Da jurisdição constitucional ativista à democracia deliberativa: uma busca por um novo paradigma para a relação entre o direito e a política

July 13, 2017 | Autor: Rafael Bezerra | Categoria: Direito Constitucional, Jurisdição constitucional, Teorias Dialógicas
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Descrição do Produto

Artur Stamford da Silva Organizador

De 23 a 25 de novembro de 2011 Recife l Faculdade de Direito I UFPE

2012

II Encontro Procad UFAL-UFPE-UFPB O Judiciário e o Discurso dos Direitos Humanos De 23 a 25 de Novembro de 2011 Recife l Pernambuco l Brasil ISBN: 978-85-415-0014-2

Organização: Artur Stamford da Silva

Comissão Científica: Adrualdo Catão (UFAL)

Cecília Caballero Lois (UFSC)

Alberto Jorge (UFAL)

Eduardo Rabenhorst (UFPB) Enoque Feitosa (UFPB)

Andreas Krell (UFAL)

João Paulo Allain Teixeira (UFPE/UNICAP) Lorena Freitas (UFPB)

George Sarmento (UFAL)

Luciano Oliveira (UFPE)

Artur Stamford da Silva (UFPE)

Gustavo Ferreira Santos (UFPE)

Luiz Magno Pinto Bastos Jr. (UNIVALI)

Bruno Galindo (UFPE)

Jayme Benvenuto (UNICAP)

Virgínia Colares (UNICAP)

Revisão: Os autores

Capa e Diagramação: Carolina Leal Pires

Apoio: CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) CCJ/FDR-UFPE (Centro de Ciências Jurídicas – Faculdade de Direito do Recife) Catalogação na fonte: Bibliotecária Kyria de Albuquerque Macedo, CRB4-1693

E56a

Encontro Procad UFAL- UFPE- UFPB (2. : 2011 nov. 23-25 : Recife, PE). [Anais do] II Encontro UFAL- UFPE- UFPB: o judiciário e o discurso dos direitos humanos / organizador Artur Stamford da Silva. – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. Modo de acesso : World Wide Web. ISBN 978-85-415-0014-2 1. Poder Judiciário - Brasil. 2. Direitos humanos. 3. Democracia. 4. Controle da constitucionalidade. 5. Direito e socialismo. 6. Sociologia jurídica. 7. Hermenêutica (Direito). 8. Liberdade de expressão. 9. Liberdade de imprensa. I. Silva, Artur Stamford da (org.). II. Título. 347.012

CDD (22.ed.)

UFPE (BC2012-005)

2012 © Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte desta publicação será permitida com a prévia autorização escrita do(s) autor(es). As informações contidas nos artigos são de responsabilidade de seu(s) autor(es).

Apresentação Esta memória digital registra vivências durante o II Encontro O Judiciário e o Discurso dos Direitos Humanos, no qual estiveram envolvidos o PROCAD UFAL-UFPB-UFPE e o PROCAD UNICAP-UFSC-UNIVALI. Essa memória foi possível pela soma de pessoas. Uma vista na lista dos integrantes da Comissão Científica, identifica-se quantos fomos necessários. Há ainda os discentes de graduação, mestrado e doutorado sem os que seria inviável termos chegado aqui. Colaborações fundamentais da Diretoria do Centro de Ciências Jurídicas da UFPE e dos funcionários viabilizaram a realização simultânea em nove salas. Pois é, os sete Grupos de Trabalhos ocuparam nove salas da Faculdade de Direito do Recife durante os dias 23 a 25 de novembro de 2011, todas com equipamento, climatização e plenas condições para os debates ocorrerem. Tudo não passava de um encontro de orientandos e orientadores da UFAL-UFPB-UFPE. Tudo passou de um encontro de discentes e docentes de diversas instituições brasileiras. A integração da UNICAP, UFSC e UNIVALI acresceram debates, ideias e amizades. A quantidade de trabalhos encaminhados assustou. Limites tempo e espaço, além da distância braseileira, terminaram inviabilizando participações. Não houve donos do verbo, ainda que houvessem presentes com qualidades propriadas. Todos tiveram fala, inclusive nos GT, tempo para apresentação e debate. Livres, os que quisessem aproveitar, afastando-se da prática do apresentar e ir embora, como costume nos eventos, ainda carreram os proveitos, inclusive porque os trabalhos foram enviados após o evento, justamente para que em nova versão pudessem agregar ideias resultantes do Encontro. Apresento, assim, essas mais de 1290 páginas em Memória Digital de parte do que foi o Encontro, pois o todo só em nossas memórias.

Artur Stamford da Silva (13 de janeiro de 2012)

Sumário

GT1 Grupo de Trabalho Pragmatismo e realismo jurídico

06

GT2 Grupo de Trabalho Democracia e legitimidade da jurisdição constitucional

234

GT3 Grupo de Trabalho Marxismo e direitos humanos

460

GT4 Grupo de Trabalho Sociologia do direito e direitos humanos

573

GT5 Grupo de Trabalho Hermenêutica constitucional e direitos humanos

816

GT6 Grupo de Trabalho Judiciário e comunicação

886

GT7 Grupo de Trabalho O discurso da efetividade dos direitos sociais no judiciário

1047

Interpretação e aplicação do direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa: uma abordagem pragmática comparativa entre o TJ/ AL e o STF Caroline Maria Costa Barros e Lívia Lemos Falcão de Almeida.........................................................................................07 A atuação do poder judiciário na efetivação das normas constitucionais: a implementação de políticas públicas de educação básica como direito fundamental Cicero Alberto Mendes Ferreira..........................................................................................................................................26 Fundacionalismo e essencialismo no Supremo Tribunal Federal: um estudo de caso paradigmático, a ADI 3510 Elita Isabella Morais Dorvillé de Araújo...............................................................................................................................42 O processo de direitos humanos como prática realista Fernando Gabriel Lopes Cavalcante..................................................................................................................................50 Realismo Jurídico e Critical Legal Studies: diferentes posturas críticas do Direito Gilmara Joane Macêdo de Medeiros..................................................................................................................................65 Racionalidade das decisões judiciais em matéria tributária e sua fundamentação nos direitos humanos Manoel Cavalcante de Lima Neto e Antonio Alves Pereira Netto.......................................................................................81 A análise econômica do direito e a reforma do poder judiciário: uma leitura crítica a partir de Richard A. Posner Marcelo Schmitt Gamba......................................................................................................................................................99 Ativismo Judicial: uma análise filosófico-pragmática, em Oliver Holmes e Benjamin Cardozo, da legitimidade do Poder Judiciário do Estado de Alagoas na concretização de Políticas Públicas de Saúde Márcio Oliveira Rocha.......................................................................................................................................................119 Para além do sopesamento – análise econômica do direito como forma de suplantação da incomensurabilidade entre princípios Mariana Oliveira de Melo Cavalcanti................................................................................................................................134 Improbidade administrativa em sessão: análise pragmática das decisões da Suprema Corte Nathália Ribeiro Leite Silva...............................................................................................................................................149 O direito previdenciário à pensão por morte da esposa e/ou da companheira segundo as decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal: uma análise pragmática Priscilla Emanuelle de Melo Cavalcante...........................................................................................................................157 Pragmatismo dos direitos humanos no discurso jurídico-decisório do Judiciário: uso retórico do poder simbólico em favor do controle social Ramon Rebouças Nolasco de Oliveira.............................................................................................................................172 Um olhar pragmático sobre a (in)constitucionalidade da Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”): Defesa do princípio da Igualdade ou Preconceito de Gênero? Terlúcia Maria da Silva......................................................................................................................................................193 Realismo jurídico e Direitos Humanos no Universo Prisional Thereza Michelle Lima Lopes de Mendonça....................................................................................................................211 T

O pretor peregrino como expressão da máxima pragmática no direito romano Valéria Véras e Lorena Freitas.........................................................................................................................................222

Interpretação e aplicação do direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa: uma abordagem pragmática comparativa entre o TJ/ AL e o STF Caroline Maria Costa Barros1 TP

Lívia Lemos Falcão de Almeida

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Resumo

Abstract

O pragmatismo jurídico é uma escola filosófica que teve como maiores expoentes os teóricos Benjamim Cardozo e Oliver Holmes Jr. Com efeito, o presente trabalho baseou-se em variados escritos desses autores para realizar uma análise pragmática comparativa entre as decisões do Supremo Tribunal Federal e as do Tribunal de Justiça de Alagoas. O propósito é conhecer com maior clareza os fundamentos utilizados a respeito dos diversos temas que envolvem o direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa. A pesquisa utilizou como metodologia uma abordagem teórica, no que concerne à análise dos fundamentos pragmáticos, e empírica, com o estudo de acórdãos da Suprema Corte Brasileira e do TJ/AL. Assim, buscou-se examinar os principais votos dos julgadores em cada uma das decisões selecionadas, incluindo aqui também alguns votos vencidos, com o objetivo de decompor os argumentos empregados para, ao fim, verificar a aplicabilidade da técnica pragmática em detrimento de justificações principiológicas e arbitrárias.

The legal pragmatism is a philosophical school which had as main theoreticians Benjamim Cardozo and Oliver Holmes Jr.. In this manner, this project is based on several works of these authors with the purpose of doing a pragmatic comparative approach between the decisions taken by the Federal Supreme Court and the decisions of the TJ/AL. The idea is to deepen the knowledge on the basics of some topics which involve the freedom of expression and press. The methodology of the research was more theoretical regarding the analysis of the fundamentals pragmatics, in the other hand the methodology was more empirical regarding the studies of the leanding cases of the Brazilian Supreme Court and the TJ/AL.Thereby, the most important votes of the judges in several selected decisions were analyzed, including some loosing votes, with the objective of breaking down the arguments used, and then, verify the applicability of the pragmatic technique rather than arbitraries justifications and justifications based on principles.

Palavras-Chave: Pragmatismo Jurídico; Decisão Judicial; Direitos Fundamentais; Liberdade de Expressão e Imprensa.

Keywords: Legal Pragmatism; Leading Case; Fundamental Rights; Freedom of Expression and Press.

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Aluna da graduação do curso de Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), colaboradora no Projeto PIBIC “Interpretação e Aplicação do Direito Fundamental à Liberdade de Expressão e Imprensa: Uma Abordagem Pragmática Comparativa entre o TJ/AL e o STF”, integrante do Grupo de Pesquisa em Pragmatismo e Direitos Humanos, coordenado pelo Prof. Dr. Adrualdo de Lima Catão. Email: [email protected].

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Aluna da graduação do curso de Direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), bolsista CNPq no projeto PIBIC “Interpretação e Aplicação do Direito Fundamental à Liberdade de Expressão e Imprensa: Uma Abordagem Pragmática Comparativa entre o TJ/AL e o STF”, integrante do Grupo de Pesquisa em Pragmatismo e Direitos Humanos, coordenado pelo Prof. Dr. Adrualdo de Lima Catão, integrante do Grupo de Pesquisa em Direito Internacional e Meio Ambiente (GEDIMA), coordenado pela Profa. Dra. Alessandra Marchioni, monitora de Direito Internacional I e II. Email: [email protected]. TP

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1. Introdução A expressão “Realismo Jurídico” está ligada à ideia de que o Direito deve ser apreendido na realidade, ou seja, o Direito está contido na produção jurídica dos Tribunais. Essa é a realidade do Direito. Sendo assim, não caberia ao jurista procurar o Direito em conceitos abstratos, mas sim nas decisões concretas dos tribunais. Por outro lado, a expressão “Pragmatismo Jurídico” liga a doutrina ao pensamento da filosofia pragmática de Charles Sanders Peirce, Wiliam James e John Dewey. Mesmo aqueles que preferem a expressão “Realismo Jurídico” reconhecem essa ligação3. TP

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Seguindo essa linha, o presente trabalho pretende utilizar o método pragmático como meio de investigação das controvérsias que envolvem o direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa por meio de uma análise comparativa entre os posicionamentos do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Justiça de Alagoas. O método pragmático poderá apontar, na realidade jurídica, qual o conteúdo do direito fundamental e demonstrar, através das práticas dos Tribunais, se as razões para a decisão esquecem os argumentos fáticos e históricos em favor de justificações principiológicas e abstrações deslocadas da realidade ou, ao contrário, fazem uso de uma efetiva fundamentação jurídica. Inicialmente, o artigo irá se centrar em uma explicação teórica do método pragmático e de como este será utilizado para a análise das decisões selecionadas. Encerrado esse primeiro momento, far-se-á um estudo de como o direito à liberdade de expressão e imprensa é interpretado pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, destacando, sobretudo, qual é o posicionamento destes Tribunais em caso de conflito da liberdade de expressão e imprensa com outros direitos fundamentais consagrados no ordenamento jurídico brasileiro. O interesse do trabalho é, portanto, analisar tais casos, e não aqueles em que o direito é aplicado sem contestação ou controvérsia específica sobre a definição de seu conteúdo. Esta é uma dúvida que aflige o pesquisador do direito, que fica refém de descrições genéricas sobre os embates existentes, como, por exemplo, entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, ambos com aparato constitucional, mas que não dispõem de uma pesquisa com resultados claros sobre o posicionamento dos nossos tribunais a respeito de tal tema. Desta forma, ao mesmo tempo em que se aplicará o pragmatismo jurídico, testar-se-á sua utilização como método. O resultado obtido mostra que a aplicação do pragmatismo pode ser útil apenas como método científico, ou também como forma de orientar os juízes.

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ALMEIDA, Lívia Lemos Falcão de; BARROS, Caroline Maria Costa. In:Projeto PIBIC 2011/2012 "Interpretação e Aplicação do Direito Fundamental à Liberdade de Expressão e Imprensa: Uma Abordagem Pragmática Comparativa entre o TJ/AL e o STF”, sob a orientação do Professor Adrualdo de Lima Catão. PT

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Ao final, a conclusão será importante do ponto de vista teórico, pois além de analisar o método pragmático, usa efetivamente o próprio método do ponto de vista científico. E também sob o ponto de vista prático, já que trará uma referência de como as pautas relacionadas com o direito fundamental à liberdade de expressão e imprensa são efetivamente interpretadas pelo STF e pelo TJ/AL em seus casos mais polêmicos. Deve-se destacar, ainda, que se utilizará ao longo do trabalho a nomenclatura “liberdade de expressão e imprensa” para referir-se à liberdade de comunicação, envolvendo aqui a liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de informação em geral e liberdade de informação jornalística. Por último, cumpre mencionar que as decisões analisadas não procuram trazer um quantitativo de decisões que demonstram uma tendência estatística dos Tribunais em um ou outro sentido. A proposta é analisar qualitativamente as decisões e extrair delas, inclusive com o estudo de alguns votos vencidos, os conceitos dos institutos jurídicos, a ponderação de princípios realizada casuisticamente, a preocupação com as repercussões e as consequências da decisão, bem como o uso de precedentes, e as demais especificidades que envolvem cada caso.

2. O Pragmatismo Jurídico como método de análise das decisões judiciais 2.1 A Proposta do Método Pragmático O pragmatismo jurídico é uma corrente filosófica que aparece como uma teoria antipositivista (reducionista), aproveitando o postulado da separação entre Direito e Moral e prevendo, assim, uma decisão baseada não apenas na lei, mas na construção coletiva sob a face de jurisprudências. Para identificar o realismo com o pragmatismo jurídico faz-se necessário, de logo, destacar a versão do realismo que se desenvolveu nos Estados Unidos da América. Assim, por realismo jurídico, tem-se: “[...] um movimento doutrinário de cunho antimetafísico que se desenvolveu nos EUA e países escandinavos e que se situa na linha de concepções que rechaçam a jurisprudência mecanicista da escola da exegese, caracterizando-se por defender um ceticismo frente às normas e conceitos jurídicos” 4. TP

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Vale destacar que o elemento fundamental do pragmatismo jurídico tem por base a corrente filosófica que enfatiza a utilidade prática da filosofia e que tem como expoentes Charles Sanders Peirce, Wiliam James e John Dewey5. TP

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FREITAS, Lorena. O elemento subconsciente na decisão judicial conforme o realismo jurídico de Benjamin Nathan Cardozo. In: FEITOSA, Enoque et al. O direito como atividade judicial. Recife: Ed. dos Organizadores, 2009, p. 142. TP

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5 FREITAS, Lorena de Melo. Um diálogo entre Pragmatismo e Direito: contribuições do Pragmatismo para Discussão da Ideologia na Magistratura. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, vol. 4, n. 1, jan-jun 2007, p. 10-19. Disponível em . Acesso em: 21 out. 2011, p. 14. TP

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O pragmatismo, em sua origem, desenvolveu-se a partir de um posicionamento contrário à interpretação contemplativa da filosofia, presente tanto no positivismo como no idealismo. Sendo assim, sua característica mais marcante era identificar-se como uma filosofia da ação, que tinha a experiência como ponto central e elemento de validação de sua teoria6. TP

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Com o artigo intitulado “Como tornar claras as nossas ideias”, de 1878, Charles Sanders Peirce inaugurou o pragmatismo, partindo da ideia de que “[...] O significado de um conceito está nas suas consequências práticas, nas possibilidades de ação que ele define, do que podemos concluir que a clareza de uma ideia reside na sua utilidade”7. TP

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Àquele tempo, Peirce discutia como os conceitos filosóficos eram pouco claros e, em consequência, os discursos filosóficos demasiadamente imprecisos. O autor defendia que o processo de tornar claras as ideias estava relacionado com traduzi-las a fatos empíricos8. Para tal, TP

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explicava que, “[...] conceber o que seja uma coisa equivaleria a conceber como funciona ou para que se serve9”. TP

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Assim, a intenção de Peirce de buscar um método capaz de aproximar a filosofia da ciência resultou na formulação do método pragmático e, com este, inaugurou-se a proposta de relacionar o significado de uma ideia às suas consequências práticas10. TP

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Por sua vez, William James preocupava-se com o voluntarismo, ou seja, com a finalidade das ações. Em suas conferências, criticava as disputas metafísicas, por entender que estas não resultavam em nada quando submetidas ao teste de traçar uma consequência concreta. E Dewey, a seu tempo, tendo em vista sua obra “My Philosophy of Law”, publicada em 1941, pode ser considerado como um precursor da reflexão pragmática sobre o direito11. TP

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Analogamente, os expoentes do juspragmatismo passaram a criticar o pensamento jurídico idealista e defender que os princípios e as descrições normativas eram bastante abstratos e imprecisos, de modo que o real significado de uma norma jurídica apenas seria encontrado em sua aplicação prática, ou seja, nas decisões dos tribunais. Já que, em última análise, é por meio da decisão que o direito se realiza, produzindo efeitos práticos na vida dos indivíduos.

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Ibidem, p.14.

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Ibidem, p. 13.

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Ibidem, p. 14.

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Ibidem , p.14. PT

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Ibidem, p.14.

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FREITAS, Lorena de Melo. Um Diálogo entre Pragmatismo e Direito: Contribuições do Pragmatismo para Discussão da Ideologia na Magistratura. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, vol. 4, n. 1, jan-jun 2007, p. 10-19. Disponível em . Acesso em: 21 out. 2011, p. 15. PT

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Ademais, a proposta de relacionar filosofia à ciência significaria, sob um viés jurídico, a possibilidade de fazer ciência do direito, tentando, ao máximo, distanciar o direito de posições políticas preconcebidas, com o objetivo de mostrar a realidade.

2.2 O Pragmatismo Jurídico à luz de Benjamim Cardozo e Oliver Holmes Jr. Para os teóricos Benjamim Cardozo e Oliver Holmes Jr., a abstração das leis e dos princípios não é capaz de resolver um caso concreto. Eles sugerem uma análise da história dos casos anteriores semelhantes. Isso porque consideram a decisão judicial uma decisão coletiva, compreendida no sentido de saber coletivo. Seguindo essa linha, o método pragmático proposto pelos autores entende o direito como uma realidade que se pauta na história da emergência e da transformação dos conceitos jurídicos, nascidos de repetidas investigações sobre as repetidas disputas judiciais12. TP

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Impende destacar, contudo, que os autores não desprezam a lei, apenas afirmam que elas, em si mesmas, não solucionam os casos. Esse entendimento pode ser exemplificado quando um mesmo princípio geral pode fundamentar decisões em sentidos opostos; o método pragmático dos autores se propõe, assim, a resolver a questão por meio de uma análise do histórico das decisões, dos fatos do caso e das consequências da decisão. Em sua obra “A natureza do processo judicial”, seu mais importante livro, Benjamin Cardozo ratifica esse pensamento ao afirmar que a lei também assume um papel fundamental no âmbito decisório, por ser o paradigma objetivo seguido, inicialmente, pelo juiz; essa lei mostra-se pela Constituição e demais normas do poder legislativo. Nessa concepção, o direito criado pelos juízes seria secundário e subordinado ao dos legisladores; contudo, tais leis não seriam capazes de dispensar o trabalho do juiz, visto esse não ser mecânico e tampouco superficial. Ora, há lacunas, dúvidas, ambiguidades a esclarecer. A lei, por vezes, pode ser fragmentada, inadequada e injusta, cabendo ao juiz, em sua interpretação, suprir esse problema ao corrigir incertezas e ao harmonizar os resultados com justiça13. TP

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Na opinião do autor, mesmo que, em alguns casos, as leis sejam determinantemente claras, nas quais, em tese, não haveria maiores dificuldades, haveria ainda assim um elemento de mistério que acompanha a energia criativa destas. Justamente nessas imprecisões, quando a lei

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KELLOGG, Frederic R. Oliver Weldell Holmes, Jr., Legal Theory, and judicial restraint. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007, p. 39.

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CARDOZO, Benjamim. A natureza do processo judicial: palestras da universidade de Yale. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.5. TP

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escrita nada diz, é que o juiz precisaria buscar na common law14 a norma que se ajusta ao caso, TP

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fazendo uso de precedentes e de concepções jurídicas básicas15. TP

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No tocante aos tribunais, Cardozo ressalta que seus membros devem ter conhecimento de que as leis escritas devem ser vistas não de maneira isolada ou in vacuo, como pronunciamento de princípios abstratos para orientar uma comunidade ideal, mas contextualizando-as às condições atuais16. TP

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Holmes, por sua vez, no artigo “The path of the Law”, aconselha aos estudantes de Direito que não vejam a lei como fonte única para as decisões, visto que esta precisa de um intérprete para que haja sua melhor aplicabilidade; este intérprete, em sua opinião, seria a comunidade jurídica17. TP

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No supracitado artigo, Holmes, influenciado pela “teoria da ação”18 do contemporâneo TP

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Peirce, expôs o seu ponto de vista acerca da tarefa da ciência do direito que estaria, justamente, em prever o que os tribunais farão: “O objeto do nosso estudo, então, é previsão, a previsão da incidência da força pública através do instrumento dos tribunais[...]. As profecias do que os tribunais farão, de fato, e nada de mais pretensioso, são o que quero designar como Direito”19. TP

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O prestigiado filósofo ainda descreve a metáfora do bad man20, ao relatar que o direito TP

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deveria ser visto sob os olhos de um Homem sem escrúpulos, nefasto, pois só assim poderia o direito realmente se desenvolver21 (ex. Lei de Responsabilidade Fiscal, que trata o servidor TP

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sempre sob a vista suspeita). Outrossim, assunto crucial em seus escritos é o repúdio às justificações baseadas em proposições gerais. Em sua decisão no famoso caso Locner vs. New York, Holmes deixou consignado o seu entendimento segundo o qual “proposições gerais não decidem casos 14

KELLOGG, Frederic R. Oliver Weldell Holmes, Jr., Legal Theory, and judicial restraint. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2007, p. 59.

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CARDOZO, Benjamim. op. cit., p.9-10.

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Ibid., p.58.

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HOLMES, O.W. The path of the law. Collected legal papers, 1920.

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A teoria da ação formulada por Peirce consiste em relacionar o significado de uma ideia às suas consequências práticas. Cf. FREITAS, Lorena de Melo. Um Diálogo entre Pragmatismo e Direito: Contribuições do Pragmatismo para Discussão da Ideologia na Magistratura. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, São Paulo, vol. 4, n. 1, jan.-jun.. 2007, p.10-19. Disponível em . Acesso em: 21 out.2011, p.14. TP

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HOLMES, Oliver Wendell, apud FISHER, William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press, 1993, p. 16. TP

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Pode se ver que um criminoso tem tanta razão quanto tem um homem correto para evitar as forças públicas, que representam a justiça, e disso consequentemente pode se deduzir a importância prática da distinção entre moralidade e direito. Um homem que não liga nada para uma regra ética praticada por seus vizinhos, provavelmente não ligará muito para evitar ser forçado a pagar alguma coisa na tentativa de ficar fora da cadeia, se isso conseguir. Cf. HOLMES JR., Oliver Wendell. The Essential Holmes. Chicago: Chicago University Press, 1992., p. 161.

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21 SILVEIRA, Lauro Frederico B. da; MARTINEZ, Vinício C. Veredas do Direito “Path of the law” – do juiz Oliver Wendell Holmes Jr. Revista Discurso Jurídico Campo Mourão. v. 4, n.1, p.266-280, jan.-jul. 2008. Disponível em . Acesso em 23 out. 2011. TP

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concretos22”; por conseguinte, somente as verdadeiras proposições concretas seriam capazes de TP

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relacionar a decisão do caso com o cotidiano, não havendo como conceber a existência de direitos absolutos. Nessa seara, entrariam diversos fatores importantes na hora do julgamento da celeuma, como os parâmetros históricos, os princípios, as policies23, a Carta Magna, observando TP

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quais efeitos isso geraria para o futuro e quais demandas se desenvolveriam24. TP

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Seguindo essa linha, não há como admitir que uma norma de caráter geral consiga, por si só, decidir um caso concreto, já que os fatos que envolvem o caso estão envoltos em circunstâncias específicas, as quais não se enquadrariam em uma generalização absoluta. Ao fim, poder-se-ia, sob o pretexto de uma norma geral e abstrata, esconder a verdadeira razão da decisão. Desse perigo deve se afastar a ciência jurídica, não podendo, portanto, estar o direito completamente aberto aos amplos princípios e abstrações normativas. O Pragmatismo Jurídico envolve, portanto, a defesa de uma forma de contextualismo e a crítica a entidades abstratas. Holmes e Cardozo, como visto, defendem que proposições gerais não resolvem os conflitos no Direito, pois são os fatos que determinam a correção ou não da interpretação jurídica. Numa análise dos casos práticos, facilmente se percebe que não basta ter conhecimento da norma jurídica para que se resolva um litígio. Não basta conhecer os conceitos de liberdade e os princípios aplicáveis a sua proteção, para decidir quando ela poderá sofrer restrições num caso concreto. Aproveitando-se da máxima de Cardozo “provamos a regra pelo seu resultado25”, TP

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podemos concluir que a melhor resposta para um problema jurídico é aquela que se relaciona com planos de ação para um futuro melhor, como, por exemplo, a dissolução de problemas práticos surgidos na vida.

3. O STF delimita um conceito essencial de liberdade de expressão e as possíveis limitações ao seu exercício 3.1 A configuração constitucional da liberdade de expressão e imprensa Na Constituição Federal de 1988, o direito à liberdade de expressão encontra-se regulado no artigo 5º, inciso IV, da seguinte maneira: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, bem como no inciso IX do mesmo artigo, segundo o qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou 22 PT

Ibid.

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Políticas. Utilizou-se o termo em inglês policies por estar fazendo referência ao pensamento dos autores norteamericanos. TP

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SILVEIRA, Lauro Frederico B. da. MARTINEZ, Vinício C. Veredas do Direito “Path of the law” – do juiz Oliver Wendell Holmes Jr. Revista Discurso Jurídico Campo Mourão. v. 4, n.1, p. 266-280, jan.-jul.2008. Disponível em . Acesso em 23 out. 2011. TP

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CARDOZO, Benjamin. Evolução do Direito. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 75.

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licença” e também no inciso XIV do mesmo artigo, no qual “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”26. TP

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A comunicação social, por sua vez, possui previsão específica na Constituição Federal de 1988, no Capítulo V, Título VIII, intitulado “Da comunicação social” (arts. 220 a 224). Logo em princípio, o artigo 220 dispõe que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. Além disso, os parágrafos §1º e 2º do mesmo artigo esclarecem que “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, e que “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”. Os demais incisos do artigo 220, bem como os artigos 221 a 224, dedicam-se a regulamentar os meios de comunicação27. TP

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Assim, diante da amplitude do conceito e de seu caráter principiológico, o direito à livre expressão necessitará de uma interpretação constitucional clara e de uma análise de seus mais diversos âmbitos de aplicação, bem como das possíveis restrições que poderá sofrer em caso de colisão com outros direitos, para que haja, ao fim, a delimitação do conteúdo essencial do direito a ser preservado no caso concreto. Assim, vejamos.

3.2 A proteção ao Núcleo Essencial do Direito e as restrições ao seu exercício na Análise dos Julgados do STF Ao se utilizar o Pragmatismo Jurídico como ponto de partida, analisando os mais diversos âmbitos de aplicação do direito à liberdade de expressão e imprensa, pode-se, ao fim, encontrar seu significado. Não um significado imutável, mas um significado que decorre de cada uma de suas aplicações práticas, a depender das especificidades que se encontram envolvidas. Para este artigo, seis casos foram analisados. Seis conclusões fizeram-se presentes. No primeiro caso analisado, “Caso Gerald Thomas”28, a decisão do Supremo Tribunal TP

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Federal, no sentido de assegurar à expressão corporal, desde que compreendida como forma de manifestação do pensamento, a mesma proteção destinada à expressão falada ou escrita, abriu um precedente e passou a ser um parâmetro à matéria, já que não existia previsão específica na Constituição e nem na legislação ordinária. Restou demonstrada, assim, a importância dos

26 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Coleção Saraiva de Legislação. São Paulo: Saraiva, 2010. TP

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Coleção Saraiva de Legislação. São Paulo: Saraiva, 2010. TP

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BRASIL, HC 83.996-7/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 26/08/2005. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2011. PT

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Tribunais na concretização dos direitos. A análise do caso permitiu, ainda, que se visualizasse um claro exemplo de compreensão do contexto como base para a formulação da decisão final. No segundo caso posto à análise, “Caso da Lei de Imprensa”29, o Supremo Tribunal TP

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Federal deixou consignado o entendimento, segundo o qual a liberdade de expressão, aqui incluída a liberdade de imprensa, somente poderá ser restringida pela lei em hipóteses excepcionais, afastando-se completamente a possibilidade de qualquer tipo de censura prévia. Dentre as várias discussões que se fizeram presentes neste julgamento, faz-se imperioso destacar a calibração de princípios presente no voto do Ministro Carlos Britto. Por meio desta, assegura-se, primeiramente, o gozo da plena e livre manifestação do pensamento para, somente depois, responsabilizar o eventual desrespeito a direitos personalíssimos de outrem. Essa ponderação, trazida pelo relator, revela-se um interessante mecanismo de solução de litígios, já que segue a lógica da previsão constitucional, na qual se protege o pleno exercício da liberdade de expressão e, em caso de seu abuso, (ou seja, a posteriori), arbitra a devida responsabilização. Com base neste mecanismo, explica o referido ministro que as relações de imprensa, por se anteciparem no tempo às relações de intimidade, vida privada, imagem e honra, prevaleceriam como superiores bens jurídicos, sobrevindo as segundas apenas posteriormente, sob a forma de eventual responsabilização ou consequência do pleno exercício das primeiras30. Isso porque, por TP

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óbvio, para que uma determinada matéria jornalística venha a causar qualquer dano à imagem, à honra, ou ainda viole a intimidade ou vida privada de alguém, primeiramente a aludida matéria tem que existir. Dessa maneira, a proteção aos direitos de personalidade (honra, imagem, intimidade, etc.) estaria sempre em um plano a posteriori em relação à proteção à liberdade de expressão e imprensa.

E se assim não fosse, e se admitisse, por exemplo, uma restrição antecipada à

atividade jornalística como meio idôneo para que um dano nem venha a existir, estar-se-ia legitimando a censura prévia, que é totalmente rechaçada pela atual ordem constitucional. Ademais, na análise da decisão, verifica-se uma latente preocupação dos ministros com as repercussões e as consequências que essa poderá gerar, adequando-se, aqui, ao postulado pragmático que defende a importância do sopesar das consequências, na hora da decisão do julgador. Na terceira decisão foco do trabalho, “Caso do Diploma para Jornalista31”, o Min. Gilmar TP

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Mendes chamou atenção para a necessidade de se proteger o núcleo essencial da liberdade de

29 BRASIL, STF – ADPF n.º 130/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, DJe n.º 208, 30/04/2009, p.001. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2010. TP

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30

BRASIL, STF – ADPF n.º 130/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, DJe n.º 208, 30/04/2009, p.001. Disponível em: . Acesso em: 31 out. 2010. TP

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31

BRASIL, STF – RE n.º 511.961/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n.º 213, 13/11/2009, p.692. Disponível em ; Acesso em: 31 out.2011. PT

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expressão, quando de sua ponderação face às leis restritivas. Por meio desta constatação, traz-se à baila um princípio a servir de referência na interpretação do direito à livre expressão, qual seja, o princípio da proteção ao núcleo essencial. E é partindo desse parâmetro que Gilmar Mendes entendeu que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei nº. 972/1969 (que exige o diploma para jornalista), constitui restrição desproporcional, resultando em um controle no acesso ao exercício do jornalismo, o que configura violação ao núcleo essencial da liberdade de expressão. Com isso, traçou-se um referencial para compreensão do que se deve enquadrar como censura prévia das liberdades de expressão e informação. Esta, então, passou a ser entendida como qualquer controle no acesso à atividade jornalística ou à livre expressão. Esclareceu ainda o Ministro Gilmar Mendes que “[...] as violações à honra, à intimidade, à imagem ou a outros direitos da personalidade não constituem riscos inerentes ao exercício do jornalismo; são, antes, o resultado do exercício abusivo e antiético dessa profissão”32 . TP

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Ao fim, destaca-se, também, a vedação do controle estatal sobre a profissão de jornalista, em decorrência de sua intrínseca relação com o pleno exercício da livre manifestação do pensamento. Tais conceitos são extremamente importantes para a compreensão e estudo do direito que aqui se analisa, já que mostram, efetivamente, como o direito é e como deve ser entendido na realidade, destacando os “núcleos” que não poderão ser atingidos por outros direitos, sob pena de esvaziamento do conteúdo de um direito constitucional. Dessa forma, em caso de conflito de direitos, especialmente se se trata de direitos fundamentais, não se pode simplesmente escolher a proteção de um direito, excluindo a garantia de outro. Há que se buscarem soluções que conciliem tais direitos, de modo a preservar sempre o núcleo essencial de cada um deles. O quarto caso analisado, “Caso Ellwanger33”, revelou-se um paradigma para situações TP

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semelhantes, já que inexiste no ordenamento jurídico brasileiro lei específica proibindo o discurso do ódio. Sendo assim, a decisão do STF de que a edição e publicação de obras escritas veiculando ideias antissemitas, consubstanciadas na desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação à discriminação com acentuado conteúdo racista acabou por delimitar um possível tratamento a ser dado à matéria. Na análise da decisão, observou-se, ainda, que o princípio da proporcionalidade “em si” não é capaz de solucionar o caso concreto, tendo em vista a amplitude e a carga de abstração de seu conceito. Além disso, verificou-se, no caso, que o referido princípio foi utilizado para 32

BRASIL, STF – RE n.º 511.961/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n.º 213, 13/11/2009, p.692. Disponível em ; Acesso em: 31 out.2011, p. 756.

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33 PT

BRASIL, STF – HC n.º82.424-2/RS, Tribunal Pleno, Rel.Min. Moreira Alves, DJ 19.03.2004, p. 00524.

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fundamentar decisões em sentidos completamente opostos. Daí a crítica do pragmatismo jurídico às decisões fundamentadas apenas em argumentações principiológicas. Propõe-se, assim, sua utilização como parâmetro a ser observado a partir de usos em casos anteriores semelhantes. Sobre o tema, deve ser ressaltada, também, a importância de uma demonstração clara da possibilidade de o discurso provocar danos concretos, sob pena de se justificarem em direitos amplos e abstratos, dotados de forte subjetivismo, a censura e restrição do pleno exercício da livre expressão. No quinto caso, “Caso Garotinho34”, viu-se um exemplo de colisão complexa de direitos, TP

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em que se fez imperiosa, entre outras coisas, uma ponderação do interesse público, que envolvia as gravações telefônicas, com o direito à intimidade, honra e vida privada do político; e ainda com o direito ao sigilo das comunicações. O mais interessante, contudo, foi observar os distintos fundamentos argumentativos utilizados pelos ministros do STF para resolução do conflito de direitos. De um lado, verificou-se uma argumentação baseada nos fundamentos e princípios constitucionais, que defendeu a preponderância da liberdade de expressão, justificando-se ainda no interesse público. O que, ressalte-se, guarda coerência com as demais decisões analisadas. E, por outro lado, a argumentação vencedora fez preponderar a legislação ordinária específica, pela qual não se admite prova ilícita. De acordo com essa linha argumentativa, a ilicitude da prova contaminaria a divulgação, não sendo, por isso, aceitável sua veiculação pela empresa de comunicação. Ao fim, a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal entendeu que se tratava de um controle de legalidade dos órgãos midiáticos, não havendo qualquer tipo de censura ou privação do direito de informação. No entanto, essa posição é criticável. Ao se analisar detalhadamente o caso, pode-se verificar que há uma lacuna na lei (que não regula a divulgação de provas ilícitas pela imprensa em caso de preponderante interesse público) e, sendo assim, caberia, prioritariamente, aos Ministros do Supremo, como legítimos guardiões da Constituição, encontrar nesta fundamentos para o deslinde específico do caso, que serviria, inclusive, de parâmetro para situações semelhantes. Por sua vez, o sexto caso, “Caso Ricardo Teixeira35”, revela um entendimento pacífico do TP

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Supremo Tribunal Federal no sentido de que o exercício regular do direito de crítica configura uma 34

BRASIL, STF – Medida Cautelar em Petição n.º 2.702-7/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J. 19.09.2003, p. 808-834. TP

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BRASIL, STF – Medida Cautelar em Petição n.º 2.702-7/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J. 19.09.2003, p.831. TP

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extensão do direito à livre manifestação do pensamento, recebendo, portanto, a mesma proteção. Ademais, resta claro na decisão que a crítica dirigida a pessoas públicas ou notórias é excludente do intuito doloso de ofender. Como visto, a cada caso analisado uma nova dimensão da liberdade de expressão fez-se presente. Trata-se de um estudo contínuo, em que cada novo contexto analisado agrega mais significado ao direito que, com isso, se aperfeiçoa para a tentativa de solucionar novos problemas jurídicos. Dessa forma, passa-se a compreender o direito como uma realidade que se pauta na história da emergência e transformação dos conceitos jurídicos, assim como propunha o método pragmático.

4. O Tribunal de Justiça de Alagoas e os limites à atividade noticiosa em caso de colisão de direitos 4.1 A proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais para a não inviabilização da atividade noticiosa O Tribunal de Justiça representa o Pretório Recursal de cada Estado da Federação, concebendo a imagem e características peculiares de cada um deles. Foi nesse sentido que se buscou, através de pesquisas e análises de seus acórdãos, averiguar o posicionamento e fundamentação do TJ de Alagoas, bem como a aplicabilidade do método pragmático, no que concerne aos direitos de personalidade e liberdade de expressão e imprensa. Assim, ganha destaque na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Alagoas a utilização do argumento intitulado de “juízo de ponderação”, lastreado pelo princípio da proporcionalidade, no intuito de analisar qual direito fundamental deveria prevalecer no caso concreto, o da preservação da honra e da boa imagem (CF, art. 5º, inciso X) ou os direitos de informação (CF, art. 5º, inciso IX) e de liberdade de imprensa (CF, art. 222, inciso IX). Nesse sentido, a liberdade de expressão consiste no direito de expor livremente suas ideias, respeitada a inviolabilidade da privacidade de outrem, enquanto o direito à informação, por sua vez, representa o direito de informar e de receber livremente informações sobre dados objetivamente apurados, desde que comprometidos com a verdade e com a imparcialidade36, TP

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sendo vedado à imprensa o papel de pré-julgador, que condena perante a opinião pública, sem T

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que os próprios órgãos apuradores tenham emitido qualquer opinião anterior sobre a temática. 37 T

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CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 109.

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FERNANDES, Isabelle de Carvalho. O papel da imprensa na divulgação da crise política e a responsabilidade civil por danos aos direitos da personalidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 751, 25 jul. 2005. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2010. TP

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Analisando acórdão38 que julgava ação de danos morais em razão de acusações sobre TP

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operações “supostamente ilícitas” de secretário estadual, o TJ/AL entendeu que o apelante – no caso, a empresa jornalística – havia publicado denúncias contra o apelado sem o mínimo de sustentação material, indicação de dados, elementos probatórios ou mesmo oportunizando defesa ao “acusado”, que sequer teria sido ouvido antes da divulgação da matéria, para justificar a divulgação das informações claramente ofensivas. Nesse sentido, cabe colacionar interessante trecho da decisão analisada: Dessa forma, não reputo razoável, ou sequer lícito, que um veículo de informação que possui, ou deveria possuir, uma ampla visão dos fatos que irá noticiar, selecione o que vai divulgar, omitindo informações ou redigindo o texto com linguagem indireta e até com certo grau de ironia, tudo para dar contornos de escândalo ao que se está divulgando.

Em verdade, esse mesmo julgado39 consegue trazer preceito e fundamentação TP

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diferenciada ao determinar como medida para um jornalismo legítimo a oitiva do acusado em reportagem, haja vista essa ser sabedora da grande repercussão que possuem determinadas matérias jornalísticas, mormente quando se trata de atitudes e posicionamentos que envolvam o erário e a probidade administrativa, uma vez que há um interesse maior da sociedade em saber detalhes de como está sendo utilizado (ou desviado) o dinheiro público. De outra via, em decisão40 acerca da controvérsia específica entre os direitos TP

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fundamentais postos em discussão, o qual tratava da exibição, por uma empresa de comunicação, da confusão instalada na frente da loja de propriedade de um dos recorridos, pela tentativa de uma senhora de tirar uma fotografia de peças de roupas na vitrine da loja sem permissão. No caso em perspectiva, o Tribunal buscou se basear no argumento de que o problema ocorrido na loja era uma situação corriqueira, de modo a ser legítima a vontade de se evitar que o caso ganhasse tamanhas proporções, de maneira que era dever do veículo de comunicação proceder a juízo prévio acerca do conteúdo da matéria, conduta esta que, ao ver do Desembargador, deve anteceder a publicação e a veiculação de qualquer reportagem. Todavia, tal posição não parece ser a mais coerente, haja vista que exigir um juízo prévio acerca do conteúdo da matéria, tal como propôs o Desembargador alagoano no caso em análise, inviabiliza o exercício do trabalho noticioso, esvaziando o direito à liberdade de expressão e imprensa de seu mais íntimo âmbito de proteção – núcleo essencial, ressaltando que o “[...]

38

Apelação Cível N.º 2009.004259-3, Origem: Maceió/12ª Vara Cível da Capital, Relator: Des. Tutmés Airan de Albuquerque Melo, 15 de dezembro de 2010.

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39 PT

Idem.

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APELAÇÃO CÍVEL Nº 2006.001433-7. Desembargador Presidente/Relator Estácio Luiz Gama de Lima. Julgamento: 4 de novembro de 2010. TP

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jornalista não merecerá censura se buscou noticiar, diligentemente, os fatos por ele diretamente percebidos ou a ele narrados, com a aparência de verdadeiros, dadas as circunstâncias”

41 TP

. PT

4.2 A verdade como limite à liberdade de expressão: causa excludente de responsabilidade Em que pese alguns doutrinadores assumirem posição distinta42, grande parte da doutrina TP

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afirma que a VERDADE seria o próprio limite da liberdade de expressão, em razão de que a publicação de fato prejudicial a alguém gera o dever de indenizar, porém sua conduta fica resguardada com a devida comprovação da ‘acusação’ feita, ou seja, admite-se a prova da verdade como um fator excludente da responsabilidade43. Isso representa o dever de cautela do TP

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comunicador, mas não pode ser levado a extremos, em vista da possibilidade de se inviabilizar o próprio trabalho do jornalista. Todavia, em interessante acórdão do TJ/AL44, o qual discorria sobre acusações em TP

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empresa jornalística a ex-presidente do Tribunal de Justiça de Alagoas acerca de seu vasto patrimônio, ratificou o Pretório a posição de 1º grau pela existência de verdadeiro abuso no direito constitucional de Liberdade de Imprensa, chegando a afirmar que, ainda que a notícia tivesse sido verdadeira, presente estaria o dano moral em razão da maneira como tal informação fora noticiada, ao ferir a honra e imagem do apelado – verdadeira matéria difamante –, que levou à responsabilidade por danos morais da empresa jornalística e seu administrador. Tal posicionamento, em verdade, revela a supervalorização da ‘forma e da linguagem’ utilizada no momento de veiculação da notícia e sendo determinante para o Tribunal para responsabilização do agente. Por mais que se respeite tal tese, evidente que a verdade deve ser instrumento de legitimação da atividade noticiosa e capaz de excluir sua responsabilidade, inclusive no intuito de diferenciar o jornalismo comprometido do abusivo (expressado por meio de notícias falaciosas e inverídicas, refletindo em calúnia, injúria e difamação45). TP

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41

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p.463.

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NICOLODI, Ana Marina. O exercício regular do direito de informar como causa excludente de ilicitude na atividade jornalística. Revista Jus Vigilantibus. 4 out.2007.Disponível em:http://jusvi.com/artigos/28835. Acesso em: 12 mar. 2011 TP

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MENDES, Gilmar Ferreira. Idem. p.371.

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APELAÇÃO CÍVEL N.º 2009.002234-0. Maceió/7ª Vara Cível da Capital. Relator: Juiz Conv. José Cícero Alves da Silva. Julgamento: 30 de setembro de 2010.

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45 Nesse sentido, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do STJ (REsp 164.121/RJ, RSTJ, 128/372) afirma : “[...] a imprensa não pode destruir impunemente as reputações alheias, sem o mínimo de cuidado de aferir a veracidade das notícias [...]”. TP

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4.3 Proposições gerais utilizadas como justificativa para a resolução do caso concreto De outra via, a pesquisa também ressalta o entendimento pragmático, ao estudar uma de suas mais célebres frases: “Proposições gerais não decidem casos concretos”

46 TP

, em que Holmes PT

vem afirmar a imagem de que o direito não é lógica, é experiência. Para o teórico, até cachorros sabem a diferença entre tropeçar e levar um chute47, passagem essa desconcertante, que revela TP

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simplicidade provocante . Em síntese: TP

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A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas que prevalecem, as intuições das políticas públicas, claras ou inconscientes, e até mesmo os preconceitos com os quais os juízes julgam, têm importância muito maior do que silogismos na determinação das regras pelas quais os homens devem ser governados. O direito incorpora a história do desenvolvimento de uma nação através dos séculos e não pode ser tratado como se compreendesse tão somente axiomas e corolários de livros de matemática. De modo a se saber o que é o direito, deve se saber o que ele tem sido e qual a tendência que há de se transformar. Deve se consultar alternativamente a história e as teorias jurídicas existentes49. T

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É sobre esse conhecimento que também se buscou analisar os julgados colacionados. Isto é, perquiriu-se averiguar se as proposições gerais estavam sendo utilizadas para justificar os casos concretos, ou se elas apenas o descreviam como esclarecia Holmes. Nesse sentido, aparentava, por vezes, que os julgadores estaduais apresentavam e descreviam conceitos e entendimentos já consolidados, baseados em princípios e alegações vazias, como o do juízo de ponderação, fugindo do ônus argumentativo, haja vista que alguns dos julgados50 analisados utilizavam-se sempre do mesmo argumento de que “[...] Não era a intenção TP

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negar a Liberdade de Expressão e Imprensa, asseguradas constitucionalmente, mas sim contrabalançar os interesses envolvidos, quais sejam: o público e o privado”, após a exaustiva conceituação dos direitos supramencionados51. TP

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Em verdade, as proposições gerais apenas servem para descrever o caso, mas não para ser a base de suas justificativas, por que tal argumento seria eminentemente lógico, além de que

46 PT

HOLMES JR., Oliver Wendell. The Essential Holmes. Chicago: Chicago University Press, 1992., p.306.

