no início da era industrial no século XVIII. Se de um modo geral, as mulheres já eram atribuídas aos piores cargos e funções nas fábricas - e além dos baixos salários – contudo, essa situação era agravada para as mulheres negras. Recém abolida a escravatura, as negras sofriam ainda com o preconceito das mulheres brancas que dividiam o mesmo espaço de trabalho. Um pouco antes da entrada no século XX, algumas trabalhadoras conseguiram sua sindicalização. Entretanto, até hoje assistimos a permanente desvalorização feminina no mercado de trabalho: as mulheres continuam ganhando salários mais baixos em relação aos homens. Apesar das muitas conquistas das mulheres no âmbito profissional, prevalece o ideal feminino da dona de casa, meiga e complacente. Mas enfim, e o feminismo? Segundo as autoras, ideias e práticas feministas nunca foram homogêneas. Contudo, as feministas têm sido unânimes na convicção de que a opressão às mulheres deveria acabar, na rejeição de ideias tradicionais – como a inferioridade natural das mulheres e a necessidade da submissão feminina – e na crença de que a ampliação de papéis e opções para 5 as mulheres criaria um mundo melhor para todos.

Muitas correntes feministas coexistiram. Igualitaristas ou dualistas, as feministas dificilmente estavam a sós: eram comuns as uniões com outros movimentos sociais, como os por independência, os revolucionários, os abolicionistas, pacifistas, anarquistas e socialistas. As feministas de cunho socialista, por exemplo, se imiscuíram nas questões econômicas e trabalhistas 5

Ibid. p. 286.

na qual as mulheres estavam inseridas: lutaram por acesso a melhores empregos e salários, diminuição da jornada de trabalho, melhores condições às prostitutas, operárias e funcionárias. Outras, que ganharam força a partir do século XIX, se dedicaram na reivindicação de direitos civis. Tais como o direito ao divórcio, a “maioridade” jurídica, proteção contra a violência masculina, ampliação da educação formal às mulheres, dentre outras. Com o advento do século XX, muitas dessas reivindicações levantadas pelas mulheres foram atendidas. Esse período caracterizou-se pela abertura de espaços para as mulheres na sociedade. Muitos dos ideais buscados pelas feministas foram atingidos, mas ainda muitos outros aguardam apreciação. Nós, mulheres, ainda hoje, mantemos reivindicações, um tanto quanto já empoeiradas, do século XIX. Exemplos

de

corajosas

mulheres

francesas,

alemãs,

russas,

finlandesas, estadunidenses, dentre outras, evidenciam que não é da década de 60, somente, que a luta pela igualdade de direitos e condições entre os sexos está posta. É dentro desse belo filme histórico que as autoras nos remontam. Retomando lutas e conquistas das mulheres, elas nos levam a diversos cantos do mundo para mostrar-nos que “fazer” e “ser” diferente é possível.

O conceito de gênero: O movimento feminista, consolidado a partir de meados do século XX, cruzou as fronteiras da academia a partir de 1960 transformando, em seu cerne, as maneiras de ver e questionar as relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres. Dos “estudos da mulher” as feministas, que se espalharam entre as diversas disciplinas das Ciências Humanas, passaram para os “estudos de mulheres”. Na História, o conceito de gênero ganhou força a partir dos textos de Joan Scott em 1990 e na Antropologia a partir de 1975 com os escritos Gayle Rubin. Para Joan Scott, Gênero é entendido como um elemento constitutivo das relações sociais baseadas a partir de como as diferenças entre os sexos são socialmente percebidas e que, operando sob uma dinâmica simbólica, expressa interpretações e representações capazes de significá-las sobre uma lógica normativa. O conjunto normativo ao qual Scott se refere é aquele cujo

