Da homofobia - A língua presa, a expressão vedada

June 3, 2017 | Autor: David Gomes | Categoria: Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Teoria Democratica
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Da Homofobia – A língua presa, a expressão vedada1 David F. L. Gomes2 “Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade” (Chico Buarque e Gilberto Gil, Cálice)

História e linguagem. Datar fenômenos históricos a partir do momento em que surgem novos termos – ou quando termos já existentes ganham novos sentidos – e, ligando-se a tais fenômenos, passam a constituir-se como novos conceitos. Compreender conceitos como sintomas do tempo, e buscar na plurivocidade que lhes é imanente – seja pela referência de um mesmo conceito a ordens distintas de coisas no mundo, seja pela referência de conceitos distintos a uma mesma ordem de coisas no mundo – a pluralidade e a complexidade inextirpáveis da vida humana. Linguagem

e

política.

Entender

que

conceitos

não

somente

expressam

sintomaticamente um mundo que lhes subjaz, mas que, ao mesmo tempo, constituem esse mundo. Assumir que sempre que se fala não apenas se fala, mas se faz algo ao se falar, e que, por isso, toda fala, todo canto e todo grito produzidos por relações humanas produzem, concomitantemente, aquilo que são as relações humanas. História, política, linguagem e desvio. Pois em toda palavra, para além da prisão semântica que sua transformação em conceito lhe impõe, permanecem sempre rastros de desvios, permanece sempre o próprio desvio como rastro, como rastro de uma outra coisa que se poderia ter dito – que se disse ou se teria dito, talvez, em outro tempo – e que passou a não ser mais dita quando o conceito se impôs e, não obstante sua polissemia inelutável, fechou-se internamente nessa aparente abertura, fazendo com que essa outra coisa que a palavra não pôde mais dizer seja não simplesmente o rastro de um outro sentido, mas seja o sentido da alteridade mesma, o rastro de uma diferença que resta, sobra e transborda para além de qualquer identidade. 1

Texto publicado no jornal estudantil Voz Acadêmica, lançado em abril de 2016. A edição completa do jornal, dedicada à liberdade de expressão, pode ser consultada no seguinte link: . 2 Bacharel, mestre e doutorando em Direito pela UFMG. Professor assistente do Departamento de Direito da UFLA.

Desvio, identidade e alteridade. Alteridade como desvio, como desvio da norma, como desvio daquilo que é normal, e portanto nosso, normalmente nosso, normativamente tomado como normalidade nossa – "nossa" ou "nosso", expressão de uma possessividade pronominal que une sob a rubrica de um todo intitulado como "nós", lugar seguro que protege a fragilidade humana na Terra, que protege a fraqueza e o abandono de cada indivíduo deixado a si mesmo, oferecendo a ilusão de uma coletividade à qual pertencer, coletividade que, ao se fechar sobre si, organiza-se em normas que revelam o que ela é e que, na ânsia pela proteção frente ao desamparo e ao desespero, frente à covardia e ao medo de cada indivíduo que se ancora nela para resguardar-se do mundo, concebe toda alteridade – todo desvio da norma – como ameaça, como risco que, ao tornar manifesta a ubiquidade do rastro, precisa ser combatido, deve ser eliminado. Nós e a linguagem. Afinal, em qual outro locus se terá jamais expressado com tamanha força e intensidade a possessividade pronominal daquilo que se diz como nosso – a proteção sufocante de uma coletividade qualquer – senão na linguagem, na língua mesma e na impossibilidade de saltar para fora dela. Nossa língua, língua que se define como nossa e que nos define como nós, normatividade primeira de onde derivam todas as outras e que, no entanto, é ela mesma porosa e infinita, fragmentada e diferida, insuficiente e insaturável, hiperbólica, enfim; que, mais do que palavra, é gesto e ação, cultura e corpo, finitude e transcendência, diplomacia e erotismo, erudição e sexualidade. Na primeira vez em que ouvi a palavra "homofobia", no a essa altura longínquo ano de 2004, causou-me certo incômodo a relação entre ela e aquilo a que pretendia referir-se: levando a sério o modo como os termos unidos naquela palavra foram depositados ao longo da história na língua portuguesa, homofobia deveria referir-se a algo como medo ou aversão (fobia) ao igual (homo). Assim, referir-se com essa palavra a algum tipo de ódio a homossexuais parecia, quando menos, um equívoco etimológico. Mas, como transformações na linguagem – aquilo que constitui o torque mesmo da língua, ou o toque da língua mesma – não são aceitas ou feitas, não são previstas ou autorizadas, assumidas ou negadas, mas simplesmente acontecem – como lógica do mundo, como modus constitutivo do incessante desconstituir-se do mundo –, sem muito respeito pela gramática e suas regras formais a palavra foi aos poucos se impondo como conceito – ou o conceito foi aos poucos se impondo sobre a palavra. Fez-se carne, habitou entre nós. Ao impor-se, ele – o conceito –, derivado de relações postas de maneira difusa no mundo, foi aos poucos organizando essas relações, organizando esse mundo, dando certo sentido de unidade a um conjunto de práticas contra as quais aquela palavra e seu novo uso