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HOLMES JR., Oliver Wendell. The Common Law. New York: Dover, 1991, p.2

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48

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O realismo jurídico em Oliver Wendell Holmes Jr.. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1494, 4 ago. 2007. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2011. TP

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HOLMES JR., Oliver Wendell. The Common Law. New York: Dover, 1991. p.1

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APELAÇÃO CÍVEL Nº 2006.001433-7. e APELAÇÃO CÍVEL N.º 2009.002234-0.

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Calha destacar passagem do acórdão da Apelação Cível Nº 2006.001433-751, no qual o julgador apresenta como necessário o emprego da técnica da ponderação, ínsita ao princípio da proporcionalidade, já que existente uma colisão de direitos fundamentais, afirmando: “[..] faz-se relevante sopesar os dois bens juridicamente tutelados, no caso, a liberdade de imprensa e a inviolabilidade da intimidade, cabendo a imposição do dever de indenizar na hipótese de o último ser indevidamente atingido [...]”. TP

51

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a técnica da ponderação não pode servir de instrumento de relativização da liberdade de expressão52. TP

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4.4 Interesse público pela divulgação da matéria jornalística: legítimo animus narrandi. Vale lembrar que o Tribunal de Justiça de Alagoas, em diferentes acórdãos analisados53, TP

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fundamentou coerentemente o mérito das causas, por meio de precedentes e observância das peculiaridades do caso concreto, adotando o método proposto pelo pragmatismo. Nesse sentido, é válido mencionar caso em que o Tribunal, reformando a sentença de 1º grau, asseverou que a empresa jornalística na demanda em análise54 simplesmente promoveu a TP

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narração de denúncia feita por uma juíza, momento no qual teria a magistrada acusado o apelado (à época, Procurador Geral de Justiça de Alagoas) de um possível envolvimento numa rede de prostituição infantil. No voto, destacou-se que, mesmo que a entrevista tratasse de um assunto delicado, não conteria a matéria expressão agressiva ou exagerada para macular a honra do recorrido, demonstrando apenas o animus narrandi, substanciado nas declarações da magistrada. Pelo fato de ser um agente público, pago pelo Estado no interesse da sociedade, é legítima a existência de maior fiscalização sobre suas atividades, utilizando-se, inclusive, da imprensa para tanto. É o que Sérgio Cavalieri55 define como “redução espontânea dos limites de privacidade” no que concerne TP

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a agentes públicos, artistas e pessoas de alta notoriedade. O próprio Tribunal de Justiça de Alagoas determina que, a partir da leitura do art.5º, XIV, da CRFB, a imprensa tem o direito de informar, bem como a sociedade de ser informada sobre assuntos do interesse público. Com efeito, a orientação da jurisprudência é no sentido de que a empresa jornalística ou a mídia não assumam a responsabilidade de indenizar por publicar reportagem manifestamente relevante, seja em relação a autoridades públicas, seja no tocante a empresas ou entidades privadas, quando presente o interesse social, o qual era evidente no caso em comento.

5. Conclusão Não há nenhuma dificuldade em se concluir, ante a relevância do direito à liberdade de expressão e imprensa, pela necessidade de uma ampla proteção estatal ao instituto. Isso porque 52

Cf. BRASIL: RECURSO EXTRAORDINÁRIO 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes. Julgamento: 17 de Junho de 2009. TP

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53

Apelação Cível N.º 2009.004259-3, Origem: Maceió/12ª Vara Cível da Capital, Relator: Des. Tutmés Airan de Albuquerque Melo, 15 de dezembro de 2010./ APELAÇÃO CÍVEL N° 2007.002726-5, Órgão:3ª Câmara Cível, Desa. Nelma Torres Padilha, 14 de março de 2011.

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54

APELAÇÃO CÍVEL Nº2005. 001296-9. Des. Mario Casado Ramalho (Presidente), Des. Antônio Sapucaia da Silva ( Relator). Julgamento: 19 de setembro de 2005. TP

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55

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.110. PT

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se trata de uma premissa que já se encontra consagrada nas mais diversas Constituições democráticas, entre elas a atual Constituição brasileira. Por outro lado, como visto, o conteúdo e abrangência desse direito não se fazem pacíficos nem na doutrina, tampouco na jurisprudência. Inúmeras e variadas são suas aplicações práticas e suas possíveis interpretações, especialmente no que concerne ao seu âmbito de proteção e às possibilidades de restrição ao seu exercício. Dessa forma, a busca por um conceito absoluto de liberdade de expressão e imprensa revela-se uma tarefa árdua, podendo, inclusive, levar a resultados imprecisos e problemáticos, em razão da abstração que envolve o instituto. Nesse contexto, o artigo apresenta o Pragmatismo como um método útil a essa busca, não da essência de seu conceito, mas da realidade de sua aplicação. Deve-se ressaltar, aqui, que conceitos “em si” não são capazes de resolver problemas concretos. As proposições gerais serviriam, então, apenas para descrever o caso, mas não para ser a base de suas justificativas, pois, neste caso, tal argumento seria eminentemente lógico. Sobre o tema, observou-se uma nítida distinção na forma de fundamentação jurídica dos dois Tribunais postos em análise. Por um lado, verificou-se que, por vezes, os julgadores do Tribunal de Justiça de Alagoas apresentavam e descreviam conceitos e entendimentos já consolidados, baseados em princípios e alegações vazias, como o do juízo de ponderação, para sustentar suas decisões, fugindo do ônus argumentativo, e supervalorizando a forma e a linguagem; diferentemente do Supremo Tribunal Federal que, ao contrário, assumia uma postura mais retilínea e lógica em suas argumentações. Assim, muito embora se tenha observado que o Tribunal alagoano fez uso de precedentes em todos os acórdãos analisados, ficou latente uma grande discrepância entre as interpretações deste e as do STF quanto à abrangência da proteção à liberdade de expressão e imprensa e a forma de utilização do mecanismo de ponderação de direitos. Ao fim, esta conclusão atenta para a necessidade de uma maior coerência entre as decisões dos Tribunais, especialmente no que se refere à observância do entendimento de nosso Tribunal Superior. Isso porque não se chegaria a um grau maior de justiça das decisões se, diante de casos semelhantes, pudesse haver sentenças discrepantes. Dessa forma, a busca pela melhor definição do conteúdo do direito deve dar espaço a uma proposta experimental, que visa atribuir seu significado à realidade de sua aplicação pelos Tribunais. Essa é a visão do pragmatismo jurídico como método.

Referências bibliográficas ALMEIDA, Lívia Lemos Falcão de; BARROS, Caroline Maria Costa. In: Projeto PIBIC 2011/2012 "Interpretação e Aplicação do Direito Fundamental à Liberdade de Expressão e Imprensa: Uma 23

Abordagem Pragmática Comparativa entre o TJ/AL e o STF”, sob a orientação do Professor Adrualdo de Lima Catão. BRASIL: Apelação Cível Nº 2006.001433-7. Desembargador Presidente/Relator Estácio Luiz Gama de Lima. Julgamento: 4 de novembro de 2010. BRASIL: Recurso Extraordinário 511.961 SÃO PAULO. Ministro/Relator: Gilmar Mendes. Julgamento: 17 de Junho de 2009. BRASIL: Apelação Cível N° 2007.002726-5, Órgão: 3ª Câmara Cível, Desembargadora. Nelma Torres Padilha, 14 de março de 2011. BRASIL: Apelação Cível Nº2005. 001296-9. Des. Mario Casado Ramalho (Presidente), Des. Antônio Sapucaia da Silva ( Relator). Julgamento: 19 de setembro de 2005. BRASIL: Apelação Cível N.º 2009.004259-3, Origem: Maceió/12ª Vara Cível da Capital, Relator: Des. Tutmés Airan de Albuquerque Melo, 15 de dezembro de 2010. BRASIL: Apelação Cível N.º 2009.002234-0. Maceió/7ª Vara Cível da Capital. Relator: Juiz Conv. José Cícero Alves da Silva. Julgamento: 30 de setembro de 2010. BRASIL: REsp 164.121/RJ, RSTJ, 128/372. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Coleção Saraiva de Legislação. São Paulo: Saraiva, 2010. BRASIL, STF – ADPF n.º 130/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, DJe n.º 208, 30/04/2009, p.001. Disponível em: ; Acesso em: 31 out. 2010. BRASIL, STF - AG. REG. no AI n,º 675276/ RJ, 2ª Turma, Rel. Celso de Mello. Dje n.º 71, 14/04/2011. BRASIL, STF – HC n.º82.424-2/RS, Tribunal Pleno, Rel.Min. Moreira Alves, DJ 19.03.2004, p. 00524. BRASIL, STF -

HC 83.996-7/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 26/08/2005. Disponível em:

; Acesso em: 10 ago. 2011. TU

UT

BRASIL, STF – RE n.º 511.961/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe n.º 213, 13/11/2009, p. 00692. Disponível em ; Acesso em: 31 out.2011. BRASIL, STF – Medida Cautelar em Petição n.º 2.702-7/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J. 19.09.2003, p.831. CARDOZO, Benjamim. A natureza do processo judicial: palestras da universidade de Yale. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2008. FISHER, William; HORWITZ, Morton; REED, Thomas (edt.). American Legal realism. New York: Oxford University Press, 1993. FREITAS, Lorena. O elemento subconsciente na decisão judicial conforme o realismo jurídico de Benjamin Nathan Cardozo. In: FEITOSA, Enoque et al.

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24

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4,

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2007,

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10-19.

Disponível

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UT

Acesso em 23 out. 2011.

25

A atuação do poder judiciário na efetivação das normas constitucionais: a implementação de políticas públicas de educação básica como direito fundamental Cicero Alberto Mendes Ferreira1 TP

PT

Resumo

Abstract

O desiderato precípuo do Direito é a solução de conflitos, visando, através da prestação jurisdicional, adequar o direito positivo às necessidades do tecido social. Para se alcançar tal objetivo é fundamental, sob o paradigma de garantia dos direitos fundamentais, a disposição prestacional estatal. Sob este prisma, é de vital importância uma análise acerca da questão educacional, como direito fundamental social, no Brasil, observando-se a imprescindibilidade do desenvolvimento de políticas públicas que visem à efetivação de tal direito. Percebe-se que apesar de o ordenamento jurídico fazer-se taxativo no que diz respeito às diretrizes definidoras dos parâmetros de prestação em educação, tanto em suas disposições constitucionais quanto nas infraconstitucionais, não raramente a disposição de políticas públicas acerca da matéria é considerada ineficiente. Neste contexto, a Jurisdição Constitucional é acionada, enquanto órgão político, visando à máxima efetivação do direito fundamental social em tela. Observa-se, outrossim, que o discurso empreendido no Supremo Tribunal Federal não se estabelece mediante um raciocínio lógicodedutivo de subsunção direta da norma, mas através de uma construção linguístico-normativa criativa, alheia a valorações morais e visando à adequação social. Destarte, é estabelecido um paradigma discursivo que relativiza a concepção de discurso jurídico escorreito ou racional, aproximando-se de um posicionamento que visa à comensurabilidade entre os discursos político e de garantia dos direitos sociais.

The law is the desideratum preciput conflict resolution, seeking, through adjudication, the positive law suit the needs of the social fabric. To reach this goal is essential, under the paradigm of safeguarding fundamental rights, the provision of state. In this light, it is important to an analysis about the education issue as fundamental social rights in Brazil, noting the crucial development of public policies aimed at the realization of this right. It is noticed that although the legal system to be exhaustive with regard to the guidelines defining parameters to provide education, both in its constitutional and infra, not infrequently the disposition of public policies on the matter is considered inefficient. In this context, the Constitutional Jurisdiction is triggered, as a political body, seeking the maximum realization of the fundamental social right on screen. There is, furthermore, that the discourse undertaken in the Supreme Court not established by a logicaldeductive subsumption of direct rule, but by building a normative language-creative, far from seeking the moral valuations and social adequacy. Thus, it is an established paradigm of discourse which relativizes the concept of legal discourse or rational slimmer, approaching a position which aims to commensurability between political discourse and guarantee of social rights.

Palavras-Chave: Pragmatismo; Racionalidade; Direitos fundamentais; Educação.

Keywords: Pragmatism, Rationality, Fundamental rights, Education.

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Aluno de Graduação da Faculdade de Direito de Alagoas da Universidade Federal de Alagoas. (e-mail: [email protected]). PT

26

1. Introdução O trabalho aqui apresentado tem o desiderato precípuo de empreender uma análise jurisprudencial-pragmática do discurso jurídico empreendido no Supremo Tribunal Federal (STF), no que tange à disposição da conspícua Corte na efetiva atuação em prol da implementação de políticas públicas de educação básica. Neste diapasão, propõem-se uma observação concernente ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal como órgão de ação política, a existência de intervenção do Poder Judiciário no âmbito discricionário dos demais Poderes e os respectivos impactos junto à Administração Pública das medidas judiciais de efetivação imediata do direito fundamental à educação. O trabalho justifica-se mediante a necessidade da comunidade jurídica e da sociedade civil organizada de compreender o posicionamento político, ideológico, jurídico e social do Supremo Tribunal Federal (STF) enquanto garante dos direitos fundamentais e defensor da Constituição, e, sobretudo, instituição responsável pelo estabelecimento dos parâmetros de desenvolvimento da sociedade brasileira em consonância com o direito positivo. Versar-se-á um enfoque jurídico-pragmático, tomando-se como marco teórico os estudos de Oliver Wendell Holmes Jr., adaptados à temática dos direitos fundamentais desenvolvida com arrimo nas teorias de Robert Alexy e Ronald Dworkin. Destarte, aspira-se ao aprofundamento da discussão acadêmica acerca da atuação do Poder Judiciário, especificamente do Supremo Tribunal Federal, como Corte Constitucional e os efeitos jurídicos e políticos provenientes das decisões judiciais prolatadas tendo como objeto a tutela do direto à educação.

2. O modelo constitucional brasileiro e as normas de proteção social 2.1 Introdução O sistema político brasileiro hodierno não se formou e evoluiu para o que o é senão com as influências provenientes desde seus colonizadores até os grandes ícones guias de fatos imprescindíveis à história. Através dos desdobramentos político-econômico-sociais conseguiu-se perceber a relevância da positivação dos direitos fundamentais, inclusive daqueles denominados sociais, como desideratos precípuos da própria nação brasileira. A Constituição Federal (CF) prescreve que a República Federativa do Brasil, [...] constitui-se um Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] II – a cidadania; 27

III – a dignidade da pessoa humana; [...].2 TP

PT

Os objetivos elencados acima constituem mesmo o cerne da organização do Estado brasileiro, de modo que é estabelecido, destarte, um âmbito jurídico-constitucional que visa à efetivação dos direitos à cidadania e à dignidade como garantias fundamentais e inalienáveis, tendo o Estado, sob esse prisma, o dever de desenvolver políticas públicas que contemplem tais garantias. É possível distinguir, a partir da prescrição constitucional mencionada, um plexo de garantias fundamentais formais e materiais que incorpora diversas dimensões, dentre as quais aquelas relacionadas aos direitos à liberdade, igualdade e fraternidade3. Assim, os direitos TP

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fundamentais são insculpidos como normas-princípios, mesmo como mandados de otimização4, TP

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que têm como desiderato precípuo a positivação dos direitos à dignidade e à cidadania. Neste contexto, os direitos fundamentais, considerados sob a perspectiva dos direitos à igualdade, transcendem a garantia de defesa das liberdades individuais frente ao Estado e estabelecem função prestacional, impondo ao Poder Público uma atuação positiva visando à supressão das disparidades socioeconômicas existentes no tecido social, de modo a assegurar o mínimo existencial individual, por outras palavras, os direitos sociais. Dentre os direitos de igualdade, por conseguinte, como direitos fundamentais, o paradigma constitucional brasileiro distingue o concernente a Ordem Social, que “[...] tem como base o princípio do trabalho e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” 5. Sob tal rubrica verifica-se o TP

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direito à educação, assegurado na Constituição da República.6 TP

PT

Não obstante a Constituição da República seja peremptória no que tange ao direito à educação, bem como aos demais direitos insertos no arcabouço da ordem Social, sua efetivação está adstrita ao desenvolvimento e implementação de políticas públicas estatais, uma vez que as disposições constitucionais que prescrevem tal direito são normas programáticas ou de eficácia contida7. Sendo assim, não raramente, manifesta-se a inércia do Poder Público em fazer efetiva a TP

PT

prescrição constitucional no que se refere à educação, posição política esta combatida através da via judicial, inclusive mediante interposição de mediadas de controle de constitucionalidade. 2 PT

BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.1º incs. II e III.

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3 PT

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador: JusPODIVM Renovar, 2010. p. 542.

TP

4

ALEXY, Robert. Teoria de los Derchos Fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 81 e ss.

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PT

5 PT

BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art. 193.

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6

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art. 205. TP

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7 PT

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

28

2.2 Os direitos sociais como direitos fundamentais Valendo-se da concepção de bem-estar social, abre-se caminho para uma reflexão acerca da dignidade da pessoa humana e da cidadania no Estado brasileiro. É irrefutável que cidadania e dignidade são concepções que só se fazem reais em um cenário de respeito e, acima de tudo, justiça social, “seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade” TP

8

. Neste contexto, os direitos sociais estabelecem-se como PT

garantias potestativas do indivíduo à prestação estatal, através do desenvolvimento de políticas públicas visando ao reconhecimento do cidadão e à efetivação da liberdade enquanto direito fundamental. Os direitos fundamentais nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanhava inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências; ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitação do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor. Às primeiras, correspondem os direitos de liberdade, ou um não agir do Estado; aos segundos, os direitos sociais, ou uma ação positiva do Estado.9 TP

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Verifica-se, assim, que os direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais, imprescindem de prestação estatal, por outras palavras, incumbe ao poder público, segundo o disposto constitucionalmente, dispor políticas públicas destinadas a assegurar a dignidade da pessoa humana através do acesso aos serviços públicos essenciais. A prestação estatal, neste contexto, é empreendida mesmo como meio de expressão da liberdade (jurídica), que se materializa através da efetiva participação de seus titulares na fruição dos bens sociais (educação, saúde, seguridade social, etc.), de modo que os direitos sociais têm por escopo a garantia desses bens materiais.10 TP

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É inequívoca, portanto, a comensurabilidade do discurso que desfralda os direitos sociais com o fundamento constitucional basilar da dignidade da pessoa humana, no sentido de que aquele se inclina a um facere destinado a assegurar o mínimo existencial individual através da intervenção do aparato burocrático estatal, num contexto que se convencionou denominar estado

8

BARROSO, Luis Roberto. "Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (pósmodernidade, teoria crítica e pós-positivismo)". In: BARROSO, Luis Roberto (org.). A Nova Interpretação Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. 3ª ed. revista. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. TP

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9 TP

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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6.

10

BÖCKENFÖRDE, Ernest-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Tradução de Juan Luis Requejo Pagés e Ignacio Villaverde Menéndez. Baden-baden: NomosVerl.-Ges, 1993. p. 74. TP

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29

de bem-estar-social (welfare state). A Constituição Federal prescreve explicitamente, a garantia dos direitos sociais, visando à justiça social através do estado de bem-estar-social.11 TP

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2.3 Os direitos sociais como normas-princípios Considerando-se que o objeto da ciência do direito é a norma jurídica12, é mister esclarecer TP

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a dimensão de seu estudo, há de verificar-se que o gênero norma jurídica compreende regras e princípios, de modo que estes não se constituem meios de preenchimento de lacunas do ordenamento jurídico ou instrumentos hermenêuticos, mas normas jurídicas, distintas apenas pela espécie, das regras jurídicas, subsidiados, não obstante, pelos mesmos fundamentos científicos.13 TP

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Visando à caracterização dos princípios como normas jurídicas, é possível distinguir que se consideram normas aqueles que são suas fontes, de tal sorte que também o serão, e ainda, a função dos princípios é a mesma de todas as normas, regular condutas. 14 TP

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Caracterizados princípios e regras como espécies de normas jurídicas, é relevante elucidar que se constituem instrumentos normativos de naturezas jurídicas distintas, o ponto decisivo para a distinção [...] reside em que os princípios são normas ordenadoras de que algo se realize na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimização, caracterizados pelo fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus, e a medida de seu cumprimento não depende apenas das possibilidades reais, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito dessas possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. As regras, ao contrário, só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então há de se fazer exatamente o que ela exige, nem mais, nem menos. Por conseguinte, as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra ou é um princípio.15 TP

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A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, estão ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.16 TP

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11 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.6º. TP

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12

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 50. TP

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13 PT

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina,1997. p. 1086.

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14

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. p. 159. TP

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15

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 86-87. TP

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16

DWORKIN, Ronald. Levabdo os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 39. PT

30

Outrossim, tem-se a distinção entre princípios e regras sob o paradigma qualitativo (princípios – mandados de otimização; regras – instrumentos normativos válidos ou inválidos, no sentido de tudo ou nada no que diz respeito à aplicabilidade), afastando-se distinções de grau. Os direitos sociais, enquanto direitos fundamentais, através da norma proveniente da interpretação do § 1º do Art. 5º da Constituição Federal17 têm aplicabilidade imediata, que tomada TP

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como mandado de otimização – norma jurídica cogente que prescreve máxima efetivação através de uma prestação, na situação em tela, pelo Estado, enquanto garante dos direitos fundamentais –, caracteriza os direitos sociais como princípios jurídicos integrantes do ordenamento jurídico brasileiro18, tendo seu cumprimento mesmo como um desiderato jurídico-constitucional, não TP

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estando submetidos exclusivamente a condições reais.19 TP

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2.4 A educação como um direito fundamental O direito à educação está previsto no Art. 6º da Constituição Federal20 como um direito TP

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fundamental e minudenciado no Título VIII – Da Ordem Social, Arts. 205 a 214 –, considerando-se a imediatidade dos direitos fundamentais, nos moldes discutidos na seção precedente, caracteriza-se mesmo como um princípio constitucional. Outrossim, a educação distingue-se como um direito social, estabelecendo-se como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto meio idôneo de desenvolvimento pessoal e instrumento de preparo para o exercício da cidadania e qualificação profissional, de tal sorte que se estabelece como garantia fundamental que se espraia a todo o tecido social, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração de toda a sociedade e prestada pelo Estado.21 TP

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É mister destacar que a educação não integra o plexo normativo brasileiro disciplinada por meio de normas programáticas22, tendo seus parâmetros de prestação mínima e real efetivação TP

17

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“Art. 5º [...]

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§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.5º. 18

CORREIA, Daniel Rosa. A concretização judicial de direitos fundamentais sociais e a proteção do mínimo existencial. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2011.

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19 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. p. 86-87. TP

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20 PT

“Art. 6º São direitos sociais a educação [...].” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.6º.

TP

21

Art. 205. “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.205. TP

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22 Programáticas “[...] são aquelas normas constitucionais através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos TP

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31

estabelecidos taxativamente na Constituição Federal no que diz respeito à educação básica, inclusive no que concerne à obrigatoriedade e gratuidade, constituindo-se direito público subjetivo23. TP

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3. O Supremo Tribunal Federal e a efetivação de políticas públicas de educação básica 3.1 Introdução Não obstante a taxatividade prescrita na Constituição Federal, os meios de acesso e a estrutura prestacional estatal que asseguram o direito fundamental social à educação abalizam-se em políticas públicas disciplinadas através de legislação infraconstitucional e seus parâmetros de aplicabilidade no caso concreto, considerando-se tal garantia um mandado de otimização, por vezes está condicionada ao sopesamento do Poder Judiciário, o que será analisado nos itens subsequentes. Sob o paradigma aqui posto, há de se considerar que o direito fundamental social à educação caracteriza-se um princípio constitucional e sua efetivação um desdobramento de políticas públicas estatais prestacionais, “os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos” 24. TP

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Destarte, enquanto objetivos, as políticas constituem-se diretrizes estabelecidas pelo Poder Público com o desiderato de efetivar o direito fundamental em tela, mas não raramente não atendem à prescrição constitucional de universalização prestacional25, ensanchas à litigiosidade, TP

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que neste contexto tem o fito de coagir a Administração Pública ao desenvolvimento de políticas públicas eficazes, em consonância com o prescrito constitucionalmente. De modo que incumbe ao Poder Judiciário, enquanto garante da Constituição assegurar a efetivação da norma constitucional, que (legislativos, executivos, judiciários e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.” SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.p. 138. 23

“O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando; VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. § 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. § 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente. § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.208. TP

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24

DWORKIN, Ronald. Levabdo os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 141.

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25 PT

BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988, Art.205.

32

dado seu caráter aberto, [...] que demanda [...] uma direta integração com a realidade, a necessidade de sua concretização confere ao Judiciário uma atuação determinante e construtiva, sendo que, em alguns casos, pressupõe-se o desenvolvimento de alguns recursos hermenêuticos e interpretativos que acabam por atribuir à jurisdição um papel valorativo de criação e de especificação [...].26 TP

PT

Tal processo criativo, neste trabalho, será analisado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, e versar-se-á acerca do desenvolvimento do discurso concernente ao direito fundamental social à educação na Corte, sua racionalidade, desdobramentos políticos e limites.

3.2 O desenvolvimento do discurso na corte É relevante destacar, preliminarmente, que não se perfaz incumbência institucional do Poder

Judiciário

formular

nem

tampouco

implementar

políticas

públicas27, TP

PT

atribuição

originariamente dos poderes Executivo e Legislativo, não obstante, destaque-se que não raramente, especialmente no âmbito da jurisdição constitucional, é necessária a atuação criativa por parte do STF voltada à eleição de formas de implementação do direito28, não sob um prisma TP

PT

conceitualista, que pretenda construir um caminho em direção à verdade, no sentido de decisão ‘melhor’ ou ‘escorreita’, mas sob um paradigma que vise o ativismo judicial enquanto instrumento capaz de empreender a concretização dos direitos fundamentais sociais prescritos nas normas constitucionais.29 TP

PT

Tal ativismo se estabelece, nos parâmetros estabelecidos neste trabalho, sob os moldes pragmatistas, que propõem o afastamento do formalismo interpretativo, destacadamente nos casos difíceis, “impondo aos juízes uma responsabilidade de exercício criativo do direito” 30, alheia TP

PT

a quaisquer desdobramentos lógico-dedutivos tradicionais visando à certeza, [...] a linguagem da decisão judicial é principalmente a linguagem da lógica. E o método lógico, assim como a forma, satisfaz aquela necessidade de certeza e de repouso que se encontra em toda mente humana. Mas a certeza geralmente é ilusória, e o repouso não é o destino do homem. Por trás da forma lógica encontrase um juízo a respeito do valor e da importância dos fundamentos legislativos que se encontram em competição, embora seja verdade que tal juízo seja frequentemente inarticulado e inconsciente, embora permaneça sendo a verdadeira raiz e nervo de todo o procedimento. É possível conferir-se forma 26

LEAL, Mônia Clarissa Henning. A jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 1. TP

PT

27 ANDRADE, José Carlos Viera de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coinbra: Almedina, 1987. p. 207. TP

PT

28

LEAL, Mônia Clarissa Henning. A jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 77. TP

PT

29 PT

POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 2.

TP

TP

30 PT

POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 13.

33

lógica a qualquer conclusão. Pode-se sempre implicar uma condição a um contrato. Mas por que implicá-la? Certamente isto é devido a alguma crença assim como a prática da comunidade ou de uma classe, ou é devido a alguma opinião, talvez política. Em suma, devido a alguma atitude sobre uma matéria incapaz de uma medida quantitativa, e, portanto, não capaz de fundar conclusões lógicas exatas. Tais assuntos são, na realidade, campos de batalha onde não há meios para determinações que serão boas para sempre, e nas quais as decisões nada mais poderão fazer do que dar corpo à preferência a certo assunto em um dado tempo e em dado lugar. [...] 31 TP

PT

Dessarte, a atividade jurisdicional, neste contexto, é inevitavelmente normativa, destacadamente quando inexistem referências jurisprudenciais ou clareza normativa – normas não autoexecutáveis ou programáticas.32 Oliver Wendell Holmes Jr. doutrina, no direito americano TP

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do século XX, que a hermenêutica empreendida no âmbito jurisdicional parte da moral estabelecida no tecido social para padrões intersubjetivos de conduta e segurança, desenvolvendo um percurso sob um prisma de ceticismo, que, por fim, caracteriza o afastamento da certeza moral do direito. No que tange especificamente ao direito fundamental social à educação, o STF tem empreendido discurso jurídico voltado à efetivação do direito em tela através de argumentos dogmáticos coadunados ao citado paradigma de segurança, não obstante, com fulcro na Constituição Federal, é empreendido, em diversas oportunidades, discurso eminentemente principiológico, desenvolvendo-se o entendimento de que os instrumentos normativos devem ser interpretados e limitados pelos direitos fundamentais, visando à proteção de seu conteúdo33. TP

PT

Neste contexto, o sopesamento acerca da garantia à prestação social é forçoso, mas deve ter desdobramentos visando à racionalidade da decisão jurídica prolatada,34 afastando a TP

PT

possibilidade de prolação de acórdãos dissonantes na Corte. Neste diapasão, verifiquem-se os acórdãos prolatados no RE 603575 AgR/SC35 e na ADI T

820/RS.

TP

PT

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36 PT

No RE 603575 AgR/SC o Estado de Santa Catarina impugna, mediante agravo, acórdão prolatado em recurso extraordinário contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa 31 HOLMES JR., Oliver Wendell. The Path of the Law. In: POSNER, Richard A.(ed.). The Essential Holmes. Chicago – London: The University of Chicago Press. 1992. p. 160-177. In: SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa Da; MARTINEZ, Vinício C. Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, Campo Mourão, v. 4, n. 1, p. 266 - 280, jan./jul. 2008. p. 272-273. TP

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POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 22.

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LEAL, Mônia Clarissa Henning. A jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teoria constitucionais alemã e norte-americana. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 66. TP

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LEAL, Mônia Clarissa Henning. A jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teoria constitucionais alemã e norte-americana. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007. P. 73. TP

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p. 1127-1139. TP

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 65-94. TP

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Catarina (TJ/SC) que extinguiu Ação Civil Pública com fundamento no Art. 267, IV37 do Código de TP

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Processo Civil (CPC), a referida ação tinha por objeto mediato compelir o Estado-Membro a dispor recursos a serem destinados ao transporte de alunos da rede estadual de ensino no Município de Benedito Novo. O TJ/SC acatou o entendimento de que a disposição de recursos para provimento de transporte escolar é matéria de orçamento público e, por conseguinte, em consonância com a CF, prerrogativa privativa do Poder Executivo do Estado-Membro, sendo sua disposição ato discricionário, não incumbindo aos outros poderes intervir nesta seara. O STF, entretanto, através da Segunda Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, alegando o relator, Ministro Eros Roberto Grau, que “[...] a educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. A omissão administrativa impede que o Poder Público cumpra integralmente o dever a ele imposto pela própria Constituição do Brasil” 38 (grifo original), sob este prisma, fundamentou-se que a educação TP

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básica, enquanto direito fundamental social, está alheia, no que diz respeito a sua efetivação, a juízos de discricionariedade por parte da Administração Pública, de modo que a prescrição do supracitado Art. 208 da CF lhe é vinculante, limitando a discricionariedade político-administrativa dos estes estatais que tem como defesa a adoção de políticas públicas fundamentadas na conveniência ou mera oportunidade no que tange a eficácia do direito social fundamental em tela.39 Destacou-se ainda no acórdão em comento, que embora originariamente seja da TP

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competência dos Poderes Executivo e Legislativo a prerrogativa de formular políticas públicas, o Poder Judiciário, como garante da Constituição, pode, excepcionalmente, dispor acerca de tal matéria, visando à efetivação dos direitos fundamentais. Neste contexto, o STF legitimou a decisão em comento empreendo o discurso de que a educação constitui-se um direito fundamental social inalienável, um princípio constitucional sob o paradigma de mandado de otimização, sendo que a eventual inércia do Poder Publico ou o desenvolvimento de políticas públicas consideradas pela Corte insuficientes, constituem-se afronta à Constituição.40 Sob este entendimento, a Corte Constitucional é o órgão político a quem TP

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incumbe intervir, com o escopo de implementar políticas públicas adequadas ao paradigma constitucional do direito fundamental à educação, uma vez que, no que tange à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais, é inadmissível o argumento de que tais disposições 37 PT

“ Extingue-se o processo, sem resolução de mérito :

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[...] IV - quando se verificar a ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo; [...].”BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de Janeiro de 1973 – Código de processo Civil. Brasília: Senado Federal, 1973. Art.267. 38 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p.1129. TP

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p.1129. TP

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p.1131. TP

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integrem o plexo do arbítrio estatal, havendo, a rigor, limitação da liberdade de amoldamento dos Poderes Legislativo e Executivo, em função da necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da inalienabilidade e integralidade do núcleo definidor do ‘mínimo existencial’ social.41 TP

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Na ADI 820/RS, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul alega a inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado-Membro42 e da Lei Estadual 9.723 de 16 de setembro de TP

1992 TP

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que vinculam o Poder Público a aplicação de 10% (dez por cento) dos recursos destinados

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à educação para manutenção de escolas da rede estadual de ensino. O Pleno do STF, por maioria (vencidos em parte os Ministros Carlos Ayres Britto e Sepúlveda Pertence) acordou pela inconstitucionalidade dos dispositivos em tela, com fundamento na vedação constitucional de vinculação de receitas – ART 167, IV – CF, e a competência privativa do chefe do Poder Executivo quanto á iniciativa da lei orçamentária – ART 165 – CF. O Governo o Estado do Rio Grande do Sul apresentou o argumento de que a disposição contida na Constituição do Estado-Membro constitui flagrante inconstitucionalidade, haja vista que 41

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p.1132. TP

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“Art. 202. O Estado aplicará, no exercício financeiro, no mínimo, trinta e cinco por cento da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino público. [...] § 2º - não menos de dez por cento dos recursos destinados ao ensino previstos neste artigo serão aplicados na manutenção e conservação das escolas públicas estaduais, através de transferências trimestrais de verbas às unidades escolares, de forma a criar condições que garantam o funcionamento normal e um padrão mínimo de qualidade.” ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Constituição. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1989. 43 “Art. 1º - O repasse de verbas parara manutenção e conservação das escolas públicas do Estado do Rio Grande do Sul é regido por esta lei. Parágrafo único – As despesas a que se referem o ‘caput’ deste artigo são destinadas à manutenção e conservação das escolas, aquisição de material de consumo, serviços, encargos e taxas de serviços públicos. Art. 2º - o Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul depositará, trimestralmente, até o dia 10 do mês, em instituição bancária da mesma região administrativa em que se localize a escola, os recursos financeiros para a manutenção e conservação da mesma. § 1º - Os titulares de conta-corrente serão o diretor da escola e um membro designado pelo Conselho Escolar da Instituição. § 2º - Para fazer jus ao repasse automático de verbas, o estabelecimento de ensino deverá contar com o Conselho Escolar em funcionamento. § 3º - O Índice Anual de Participação será fixado a cada mês de março e corresponderá à proporção definida pela relação entre o número total de alunos matriculados na rede pública estadual do estado do Rio Grande do Sul e o número total de alunos matriculados na escola pública que receberá o recurso. § 4º - Às escolas que não tiverem Conselho Escolar em funcionamento será repassado o percentual de 30% da parcela ideal que lhe caberia até o que Conselho Escolar venha a funcionar pelo período de seis meses, findo o qual a escola passará a receber ao repasse conforme o seu Índice Anual de Participação. § 5º - Os recursos de que trata o ‘caput’ terão valor fixado pela relação existente entre os 10% dos recursos destinados ao ensino, conforme o artigo 202, §2º, da Constituição do Estado e o Índice Anual de Participação das Escolas. Art. 3º - O Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul publicará, até o quinto dia útil de cada mês, os totais bruto e líquido dos recursos investidos na manutenção e desenvolvimento do ensino público. Art. 4º - Os recursos serão utilizados em cada estabelecimento de ensino a critério de um Conselho Escolar, devendo ser aplicados em despesas de custeio e, excepcionalmente, com serviços de terceiros, ficando vedada a sua aplicação no pagamento de pessoal. Parágrafo único – As escolas que não aplicarem todas as verbas no período de um ano devolvê-las-ão à Secretaria de Estado da Educação para a constituição de um Fundo Complementar destinado à manutenção das escolas. Art. 5º - A direção e a administração de cada unidade farão a prestação de contas de cada repasse e o balanço anual, que deverá ser aprovado em assembleia da comunidade escolar e enviado ao órgão encarregado do Estado, sob pena de interrupção do repasse de que trata esta lei, no ano seguinte. Parágrafo Único – A prestação de contas das escolas será feita mensalmente ao Conselho Escolar e trimestralmente à Secretaria de Estado da Educação, em balancetes padronizados, que publicará trimestralmente os relatórios parciais sobre a aplicação de verbas. Art. 6º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Art. 7º - Revogam-se as disposições em contrário.” ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Lei 9.723 de 16 de setembro de 1992. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1992. TP

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a vinculação de recursos à manutenção de escolas contraria prescrição constitucional expressa44 TP

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e a Lei impugnada atentaria contra a Carta Magna ao subtrair ao Poder Executivo a prerrogativa de dispor acerca de matéria orçamentária45-46. TP

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A Assembleia Legislativa, de seu turno, alegou

não existirem inconstitucionalidades nos dispositivos em comento, no que concerne ao dispositivo constitucional-estadual, argumenta que o Poder Legislativo estadual é competente para legislar acerca de matéria relacionada à educação, no que tange à Lei Estadual/RS 9.723/1992, alega que se verifica apenas regulação da verba orçamentária pré-existente, não criando despesas não previstas na Lei Orçamentária de iniciativa privativa do Poder Executivo.47 TP

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O relator, Ministro Eros Roberto Grau, apresentou o entendimento de que nos instrumentos normativos impugnados a iniciativa acerca da disposição de recursos públicos, matéria estritamente orçamentária, é transferida do Poder Executivo para o Poder Legislativo e a gestão destes recursos é destinada a entidades não-públicas – Conselhos Escolares –, configurando-se, destarte, vícios formais – de iniciativa – pela subtração de prerrogativa privativa do Poder Executivo.48 TP

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O Ministro Carlos Ayres Britto, de seu turno, discorda, em parte, do relator, defende o entendimento de que o dispositivo da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul não se faz inconstitucional porque a vedação à vinculação orçamentária prescrita no Art. 167 da CF é excepcionada no que diz respeito à destinação de recursos para a manutenção e desenvolvimento do ensino, constituindo-se prescrição constitucional a vinculação de não menos de vinte e cinco por cento da receitas dos Estados e do Distrito Federal na manutenção e desenvolvimento do ensino49. Sendo assim, o Art. 202 da Constituição do Estado-Membro faz-se, TP

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conforme o entendimento do Ministro Ayres Britto, em plena consonância com o prescrito no Art. 44 “São vedados: [...] IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo; [...].” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988. Art. 167. 45 . “Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão: [...] § 2º - A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento. § 8º - A lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, nos termos da lei.” BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988. Art. 165. TP

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46 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 69. TP

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 70. PT

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 74-75. PT

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BRASIL. Constituição. Brasília: Senado Federal, 1988. Art.212.

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212 da CF, havendo apenas a razoável disposição de parcela destes valores à manutenção da estrutura física das escolas da rede estadual de ensino, o que não caracteriza atentado à prerrogativa privativa de iniciativa executiva de matéria orçamentária.50No que diz respeito à TP

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impugnação da Lei Estadual/RS 9.723/1992, segue o voto do Ministro-Relator. O Ministro Sepúlveda Pertence, no que concerne ao dispositivo da Constituição Estadual, manifestou-se pela inexistência de inconstitucionalidade, pois, em seu entendimento, seria possível a vinculação de vinte e cinco por cento das receitas como valor mínimo (Art. 212 – CF), perfazendo juízo político do Poder Legislativo gaúcho a vinculação de parcela destes valores a determinado segmento de despesas, não sendo legitimado o Poder judiciário para a apreciação de tal matéria. No que diz respeito à impugnação da Lei Estadual/RS 9.723/1992, segue o voto do Ministro-Relator.51 TP

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3.3 A atuação política do Supremo Tribunal Federal Nos casos concretos analisados na seção precedente observou-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que diz respeito a matérias que tratam da efetiva implementação de políticas públicas de educação básica, de modo que a corte manifestou-se mesmo como órgão político incumbido de definir diretrizes à concretização do direito fundamental social em tela. Verifica-se, nos acórdãos examinados, que a Corte Constitucional não se limita ao desenvolvimento subsuntivo do disposto constitucionalmente, mas empreende discurso criativo visando a disciplinar a matéria através de norma jurídica inovadora, empreendendo o entendimento de que o dogma da separação dos poderes deve ser relativizado, destacadamente no que tange ao controle dos gastos públicos e da prestação de serviços essenciais no contexto do denominado Estado Social, classificando os Poderes Executivo e Legislativo incapazes de garantir a efetivação dos preceitos constitucionais no que diz respeito aos direitos fundamentais sociais. 52 TP

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Neste diapasão, põe-se em evidência a dimensão política da Jurisdição Constitucional, enquanto disciplinadora dos parâmetros de efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, sob o arrimo conceitual de que inércia do Poder Público constitui-se violação a ordem constitucional, competindo ao Supremo tribunal Federal a atribuição de garante da Constituição, através do desenvolvimento de políticas públicas que assegurem o mínimo existencial.53 TP

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50

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 79-82. TP

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51 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 88. PT

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p.1137. PT

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p.1133. TP

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Este ativismo empreendido pelo STF no que concerne aos direitos fundamentais sociais “[...] é uma visão de competências e responsabilidades [...] perante os outros órgãos do Estado” 54

, estabelecido sob um contexto garantista fundamentado em princípios – repita-se: a ordem

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constitucional brasileira reputa como princípios, em consonância com o prescrito no §1º do Art. 5º da CF, os direitos sociais, distintos como normas-mandados de otimização –, de modo que o discurso desenvolvido perfaz-se, não raramente, alheio a considerações eminentemente jurídicas ou hermeneuticamente literais, mas fundamentado em argumentos de adequação social e, portanto, políticos, de sorte que a Corte substitui-se aos outros poderes visando, em seu entendimento, a garantia da Constituição. Tal entendimento pode ser distinguido sob o prisma pragmatista que fundamenta este artigo, pois a atitude ativista em comento volta-se para a capacidade de execução do STF no que concerne à efetivação dos direitos fundamentais sociais, rejeitando o paradigma conservador da separação dos poderes como escol melhor e definitivo, bem como a visão fatalista que incumbe estritamente aos Poderes Executivo e Legislativo dispor acerca de políticas públicas satisfativas.55 TP

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O Supremo Tribunal Federal põe-se como órgão de atuação política, assumindo uma responsabilidade de exercício criativo do direito, que se afasta da aplicação literal do posto na ordem jurídica vigente ou de integrações analógicas decorrentes de precedentes,56 visando a, TP

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fundamentado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da máxima efetividade dos direitos fundamentais, estabelecer disposições que assegurem as garantias sociais estabelecias pela Constituição Federal.

4. Conclusão Considerando-se que o que o Direito é uma um desdobramento cultural, uma linguagem (destaque-se: uma ficção expressa linguisticamente). Ficção porque o paradigma pelo qual se expressa é deôntico e não estabelece, em absoluto, relação com o plano da realidade objetiva, o que mesmo não faria sentido, pois se coincidisse com o “ser” far-se-ia despiciendo por simplesmente repetir a realidade, o Supremo Tribunal Federal tem desenvolvido discurso que se fundamenta metodologicamente através de uma sobreposição dos princípios às regras, conduzindo-se, outrossim, no que diz respeito à fenomenologia da juridicização, à substituição da subsunção pela ponderação, destacadamente nas matérias referentes aos direitos fundamentais. Há de se observar que tal ponderação, por parte do STF, se estabelece visando ao desenvolvimento de um paradigma comensurável a todos os estratos sociais, fundamentada, de per se, em princípios constitucionais, caracterizando as decisões da Corte, no que diz respeito à

54 PT

POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 5.

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POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 5.

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POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 13.

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efetivação do direito fundamental social à educação, como normas jurídicas parâmetros à definição de políticas públicas satisfativas, não raramente mesmo como próprias políticas públicas. Tal posicionamento faz-se eminentemente político, fundado no consenso e, destarte, ajurídico do ponto de vista dogmático, haja vista que o discurso jurídico, nos moldes estabelecidos neste artigo, não se caracteriza como expressão do discurso prático geral57. TP

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Destarte, enquanto discurso fundamentado no consenso político e na correição, o paradigma empreendido nas decisões do Supremo Tribunal Federal no que concerne à efetivação das normas constitucionais sob o aspecto da implementação de políticas públicas de educação básica como direito fundamental visa à adequação social e, portanto, faz-se alheio a quaisquer construções lógico-racionais.