poder é constantemente exercido entre os indivíduos, que fomenta micro relações de autoridade e constrói identidades subjetivas específicas não só para as mulheres, mas também para os homens. Gênero, como uma categoria analítica é, para ela, um conceito relacional – ao lado de categorias como idade, classe social, raça e etnia –, uma nova possibilidade para compreender as complexas relações de poder que permeiam e constroem subjetividades. Foi pela noção de que “o gênero torna-se, antes, uma maneira de indicar ‘construções sociais’ – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres” (SCOTT, 1990, p.7), em contraposição à pretensa subordinação universal das mulheres, que os estudos de gênero enriqueceram as análises sobre as relações de poderes estabelecidas não só a partir da dicotomia homem(dominador) e mulher(dominada), mas também das lutas e negociações internas às feminilidades e masculinidades. Já para a antropologia de Gayle Rubin, gênero é entendido como um complexo operador social e simbólico que, a partir de diferenças percebidas – culturalmente – entre os sexos, elabora um conjunto de regras, hierarquias e signos que orientam as relações humanas. Desse modo, seríamos todas/os, desde os primórdios de nossa existência, socializadas/os de forma a adequar nossa identidade de gênero ao nosso sexo “biológico”: operacionalizando os diversos mecanismos de diferenciações entre o sexo e o gênero, construímos nossa identidade (ora feminina, ora masculina) e todas as demais teias de relações sociais que daí derivam. A identidade de gênero seria constituída, como diz Rita Segato (1993), a partir de como uma determinada cultura lê as diferenças percebidas entre os corpos: [...] os seres humanos vivemos no mundo da cultura, onde os fatos não são senão representações e onde o embasamento de toda realidade é a teoria, a cosmologia, a visão de mundo, teriam ainda qualquer dificuldade em entender que o corpo, incluindo os processos que o afetam, não é mais do que um texto a ser preenchido de sentido a partir da perspectiva cultural de uma sociedade, de um grupo dentro dela, de uma categoria social – homens, mulheres, jovens, velhos, etc. – ou até das pessoas particulares; mas que o corpo per se nada diz, fora dessas leituras, fora destas tradições cujas magnitudes vão, em verdade, da história universal, da filogênese, até a história de vida individual. O corpo, então, se transforma em texto e seus atributos anatômicos em significantes, na passagem da natureza a cultura. (SEGATO, 1993, p.03).

Essas diferenciações culturais que são inscritas nos corpos a partir de uma identificação entre os sexos e confinam os indivíduos, homens e mulheres, em uma teia social de significações e hierarquias, estão sendo constantemente reproduzidas e reiteradas. Gênero, como entendido por Gayle Rubin, é uma categoria analítica criada a partir da necessidade em se compreender as relações que são socialmente dadas entre os indivíduos através das distinções entre os sexos. Assim, o gênero é visto como um marcador cultural que se estabelece a partir dos corpos e cria um complexo sistema de identidade e hierarquias. A incorporação dos estudos de gênero na antropologia promoveu uma nova especificidade para o conceito que, a partir de então, assume as questões da própria disciplina antropológica. Desse modo, a “velha” problemática antropológica da dicotomia entre a natureza e a cultura fornece o novo motor que impulsionará o conceito de gênero: na antropologia a grande questão do gênero reside na investigação da origem das distinções e desigualdades entre os sexos, em mostrar que se as relações de gênero variam culturalmente, então essas relações são de ordem cultural e, portanto, passíveis de transformação. Analisar e compreender como essas relações se estabelecem possibilita-nos pensar em formas de superar essas desigualdades.

Bibliografia: PINSKY, Carla Bassanezi e PEDRO, Joana Maria. Mulheres: igualdade e especificidade. In: PINSKY, Jaime e. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 304. RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes toward a political economy of sex. In: REITER, Rayna. Toward an anthropology of women. New York: Monthly Press, 1975. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In. Educação e Realidade. Porto Alegre, n16 (2), jul./dez., 1990. SEGATO, Rita Laura. A natureza do gênero na psicanálise e na antropologia. In. Série Antropologia, 146. Brasília: UNB, 1993.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.