pareciam querer se voltar e assumindo com isso um teor crítico irrefreável. Ao mesmo tempo, por outro lado, o conceito foi também organizando aquilo contra o que ele parecia querer se voltar, oferecendo certo sentido de unidade também para aquelas pessoas que agora, de modo explícito ou implícito, assumido ou não reflexivamente, podiam identificar-se como homofóbicas. Exsurgindo do mundo, a palavra, como conceito, reorganizava o mundo, de um lado e do outro; constituía o mundo a seu modo, à medida que se ia desconstituindo ela mesma como palavra que pudera talvez ter significado algum dia a simples junção da "fobia" com o "homo". De repente, não mais que de repente – isto é, depois de tantas mortes bárbaras de travestis, de tantos estupros corretivos de lésbicas, de tantos gays humilhados e espancados, de tanto sangue, de tanta dor, tanta luta e tanto luto – o conceito se institucionalizara. Transcendidas as barreiras dos guetos, era agora possível ouvir falar-se de homofobia nas ruas, nos pontos de ônibus, na grande mídia, nas mesas de cafés ou bares. Era possível reler o mundo à luz do novo conceito, da palavra renovada, reler um mundo ele mesmo reescrito pela palavra relida. E, nessa releitura, tornava-se possível compreender finalmente em toda sua agressividade homofóbica tantos gestos e tantas práticas há tanto tempo arraigados no cotidiano social, tantas piadas, tantas posturas, tantas falácias e tantos discursos proferidos em almoços de domingo, em reuniões de fins de expediente, em filas de supermercado, em aulas e mais aulas de etiqueta ou de direito. Mas, institucionalizado o conceito, estava presa a palavra. E presa a palavra, apenas como rastro o desvio poderia restar. De tudo, porém, o que importa é e será sempre exatamente apenas o rastro. Aquilo que permanece mesmo já não estando presente, aquilo cuja presença só existe como rememoração, como lembrança forçada pelo próprio esquecimento. Pois, por detrás de toda homofobia como ódio às e aos homossexuais, resta ainda aquele outro sentido, que se desvela para revelar o sentido mais profundo da homofobia ela mesma: não há nem jamais haverá homofobia que não seja, que não continue sendo, ao mesmo tempo, uma aversão ao igual. Uma aversão ao fato de que a igualdade humana somente se torna possível pela constatação de que ela mesma, a igualdade plena tomada em si, é sempre impossível, e de que por isso a igualdade só existe como reconhecimento de sua impossibilidade – logo, como reconhecimento de que o que nos iguala é a diferença irreprimível entre nós e de que, apesar de todas as diferenças e precisamente por causa delas, pode haver entre nós algo de comum. Não há aversão à homossexualidade que não seja primeiramente homofobia nesse sentido mais profundo, homofobia como homo-fobia, como negação – necessariamente frustrada, e,