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O discurso prático geral se estabelece em moldes de certeza, no âmbito da teoria do direito caracteriza-se como atividade linguistica que visa a empreender um paradigma científico-jurídico de correição dos enunciados normativos. ALEXY, ROBERT. Teoria da Argumentação: A teoria do discurso como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zild Hutchinson Schild Silva. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005. p. 44-45. TP

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____________________. Supremo Tribunal Federal. ADI 820/RS. Tribunal Pleno. Relator: Ministro Eros Grau. 15 de maio de 2007. In: DJe, n. 036, 29 Fev. 2008. p. 65-94. ____________________. Supremo Tribunal Federal. RE 603575 AgR/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Eros Grau. 20 de abril de 2010. In: DJe, n. 86, 14 mai. 2010. p. 1127-1139. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina,1997. CORREIA, Daniel Rosa. A concretização judicial de direitos fundamentais sociais e a proteção do mínimo existencial. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2011. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. Salvador: JusPODIVM Renovar, 2010. DWORKIN, Ronald. Levabdo os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Constituição. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1989. ____________________. Lei 9.723 de 16 de setembro de 1992. Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1992. HOLMES JR, Oliver Wendell. The Path of the Law. In: POSNER, Richard A.(ed.). The Essential Holmes. Chicago – London: The University of Chicago Press. 1992. p. 160-177. In: SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa Da; MARTINEZ, Vinício C. Rev. Disc. Jur. Campo Mourão, Campo Mourão, v. 4, n. 1, p. 266 280, jan./jul. 2008. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Batista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LEAL, Mônia Clarissa Henning. A jurisdição constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática – uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007. POSNER, Richard A. Para além do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

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Fundacionalismo e essencialismo no Supremo Tribunal Federal: um estudo de caso paradigmático, a ADI 3510 Elita Isabella Morais Dorvillé de Araújo1 TP

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Resumo

Abstract

O presente estudo pretende analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510, que teve por objetivo principal a impugnação em bloco do artigo 5º da lei 11.105, também conhecida como Lei de Biossegurança. No estudo pretende-se fazer uma análise pragmática dos discursos utilizados pelos ministros na fundamentação de seus votos sobre a constitucionalização ou não da Lei 11.105, nesta análise, pretende-se identificar fundamentações de cunho essencialista e fundacionalista na construção das argumentações filosóficas dos ministros, assim como verificar o quanto que essas argumentações filosóficas podem prejudicar um debate objetivo e concreto sobre Direitos Humanos Fundamentais, na medida em que conduzem o discurso a apelos transcendentais e metafísicos, tal prática filosófica está alicerçada ainda na busca de verdades de caráter absoluto, o que Richard Rorty evidencia como uma herança platônica e kantiana na filosófia. A partir do estudo das argumentações filosóficas utilizadas na ADI 3510, pretende-se mostrar como os discursos sobre Direitos Humanos ainda se encontram permeados de teses de cunho essencialistas que pouco ajudam no debate, trazendo questionamentos que não podem ser resolvidos, não ajudando no momento de decisão judicial, principalmente quando se está diante de casos extremos e controversos.

This study intend to analise the Direct Action of Unconstitutionality 3510, which had as main goal the impugnation of the fifth article on the law number 11.105, also known as “Lei de Biossegurança”. In the study, it is intended to do a pragmatic analysis of the speeches made by the ministers in fundamentation on their votes about the constitutionalization or not of the law 11.105, in this analysis it is intended to identify fundamentations essentialist and foundationalists on the philosofical argumentations of the ministers, just as verify how much this philosofical argumentations can hinder a concrete and objective discussion about fundamental human rigths, when lead the speech to metaphysical claims, philosophical practices in still based on the search for absolute truths, what Richard Rorty sees how a platonic and kantiana heritage. By the studies of the philosofical argumentations used on ADI 3510, it is intended to show as the speeches about human`s right are still permeated with essencialist theses that do not help on the debate, bringing questions that can not be answered, because not helping on the moment of the court decision, especially when one is facing controversial cases.

Palavras-Chave: Essencialismo; Direitos Humanos Fundamentais.

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Fundacionalismo,

Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal de Alagoas; [email protected]. PT

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1. Introdução A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510 abriu um debate dentro do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalização ou não das pesquisas com células-tronco embrionárias, dentro da ADI é possível visualizar nitidamente duas correntes de opiniões bem distintas, uma que considera que a utilização de células-tronco embrionárias é uma afronta à princípios básicos da Constituição Federal Brasileira, destacando-se entre esse princípios, o direito a vida e a dignidade da pessoa humana, para os defensores dessa corrente falar em embrião de pessoa humana é ter uma ideia reduzida do que verdadeiramente o embrião representa, posição essa destacada pelo ministro Ayres Brito no relatório da ADI. Numa síntese, a ideia de zigoto ou óvulo feminino já fecundado como simples embrião de uma pessoa humana é reducionista, porque o certo é vê-lo como um ser humano embrionário. Uma pessoa no seu estádio de embrião, portanto, e não um embrião a caminho de ser pessoa.2 TP

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A corrente de pensamento defende a pesquisa com células-tronco embrionárias, tem como um de seus argumentos que não há inviolabilidade do direito a vida, pois a possibilidade de desenvolvimento da vida humana está atrelado também ao desenvolvimento deste mesmo embrião dentro do útero de uma mulher, e não apenas a fecundação. No debate que se configura dentro dessas duas correntes de opiniões distintas, acaba surgindo questionamentos importantes, quando se tem realmente início a vida humana? a fecundação pode realmente ser estabelecida como um marco inicial?. Para defender suas ideias, as correntes de opiniões que se formam acabam sustentando suas argumentações em proposições morais, religiosas e metafísicas. A falta de objetividade que tais questionamentos levantam traz a tona o que Richard Rorty chama de essencialismo e fundacionalismo, trazendo uma tentativa de fundamentar o discurso em verdades absolutas. O que se tem observado no discursos que se encontram nos votos proferidos pelos ministros, é que quando se parte para analisar o início da vida humana, acaba-se por perder o foco, pois os argumentos filosóficos utilizados acabam por buscar uma essência inerente ao próprio homem, ou transcendental a ele, Rorty explica que essas características, presentes no discurso sobre direitos humanos, tem sua herança principal em Platão e Kant, não deixando de lado a influência de filósofos como Aristóteles, Richard Rort argumenta que o uso da racionalidade é o principal ponto de diferenciação que Platão destaca entre seres humanos: Platão sugeriu existir uma grande diferença entre nós e os animais, uma diferença que merece respeito e cuidado. Para ele, os seres humanos possuiam um ingrediente especial a mais que os colocava numa categoria ontológica diferente dos seres brutos. Respeitar esse ingrediente dá à pessoas um motivo para ser

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510; p.15; disponível em: www.stf.jus.br/portal/inteiroteor/pesquisarinteiroteor.asp#resultado PT

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gentis umas com as outras.3 TP

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A partir dessa herança herdada principalmente de Platão e Kant, que ainda está fortemente inserida na filosofia, que acabam surgindo perguntas dentro da argumentação sobre direitos humanos, que não podem, ou não devem ser feitas, pois não conduzem a respostas concretas, e acabam por deixar a argumentação extremamente abstrata, pois são perguntas que não podem ser efetivamente respondidas, perguntas como “o que é o ser humano?” “Qual a natureza intrínseca do homem?”, Richard Rorty esclarece que perguntas como essa já não fazem mais sentido: Existe uma tendência crescente de negligenciar a questão “Qual é a nossa natureza?” e de substituí-la pela questão “o que podemos fazer de nós?”. Estamos muito menos inclinados a colocar a seguinte questão ontológica “ O que somos?”, pois compreendemos que a principal lição, tanto da história quanto da antropologia, é a nossa extraordinária maleabilidade. Começamos a nos considerar como um animal flexível, versátil, automoldável, em vez de uma animal racional ou cruel.4 TP

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Os questionamentos que surgem dentro da ADI 3510, conduzem à argumentações vagas e abstratas que não fornecem respostas e que impedem o desenvolvimento de uma fundamentação concreta e objetiva.

2. Essencialismo e Fundacionalismo: uma herança platônica e kantiana no discurso sobre direitos humanos No livro Verdade e Progresso, Richard Rorty fala do fundacionalismo e do essencialismo que segundo ele, seriam características muito presentes nas diversas argumentações filosóficas, essas características seriam heranças herdadas de uma filosofia ainda muito ligada a um mundo metafísico e transcendental, essa herança está presente na filosofia contemporânea, ligadas principalmente a filósofos como Platão e Kant. Essas características ficam visivelmente percebidas quando parte-se para uma análise da linguagem e do discurso, o fundacionalismo seria uma ideia de tentar fundamentar uma determinada questão com base em verdades de caráter absoluto, parte-se de proposições ou mesmo explicações de caráter abstrato e vago que não explicam ou esclarecem determinada questão. Quando se fala em direitos humanos Rorty quer enfatizar a importância de fundamentar as argumentações em algo concreto e palpável, algo que não transcenda o homem, fazendo assim entender a importância de se colocar o debate sobre direitos humanos sem relaciona-los somente e diretamente a fatores a-históricos e metafísicos.

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RORTY, Richard. Verdade e Progresso. 1º edição brasileira: Manole, 2005, p. 202.

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RORTY, Richard. Verdade e Progresso. 1º edição brasileira: Manole, 2005, p. 202 e 203. PT

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Os pragmatistas vêem a tradição platônica como tendo sobrevivido à sua utilidade. Isto não que dizer que tenham para oferecer um novo e não platônico conjunto de respostas às perguntas platônicas, mas antes que pensam que já não devemos mais fazer essas perguntas. Quando sugerem que não coloquemos questões sobre a natureza da verdade ou do bem, não invocam uma teoria acerca da natureza, ou da realidade, ou do conhecimento ou do homem que diga que não existe essa coisa da Verdade ou do Bem. Ainda menos tem uma teoria relativista ou subjetivista da Verdade ou do Bem.5 TP

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A Contribuição dada pela antropóloga e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero Debora Diniz, como amici curiae na audiência pública da ação direta de inconstitucionalidade 3510, vem colocar em evidência o perigo que se corre ao discutir questões tão importantes, e destaca a necessidade que Rorty explicita em seus textos de que o debate filosófico em torno de temas relacionados a direitos humanos fundamentais não seja simplesmente a busca de verdades absolutas, verdades constituídas em essencialidades humanas, de tal modo abstratas, que impeçam uma argumentação concreta e objetiva. Quando a vida humana tem início? O que é a vida humana? Essas perguntas contém um enunciado que remete a regressão infinita: as células humanas no óvulo antes da fecundação, assim como em um óvulo fecundado em um embrião, em um feto, em uma criança ou em um adulto. O ciclo interminável de geração da vida humana envolve células humanas e não humanas, a tal ponto que descrevemos o fenômeno biológico como reprodução, e não simplesmente como reprodução da vida humana. Isso não impede que nosso ordenamento jurídico e moral possa reconhecer alguns estágios da biologia humana como passíveis de maior proteção do que outros. É o caso, por exemplo, de um cadáver humano, protegido por nosso ordenamento. No entanto, não há como comparar as proteções jurídicas e éticas oferecidas a uma pessoa adulta com as de um cadáver. Portanto, considerar o marco da fecundação como suficiente para o reconhecimento do em brião como detentor de todas as proteções jurídicas e éticas disponíveis a alguém, após o nascimento, implica assumir que: primeiro, a fecundação expressaria não apenas um marco simbólico na reprodução humana, mas a resumiria euristicamente; uma tese de cunho essencialmente metafísico. Segundo, haceria uma continuidade entre óvulo fecundado e futura pessoa, mas não entre óvulo não fecundado e outras formas de vida celular humana.6 TP

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Em seus votos, os ministros confrontam o artigo 5º da Lei de Biossegurança com a Carta Magna Constitucional afim de empreender na tarefa de declarar a constitucionalidade ou não de tala lei, mas é importante observar que dentro de suas argumentações, mesmo que em favro da utilização das pesquisas com células-tronco embrionárias, não se deixa de relacionar os argumentos filosóficos com um viés muito mais relacionado a teses criacionistas. Com efeito, é para o indivíduo assim biograficamente qualificado que as leis dispõem sobre o seu nominalizado registro em cartório (cartório de registro civil das pessoas naturais) e lhe conferem uma nacionalidade. Indivíduo-pessoas, conseguintemente, a se dotar de uma gradativa formação moral e espiritual, esta última segundo uma cosmovisão não exatamente darwiniana ou evolutiva do ser humano, porém criacionista ou divina (prisma em que Deus é tido como a nascente 5 PT

RORTY, Richard. Consequências do Pragmatismo. Edição portuguesa, Instituto Piaget, p. 14.

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510; p. 33 e 34; disponível em: www.stf.jus.br/portal/inteiroteor/pesquisarinteiroteor.asp#resultado TP

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e ao mesmo tempo a embocadura de toda a corrente de vida de qualquer dos personalizados seres humanos). Com o que se tem a seguinte a ainda provisória de finição jurídica: a vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com a vida e a morte.7 TP

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Na citação acima, o ministro Ayres Brito deixa claro sua defesa da pesquisa com célulastronco embrionárias, deixando em evidência a adoção da Teoria natalista, de acordo com o artigo 2º do código civil brasileiro, porém, dentro dessa mesma visão, o mesmo argumento dá preferência a visão criacionista ou divina, colocando que o indivíduo-pessoa protegido por tal dispositivo normativo é aquele dotado de gradativa formação moral e espiritual, segundo a cosmovisão criacionista ou divina, tenta-se fundamentar as argumentações em uma tese criacionista. É dentro do discurso que fica evidente o contraste de ideias, uma argumentação que deveria ficar clara e objetiva, acaba dificultando ainda mais a fundamentação, o que Richard Rorty quer enfatizar é a total abstração desse tipo de discurso, e mostrar simplesmente que ele não precisa mais ser feito.

3. Entre o concreto e o abstrato: a contribuição pragmática na análise do discurso. Em várias passagens da ADI 3510 vê-se a discussão em torno dos princípios do direito a vida e da dignidade da pessoa humana, utilizando-se dos diversos conceitos desses princípios constitucionais é que se formam dentro principalmente dos votos do ministros do Supremo Tribunal Federal duas concepções bem distintas sobre o embrião, uma que o vê não como um indivíduo já constituído, mas como um estágio da reprodução humana, e outra que vê no embrião não um simples estágio, mas um ser humano embrionário, mas é nítido que até mesmo essa distinção fica muitas vezes confusa na fundamentação dos votos. Nessas argumentações é defendido também a potencialidade do embrião em se tornar pessoa humana, o que se leva a entender, por diversas vezes, que essa potencialidade seria suficiente para garantir que não fosse permitido as pesquisas com células-tronco embrionárias. A ação direta de inconstitucionalidade 3510 tem como núcleo central para a impugnação em bloco do artigo 5º da Lei de Biossegurança, a ideia de que o que se defende não é um estágio da vida humana, mas um ser humano em estágio embrionário, é partir dessa visão do embrião que se defende a inconstitucionalidade do artigo 5º da referida lei, o embrião é visto como um ser humano em potencial, e é justamente esse potência que confere ao embrião o direito a vida, essa visão do embrião como ser humano em potencial fica muito bem traçada no voto do ministro Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510; p.; disponível em: www.stf.jus.br/portal/inteiroteor/pesquisarinteiroteor.asp#resultado PT

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Meneses Direito que votou pela inconstitucionalidade da referida le, se posicionando contra as pesquisas com Células-tronco embrionárias. Para declarar essa inconstitucionalidade, o ministro se utilizou de diversos argumentos filosóficos de clara influência Platônica, Kantiana e Aristotélica, se baseando principalmente em Kant e Aristóteles e na sua concepção de potência para um ato. O que contribui para causar dificuldade quanto a esse termo é que o estagirita costuma usar muitos exemplos, que acabam sendo mal interpretados e usados fora de seu contexto, fazendo com que a potência seja incorretamente tomada por uma mera possibilidade. Tenha-se presente o comentário de Julián Marías mostrando em Aristóteles a divisão do ser segundo a potência e o ato, ao dizer que um “ente pode ser atualmente ou apenas uma possibilidade. Uma árvore pode ser uma árvore atual ou uma árvore em possibilidade, por exemplo uma semente. A semente é uma árvore, mas em potência, como a criança é um homem, ou o pequeno, grande. Mas é preciso ter em mente duas coisas: em primeiro lugar, não existe uma potência em abstrato, uma potência é sempre uma potência para um ato; isto é, a semente tem potência para ser carvalho, mas não para ser cavalo, nem sequer pinheiro, por exemplo; isso quer dizer, como afirma Aristóteles, que o ato é anterior (ontologicamente) à potência; como a potência é potência de um ato determinado, o ato já está presente na própria potencialidade” (História da filosofia. Martins Fontes, 2004. Pág.75).8 TP

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Percebe-se na fala do ministro acima transcrita que a potência humana do embrião está diretamente relacionada com sua capacidade de transformação, ou seja, mesmo ainda não sendo pessoa constituída ou personalizada como afirma o código civil brasileiro em seu artigo 2º, esta já teria que ser considerado pessoa humana em estágio de embrião pelo fato de poder assim se desenvolver, o embrião possuiria assim, segundo conduz essa afirmação, uma essência humana, essa seria a sua natureza intrínseca, e por isso, as pesquisas com células-tronco embrionárias, por violarem essa essência/potência seria uma ataque ao direito a vida. Essa perspectiva aristotélica, por exemplo, contraria a afirmação de que o fato de estar o embrião in vitro, posto que valioso por si mesmo, se assim permanecer, jamais será alguém. De fato, tem serventia para afastar essa idéia de que o embrião congelado não será alguém fora da recepção uterina. É possível dizer o contrário, ou seja, quando há a fecundação ele já é, e se há interrupção do que é, aí sim, ele não será. Ele já é ser porque foi gerado para ser, não para não ser. O embrião não é o ente que se transmuda para além de sua essência. É o próprio ser em potência e, sobretudo, em essência, em ininterrupta atualização que em seus primeiros estágios e, mesmo em cultura, é representada por suas sucessivas divisões. O coração e o sistema circulatório existem porque estão presentes no embrião em potência; os movimentos somente são possíveis porque os membros já existem na essência do embrião, assim como as propriedades da fala e tudo o mais que forma e caracteriza o ser humano relacional. Da mesma forma, a estrutura neural existe porque há no embrião em potência. Dizer o contrário, na minha avaliação, é contrariar a própria natureza das coisas.

A argumentação aristotélica constituída no voto do ministro do STF pode ser facilmente

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Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510; p.49; disponível em: www.stf.jus.br/portal/inteiroteor/pesquisarinteiroteor.asp#resultado PT

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conduzida a metafísica, na medida em que conduz a pensar que o embrião já seria um ser humano constituído, mas apenas em potência, ou melhor dizendo, em essência. Mesmo que se queira camuflar o caráter abstrato da afirmação dizendo com a firmação aristotélica que não existe potência abstrata, mas somente potência para um ato, não se pode negar a abstração de tal afirmação, na medida em que se estabelece que é possível se identificar um ser humano em essência, mesmo que ainda não constituído. A partir da análise dessas argumentações, a pergunta principal que surge é, como pode o embrião ser considerado ser humano apenas pela sua potência transformadora? é de fato possível visualizar um ser humano em potência no embrião? Essas são perguntas que, de fato, conduzem a uma regressão infinita do que seria o embrião, seria pouco provável encontrar respostas para as indagações formuladas a partir dessa perspectiva que é passada no voto do ministro Meneses Direito, partindo- se de um pressuposto de uma essência ou potência, a argumentação se torna, mais uma vez, abstrata, por conta do seu caráter essencialista e fundacionalista. O pragmatismo pretende contribuir na análise dos discursos sobre direitos humanos, evitando argumentações extremamente principiológicas, na medida em que estabelece critérios de objetividade e eficiência, a partir desses critérios, entretanto, não se tem a intenção de estabelecer novos parâmetros, ou melhor especificando, não é intenção da análise pragmática elaborar novas teorias ou novas concepções das teses platônicas ou kantianas no discurso sobre direitos humanos fundamentais, não é intenção trazer novas teses sobre a natureza intrínseca do ser humano, mas o que a análise pragmática quer fazer é colocar em evidência a utilização desses mesmos discursos que buscam encontrar verdades sobre a natureza do bem e do mal, verdades que conduzem a teses puramente transcendentais, o que, segundo Richard Rorty, seria apenas ressaltar que a herança metafísica presente na filosofia que já não contribui para o debate, que já não é mais necessário, e portanto, não pode permanecer presente na filosofia, pois já perdeu seu espaço, como ele demonstra em uma de suas obras. Portanto uma segunda caracterização do pragmatismo poderia ser como segue: não existe diferença epistemológica entre a verdade acerca do que é, nem nenhuma diferença metafísica entre factos e valores, nem nenhuma diferença metodológica entre moralidade e ciência. Mesmo os não pragmatistas pensam que Platão estava errado ao pensar a filosofia moral como descobrindo a essência do bem, e Mill e Kant estavam errados ao tentar reduzir a escolha moral a uma regra. Mas cada razão para dizer que eles estavam errados é uma razão para pensar que a tradição epistemológica estava errada ao procurar a essência da ciência, e ao tentar reduzir a racionalidade a uma regra. Para os pragmatistas, o padrão de toda investigação – científica, bem como moral – é a deliberação a respeito dos atractivos relativos de várias alternativas concretas. A ideia de que na ciência ou na filosofia podemos substituir a deliberação entre resultados alternativos da especulação do método é apenas tomar desejos por realidades. É como a ideia que o homem moralmente sábio resolve os seus dilemas consultando a sua recordação da ideia do bem, ou procurando o artigo relevante da lei moral. É o mito que a racionalidade consiste em ser coagido pela regra. Segundo este mito platônico, a vida da razão não é a vida da conversação socrática mas um estado de consciência iluminado no qual nunca precisamos de perguntar se esgotamos as possíveis descrições, ou explicações, da 48

situação. Chegamos simplesmente a crenças verdadeiras pela obediência a procedimentos mecânicos.9 TP

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A visão essencialista não contribui para a construção de argumentos concretos que possam verdadeiramente colaborar na fundamentação, o que ainda impera nos discursos sobre direitos humanos é o fundacionalismo abstrato que deixa ainda mais difícil a resolução dos problemas justamente por remeter a questionamentos que não podem efetivamente ser respondidos, por isso, já não são mais importantes.

Referências bibliográficas RORTY, Richard. Verdade e Progresso. 1º edição brasileira, Manole, 2005. RORTY, Richard. Consequências do Pragmatismo. Edição portuguesa, Instituto Piaget. ENGEL, Pascal; RORTY, Richard. Para que serve a Verdade?. Editora Unesp, 2008. Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510. Disponível em: www.stf.jus.br/portal/inteiroteor/pesquisar TU

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RORTY, Richard. Consequências do Pragmatismo. Edição portuguesa, Instituto Piaget, p. 235.

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O processo de direitos humanos como prática realista Fernando Gabriel Lopes Cavalcante1 TP

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Resumo

Abstract

A fundamentação do direito internacional moderno busca inspiração no paradigma racionalista iniciado em meados do século XVI. A noção de Lei Natural, cunhada em termos racionalistas e jusnaturalista, interferiu de forma impactante na construção do plano jurídico internacional. De forma que temos atualmente diversos resquícios dessa ânsia jusnaturalista presentes em institutos e instrumentos do Direito Internacional. O realismo jurídico, que como escola surgiu em meados do século XX, vai contra diversos entendimentos jusnaturalista, defendendo um direito alicerçado em fatos sociais. Assim, numa perspectiva de proteção dos Direitos Humanos, esse artigo visa elencar de qual forma, na contemporaneidade, é necessário um maior enquadramento realista do Direito Internacional. Apontando, de forma critica, onde os diálogos entre o jusnaturalismo e o realismo se contrapõem, expondo os pressupostos nos quais as duas correntes baseiam-se.

The basis of modern international law seeks inspiration in the rationalist paradigm started in the mid sixteenth century. The notion of Natural Law, coined in rationalistic terms and jusnaturalist, interfered in the construction of legal internationally plane. So that we currently have many remnants of that eagerness jusnaturalist present in institutions and instruments of international law. The legal realism, which emerged as a school in the midtwentieth century, going against several understandings jusnaturalist, defending a right grounded in social facts. Thus, from the perspective of human rights protection, this article aims to list in what form, in contemporary times, the need for more realistic framework of international law. Pointing, critically, where the dialogue between the natural law and reality clash, exposing the assumptions on which the two streams are based.

Palavras-Chave: Naturalismo; Internacional; Direitos Humanos.

Keywords: Naturalism, Human Rights.

Realismo;

Direito

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Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, pesquisador bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia TP

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1. Introdução Não há dúvidas a respeito da contribuição que os defensores do jusnaturalismo deram para a construção do plano jurídico internacional. Tais homens ergueram, pelo menos doutrinariamente, o véu da negação de direitos que o estado absolutista mantinha sobre os indivíduos. Porém, há, de maneira oposta, dúvidas a respeito da suficiência de tal doutrina para responder aos anseios por direitos humanos na contemporaneidade. A era contemporânea demonstra-se autenticamente realista, incorporando um viés de proteção internacional do direito que, em diversas ocasiões, inicia-se no fato social. O tráfico internacional de pessoas, as grandes massas de refugiados, a discriminação racial e religiosa, o impacto resultante de cada um desses conflitos hodiernos é a sustentação que ergue diante das nações os mais diversos tratados internacionais. Sem negar a importância do jusnaturalismo para a consolidação do plano jurídico internacional, nem também expor o realismo jurídico como doutrina absoluta, o presente trabalho vem tentar estabelecer um diálogo crítico entre essas duas escolas jusfilosóficas no tocante ao seu entendimento acerca da seara internacional do direito. Num primeiro momento se demonstrará como se sustenta logicamente a chamada Lei Natural Universal, e, em seguida, se detectará onde o realismo jurídico contrapõe-se criticamente a essa idéia e onde esta escola se mostra mais adequada ao que se pretende como defesa internacional dos direitos humanos. Após a adequada abordagem doutrinária, investigar-se-á a questão da noção de soberania estatal, indicando, em seguida, em qual sentido o processo, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, apresenta-se como uma prática realista.

2. A Lei Natural na construção do Plano Jurídico Internacional A lenda de Antígona, escrita pelo poeta grego Sófocles, é o registro histórico mais clássico da idéia de lei natural, ou, como cita o autor antigo, de leis não escritas. As sucessivas correntes de pensamento posteriores, tais como as dos teólogos do medievo e as dos racionalistas modernos, acabam por ser uma reelaboração da teoria básica que sustenta a epopéia de Antígona. O ponto convergente entre os diversos teóricos que defendem a lei natural acaba por ser o pressuposto de que há uma ordem natural que determina as ações dos homens, e, para além disso, uma natureza humana essencial que lhes assegura dignidade e racionalidade diferenciada dos outros seres viventes. Há, portanto, na sustentação da doutrina naturalista, a antevisão de duas “naturezas”: uma inerente ao homem e outra inerente à realidade, sendo a lei natural inerente à realidade que prescreve ao ente humano os deveres e direitos mais fundamentais, e por isso torna o homem parte da ordem universal. Tal relação entre homem e

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realidade, como é sustentado por Jacques Maritain, deve-se ao entendimento de ser o gênero humano uma recriação em microcosmo daquilo que a realidade é em macrocosmo2. TP

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Porém, como se constitui de uma forma lógica a proposição de um plano global de jurisdição a partir da idéia de natureza? A exposição argumentativa do jusnaturalismo é a de que: 1) sendo os homens iguais, ou seja, havendo uma natureza essencial à raça humana, tal igualdade legitima são regidas por regras de comportamento também essencialmente iguais; 2) havendo tais regras de comportamento, estas são aceitas universalmente, ou seja, independentemente de nação; 3) a partir da universalidade de tais regras, a despeito da existência de diversos corpos jurídicos ao redor do mundo, as leis ditas positivas são somente manifestações da lei natural. Chegando-se ao entendimento de que, a princípio, o plano internacional seria uma formulação abstrata, sem pragmaticidade.

2.1 Lei Natural e a igualdade entre os homens Imbuídos pelo caráter jusnaturalista, juristas da era moderna iniciaram a elaboração daquilo a que eles chamaram de Direito das Gentes, ou seja, incluíram todo o gênero humano numa categoria básica de aplicação legal. Partindo do pressuposto de que todos os homens apresentam uma natureza essencial similar, chegaram a uma ordem jurídica que transcende a ordem estatal. A conclusão a que chegam os naturalistas, a partir do caráter de igualdade entre todos os homens, é encontrada presente nas seguintes palavras de Javier Hervada: Todos temos as mesmas inclinações, todos somos igualmente pessoas e possuímos o mesmo valor e dignidade. Em suma, todos temos a mesma natureza, os mesmos fins e as mesmas exigências de conduta e de tratamento. A lei natural é igual e a mesma para todos os homens e para todos os povos3. TP

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Hervada defende, dessa forma, a relação de igualdade daquilo que ele chama de “núcleo natural” das comunidades nacionais, o que para ele é suficiente para elaborar regras de justiça que incorporem todas as comunidades do mundo. A igualdade, no sentido dado pelos primeiros teóricos naturalistas, tais como Hobbes, Grotius e Locke, não só determina a consolidação de um panorama internacional de justiça, mas também consolida a construção da sociedade. Readaptando a idéia de que o contrato entre homens iguais institui a sociedade, tais doutrinadores incluíram a comunidade das nações numa perspectiva contratualista que vem sendo mantida até os dias atuais. A paz de Vestfália, série de acordos diplomáticos que puseram fim à guerra dos 30 anos, firmados em meados do século XVII,

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MARITAIN, Jacques. Os Direitos do Homem e a Lei Natural, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, p. 12, 1947.

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HERVADA, Javier. O que é Direito? A moderna resposta do realismo, São Paulo: Martins Fontes, p. 169, 2006.

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é o exemplo mais claro de como o contrato surge, já naquela época, como uma noção jurídica atinente aos princípios internacionais.

2.2 O caráter universal da Lei Natural A ordem natural portava-se então como um entendimento absoluto decorrente da idéia de fazer o bem e não o mal, entendimento este que ignorava os contextos de ocorrência dos fatos jurídicos. Ou seja, as condições culturais, sociais e econômicas não seriam dignas de influência na seara jurídica, haja vista ser a Justiça uma instância absoluta e imutável que transcende o plano material. A tendência do paradigma moderno de ciência jurídica seria então a da abstração. Ou seja, caberia ao magistrado, a partir de uma posição de neutralidade diante da lide e através de reflexões racionais, intuir a resposta decisória que cumpriria os desígnios de uma Justiça entificada enquanto noção abstrata. Maritain expõeas peculiaridades do naturalismo racionalista afirmando que: “o racionalismo dos Enciclopedistas transformava a lei natural em um código de justiça absoluta e universal inscrito na natureza e decifrado pela razão, como um conjunto de teoremas ou de evidências especulativas4”. A mesma idéia é reforçada por Kelsen: TP

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Uma vez que a idéia de um Direito natural é uma idéia de uma ordem “natural”, segue-se que as suas regras, diretamente, tal como fluem da natureza, de Deus ou da razão, são imediatamente evidentes como as regras da lógica e, desse modo, não requerem qualquer esforço para serem percebidas como reais5. TP

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A alta complexidade da natureza e das ações humanas seria reduzida então a um modelo, formalizado matematicamente, que poderia ser demonstrado e evidenciado, e, portanto, a partir desse modelo, uma resposta jurídica seria, não só válida, mas universalmente aceita. A universalidade da chamada lei natural estaria, então, na base do sistema lógico que dá origem ao plano jurídico internacional. A própria idéia de Declaração “Universal” dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento este que representa uma das primeiras tentativas de estatuir politicamente os Direitos Humanos, reflete a pretensão de universalizar direitos ditos inerentes à natureza. É o que se percebe no artigo 2º do documento, em que se afirma: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”.

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MARITAIN, Jacques. Os Direitos do Homem e a Lei Natural, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, p. 112, 1947.

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KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo: Martins Fontes, p. 559, 1998.

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2.3 A lei positivada como manifestação da Lei Natural Influenciados pelo paradigma metafísico do conhecimento, onde o plano material era concebido enquanto manifestação do plano ideal, os naturalistas alegavam ser também a lei positivada pelo Estado pura manifestação da Lei Natural. Dessa forma, pretendiam superar argumentações relativistas que indagavam a existência de tal Lei, tomando como base empírica a ocorrência de legislações singulares, muitas vezes opostas, que apresentavam validade legal ao redor do globo. A sustentação lógica seria a de que, assim como o homem, apesar de ter conhecimento do bem e do mal, pratica atos que são contrários à Lei Natural, as leis geradas através desses homens também podem apresentar elementos que sejam desconectados daquilo disposto enquanto autêntico pela Lei. Tendo presente a sustentação de que “todo homem nasce com a retidão de razão necessária para saber infalivelmente os primeiros princípios da lei natural: faça o bem e evite o mal6”, encontram-se subsídios para se chegar ao entendimento de que, segundo os naturalistas, a TP

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ferramenta necessária para a perfeita exegese da Lei seria então a razão humana. A partir da racionalização da realidade, e do constante evoluir da consciência humana no uso da razão, aquilo pressuposto enquanto Lei Natural manifestar-se-ia de forma fática nas legislações dos estados nacionais. Trabalhava-se com o ponto fundamental de que “há um dinamismo que impele a lei não escrita a desabrochar e expandir-se na lei humana e a torná-la progressivamente mais perfeita e mais justa7”. Assim, a chamada “lei humana”, numa escala de TP

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valores, estaria abaixo da Lei Natural, e caberia a esta última ser um modelo a ser perseguido pela primeira.

2.4 O plano internacional como uma formulação abstrata A idealização de um plano jurídico internacional segundo a concepção jusnaturalista acaba por apresentar-se como uma abstração. Não entra, a partir da concepção jusnaturalista, no escopo doutrinário do direito internacional a questão de como aplicar factualmente as diretrizes de uma ordem internacional cunhada em bases unicamente racionais. Abre-se espaço aqui para uma das críticas mais contundentes à Lei Natural: não existem perspectivas práticas em seus fundamentos. A resposta dada pelo positivismo estabelece alguns pontos dignos de nota acerca da pragmaticidade do Direito Internacional. Segundo Kelsen, para que o Direito Internacional seja encarado enquanto Direito, este necessita de algum grau de coercitividade. O mestre de Viena

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HERVADA, Javier. O que é Direito? A moderna resposta do realismo, São Paulo: Martins Fontes, p. 168, 2006.

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MARITAIN, Jacques. Os Direitos do Homem e a Lei Natural, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, p. 100, 1947. PT

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sustenta que esse grau é representado pela sanção internacional, aquilo que ele chama de interferência de um Estado em outro: Nesse sentido, o Direito Internacional é Direito se o ato coercitivo de um Estado, a interferência imposta de um Estado na esfera de interesses de outro, for permitido apenas como uma reação contra um delito, se o emprego da força por um Estado contra outro só possa ser interpretado como delito ou sanção8. TP

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Nesse sentido Kelsen defende que a guerra e a represália representam, a nível internacional, os atos coercitivos representam um caráter pragmático. A interpretação positivista acerca da questão, porém, também requer certa crítica. Se analisarmos, como veremos adiante, que o caráter político inerente às questões de guerra e represália mostra-se essencialmente imprevisível, destrona a tentativa positivista de por a norma pura como centro do Direito. Para além disso, a defesa de que somente o Estado seja considerado sujeito de direitos, como posto em Kelsen, é duramente criticada por autores que sustentam um paradigma realista, como é o caso de Umberto Campagnolo, que, em sua tese de doutorado, sustenta: O direito – todo o direito, tanto o direito interno, quanto o internacional - não podia existir senão e através de sua relação com os indivíduos, homens dotados de vontade e de consciência. O direito internacional, que as doutrina jurídicas tradicionais concebem como direito entre os Estados e para os Estados, era assim declarado inexistente e até mesmo absurdo9. TP

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A inserção, ao fim dessa primeira parte do trabalho, de aplicações críticas de doutrinas outras que não o jusnaturalismo, tem a finalidade de realçar, diante da perspectiva de vozes dissonantes, o caráter abstrato do plano jurídico internacional fundamentado na natureza, de forma a demonstrar que as elocubrações em torno de uma comunidade internacional condizente com a Lei Natural não apresenta uma resposta para a questão da aplicação da justiça. Abre-se, assim, a principal fronte de embate entre o naturalismo e o realismo no âmbito do direito, já inserindo a idéia de que a escola realista, também chamada de pragmatismo jurídico, parte de uma concepção de análise da decisão judicial enquanto fato, e encara o indivíduo em conflito como sujeito de direitos, sendo este conflito individual a base de sustentação desta escola.

3. Para uma análise realista do direito internacional A Declaração Universal dos Direitos Humanos, e diversos outros institutos formulados ao longo do século XX, não deixam de manifestar princípios basilares da doutrina naturalista em seus artigos, toma-se por base ainda definições elaboradas no bojo das discussões do século XVII, tais 8 PT

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo: Martins Fontes, p.468, 1998.

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9

KELSEN, Hans; CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. São Paulo: Martins Fontes, p. 105, 2002. PT

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como a de soberania, de Estado Nação e de adesão a tratados internacionais. O paradigma de direito internacional moderno, iniciado com a paz de Vestfália, continua manifestando-se hegemônico ainda no compreender internacionalista da era contemporânea. Porém, a partir do surgimento de mecanismos de implementação dos Direitos Humanos no âmbito do Direito Internacional, com a elaboração de alternativas processuais – tais como a petição individual, a petição interestatal, o relatório e a investigação – o indivíduo e, consequentemente, os fatos sociais, foram inseridos na lide internacional de forma sui generis. Dito de outro modo, nunca o caratér realista do plano jurídico interncional mostrou-se tão evidente como na atualidade. Para que se fique clara, então, a exposição argumentativa que demonstra tal caráter, apresenta-se como necessário: 1)definir qual os princípios lógicos básicos do realismo como escola jurídica e como tais princípios mostram-se opostos ao jusnaturalismo; 2) a partir desses princípios, analisar onde o plano jurídico internacional manifesta-se condizente com estes; 3)e, então, analisando conjunturalmente a contemporaneidade, expor de qual forma o caráter realista do direito mostra-se mais eficaz na proteção dos Direitos Humanos.

3.1 Realismo jurídico e a imprevisibilidade do direito Enquanto os expoentes do jusnaturalismo defendiam ter a realidade uma natureza essencial, e empreenderam um esforço de racionalização dessa realidade, sustentando ser possível a aplicação de um modelo normativo universal, os realistas admitem a completa impossibilidade de previsão da realidade, e, por conseguinte, de delimitação de sua essência. Portanto, é necessário então redimensionar o direito, recolocando-o na condição de fato social gerado e aplicado por homens, de forma a instituir não mais um sistema jurisdicional regido única e exclusivamente pela norma. Suscitando-se assim a defesa de que o Direito sempre foi, é agora, e sempre continuará sendo, largamente vago e variável10. TP

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Para ir contra os postulados da racionalização legal, Jerome Frank, expoente do realismo americano que tomaremos como base doutrinária neste artigo, parte dos questionamentos: apesar da ênfase de nossa era estar na mudança porque no mundo moderno persiste o sonho antigo de um compreensível e imodificável corpo de leis? Porque a maioria dos advogados insiste que a lei pode ser claramente reconhecível e precisamente previsível?11 Após questionar a busca pela TP

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racionalização, o que ele chama de mito básico, Frank insere aquilo que ele entende como possível resposta ao porque dessa busca: a vontade social. Os indivíduos, segundo Jerome, têm uma vontade de que a lei seja entendida enquanto noção inteiramente previsível, tal qual a Lei Natural, para tanto é atribuido uma motivação 10 PT

FRANK, Jerome. Law & The Modern Mind. New York: Transaction Publisher, p. 6, 2009.

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FRANK, Jerome. Law & The Modern Mind. New York: Transaction Publisher, p. 11, 2009.

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psicológica para isso. Tal motivação é o que Jerome chama de paternalidade, conceito este que, resumidamente, seria a transferência, após a vida adulta, da autoridade que a criança enxergava na figura do pai para qualquer outro ente que exerça tal autoridade: o Estado (para os positivistas) ou a Natureza (para os naturalistas). Assim como a criança enxergava a palavra do pai como verdade absoluta, após chegar à idade adulta, também a palavra do Estado tem que prescrever verdades absolutas, ou a palavra estatuída na natureza pela justa razão, e qual seria a palavra do Estado e da Natureza? A Lei. Em

linhas gerais, aquilo que Frank faz com a introdução da paternalidade, sendo ela

uma especificidade inerente ao indivíduo, é criticar o formalismo e a tecnicismo jurídico, fundamentando-se no ato individual. Os atos humanos não são idênticos a entidades matemáticas; o indivíduo não pode ser eliminado como, em equações algébricas, quantidades iguais em lados opostos podem ser canceladas. A vida se rebela contra qualquer esforço de simplificação legal. Novos casos sempre continuam a representar novos aspectos. Para fazer justiça, para fazer qualquer sistema legal aceito socialmente, as leis preestabelecidas abstratamente têm de ser adaptadas e ajustadas12. TP

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3.2 O fator político como fator de imprevisibilidade no direito internacional Para prosseguir com a defesa de que o plano jurídico internacional insere-se nesse paradigma de imprevisibilidade, é necessário então verificar através de qual aspecto o impacto da imprevisibilidade toca o Direito Internacional. E, de todo modo, a conjuntura política e a vontade política exercem o papel preponderante de influenciar a aplicação daquilo que é julgado pelas cortes de litígio internacional. A conjuntura política diz respeito à correlação de forças existentes, tanto no âmbito interno quanto internacional, que exercem influência, por exemplo, no cumprimento ou não daquilo disposto num tratado internacional, seja ele de direitos humanos ou não. A prática internacionalista fica exposta, então, a um grau de variabilidade que diz respeito tanto aos indivíduos reunidos em sociedade civil, internamente, quanto à interferência exercida por outras nações, externamente.

3.3 A sociedade contemporânea e a necessidade de um realismo internacional Com a incrementação dos meios de comunicação e de transporte, com o adimplemento de um processo globalizante extremamente dinâmico, com o acirramento de questões políticas, étnicas e culturais de ordem internacional, o horizonte de realidade tornou-se cada vez mais

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12 PT

FRANK, Jerome. Law & The Modern Mind. New York: Transaction Publisher, p. 129, 2009.

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atrofiado, ou seja, cada vez mais há uma interconexão entre sociedades e nações tornando-as mais proximas. O que se pretende com essa alegada atrofia da realidade? Tornar consumado a manifestação de uma ordem mundial na qual os conflitos sociais deixem de ser de ordem local e passem a ser inseridos numa perspectiva global. De forma que, nos últimos 70 anos, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é notável a relação dos Tratados Internacionais com aquilo que costumeiramente vem sendo chamado de questões globais. O dinamismo com que as relações sociais na era contemporânea vêm alterando-se demonstra de uma forma peculiar o quanto um entendimento jurídico que tolere, de alguma forma, a imprevisibilidade é necessário. Nesse diapasão, se levarmos em conta que os interesses presentes nos Estados e nas suas populações são concretizados por forças políticas independentes, que a conjuntura política é formada pelo embate entre diversas categorias representativas de interesses individuais autônomos, e que atualmente há uma grau sensivelmente mais amplo de diálogo entre os indivíduos de um país e de outro, é latente que, cada vez mais, a consciência individual vem exercendo papel vital nos rumos da aplicação das decisões jurídicas internacionais. A partir do mencionado, algumas questões podem ser suscitadas: De qual forma é inserida nessa conjuntura a corte de litígio internacional? E de qual forma o realismo como entendimento jurídico demonstra-se necessário? Primeiramente é necessário expor alguns entendimentos realistas que encontram-se expostos em resumo na obra do escandinavo Alf Ross entitulada “Direito e Justiça”. Ross classifica as teorias realistas em realismo psicológico e realismo comportamentista13. Os TP

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defensores da tendência psicológica entendem que as consciências individuais que estão sob a jurisdição de uma corte são determinantes no processo decisório, ou seja, ao julgar o magistrado atém-se ao entendimento hegemônico acerca da justiça que encontra amparado pela consciência popular. Já os que defendem a tendência comportamentista entendem, de forma contrária, que as consciências individuais comportam-se acerca do direito a partir da tônica dada pelo processo decisório, ou seja, o julgamento do magistrado torna-se determinante na construção da consciência popular. Ross prefere não esboçar defesa de nenhuma das duas correntes, elaborando uma doutrina sintética: Minha opinião é comportamentista na medida em que visa a descobrir consistência e previsibilidade no comportamento verbal externamente observado do juiz; é psicológica na medida em que a aludida consistência constitui um todo coerente de significado e motivação, somente possível com base na hipótese de que em sua vida espiritual o juiz é governado e motivado por uma ideologia14. TP

13 PT

ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru: Edipro, p. 97 – 101, 2000.

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ROSS, Alf. Direito e Justiça. Bauru: Edipro, p. 100, 2000.

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O que talvez seja mais coerente apontar é que as duas correntes, em verdade, não trazem apontamentos que se excluem, mas que dialogam entre si. Nesse sentido, a posição da corte de litígio internacional, não havendo coercividade nas decisões que profere, acaba por cristalizar-se como um discurso que dialoga com as consciências individuais. A partir do processo decisório que se opera nas cortes de Direito Internacional de Direitos Humanos aquilo que os indivíduos encaram enquanto Direitos Humanos é moldado, gera jurisprudência, e, mesmo havendo a soberania estatal, tal decisão repercute internamente tanto como fato social quanto como fato jurídico.

4. A soberania absoluta como resquício do jusnatruralismo A noção de Soberania do Estado surge como repercussão de teorias naturalistas, contratualistas e individualistas, sendo disseminado entendimento de que se o homem conseguiu superar o estado de natureza a nível estatal, a nível internacional tal estado de natureza continuava vigorando15. O que é interessante, já que politicamente, a idéia de um Soberano acima TP

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do qual não haveria nenhum poder terreno (potestas superiorem non recognoscens), serviu ideologicamente aos interesses do absolutismo que o ideal burguês (naturalista, contratualista e individualista por essência) suprimiu com a Revolução Francesa. E, mais interessante ainda, uma vez postas abaixo as diretrizes jusnaturalistas e lançadas as bases para um positivismo de Estado16, há uma expansão desenfreada da soberania externa estatal, dando origem às guerras e TP

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conquistas coloniais, demonstrando, mais do que nunca, a liberdade selvagem do estado de natureza hobbesiano. A manutenção da Soberania, enquanto valor ideológico básico para a configuração de ideais de sociedade tão díspares e conflitantes, significa a correlação direta entre ela e o Interesse das Nações. Hodiernamente, a igual soberania dos Estados foi proclamada nos termos mais formais no artigo 2º da Carta das Nações Unidas (1945), onde, em seu princípio primeiro, é posto que aquela Organização se baseia na idéia de igualdade entre todos os seus membros. A influência de tal premissa é reencontrada também em documentos mais recentes, haja vista a Declaração 2.625 das Nações Unidas, de 19 de outubro de 1970, que em seu 6º princípio estatui: “Todos os Estados usufruem a igualdade soberana. Têm direitos e deveres iguais e são membros iguais da comunidade internacional, apesar das diferenças de ordem econômica, social, política ou de outra natureza”.

15

FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, p. 25, 2002. TP

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16

FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes, p. 36, 2002. TP

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As Nações Unidas, da forma como está fundamentada coincide, em muitas das suas características, com a chamada liga de povos idealizada por Immanuel Kant em seu ensaio sobre a Paz Perpétua17. Essa influência kantiana é presente não só na maneira pela qual a noção pura TP

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de soberania é inserida, mas também na maneira como ocorre a adesão e o cumprimento por parte de um Estado a um instituto jurídico internacional, como é demonstrado pelo princípio 2º do artigo 2 da Carta das Nações: “Todos os Membros, a fim de assegurarem para todos em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de Membros, deverão cumprir de boa fé as obrigações por eles assumidas de acordo com a presente Carta”. A singularidade que aqui diferencia Direito Interno e Internacional é que, enquanto a nível interno aos estados, o indivíduo a ser julgado detinha a liberdade em conformidade com a igualdade, a nível internacional é a soberania da nação atrelada à igualdade, perante a comunidade de países, que figura como fonte patrocinadora dos interesses do Estado. Se os membros das Nações Unidas são encarados de forma puramente igualitária, sem levar em conta suas implicações sociais, políticas e econômicas, o ordenamento jurídico internacional hoje se configura formalmente como um resquício do racionalismo e jusnaturalismo que, internamente, foram hegemônicos nos primeiros séculos da modernidade. Para além disso, as premissas voluntaristas, que colocavam a sociedade como uma entidade gerada através da adesão do indivíduo a um contrato social, são mais do que presentes no arcabouço dogmático do atual sistema jurídico internacional. Partindo da idéia de que o sujeito a ser resguardado pela justiça a nível internacional é, em última análise, o indivíduo, e que esse indivíduo tem seus direitos obstaculizados pelo invólucro estatal da soberania absoluta, é imprescindível que tal soberania seja relativizada. Não uma relativização que a imploda, ou a desconfigure totalmente, mas, que seja similar à que ocorreu com a chamada “soberania interna” do Estado, a qual atravessou um processo de relativização que vai do Estado Absolutista até o Estado Democrático de Direito. A “soberania externa” estatal (perante a comunidade internacional) requer uma relativização que a torne adequada ao mundo contemporâneo. Este processo já se iniciou mas, no entanto, não atingiu seu ápice.

5. O processo de direito internacional de direitos humanos como práxis realista Numa perspectiva do Direito enquanto campo social em perpétua crise, isto é, sujeito a um contínuo esforço de adaptação, reintegração e transformação, o Direito Internacional é então o locus jurídico no qual tal fenômeno é hoje visto com maior expoência. Haja a delimitação pelos Estados dos chamados Direitos Fundamentais, o Direito Internacional, tendo em vista a universalização como objetivo essencial, delimita então os chamados Direitos Humanos. Afirma assim, ter como categoria básica de aplicação todo o conjunto da humanidade, sendo então o

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17 PT

KANT, Immanuel. À paz perpétua, Porto Alegre: L&PM, p. 31, 2010.

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Direito Internacional dos Direitos Humanos o ramo do Direito que visa justamente a minoração do abismo existente entre o indivíduo e a Justiça a nível internacional. Como fronteira enunciativa de tal conexão, portanto, é esse o ramo do Direito Internacional que viabiliza a construção de uma faceta pragmática ao internacionalismo, ou seja, que dá ares de realismo a um sistema que foi cunhado basicamente em preceitos idealistas. A Declaração Universal de 1948 é um marco divisório no que tange à história do Direito Internacional, assim como também a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, produzida em abril do mesmo ano. As últimas seis décadas configuraram-se, assim, um interstício temporal no qual os diversos institutos e procedimentos jurídicos internacionais foram legislados, consolidados e implementados18, sendo a Primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos TP

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(Teerã, 1968) o evento que marcou a gradual passagem da fase legislativa à fase de implementação. Atualmente, o plano internacional, se mostra constituído por um corpus juris dotado de uma multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção, de natureza e efeitos variáveis, operando nos âmbitos tanto global (Nações Unidas) quanto regional (OEA). Tais instrumentos de proteção podem ser elencados da seguinte forma: 1) petições ou reclamações; 2)relatórios; 3)determinação dos fatos ou Investigações.

5.1 Da pétição O Sistema de Petições19 está formalmente posto em diversos dispositivos internacionais, TP

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entre tais o Protocolo Facultativo Referente ao Pacto de Direitos Civis e Políticos, que diz, em seu artigo 1º: Os Estados Partes no Pacto que se tornem partes no presente Protocolo reconhecem que o Comitê tem competência para receber e examinar comunicações provenientes de particulares sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, por esses Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto. O Comitê não recebe nenhuma comunicação respeitante a um Estado Parte no Pacto que não seja parte no presente Protocolo.

No mesmo sentido do citado artigo vão também o artigo 14 da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, o artigo 22 da Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e, a nível regional, o artigo 44 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

18

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 90, 2003. TP

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19

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 100, 2003. TP

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Dessa forma a Petição, procedimento internacional no qual o indivíduo figura como vítima e o Estado ocupa o banco dos réus, sendo instado a responder por suas ações ou omissões, representa justamente a supressão da idéia de soberania como potestas superiorem non recognoscens, porém não a supressão completa da soberania. Mesmo havendo disposição estatal em reconhecer a legitimidade das comunicações individuais, há uma série de condições de admissibilidade. Uma das mais importantes e mais freqüentemente invocada condição de admissibilidade é a chamada regra de esgotamento dos recursos internos, que resguarda o ordenamento jurídico interno de ser discricionariamente devassado pelo ordenamento internacional. Para além da Petição Individual, também é posta formalmente a chamada Petição Interestatal, que autoriza o Estado parte a alegar infração de norma internacional por outro Estado, como é exemplificado pelo artigo 41 do Pacto internacional sobre direitos civis e políticos: Com base no presente Artigo, todo Estado parte do presente pacto poderá declarar, a qualquer momento, que reconhece a competência do Comitê para receber e examinar as comunicações em que um Estado parte alegue que outro Estado Parte não vem cumprindo as obrigações que lhe impõe a Pacto.

5.2 Do relatório O Sistema de Relatórios TP

20 PT

configura-se como uma interlocução entre as comissões,

designadas para supervisionar a efetividade das convenções de Direitos Humanos, e os Estados. Cabe a estes últimos o papel de compilar e remeter às comissões os dados internos que sinalizam o cumprimento, ou não, das demandas postas como cogentes quando da adesão à convenção ou tratado. A formulação de tais documentos, apesar de denegado o caráter contencioso, gera ônus políticos negativos aos países que, de alguma forma, negligenciam a proteção aos Direitos Humanos. A

conseqüência

fática

inerente

ao

sistema

de

relatórios

é

então

incorporar

responsabilidades ao Estado perante a Comunidade Internacional. Funciona ele como mecanismo de detectação do não cumprimento dos acordos firmados, sendo distinto do sistema de petições individuais, pois aquele depende exclusivamente da ação volitiva da vítima, enquanto que este surge a partir da colaboração entre um órgão supra-estatal por excelência e o Estado. Como exemplo de norma internacional onde o Sistema de Relatórios encontra-se estatuído temos, a nível regional, a Convenção Americana de Direitos Humanos (arts. 42 e 43), a Convenção 20 20

TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 122, 2003. TP

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Européia de Direitos Humanos (art. 57) e a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (art. 62), mas é a nível global que tal instituto toma maior proeminência, sendo positivado em diversos tratados e convenções das Nações Unidas.

5.3 Da investigação O Sistema de Determinação dos Fatos envolve procedimentos destinados a supervisionar violações maciças dos Direitos Humanos, não só em termos quantitativos, mas também caracterizados por sua gravidade. Não há, como no Sistema de Relatórios, uma disposição estatal no que se refere à obtenção e compilação das informações, diversamente a investigação é efetivado por órgãos internacionais, a partir do recebimento por estes de informações fidedignas da ocorrência de lesão de Direitos. O Estado, porém, é chamado a cooperar com as investigações, como bem demonstrado pelo que está inscrito no artigo 20 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Degradantes: Se o Comitê receber informações fidedignas indicando, de forma fundamentada, que aparentemente a tortura é praticada de forma sistemática no território de um Estado Parte, convidará esse Estado Parte a cooperar na análise das informações e a comentá-las, fazendo as observações que julgar pertinentes.

A demanda, tanto individual quanto estatal e supra-estatal, por resposta à supressão de direitos pelo Estado, já acarretou modificações da legislação interna. Assim como, empecilhos políticos a governantes que atuam com negligência perante o cumprimento de acordos internacionais que tratam de Direitos Humanos. Sendo, nesse sentido, que, atualmente, o processo de Direitos Humanos acaba cumprindo seu papel de transformação da realidade social. Numa perspectiva de incorporação das vias que o indivíduo tem de submeter ao Estado uma linha de evolução que seja condizente com o contexto sociológico no qual seus direitos são postos à prova.

6. Reflexões finais O espaço destinado ao embate jurídico, seja ele atinente ao Direito Internacional ou ao Direito Interno, não pode ser atrelado apenas a uma composição metafísica a qual os homens chamam justiça. A aplicação do Direito ocorre no campo da realidade, os horizontes do processo jurídico se interligam a uma conjuntura social e política inteiramente imprevisível e irredutível a modelos, a vida não se reduz a artigos, o homem não se reduz a princípios.

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Numa época como a atual, na qual a lesão de Direitos Humanos ocorre de uma forma tão desbragada, e a Dignidade Humana é tratada de maneira banal, a preocupação com o fato social se torna vital para a evolução dos Direitos Humanos internacionalmente. Torna-se imprescindível, então rever algumas bases do internacionalismo jurídico, redimensionando-o, sendo essa a intenção fundamental do presente trabalho.

Referências bibliográficas CARDOZO, Benjamin N. A Natureza do Processo Judicial. Tradução Silvana Vieira; Revisão técnica e da tradução Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FERRAJOLI, Luigi. A Soberania no Mundo Moderno: nascimento e crise do Estado nacional. Tradução Carlo Coccioli, Márcio Lauria Filho; revisão da tradução Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FRANK, Jerome. Law & The Modern Mind. New York: Transaction Publisher, 2009. HERVADA, Javier. O que é direito? A moderna resposta do realismo jurídico. Tradução Sandra Martha Dolinsky; Revisão da Tradução Elza Maria Gasparoto; Revisão técnica Gilberto Callado de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes, 2006. KANT, Immanuel. À paz perpétua. Tradução Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM, 2010. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. KELSEN, Hans; CAMPAGNOLO Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. Organizador Mario G. Losano; Tradução Marcela Varejão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. MARITAIN, Jacques. Os Direitos do Homem e a Lei Natural. Tradução Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1947. ROSS, Alf. Direito e Justiça. Tradução Edson Bini; Revisão Técnica Alysson Leandro Mascaro. Bauru: Edipro, 2000. TRINDADE, Antonio Augusto Cancado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 2.ed. rev. atual Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.

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Realismo Jurídico e Critical Legal Studies: diferentes posturas críticas do Direito Gilmara Joane Macêdo de Medeiros1 TP

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Resumo

Abstract

O presente trabalho tem como pano de fundo da discussão um estudo comparativo entre as posturas críticas diante do Direito elaboradas pelo Realismo Jurídico e pelo Critical Legal Studies. Considerando os diferentes contextos históricos e sociais em que se desenvolveram e a pluralidade de posicionamentos existentes dentro de ambas as correntes, tomaremos como base desta discussão dois autores que representam em suas obras, respectivamente, o Realismo Jurídico e o Critical Legal Studies, quais sejam eles: Benjamin Cardozo e Ducan Kennedy. O ponto de partida para esta análise será demonstrar como estes autores analisam o processo de criação do direito realizado pelos juizes, ou seja, como a partir da análise do processo de tomada de decisão judicial discutem a distinção existente entre criar e aplicar o direito. É a partir desta análise que se pretende demonstrar as diferentes conclusões críticas a que chegam: o reconhecimento de que elementos inconscientes (gostos, preconceitos, preferências) dos juizes integram a decisão judicial sem abandonar o paradigma liberal e positivista do Direito, adotado por Cardozo; e, a demonstração do papel ideológico do direito e das decisões judiciais, com severas críticas ao modelo liberal e capitalista feitas por Duncan Kennedy.

The following essay has as its background a comparative study between the critical approaches to Law as posed by the Legal Realism and the Critical Legal Studies. Considering the different historical and social contexts in which these have developed and the diversity of existing possibilities within both schools of thought, two authors who represent, respectively, the Legal Realism and the Critical Legal Studies, will be taken into account: Benjamin Cardozo and Duncan Kennedy. The starting point to this analysis is to demonstrate how these authors view the process to creation of law make for the judges, that is, how the distinction between creating and enforcing law is made. From this study, the different critical conclusions to which they get are intended to be shown: the acknowledgement of unconscious elements (tastes, prejudice, preferences) of judges integrate the legal decision without compromising the liberal and positivist paradigm of Law, as adopted by Cardozo, as well as the demonstration of the ideological role of Law and Legal Decisions, with fierce criticism to the liberal and capitalism model posed by Duncan Kennedy.

Palavras-Chave: Direito; Ceticismo; Realismo Jurídico; Critical Legal Studies; Decisão Judicial.

Keywords: Law; Ceticism; Legal Realism; Critical Legal Studies; Legal Decisions.

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Universidade Federal da Paraíba. [email protected] TU

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1. Introdução: o Realismo Jurídico e o Critical Legal Studies O presente artigo pretende apresentar de forma sucinta as principais características do Realismo Jurídico americano e do Critical Legal Studies (CLS), levando em consideração os diferentes contextos sociais e políticos em que se desenvolveram e realizando um estudo comparativo entre estas formas de enxergar o Direito. Tendo em vista a pluralidade de posicionamentos dentro destas correntes e assumindo o risco de estabelecermos uma análise que não representa a totalidade tanto do Realismo Jurídico quanto do Critical Legal Studies, escolhemos como base deste trabalho dois autores que pertencem a tais correntes, respectivamente: o Benjamin Cardozo no livro A natureza do processo judicial2 e Duncan Kennedy na obra Izquierda y Derecho: ensayos de teoría jurídica crítica3. TP

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É com base nestes autores, em especial na análise que fazem sobre o processo de tomada de decisão judicial, que vamos tentar traçar os posicionamentos críticos assumidos pelo olhar realista e do Critical legal studies em relação ao Direito. O Realismo Jurídico americano e o Critical Legal Studies são duas correntes do pensamento jurídico que se desenvolveram nos Estados Unidos em períodos históricos diversos, respectivamente no fim do século XIX e início do XX e nos anos setenta deste último século, e que, apesar das grandes diferenças existentes, lançam sobre o Direito um olhar cético. Quando empregamos a palavra ceticismo nos referimos ao “desencantamento” com a visão formalista do Direito presente em ambas correntes, qual seja o questionamento de que este é um sistema de regras, conceitos e princípios, autônomo e logicamente coerente. A visão formalista do Direito não conseguia dar resposta às necessidades sociais de cada período, tampouco à crescente ênfase no processo decisório, pois dentro desta lógica a decisão judicial seria parte do processo de descoberta do direito diante do caso concreto a partir de uma dedução lógica dos materiais jurídicos apresentados (fontes do direito). Desta forma, o juiz e o judiciário se apresentam como atores neutros que aplicam o direito pela necessidade lógicodedutiva do caso concreto, de forma que “a decisão final era tida como uma questão de necessidade, e não de escolha” 4. TP

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Ambas as correntes se desenvolvem a partir do questionamento desta visão tradicional do processo de decisão judicial, atribuindo mais ênfase ao papel do judiciário na criação do direito (processo de atribuir sentido às normas, de interpretá-las) e, portanto, dos juízes. Este fato não se dá à toa, especialmente quando observamos que o palco de desenvolvimento histórico das mesmas são os países que organizam o direito através do sistema do common law – sistema de 2 PT

CARDOZO, Benjamin Nathan. A natureza do processo judicial. 1°ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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3

KENNEDY, Duncan. Izquierda y derecho – Ensayos de teoria jurídica crítica. 1° ed. Buenos Aires: Siglo Veinteuno Editores, 2010. TP

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4

MORRISSON, WAYNE. Filosofia do direito: dos gregos aos pós-modernos. 1°ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 542. TP

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organização do Direito que se fundamenta nos precedentes da jurisprudência e não exclusivamente na legislação5. TP

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É a partir do questionamento do formalismo que irão desenvolver estratégias diferenciadas em relação ao Direito. A discussão do ponto de vista da filosofia pragmática de que o mesmo é experiência e que o processo de decidir também é criativo, realizada pelos realistas. E a afirmação de que o Direito é uma forma de dominação social que expressa a ideologia liberal assentada no modelo de sociedade sexista, racista e excludente que é o capitalista, realizado pelo Critical Legal Studies.

2. O Realismo Jurídico O Realismo Jurídico6 é uma corrente jusfilosófica do Direito que se desenvolve no início do TP

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século XX nos Estados Unidos da América (EUA) e tem como principais referenciais teóricos Oliver Wendell Holmes Jr., Benjamin Cardozo, Roscoe Pound, Jerome Frank, dentre outros. Esta corrente se desenvolve a partir de argumentos progressistas e questionadores do formalismo e idealismo presentes nos tribunais americanos. Dois dos principais nomes do Realismo Jurídico, como Oliver Wendel Holmes Jr. e Benjamin Cardozo foram juízes da Suprema Corte Constitucional dos EUA, o que de certa forma, evidencia a ênfase dada por esta corrente na atividade judicial de decisão. Algumas características são de grande importância para a compreensão do Realismo Jurídico americano, em especial a influência da filosofia pragmática mais ligada aos filósofos Charles Sandres Pierce, William James e John Dewey e ao jurista Oliver Wendell Holmes Jr.7. TP

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O pragmatismo tem sua expressão em diversos âmbitos do conhecimento, contudo, interessa-nos apenas a sua vertente da filosofia geral e do Direito. Importante afirmar que o pragmatismo não é uma corrente da filosofia homogênea, existindo diversas variações dentro da mesma, incluindo visões que se contradizem8. TP

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SABADEL, Ana Lucia. Manual de Sociologia Jurídica: introdução à leitura externa do direito.2°ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p.38.

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Quando falamos em Realismo Jurídico na realidade estamos no referindo ao desenvolvimento desta corrente nos EUA, ou seja, falamos do realismo jurídico americano. Neste trabalho não há qualquer referência ao realismo jurídico escandinavo.

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7

Importante afirmar que estes participaram do clube metafísico de Boston, nascedouro das idéias pragmáticas que alimentariam o Realismo Jurídico. GODOY, Arnaldo Moraes de Sampaio. O realismo jurídico em Oliver Wendell Holmes Jr. Disponível em: < http://jus.uol.com.br/revista/texto/10217/o-realismo-juridico-em-oliver-wendell-holmes-jr> Acesso em: 20.jul.2011. TP

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REGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia jurídico-pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr. Disponível em: Acesso em: 20.jul.2011. PT

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Feitas estas considerações iniciais, o pragmatismo pode ser compreendido como uma filosofia que tem como objeto de sua preocupação a ação, os efeitos práticos do conhecimento, ou seja, é uma “corrente filosófica cujo eixo central é a ênfase na utilidade prática da filosofia”9. TP

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Nessa busca por uma utilidade prática da filosofia, o pragmatismo buscou romper com o idealismo filosófico, criticando o dualismo do conhecimento x experiência10. Conhecer na filosofia TP

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pragmática, em especial de Dewey, é experimentar, ou seja, saber quais são as implicações práticas dos conceitos formulados. Fortemente impregnado pela filosofia pragmática, em especial pela idéia de experiência (efeitos práticos concebíveis de uma teoria) é que o Realismo Jurídico vai se desenvolver como a vertente jurídica do pragmatismo, lançando críticas à visão formalista do direito e abordando o processo decisório de forma diferente da apregoada por esta visão. O Realismo Jurídico não se desenvolve como uma escola jurídica, mas como um movimento doutrinário dentro do Direito que tece críticas à metefísica, na medida em que rejeita os altos graus de abstração11 afirmando que conhecimento/Direito é experiência, e lança um olhar TP

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cético frente ao formalismo jurídico. Opondo-se ao formalismo legal que o antecedera, bem como a chamada concepção analítica do direito, o pragmatismo jurídico, vê o Direito sob um prisma sociológico e não puramente lógico. Sendo o Direito um fenômeno histórico, sua compreensão se funda necessariamente, nos efeitos práticos que as ações produzem; cabendo ao juiz atuar como um intérprete ativo da norma, pois esta, como fenômeno lingüístico, é comunicativa e transmite informações que precisam ser devidamente interpretadas, à luz das ocorrências empíricas12. TP

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Sob a máxima “a vida do Direito não tem sido lógica: tem sido experiência”13 é que Oliver TP

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Wendell Holmes Jr., precursor do realismo, introduz o conceito de Direito como experiência. Esta passa a ganhar espaço em detrimento da pura lógica no processo decisório, especialmente na medida em que admite o papel de criação do Direito que é exercido pelos tribunais. A vida do direito não tem sido lógica: tem sido experiência. As necessidades sentidas na época, a moral dominante e as teorias políticas, as intenções das políticas públicas, confessadas ou inconscientes, e até os preconceitos que os juizes compartilham com os seus concidadãos têm tido muito mais influência do

9

FREITAS, Lorena de Melo. Ideologia e Direito: uma pesquisa empírica sobre a associação dos juízes para a democracia. Recife: o autor, 2006, p. 62. TP

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10

SOUZA, Rodrigo Augusto. A Filosofia de John Dewey e a epistemologia pragmatista. in: Revista Redescrições: revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana. Ano 2, Número 1, 2010, p. 41. TP

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Neste sentido: “(...) ser pragmatista ao analisar o direito significa considerar que as teorias se tornam impraticáveis quando o seu grau de abstração é excessivo”. FREITAS, Lorena. O realismo jurídico como pragmatismo:a retórica da tese realista de que direito é o que os juizes dizem que é direito. Recife: o autor, 2009. TP

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REGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia jurídico-pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr. Disponível em: Acesso em: 20. Jul. 2011. TP

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HOLMES JR, Oliver Wendell. The common law. London: Macmillan & CO, 1882, p. 1.

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que o silogismo ao determinar as regras pelas quais os homens devem ser governados14. (tradução nossa) TP

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O realismo volta seu olhar, em especial, para o processo de tomada de decisão, atacando a idéia do formalismo jurídico que afirma que o juiz ao julgar “descobre” a decisão através da pura lógica, quando simplesmente aplica a norma ao caso concreto: o juiz é a “boca da lei”. Para os realistas, vários outros elementos que ultrapassam a fronteira da lógica estão presentes no momento em que o juiz decide, como gostos, preferências, preconceitos. Esta a oposição ao formalismo não significa, contudo, um rompimento com preceitos dogmáticos ou uma superação do positivismo jurídico, pois, como bem aponta Wayne Morrisson15, TP

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a oposição realista ao formalismo era pragmática, estava preocupada com os entraves ao desenvolvimento do direito que o puro formalismo ocasionava, pois este não era capaz de fornecer aos profissionais desta área um aumento na sua capacidade de prever os resultados dos litígios e tampouco capaz de oferecer a estrutura necessária para responder à conflitos legislativos daquele período16. TP

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O Realismo Jurídico, desta forma, não abandona o viés positivista e liberal de organização do direito. Esta corrente no seu desenvolvimento esteve preocupada em “tornar o sistema jurídico ainda mais eficiente, em seu papel de instrumento de mudança social e desenvolvimento social, do que pretendia o pensamento político liberal dominante”17. Pretensão esta que não faz parte do TP

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conjunto de idéias do movimento Critical Legal Studies, como veremos mais abaixo.

3. O Critical Legal Studies Sob o jargão “Direito é política” e diante do conturbado cenário de guerra-fria e de contracultura dos anos setenta é que o movimento do Critical Legal Studies ganha espaço na filosofia jurídica norteamericana. É em 1976, a partir da organização de um evento na Universidade de Wisconsin onde foram reunidos pesquisadores que desenvolviam abordagens críticas do direito, que as idéias centrais do Critical Legal Studies Movement são formuladas. Seus representantes associaram a indagação jurídica à contra-cultura e ao protesto político dos anos sessenta, azeitados pela oposição à aventura no Vietnã, pela defesa dos direitos civis e pela desegregação racial. Denunciaram que o modelo jurídico formalista do liberalismo econômico sustenta relações sociais não igualitárias. Pugnavam por experiências conceituais orientadas para a realidade 14

“The life of the law has not been logic: it has been experience. The felt necessities of the time, the prevalent moral and political theories, institutions of public policy, avowed unconscious, even the prejudices witch judges share with the fellow-man, have had a good deal more to do than syllogism in determing the rules by which man should be governed”. HOLMES, op cit, p.1. TP

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15 PT

MORRISON, op cit. p.541.

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16

Interessante observar que o final do século XIX e início do XX foi palco de mudanças legislativas no que diz respeito aos direitos sociais e econômicos que divergiam da lógica individualista-liberal vigente no direito. TP

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17 PT

MORRISON, op cit. p.541.

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vivente e não para a curiosidade abstrata. (...) Percebeu-se o direito como uma ideologia política legitimadora da sociedade norte-americana, seguidora dos cânones do neoliberalismo. Afirmou-se que somente o jurista neoliberal acredita que a lei é racional e objetiva.18 T

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O Critical Legal Studies consiste em um movimento ou “rótulo geral19” que abriga diversas TP

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abordagens “subversivas20” perante a tradição do saber jurídico. Alguns nomes integram esta TP

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corrente como: Duncan Kennedy, Mangabeira Unger, Patricia Williams, Mark Kelman e a feminista Frances Olsen. Na obra dos crits (como são chamados os integrantes do movimento) a crítica ao Direito, muitas vezes, é acompanhada de reflexões sobre o feminismo, racismo, heterossexismo e luta de classes. Ducan Kennedy21, um dos grandes expoentes do movimento, afirma que este se encontra TP

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alicerçado entre dois projetos distintos, o da esquerda e o do modernismo/pós-modernismo, forças que algumas vezes se complementam e e noutras se contradizem. Desta forma, o cls se encontra entre a tentativa de modificar as estruturas de hierarquia social (classe, gênero e raça), objetivo do projeto de esquerda, e a tentativa de alcançar experiências estéticas, emocionais e intelectuais que estejam à margem ou nas lacunas dos processos racionalizantes, projeto que o mesmo denomina de modernista-pós-modernista (mpm). O movimento do CLS apresenta uma visão pós-positivista, de esquerda, questionadora do liberalismo e do capitalismo, que lança severas críticas ao formalismo jurídico e propõe a substituição do positivismo pelo método hermenêutico22. Apresenta ainda a crítica à idéia de que o TP

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conhecimento científico é objetivo e neutro, desvendando uma série de falhas e contradições do suposto desenvolvimento racional do direito. O movimento é apontado por alguns autores como um desenvolvimento do realismo jurídico americano23. Wayne Morrisson24 considera que o CLS critica as bases sob as quais o TP

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próprio realismo jurídico foi erigido. Ao comparar ambas as correntes, este autor considera que o olhar cético que estes voltam ao direito possui origens distintas, estando o Realismo Jurídico, como já argumentamos anteriormente, alicerçado num ceticismo mais moderado, que volta seu 18 PT

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito nos Estados Unidos.1°ed. Barueri-SP: Manole, 2004, p. 235.

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19 PT

MORRISSON, op cit, p. 540.

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20 PT

Idem.

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21

KENNEDY, Duncan. La crítica de los derechos en lo Critical legal Studies. Revista Juridica de la Universidad de Palermo. Disponível em: . Acesso em: 10.jun.2011. TP

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22 PT

MORRISSON, op cit, p. 540.

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Neste sentido: “A herança cultural do realismo jurídico norte-americano foi apropriada por liberais e conservadores, pela esquerda e pela direita. A esquerda radicalizou concepções realistas formatando o critical legal studies, relacionando direito e política, sob o lema law is politics (o direito é política).A direita apropriou-se do pragmatismo realista e desenvolveu o movimento law and economics, relacionando direito e economia, lendo aquele, sobre a ótica dessa.” GODOY, op cit, p.235. TP

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24 PT

MORRISSON, op cit, p.451.

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questionamento ao formalismo jurídico e ao conservadorismo ensejado por este, acreditando que o formalismo reproduzia uma imagem equivocada da realidade do processo judicial. Desta forma, o Realismo Jurídico não abdica do marco político liberal e do próprio positivismo jurídico. O ceticismo proveniente do CLS é radical, pois questiona o próprio direito, considerando-o parte integrante do processo de dominação e subordinação humana, ou seja, considera o direito e o discurso jurídico um complexo processo de poder, legitimador de tal dominação. Para eles o formalismo jurídico pautado numa imagem do direito como um sistema de normas, coerente, lógico e autônomo não é uma questão de equívoco, pois o Direito, mesmo que se diga o contrário, é incoerente e irracional. Os adeptos do CLS eram céticos acerca da própria base do liberalismo moderno e acreditavam que boa parte da prática jurídica facilitava as formas de dominação política que constituíam a organização social injusta e desigual que os CLS julgavam encontrar na organização social moderna. A formação jurídica justificava a organização social moderna ao dar-lhe uma certa justificação racional ou natural, em vez de afirmar que era siplesmente o resultado de complexos processos de poder político25. TP

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Há nesta corrente a busca pela destruição do aspecto racionalizante da vida moderna. O direito é compreendido como um instrumento da modernidade que é adjetivada como “sã, racional, funcional26”, de forma que, destruir os aspectos racionalizantes da vida moderna expõe e TP

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prova o fato de que o direito produzido no âmbito do capitalismo é contraditório e político. Faz-se importante afirmar que a crítica do Direito desenvolvida pelo CLS também remete a uma reflexão das alternativas buscadas pela esquerda no cenário político dos EUA nos anos 70, 80 e 90. As lutas sociais desses períodos articularam suas demandas em torno do direito, do reconhecimento e da concessão dos mesmos aos seus grupos de interesse. Isto ocorreu, segundo Kennedy27, porque no imaginário político da modernidade o discurso jurídico funciona TP

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como mediador entre juizos fáticos e valorativos, entre o interesse de grupos e o interesse de todos. Esta mediação só é possível porque o Direito possui duas características fundamentais, ele é tanto universal como é factual, objetivo28. TP

25

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MORRISSON, op cit, p.541.

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26 PT

Idem, p, 547.

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27

KENNEDY, Duncan. La crítica de los derechos en lo Critical legal Studies. Revista Juridica de la Universidad de Palermo. Disponível em: . Acesso em: 10.jun.2011. TP

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Os CLS viram o nascedouro e desenvolvimento das lutas sociais que se articulavam em torno da categoria identidade como as reinvindicações do negros, das mulheres, dos homossexuais, etc. Boa parte dessas lutas reivindicavam uma reinterpretação da constituição americana e, por consequência, o reconhecimento de direitos específicos de grupos. Duncan Kennedy acredita que é no desenvolvimento destas lutas por identidade que há um encontro entre a intelligentsia liberal (constitucionalismo, reconstrução de direitos na filosofia jurídica e a afirmação das identidades) e o pensamento de esquerda, ao ponto que o referido autor chega a afirmar que “los liberales de izquierda eran ahora la izquierda” (p.51). A partir deste encontro houve um depósito das reivindicações na “crença” no Direito, pois só este era capaz de conferir objetividade às mesmas, potencializando o discurso das reivindicações que deixavam de ser “preferências” políticas e ganhavam o status de abstratas e universais, características próprias daquele. Os crits participaram dessa construção, ao passo que viram a desilusão que as conquistas de direitos legais acarretaram, pois TP

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É diante deste cenário, que a esquerda se articula com a intelligentsia29 liberal, passando a TP

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depositar a crença de transformação no discurso jurídico e no Direito. Para Kennedy, esta articulação significou para a esquerda o abandono do projeto da luta de classes (proletariado x burguesia). Este processo provocou a reflexão sobre a centralidade do direito na política norteamericana, assim como uma percepção da ambiguidade do mesmo, que passa a ser visto como uma simples retórica, significado máximo da perda de “fé” encabeçada pelos crits. Perder a fé na razão judicial significa experimentar a argumentação jurídica como “mera retórica” (porém não “errônea” ou “sem sentido”). A experiência da manipulação começa a ser vista em todas as partes, e parece óbvio que qualquer que seja o fato que decide o resultado, não é a aplicação correta do raciocínio jurídico sobre o dever de fidelidade interpretativa. Isto não significa dizer que o raciocínio jurídico nunca produza um fim. Pode fazê-lo, porém quando assim sucede, experimentar este fato não implica para uma pessoa que tenha perdido a fé, que o dito “fim” estivera fundamentado em algo que estivesse “fora”, algo a que o raciocínio jurídico fizera referência. Simplesmente foi uma experiência e podia ter terminado de outro modo (se um houvesse seguido outra linha de trabalho, por exemplo). (tradução nossa)30. TP

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Importante entender o significado que o ceticismo aponta na obra do Critical Legal Studies. A perda de fé no Direito e na argumentação jurídica são duas faces de um mesmo processo. São produtos de um longo percurso de crítica interna, não sendo resultados ou consequências de uma teoria específica. Esta, no entanto, não aponta para o caminho da redução do Direito, mas caminha muito mais no sentido de uma desconfiança permanente do mesmo, na percepção de que este não é uma simples linguagem ou um discurso neutro, desprovido de interesses e ideologias. A crítica interna é uma expressão da perda de fé na possibilidade de formular em termos conclusivos ou ainda de decidir inicialmente sobre exigências importantes através de uma elaboração “lógica”, “analítica” ou “racional” dos direitos. É um ataque a afirmação de que os direitos mediam entre os fatos e os valores, o racional e o subjetivo, o político e o jurídico, o direito e a política. É uma postura de distância de atitudes de um grupo particular de pessoas, em alguns momentos, quando exigem coisas dentro da ordem liberal e quando exigem inclusão a partir de uma posição de exclusão e opressão. A distância provêm da perda de fé no caráter racional pressuposto no projeto de definição dos direitos. (tradução nossa)31. TP

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estas não foram capazes de modificar a situação de opressão vivenciada pelos mesmos grupos, e, desta forma, passaram a apregoar a perda da “fé” no Direito e no discurso jurídico. 29

Em Kennedy, intelligentsia assume o sentido de forma de pensar o mundo, de uma visão de um grupo de interesses que, na medida em que pretende ser universal, transforma-se numa ideologia. TP

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30

“Perder tu fe en la razón judicial significa experimentar la argumentación jurídica como “mera retórica” (pero no como “errónea” o “sin sentido”. La experiencia de la manipulación comienza a verse en todas partes, y parece obvio que cualquiera sea el factor que decide el resultado, no es la aplicación correcta de un razonamiento jurídico bajo el deber de feidelidad interpretativa a los materiales. Esto no significa que el razonamiento jurídico nunca produzca un cierre. Puede hacerlo, pero cuando ello sucede, experimentar este hecho no implica, para una persona que haperdido la fe, que dicho cierre estuviera basado en algo que está “ahí afuera”, algo a lo que razonamiento jurídico hiciera referencia. Simplemente fue una experiencia, y podría haber terminado de otro modo (si uno hubiese seguido otra línea de trabajo, por ejemplo).” KENNEDY, Duncan. La crítica de los derechos en los Critical Legal Studies. In Revista Jurídica de la Universidad de Palermo. 2002. p. 59.

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31 “La crítica interna es una expresión de la pérdida de fe en la posibilidad de formular en términos concluyentes, o aun de decidir inicialmente, sobre demandas sustantivas a través de una elaboración “lógica”, “analítica” o “razonada” de los TP

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A permanente desconfiança em relação ao Direito e ao discurso jurídico e a denuncia das articulações dos mesmos com o sexismo/machismo, com o capitalismo e com o racismo é o legado que deixado pelo CLS. Demonstraremos abaixo como isto se apresenta na visão de Duncan Kennedy ao discutir o processo de tomada de decisão e atividade judicial.

4. O processo de criação do Direito em Benjamin Cardozo e em Duncan Kennedy Iniciaremos a argumentação deste ponto com a análise da obra A natureza do processo judicial do Benjamin N. Cardozo. Esta obra é de grande importância para o cenário do Realismo Jurídico e é na realidade a sistematização de quatro conferências proferidas pelo mesmo na universidade de direito de Yale e publicadas em 1921. Cardozo logo na introdução da primeira conferência da obra afirma que acredita ser a lei criada pelos juizes uma das realidades da vida32 e apresenta uma série de questionamentos sobre TP

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como o juiz deve ser posicionar no momento em que tem que decidir um caso: o que ele faz? Quais fontes utiliza? Até que ponto estas fontes são de utilidade para o resultado? Quando se pode recusar a adesão ao precedente? Até onde a busca pela lógica, coerência e simetria da estrutura jurídica deve seguir? A preocupação central de Cardozo era a de evidenciar como a tomada de decisão realizada cotidianamente nos tribunais era uma atividade que participava do processo de criação do direito. A ênfase no momento de decidir dada pelo mesmo desvenda que este não é guiado somente pela norma, pela coerência e dedução lógica, que pretendia o formalismo, mas que outros elementos, conscientes ou não, integram este momento decisório. Desta forma, uma série de escolhas e elementos subjacentes (ingredientes) temperariam a “estranha mistura que se prepara diariamente no caldeirão dos tribunais33” TP

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Cardozo retoma o conceito de experiência aplicado ao direito, às normas, para afirmar que o direito criado nos tribunais está em permanente processo de transformação, processo este impulsionado pela sociedade, pela própria necessidade de manutenção da coerência, dentre outros. É através do experimento das normas (sua aplicação) que o juiz conhece os resultados

derechos. Es un ataque a la afirmación de que los derechos median entre hechos y valores, lo racional y lo subjetivo, lo político y lo jurídico, el derecho y la política. Es una postura de distancia respecto a una particular actitud de cierta gente, en algunos momentos, cuando demanda inclusión desde una posición de exclusión y opresión. La distancia proviene de la pérdida de fe en el carácter racional presupuesto en el proyecto de la definición de los derechos”. KENNEDY, 2002, op cit.p.82 32 PT

CARDOZO, op cit, p.2

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33 PT

CARDOZO, op cit, p.2.

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práticos produzidos pela mesma e é a partir deste conceito que Cardozo adota um visão mais dinâmica do direito, afirmando que este não é capaz de engessar o fluxo histórico34. TP

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Cada nova causa é uma experiência; e, se a norma aceita que parece ser aplicável produz um resultado que parece ser injusto, a norma é reconsiderada. Pode ser que não seja modificada de imediato, pois a tentativa de fazer justiça absoluta em cada caso isolado impossibilitaria o desenvolvimento e a manutenção de normas gerais; porém, se a norma continua a produzir injustiça, terminará por ser reformulada.35 TP

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O reconhecimento de que os tribunais criam o direito, ou seja, o fato de que ao atribuirem sentido às normas as modificam através da repetida experiência, não implica na conclusão de que isto se adequaria ao puro decisionismo. Esta é uma das preocupações de Cardozo que elenca um conjunto de métodos36 para utilização pelos juizes no momento em que se deparam com o caso TP

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concreto, quais sejam: o método da filosofia, da evolução, da tradição e da sociologia. Ao reconhecer, portanto, como reconheço, que o poder de declarar a lei traz consigo o poder e, dentro de certos limites, o dever de criar a lei quando não existe nenhuma, não pretendo alinhar-me com os juristas que parecem acreditar que, na realidade, não existe lei a não ser a decisão dos tribunais.37 TP

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Não é o nosso interesse neste ensaio descrever os métodos que Cardozo utiliza em sua argumentação, o que nos interessa no momento é o reconhecimento de que a atividade judicial é uma atividade criativa, contudo, é uma atividade limitada pelo dever de justificação normativa, ou seja, pela inegabilidade dos pontos de partida (adesão ao precedente). Lorena Freitas38 afirma TP

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que o realismo jurídico, ao dizer que direito é o que os juizes dizem que é direito, o faz a partir do apego à moldura normativa ou, como já afirmamos, da adesão ao precedente. Interessante observar que Cardozo, tal qual já foi afirmado sobre o realismo jurídico, assume uma postura moderada em relação à atividade de criação do direito através do processo decisório/interpretativo, não assumindo uma postura polarizada. Desta forma, podemos concluir que a visão deste não se adequa nem ao pólo do formalismo nem ao pólo do decisionismo39, TP

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assumindo, portanto, uma atitude moderada.

34 PT

Idem,p, 43.

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35 PT

Ibidem, p, 12.

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36

Os métodos descritos por Cardozo não só expressam uma preocupação com os procedimentos a serem tomados no momento decisório, mas também evidenciam uma crítica ao puro formalismo que restringia à atividade de decisão judicial à pura dedução-lógica. Neste sentido, outra passagem ilustrativa na obra: “Penso que a lição que nos ensina o exame dos métodos judiciais é a de que toda a matéria da teoria do Direito é mais flexível, mais maleável, os moldes menos definitivos, os limites de certo e errado menos preordenados e constantes, do que a maioria de nós, sem a ajuda de alguma análise desse tipo, se acostumou a crer.” (p.119) TP

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37 PT

CARDOZO, op cit, p, 91.

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38 PT

FREITAS, op cit, 2009. p.34.

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Neste sentido, importante a reflexão realizada por Lorena Freitas ao diferenciar o realismo jurídico do decisionismo. A autora afirmar que o decisionismo concebe o direito como fruto da arbitrariedade do julgador, enquanto que o realismo fala acerca de uma margem de discricionariedade que não pode ser confundida com a primeira, pois não nega preceitos PT

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Outro ponto interessante a ser ressaltado em Cardozo é que o processo de tomada de decisão é também um momento de escolhas pessoais do juiz, momento em que incide não apenas a sua capacidade técnica (de pesquisa, fundamentar e comparar normas) como há influência de “algo mais”40. Este “algo mais” nem sempre é consciente, declarado, percebido, mas TP

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integra o processo decisório e, portanto, o momento de criação do direito. É o que o próprio Cardozo chama de elementos subconscientes da decisão judicial: “bem abaixo da consciência residem outras forças, os gostos e as aversões, as predileções e os preconceitos, o complexo de instintos, emoções, hábitos e convicções que compõem o homem, seja ele litigante ou juiz41”. O TP

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autor vai mais adiante e afirma que há uma recusa em discutir a presença destes elementos, como se o reconhecimento da existência dos mesmos implicasse na perda de respeito e confiança dos juizes. os juízes não ficam isolados nessas alturas gélidas e distantes; e não favorecemos a causa da verdade se agirmos e falarmos como se assim fosse. As grandes marés e correntes que tragam o restante dos homens não se desviam do curso para passar longe dos juízes. Gostamos de imaginar que os processos de justiça são friamente objetivos e impressoais. O Direito, concebido como uma entidade real que vive distante e solitária, articulada, por meio das vozes de sacerdotes e ministros, as palavras que eles não têm escolha a não ser proferir. (...) Soa sublime, é dito com clareza e elegância, mas nunca será mais do que parcialmente verdadeiro.

Os elementos subconcientes do processo de decisão judicial serão chamados por alguns autores de ideologia42. Este é o ponto de partida para iniciarmos a discussão realizada pelo TP

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Duncan Kennedy no livro “Izquierda y Derecho: ensayos de teoría jurídica crítica”. Para este autor as ideologias (liberalismo e conservadorismo) influenciam o processo de produção do Direito nos Estados Unidos. Contudo, o seu foco não é direcionado para o âmbito do poder legislativo, mas sim no espaço do judiciário, afirmando que uma criação do Direito ideologicamente orientada se dá de forma distinta quando comparadas estas duas esferas, daí a ênfase nos efeitos sociais da decisão. Interessa-nos para efeitos deste trabalho a criação do Direito no âmbito do judiciário. Antes de darmos início a discussão realizada por Kennedy, faz-se necessário compreender três conceitos trazidos pelo autor, quais sejam: ideologia, comportamento estratégico e hermenêutica de suspeita. Estes estão articulados em toda a discussão que o mesmo realiza sobre os efeitos da decisão judicial numa sociedade dividida em grupos de interesse.

fundamentais do direito como a ingeabilidade dos pontos de partida, ou seja, a necessidade de justificar dentro da estrutura normativa a sua decisão. FREITAS, op cit, 2009. p. 13. 40 PT

CARDOZO, op cit. p. 2.

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41 PT

Idem. p.124.

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42 PT

Neste sentido: FREITAS, op cit, 2006. p.65 e KENNEDY, op cit, 2010 p.27.

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A ideologia43 aparece em sua obra como um projeto de universalização de uma TP

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intelligentsia, que representa interesses de um grupo social que se encontra em conflito com outros. Kennedy identifica como ideológicas a intelligentsia liberal e conservadora. A ideologia é um projeto que pretende universalizar uma forma de pensar as relações sociais que está instrínsecamente relacionada com a defesa de interesses de grupos. Ao defini-la como um projeto, este admite a dificuldade de definir o que conservadorismo e liberalismo são, revelando a plasticidade do termo que emprega para analisar a retórica judicial. O comportamento estratégico é a atitude que os juízes tomam no momento de decidir, de eleger, a partir de preferências externas (não completamente baseado nos materiais jurídicos disponíveis, ou seja, de acordo com suas preferências ideológicas) uma das possíveis soluções que podem ser dadas ao problema jurídico que estes tenham que analisar. Desta forma, o comportamento estratégico, é a eleição de um efeito retórico específico baseada em preferências pessoais dos juizes e fundamentada de acordo com os materiais jurídicos (fontes do Direito) disponíveis. Já a hermenêutica de suspeita resume a proposta realizada pelo Critical Legal Studies, qual seja: uma postura de desconfiança de que os discursos jurídicos são autônomos dos discursos políticos, ou seja, uma descrença nas características tradicionalmente atribuídas ao Direito como neutralidade, objetividade, racionalidade, dentre outras. A hermenêutica de suspeita é a afirmação da “perda de fé” ou a postura cética diante do formalismo jurídico adotada por ambos os movimentos de crítica interna do Direito discutidos no presente artigo. (...) sustento que uma hermenêutica de suspeita, ou a busca das motivações ideológicas escondidas nas sentenças judiciais que apresentam a si mesmas como técnicas, dedutivas, objetivas, impessoais ou neutras, tem sido durante os últimos cem anos a característica mais importante dos debates norteamericanos sobre a decisão judicial44. TP

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É a partir do desenvolvimento de uma hermenêutica de suspeita que Kennedy se propõe a analisar o comportamento estratégico dos juízes no momento em que decidem, ou seja, no instante em que criam o direito através de suas decisões e qual o impacto social das mesmas. A criação do Direito pelos juizes tem lugar no contexto de uma estrutura de normas jurídicas e ocorre quando estes se encontram diante de uma determinada lacuna, conflito ou ambiguidade. Os juizes resolvem problemas interpretativos através da reformulação de alguma parte desta estrutura, manifestando um repertório de argumentos jurídicos para justificar suas soluções. 43 PT

KENNEDY, op cit, 2010. p. 28.

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44

“o busqueda de las motivaciones ideológicas escondidas en las sentencias judiciales que se presentan a sí mismas como técnicas, deductivas, objetivas, empersonales o neutrales, ha sido durante los últimos cien años la característica más importante de los debates norteamericanos de la decisión judicial”. KENNEDY, op cit, 2010. p.36. PT

76

Tal como os realistas jurídicos, Kennedy afirma que os juizes primeiro decidem de acordo com suas preferências e só depois buscam justificar ou adequar suas decisões à moldura normativa existente ou o conjunto de materiais jurídicos disponíveis para aquela situação. Aqui reside, como já afirmamos, o ponto fundamental de diferenciação entre as visões de Kennedy e Cardozo. Ao passo que este fala de elementos subsconscientes, aquele afirma que a decisão judicial é tomada a partir de um comportamento estratégico ideologicamente orientado, ou seja, as decisões produzidas nos tribunais são tomadas com base nas preferências ideológicas, declaradas ou não, dos juízes que ali se encontram. A retórica jurídica (técnica) produzida nos tribunais está diretamente relacionada com a retórica política que supostamente estaria “fora” dos mesmos, confirmando a máxima do critical legal studies de que Direito é política, e que, portanto, o Direito criado pelos juízes também atende a interesses de grupos sociais, ou seja, é ideológico. A retórica jurídica travestida de sua tecnicidade (restrição de fidelidade interpretativa), na realidade, mascararia sob o manto da justiça, da necessidade, interesses de grupos sociais. De forma que a decisão judicial, portanto, “funciona para assegurar desde interesses ideológicos particulares, a interesses gerais de uma classe da intelligentsia relacionados com o status quo social e econômico”45 (tradução nossa). TP

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(...) o magistrado tem a tendência de aproximar uma retórica de justificação legal com o discurso político de sua época, bem entendido, aquele que o convence. Especialmente quando insistem que decidem sem nenhuma afetação a qualquer carga ideológica os juízes estariam, efetivamente, substancializando a marca ideológica combatida. Trabalhariam desprezando o fato de que se sabe que toda decisão é interna e externamente motivada, que existe uma opção ideológica justificando o caminho traçado e que decisão particular decorre de um comportamento estratégico prenhe de idiossincrasias. O respeito social pela decisão judicial cria intelligentsias forenses que menoscabam processos legislativos.46 T

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A decisão judicial, assim, é obtida por uma eleição estratégica orientada por uma preferência ideológica do julgador, ou seja, por uma predisposição

ou influência a obter

determinado resultado47. Para Kennedy esta predisposição é semi-consciente. O autor elege esta TP

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categoria e é a partir dela que analisa o comportamento estratégico dos diferentes tipos de juizes, quais sejam: o juiz ativista, o mediador e bipolar48. TP

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45

“ (...) funciona para asegurar ya intereses ideológicos particulares, ya intereses generales de clase de la intelligentsia relacionados con el status quo social y económico.” KENNEDY, op cit, 2010. p. 29.