por isso, agressiva, impotente, desesperada e violenta em seu irremediável desespero – daquela constatação básica acerca da radical pluralidade humana. E, como essa pluralidade não é senão a conditio per quam da política, da república, da democracia enfim, não há homofobia que não seja – como homo-fobia, como aversão ao igual e à igualdade mesma – aversão à própria democracia. Se assim o é, não pode gerar surpresa alguma a manifestação dessa homofobia em uma instituição cuja autocompreensão difundida em seus espaços de sociabilidade e reforçada até mesmo em seus atos oficiais sintetiza-se de maneira exemplar na perífrase “Casa de Afonso Pena” – que, tomada como casa, não pode não ser também a casa de Francisco Campos e do auditório Francisco Campos, e de tantas outras salas e tantos outros bustos - de aço, de bronze ou de carne – comprometidos com a aversão à democracia e com a sustentação do autoritarismo na história do Brasil. Casa, espaço por excelência de manifestação daquilo que é privado, daquilo que pode manifestar-se sem ser necessário dar razões que o justifiquem. Espaço, portanto, em que nenhuma justificação racional e pública dos atos que se praticam pode ser exigida. Não por acaso, casa: espaço do armário e da cozinha, espaço ambiguamente ligado à senzala de ontem e aos modernos quartos de empregada de hoje. Espaço, por conseguinte, de ocultamento das discriminações, de encobrimento das violências, de ratificação autoritariamente silenciosa e silenciadora de uma variada gama de opressões: contra gays, lésbicas, trans, mulheres, negras, negros, pobres. E também contra alunas e alunos. Casa, em resumo: local privilegiado para as hierarquias, local quase que naturalmente determinado – pela própria necessidade transgeracional de sobrevivência da espécie e de consequente transmissão a cada nova geração do saber acumulado pelas gerações anteriores sobre a face da Terra – como locus da desigualdade, da inigualação necessária. Casa, portanto: local da aversão à igualdade. Casa, pois: local da homo-fobia, da aversão ao igual, seja ela ou ele gay, lésbica, trans, mulher, negra, negro, pobre, enfim. Porque o que une todas essas lutas, o que pode de algum modo uni-las, é o caráter homo-fóbico das opressões que recaem sobre todos esses grupos: o que todas essas minorias precisam enfrentar cotidianamente não é outra coisa que a homo-fobia, que a aversão à possibilidade de que, como diferentes, sejam tratadas como iguais. Não se trata, por um lado, de pretender para a luta contra a opressão afetivo-sexual a herança do posto outrora ocupado pela luta contra a opressão de classe. Ao contrário: a base de todas essas opressões continua sendo, ainda que ofuscada por uma série de mediações históricas, a desigualdade material derivada da incessante luta da espécie humana contra a

escassez de recursos de sobrevivência e a forma que tal luta assumiu no modo capitalista de produção. Também não se trata, por outro lado, de diluir a pauta de lutas especificamente voltadas para a questão afetivo-sexual no meio de uma série de outras pautas, sobretudo de fundo material, chamando todas elas de lutas contra a homo-fobia, de tal modo que a luta própria contra a homofobia acabe por perder a visibilidade que não pode deixar de ter. Pois se aquela base material continua sendo o obstáculo sem a derrubada do qual a emancipação humana não se perfaz, é preciso não obstante estar alerta para que a luta contra a opressão de classe não sufoque e represe novamente a luta contra todo um conjunto de outras opressões que, conquanto derivando dessa opressão material básica, ganharam ao longo da história relativa autonomia e constituem hoje gramáticas próprias a serem compreendidas e enfrentadas. Afinal, mesmo que um dia consigamos superar a escassez artificial que hoje se induz no mundo como forma de preservação da lógica de autovalorização do capital, mesmo que um dia a desigualdade material de base seja efetivamente superada, não se poderá chamar de emancipada uma sociedade em que, extinta a desigualdade material, permaneça a desigualdade em suas outras manifestações, permaneça a aversão ao igual, permaneça, assim, uma dinâmica homo-fóbica para além e ao lado de toda a almejada inexistência de classes. Trata-se, assim, nem tanto ao mar nem tanto à terra, simplesmente de insistir na inelutável transversalidade das lutas emancipatórias, na inafastável unidade de propósito que as congrega, por mais plurais que sejam: o simples e difícil propósito da democracia entre nós.

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