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46

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O movimento Critical Legal Studies e Duncan Kennedy: notas sobre a rebeldia no direito norte-americano. Disponível em: . Acesso em: 21. Jul. 2011. TP

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47 PT

Idem. p. 37.

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A análise dos três tipos de juizes é bastante interessante. Resumidamente: o juiz ativista é aquele que tem preferência por uma norma diversa da que mais se adequa ao caso, sua preferência é, como já dito, por uma norma, não por uma das partes em litígio e tem como meta estabelecer a decisão com base na norma que mais lhe apetece, adotando um posicionamento liberal ou conservador; já o juiz mediador é aquele que se encontra no meio dos dois projetos ideológicos (liberal e conservador) e geralmente adota posições que ficam entre os mesmos, possui uma postura mais passiva e geralmente se abstêm de assumir uma posição que demarque mais sua forma de pensar, já o TP

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Não é de nosso interesse explicar neste artigo detalhadamente estes tipos judiciais, o que na realidade é importante é constatação de que a atividade de criação do Direito é ideológica. Como já afirmava Cardozo, há muito mais do que a simples dedução lógica, proclamada pelo formalismo, no processo de tomada de decisão. No “caldeirão dos tribunais”, a criação do Direito está imbrincada de elementos subconscientes que fazem com que o julgador escolha diante da variedade de materiais jurídicos um argumento para obter o resultado por ele previamente elegido. Kennedy afirma que existe no âmbito da teoria e filosofia do Direito uma resistência em chamar este “a mais” do ato de julgar de ideologia, tendo recebido diversos nomes, como “temperamentos” e até mesmos “elementos subconscientes”. Porém cada nível, da legalidade à ideologia e ao temperamento, requer o “o sujeito” interprete e permite uma estratégia interpretativa baseada no nível que está por trás (ainda que em cada nível também existam vivências de clausura, de restrição pelo texto). Em cada nível o objetivo de nos persuadir de que o que o resultado obtido foi causado ou exigido pelo texto é enfrentado pela objeção de que o mesmo texto poderia ter produzido um resultado oposto se o ator tivesse perseguido uma estratégia interpretativa diferente. (tradução nossa).49 TP

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Cardozo e Kennedy, neste sentido, complementam-se. Contudo, não podemos esquecer que a crítica realizada pelo segundo vai muito além da pretendida pelo primeiro. Se em Cardozo há um desencantamento com o formalismo jurídico, em Kennedy há um questionamento mais profundo que incide no próprio Direito e no raciocínio jurídico, identificando os mesmos como estruturas que mantêm a desigualdade e a opressão, assim como propagam ideologias. Há em Kennedy um processo de radicalização da perda de “fé” no formalismo jurídico iniciada pelos realistas como Cardozo. Há uma completa descrença de que o discurso jurídico possa vir a ser coerente, que afaste dúvidas, que convença de que o resultado obtido pela interpretação judicial é o melhor a ser perseguido. O Direito e o discurso jurídico são instâncias que representam e legitimam interesses articulados ideologicamente na sociedade, assim, o juiz ao atuar no processo de decisão, orientado a perseguir um fim de sua preferência, é um ator ideológico que reproduz interesses de classe, de gênero e de raça.

juiz bipolar reúne características dos outros dois tipos, ele ora é um ativista decidindo de forma liberal ou conservadora, ora é um mediador, encaixando-se entre os referidos projetos. 49

“Pero cada nível, de la legalidad a la ideología y al temperamento, requiere que “el sujeto” interprete, y permite una estrategia interpretativa basada en el nível que está detrás. (Aunque en cada nível hay también vivencias de clausura, de restrición por el texto). En cada nível, el intento de persuadirnos de que lo que pasó fue causado o exigido por el texto se enfrentará a la objeción de que el mismo texto podría haber producido el resultado opuesto si el actor hubiera perseguido una estrategia interpretativa diferente”. KENNEDY, 2010, op cit. p.50. TP

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5. Considerações finais Ao longo deste artigo buscamos argumentar que o realismo jurídico e o critical legal studies, apesar de terem se desenvolvido em contextos sociais e políticos diferenciados, apresentam-se como movimentos de crítica interna ao Direito. O olhar crítico que ambos lançam sobre o fenômeno jurídico é diferenciado, contudo, apostamos na idéia de que ambos localizam como ponto central de análise o embate a visão formalista do Direito que apregoa que este é um processo neutro, impessoal, objetivo, universal e abstrato, dando mais ênfase ao processo legislativo (espaço próprio de criação das normas) e desprestigiando o papel do judiciário (que seria a “boca da lei”). Ao lançarem um olhar cético contra o formalismo jurídico, ambos os movimentos dão mais ênfase ao processo de criação do Direito produzido no âmbito das decisões judiciais. É a partir da análise de que momento decisório não é apenas de descoberta das intenções legislativas, mas sim de criação do Direito que os realistas e o cls desenvolvem diferentes posições críticas em relação ao mesmo. Tomamos como obras chave deste trabalho A natureza do processo judicial de Benjamin Nathan Cardozo e Izquierda y Derecho: ensayos de teoría jurídica crítica do Duncan Kennedy e a partir do desenvolvimento destas obras e das características dos movimentos a que ambas pertencem, esboçamos as diferenças e as aproximações existentes entre o realismo jurídico e o critical legal studies. Neste processo, concluimos que Benjamin Cardozo, realista, afirma que o processo de decidir está permeado por outros igredientes que vão além da fidelidade interpretativa (materiais jurídicos), estes elementos são chamados de subconscientes, são os gostos, os preconceitos, as preferências pessoais dos juizes. Apesar de reconhecer a existência desses elementos, Cardozo não abandona a crença individual na figura do juiz e de que o próprio raciocínio jurídico pode conduzir ao progresso moral, que são benéficos para a sociedade. Kennedy denomina estes elementos de ideologia e considera que os juizes são atores ideológicos da sociedade, de forma que reproduzem em suas decisões valores que pertencem a uma intelligentsia liberal ou conservadora. O Direito para Kennedy não é um processo racional, objetivo, abstrato, tampouco representa exclusivamente o progresso de uma sociedade. Para este autor o Direito é tanto racional como irracional, objetivo como subjetivo, abstrato como concreto, é uma representação social, uma retórica que busca satisfazer interesses de grupos definidos, portanto, devemos adotar diante dele sempre uma postura de desconfiança. Desta forma, ambos consideram que o papel de criação do Direito não se dá exclusivamente no poder legislativo, mas também se encontra, de forma diferente, no espaço do poder judiciário. A busca por melhorar o Direito existente aumentando a capacidade de previsão dos juizes consiste no ideal realista, a superação do modelo positivista do Direito e capitalista da 79

sociedade, assim como a implementação do projeto de esquerda, modernista-pós-modernista consiste no ideal do critical legal studies.

Referências bibliográficas CARDOZO, Benjamin Nathan. A natureza do processo judicial. 1°ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. FREITAS, Lorena de Melo. Ideologia e Direito: uma pesquisa empírica sobre a associação dos juízes para a democracia. Recife: o autor, 2006. ________. O realismo jurídico como pragmatismo:a retórica da tese realista de que direito é o que os juizes dizem que é direito. Recife: o autor, 2009. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito nos Estados Unidos.1°ed. Barueri-SP: Manole, 2004. ________.

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Racionalidade das decisões judiciais em matéria tributária e sua fundamentação nos direitos humanos Manoel Cavalcante de Lima Neto1 TP

Antonio Alves Pereira Netto

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Resumo

Abstract

O trabalho trata da racionalidade das decisões judiciais no campo do Direito Tributário e da utilização dos direitos humanos como razões de decidir. É que se tem defendido que os direitos fundamentais conformam um limite à atuação do poder de tributar. Sustenta-se essa posição no conceito material de direitos fundamentais construído pela abertura disposta na Constituição que permite a ampliação do leque de direitos expressamente catalogados no texto constitucional. Dentre os objetivos do estudo está a avaliação da invocação dos direitos humanos para controlar o exercício do poder de tributar desde a criação do tributo até a sua exigência que importa no contraponto com o poder de polícia fiscal reproduzido nas funções de arrecadação e fiscalização e ainda como suporte às exigências tributárias com finalidade social. Tem por metodologia uma análise doutrinária e em especial da jurisprudência cujo marco mais relevante encontra-se na ADI nº 939/DF. Nesse ideário, e introduzindo a concepção do pragmatismo, o trabalho procura estudar a metodologia das decisões judiciais e concebe que as tentativas teóricas e legislativas que visam restringir a atividade judicial são pautadas ainda no ideal de separação entre o ato de criação e aplicação do direito, tendo como pano de fundo a separação de funções dos poderes do Estado e uma eventual segurança jurídica que desse corolário se possa depreender. Não obstante cumpra uma função de limitação do juiz, o espaço de criação é preservado pela indeterminação das normas, pela análise dos fatos e do contexto, bem assim pela impossibilidade de pré-estabelecimento das soluções para as diversidades dos casos concretos. A pesquisa teve início no PIBIC/2010/2011. No PROCAD, a pretensão é de estudar as decisões judiciais tributárias e nelas identificar a fundamentação de direitos humanos e a utilização de características do pragmatismo jurídico, notadamente o contextualismo e o consequencialismo.

This article is about the rationality of the judicial decisions in the field of the Tributary Law and the using of the human rights discuss as a reason to decide. It’s been sustained that fundamental rights are a real limit to the tributary power. This possibility is defended because of the material concept of fundamental rights, raised by the authorization existent in the Constitution that allows the opening of the rights expressly listed in the constitutional text. One of the objectives of this study is to analyze the using of the human rights discuss as a way to control the tributary power since the creation of the tribute until its demand, what means a restriction in the fiscal police power present in the exactions and inspections, and also supporting the tributary exigencies with social finalities. The methodology used was the bibliography research and especially the jurisprudence analyzes, taking as most relevant mark the ADI n° 939/DF. Provided with these ideas and introducing the pragmatism theory, this work tries to study the methodology of the judicial decisions and concludes that the theoretical and legislative efforts which intents to restrict the judicial activity are guided by the old idea focused to distinguish the moment of creation and application of the Law, what is justified in the separation of functions of the powers of State and eventually in the juridical safety from this statement. In spite of being a real limitation to the judge activity, the creation possibility is preserved by the indetermination of the rules, the necessary consideration of the facts and the context, and also by the impossibility to preestablish solutions to real cases. This research was started in PIBIC-UFAL 2010/2011.

Palavras-Chave: Pragmatismo jurídico; Direitos Humanos; Direito Tributário; racionalidade judicial.

Keywords: Juridical pragmatism; Human Rights; Tributary Law; judicial rationality.

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Doutor em Direito Público pela UFPE. Professor Adjunto de Direito Tributário da UFAL. Juiz de Direito em Alagoas. email: [email protected] TP

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Advogado. Graduado em Direito pela UFAL. email: [email protected]

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1. Introdução Trata o presente trabalho da racionalidade das decisões judiciais no campo do Direito Tributário, com destaque para sua fundamentação nos direitos fundamentais. O tema é relevante e por afirmar-se que os direitos fundamentais correspondem a verdadeiro limite ao poder de tributar, podendo ser fundamento jurídico suficiente para o seu controle judicial. Revela a princípio que na produção das decisões judiciais é preciso que o juiz promova a interpretação do texto normativo e que esse processo está vinculado à aplicação e importa em parcela de criação do direito, seja pela concepção da filosofia hermenêutica que não aceita a desvinculação entre sujeito e objeto, seja pelo método da pragmática jurídica que não concebe decisão sem apreciação do contexto. Estuda-se a equiparação dos direitos e garantias dos contribuintes, contidas no texto constitucional, como verdadeiros direitos fundamentais e o impacto deste discurso na seara tributária. Analisa-se o instituto da modulação dos efeitos de decisões judiciais e a necessária racionalidade por parte do órgão julgador na consideração contextual e consequencialista (em especial de conteúdo econômico) que deriva da declaração de inconstitucionalidade de normas tributárias.

2. Interpretação e aplicação do direito Configura um dos temas mais importantes do direito e também dos mais intrincados o que se refere à interpretação das normas jurídicas. Constituindo o direito um objeto cultural,3 boa parte TP

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de suas diretivas está relacionada com condutas humanas, pressupostas para incidência sobre situações de fato eleitas previamente em hipóteses normativas, outra parte estabelece padrões estruturais por normas de organização, além de normas-objetivo que se voltam para programas finalísticos como consagração da juridicização de políticas públicas. Expresso em linguagem, o enunciado normativo enfrenta dificuldades de precisão em face da abertura semântica que projeta para significações diferentes, em maior ou menor medida, a depender da abertura ou fechamento da norma exposta em palavras. Acrescendo-se que a linguagem jurídica, apesar de certo consenso quanto a alguns conceitos, padece de um maior grau de precisão até pelo endereçamento que se instala como um referencial para condutas humanas, permitidas, obrigatórias, proibidas e que, normalmente, se faz materializar em expressões comuns, em linguagem natural4 e não em linguagem eminentemente técnica. TP

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3

O direito por ser uma ciência social também se classifica como uma ciência cultural. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 31.

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“A textura aberta da linguagem jurídica decorre do fato de nutrir-se ela (linguagem jurídica), da linguagem natural, na qual aqueles fenômenos se manifestam”. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do direito. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002. P. 211. PT

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Outro aspecto de relevância, nessa quadra, é a articulação da previsão abstrata e anterior da norma, a hipótese de incidência, com o fato (evento) do mundo real. De certo modo, os autores concentram a atenção do tema da interpretação na possibilidade de diferentes acepções da hipótese normativa, do enunciado, reduzindo a importância do fato que será objeto da subsunção à hipótese ou de elemento para construção da norma individual ou ainda da norma de decisão do caso concreto. Destaquem-se, por mais, as situações em que o método lógico-dedutivo não se mostra de todo adequado para consolidar a operação hermenêutica, a exemplo da aplicação de um princípio constitucional de teor aberto para um caso específico em que existe uma diretriz, mas a regra de decisão não se encontra previamente delimitada. Cabe enaltecer, previamente, que a lei em regra prescreve antecipadamente e em abstrato que, quando uma determinada situação de fato acontecer, deve gerar uma específica conseqüência (norma de conduta). Contudo, apesar do esforço que normalmente se empreende a previsão em abstrato não chega a abarcar todas as possibilidades de acontecimento em concreto, até porque as situações de fato sempre possuem um diferencial de umas para outras que as particulariza. Daí que a pretensão de uma interpretação como operação eminentemente lógica, de subsunção do fato à norma, parece insuficiente para explicar a atividade do intérprete quanto a um direito que visa regular uma sociedade dotada de um elevado nível de complexidade. A proposta do positivismo jurídico é de uma clara distinção entre o momento criativo do direito que representa uma manifestação de cunho legislativo e o momento de interpretação e aplicação do direito, tarefa a ser empreendida pelo intérprete,5 em nosso objeto de estudo o juiz. TP

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Como decorrência dessa separação, ao intérprete cabe reproduzir o direito criado, com o conteúdo já delimitado, pela utilização de método puramente lógico-racional, caracterizado pela subsunção do fato à norma. Esse esquema tradicional teve e ainda tem forte influência nas decisões judiciais, já que a apreciação de casos concretos envolve de regra a qualificação de fatos e o seu respectivo enquadramento em hipóteses normativas.6 No entanto, algumas normas, TP

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como já referenciado, possuem conteúdo indeterminado e necessitam na situação em concreto de valoração pelo intérprete, donde se mostra nítida a insuficiência do esquema subsuntivo.7 TP

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Em verdade, o nível abstrato em que se colocam as normas e o contato necessário com a realidade para qual está direcionada, impõe sempre uma mediação que se opera pela interpretação e aplicação fornecida pelos órgãos competentes e que caminha para um pluralismo metodológico ao atribuir-se relevância ao texto da norma, aos valores que expressa e à relação com o caso em decisão. O papel do intérprete, nesse espaço, é elevado para um nível não apenas de subsunção, mas de valoração e escolha das alternativas possíveis de enquadramento

5 PT

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 211.

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Descartada, nessa abordagem, a aferição sobre criação do direito na interpretação.

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7 PT

ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução à Ciência do Direito. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 592.

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da situação concreta, importando num nível de criação e não apenas de declaração.8 Essa TP

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racionalidade tem especial destaque na aplicação de normas representativas de princípios constitucionais e que importam numa versão de racionalidade pós-positivista, notadamente de direitos fundamentais. Nesse espaço, o judiciário enfrenta dificuldades no campo tributário para aplicar normas de conteúdo aberto que traduzem direito de defesa perante o Estado para controle do poder de tributar como a vedação ao confisco;9 para o controle do exercício do poder de polícia TP

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fiscal como o livre exercício de atividades econômicas;10 para a justificativa do dever de contribuir TP

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pela norma que impõe a solidariedade no custeio da seguridade social11, bem como diversas TP

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formas de justificação da extrafiscalidade com fins de proteção de direitos.12 TP

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Tal formulação traz à tona a problemática da insuficiência dos métodos tradicionais de interpretação já que a aferição não está direcionada à descoberta de uma vontade preexistente do legislador ou da lei, mas, em verdade, representa um problema normativo a resolver, pois em boa parte dos casos, a decisão jurídico-normativa ainda não foi tomada, o que faz refletir numa atuação interpretativa criadora e não meramente lógico-dedutiva por parte do intérprete. É que a aplicação é um problema de concretização do conteúdo normativo, sendo a norma escrita o ponto de partida e base para a descoberta das soluções jurídicas. Nessa tarefa devem ser observadas as circunstâncias e o ambiente social em que os preceitos são aplicados concretamente. A tendência doutrinária tem caminhado para a admissão de um pluralismo metodológico na interpretação das normas que tratam dos direitos fundamentais, que leve em conta a complexidade do fenômeno jurídico no considerar a norma (enquanto texto); os valores que transporta; os fatos aos quais se referem; e a necessidade da decisão a ser pronunciada. Como proposta para a interpretação, em nível geral, das normas jurídicas que conformam uma margem de criação, pela indeterminação de seus termos, afirma-se que quando o caso for de garantias, o juiz deve definir em razão de existir uma determinação indireta ou um consenso pressuposto; já quando a norma representar uma tarefa, um fim, ao juiz cabe controlar o conteúdo mínimo pela inexistência de consenso prévio ou remessa para resolução no plano das opções políticas do legislador.13 TP

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8

Assim, como já definia Kelsen, em outros termos, a interpretação cognoscitiva do direito combina-se com um ato de vontade do órgão aplicador, pois este efetua uma escolha dentre as posições identificadas na operação de conhecimento a partir da norma geral que constitui um quadro ou moldura a ser preenchida na produção da norma individual ou pela execução de um ato de coerção, configurando, desse modo, uma criação de direito. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 364 – 369, passim.

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Art. 150, § 6º, da Constituição Federal.

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Art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal.

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Art. 195, da Constituição Federal.

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12 PT

Arts. 146, III, “d”; art. 170, IX; art. 215; art. 227, § 3º, VI; art. 225, todos da Constituição Federal.

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13

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. p. 139. TP

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No contexto das decisões judiciais, a interpretação está inter-relacionada com a aplicação do direito, isto é, “interpretação e aplicação não se realizam autonomamente”.14 É que, na TP

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linguagem jurídica, aplicar uma norma é colocá-la em contato com um referente objetivo, ou seja, fatos ou atos. Sendo assim, a aplicabilidade exige interpretação,15 ou seja, ambas fazem parte do TP

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mesmo processo hermenêutico, pois “interpreta-se para aplicar, constituindo a aplicação, muito mais que um momento posterior de concretização do genérico interpretado, a própria compreensão da totalidade”.16 TP

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3. Interpretação segundo a filosofia hermenêutica O modelo de interpretação tradicional e que ainda revela uma prevalência em nossa prática judiciária tem lastro num saber em que patente a necessidade de objetividade e neutralidade do sujeito observador diante do objeto observado, de modo que essa separação torna o saber seguro e adequado a encontrar a verdade científica, eliminando a interferência subjetiva de sentimentos e valores no processo de conhecimento. Por tal coordenada, a atuação do juiz reflete apenas uma operação mental de identificação do suporte fático abstrato com o fato concreto, um raciocínio operado pelo silogismo, identificado com a lógica formal, uma forma que atendia ao sentido de segurança e limitação da atuação dos juízes.17 Paira, nessa ordem de TP

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idéias, a busca de uma interpretação correta seja pela identificação da vontade do legislador seja pelo esforço para definir o sentido e o alcance das normas e que importa numa hermenêutica normativa. A filosofia hermenêutica incorporada à hermenêutica jurídica altera significativamente o modelo de interpretação tradicional e refletida anteriormente. Nessa corrente de pensamento, a decisão do juiz é “uma interpretação da linguagem dos fatos e dos textos normativos que se lhe apresentam num determinado contexto social e político. Este ato de interpretação é, destarte, um ato criativo, tendo em vista que o juiz, como sujeito cognoscente, não está buscando um sentido pré-existente à sua interpretação, mas, ao contrário, ele, com o ato interpretativo, conferem sentido ao texto e aos fatos, diante da situação fática que se lhe apresenta”.18 TP

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14

GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 84. TP

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15

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Aplicabilidade e Interpretação das Normas Constitucionais. In: Interpretação e Estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1990. p. 14. TP

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16 HANS GEORG, Gadamer. Wahrkeit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1975, p. 291, apud TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 30/31. TP

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17

CATÃO, Adrualdo de Lima. A visão hermenêutica da interpretação jurídica para a superação do paradigma da neutralidade do intérprete. Artigo inédito, p. 2/3. TP

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18

CATÃO, Adrualdo de Lima. A visão hermenêutica da interpretação jurídica para a superação do paradigma da neutralidade do intérprete. Artigo inédito, p. 15. PT

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4. Análise sobre as conseqüências das decisões judiciais e pragmatismo jurídico De regra as decisões judiciais estão pautadas em situações de fato passadas para as quais se busca uma aplicação da norma cabível e mesmo quando se trate de caso em que se invoque a incidência de norma programática ou de conteúdo finalístico, a decisão opera para o caso concreto e pontualmente para sua solução. A análise das conseqüências para o futuro das decisões, aferidas na decisão de caso presente, importa em reflexão pouco usual na prática do judiciário, mesmo que intuitivamente isso possa acontecer e até sirva de fundamento legal para incidente processual típico como a suspensão de execução de liminar e sentença,19 para evitar TP

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lesão futura. Dentre as concepções que enfatizam as conseqüências das decisões judiciais está a que se define como pragmatismo jurídico. Apontam-se o contextualismo, o consequencialismo e o anti-fundacionalismo como três características fundamentais do pragmatismo jurídico: O contextualismo implica que toda e qualquer proposição seja julgada a partir de sua conformidade com as necessidades humanas e sociais. O consequencialismo, por sua vez, requer que toda e qualquer proposição seja testada por meio da antecipação de suas conseqüências e resultados possíveis. E, por fim, o antifundacionalismo consiste na rejeição de quaisquer espécies de entidades metafísicas, conceitos abstratos, categorias apriorísticas, princípios perpétuos, instâncias últimas, entes transcendentais e dogmas, entre outros tipos de fundações possíveis ao pensamento.20 TP

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A partir de tais premissas, a racionalidade das decisões judiciais para o pragmatismo não parte de uma lógica da descoberta, mas da justificação pela razão prática. Nesse sentido, os “juízes criam em vez de descobrirem o direito, e usam como insumos tanto as regras formuladas por legislaturas e tribunais anteriores (“direito positivo”) quanto suas próprias preferências e sobre políticas públicas”.21 De tal modo, descarta-se um método que forneça a decisão fora do contexto, TP

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cabendo utilizar-se de fontes jurídicas ou não,22 com recepção de contribuições advindas de TP

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outros ramos do direito no caso enfocado, bem como de outras disciplinas e de cunho ético, econômico e político. No processo decisório o juiz afere de forma comparativa as várias alternativas possíveis para deslinde do caso com foco em suas conseqüências, escolhendo a que melhor atenda às necessidades humanas e sociais, já que tenciona interferir na realidade com criação de políticas públicas.23 Diferentemente da concepção positivista, no pragmatismo não há TP

19

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Art. 4°, da Lei nº 8.437/92.

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POGREBINSCHI, Thamy. O que é o Pragmatismo Jurídico? Disponível em: . Acesso em 16.08.11. TP

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15 FREITAS, Lorena. Para uma crítica do realismo jurídico americano à fundamentação jusnaturalista dos direitos humanos. In: SILVA, Artur Stamford (org). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: Universitária da UFPE, 2011, p. 53-58. TP

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ambiente discursivo, em que a verdade é construída, o importante é a crença no relato, pois o sucesso do relato depende de fazer os circunstantes acreditarem nele. Em Estados capitalistas ocidentais, quais lugares comuns podem se tornar prevalentes e hegemônicos quando se propõem, efetivamente, a modificar a raiz (radicalmente) econômica do sistema capitalista em favor da concretização real de direitos para todos os seres humanos? Dessa forma, o uso pragmático dos recursos humanos revela-se estratégico para o direito realmente praticado. Quem ou quantos, dotados de credibilidade social, ousariam ser contrários aos direitos humanos, por menos preciso que isso seja? Daí, sua funcionalidade retórica. Como a realidade social e constitucional é particularista, ao texto constitucional simbólico includente, apresenta-se uma realidade excludente, na qual se notabiliza uma generalização de exclusão por parte dos órgãos estatais, com grande neutralidade social, a partir de critérios de natureza política, econômica. Fala-se na constitucionalização simbólica porque as instituições de direitos fundamentais (civis, políticos e sociais) são abaladas em favor da hipertrofia do texto com função políticoideológica, sem compromisso real com sua concretização. O teor simbólico negativo, ora denunciado, diz respeito ao emprego de textos jurídicos como álibis, refreando um processo crítico, imunizando o sistema político e transferindo a solução dos problemas para um futuro remoto, representando um adiamento retórico, como se não fosse necessária uma transformação radical nas relações de poder e na estrutura social, afetas ao modo capitalista, haja vista que o empecilho à concretização de direitos, ordinariamente, diz respeito ao alto custo econômico da implantação e à falácia da incapacidade social de produzir o suficiente para efetivar as declarações, quando as desigualdades estão na distribuição e fundadas numa meritocracia excludente e elitista. Os direitos fundamentais constituem-se privilégio de minorias e, para a maioria, resta apenas na retórica político-social dos “direitos humanos”, empregada tanto pelos ideólogos do sistema de dominação quanto por seus críticos. A inclusão real mostra-se relevante no discurso de concretização de normas programáticas, em um futuro remoto. Nestes termos, as declarações de direitos humanos, mesmo constitucionalizadas, perdem capacidade de se impor, autonomamente, diante do poder normativo dos sistemas político e econômico. Como as condições reais condicionam a concretização constitucional, a argumentação se torna uma questão de política e sua efetivação um problema econômico, fortalecendo o direito apenas retoricamente, pois o jurídico não consegue dirigir e controlar aquelas esferas, mas, ao revés, por elas é controlado. Interessante notar que, quanto mais inalcançável a realização dos direitos, maior influência política ganha esta ideia, na retórica do poder, com textos declaratórios e cheios de promessas de um futuro melhor. Os textos declaratórios se tornam imaculados, pois são fontes de esperança e 180

funcionam de modo excelente à neutralização da política. Assim, eleva-se o nível simbólico dos direitos humanos, tornando-se excelentes instrumentos político-econômicos de neutralização da crítica para o controle social16. TP

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Desse modo, a normatividade não se sobrepõe ao poder político-econômico, mas culmina por ser um mecanismo de controle social contra os avanços atentatórios ao sistema de liberdade econômica, aniquilando a capacidade política do Estado de intervir para impor a realização de direitos humanos, sobretudo os sociais, à custa do prejuízo dos mais abastados e da divisão “igualitária” dos recursos produzidos. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, há um acordo, firmado por representantes de ideologias diversas e conflitantes, sobre uma lista de direitos humanos, porquanto não se fixaram, no texto declaratório, os limites, o alcance e a hierarquização desses direitos. Ora, é possível vislumbrar a obtenção de acordos sobre questões tão fundamentais enquanto estas permanecem abstratas e indefinidas. Não surgem contestações sobre aspectos indetermináveis, mas as contradições se revelam quando essas regras gerais são impelidas à concretização. Nesse momento, a razoabilidade se torna o critério definidor, sendo útil uma análise pragmática17. TP

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Para a fixação de sentidos concretos, parciais e ideológicos, como exigem as decisões jurídicas, impõe-se reconhecer uma poderosa hegemonia na sociedade, em que pese a sua complexidade, quanto ao aspecto econômico. Portanto, como as questões sobre direitos humanos, num ambiente retórico, não se sustentam em verdades absolutas, a relativização dialógica, a fluidez de sentidos e a flexibilidade interpretativa são arrogadas pelos detentores do poder, estrategicamente, para manutenção do status quo ou para reformas pontuais e programadas. Ora, em matéria de direitos humanos, faltam critérios objetivos para traçar a fronteira de equilíbrios entre os direitos de uns e de outros. Daí, os julgadores encarregam-se de trabalhar com esses limites, sujeitando o Judiciário a acusações de uso arbitrário do poder (judicialismo e ativismo). Como as concepções e reações culturais culminam por reproduzir a ideologia dominante, que repercute sua hegemonia de poder para as esferas da sociedade, embora não haja consensos morais e étnico-culturais, é preciso reconhecer que há prevalência globalizante do modo de produção econômica, o que repercute num direito vinculado a esta forma econômica e ao seu modo político correspondente. Afastando-se de ontologias, o discurso (do direito, da ética, da moral, da economia, da política, etc.) faz-se uma forma de ideologia e de legitimação de interesses, transformando a

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NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 186.

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PERELMAN, Chäim. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.399-400. TP

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justiça, a equidade, o razoável, enfim, também os direitos humanos em palavras vazias, mas que não aparecem assim para maioria, pois são dotadas de sentido ao sabor do poder18. TP

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Com efeito, pode-se destacar que o recurso a noções confusas é, por vezes, indispensável para o direito, porquanto a confusão das noções é uma condição para acordos em condições de complexidade social, com ideologias diferentes e muitas incompatíveis entre si. Isso explica como se pôde realizar, em 1948, um acordo sobre o texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem, haja vista que o consenso foi sobre textos sujeitos a interpretações variadas, cada Estado se reservando a aplicar do seu modo. Numa argumentação, a preocupação constante é com a reação do auditório. No caso da retórica da dogmática, essa atenção diz respeito aos efeitos sociais decorrentes da decisão, se serão tidos como razoáveis ou não. Assim, a ordem dos argumentos deve considerar os fatores envolvidos na questão em litígio, a fim de persuadir os ouvintes, exercendo ou mantendo um controle social19. TP

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Destarte, a dogmática vale-se do argumento pragmático, o qual avalia os efeitos e consequências de um ato, servindo os prós e contras como fundamentos para ação. A redução da argumentação a esta forma de agir caracteriza, de um lado, o utilitarismo e, doutro lado, o pragmatismo20. Mesmo que a relação entre causa e efeito não esteja comprovada, por meio de TP

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fatos evidentes, a alegação de maiores prejuízos sociais resultantes de outra tomada de posição fortalece a ação contrária. Assim, à argumentação resta o papel de inserir a motivação na forma do direito vigente, tornando jurídico um argumento político-econômico ou moral, por exemplo. A larga utilização da expressão direitos humanos pode parecer preocupação em, de fato, satisfazê-los, mas o uso exagerado, abusivo e indiscriminado da expressão “direitos humanos” sói ocorrer sem maiores preocupações com os seus conteúdos significativos, precarizando sua normatividade jurídica. Recorrentemente, a legislação e textualização destes direitos declarados têm cumprido muito mais o papel de “prometedor” de situações fáticas indesejáveis ou insuportáveis ao sistema dominante, pelo que há esforço retórico simbólico-ideológico em manter a ineficácia sustentável. Com efeito, a realização imediata, por exemplo, de todos os direitos sociais (humanos, fundamentais de segunda dimensão, de crédito) em favor de todos acarretaria uma “quebra” no sistema econômico capitalista, garantido por limites legais e orçamentários, mesmo quando é alarmante que a produção de bens e serviços é superabundante e suficiente para satisfazer às

18 PERELMAN, Chäim. Lógica jurídica: nova retórica. Tradução de Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 152-153. TP

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OLBRECHTS-TYTECA, Lucie; PERELMAN, Chäim. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 556.

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PERELMAN, Chäim. Retóricas. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 12. TP

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necessidades básicas prometidas pela “lei”, sendo a marginalização e a elitização do acesso à riqueza socialmente produzida as problemáticas postas, mantidas e estimuladas pelo sistema. A falta de clareza acerca da compreensão social do que seriam os direitos humanos facilita seu emprego retórico pela argumentação jurídica. A retórica dos direitos humanos, diante de tanta falta de realização fática das declarações, chega a autorizar a afirmação de que a validade da norma manifesta-se em sua violação. Cria-se a ilusão dos “direitos humanos”, constitucionalmente sagrados, e impede-se uma discussão acerca dos fatores que impedem a sua concretização normativa, fazendo com que a textualização dos direitos humanos exerça o papel típico de legislação simbólica, atuando com a função de álibi. Neste contexto, até mesmo críticas à imobilidade social decorrente do falseamento dos direitos humanos podem tornar-se um elemento de encenação política inconsequente, banalizando o tema “direitos humanos”. Esta banalização tem a ver com a insistência em tratar do tema com juristas e suas expressões vazias, evocando a figura do bacharel capaz de dizer belas coisas. Além dessa retórica vazia, a banalização decorre de críticas positivistas ingenuamente moralizantes. Contudo, a banalização mais séria dá-se ao nível da ação21. TP

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Neste nível pragmático, a força normativa de uma disposição sobre direitos humanos depende da interação com o poder (positivação), o qual arbitra decisões através do discurso retórico, chegando a entendimentos “razoáveis” (aceitos como plausíveis), por meio da valoração ideológica (perversão e neutralização dos direitos humanos), que encerra a reflexibilidade e instabilidade dos valores, em favor de uma questão técnico-funcional: preparar uma decisão tolerável. Deparando-se com o paradoxo existente entre a ampliação das declarações sobre direitos humanos e suas contumazes e crescentes violações, arrisca-se afirmar que os direitos humanos podem servir a uma retórica vazia, haja vista que a falta de concretização dos direitos humanos e sua positivação nos discursos e textos são simultâneas ao desenvolvimento econômico nunca antes experimentado. Assim, a sociedade é obsessiva em definir e proclamar uma lista crescente de direitos humanos, mas é inoperante em realizá-los, exacerbando-se sua utilização com caráter simbólico-ideológico22. TP

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Assim, para guardar a esperança e suavizar a crítica, mudanças pontuais são negociadas, avanços são postergados. Para que existam conquistas revolucionárias, deve-se tomar 21

FERRAZ JR. Tercio Sampaio. Perversão ideológica dos direitos humanos. Disponível em: . Acesso em: 09.11.11. TP

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22 TOSI, Giuseppe. Direitos humanos: uma retórica vazia? Revista SymposiuM (Número Especial), Recife, ano 3, p. 47-59, dez. 1999. ISSN 1982-9981. Disponível em: Acesso em: 04. nov. 2011. TP

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consciência da alienação e exploração capitalista, amenizando a sede pelo lucro como finalidade maior, a fim de que ser humano deixe de ser coisificado e subvalorizado em relação às mercadorias e bens de produção (por exemplo: um veículo automotivo, atualmente, é apreciado em valor superior à remuneração paga pela jornada de trabalho de toda a vida de bilhões de seres humanos). Numa perspectiva pragmática, concebe-se a construção do direito a partir das circunstâncias concretas, da ideologia que marca o conhecimento dos tribunais. A experiência real demonstra como o elemento político-social reflete na interpretação jurídica, com tendência à satisfação de interesses prevalecentes, instrumentalizando o direito23. TP

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4. Estudo de casos concretos Destaca-se que o Judiciário, numa visão pragmática, consegue desempenhar bem sua função social de manutenção do status quo, dotando de razoabilidade suas decisões, quando tem uma postura tolerável num contexto capitalista, contemplando alguns avanços estratégicos e controlados diante das críticas e pressões. Em consulta ao sítio virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), hospedado na Rede Mundial de Computadores na Internet (www.stf.jus.br), em 13 de novembro de 2011, verificou-se que a expressão “direitos humanos” está presente em 231 (duzentas e trinta e uma) ementas de acórdãos e em 02 (dois) casos com repercussão geral reconhecida. Dentre estes resultados, foram selecionados alguns casos para serem investigados, a fim de evidenciar como o uso da expressão “direitos humanos” não é suficiente para realização destes em sua pretensa “universalidade”, sobretudo quando diz respeito aos direitos econômicos e sociais, embora consiga servir de veículo auxiliar para persuasão dos ouvintes do discurso decisório, fazendo com que se perceba, de fato, que o Supremo Tribunal Federal representa mais um componente estatal que repercute a dominação, sem críticas profundas (quando muito, mais retóricas) ao poder hegemônico. No RE 259976, julgado em março de 2010, pelo STF, decidiu-se pela imunidade tributária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), quanto ao IOF sobre aplicações financeiras e investimentos desta ordem profissional, cuja natureza jurídica é discutida e levanta polêmicas diversas. Um dos argumentos favoráveis à imunidade da referida entidade, a qual possui notório poder de influência e é uma das ordens de profissionais liberais mais sólidas do país, é que esta desenvolve atividade típica de Estado, quando atua na defesa da Constituição, da ordem jurídica do Estado democrático de direito, dos direitos humanos, da justiça social. 23

FREITAS, Lorena de Melo. Um diálogo entre pragmatismo e direito: contribuições do pragmatismo para discussão da ideologia na magistratura. Cognitio-estudos. Revista Eletrônica de Filosofia. São Paulo. Vol. 4, número 1, janeirojunho, 2007, p. 09-19. Disponível em: . Acesso em: 25. nov. 2011. TP

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Com efeito, a menção à defesa dos direitos humanos enobrece, simbolicamente, o argumento e a instituição imunizada quanto à citada espécie tributária. Todavia, faz-se perceptível, na fundamentação da decisão do STF, que a reciprocidade de imunidade tributária é baseada no art. 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição de 1988, porquanto alega-se, na motivação, que a OAB desempenha atividade própria de Estado quando defende os direitos humanos. A força retórico-simbólica foi aproveitada pelo órgão jurisdicional para, estrategicamente, dotar de mais credibilidade sua decisão, pois diversas organizações no país desempenham funções semelhantes de proteção aos direitos humanos, mas não recebem este tratamento fiscal (quando muito, isenções). É interessante notar que o uso da expressão direitos humanos serviu para garantir maior peso ao fundamento para afastar a constituição do crédito tributário e impedir a arrecadação de tributos em favor do erário. Logo, enxerga-se um exemplo de como o tópico-retórico “direitos humanos” pode servir para contribuir para adesão do auditório ouvinte de um discurso decisório, mesmo numa decisão em que os pressupostos dos interesses já lhe determinariam previamente o resultado do julgado. Ou seja, pelo contexto social de influências, a decisão já seria pela imunização tributária da OAB, inclusive por um fundamento constitucional específico, sendo que os direitos humanos serviram, estrategicamente, para reforço retórico. Todavia, dada a ambivalência do discurso sobre direitos humanos, estes podem ser inaplicados por fatores econômicos e interesses financeiros. Como demonstra o posicionamento do STF de somente, após vários anos e repetidos julgamentos, reconhecer a validade e eficácia jurídica de direitos humanos previstos no Pacto de São José da Costa Rica de 1969 (Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada por meio do Decreto 678/1992) como derrogadoras da prisão civil do depositário infiel. Conforme consabido, não houve qualquer alteração do texto original do §2º, do art. 5º, da Constituição brasileira de 1988, que sempre admitiu outros direitos e garantias fundamentais previstos em tratados internacionais do qual o Brasil seja signatário. Contudo, por quase vinte anos, o STF entendeu como constitucional a prisão de um cidadão como medida coercitiva para garantia patrimonial (prisão por dívida), geralmente, em favor de instituições financeiras e em detrimento de pessoas que necessitavam recorrer a empréstimos para adquirir um bem. Esse posicionamento culminava por priorizar a eficácia do inciso LXVII, do art. 5º, da Constituição (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”), em detrimento do citado §2º, do art. 5º, combinado com os termos do item 7, do artº 7º, da Convenção de Americana de Direitos Humanos (“ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”). 185

Ora, o texto originário da Constituição já se abria para a recepção de direitos e garantias fundamentais decorrentes de tratados internacionais, pelo que, se vedando o retrocesso (e não a expansão) e efetivando as mutações favoráveis, caberia aos órgãos judiciários do país, desde novembro de 1992, a ampliação da proteção contra a restrição da liberdade (direito humano fundamental). Registre-se que, no texto originário, não havia e nem há qualquer ressalva ou exigência de procedimento formal qualificado para aplicabilidade e internalização das normas internacionais que versassem sobre outros direitos e garantias decorrentes da adesão do Brasil a pactos internacionais, pelo que a eficácia destas normas deveria ser imediata, conforme o §1º, do art. 5º, da Constituição vigente. Com a Emenda Constitucional n.º 45/2004, acrescentou-se o §3º ao citado art. 5º, dispondo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Como a jurisprudência, até o período da emenda, já não garantia a aplicação imediata do Pacto de São José da Costa Rica, permitindo a prisão civil para além da hipótese de inadimplemento de pensão alimentícia, com a introdução do texto acima transcrito, firmou-se, ainda mais, a ideia de que os termos da Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969 não teriam status constitucional para afastar a outra hipótese de prisão civil que seria do depositário infiel, pois a recepção do pacto não seguira o trâmite do processo legislativo para emenda à Constituição. Enquanto isso, analisando os recorrentes casos concretos de prisões civis dos depositários infiéis, pode-se verificar que a restrição da liberdade dos devedores era o meio coercitivo comum quando havia o inadimplemento de financiamentos bancários e o bem dado em garantia fiduciária da obrigação não era encontrado para assegurar a satisfação da dívida, bem como quando um indivíduo era considerado infiel no desempenho do encargo de depositário (convencional ou judicial). Nesse movimento, surgiram diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, até que o Supremo Tribunal Federal consolidou novo posicionamento, a partir da mutação constitucional, operada pela interpretação do próprio STF, chegando, em 06 de junho de 2009, no julgamento do HC 96772, ao entendimento de que os pactos internacionais que privilegiam a dignidade da pessoa humana possuem caráter de normas supralegais, estando abaixo da Constituição, mas sendo superiores às normas infraconstitucionais. Em suma, passaram-se anos privilegiando as instituições financeiras e os demais credores, valendo-se da prisão de devedores depositários infiéis, fazendo prevalecer o patrimônio sobre a liberdade, até que o STF parece ter pacificado, por enquanto, a ideia de que há o Pacto 186

de São José da Costa Rica possui aplicação imediata e pode afastar a hipótese constitucional de prisão do depositário infiel, porquanto invalida normas infraconstitucionais que preveem a prisão civil para além do devedor de pensão alimentícia. Com efeito, esta posição era, plenamente, possível desde 1992, quando da adesão do Brasil à convenção em análise, mas somente, após quase vinte anos da vigência do pacto no país, é que o órgão supremo do Judiciário nacional percebeu que era intolerável continuar respeitando o direito de crédito em detrimento da liberdade do indivíduo. Esse caso revela que o fato de recepcionar uma declaração de direitos humanos, juridicamente, não significa seu cumprimento e observância real, inclusive pelos tribunais, o que depende de condições que tornem insustentável permanecer beneficiando os interesses capitalistas de proteção ao crédito, mesmo sob o custo de condições precárias de vida e até da restrição da liberdade dos cidadãos. Como estatuído na decisão do mencionado HC 96772, a mutação constitucional informal, pela interpretação judicial (para não falar em revogação ou invalidação do texto originário, haja vista que o pacto não passou pelo trâmite de emenda à Constituição), permite que o órgão judiciário afira a legitimidade da adequação própria Constituição da República, de modo a impor que esta se compatibilize, “mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea” (trechos da ementa do julgado). Assim, revela-se a retórica dos direitos humanos numa perspectiva pragmática (consequencialista) e realista (é direito o que o tribunal diz que é). Aproveitando a transcrição da manifestação do próprio STF, pode-se ler que a primazia da norma mais benéfica (mesmo antiga), na prática, é técnica nova, implementada para que os indivíduos, socialmente mais frágeis, não permaneçam sendo desrespeitados, fazendo da retórica dos direitos humanos (“palavras vãs”, até então) uma realidade concreta, interrompendo um ciclo de intolerância de cerca de vinte anos, sem que os tribunais conseguissem, pacificamente, decidir diferentemente, o que se tornou possível. Noutro caso, da ADI 3510, o STF relacionou o direito social à saúde com o direito fundamental individual à vida, mencionando, ainda, se tratar aquele como constitutivo da seguridade social, sendo direito de todos e dever do Estado garanti-lo mediante ações e serviços, inclusive garantindo a manipulação com células-tronco de embriões humanos (o que demanda investimentos vultosos e métodos sofisticados), oriundos de técnica de fertilização in vitro, que, para maior sucesso na implantação do zigoto no útero, são fecundados diversos óvulos, pelo que remanescem embriões sem viabilidade de serem gestados até se tornarem seres humanos adultos. 187

No teor dos votos a favor da manipulação das células-tronco embrionária, para fins terapêuticos, percebe-se uma ênfase à natureza jusnatural dos direitos humanos, o que recebe críticas do positivismo, como apresentado neste trabalho, numa perspectiva realista. No último voto proferido neste processo, o Ministro Gilmar Mendes propõe a criação de limites para o exercício da atividade com as referidas células, segundo o juiz, porque a interpretação modifica e corrige a norma, dada a raiz essencialmente pragmática das sentenças constitucionais. Ainda sobre o direito à saúde, noutra oportunidade, o STF ponderou, na decisão da Suspensão de Liminar 47, em Agravo Regimental, que a judicialização deste direito deve observar limites da separação dos poderes, bem como se aplicou a responsabilidade solidária aos entes da Federação em matéria de saúde, ordenando a regularização dos serviços prestados em hospital público, porquanto não havia comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança pública. Portanto, nesta SL 47, em AgR, o Judiciário determinou o cumprimento da prescrição constitucional sobre o direito à saúde após discutir e avaliar situações relativas à economia e capacidade do ente federado custear o atendimento ao mandamento da Constituição. Destarte, evidencia-se que a realização dos direitos humanos observa critérios pragmáticos casuísticos. Sobre a mesma matéria, o STF entendeu, no RE 566471, que possui repercussão geral a controvérsia sobre a obrigatoriedade do Poder Público fornecer medicamento de alto custo, pelo que se percebe, facilmente, que, quando se trata do impor ao Estado o cumprimento do dever de assistência à saúde do cidadão, várias ponderações precisam ser realizadas, sobretudo acerca da capacidade financeira, pelo que critérios econômicos controlam a eficácia de um direito fundamental social. Desse modo, na prática, os direitos humanos dependem da possibilidade do sistema econômico para saírem da retórica vazia. Apesar da evidente constitucionalidade do direito do cidadão de exigir do Estado o tratamento médico necessário, ao Judiciário cabe preparar uma decisão razoável a partir da análise pragmática, diante do argumento econômico, ajustando a concretização do direito previsto no texto, pelo que o direito real será aquele que o próprio Estado decidir legitimável. No RE 567985, outro caso de direito social, que foi tido como de repercussão geral, pelo STF, diz respeito a benefício assistencial de prestação continuada a idoso, discutindo se a renda familiar per capta inferior a meio salário mínimo seria apta a demonstrar a insuficiência para prover sua subsistência. Conforme é notório, sequer um salário mínimo integral consegue satisfazer as condições de existência com mínimo de dignidade, segundo, inclusive, pesquisas do Dieese. Por meio do MS 22451 (julgado em 1997), apreciado pelo STF, entidades representativas de classe de servidores públicos tentaram obrigar o Chefe do Executivo Federal a propor aumento e revisão de vencimentos de servidores públicos, em face de reajuste do salário mínimo nacional 188

para os trabalhadores. Naquela oportunidade, o Supremo negou a vinculação entre as categorias dos servidores públicos e dos demais trabalhadores, sequer apreciou o valor da remuneração e o mérito do reajuste postulado, mas frisou que o Presidente possui iniciativa exclusiva da vontade política e tem a competência para avaliar as conveniências subjetivas para propor o aumento desejado. Ainda, sobre o salário mínimo, no RE 198982 (julgado em 2002), o STF anuiu que este pagamento deve ser entendido como a remuneração global destinada a assegurar o atendimento das necessidades vitais básicas. Como previsto na Constituição vigente (art. 7º, IV), o salário mínimo do trabalhador deveria ser “... capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo...”. Em que pese o grande poder de eficácia simbólico-ideológica do referido dispositivo (de fazer acreditar que, no Brasil, a lei garante o salário mínimo), a realidade evidencia sua defasagem e sua incapacidade de suprir o elenco de necessidades do trabalhador e de sua família. Todavia, a retórica constitucional tem sido suficiente para neutralizar os ânimos dos trabalhadores, os quais até comemoram os recentes aumentos salariais, como se estivessem sendo, minimamente, dignificados, mas, na realidade cotidiana, percebem que não se lhes garante, efetivamente, o mínimo para viabilizar o mínimo existencial, previsto constitucionalmente. Contudo, certamente, seria intolerável (irrealizável pragmaticamente) uma postura rígida por parte Judiciário, semelhante à adotada em 2011, no ARE 639337 AgR (analisado a seguir), para garantir que o salário mínimo fosse fixado, por lei, em valor suficiente para concretizar o atendimento, em favor do trabalhador, das suas necessidades vitais básicas e de sua família. Portanto, esse é um direito social que o Judiciário tem tornado retórico, sobretudo repetindo, sem questionar, a garantia constitucional (fato ilusório) do salário mínimo, o qual é composto por todas as parcelas remuneratórias, não cabendo, até o momento, uma intervenção judicial no sentido de efetivar a garantia de vedação do retrocesso, porquanto este é um direito social sonegado diuturnamente, em favor dos “pagadores de salários”. Recentemente, no ARE 639337 AgR, o STF deu sinais de mais rigor quanto ao cumprimento das ordens constitucionais, ao menos no que se refere ao direito da criança ter atendimento em creche pré-escolar, inclusive, fixando a incidência de multa diária em caso de descumprimento, por parte do Município de São Paulo/SP (com maior PIB municipal do Brasil, detentor da capacidade financeira para realização deste direito). Neste julgado, o Supremo entendeu legítima a intervenção concretizadora do Poder Judiciário em caso de omissão estatal

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na implementação de políticas públicas previstas na Constituição, sem que isso implique em transgressão ao postulado da separação de poderes. Desperta a atenção especial o fato do STF ter argumentado que o direito fundamental à educação não poderia ficar na dependência de avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, tampouco deveria se subordinar a razões de puro pragmatismo governamental, porquanto se trata de direito básico de índole social. Como a proteção judicial de direitos sociais implica gastos públicos, geralmente, esbarrando em contra-argumentos relativos à escassez de recursos financeiros, o Judiciário, conforme exposto na decisão citada, se põe entre decidir dentre as chamadas “escolhas trágicas”, considerando a famigerada reserva do possível, a qual deve contemplar o denominado e impreciso mínimo existencial, realizando o princípio da dignidade da pessoa humana e vedandose o retrocesso social. Para fortalecer esta tese, como apoio retórico, o STF valeu-se de menção à Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948, que, em seu artigo XXV, proíbe o retrocesso social, demandando do Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assumir o dever de torná-los efetivos, sem reduzir sua amplitude. Sem dúvidas, esse posicionamento revela uma conquista, a qual precisa ser sistematizada ao ponto de alcançar eficácia social (realismo), a despeito de argumentação econômica contrária, devido ao elevando custo da efetiva garantia dos direitos sociais. Como se visualiza, a menção à Declaração de Direitos Humanos, de 1948, foi empregada com poder simbólico crítico e não ideológico, como sói ocorrer, o que também revela sua força tópico-retórica ambivalente e manipulável pelo Judiciário caso a caso, pragmaticamente, em nome do controle social, no desempenho da função social da dogmática jurídica.

5. Conclusão A partir da pesquisa realizada, é possível confirmar a hipótese do realismo jurídico de que o direito é aquilo que o Judiciário diz que é. No caso dos direitos humanos, estes também são o que os juízes afirmam que eles são. Ademais, quanto ao pensamento pragmático, pode-se dizer que este é sobremaneira influente no processo decisório, participando da argumentação, sobretudo em situações complexas como as que envolvem os direitos humanos, os quais são empregados com força simbólico-ideológica pela retórica dos que detêm o poder de significar e gerar efeitos práticos a partir de declarações de direitos. Destarte, como hipótese não rechaçada, infere-se que o direito revela-se como produto de forças sociais e instrumento real e pragmático de controle social, desempenhando sua função 190

social, decidindo os magistrados de modo a evitar instabilidades insuportáveis ao poder hegemônico, conquistando a adesão dos ouvintes para tornar efetiva e eficaz a segurança e a continuidade do modelo de dominação contemporâneo fundado no capitalismo. Portanto, a prática do Judiciário revela, para o realismo e também para a jurisprudência sociológica, quais direitos humanos existem, porque eficazes na decisão e sob o ângulo pragmático.

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3,

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dez.

1999.

ISSN

1982-9981.

Disponível

em:

Acesso em: 04. nov. 2011. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídicocientíficos. Tradução de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 21-31.

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Um olhar pragmático sobre a (in)constitucionalidade da Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”): Defesa do princípio da Igualdade ou Preconceito de Gênero? Terlúcia Maria da Silva1 TP

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Resumo

Abstract

Este artigo pretende discutir o enfrentamento à violência doméstica e familiar, a partir da atuação do judiciário no processo de implementação da Lei 11.340/06 – conhecida como Lei Maria da Penha. Que desde sua entrada em vigor, em setembro de 2006, vem sofrendo críticas de diversos setores da sociedade e principalmente encontrando resistências, quanto à sua aplicação, por parte de operadores da lei em diversos Tribunais do Brasil. Para tanto vale-se do método pragmático referenciado pelo realismo jurídico de Benjamin Nathan Cardozo. A contribuição do pragmatismo como método está na preocupação com as consequências práticas e aqui, leia-se, as consequências hão de ser percebidas ao se buscar a prática dos tribunais. É neste sentido que nesse trabalho serão analisadas três manifestações contrárias a referida Lei, quais sejam: Alegação de Inconstitucionalidade da Lei – TJ-MS e declarações de dois juízes (Sete Lagoas/MG e Erechim/RS), que se recusam a aplicar a Lei por acreditarem que a mesma é inconstitucional e que fere o princípio da Igualdade firmado na Constituição Federal de 1988. O nosso objetivo é buscar perceber, através da análise do discurso dos magistrados, se há prevalência de preconceito de gênero por traz da defesa do princípio da igualdade, bem como entender quais as implicações desse tipo de argumentação para a não efetivação dos direitos das mulheres a uma vida sem violência, conforme prevê a Declaração de Viena (1993), buscando refletir, ainda, sobre essas resistências, não só como evento isolado nesse caso específico, mas como algo recorrente no processo de luta das mulheres pelo reconhecimento e efetivação dos seus direitos.

This essay aims to discuss the facing of domestic and family violence, based on the role of the judiciary in the implementation of Law 11.340/06 - known as Maria da Penha Law. Since it has come into force, in 2006 September, Maria da Penha Law has been criticized by several social sectors and has been facing resistance related to its application, by justice actors in many Brazilian courts. Therefore some people have their pragmatic approach based on legal realism of American Benjamin Nathan Cardozo. The contribution of pragmatism as a method is connected to the concerning about the practical consequences and here they will be perceived when we seek the consequences at the courts. In this sense this essay will analyze three demonstrations against Maria da Penha Law: Allegation of Unconstitutionality of Maria da Penha Law (Court of State of Mato Grosso do Sul) and statements of two judges (Sete Lagoas/State of Minas Gerais and Erechim/State of Rio Grande do Sul) who refuse to apply the Law that they believe is unconstitutional and against equality principle of the 1988 Brazilian Federal Constitution. Our goal is to perceive, through the discourse analysis of the judges, if there is some kind of gender prejudice behind the equality discourse. We also aim to understand the implications of that kind of argument for the nonrealization of the rights of women to a life without violence as stated in Vienna Declaration (1993). We will also try to reflect also on these resistances, not only as an isolated event in this specific case, but as the plaintiff in the women's struggle for recognition and enforcement of their rights.

Palavras-Chave: Lei Maria da Penha; Princípio da Igualdade; Preconceito de Gênero; Direitos Humanos.

Keywords: Maria da Penha Law, Principle of Equality, Gender Prejudice, Human Rights.

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Graduada em Serviço Social – UFPB e mestranda do Programa de Pós Graduação em Ciências Jurídicas – Centro de Ciências Jurídicas – UFPB. Email: [email protected] TP

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1. Gênero, violência contra as mulheres e a contribuição do movimento feminista na luta pelo fim da violência contra as mulheres O conceito de gênero, enquanto categoria de análise (SCOTT, 1995) foi introduzida pelo feminismo acadêmico na década de 1980, na Europa e na América do Norte. A partir desse momento, tornou-se referência para estudos sobre a relação entre homens e mulheres. De acordo com Strey (2001), gênero diz respeito à construção social do que é ser homem e do que é ser mulher na sociedade e às relações sociais, que são permeadas por relações de poder. Nesse sentido, é pertinente, Situar o conceito de gênero como relacional, implica em entendê-lo como dizendo respeito às relações de dominação e de opressão que transformam as diferenças biológicas em desigualdades sociais ou exclusão (AZAMBUJA, 2004, p. 270).

Compreender o conceito de gênero como relação é fundamental para entendermos o fenômeno da violência contra as mulheres2, que existe historicamente, como uma das TP

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manifestações da violência de gênero – violência que é cometida contra uma pessoa baseada no seu sexo (masculino ou feminino). No caso da violência contra as mulheres que ocorre, principalmente, pelo fato desta ser do sexo feminino, ou melhor, pelas construções sociais do que é ser homem e ser mulher, formuladas com base no patriarcado3. TP

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A violência contra as mulheres está fundamentada e até legitimada socialmente pela ideia de que o homem é o detentor do poder e que a mulher é sua propriedade, podendo assim fazer com ela o que quiser. O uso desse tipo de violência tem aceitação por parte da sociedade, historicamente educada sob a cultura patriarcal, que valoriza a agressividade masculina. Segundo Saffioti

(2002)

o

patriarcado

não

representa

necessariamente

o

poder dos

homens

individualmente sobre as mulheres, mas sim da categoria social “homens” sobre a categoria social “mulheres”. Para ela, a supremacia masculina não está na sua força física, mas na aceitação coletiva de um sistema de valores androcêntrico presentes na cultura dominante, baseados em normas masculinas. Desse modo, O conceito de violência de gênero deve ser entendido como uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher. Ele demonstra que os papéis impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas entre os sexos e indicam que a prática desse tipo de violência não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas (MELO; TELLES, 2002, p. 18).

2

Definida pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará/1994, como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

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Segundo Castells (1999), o patriarcado é uma estrutura que está presente em todas as sociedades contemporâneas, caracterizando-se pela autoridade do homem sobre a mulher. TP

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Todavia, a ideologia patriarcal além de legitimar a violência masculina sobre as mulheres, culpabiliza a própria mulher pelos atos violentos de que ela é ou foi vítima. Esse processo de culpabilização pode ser percebido, por frases, que na verdade são ideias que se perpetuam e que expressam omissão da sociedade, justificam a prática das agressões e ainda reforçam o poder masculino e sustentam a impunidade. É comum ouvirmos: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, “alguma coisa ela fez para merecer apanhar, “matou por amor” ou ”ela gosta de apanhar” entre outras. Na maioria das vezes, a violência doméstica está relacionada ao não cumprimento do “papel social” que é diferenciado para mulheres e homens: para este, cabe o papel de mandar e para aquela o papel de obedecer. É visível o reforço que é dado ao papel social das mulheres, determinando como sendo características femininas a sensibilidade e fragilidade que as fazem assumir responsabilidades como a educação dos/as filhos/as, o cuidado com a casa e com a saúde familiar, além de outras atividades que garantam a reprodução social e a manutenção da família. Essas atividades estão concentradas no espaço privado: “lugar de mulher é na cozinha”. Já em relação aos homens, as cobranças trilham caminhos contrários, estes devem ser fortes, mandar, prover as necessidades materiais da família e ocupar os espaços públicos.

Para

Cavalcanti (2010, p. 114), essa dicotomia só tem acentuado as desigualdades entre homens e mulheres e colocado as mulheres em situação de inferioridade em relação a estes. A violência cometida contra as mulheres é, portanto, uma prática antiga que há milhares de anos tem sido usada para dominar e para fazer a mulher acreditar que seu lugar na sociedade é o de estar sempre submissa ao poder masculino (MELO; TELLES, 2002). Sua ocorrência se dá em todas as partes do mundo com manifestações em diversos espaços da sociedade, como mercado de trabalho, instituições públicas, conflitos armados, porém, é no espaço doméstico que ocorre o maior número de casos. Por isso a violência doméstica e familiar vai além de um mero problema de cunho privado, ocorrido apenas a partir de conflitos familiares, e se constitui num problema grave de responsabilidade do Estado e da sociedade. Nesse sentido, assevera Schraiber (2005, p. 31), “a violência doméstica, enquanto violência de gênero representa a radicalização das desigualdades na relação entre homens e mulheres”. Esse tipo de violência é grave e complexo, principalmente, por acontecer no espaço em que deveria haver segurança, respeito, diálogo e por ser perpetrada por uma pessoa do convívio das mulheres o que aumenta a possibilidade de reincidência, bem como a diferencia de uma violência cometida por uma pessoa estranha, pois dificilmente essa pessoa voltará a agredi-la. Considerando esses elementos Saffioti (2004) assevera, A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, uma intervenção externa. Raramente uma mulher consegue desvincular-se de um homem violento sem auxílio externo. (SAFFIOTI, p. 79)

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Para visualizarmos a dimensão do problema se faz necessário a apresentação de alguns dados. O Informe Mundial sobre a Violência e Saúde (2002), relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), levantou que quase metade dos assassinatos de mulheres, em 2002, fora cometidos pelos maridos e namorados atuais ou ex. Este relatório, também informou que em alguns países até 69% das mulheres relataram que já foram agredidas fisicamente e até 47% delas afirmou que a sua primeira relação sexual ocorrera forçadamente. No Brasil, a situação também é grave, de acordo com a pesquisa A mulher brasileira nos espaços públicos e privados, realizada em 2001, pela Fundação Perseu Abramo (FPA) e reconhecida como uma das pesquisas mais completa sobre a violência contra as mulheres no país, revelaram que Quase 2,1 milhões de mulheres são espancadas por ano, sendo 175 mil por mês, 5,8 mil por dia, 4 por minuto e uma a cada 15 segundos”. Em 70% dos casos o agressor é uma pessoa com quem a mulher mantém ou manteve algum vínculo afetivo (CFEMEA, 2007, p. 15).

Esses dados reafirmam a complexidade do problema e a necessidade de intervenção do Estado e da sociedade em geral, para que a mulher possa sair de uma situação de violência antes que tenha sua vida ceifada. É pertinente considerar, devido a complexidade da questão, que há muita subnotificação deste tipo de crime. As denúncias ainda são ínfimas em relação ao número de ocorrências. Estima-se que, pelo menos, metade das mulheres que sofrem violência doméstica permaneçam caladas e não denunciem as agressões. Na maioria das vezes a falta de apoio da família, ausência de serviços especializados e políticas públicas efetivas, bem como a pouca resolutividade dos casos na justiça tornam-se os principais motivos que impedem a mulher de formalizar uma denúncia. A questão da violência contra as mulheres passou a ser visibilizada no cenário brasileiro na década de 1970, a partir das intervenções dos movimentos feministas e de mulheres que iniciaram uma série de mobilizações em todo o país para mostrar que o problema não dizia respeito, apenas, às mulheres que sofriam a violência, mas a toda sociedade e, principalmente, ao Estado. Nesse primeiro momento, as ações realizadas constavam de passeatas, mobilizações de rua e abaixo-assinados exigindo a punição dos assassinos de mulheres e reivindicando a criação de leis específicas e serviços de proteção às mulheres em situação de violência. Com o slogan “Quem Ama Não Mata” e outras campanhas as feministas divulgavam a número de mulheres assassinadas; denunciavam a insatisfação com a falta de punição e repugnavam a justificativa, usada pelos assassinos e aceita pela justiça - de que “matavam por amor” ou “em defesa da honra”. Essas mobilizações tiveram grande impacto na sociedade. Já no começo da década de 1980, a Rede Globo de Televisão, na época, a maior emissora do Brasil, veiculou uma minissérie

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intitulada “Quem Ama Não Mata” que tratava do tema da violência contra a mulher4, além de TP

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apresentar a questão em outros seriados e telenovelas. De acordo com Sousa, Foi o movimento feminista que transformou o silêncio das vítimas em um grito contra a violência, e a impunidade virou notícias em revistas nacionais, jornais e telejornais; a crônica policial ficou atenta ao alto número de homicídios domésticos. (SOUSA, 2004, p. 16).

Desta forma, o movimento feminista conseguiu mostrar uma situação, existente há muito, mas que a sociedade e o Estado, talvez, fingiam não ver.

2. Respostas do estado ao problema da violência contra as mulheres e os instrumentos internacionais de proteção aos direitos das mulheres Como resultados de longos processos de luta vieram as primeiras respostas do Estado. A criação das Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulheres (DEAMs), na década de 1980, representou uma das mais significativas conquistas para a proteção de mulheres em situação de violência no Brasil. As estimativas produzidas pelas Delegacias tornaram incontestáveis as denúncias da freqüência, do grau e da autoria dos delitos, dando credibilidade às campanhas “Quem ama não Mata” e “O Silencio é Cúmplice da Violência” (NEGRÃO, 2004, p. 228).

Por muito tempo as Delegacias foram a única política existente, no país, para o enfrentamento da violência contra as mulheres. Posteriormente, outras políticas, iniciativas e órgãos específicos também foram criados no país com objetivo enfrentar este grave problema social. Em 1992, foi instalada a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Violência contra a Mulher, que durou de janeiro de 1991 a agosto de 1992. Esta CPI colocou na agenda do legislativo a violência contra as mulheres como uma problemática social a ser enfrentada. O relatório final classificou a situação como grave e incluiu a proposta de elaboração de um Projeto de Lei para conter o avanço da violência contra esse segmento da sociedade brasileira (MELO; TELLES, 2002). Sendo a violência compreendida não só como caso de polícia, mas também como uma questão de saúde pública, a partir de 1997 foram criados serviços voltados para o atendimento e a identificação de agressão física, potencialmente relacionadas à violência doméstica, chamados de 4

Segundo um dos diretores do programa, Daniel Filho, a minissérie se baseou em crimes passionais do período, e que tinha repercutido na opinião pública. Destacou, ainda, que o título veio de uma frase que feministas picharam, nos muros de Belo Horizonte/MG, na época do julgamento de Doca Street, assassino de sua esposa, Ângela Diniz (Memória Globo: Quem ama não mata. Disponível em http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273235806,00.html. Acesso em 23 nov. 2011. TP

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Serviços de Referências funcionam em hospitais e ambulatório e atendem as mulheres que sofreram violência sexual com serviço de abortamento legal, se for necessário (BRASIL, I CNPM, 2004, p. 24). Também foram criadas as Defensorias Públicas da Mulher que são órgãos dos Estados que oferecem suporte jurídico às mulheres. Sua principal finalidade é prestar assistência jurídica, orientar e encaminhar (para outros serviços) as mulheres em situação de violência (BRASIL, SPM, 2003, p. 52). Na década de 2000 podemos destacar diversas iniciativas governamentais, como a criação de uma Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com status de Ministério, vinculada diretamente à presidência da república e dispondo de dotação orçamentária, bem como de organismos específicos de políticas para mulheres em diversos estados e municípios do país. A partir desse momento foram realizadas as Conferências de Políticas para as Mulheres (2004 e 2007) que reuniu representantes dos movimentos sociais e governamentais para discutir e propor políticas para as mulheres em todas as áreas. Dessas conferências foram elaborados dois planos nacionais de políticas para as mulheres com propostas para serem implementadas nos três níveis de governo. Prevista no I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, e contemplando as recomendações da Organização dos Estados Americanos - OEA, em 2003, foi implantada a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher com objetivo implementar ações de prevenção e assistência às mulheres em situação de violência e garantir os direitos das mulheres em diferentes campos. Sua consolidação veio em 2007 com o lançamento do Pacto Nacional pelo Enfrentamento á Violência contra a Mulher, de acordo com a Secretaria de Políticas para as Mulheres - SPM,5 no pacto estão previstos a construção, a reforma e a reaparelhagem de TP

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serviços especializados de atendimento às mulheres como as DEAMs, os Centros de Referências, as Casas Abrigo e as Defensorias e também a capacitação de profissionais que atuam nas áreas da segurança, assistência, prevenção e combate à violência, como também a realização de campanhas educativas e culturais de prevenção à violência de gênero. Em 2005, foi criado pela SPM, a Central 180 de Atendimento à Mulher6, além de orientar mulheres de todo Brasil esse TP

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serviço tem produzido dados estatísticos sobre a violência contra as mulheres. Essas iniciativas estão em consonância com os vários instrumentos internacionais e regionais de proteção aos direitos humanos que reafirmam a adesão dos propósitos da Declaração Universal dos Diretos Humanos – DUDH, de 19487 dos quais Brasil é signatário. Assinar um tratado internacional TP

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Disponível em http://sistema3.planalto.gov.br/spmu/atendimento/atendimento_mnulher.php: Acesso em: 11. nov. 2011.

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Central de Atendimento às mulheres vítimas de violência com o objetivo de orientá-las sobre seus direitos e informar a quem recorrer em caso de violência. Funciona com um Disque Denúncia 24H, com ligação gratuita (180) para todo o Brasil.

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Promulgada em 1948 é a primeira codificação dos direitos humanos e norteia todas as declarações seguintes é considerada um marco relevante na proteção aos direitos humanos em âmbito internacional. PT

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significa comprometer-se perante a comunidade internacional para efetivar, em âmbito local, o que está proposto, pois além de criarem obrigações internas, os tratados, geram novos direitos. Pontuaremos, a seguir, apenas três desses instrumentos que significaram (e significam) maior impacto sobre os direitos das mulheres e que objetivam a superação das desigualdades de gênero e a superação da violência contra as mulheres: (a) Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) – Adotada em 1979, pela Assembléia da ONU, e assinada pelo Brasil só em 1983, entrando em vigor em 1984, “[...] por discordar e rejeitar alguns pontos, o nosso país só aprovou esta Convenção, em parte. Apenas dez anos depois, em 1994, é que o governo brasileiro aderiu completamente à Convenção” (SOUSA, 2004, p.7). Essa Convenção é tida como a “carta magna” dos direitos da mulher por reconhecer a importância de garantir a homens e mulheres igualdade de condições e se propor a eliminar a discriminação contra as mulheres nos mais variados campos da sociedade. O Art. 1º da CEDAW trata de especificar o significado de discriminação contra a mulher, Para fins da presente Convenção, a expressão “discriminação contra a mulher” significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto, ou resultado, prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base no preceito de igualdade entre o homem e a mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural e civil, ou em qualquer outro campo (VILHENA, 2001, p. 93).

Nesta convenção fica explícito que os direitos das mulheres, que não se reduzem aos direitos individuais, passam a se equiparar aos do homem, de modo que se reconhece que, apesar das diferenças físicas, ambos devem ter os mesmos direitos; (b) Conferência Mundial sobre Direitos Humanos – Realizada em Viena (Áustria), no ano de 1993, a Conferência Mundial dos Direitos Humanos teve grande significado para a vida das mulheres. O objetivo prioritário é a participação plena e igualitária das mulheres em todas as esferas econômico, social e cultural. Nesta Conferência, a violência de gênero e todas as formas de abuso sexual e exploração, incluindo as que resultaram de preconceitos e tráfico de mulheres foram definidas como incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana, entretanto, sua maior importância está em reconhecer os direitos das mulheres como sendo direitos humanos. A participação dos movimentos de mulheres, com a bandeira de luta: “os direitos da mulher são direitos humanos” foi fundamental para garantir a introdução do Artigo 18, que determina: Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo (VILHENA, 2001, p. 184).

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Uma significativa conquista, em decorrência do Programa de Ação de Viena, foi a aprovação, pela Assembléia da ONU, da Resolução 48/104 de 20 de dezembro de 1993 – essa resolução contém a Declaração sobre a Violência contra a Mulher, uma vez que “esse tema, até então, não contava com nenhum documento específico em nível mundial [...] esse documento serviu de base para a posterior Convenção de Belém do Pará” (MELO; TELLES, 2002, p. 63); e (c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Aprovada, pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA)8 - realizada em TP

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Belém do Pará - em junho de 1994, foi ratificada pelo Brasil, em novembro de 1995. A Convenção de Belém do Pará, como é mais conhecida, ratifica e amplia a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), que tratou da questão da violência contra a mulher e consiste numa importante ferramenta legal, para a erradicação da violência contra as mulheres, pois é o único instrumento internacional que trata especificamente dessa questão. A Convenção, além de definir o que é violência contra a mulher; estabelece os direitos protegidos; enumera os deveres do Estado e explicita os mecanismos de proteção às mulheres. Dentre os direitos protegidos, especificados na Convenção, estão: o direito de que se respeite sua vida, sua integridade física, psíquica e moral; o direito à liberdade e à segurança pessoais; o direito de não ser submetida a torturas; o direito à igualdade de proteção perante a lei e da lei; o direito a um recurso simples e rápido perante tribunal competente que a proteja contra atos que violem seus direitos; direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões (VILHENA, 2001). A Convenção de Belém do Pará reconhece, ainda, que esse tipo de violência é uma violação dos direitos humanos e responsabiliza o Estado e a sociedade pela garantia do direito das mulheres a uma vida sem violência. Os Estados-partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e concordam em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas e prevenir, punir e erradicar a dita violência [...] (VILHENA, 2001, p. 308).

Para garantir a efetivação dos direitos das mulheres, previstos pela Convenção, ao ratificar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, os Estados-partes se comprometem a assumir obrigações que estão descritas no Artigo 7º, do III Capítulo da Convenção: “atuar com a devida diligência para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher” [...] “Incluir, em sua legislação interna, normas penais, civis e administrativas” [...]. Além de: adotar medidas jurídicas que exijam do agressor abster-se de perseguir, intimidar, ameaçar, machucar, ou pôr em perigo a vida da mulher, de qualquer forma que atente contra a

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A Organização dos Estados Americanos (OEA), foi criada em 1948, é composta por 35 países. A OEA é o principal fórum multilateral das Américas do Norte, Central, do Sul e do Caribe. PT

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sua integridade, ou prejudique sua propriedade; tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou, ainda, modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância desse tipo de violência; estabelecer procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher, sujeitada à violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos (VILHENA, 2007, p. 309). Contudo, mesmo sendo signatário desses e de vários outros instrumentos de proteção dos direitos das mulheres foi apenas em 2006 que o Brasil sancionou uma lei que criminaliza a violência doméstica e familiar – a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”), que aprofundaremos mais adiante.

3. A igualdade como princípio constituicional e Lei 11.340/06 (“Maria da Penha”) No Brasil, não diferente de diversos países, a desigualdade entre homens e mulheres é histórica, sendo assegurada por legislações que reforçam e buscam justificar a “incapacidade” das mulheres, as colocam sempre em condição de inferioridade. Por exemplo, até 1962 a mulher casada foi considerada relativamente incapaz e só podia exercer uma profissão com a autorização do marido (art. 242, VII, do Código Civil de 1916). Somente com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/1962) a mulher casada passou a ter plena capacidade civil, mas o marido continuou sendo considerado o chefe da sociedade conjugal (art.233 do Código Civil de 1916) até a promulgação da Constituição de 1988, que estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres perante a lei9. TP

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A Constituição Federal de 1988 se configura como um marco do reconhecimento dos direitos das mulheres. Em seu texto, artigo 5º Inciso I, estabelece a igualdade jurídica entre homens e mulheres: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” e no parágrafo 8º do artigo 226 responsabiliza o Estado para a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, bem como a proteção de cada um dos membros da família. (BRASIL, CF/88, 2006). Contudo, passados mais de 20 anos é possível visualizarmos a pouca efetivação desses direitos. Os índices de violência doméstica e familiar continuam altos, sendo as mulheres e as crianças as mais atingidas; no mercado de trabalho, as mulheres ocupam os cargos de menor poder nas empresas, são menos remuneradas que os homens e estão em maior número no informal, além de acumular jornadas de trabalho. Vale destacar que a lei em discussão foi elaborada com as contribuições o movimento feminista e organizações não-governamentais brasileiras e estrangeiras, que iniciaram o diálogo

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Desvelar o machismo, por Túlio Vianna Disponível em: http://tuliovianna.wordpress.com/page/2/. Acesso em: 20. Nov.2011 TP

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com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), que posteriormente coordenou um Grupo de Trabalho Interministerial constituído pela a Advocacia-Geral da União; o Ministério da Saúde; o Ministério da Justiça; a Casa Civil da Presidência da Presidência da República e as Secretarias de Segurança Pública, dos Direitos Humanos e de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que teve como resultado a elaboração do projeto de lei nº 4.559, de 2004, encaminhado ao Congresso pelo então presidente da República, sendo aprovado pelo Senado Federal (PLC 37/06) em julho de 2006. (CAVALCANTI, 2010, P. 190). A Lei nº 11.340/06 - “Lei Maria da Penha” TP

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, como ficou conhecida, foi sancionada em PT

agosto de 2006, entrou em vigor no dia 22 de setembro do mesmo ano, retirando a violência doméstica contra a mulher do rol dos delitos de menor potencial ofensivo. A questão da violência doméstica e familiar passa, então, a ser tratada judicialmente como crime e não como uma infração de menor potencial ofensivo, ou conflito relacional que poderia ser “resolvido” com o pagamento de cestas básicas ou multas irrisórias, como era tratada na Lei 9.099/95. De acordo com a lei 9.099/95, os Juizados Especiais Criminais tem competência para processar os crimes de menor potencial ofensivo, ocorrendo que os acusados de praticarem T

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violência doméstica contra as mulheres, quando eram condenados tinham como pena o pagamento de cestas básicas e/ou prestação de serviço a comunidade, contudo na maioria das vezes os processos eram arquivados. O conteúdo e a aplicação dessa lei reforçaram a ideia da naturalização da violência doméstica contra as mulheres e consolidou a impunidade para esse tipo de crime no país. A lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) se constitui numa legislação específica que tipifica e torna crime a violência doméstica e familiar, reconhece a violência contra as mulheres como violação aos direitos humanos e propõe uma política nacional de enfrentamento à violência doméstica e familiar. Está conformidade com o artigo 226, §8º da Constituição Federal de 198811 TP

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e atende às recomendações do Comitê CEDAW e da Convenção de Belém do Pará (CFEMEA, 2007 p. 16). Em seu artigo 5º define a violência doméstica e familiar contra a mulher como [...] qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, praticado não apenas no âmbito da família ou da unidade doméstica, como também em qualquer 10

Em homenagem à Bioquímica cearense Maria da Penha Maia de Fernandes que ficou paraplégica em decorrência de violência doméstica e familiar da qual foi vítima, por anos, tendo como agressor seu marido - que mesmo sendo condenado pelos tribunais, ficou preso por um curto período. A partir de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado por negligência e omissão e recomendou o pagamento de indenização a ela, que foi a primeira mulher que denunciou o crime, junto a esta Comissão (BRASIL, MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2002). TP

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"O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações". PT

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relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido independentemente de coação.

E apresenta, no Artigo 7º, as diferentes formas de violência doméstica e familiar I – Violência Física – “Entendida como qualquer conduta que ofenda a sua integridade ou saúde corporal”. [Pode ser caracterizada por socos, chutes, mordidas, sufocamentos, queimaduras, facadas, qualquer outra lesão corporal e homicídios] II – Violência Psicológica – “Qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças, e decisões”. [A violência psicológica se expressa por meio de privações, humilhações, constrangimentos, insultos, palavrões, ameaças constantes, entre outros. III – Violência Sexual – “Entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força”. [Acontece quando a mulher é forçada a manter relação sexual com o seu parceiro, por que é o “papel” dela, de servi-lo quando ele quiser, é também comum a proibição do uso de qualquer método contraceptivo, por parte do companheiro, marido, namorado] IV – Violência Patrimonial – “Qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens ou valores”. V – Violência Moral – “Entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria” (CFEMEA, 2007 p. 16).

Ampliando dessa forma o entendimento de que a violência não se resume a agressões físicas. Essas formas de violência não acontecem dissociadas em geral, elas aparecem interligadas. Dados do Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (2002), apontam que a violência física normalmente é acompanhada por abusos psicológicos e sexuais. A lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher; altera o § 9º do artigo 129 do Código Penal - ampliando a pena; proíbe a aplicação de penas alternativas – como previstos na Lei 9.099/95; prevê a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – com competência civil e criminal; impossibilita a renúncia da representação da vítima – que só pode ser admitida perante o juiz em audiência e permite o juiz determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação. Muito mais do que punir, a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) traz aspectos conceituais e educativos, que a qualificam como uma legislação avançada e inovadora, seguindo a linha de um Direito moderno, capaz de abranger a complexidade das questões sociais e o grave problema das violências doméstica e familiar (CFEMEA, 2007, p. 11).

A lei prevê também medidas de proteção para mulheres que estão correndo risco de vida, a partir do afastamento do agressor de sua casa e a proibição de que este venha a se aproximar,

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fisicamente, da mulher agredida e dos(as) filhos(as) e prevê a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar para tratar desse tipo de violência. O Art. 14º determina, Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.

A referida lei reafirma a necessidade da “integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação” (CFEMEA, 2007). A Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”), atualmente, se constitui um significativo instrumento legal para o enfrentamento da violência, sendo avaliada pela diretora do escritório da ONU-Mulheres (UNIFEM) como uma das três melhores leis em todo o mundo para reduzir a violência contras as mulheres12, além de ser credibilizada pela sociedade, como revela uma TP

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pesquisa do Data Senado, realizada em 2007, revelou: “54% das mulheres entrevistadas acham que a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) é um mecanismo que protege total ou parcialmente as mulheres” (CFEMEA, 2007, p. 14). Em outra pesquisa realizada em 2011, pela Fundação Perseu Abramo – FPA, os dados revelaram que 80% dos brasileiros aprovam a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) 13. TP

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Contudo, mesmo se tratando da única legislação que tornou crime a violência doméstica e familiar no Brasil, muitos magistrados e tribunais de justiças tem se colocado contrários à sua aplicação como veremos no tópico seguinte.

4. Ameaças a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”): “Direito é o Que o Juiz diz que é Direito”? Para o tratamento da questão em pauta, faz se necessário buscar como o tem vem sendo tratado nas decisões judiciais. Para tanto retomaremos Benjamin N. Cardozo14 (2004) que sendo TP

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membro do judiciário faz uma análise crítica da forma de como se constroem as decisões no interior dos tribunais, trazendo uma discussão sobre os elementos externos que as influenciam tais decisões, considerando as metodologias e as ferramentas de trabalho utilizadas pelos juristas 12

Disponível em: http://www.sepm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/2010/PUBLICACAO%20%20PremioMariadaPenha.pdf. Acesso em: 18. Nov.2011 TP

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Disponível em: http://www.conjur.com.br/2011-set-18/numero-casos-violencia-domestica-mulher-aumenta-stj. Acesso: 17. Nov. 2011

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Cardozo foi juiz em Nova Iorque e ocupou uma vaga na Suprema Corte em Washington. Ficou conhecido como um brilhante advogado e um dos juizes norte- americanos mais influentes do século 20, lembrado, principalmente, por sua contribuição significativa para o desenvolvimento da lei comum americana. Disponível em: http://www.sociologiajuridica.net.br/lista-de-publicacoes-de-artigos-e-textos/45-direito-e-ficcao-/93-direito-e-literatura-ospais-fundadores-john-henry-wigmore-e-benjamin-nathan-cardozo. Acesso: 19. Nov.2011. TP

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na criação do Direito, apresentando ainda a preocupações em relação a isso a “essa criação” do direito a partir do que diz o juiz. Deteremo-nos agora nas informações acerca das “ameaças” que a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) tem recebido, a partir da análise dos discursos proferidos por dois magistrados (MG e RS) que consideram a referida lei inconstitucional e por isso têm se recusado a aplicá-la nos casos de violência doméstica e familiar que chegam às suas Comarcas. O fundamento de tais discursos seria de fato a defesa do princípio da igualdade ou seria a expressão do preconceito de gênero tão arraigado na sociedade encontrando espaço no poder judiciário? No primeiro caso, trataremos do caso do Juiz titular da 1ª Vara Criminal e de Menores da cidade de Sete Lagoas/MG, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, que afirma a inconstitucionalidade da Lei 11.340/06, principalmente, nos artigos 1º a 14º, 18º, 19º, 22º a 24º e 30º a 40º, ou seja, quase que em sua totalidade. De acordo ele, os conteúdos da lei são discriminatórios em relação aos homens e em todas as suas sentenças utiliza as mesmas argumentações para não aplicar a lei e não anuir os pedidos de autorização de medidas protetivas às mulheres que sofrem violência perpetrada por seus pares íntimos. Após o encaminhamento, pela SPM, de quase 70 (setenta) sentenças proferidas pelo magistrado para que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ tomasse as providências15, o citado TP

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juiz passou a responder processo administrativo no CNJ e, posteriormente, após votação, em novembro de 2010, os membros do CNJ decidiram colocar o juiz em disponibilidade, medida pela qual o magistrado é afastado de suas funções por pelo menos 02 anos, recebendo salário proporcional ao tempo de serviço. Só depois desse período ele pode pedir autorização para voltar a atuar. Contudo em fevereiro de 2011, o Ministro Marco Aurélio do Superior Tribunal Federal STF cancelou a punição argumentando a “defesa da liberdade do pensamento dos magistrados”. Segundo ele, a opinião do juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues “é uma concepção individual” e que suas considerações eram “abstratas”. Podemos ver aqui certa complacência do próprio poder judiciário com as posturas do magistrado. Analisaremos trechos de uma das decisões do Juiz Edilson Rumbelsperger Rodrigues – a que deu mais polêmica pelo teor dos argumentos. Decisão referente à lei Maria da Penha – contida nos Autos nº 222.942-8/06 Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) – de 12 de Fevereiro de 2007 – TJ-MG16. TP

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Encaminhado em 2007 por Nilcéa Freire, então ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM. Fonte: Em defesa das mulheres I. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/spmulheres/mulheres-em-pauta/boletinsdo-anos-anteriores/boletim-mulheres-em-pauta-ano-iv-no-38 http://www.sepm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2007/10/not_cnj_analisa_juiz?searchterm=juiz+mg. acesso em 10. Nov.2011 TP

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Disponível em: http://www.tjmg.jus.br/. Acesso em: 14. Nov. 2011 PT

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O juiz inicia retomando o preâmbulo da CF/1988 para argumentar sobre esta como base jurídica inicial, para afirmar que além de retomar valores, históricos e filosóficos os magistrados também podem recorrer aos valores religiosos presentes na constituição para fundamentar sua decisão. Deixando perceber que o mesmo professar uma religião cristã. Vejamos: “Se, segundo a própria Constituição Federal, é Deus que nos rege — e graças a Deus por isto — Jesus está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo, nove entre dez brasileiros o têm como Filho Daquele que nos rege”.

A partir dessa colocação o Magistrado acusa a “Lei Mara da Penha” de herege, por ter sido criada, segundo ele, para inibir a “função” primordial do homem de “exemplar” a mulher, se for necessário. Baseando-se na construção social do que é ser homem e do que é ser mulher e no poder que permeiam essas relações, podemos presumir que essa “necessidade” se dá na “desobediência” da mulher, ou seja, o não cumprimento do seu papel definido socialmente pelo patriarcado. Isso é, a defesa do magistrado reforça a ideia do patriarcado de que o homem é o detentor do poder e a mulher a ele pertence. Em outro trecho ao falar da violência doméstica e familiar como violação aos direitos humanos das mulheres, como afirmado pela Declaração de Viena (1993), o juiz ironiza: “O próprio e malsinado art.7° — que define as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher — delas não pode ser vítima também o homem? O art. 6° diz que “A violência familiar e doméstica contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos”. E ainda: “Que absurdo! A violência contra o homem não é forma também de violação de seus “direitos humanos”, se afinal constatada efetivamente a violência, e ainda que definida segundo as peculiaridades masculinas?”

Ao proferir essa afirmação, o juiz deixa de considerar a gravidade do problema da violência doméstica e familiar no Brasil, que atinge as mulheres, pois são as mulheres que são xingadas, humilhadas, colocadas em cárcere privado e assassinadas todos os dias, sendo estes crimes cometidos, em sua maioria absoluta como já foi apresentado em dados nesse trabalho, pelos homens – maridos, namorados, companheiros atuais ou ex. Nesse sentido Cardozo (2004) defende que é necessário considerar sempre a realidade frente às demandas que se apresentam, sem, efetivamente abandonar as normas existentes. Ou seja, diante de uma decisão de ampliar ou restringir as normas, o juízes “devem deixar que o bem estar da sociedade determine o caminho, a direção e a distância disso” (p. 47 ). Reforçando a ideologia patriarcal de que o masculino deve exercer o poder sobre as mulheres, o juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues prossegue: “Ora! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas desta lei absurda o homem terá de se manter tolo, mole — no sentido de se ver na contingência de ter 206

de ceder facilmente às pressões — dependente, longe, portanto de ser um homem de verdade, másculo (contudo gentil), como certamente toda mulher quer que seja o homem que escolheu amar”. E “(...) Porque ao homem desta lei não será dado o direito de errar.”

Com essas argumentações, o magistrado naturaliza a violência doméstica como parte integrante das relações afetivas. Se o homem erra e bate na mulher – é por que a ama; se ele a assassinar – também é por amor. Ao homem compete decidir. Em outros trechos o juiz faz um ataque direto a legislação em tela: “(...)esta lei diz que aos homens não é dado o direito de “controlar as ações (e) comportamentos (...)” de sua mulher (art. 7º, inciso II)”e continua: “(...)este conjunto normativo de regras diabólicas, a família estará em perigo”e por fim: “concluímos que do ponto de vista ético, moral, filosófico, religioso e até histórico a chamada “Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) é um monstrengo tinhoso.”

Nessa argumentação, o magistrado mostra o total desprezo pela legislação, será que o juiz está de fato preocupado com a constitucionalidade da lei ou em manter a ideia de que “a mulher é uma cidadã de segunda categoria”? Faremos breve explanação do segundo caso, referente ao Juiz Marcelo Colombelli Mezzomo17 – Titular da 2ª Vara Criminal de Erechim/RS, que por considerar que a Lei 11.340/06 TP

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(“Lei Maria da Penha”) viola a igualdade entre homens e mulheres nunca a aplicou. O juiz negou mais de 60 pedidos de medidas preventivas com base na lei por considerá-la violadora dos direitos iguais. Em suas decisões o magistrado afirmava que havia equívocos na referida lei, principalmente, no tocante a inferioridade da mulher, que de acordo com o magistrado: “equívoco dessa lei foi pressupor uma condição de inferioridade da mulher, que não é a realidade da região Sul do Brasil, nem de todos os casos, seja onde for", e ainda "perpetuar esse tipo de perspectiva é fomentar uma visão preconceituosa, que desconhece que as mulheres hoje são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho do país.”

Aqui o Juiz Marcelo Colombelli Mezzomo faz uma tentativa de reverter a situação e amenizar as desigualdades entre homens e mulheres, que segundo ele na região Sul do Brasil já foi superada. Puro engano. Para o magistrado a Lei cria diferenciação no tratamento entre homens e mulheres, enquanto que o texto constitucional de 1988 afirma a igualdade de ambos perante a lei. E em suas argumentações, o magistrado ainda defende que a lei devia também proteger os homens, 17

Vale dizer que tal juiz foi exonerado do cargo em 2011, por assédio sexual a uma jovem. http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/rs/se+eu+nao+fosse+do+tribunal+cantada+seria+normal+diz+exjuiz/n12380110285 43.html. Acesso em: 17. Nov. 2011 TP

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que segundo ele, também sofrem violência doméstica – e devem sofrer, mas não na mesma dimensão em que sofrem as mulheres. O magistrado esquece que no processo de decisão, o interesse social deve ser considerado como elemento principal como afirma Cardozo (2004). No terceiro caso, que apenas citaremos é uma decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, que em 2007, declarou a inconstitucionalidade da referida lei sob o argumento de ofensa ao princípio da igualdade entre homens e mulheres, afastando a aplicabilidade da Lei Maria da Penha. Contudo, cabe-nos informar, que mesmo diante de tantas ameaças, o Ministério Público tem atuado para que a Lei seja aplicada e, na maioria das vezes tem recorrido contra as sentenças de tais juízes em relação às medidas protetivas, garantindo assim a proteção às mulheres que solicitaram tais medidas. E que diversos tribunais do Brasil tem afirmado a constitucionalidade da Lei 11.340/06 e prosseguem com sua aplicação a exemplo da 3ª Seção do STJ que decidiu que não é necessário coabitação para caracterização da violência doméstica contra a mulher, em 2009, ou seja, a violência doméstica e familiar pode ocorrer numa relação de namoro, podendo ser na relação atual ou posterior a ela (CC 103.813). Essas decisões nos preocupam tendo em vista a problemática complexa que estamos tratando, pois de acordo com Cardozo (2004, p. 31) cada julgamento tem um poder gerador e as sentenças proferidas hoje poderão ser o certo e o errado de amanhã.

5. Consideraçõe finais A despeito de todas as conquistas alcançadas pela sociedade ocidental, principalmente, a partir de 1948, com a promulgação da DUDH e sanção de legislações específicas e assinatura de instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, as desigualdades históricas entre homens e mulheres ainda estão longe de serem superadas. Ainda são visíveis, em nossa sociedade, os retratos das desigualdades, através dos indicadores sociais, refletindo a falta de políticas eficazes que efetivem, de fato, os direitos humanos das mulheres no Brasil, principalmente no tocante a uma vida sem violência. Cabe-nos ainda trazer que as ameaças a lei Maria não estão, apenas nessas decisões e sentenças que declaram a inconstitucionalidade da mesma. Para sua efetivação faz-se necessário o melhoramento da estrutura da segurança pública, judiciária e ampliação dos serviços de atendimento às mulheres que se encontram em situação de violência. É preciso ampliar o número de DEAMs com equipes capacitadas para atender tais demanda,

desenvolver processo de

capacitação para a identificação da violência para trabalhadores da saúde, educação e assistência social que lidam diretamnete com as mulheres , bem como e, principalmente, a

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intalação de Casas Abrigos e Juizados de Violencia Doméstica e familiar, como prevê a própria legislação. Diante do exposto, ponderamos que a Lei 11.340/06 (“Lei Maria da Penha”) não deve ser considerada inconstitucional, uma vez que para alcançar uma igualdade real, faz se necessário a eliminação das desigualdades, nesse sentido é mister retomar Aristóteles quando alertou sobre tratar desigual os desiguais na medida de suas desigualdades para garantia da igualdade.

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Realismo jurídico e Direitos Humanos no Universo Prisional Thereza Michelle Lima Lopes de Mendonça 1 TP

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Resumo

Abstract

Trazendo um recorte do pragmatismo jurídico para o universo prisional, podemos observar o quanto foi difícil para os juízes tornar eficaz a Lei de Execuções Penais – LEP (1), de 1984, no que tange à remição de pena. Ampliando o conceito de trabalho além do conceito de atividade braçal, o esforço intelectual aos poucos passou a ser reconhecido como possibilidade de remir a pena. Projetos de lei, no sentido de remir a pena pelo estudo, foram introduzidos no cenário legislativo como demonstrativo prático de que a visão sobre trabalho e remição estava sendo alterada. Contudo, a modificação passou a ser realizada mesmo foi no dia-a-dia dos tribunais, até que a súmula 341 desse mais vigor a essa reforma no modo de pensar tradicionalista sobre a LEP, mostrando que direito mesmo se faz é dentro de um Fórum, de um Tribunal, na observância de cada caso, como bem explica Cardozo (2). E são essas modificações práticas e conceituais do judiciário, principalmente quando voltamos para um olhar prisional, que tornaram aplicáveis a possibilidade da humanização e individualização da pena, primando pelo princípio da dignidade da pessoa humana, conduzindo os detentos para um caminho de ressocialização e reintegração social mais eficaz, além de sempre estimular as constantes tentativas de aplicar de forma mais eficiente a Remição de Pena pelo Estudo, como a Lei 12.433 de 29 de junho de 2011.

Bringing a legal pragmatism clipping to the prison, we can observe the universe as it was difficult for the judges to make effective the Penal Executions law – LEP (1), 1984, regarding the redemption penalty. Extending the concept of work beyond the concept of menial activity, the intellectual effort gradually came to be recognized as able to redeem it. Bills in order to redeem the penalty by the study were introduced into the legislative landscape as practical statement that insight into work and redemption was being changed. However, the modification was accomplished even was on the daily life of the courts until the docket 341 more force to this reform in traditionalist way of thinking about the LEP , showing that right even is made within a forum, a Court, in respect of each case, as well explains Cardozo (2). And these are the conceptual and practical modifications of judiciary system, especially when we take a look back to prison, which made it look applicable the possibility of humanization and individualization of the sentence, excelling by the principle of human dignity, leading the detainees to a path of more effective social reintegration and resocialization, besides always stimulate the constant attempts to apply more effectively the Redemption Penalty by Study, as ordered by the law numbered 12.433 , in June 29, 2011.

Palavras-Chave: Realismo Jurídico; Direitos Humanos; Remição de Pena.

Keywords: Legal Realism; Human Rights; Redemption penalty.

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Mestranda em Ciências Jurídicas (UFPB) [email protected] T

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1. Introdução A remição de pena pelo estudo traz em seu histórico uma evolução na busca pela aplicação prática da Lei de Execuções Penais de 1984. A referida lei, no seu nascedouro, buscava priorizar a individualização da pena inserindo no seu contexto, classificando cada detento de forma pormenorizada. Ao longo da execução da pena, como forma de estimular o processo de ressocialização do apenado, foi introduzida pela LEP a remição de pena pelo trabalho, tornando-se um dos benefícios concedidos aos detentos, de forma a humanizar o ato de punição e reinserção social. No entanto, o único trabalho visualizado naquele contexto era o braçal, desconsiderando o esforço intelectivo de cada apenado. Desta forma, desde a inclusão da LEP na legislação brasileira, houve uma busca por meio de projetos de lei, para alterar essa restrição do trabalho intelectual como forma de remir a pena. Considerando o estudo como forma de trabalho, os juízes de diversos tribunais brasileiros abraçaram o tema em pauta deferindo a concessão da remição de pena pelo estudo. Surgiram, a partir de então, interpretações extensivas do artigo 126 da LEP, de diversos tribunais de justiça do País, assim como do STJ, sustentadas nessas reiteradas decisões, que solidificaram a súmula 341 do STJ (3). Assim, este trabalho se justifica pela importância na análise pragmática do direito, no conceito de seus aplicadores diretos, para a alteração e fundamentação da atual legislação que sustenta a remição de pena pelo estudo no Brasil. Mostrando o quanto a reformulação do direito, com desprendimento aos precedentes provocou uma mutação no texto legislativo a ponto de contribuir de forma efetiva para humanizar a pena. Tais argumentações, também foram instituídas com base nos direitos humanos, considerando o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - PIDESC e fundamentando-se no princípio da dignidade da pessoa humana. Tendo em vista o exposto, a presente pesquisa seguirá um enfoque metodológico estruturado e resultará do processo de levantamento e análise do que já foi publicado sobre o tema, objetivando elaborar uma revisão teórica e sobre o assunto abordado. Assim, com a estrutura basilar de fundamentação apresentada, a pesquisa em questão foi subdividida em três tópicos de desenvolvimento. O primeiro tópico deu enfoque ao pragmatismo jurídico no universo prisional, apresentando como se enxerga aplicação do direito na seara criminal, visualizando a aplicação da pena, abordando o pragmatismo da Lei de execuções penais no Brasil. O segundo tópico teve uma visão mais restrita dessa aplicação, focando de forma evidente o surgimento e importância da remição de pena pelo estudo, mostrando sua visão aplicativa sob o olhar de juízes e legisladores. 212

E o último tópico, focalizou a argumentação basilar de toda e estrutura pragmática dos juízes ao interpretar de forma mutante a legislação constituída fundamentada nos Direitos Humanos.

2. O pragmatismo jurídico no universo prisional Para se iniciar no sentido pragmático do da atividade jurídica, é preciso ter conhecimento das teorias que permeiam a atividade profissional dos que vivenciam o direito. Duas seguem a orientação principal: a primeira se orienta pelo foco da norma em si, voltada para atividade do legislador, enquanto a segunda se volta para a prática da lei. Assim, temos o olhar que podemos observar sob o ângulo do legislador e da Teoria da Norma, enquanto o segundo se volta para teoria da ação ou da Teoria da Decisão. (4) Nesta visão, na evolução da aplicação do direito houve - de meados do século XX até os tempos atuais - um deslocamento do olhar interpretativo da Teoria da Norma para a Teoria da Decisão. Tal alteração se fundamentou numa visão realista do universo jurídico, baseada no uso prático e eficaz das regras, justificando suas interpretações, não apenas no texto legislativo, mas nas finalidades que o texto almeja, bem além dos seus escritos. Neste contexto, a realidade social, promotora da aplicação legal, numa visão realista, é fundamento primordial a aplicação da lei. Assim, nada pode ser construído em normas idealistas sem conhecimento do reflexo de cada ato nem sem a justificação de cada decisão. Essa interpretação sociológica sobre o veredicto tem como fundamento a noção de que o ato de interpretação jurídica é sempre envolvido em um conjunto de relações sociais e, mesmo que esteja fundamentado em legislação, tem um sentido simbólico mais amplo do que os limites definidos pelas regras positivadas no ordenamento jurídico. (5)

No universo prisional, essa visão de aplicação do direito torna-se mais próxima do aplicador, uma vez que os reflexos de cada decisão judicial são mais evidentes e mais imediatos. Sabendo que a pena tem como funções básicas as funções retributiva, preventiva e de ressocializar ou socializar, como alguns autores preferem, a Lei de Execuções Penais, de 1984, surgiu trazendo no seu contexto a busca pela eficácia e retorno a sociedade do investimento estatal empregado, buscando êxito da função penal de ressocializar o indivíduo. A realidade é que, apesar de ser considerada uma lei de diretrizes satisfatórias, existe uma dificuldade fática de por a LEP em prática devido à realidade trágica carcerária brasileira.

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A Lei de Execuções Penais foi uma lei que basicamente não nasceu com caráter impositivo, ou melhor, positivista, com ausência de regras claras, fornecendo flexibilidade em sua aplicação e dando ensejo a variadas interpretações. Contudo, o pouco elemento positivista que lhe resta carrega em seu corpo uma grande dificuldade: a de buscar sempre alcançar sua meta. Desta forma, a lei fica repleta de metas e direitos distorcidos e difíceis de ser alcançados, devido ao universo utópico criado pelos legisladores ao elaborar uma lei para ser aplicada num sistema que não existe. Assim a LEP, fica limitada a uma moldura, como bem explica Kelsen: [...] o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. (6)

Desta forma, a legislação brasileira, que por décadas de aplicação jurisdicional aderida a concepções positivistas e limitava a interpretação das leis a constantes métodos aderidos as “molduras” dos limites legislativos, se desgarrou desses limites. O Código Penal e o Código de Processo Penal criam limites jurídicos para a ação e intervenção dos juízes e promotores, desde o processo deconhecimento até a fase de sentença. Além desses, a interação que envolve a discussão doutrinária, os recursos e as reformas de decisões pelos Tribunais Superiores, assim como as restrições do poder Executivo, criam novos limites à moldura jurídica. (5)

Nesse contexto, a aplicação da legislação criminal buscou a efetivação da lei numa perspectiva sociológica. Como pudemos observar nas interpretações extensivas do artigo 126 da própria LEP, que concedeu - na busca da finalidade da pena - diversos benefícios de remição de pena pelo trabalho intelectual, outrora não previsto pela legislação em vigor. Desta forma, a aplicação da lei passou a se impregnar de métodos, como bem enxerga Cardozo (2), e nesse caso se afastando, inclusive, de precedentes, para alcançar sempre a meta perseguida, a finalidade da lei, alçando voos altos no nível interpretativo.

3. A remição de pena pelo estudo sob o olhar de juízes e legisladores A Constituição brasileira (7) garante o estudo como um direito de todo cidadão. Nas instituições prisionais esse direito é reforçado por meio das previsões instituídas pela LEP em seus artigos 41, VII e 83. O código Penal também prevê a possibilidade de frequência a cursos profissionalizantes e a LEP, na secção V prevê a assistência educacional ao detento. 214

Contudo, tantas garantias se fazem difíceis de sair do papel. Para perseguir a forma de torná-las realmente eficazes juízes das execuções penais foram buscar além do texto positivado estímulos para atingir a meta da execução penal, que no caso da legislação brasileira se afasta da previsão kantiana de punir, visando a ressocialização do apenado. Tendo em vista tais fatores, a remição de pena pelo estudo carrega em seus ombros uma longa história de lutas, vitórias e desenganos. Representantes do executivo e administrativo prisional, posicionados numa justificativa realista, construíram uma história de batalhas e argumentações que aos poucos tocaram o legislativo na construção de projetos de lei que abordassem o tema. O assunto, antes da aprovação da lei de 12433/11, foi tema de discussões, questionando se os estudos, como mesmo questionou o desembargador Herbert Carneiro: O tema da remição pelo estudo – como fator de redução da pena – poderia experimentar um ponto final se o Congresso Nacional resolvesse de vez a análise dos aproximadamente 25 (vinte e cinco) projetos de lei em tramitação, afinal alguns já se arrastam há mais de 15 anos, e, de forma objetiva, tornasse previsão legal a possibilidade do estudo como redutor da pena, fazendo analogia deste com o trabalho, de modo a prevalecer a proporcionalidade de um dia de desconto na pena para cada três dias de efetiva dedicação aos estudos, exatamente como já acontece com o trabalho. Aí, daria para sustentar, de forma concreta, a máxima de que o estudo do preso vale a pena. (8)

O juiz da vara de execuções penais de Recife, Adeildo Nunes, também apresentava sua T

indignação e mesmo antes da edição da Súmula 341 do STJ que previa: “A frequência a curso de T

ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semi-aberto.” (3) T

Assim, o juiz pernambucano já concedia o benefício da remição de pena pelo estudo, fixando seus argumentos na meta da pena a ser alcançada e considerando a atividade intelectual como uma forma de desempenho laboral. (9) Seguindo o mesmo entendimento, outros juristas também adotaram a concepção analógica interpretando extensivamente o art. 126 da LEP para a concessão da remição de pena por estudo. Ementa: AGRAVO PLEITEADA A REMIÇÃO DA PENA POR TEMPO DEDICADO AO ESTUDO POSSIBILIDADE MELHOR INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL AO ARTIGO 126 DA LEP ANALOGIA IN BONAM PARTEM NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. ACORDAM os Desembargadores integrantes da Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, por unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator. TJPR - Recurso de Agravo RECAGRAV 3083116 PR 0308311-6 (TJPR)DJU-17/11/2005 (10) U

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Ementa: PENA REMIÇÃO PELO TEMPO DE ESTUDO ADMISSIBILIDADE. Aplicação analógica do art. 126 , da Lei de Execução Penal , permite assimilar, para efeito de remição da pena, o tempo de estudo ao tempo de 215

trabalho. RECURSO DESPROVIDO.. ACORDAM os Desembargadores da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em NEGAR PROVIMENTO ao recurso.TJPR Recurso de Agravo RECAGRAV 1680406 PR 0168040-6 (TJPR) DJU14/04/2005 (11) U

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Observando esse diferencial interpretativo, antes da súmula, a remição de pena pelo estudo se tratava de algo inovador e dependente do posicionamento de cada magistrado para sua aplicação. Após a súmula, o fator aplicativo continuou a ser questionado, pois se havia previsão para aplicá-la, mas a questão era como? E com quais requisitos? Com a alteração do art.126 da LEP, tudo ficou mais claro e o posicionamento dos magistrados, que, em sua maioria apontavam opiniões favoráveis a sua aplicação puderam aplicar a lei sem divergências. No entanto, enquanto a esfera jurisdicional buscava meios de tornar a LEP mais efetiva, o corpo legislativo entravou durante anos o deslanchar desta lei, mesmo com a observância de inúmeros projetos de lei apresentados e arquivados entre 1993 e 2007. Legislar sobre o caos! Esta parece ter sido a tarefa a que se propuseram deputados federais e senadores no período de 1993 aos dias de hoje para encontrar meios de, por um lado, reduzir a superlotação do sistema penitenciário brasileiro e, de outro, acenar para a sociedade brasileira com perspectivas para a reabilitação do preso. (12)

A remição de pena pelo estudo foi iniciada com o PL 216/1993, logo após originando o PL 3569/1993, que propunha a possibilidade de remição de pena pelo estudo nos presídios onde fosse inviável a remição de pena por meio laboral. O referido projeto foi enviado à casa revisora que emendou a proposta sugerindo a possibilidade tanto da remição pelo estudo quanto pelo trabalho. (12) Contudo, em 2001, mesmo antes que chegasse a casa revisora, o governo enviou uma proposta de reforma na LEP e sugeriu ao relator que apensasse o projeto de lei em tramite, o que de fato aconteceu. Com essa desordem no processo, só foi possível apresentar o projeto de reforma da LEP em 2008 e nesse interim totalizaram 26 iniciativas legislativas para tornar a remição de pena pelo estudo uma lei em vigor e aplicável. Levantamentos questionando a proporção entre horas de estudo e tempo remido, benefícios ao término de conclusão de cursos e perda do tempo remido em casos de falta graves foram objeto dos 26 projetos, onde se somavam os que foram apensados, e os arquivados. Toda a dificuldade de condução dos projetos de lei em trâmite teve parcela de contribuição da falta de preparação e argumentação dos projetos apresentados. A maioria dos problemas foi causada pelo fato dos fundamentados serem embasados apenas na remição de pena pelo 216

trabalho, trazendo perspectivas de que a remição por meio laboral ocorresse nos mesmos termos da remição por estudo, o que de fato, não é. Acrescentando a esses impasses, o olhar legislativo, como já mencionado, sempre visualizou um sistema carcerário inexistente, firmado num ambiente utópico, como se pode observar na análise da própria LEP, fazendo um paralelo com as possibilidades reais de sua real aplicação. O pensamento limitado da maioria dos legisladores, fez com que os mesmos não construíssem projetos consistentes, com fundamentos educativos e visões de fortes estruturas pra consolidar o projeto, como bem explica Silva (12). Abriram-se então as portas ao pragmatismo jurisdicional na ceara das execuções penais. Juízes de todas as instâncias apresentaram posicionamento em diversos processos justificando seu entendimento finalidade maior da pena: ressocializar A súmula do STJ baseia-se em precedentes de sete decisões proferidas pela Corte entre 2003 e 2005, em julgamentos de Recursos Especiais e Habeas Corpus REspxx445942xx RS 2002/0084624-8 DECISÃO:10/06/2003; HCxxx 30623 SP 2003/0170764-3 DECISÃO:15/04/2004; REsp 596114 RS 2003/0174542-0 DECISÃO:21/10/2004; REsp 256273 PR 2000/0039592-7 DECISÃO:22/03/2005; REsp 758364 SP 2005/0096251-4 DECISÃO:28/09/2005; REsp 595858 SP 2003/0174471-3 DECISÃO:21/10/2004; HC 43668 SP 2005/0068885-9 DECISÃO:08/11/2005). (12)

Diante da inércia legislativa, a súmula 341 nasceu, em 2006, no seio jurisdicional como meio de eficácia do plano da lei de execuções penais. Entre esses julgados está um recurso especial do Paraná (nº 256.273), ingressado a partir de questionamento do Ministério Público, que foi julgado pela Quinta Turma e não conhecido, por unanimidade. No acórdão, a ministra-relatora, Laurita Vaz, ressalta que a Lei de Execução Penal busca a reinserção do recluso no convívio social e evidencia, nos termos de seu art. 28, a importância do trabalho para o alcance de tal objetivo e que A interpretação extensiva do vocábulo 'trabalho', para alcançar também a atividade estudantil, não afronta o art. 126 da Lei de Execução Penal. É que a mens legislatoris, com o objetivo de ressocializar o condenado para o fim de remição da pena, abrange o estudo, em face da sua inegável relevância para a recuperação social dos encarcerados. Ou seja, a súmula baseia-se em precedentes que dão ao termo trabalho uma interpretação extensiva para o estudo. (12)

O trâmite teve sua conclusão e a lei sua publicação no dia 30/06/2011 no Diário Oficial da União, fruto do PL 7824/10, substitutivo ao PLS 265/2006 (13), do senador Cristóvão Buarque, concedendo em seu texto, no que tange a remição de pena por estudo, o cumprimento de um dia de pena para cada 12 horas de frequência escolar, sendo ele ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional, ao detento submetido ao regime fechado ou semiaberto.

217

Ficou estabelecido que o ensino pudesse ser desempenhado de forma presencial ou a distância. Beneficiando ainda o detento com um terço a mais das horas de estudo desprendidas para remição no caso de conclusão de ensino, fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena. Ao fim, analisamos que olhares convergentes faziam parte do contexto jurisdicional e legislativo, no que cumpria a meta legal. No entanto, no que tange a visão panorâmica do resultado, ambos enxergavam a aplicabilidade da lei de maneiras bem diversas, o legislativo sob o aconchego ilusório de uma lei fabricada sob os ditames de discussões internas e o jurídico sob o olhar pragmático da aplicação da lei.

4. Interpretação jurisdicional da remição de pena pelo estudo sob o foco dos direitos humanos Todo este pleito constitutivo para a consagração da lei 12433/11, teve fundamentos aplicativos, principalmente no que tange sua inserção pragmática no meio jurisdicional, a estrutura basilar de princípios de humanização. Visualizou-se que a alta reincidência e retorno dos detentos a prisão giravam sob o eixo do insucesso no processo de ressocialização do detento e da falta de cuidado do Estado com o egresso. Assim, a certeza da aplicação dos 32 incisos constantes no art. 5º da Carta Magna brasileira passou a ser mais preocupante, e a fundamentação dos mesmos ligados a dignidade da pessoa humana, do tratamento do detento como ser visível e existente aos olhos da sociedade passou a permear as decisões jurisdicionais. Neste diapasão, a interpretação jurídica que canalizou a aplicação da lei, para sua eficácia vinculada à realidade carcerária brasileira, desvinculada de precedentes e mentalizando apenas o realismo jurídico, foi ditada, de fato, pelos juízes em contato com cada caso em questão. A interpretação extensiva do artigo 126 da LEP, aplicando analogia in bonam partem, mostrou uma nova visão de juristas brasileiros, visão esta não só atrelada a normas constitucionais positivados, mas a interpretações jurisdicionais fundamentadas em princípios e tratados, conforme prevê a própria Constituição Federal em seu art. 5º, inc. LXVII, §2º: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime ou dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa dos Brasil seja parte. (7)

Desta forma, a orientação guiada por normas estabelecidas na Declaração Universal de Direitos Humanos, no Pacto de São José da Costa Rica, Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, por exemplo, 218

também nortearam suas decisões para a interpretação extensiva do art. 126 da LEP. Observando também orientações para tratamento do recluso oriundo da ONU: As Regras Mínimas para Tratamento dos Reclusos, aprovadas pelo Conselho de Defesa Social e Econômica da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1955, pelo menos no terreno programático, propõem a finalidade precípua da penitenciária: utilizar a assistência educacional, moral e espiritual no tratamento necessitado pelo interno, de modo que lhe assegure que, no retorno à comunidade livre, esteja apto a obedecer às leis. [grifo nosso] (14) U

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Tal princípio se abraça com a finalidade da LEP, que, em seu contexto, busca individualizar e humanizar a pena para uma aplicação vinculada à dignidade da pessoa humana e a finalidade de ressocializar o indivíduo.

5. Conclusões Observando fundamentação do presente trabalho, é possível analisar, as leis de execuções penais no falho sistema carcerário do país. A necessidade de intermitente de adaptá-la sociologicamente ao meio, de forma a alcançar maior êxito possível, é sempre constante, tendo em vista que a própria LEP configura um elemento utópico no seu texto em relação à realidade carcerária brasileira, distanciando-se de a sua eficácia na hora de implantá-la. Essa falsa de beleza legislativa se dá devido aos antagonismos registrados entre a aplicação do texto positivado e o reflexo social dele. Assim, aplicar o direito e buscar sua eficácia fática vai além das bases previstas pela estrutura do pensar legislativo. De tal forma que, não fugindo totalmente do positivismo de Kelsen, mas utilizando o elemento positivo como base interpretativa para aplicação do direito em si. Tal atitude visa se desvincular dessa certa “prisão” ao elemento positivo que traz dificuldades no momento de resgatar a eficácia da norma prevista. Assim, sistema jurisdicional tenta visualizar sempre uma intervenção pragmática dos reflexos sociais de suas decisões, vivenciando na teoria da decisão, o realismo jurisdicional diário na execução de penas, procurando não se desvencilhar de sua meta principal: atingir a função da pena, que no caso em questão é ressocializar o detento. Neste diapasão, a interpretação extensiva do art. 126 da LEP foi, até 2006, uma decisão ousada e fundamentada em princípios externos a lei, que nos apresentam uma posição pragmática realista dos tribunais nacionais. Posição esta fundamentada em princípios extraídos de ideais humanistas, visualizando a dignidade da pessoa humana, contida num contexto maior de normas internacionais de direitos humanos, protetoras do homem enquanto pessoa, enquanto ser humano. 219

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O pretor peregrino como expressão da máxima pragmática no direito romano Valéria Véras1 TP

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Lorena Freitas TP

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Resumo

Abstract

Direito é o que o juiz diz que é direito. Essa é máxima que representa em síntese o Realismo Jurídico. Em nosso ordenamento jurídico a constitucionalidade dessa máxima apresenta-se no caput do art. 102 da atual Constituição Federal, ao referir-se ao Supremo Tribunal Federal, como Guardião da Constituição. É por intermédio da interpretação da lei que o juiz busca a resolução de um conflito. Essa liberdade, limitada pelos princípios constitucionais, de interpretação é, em sua essência, um atenuante da letra da lei que tem como objetivo uma maior aproximação do direito com a justiça. Esse anseio pela aproximação entre direito e justiça remonta desde a Roma antiga com a figura do pretor peregrino que buscando atenuar a rigidez do ius civile e servir em realidade à utilidade pública declarava o direito entre os peregrinos conquistados pela expansão romana. A visível necessidade do pretor peregrino se dava através dos constantes conflitos, os quais não eram solucionados pela severidade do ius civile e por isso careciam de um método cujo objetivo fosse alcançar uma solução que, caso não fosse agradável para ambas as partes, fosse ao menos o que podemos chamar de mais próximo do justo. Logo, direito era aquilo que, através dos decretos, o pretor afirmava. Dessa forma os casos concretos eram analisados individualmente e decididos pelo pretor peregrino que, preenchendo lacunas do ius civile distribuía o direito entre as turbas de peregrinos que chegavam a civitas. O presente trabalho tem como foco a análise do Realismo Jurídico através da construção de uma ponte, entre a figura do juiz do nosso atual ordenamento jurídico e a figura do pretor peregrino na Roma antiga por intermédio dos métodos apresentados por Cardozo em suas palestras na universidade de Yale.

Law is what the judge says is right. This is the maximum that represents the synthesis of Legal Realism. In our legal system the constitutionality of this maximum is presented in the caput of art.102 of the actual Federal Constitution, when referring to the Supreme Federal Court, as guardian of the Constitution. It is through the interpretation of the law that the judge seeks to resolve a conflict. This freedom, limited by the constitutional principles of interpretation is, in essence, a dampening of the letter of the law that aims to move closer towards the right to justice. This desire for rapprochement between law and justice dates back to ancient Rome with the figure of praetor pilgrim who, seeking to mitigate the rigidity of the ius civile and serve the public interest in fact, declared the right of the Pilgrims earned by the Roman expansion. The apparent need for peregrine praetor was through the constant conflicts, which were not resolved by the severity of the ius civile and therefore lacked a method whose goal was to achieve a solution which, if not enjoyable for both parties, was at least what we might call the nearest fair. So, law was what that, through the decrees, the praetor said. Thus the individual cases were individually analyzed and decided by the peregrine praetor that, filling gaps in ius civile, distributed the right among the crowds of pilgrims who came to civitas. This paper focuses on the analysis of Legal Realism by building a bridge between the figure of the judge of our current legal system and the figure of praetor pilgrim in ancient Rome through the methods presented by Cardozo in his lectures at Yale University.

Palavras-Chave: Jurídico; Cardozo.

Pretor

peregrino;

Realismo

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Keywords: Cardozo.

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Peregrine

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Graduanda do 3º período da UFPB. Discente-pesquisadora do Grupo de pesquisa cadastrado no diretório Capes/ CNPq: “Realismo Jurídico e Direitos Humanos” sob orientação da professora Dra. Lorena Freitas.

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Adjunta I – UFPB. Integra equipe do PROCAD UFAL/UFPE/UFPB.

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1. Considerações preliminares acerca do objeto e referencial teórico Este artigo, tendo por objeto de estudo a figura do pretor peregrino, tem por referencial teórico o pragmatismo filosófico e, especialmente, jurídico. Pelo pragmatismo jurídico, leia-se, a discussão do chamado realismo jurídico norte-americano capitaneado por autores como Oliver Wendell Holmes Jr e Benjamin Nathan Cardozo. Filosoficamente o pragmatismo constitui um dos alicerces culturais da nova mentalidade americana pós-guerra civil, é natural, portanto que tenha exercido igualmente papel relevante na reformulação do sistema jurídico, particularmente no que concerne ao chamado realismo jurídico norte-americano.3 Desenvolveu-se, pois, a partir de alguns ensaios clássicos, de autoria de TP

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Charles Sanders Peirce, de William James, de John Dewey e de Oliver Wendell Holmes Jr.4, juiz TP

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da suprema corte norte-americana, precursor de realismo jurídico e representante do pragmatismo no ambiente forense. O texto que inaugura e inspira o movimento intitula-se Como tornar claras as nossas ideias, escrito por Peirce em 1878. No artigo tem-se a máxima de que “a ação do pensamento é exercida pela irritação da dúvida, e que cessa quando se atinge a crença; de modo que a produção da crença é a única função do pensamento”.5 Aduz ainda que: TP

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A função global do pensamento consiste em produzir hábitos de ação [...]. Então chegamos ao que é tangível e concebivelmente prático como seno a raiz de qualquer distinção real do pensamento [...] e não há distinção de significado por mais fina que seja que não consista numa possível diferença prática.6 TP

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Assim, o significado de um conceito está nas suas consequências práticas, nas possibilidades de ação que ele define, do que podemos concluir que a clareza de uma ideia reside na sua utilidade.

3

REGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia jurídico-pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr. In: Anuário dos cursos de pós-graduação e direito da UFPE. N. 17. Recife: Ed. Universitária UFPE, p. 63, 2007. TP

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4

REGO, George Browne. Considerações em torno do pragmatismo e da filosofia jurídico-pragmática de Oliver Wendell Holmes Jr. In: Anuário dos cursos de pós-graduação e direito da UFPE. N. 17. Recife: Ed. Universitária UFPE, p. 41 ss 2007. TP

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5

“The action of thought is excited by the irriation of doubt, and ceases when belief is attained; so that the production of belief is the sole function of thought”. PEIRCE, Charles Sanders. How to make our ideas clear. Disponível em . Acesso em 17/05/05, p. 3 de 12.

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“The function of thought is to produce habits of action [...]. Thus, we come down to what is tangible and conceivably practical, as the root of every real distinction of thought […] and there is no distinction of meaning so fine as to consist in anything but a possible difference of practice”. PEIRCE, Charles Sanders. How to make our ideas clear. Disponível em . Acesso em 17/05/05, p. 5 de 12. TP

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O pragmatismo no direito teve sua primeira representação com Oliver Wendell Holmes Jr. E é dele o mais famoso aforismo jurídico norte-americano, que nos dá conta de que o direito não é lógica, é experiência.7 TP

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Por pragmatismo jurídico delimita-se a expressão da perspectiva compartilhada por Oliver Holmes, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo, principalmente, de que a lei não seria um processo de deduções de decisões corretas os princípios jurídicos estabelecidos, mas, antes, um contínuo processo ou adaptação experimental de tomada de decisão em determinados casos, numa tentativa de chegar a soluções que sejam corretas apenas no sentido de que realmente funcionaram no contexto social em que agiram.8 TP

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Contextualmente, o pragmatismo jurídico é uma escola da teoria do direito que nasceu nos EUA no início do século XX tendo por principal característica o esforço de aplicar a tradição filosófica do pragmatismo ao problema da interpretação jurídica.9 TP

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No âmbito do direito o pragmatismo fez suas primeiras incursões por meio daquilo que ficou conhecido como o realismo jurídico do próprio Holmes, além dos demais citados, Roscoe Pound e Benjamin Cardozo. O termo realismo jurídico é utilizado para descrever a teoria e a prática desses juristas devido à resistência que demonstraram ao formalismo excessivo da tradição jurídica americana. Para os pioneiros do juspragmatismo norte-americano as instituições jurídicas deviam ser realistas quanto às necessidades sociais que têm por objetivo saciar, só assim as decisões jurídicas estariam mais próximas da comunidade.10 TP

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2. Indícios de um pragmatismo filosófico e jurídico no direito romano Em nosso ordenamento jurídico, é sabido que, como parâmetro supremo de fundamentação de decisões judiciais está Constituição Federal, a norma fundamental do Estado. Seguindo a hierarquia normativa, uma lei escrita em coerência com a Constituição é a segunda opção de base em que os juízes encontram a fundamentação de suas decisões. A lei escrita se sobrepõe a vontade dos juízes. Por este lado, o direito dos juízes é submisso ao direito escrito. Contudo, seria de uma ingenuidade infantil pensar na figura do juiz como mero porta-voz da legislação, a “boca da lei”. Ao contrário, em alguns casos podemos inclusive dizer que o juiz 7

“The life of the law has not been logic: it has been experience”. Cf. HOLMES, Oliver Wendell. The path of law and the common law. New York: Kaplan, p. 31, 2009; LATORRE, Angel. Introdução ao Direito. Coimbra: Almedina, p. 175, 1979.

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LLOYD, Denis. A ideia da lei. São Paulo: Martins Fontes, p. 267, 1998.

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EISENBERG, José. Pragmatismo Jurídico. In: Dicionário de Filosofia do Direito. Vicento de Paulo Barreto (org). São Leopoldo/Rio de Janeiro: Unisinos/ Renovar, p. 656-657, 2006. TP

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10 FREITAS, Lorena de Melo. O realismo jurídico como pragmatismo: A retórica da tese realista de que direito é o que os juízes dizem que é direito. 2009.160p. Tese de Doutorado – Centro e Ciências Jurídicas/ Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. TP

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expressa sua vontade utilizando a lei. Mesmo com a positivação do direito, que por vezes é extremista, estamos longe de uma robotização do judiciário, vivemos no Realismo Jurídico, em que a figura do juiz é a personificação da lei, pois, “Direito é aquilo que o juiz diz que é direito”, é a máxima que representa esta realidade. preenchidas,

existem

princípios

E a verdade é que existem lacunas na lei a serem

adormecidos

que

precisam

ser

descobertos,

existem

ambiguidades que precisam de orientação. Nem toda lei é clara o suficiente para não necessitar de interpretação, logo a essência da função do juiz é, através da interpretação, dar vida àquelas leis que sozinhas geram dúvidas e insegurança. É também função do juiz, utilizar o princípio da equidade, que atenuando a dura letra da lei e buscando atender a real necessidade da sociedade, que é a justiça, decide com suavidade determinados casos concretos. Com relação aos princípios, é necessário saber qual é o método de escolha e de interpretação para cada princípio, pois um mesmo princípio pode levar a caminhos diferentes. Cabe ao juiz escolher entre um caminho e outro, a essência é a mesma da equidade, o juiz decide com base naquilo que considera mais próximo de justiça. A existência de um longo debate acerca do significado da palavra justiça nos é conhecido, porém não será objeto de apreciação neste artigo. A palavra justiça está empenhada no sentido subjetivo e axiológico em que naquele momento, naquele caso concreto e para aquele juiz, determinada decisão foi justa. Esboçando um paralelo entre o juiz de nosso ordenamento e o magistrado incumbido de proclamar a justiça através dos editos na Roma Antiga, faremos uma breve explanação da situação política que resultou no surgimento do pretor peregrino. O Ius Quiritium, também conhecido como Ius civile era o direito antigo11, caracterizado TP

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principalmente pela sua rigidez e formalidade. Baseava-se primeiramente nos costumes e seguidamente nas leis, nos plebiscitos, nos senatusconsultos, nas constituições imperiais e na competência das interpretações dos jurisprudentes. Esse direito pertencia apenas àqueles considerados cidadãos romanos, por consequência, era um direito elitista que compreendia uma parte consideravelmente pequena da população romana. A primeira fonte do direito na Roma Antiga durante o período da República era o costume, logo, a insegurança jurídica era uma presença constante nos conflitos, sempre favorecendo aos patrícios em detrimento dos plebeus. A Lei das XII Tábuas foi uma alteração significativa no Ius Civile, pois instituía uma igualdade jurídica entre plebeus e patrícios, firmando uma segurança jurídica para a resolução dos conflitos. O Ius Honorarium, também denominado Ius Praetorium, surgiu como auxiliar dos Ius Civile, que devido à sua severidade, inflexibilidade12, não era eficaz em resolver os conflitos existentes. TP

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Portanto, o Direito Pretoriano nasce dessa necessidade de resolução que, mais do que leis 11

SANTOS, Severino Augusto dos. Introdução ao Direito Civil/ Ius Romanum. Belo Horizonte: Del Rey, p. 12-13, 2009. TP

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SANTOS, Severino Augusto dos. Introdução ao Direito Civil/ Ius Romanum. Belo Horizonte: Del Rey, p., 2009.

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escritas que se aplicam a todos os casos de forma impessoal, precisa de um elemento que analise o caso concreto com o objetivo de decidir com justiça, o que muitas vezes não acontecia devido ao formalismo extremista do Ius Civile. Assim, o direito pretoriano tem como uma de suas prerrogativas o dever de atenuar o rigor do Ius Civile. O direito pretoriano é o que os pretores introduziram a fim de auxiliar, suprir ou corrigir o ius civile, por causa de uma utilidade pública. O qual também se diz honorário, assim denominado em razão da honra aos pretores. 13 TP

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A sociedade romana era formada por quatro classes sociais: os patrícios, os plebeus, os clientes e escravos14. Os patrícios eram os detentores da riqueza e do status de cidadãos TP

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situavam-se no topo a pirâmide social e compunham a menor parte da população romana. Os plebeus eram a maior parte da população romana, possuíam poucos direitos políticos e eram formados principalmente por artesãos e pequenos comerciantes. Os clientes eram formados principalmente por comerciantes e estrangeiros, possuíam o apoio dos patrícios em questões econômicas, porém lhes deviam serviços militares. E por último, os escravos, que eram de uma forma geral prisioneiros de guerra ou por dívida e não possuíam direitos, sua maior parte era vendida aos patrícios. Os plebeus, entretanto, não era uma classe homogênea economicamente. A maior parte da classe era pobre, contudo, também existiam plebeus ricos. Portanto os anseios desta classe também eram divididos. Enquanto os plebeus pobres lutavam pela adoção de leis escritas, distribuição de terras e abolição da escravidão por dívida, os plebeus abastados exigiam o casamento entre plebeus e patrícios e a abertura de cargos da magistratura aos plebeus. Mesmo com prioridades diversas, esta classe alcançou a união englobando os seus anseios em uma única unidade: mais direitos. Os plebeus então reuniam-se em sociedade separada dos patrícios em localidades próximas a Roma. Sendo assim, conseguiram a atenção dos patrícios e alcançaram a sua primeira vitória no rol dos direitos políticos: um órgão político de defesa de seus direitos, o tribuno da plebe. As deliberações dos tribunos da plebe eram indiscutíveis, invioláveis, sacratíssimas. Essas deliberações tinham poder de intercessão, intervindo em favor de um cidadão ameaçado por um magistrado ou com poder de veto para anular atos ou decisões prejudiciais à classe dos plebeus.15 Além do tribuno, os plebeus conquistaram também, por intermédio da Lex Canuleia, o TP

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JUSTINIANO. Digesto de Justiniano, liber primus: introdução ao direito romano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 20, 2005. TP

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FERRIERE, Claude Josephe de. Histoire du Droit Romaine. Disponível em Acessado em 02/11/11 às 21h45. TP

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BODAERT, Cécile. Disponível em < http://www.acgrenoble.fr/lycee/diois/Latin/archives/civilisation/Magistratures%20et%20institutions%20de%20la%20republique%20rom aine.pdf> Acesso em 02/11/11 às 21h20. PT

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direito de casamento entre patrícios e plebeus. Foram muitos anos de luta, porém, com o passar do tempo os plebeus conquistavam mais direitos, como o direito ao consulado, ou seja, direito a possuir um cônsul plebeu. Logo após essa vitória, foi-se instituído outras duas magistraturas, os censores e os pretores, que receberam parte dos poderes dos cônsules e eram, inicialmente, cargos ocupados apenas por patrícios. Os magistrados responsáveis pela distribuição de justiça entre a população da civitas eram os pretores, que por intermédio dos editos, proclamavam o direito. Os editos eram decisões dos pretores sobre um caso concreto, que frequentemente serviam de embasamento para outros casos semelhantes. Um pretor não era obrigado a dar continuidade ao edito de seu antecessor, porém era comum que assim se sucedesse. No início do período republicano foi dada aos magistrados maiores (cônsules, pretores) a atividade de organização processual da justiça. Em seguida, a administração da justiça passou ao pretor urbano, cuja competência se estendia inicialmente a todo o território itálico pertencente a Roma. Com a expansão romana novos territórios foram acrescentados à República, logo os pretores urbanos não eram mais suficientes para o número em constante expansão de peregrinos16 que eram acrescidos à população romana. Como a justiça, desde os tempos mais TP

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primevos, é considerada uma necessidade básica para manutenção da paz e da convivência social, era impreterível a conjunta expansão dos agentes incumbidos em distribuir justiça pelos novos territórios conquistados. Eis que surgem os pretores peregrinos. À medida que Roma se expande, as províncias aumentam e consequentemente aumenta também a arrecadação de imposto. Dessa forma, Roma vai adicionando territórios sem impor sua cultura sobre eles, ao contrário, respeitando suas diferenças e diversidade, respeitando inclusive suas leis religiosas e costumes, fato confirmado pela existência dos pretores peregrinos. Os pretores peregrinos eram magistrados cuja obrigação consistia em declarar o direito entre os estrangeiros e os cidadãos romanos ou entre os estrangeiros entre si.17 O que era por si TP

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só uma atividade essencialmente sutil e política, pois o pretor peregrino lidava diretamente com a diferença de culturas, de religião, de educação dos povos conquistados e tinha como obrigação apresentar uma solução que caráter universal para suprir a demanda de justiça entre os dois estrangeiros. Eram designados de um a oito pretores entre urbanos e peregrinos nos comícios centuriatos e a duração de suas atividades era de um ano, em que eram designados novos pretores em outro comício centuriato. Inicialmente o cargo de Pretor, tanto urbano, quanto peregrino, era ocupado apenas pelos patrícios, a elite romana. Dessa maneira, a lei através dos editos, era feita pela classe dominante e para a classe dominante. É só após muita insatisfação e disputas que os plebeus conquistam o direito de eleger magistrados plebeus. 16

JUSTINIANO. Digesto de Justiniano, liber primus: introdução ao direito romano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 20, 2005. TP

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CORREIA, Alexandre e SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, p. 19, 1951.

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Sua atividade é semelhante à do juiz atual com relação à obediência que ambos estão submetidos. Sendo que o pretor peregrino está submetido aos Ius Civile. Ele deve criar o direito dentro dos limites estabelecidos pelo Ius Civile. Pois o Ius Praetorium18 é um auxiliar do direito TP

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civil, está subordinado, limitado, dependente dele. O Pretor peregrino deve saber respeitar essa linha tênue entre a assistência complementar que o direito pretoriano oferece ao direito civil e a invenção de direito pelos pretores peregrinos criando um direito paralelo ao direito civil. Quando na realidade, o direito pretoriano é uma sequência, um plus, oriundo, ou seja, limitado pelo direito civil. Por ser mais um homem político do que um jurista, o magistrado nem sempre tem conhecimento de Direito, dessa forma o pretor peregrino estava acompanhado de conselheiros escolhidos como lhe aprazia. As responsabilidades do pretor peregrino incluem o monitoramento das ações do litigante, fiscalizar se as ações estão em conformidade com as normas de procedimento, exigindo o uso de um árbitro, juiz privado de direito romano. As reivindicações dos litigantes eram expressas obrigatoriamente em uma das fórmulas orais utilizadas pelo judiciário. Após a Lex Aebutia (de 134) essas fórmulas orais foram gradativamente substituídas pelas fórmulas escritas, em que o pretor peregrino ao fixar os limites do litígio, instrui o juiz de direito privado sobre como ele deve apreciar as questões de direito. Essa instrução se dava pro meio de fórmula escrita, na qual podia ser inclusa novidades desconhecidas pelo direito antigo. Paralelamente temos o juiz de nosso atual ordenamento. Este é ainda mais limitado que o pretor peregrino. Pois deve obedecer de maneira ainda mais retilínea à legislação. O juiz deve buscar ser coerente com o sistema, com as decisões de seus colegas magistrados e ao mesmo tempo deve ser fiel à equidade. A jurisprudência é o conjunto de diversas decisões no mesmo sentido, que surge a partir de um precedente. Precedente é uma única decisão tomada em determinado sentido. Quando não existe legislação que prevê determinado caso e não existe precedente, o trabalho do juiz como legislador se inicia. Segundo o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, este trabalho inicia-se primeiramente com a analogia, buscando a aplicação de uma lei a caso não previsto a norma legal a um caso com semelhança relevante e tipificado. Em segundo plano temos o costume, que em nosso ordenamento jurídico positivista, é fonte subsidiária em relação à lei. O costume da civil law, difere do costume da common law, pois este último refere-se ao costume jurídico e o da civil law é composto pela prática reiterada de um comportamento e pela convicção de sua obrigatoriedade, porém desprovido da força coercitiva. Sendo insuficientes a analogia e o costume, deve o juiz recorrer à terceira forma de preenchimento de lacuna, os princípios gerais. Os princípios não estão contidos de forma explícita no ordenamento, por isso cabe ao juiz despertar o princípio existente no ordenamento. Sua decisão deve estar prevista na legislação, e o juiz deve fundamenta-la com base na lei. Pode não estar explicitamente escrito em TP

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ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, p. 58, 2010.

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lei, contudo deve estar nela inserido de tal forma, que o princípio possa, por meio da interpretação, ser compreendido pelo juiz. A complexidade da atividade decisória encontra-se tanto na figura do juiz de nosso ordenamento quanto no pretor peregrino, em que os primeiros passos para a tomada da decisão compreendem a busca pela ratio decidendi19 seguida da escolha de um dos caminhos dentre TP

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tantos que permeiam o pensamento humano. Anterior à lei das XII Tábuas, o processo decisório que encontrava suas bases nas fórmulas orais, gerava uma constante insegurança jurídica, pois o cargo de pretor peregrino tinha duração de apenas um ano e o pretor seguinte não tinha obrigação de acatar os editos publicados anteriormente à sua gestão. Dessa maneira, o mesmo caso que analisado por um pretor gerava um desfecho tal, era facilmente decidido por outro pretor de maneira a gerar outro desfecho em sua conclusão. Essas discrepâncias entre decisões de casos iguais ou similares gerava uma insatisfação das partes prejudicadas. E na maioria dos casos, eram os patrícios que ganhavam as causas em detrimento dos plebeus.

3. O método da filosofia em Cardozo como perspectiva de compreensão da atividade pretorial peregrina Em correlação à situação exposta acima, observamos o método da filosofia descrito em Cardozo, que se preocupa, não necessariamente com simetria, mas com uma lógica necessária para evitar situações que geram esse sentimento de injustiça baseada em decisões diferentes de casos semelhantes. Esse método, de forma sucinta, caracteriza-se pela analogia, que é o caminho inicial para reflexão de uma decisão. Em seguida guiados por seus princípios, pela lógica de decisões anteriores, decide, preservando a coerência de pensamento com o sistema. Porém, caso o juiz realize que existe uma discrepância irreconciliável entre a decisão anterior e os princípios pelos quais ele se deixa guiar, ele irá optar por um caminho, lógico também, que justifique sua decisão, fundamentado na sua concepção de coerência com a equidade. É interessante ressaltar que Cardozo indica o método da filosofia como sistema de investigação dos tribunais na ausência de outro padrão. Devido à insatisfação dos plebeus com a insegurança das decisões, a Lei das XII Tábuas, foi o primeiro passo para a positivação do direito, aumentando as garantias de um julgamento justo para os plebeus e atenuando as discrepâncias existentes entre as decisões de casos similares. O ato de legislar por parte do juiz, ainda é um tabu para aqueles cuja obsessão pela tripartição dos poderes o faz enxergar com desconfiança qualquer ato que possa ser uma afronta em potencial a essa separação. A questão é que o juiz legisla sim, isso é fato, porém dentro dos limites impostos pela legislação. Não é algo arbitrário que resulta em uma ofensa, em uma TP

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CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, p. 16, 2005.

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invasão ao poder legislativo. O juiz legisla de forma muito restrita, em espaços mínimos, o juiz legisla entre as lacunas, as brechas mínimas da lei. Ao invés de negar a existência desse ato, mais proveitoso seria buscar entender o que acontece, quais os fatores que influenciam essa decisão, que longe de ser arbitrária, possui uma lógica que se revela ao compararmos as decisões entre si. Segundo Cardozo, é notório que os países que possuem leis que se limitam à declaração de princípios gerais restringem menos a liberdade do juiz como legislador do que os países que possuem leis muito descritivas, extensivas e que tratam de particularidades. Logo, o juiz de nosso ordenamento, cuja Constituição é analítica e versa inclusive, sobre assuntos que poderiam ficar a cargo da legislação ordinária, também legisla, contudo, o seu espaço para tal é rigidamente limitado pela lei escrita. Ao iniciar o método da sociologia Cardozo nos remete ao método da filosofia quando afirma: Não devemos sacrificar o geral ao particular. Não devemos lançar ao vento as vantagens da consistência e da uniformidade para fazer justiça no caso em questão. Devemos nos manter dentro dos limites intersticiais que o precedente, o costume e a longa, silenciosa e quase indefinível prática de outros juízes, ao longo de séculos de common law, estipularam para as inovações feitas por juízes.20 TP

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Ao fazer essa ressalva inicial Cardozo discorre acerca do interesse social atendido em detrimento do desenvolvimento simétrico nas decisões judiciais. Pois a necessidade do bem-estar social é um elemento que pode vir a ser o impulso para o juiz inaugurar um caminho sob outra perspectiva que poderá vir a ser o marco inicial de uma linha decisória com inúmeros adeptos. Sob este aspecto a figura do juiz pode ser entendida como um visionário, ou seja, aquele que possui a capacidade de identificar as dificuldades de seu tempo e prevê soluções para estas dificuldades através de uma nova linha de raciocínio da atividade decisória. Em Roma antiga, encontramos essa situação nos editos pretorianos que com a chegada de um novo magistrado pretor, seriam ratificados ou abandonados, dependendo da linha de pensamento do novo magistrado. Se julgasse compatível com sua atual situação, daria continuidade a este edito, caso contrário iniciaria uma nova linha decisória que poderia ser futuramente seguida ou também descartada. Podemos observar em Roma antiga, a atividade do pretor antes e depois da Lei das XII Tábuas em menos e mais limitada pela lei escrita. Devido a insatisfação de apenas uma parte da população romana com as decisões dos litígios, podemos concluir que existia sim uma arbitrariedade nas decisões de forma a favorecer a classe dominante social e economicamente, os patrícios. A ausência de leis escritas e a predominância dos costumes como fonte do direito eram fatores que influenciavam diretamente ao que hoje conhecemos como insegurança jurídica. Pois estes costumes poderiam ser invocados e variar conforme a necessidade dos donos do

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CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, p. 74-75, 2005.

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poder. Assim o desagrado que os plebeus sentiam com o ato de legislar do pretor era devida à arbitrariedade dessa ação, à falta de limites que se mostravam necessários e foram impostos com o advento da Lei das XII Tábuas. Apesar da insistência em negar a realidade da atividade legislativa no cotidiano do judiciário, e também, a dificuldade em enxergar essa atividade legislativa como natural e inclusive benéfica para o sadio funcionamento do nosso sistema de tripartição dos poderes, grande parte da doutrina é receosa com o que julgam ser uma invasão do Poder Judiciário em atuação na esfera do Poder que não lhe compete. Contudo, é sabido que diversos juízes embora não se manifestem a favor ou contra a atividade legislativa no judiciário, na prática perpetuam essa atividade. A figura do juiz é idealizada como um ser desprovido de valores e preconceitos, capaz de resolver conflitos extremos com facilidade. O que para nós mortais geraria um conflito interno, um debate de valores no âmago de nossa consciência, os juízes, esses seres místicos, alcançam mais que rapidamente por meio de um insight. É necessário destruir essa falsa imagem construída acerca do juiz como um ser diferente de nós. A partir do momento em que a sociedade passar a enxergar os juízes como seres passionais, passíveis de erros, como também de acertos, que possuem um discurso oriundo de seu lugar social, com valores pré-estabelecidos, teremos dado o primeiro passo para uma discussão mais aprofundada sobre a influência desses valores intrínsecos aos juízes em sua atividade decisória. Com base na explanação acima, desenvolvemos o seguinte raciocínio: Ao ser apresentado a um caso concreto, seja de maneira consciente ou inconsciente o juiz se identifica com um dos lados e em um primeiro momento, decide em seu interior. Essa decisão não será necessariamente a decisão final, pois inúmeros outros fatores com maior peso irão influenciar diretamente esta decisão. Em seguida busca fundamentos na legislação que reiterem sua decisão. Caso os encontre, o caso está fechado. Caso a legislação seja omissa e não exista caso semelhante julgado, o juiz enfrenta outro conflito: Sua decisão interior corrobora ou é contrária aos bons costumes da sociedade? E essa discussão desencadeia outra ainda maior: O que pode se entender por bons costumes em uma sociedade como a nossa, por exemplo? Que está em constante mudança, com aberturas ao novo e ao diferente. O juiz deve de uma forma geral, atender os anseios da população. Contudo, quando estes anseios são notoriamente equivocados e distantes dos caminhos da equidade pelo qual o juiz se propõe a passar para chegar às suas decisões, ele deve ser fiel ao princípio da justiça. Como distinguir se os anseios da população são justos ou equivocados? Cabe a cada juiz e seu bom senso. Em Roma Antiga, por o pretor tratar-se mais de um homem político, conclui-se que o caminho da paz superficial era mais atraente que o caminho dos princípios da justiça e da equidade. Pois, os anseios da população tinham força para pressionar uma decisão, mais do que 231

o sentimento de justiça obtido através de sua consciência como douto juiz. Logo, o jogo político de interesses também se fazia presente nas decisões, principalmente em se tratando de um pretor de origem patrícia decidindo conflitos entre essas duas classes: patrícios e plebeus. Embora seja notório que o a atuação do juiz de nosso atual ordenamento seja extremamente restrita pela legislação, devemos salientar que, a atividade decisória de distribuição de justiça pelo Pretor Peregrino era também assaz limitada, pois o direito pretoriano não possuía total independência. Estava sempre ligado e subordinado ao Ius Civile como sua fonte genitora. Logo, o dever daqueles que assessoravam o Pretor Peregrino era atentar para que os seus editos estivessem sempre de acordo com o Ius Civile.

4. Considerações finais O Direito Romano lançou as bases do nosso ordenamento jurídico, regendo as necessidades primeiras dos homens que são as relações civis. Assim encontramos no pretor peregrino um antecessor longínquo do juiz de nosso sistema, com inúmeras semelhanças, desse a complexidade da atividade decisória em seu aspecto mais subjetivo que se refere à compreensão dos caminhos, até a busca pela fundamentação de suas decisões para além da legislação, ou seja, sua crença pessoal naquilo que acredita ser a equidade e a justiça, observada dentro dos limites impostas pela lei escrita. O que este artigo pretendeu destacar é, no tocante ao modo de efetivação dessa atividade judicante do pretor peregrino, uma expressão ou exemplo de experimentação do que hoje em termos jusfilosóficos pode-se chamar de pragmatismo. Na perspectiva filosófica, o pragmatismo do referencial peirceano traz a preocupação máxima de se verificar os conceitos tão somente a partir de suas consequências práticas, é a visualização destas consequências que possibilita a clareza na compreensão de um conceito21. TP

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Pela leitura jamesiana acresce-se a visualização metodológica do pragmatismo, posto que este seria um método para assentar disputas metafísicas que de outra forma se estenderiam indefinidamente”.22 TP

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Estas concepções no campo filosófico foram recepcionadas pelos juristas, que por questão de delimitação este artigo se concentrou nas ideias de Cardozo como expostas na argumentação em torno da tese de que direito é o que o juiz diz que é direito.23 Cardozo alia assim o elemento TP

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metodológico de James no seu aspecto concreto (de afastamento de abstrações e idealismos) à preocupação de clareza na compreensão dos objetos para pensar problemáticas jurídicas, daí a 21

PEIRCE, Charles Sanders. How to make our ideas clear. Disponível em . Acesso em 17/05/05.

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JAMES, William. Pragmatism. New York: Dover, 2007, p. 9.

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CARDOZO, Benjamin Nathan. The nature of judicial process. New York: Dover, 2005, passim.

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natureza, como epíteto-chave no título de sua obra, é tentativa de compreensão do âmago da questão de como os juízes decidem. Respondendo esta questão que estimulou aquelas palestras em Yale que resultaram nesse livro, Cardozo argumenta nesse sentido de que direito é o que os juízes o dizem, posto que nos caldeirões dos tribunais misturam-se elementos formais (normativos, ex. o precedente, a lei) a elementos subconscientes (como o modo de vida, a base educacional, a origem familiar etc). Trazendo estas questões para perceber a figura do pretor peregrino, o dilema que ali se colocava era a exigência daquela figura judicante resolver conflitos que envolviam cidadãos romanos e não romanos, tarefa primeira no contexto de expansão do império romano; além deste fato, outro se impõe como fundamental, qual seja, estes pretores eram patrícios assim como era para os patrícios que o direito romano era criado; e por fim, a oralidade como característica central do direito romano. Circundavam à figura do pretor peregrino tais questões, o dilema do pretor estava na proibição do non liquet por um lado, pois ele tinha que decidir, tinha que resolver os conflitos, e por outro lado ele não tinha a referência num parâmetro juspositivista (inegabilidade dos pontos de partida) como o é para nosso ordenamento atual, seu subsídio estava na jurisprudência, leia-se aí, na prudência do julgador em dizer o direito. Tal prudência do pretor peregrino estava pragmaticamente na percepção das consequências práticas daquelas decisões, com vistas a manter o status quo político romano, além do que, data vênia a paráfrase a partir de Cardozo, o direito romano era o que o pretor peregrino dizia que era.

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Democracia: uma discursividade em crise de identidade entre o coletivo e o uno Alyson Rodrigo Correia Campos.......................................................................................................................................235 Entre a inércia e o ativismo: análise do fenômeno da judicialização da política Christiane Soares Carneiro Neri.......................................................................................................................................245 O Supremo Tribunal Federal e o modelo procedimentalista de jurisdição constitucional no Brasil Edhyla Carolliny Vieira Vasconcelos Aboboreira..............................................................................................................256 Jurisdição Constitucional brasileira: passos e contrapassos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na construção de um estado democrático de direito Filipe Cesar Lopes e Letícia Lacerda de Castro...............................................................................................................272 O sistema difuso de controle de constitucionalidade no Brasil e em Portugal: uma análise comparativa Isabela Lessa de Azevedo Pinto Ribeiro e João Luiz Lessa de Azevedo Neto................................................................288 Supremo Tribunal Federal: Tribunal Constitucional Sul-Americano Luiz Magno Pinto Bastos Jr. e Thiago Yukio Guenka Campos........................................................................................313 Uma perspectiva acerca dos guardiões da constituição e suas possibilidades de cooperação Maria Daniele Viana da Silva............................................................................................................................................344 Medidas Provisórias e Democracia: Uma análise da atuação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na edição abusiva de Medidas Provisórias Mariana Falcão Bastos Costa...........................................................................................................................................359 A democratização do processo e a manifestação do amicus curiae Marta Valéria Cordeiro Bastos Patriota.............................................................................................................................379 Da jurisdição constitucional ativista à democracia deliberativa: uma busca por um novo paradigma para a relação entre o direito e a política Rafael Bezerra de Souza..................................................................................................................................................400 A objetivação do recurso extraordinário: o alargamento da influência política do Supremo Tribunal Federal enquanto expressão do processo de mutação constitucional Renato Dowsley de Morais...............................................................................................................................................412 Jurisdição e direitos participativos: o papel do judiciário na implementação do dever de consulta prévia Victor Alencar Mayer Feitosa Ventura..............................................................................................................................429 A participação do “amicus curiae” nas ações de controle concentrado de constitucionalidade: a superação do déficit democrático das decisões do STF através da teoria processual de Fazzalari Vitor Fernando Gonçalves Cordula...................................................................................................................................447

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Democracia: uma discursividade em crise de identidade entre o coletivo e o uno Alyson Rodrigo Correia Campos1 TP

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Resumo

Abstract

Objeto: os óbices à discursividade democrática, quando o regente-mor é uma ideologia de cunho aristocrático-restritivo, paradoxo maior a se por a própria etimologia do termo democracia. Objetivo: Analisar a necessidade sine qua non da dialética entre os saberes sujeitados foucaultinos e os pensamentos inclusivos-exclusivos de Antonio Negri para a democracia, contraposta e obstaculizada pelo “mais de força” do discurso de verdade do STF. Metodologia: Usufruir do substrato teorético, sobretudo, concedido por Foucault, Antonio Negri e Marcelo Neves para analisar precedentes e decisões do STF, que, por vezes, impedem a democracia de efetuar até seus pressupostos primevos. Marco teórico: Além do discurso de Pedro Demo, mas sem ignorá-lo, pautando-se, em momentos, na modernidade líquida, todavia almejando investigar como se constrói o pensamento jurídico, fundado em discursos de um seleto grupo, a priori, definido por nortes políticos e de posicionamentos morais tão fluidos, quanto o de qualquer ser humano, educado no senso-comum, pelo menos, em muitas das suas pontuações analíticas. Pretende-se averiguar o quão de ciência e acaso dialógico moral interfere no mais efetivo construir da democracia brasileira. É necessário continuar a análise ainda propedêutica da teoria democrática, ao nosso entender, encontrada nos seus pressupostos basilares.

Object: The obstacles of democratic discursivity, when the conductor is an aristocratic-restrictive ideology, major paradox if we put its own etymology democracy term. Objective: Analyze the need sine qua non of the dialectic between subjected Foucault’s knowledge and Antonio Negri’s inclusiveexclusive thoughts to democracy,opposed and hindered by the “super power” of the STF truth speech. Methodology: Enjoy theoretical substratum, especially, consented by Foucault, Antonio Negri and Marcelo Neves to analyze previous and STF decisions that, sometimes, prevents democracy of its primeval assumptions. Theoretical marks: Beyond Pedro Demo’s speech, but without ignoring it, guiding, in some moments, in fluid modernity, however wishing to investigate how juridical thought is built, founded on a restrict group speeches, a priori, defined by politician wishes and moral integrity so fluid, as any human been, educated on commonsense, at least, in many of their analytical observations. We intend to ascertain how much of science and dialogic randomness harms the most effective build of Brazilian democracy. It’s necessary to keep on analyze still propaedeutics of democratic theory, by our understanding, found on its basic presuppositions.

Palavras-Chave: Discursividade.

Democracia;

Inclusão-Exlusão;

Keywords: Democracy; Inclusion-Exclusion; Discursivity.

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Aluno da graduação do 9º período da UFPE; participante do grupo do Professor João Maurício Adeodato; Monitor de Direito Civil II; Aluno-pesquisador PIBIC, sob a orientação do Professor Leonardo Carneiro daCunha.Email:[email protected] PT

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1. Introdução Há décadas, sobretudo, após o cataclismo que representou a II Guerra Mundial, reputando ter sido esse o primeiro e único grande evento global acontecido na contemporaneidade, já que transportamos vaga noção e medo do que fora as guerras do Peloponeso e as investidas imperialistas dos romanos e de Napoleão Bonaparte. O mundo – melhor, milhões de pessoas distribuídas por dezenas de países ficaram estupefatas com a assustadora possibilidade de verem afligidas suas vidas ou até vê-las por termo, quando visualizarem – por noticiários – as mortes de milhões de entes próximos e de outros tantos que sequer sabiam da existência, a efemeridade da vida se apresentou tão nítida, quanto um verdugo que traz consigo a injeção letal, nos instantes finais de executar a sentença da pena de morte; a humanidade sentiu – por empatia – a condição do condenado. Não diferente - como em diversos momentos - por um espírito instantâneo e alerta de sobrevivência, buscou garantir todos os meios possíveis de evitar o seu fim, comum atitude entre os humanos. Tentaram julgar todos os envolvidos com Hitler, criaram monumentos diversos para nunca esquecerem o holocausto dos judeus; reiteraram a Declaração de 1789 em 1948, na reunião da Organização das Nações Unidas; difundiram que a intolerância e o ódio são sentimentos repugnáveis e que devem ser punidos severamente; por sublimação, coroaram a democracia, como único sistema capaz de salvar o mundo e protegê-lo de que outra vez na história barbárie semelhante aquela voltasse a acontecer. Será sobre esse coroamento da democracia que falaremos, não nas nuanças de que consequências geraram e geram a forma que ele fora realizado, ponto extremamente, que – por si – merecerá tratamento especial em um outro opúsculo, mas nos deteremos à análise de que democracia fora agraciada com o título de rainha, qual discurso foi escolhido como a verdade, o truísmo universal e melhor.

2. O que não se deve esquecer?! Desde que, Clístenes, durante a fase do ‘século do ouro ‘ de Péricles, estabeleceu uma nova forma de pensar a administração das cidades – Estados, principalmente, de Atenas, mudanças significativas aconteceram na forma de conceber a própria disposição e coordenação do poder. Com clareza, a ideia era – certamente – mantê- lo como sempre fora: a jóia mais cobiçada por todos, protegida, por um envolto aparentemente inabalável, manipulável pela mão de poucos ourives. Poucos foram e são os ourives, mas todos buscam e precisam legitimar a sua exclusividade frente aos outros, aprimorando sua argumentação para fundamentar, porque algo que deveria ser usufruído e manuseado por todos é se adaptado, coincidentemente, por aqueles

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inclusos no âmbito da aristocracia. Sobre as tantas táticas de manter-se no poder e com o poder, já mencionara Bobbio: A recorrente consideração segundo a qual o supremo poder, que é o poder político, deva também ter uma justificação ética (ou, o que é o mesmo, um fundamento jurídico) deu lugar a vária formulação de princípios de legitimidade, isto é, dos vários modos com o quais se procurou dar, a quem detém o poder, por uma razão de comandar, e a quem suporta o poder, uma razão de obedecer: aquilo que Gaetano Mosca chamou com uma expressão muito feliz de “fórmula política”, explicando que em” todas as sociedades discretamente numerosas e que apenas chegaram a certo grau de cultura, aconteceu que a classe política não justifica exclusivamente o seu poder somente com a posse de fato, mas procura dar a ele uma base moral e também legal, fazendo-o derivar como consequência necessária de doutrinas e crenças geralmente reconhecidas e aceitas na sociedade que ela dirige” [1896, Ed. 1923 p. 108].2 TP

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As tentativas de se legitimar, conduziu o mundo ocidental – sobretudo – a admitir que a personalidade do poder fosse construída por detentores momentos dele, munidos de tamanha prerrogativa pela representação de sucesso que significam em seus clãs, nomos, comunidades, aldeias, grupos sociais, é por simbolizarem o sucesso – privilégio exclusivo de poucos naquele círculo social – desejo de muitos, realização de poucos que angariaram a complacência e a subjugação da maioria. Essa fase da infância à adolescência do poder – reputando como marco a sua cronologia evolutiva – fora construída por aqueles que se tornaram famosos (e notórios) em seus grupos e por os detentores das riquezas (vertente mais almejada do poder), essa é o que podemos denominar de fase plutocrática do poder, que se refletiu diretamente no se agir democrático, persona que até então conduz muitos dos atos decisórios de tão importante instituição. Só – com o transcorrer das adaptações – estendeu-se ainda mais os sentidos construídos e aceitos com veneração nos mais diversos países e nos variados lugares, sendo o Direito Internacional um dos tantos responsáveis por um delinear de uma concepção global de democracia, a iniciar pelo pressuposto elementar do que concede sentido a esse e a qualquer outro sistema, o ser humano. Já escrevera o professor Celso Albuquerque Mello: O homem, relegado a um segundo plano no século passado, adquire, em virtude do denominado processo de democratização do DI, uma nova posição. Os direitos do homem se internacionalizaram. As organizações internacionais, especialmente as de aspecto social, visão satisfazer as suas necessidades. Jean Touscoz afirma que não se deve falar em indivíduo para não reforçar o individualismo, mas sim em pessoa que liga a filosofia personalista. Estes são os principais entes que atuam na vida internacional, mas, ao lado deles, forças culturais, econômicas e religiosas, influem e influenciaram a sociedade internacional.

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BOBBIO, NORBERTO. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira.11ª. ed. São Paulo: Paz e Terra,2004. PT

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As forças culturais se manifestam pela realização de acordos culturais entre os Estados, na criação de organismos internacionais destinados à cultura e na aproximação entre os Estados.3 TP

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As aproximações vinculam as teorias e tendem a padronizar aspectos relevantes de um discurso ideológico, constatação essa perceptível desde Atenas, a partir de quando (pretensão calçada até hoje) tentam construir na realidade, o que até então é o imaginário democrático.

3. Marcas de uma discursividade É de muito defendido que o diálogo é, extremamente, salutar é útil a qualquer instituto. Sabe-se, contudo, que a multiplicidade difunde só amplas idéias, mas traz consigo óbices que se impossibilitam um caminhar mais rápido e seguro, visto que em meio a debates delongados andase mais devagar, muitas vezes, até por se ter dúvidas do caminho ou, pelo menos, de como percorrê-lo. Em função disso, como forma de facilitação busca assentar todas as dissonâncias: Uma tal compreensão, contudo, esbarra nos limites intocáveis em que a cultura se cria. Se a justiça constela toda uma estrutura de valores justificadores de um certo modo de vida, é ela, também, que, por seu brilho e aura, por seu caráter quase divino, afasta o homem de qualquer indagação acerca de sua emergência, como se a crítica fosse o supremo sacrilégio e crime contra a natureza.

É preciso considerar que o novo – na maioria dos casos só é aprazível quando da necessidade surge em parâmetros de análises, posto que quando se apresenta como possibilidade de alterar o status que representa uma afronta a muito do espírito parmenidiano que regem os indivíduos, só a título de contribuição citamos: A serenidade helênica, de fato, tornou-se um paradigma fundamental de um certo estilo e de valoração da vida para a civilização ocidental, ligando-a ao classicismo pelas características de objetividade, naturalidade, forma plástica, unidade de coesão, medida e harmonia, dando, para Hegel, os contornos de um modo de vida exemplar, com a eliminação do informe, do disforme, do simbólico e do feio para mostrar o espiritual propriamente dito, com o afastamento de todas as limitações e carências da existência finita, como a própria superação das oposições.4 TP

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Certamente, não menos claro, fora Eduardo Rezende ao pontuar uma das tantas e profícuas análises nietzscheniana, a qual só reitera o nosso posicionamento: Para Nietzsche, o homem é a mais medrosa das criaturas e devemos compreender a moral a partir dessa sensação básica. O que suscita medo? A resposta é clara para o autor: o outro. Nossa relação com o outro é sempre de defesa e ataque, e toda avaliação relaciona-se a tais capacidades, que são 3 PT

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público.1ºvol. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

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MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2004.

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expressão de um instinto animal que servirá de base à moral e que ensina a buscar alimento e esquivar-se do inimigo. É esse temor que dita, portanto, nossas avaliações às quais se retrotraem nossas ações.5 TP

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É salutar, outrossim, observar que todos dizem criticar um discurso vencedor, todos dizem querer e participar de alguma forma em mudanças relacionadas a esse relato vencedor. Mas por medo e – muitas vezes – conveniência, o que ocorre – efetivamente – é uma reiteração das mesmas estruturas, com sutis modificações, as quais almejam somente acomodar parte das insatisfações. As mudanças aparentam acontecer quando querem, como um ciclo inexorável alheio a influências humanas, pelo menos, alheio a essa pouca força que os seres imprimem no sistema vigente. Criou-se uma matrix alimentada, sobretudo, pelo medo humano para manter um discurso – que deveria ser dialético – dentro do previsível ou nas CNTP’s (condições normais de temperatura e pressão).

4. As querelas e a teoria Há, já como modismo intelectual, o costume de contemplar e exaltar a dialética, na condição de a melhor natureza para qualquer regime ou qualquer atitude, humana ou não. O professor Peter Sloterdijk citando Jaspers: Hay abierta uma lucha em la que se sabe com quién se las tiene que ver uno. En el moderno ordenamiento de la existencia, sin embargo, y después de cada momentánea claridad, nos vemos afectados por la confusión de los frentes de lucha. Lo que según la objetividad de lo pretendido tenía que ser enemigo se mantiene: lo que propiamente aparece antagónico renuncia a la lucha, lo que aparecia como un frente unitario se vuelve contra sí mismo. Y todo en una confusión y cambio turbulentos. Hay algo que me puede convertir em enemigo del aparentemente prójimo y aliado del más alejado (Berlín/Nueva York 1979, pág. 163).6 TP

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Defronte a esses frentes e confrontos é que aparece e se faz à dialética, mas – através de acordos – desejamos e tentamos - de pronto – postergar a aurora da dialética. O antes – ideologicamente – nos agrada mais, por ser mais conhecido – ou pelo menos – conhecível se comparado ao depois. Em trecho mais a frente o professor Sloterdijk, destaca um trecho da autobiografia de Grosz: Éramos como veleros al viento, veleros de velas blancas, negras y rojas. Mucho botes llevaban banderines ne los cuales se veían três rayos o un martillo y una hoz o uma cruz gamada en el casco: desde la lejanía todasestas señales se asemejaban bastante. Nosotros teníamos poço poder sobre lós botes y teníamos 5 PT

MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2004.

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SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. Tradução: Miguel Ángel Vega. Madrid: Biblioteca de Ensayo 23 (Serie Mayor) Ediciones Siruela, 2006. TP

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que maniobrar com denuedo... La tormenta rugia ininterrumpidamente y nosotros seguíamos bogando hacia Ella. No entendíamos su melodia, pues nuestro oído estaba embotado de tanto –escucha-. Sólo sabíamos que soplaba um viento Del este y otro del oeste y que la tormenta soplaba por toda la tierra... (Grosz, Ein kleines Já und ein grosses Nein, Hamburgo 1974, pág.143).7 TP

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Nesse desnorteamento de conhecimento mais superficial e rente é que se forma a nossa criticidade. Não só para analisar a dialética, mas a própria discursividade constitutiva também da idéia de democracia que se tem. Ou se compreende de onde vêm os ventos que nos regem e nos movimentam ou se continuará pautado no clássico discurso opressor e elitista, criticado por todos e exaltado pela maioria, a qual mais do que a mudança deseja simplesmente que o cedro do poder venhas as suas mãos com os mesmos prazeres e sabores então vigentes, é o espírito hobbesiano demonstrando mais uma vantagem sobre o espírito rousseniano dos homens. Há uma dificuldade imensa das pessoas compreenderem que a forma que tratam o poder – por se inebriarem em demasia com o seu reluzir – só os afasta dele e o faz escapar mais facilmente ao seu domínio, forma de pensar da qual se destoou Foucault, conforme abrevia muito bem Roberto Machado: Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E que funciona como maquinaria, como uma máquina social que não está situada em lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação. E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças.8 TP

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Mesmo que redundante relembrar ou se repensa as formas de poder ou – por não se conhecer da sua natureza, acabar-se-á por afastá-lo mais de si. O respeito aos amplos e ignorados saberes, mostra-se como uma possível alternativa de se estender horizontes e reduzir – substancialmente – o apreço e a ganância que tantos possuem por esse trono. Já afirmara Foucault em uma das suas tantas observações: Por saber dominado se deve entender outra coisa e, em certo sentido, uma coisa inteiramente diferente: uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de cientificidade. Foi o reaparecimento destes saberes que estão embaixo – saberes não qualificados, e mesmo desqualificados, dos pisquiatrizado, do doente, 7

SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. Tradução: Miguel Ángel Vega. Madrid: Biblioteca de Ensayo 23 (Serie Mayor) Ediciones Siruela, 2006. TP

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Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado.27ªreedição.Rio de janeiro: Edições Graal,2009.

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do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber médico, do delinqüente, etc., que chamarei de saber das pessoas e que não é de forma alguma um saber comum, um bom senso mas, ao contrário, um saber particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam – que realizou a crítica.9 TP

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Deve-se ter o cuidado de não se tornar os porcos de A Revolução dos Bichos, porque senão, a tendência de mudança será sempre a mesma. É nesse ínterim que a querela das teorias – a se destacar – da teoria democrática se apresenta. A concepção e as características de qualquer teoria tende a se firmar nas mesmas bases, a frisar: 1º todos dizem estar inacabadas – por alegarem e precisarem alegar ser dialéticas – mas o que efetivamente se nota é que – há séculos – a maioria delas não sai do lugar; 2º todas se pautam em um binômio que trabalhe de alguma forma oprimidos e opressores, não só não negando, mas reafirmando quando elas mesmas buscam um desses para si; 3º todos são vagas ao declarar como comungar o poder, como extirpar o individualismo, como chegar à justa dialética que beneficiaria, pelo menos, a maioria; 4º nem todas afirmar diretamente, mas todas trazem em si a convicção de que as outras teorias são mais incompletas, imperfeitas; 5º todas declaram querer beneficiar a sociedade, mas buscam – a priori – demonstrar que a sua verdade é mais legítima, é mais verdade do que qualquer outra. Essas pontuações simbolicamente significam alguns dos tantos óbices que dificultam um aprimoramento da idéia de poder, mudança sem a qual, será pouco provável, de alterar as estruturas atenienses da democracia ocidental, elitista e imperialista, há séculos. É necessário compreender ainda que além de uma era de transconstitucionalismos, estamos em uma era de transideologias que não comportam mais a rígida linearidade de se impor um modo comportamentalista absoluto, nessa linha já pontuara – sobre as sociedades – o professor Marcelo Neves: A sociedade torna-se “multicêntrica” ou “policontextual”. Isso significa, em primeiro lugar, que a diferença entre sistema e ambiente desenvolve-se em diversos âmbitos de comunicação, de tal maneira que se afirmam distintas pretensões contrapostas de autonomia sistêmica. E, em segundo lugar, na medida em que toda diferença se torna “centro do mundo”, a policontexturalidade implica uma pluralidade de auto-descrições da sociedade, levando à formação de diversas racionalidades parciais conflitantes. Falta, então, uma diferença última, suprema, que possa impor - se contra todas as outras diferenças. Ou seja, não há um centro da sociedade, que possa ter uma posição privilegiada para sua observação e

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Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado.27ªreedição.Rio de janeiro: Edições Graal,2009.

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descrição; não há um sistema ou mecanismo social a partir do qual todos os outros possam ser compreendidos.10 TP

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Compreender essa multiplicidade é critério basilar para escaparmos de uma democracia ditatorial, como já tendemos a ser, caso analisemos a forma de agir do mundo ocidental, quando almeja – e da forma que o faz – conduzir as mudanças do Oriente Médio e de países africanos (Afeganistão, Líbia, Síria, Iraque, Egito, entre tantos outros), em parte, adaptamos e usamos a seguinte assertiva: A crise econômica foi, sobretudo uma crise da capacidade do capital de dominar as suas relações conflituosas com o trabalho através da dialética social e política. As excessivas exigências do trabalho (sejam relativas a salários altos, à insubordinação nos processos produtivos ou à rejeição dos mecanismos sociais de comando) levaram o processo dialético ao ponto de ruptura, tornando a mediação impraticável. As estratégias de administração da crise, portanto, passaram da mediação à exclusão; exclusão tanto dos tradicionais processos de negociação quanto do trabalho, do local de produção.11 TP

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A exclusão de opiniões que colidam com aquela que detenha o “mais –de- força” na linha foucaultiana se apresenta – como sempre fora – o meio de subjugar saberes sujeitados, indispensáveis para construir a democracia pretendida, muito distante – certamente – da qual temos e difundimos. Reputamos salutar e tornamos nosso desiderato também a pretensão de um singelo parágrafo de um livro escrito por Antonio Negri e Michael Hardt: Se o nosso livro tivesse de ter uma mensagem, deveria ser essa: voltemos a falar das coisas, e das teorias como parte das coisas; percorramos a esfera lingüística não para fazer dela um jogo, mas para ver quanta realidade ela é capaz de captar.12 TP

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O difundir da política da teoria discursiva, que respeita a dialética, na qual o outro realmente poderá participar é um caminho mais provável para chegarmos à democracia do que esse até então percorrido, na pior das hipóteses, afastar-mo-emos desse simulacro de democracia – com natureza de ditadura – que temos desde os gregos.

5. Conclusão Contemplar o coletivo assusta (assim fora quando críticos teóricos observaram a torre de babel) e faz andar pouco. O discurso único, que busca o uno, acalma por coadunar, voltar-se para 10 PT

NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Transconstitucionalismo. São Paulo: 2009.

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NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora, Minas Gerais: Editora UFJF – PAZULIN, 2004. TP

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NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora, Minas Gerais: Editora UFJF – PAZULIN, 2004. TP

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o múltiplo quando se quer sedimentar inquietações para não destruir o que durante décadas já é posto, oxigeno a teoria, mas sem mudá-la, assim se mantém o poder clássico. Por isso, não diremos que a linguagem das teorias está equivocada ou fragilizada (ou qualquer questão do gênero), porque sequer – ao nosso entender – ela foi formada, por – de logo – negar à dialética. É imprescindível observar que o mundo ocidental, quer conduzir o mundo a pensar ocidentalmente e esse se apresenta como um dos grandes obstáculos ao discurso da inclusão e – por conseguinte – da democracia. As imposições em processo no Oriente Médio e em alguns países da África, só expressão a idéia imperialista sobre esses espaços. E o desrespeito ao diferente – sem acuidade – é o primeiro pressuposto para intolerância, criou-se uma ditadura com cara de democracia e se oferece isso, a tais países. O caso do Afeganistão, já deveria ser ensinamento suficiente para demonstrar o fracasso de tal investida, dessa “cruzada democrática” nos moldes pós-modernos. É categórico se afirmar: não é porque todos bebem na mesma fonte, da mesma água, que todos devem sentir o mesmo gosto. Caso compreendessem ou quisessem compreender isso os tidos paladinos dos ideais da Revolução Francesa, não estariam com o escopo de impor uma única forma de pensar liberdade a todos, ocidentais e orientais. Se é percebido que o coletivo, o múltiplo só é válido e contemplado quando se busca o uno, caso não, é rejeitado, pelo simples fato de que ainda nos pautamos na idéia da exclusão, como forma de sobrevivência social, já que colisões constantes trazem consigo a idéia de destruição. A identidade tem como meta maior a construção do igual, na clássica patologia que temos de considerar que o nivelamento é a melhor forma de isonomia e estabilidade. Os valores e a ética são como um caleidoscópio enxergado por vários observadores, manuseiam o mesmo objeto, mas captam formas, cores e sentidos diferentes. Ou aceitamos e mudamos o nosso entender das culturas múltiplas que temos no mundo, ou não só destruiremos os nossos sonhos de democracia, mas aniquilaremos a própria existência da sociedade, envolvida que estará em conflitos bélicos para provar quem tem a melhor democracia, evitemos essa síndrome nero - napoleônico espartana. É preciso continuar o debate sobre a teoria democrática ou, pelo menos, o que pretendemos de democracia, estamos no começo, todavia parece que muitos se esqueceram disso.

Referências bibliográficas BOBBIO, NORBERTO. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução: Marco Aurélio Nogueira.11ª. ed. São Paulo: Paz e Terra,2004. Foucault, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado.27ªreedição.Rio de janeiro: Edições Graal,2009.

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MELO, Eduardo Rezende. Nietzsche e a justiça: crítica e transvaloração. São Paulo: Perspectiva, FAPESP, 2004. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público.1ºvol. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. O trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora, Minas Gerais: Editora UFJF – PAZULIN, 2004. NEVES, Marcelo da Costa Pinto. Transconstitucionalismo. São Paulo: 2009. SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la razón cínica. Tradução: Miguel Ángel Vega. Madrid: Biblioteca de Ensayo 23 (Serie Mayor) Ediciones Siruela, 2006.

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Entre a inércia e o ativismo: análise do fenômeno da judicialização da política Christiane Soares Carneiro Neri1 TP

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Resumo

Abstract

A partir da afirmação dos direitos fundamentais como núcleo duro de resguardo da dignidade da pessoa humana e da percepção de que é a Constituição Federal o local adequado para sua positivação, atribuindo-lhe máxima força vinculativa, o Direito constitucional, sob a denominação “neoconstitucionalismo”, e em especial a jurisdição constitucional, vem ganhando relevo nos debates científicos sob vários enfoques – histórico, filosófico e normativo – principalmente a partir do aporte no Supremo Tribunal Federal de demandas de fundo eminentemente político. Passa-se, então, a debater e refletir sobre o fenômeno da judicialização da política e da postura da Corte Suprema diante de tais casos. Objetiva-se oferecer uma visão, mesmo que limitada, do caráter das decisões do STF enquanto Justiça Constitucional típica, trabalhando o paradoxo da cada vez mais recorrente relação de proximidade entre o político e jurídico e a centralidade dessa Justiça Constitucional. A tarefa é levada a efeito contemplando concepções teóricas e peculiaridades brasileiras, como o crescimento do STF, o confronto entre princípios de envergadura constitucional (inércia/separação dos Poderes), a inefetividade da produção legislativa em relação a demandas sociais, tomando como parâmetro a Lei 10.639/03, a desconfiança das instâncias democráticas e a neutralidade judicial.

With the advent of the affirmation of fundamental rights protection as a hard core of human dignity and the perception that the federal Constitution is the right place for your positivation, constitutional law and in particular the constitutional jurisdiction is gaining strength in scientific debates under different approaches - historical, philosophical and normative. Currently there is debate and reflection on the phenomenon of judicialization of politics and the Supreme Court's position on such cases. The purpose of this paper is to offer a vision, even limited, of the character of the decisions of the Supreme Court as constitutional justice typical, working the paradox that arises from the close relationship between the political arena and legal arena and the centrality of constitutional justice. The work is done contemplating theoretical conceptions and brazilian peculiarities, such as the growing power of the Supreme Court, the confrontation between constitutional principles, the ineffectiveness of legislative production in relation to social demands, distrust of democratic institutions and judicial neutrality.

Palavras-Chave: Jurisdição Constitucional; Legitimidade Democrática; Políticas Públicas.

Keywords: Constitutional Legitimacy; Public Policies.

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Jurisdiction;

Democratic

Mestra em Direito pelo PPGCJ da Universidade Federal da Paraíba. Email: [email protected]

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1. Introdução A formulação histórica da tripartição de poderes mostesquieuana vem sofrendo, na sociedade contemporânea, fortes abalos em sua estrutura conceitual, surgindo, como consequência da frenética e incontornável realidade global, conflitos entre ações jurídicas, executivas e legislativas, observando-se, inclusive, a ampliação formal de um Poder da República sobre os demais, o que vem causando a remodelação das funções dos Três Poderes da República concebidos, a priori, de maneira bem delimitada e nítida, sem invasões, excessos ou ameaças aos princípios democráticos fulcrados na histórica concepção de Montesquieu. Nesse contexto, merece destaque o fenômeno que cada vez mais ganha força no debate jurídico-político nacional e internacional e ao qual se atribui o nome de “judicialização da política” e seus consectários próximos, como o “ativismo judicial” e a “politização da justiça” que, mesmo próximos, revelam faces diferentes do fenômeno que tem a jurisdição constitucional como cerne irradiador. Esse fenômeno coloca em destaque o método e o processo judicial que condicionam as demais esferas e indicam, na visão de alguns doutrinadores, a falta de credibilidade que vem atingindo o princípio majoritário e mais especificamente o princípio da representação política. Então, pode-se dizer que, além da dinâmica entre os Três Poderes, o que está em discussão na atualidade é o paradigma político do Estado moderno. O fenômeno da judicialização da política não é especificidade brasileira, na verdade, o Brasil, assim como em outros assuntos de mesmo escol, segue a tendência do Direito e da doutrina estrangeira, notadamente alemã (Peter Häberle) e estadunidense (Neal Tate e Torbjorn Vallinder), incorporando as discussões à realidade nacional que, pela sua diversidade, vem sendo terreno fértil para a proliferação do debate e florescimento, aí sim, de arranjos tipicamente brasileiros. Exemplo desse rearranjo das funções dos Poderes é a intensa atividade criadora dos juízes no seu atuar cotidiano que, sob a base do neoconstitucionalismo e dos novos padrões hermenêuticos ligados, entre outros, ao realismo jurídico e à adoção do modelo axiológico de Constituição como norma, vem fazendo o juiz ter a lei como marco interpretativo inicial, indo sua atividade intelectiva além dela para alcançar a Justiça, que não mais encontra respaldo e conformação nos enunciados normativos à moda kelseniana, ou seja, está delineando-se um novo marco filosófico do direito constitucional: o pós-positivismo, uma fase em que, sem abandonar a legalidade, o direito se liberta em certa medida da legalidade estrita e se aproxima da filosofia moral e política, deixando o juiz de ser mero intérprete e aplicador de leis para assumir a função de criador de direito ante as omissões, ambiguidades, vaguezas e imprecisões de sentidos deixadas pelo legislador ordinário no desempenho do seu mister precípuo. Diante dos novos desafios e demandas, o STF vem reagindo de forma ativa, mas ainda cautelosa, para não fragilizar a harmonia entre os Poderes ao decidir e inovar na ordem jurídica 246

por meio de suas deliberações relativamente a casos de grande repercussão e ligados a políticas públicas (elaboração, implementação e análise) visto que, ainda causa espécie à população essa atuação direta e criativa do Poder Judiciário em arena aprioristicamente destinada ao Poder Legislativo e voltada à deliberação democrática. Emerge, assim, a ideia de usurpação, de invasão, de império dos juízes e das leis, tidos no imaginário coletivo como afastados da realidade social e despidos de conotação humanista. Então, surge o dilema incontornável nos dias de hoje: como conferir credibilidade à atuação do Poder Judiciário e corroborar suas iniciativas a bem da sociedade, sem fragilizar a harmonia entre os Poderes da República concebidos separadamente? Para solucionar esse problema é que o STF vem adotando em seus julgados posições ativas e vanguardistas, assumindo papel de protagonista na cena política, extamente nos espaços vazios deixados pelo Poder Legislativo que, mesmo deliberando, não consegue acompanhar a evolução constante da sociedade e dos novos atores e demandas sociais que surgem dia a dia e que não se acomodam nas estruturas jurídico-políticas estabelecidas, necessitando de tratamento específico em defesa de seus direitos fundamentais. O presente artigo faz uma análise, por meio de revisão bibliográfica, da postura do Poder Judiciário (STF) no exercício da jurisdição constitucional em causas de fundo social, abordando as premissas básicas, muitas vezes esquecidas, que fazem parte do fenômeno da judicialização da política, como a questão da crítica ao método jurídico no trato de demandas sociais e à sua incapacidade de gerar unidade e pacificação social. De outro lado, expõe-se, a partir da análise de alguns julgados do STF, os meios que vem sendo buscados e utilizados pela Corte Suprema para dar legitimidade e caráter democrático às suas decisões em casos atinentes a políticas públicas.

2. O papel do Poder Judiciário na criação de políticas públicas Quando se discute a relação entre Direito e política, principalmente na contemporaneidade e diante das profundas modificações que vêm sofrendo as estruturas sociais, jurídicas e políticas, é preciso estabelecer algumas premissas básicas para a correta compreensão e desenvolvimento do fenômeno sob análise – judicialização da política –. É extreme de dúvida que o Poder Judiciário vem gerando, através de sua atuação, impactos consideráveis na criação de políticas públicas e, registre-se, em todo o ciclo de produção de tais políticas, transformando-se em arena extraordinária de embates relativos a demandas sociais, especialmente de minorias marginalizadas pela dinâmica democrática da vontade da maioria. Essas minorias buscam o Poder Judiciário, notadamente, devido à capacidade que esse Poder tem de impor suas decisões e efetivar direitos.

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Para se compreender adequadamente o processo que envolve a produção de políticas públicas é preciso incorporar a tal análise o Poder Judiciário como ator relevante no ciclo de produção de tais políticas, como diagnosticado por Taylor2: TP

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Embora não tenham legitimidade para iniciar contestações judiciais sobre ações do Legislativo e do Executivo, os integrantes do Judiciário brasileiro têm capacidade de influenciar a discussão das políticas públicas antes de elas serem aprovadas, sinalizando suas preferência e as fronteiras que as mudanças provocadas por essas políticas podem atingir. Os juízes sinalizam suas preferências publicamente muito antes da aprovação final dos projetos, seja por meio de pronunciamentos públicos [...] ou através de reuniões a portas fechadas entre Executivo e Judiciário.

Essa atuação pré-processo de elaboração não é muito discutida e vizualizada por encerrar um caráter fortemente político, não ínsito às funções institucionais do Judiciário, mas que vem se mostrando mais comum, influente e efetiva a cada dia em face da consolidação da posição do Poder Judiciário como elemento chave nessa dinâmica, ou seja, com poder real de veto. Essa atuação também pode ser entendida como resultado da mutação axiológica ocorrida na estrutura democrática do Estado Moderno, que tira o Judiciário da sua inércia e o insere no jogo político, mas em situação potencialmente privilegiada decorrente do aumento de sua credibilidade social diretamente proporcional ao descrédito do Poder Legislativo enquanto instância representativa. É preciso salientar, nessa linha de raciocínio, que o Poder Legislativo foi paulatinamente abrindo espaço ao Judiciário também em decorrência do volume da legislação social advinda do estabelecimento do Estado intervencionista – de Bem- Estar. Dessa forma, ocorrendo substancial aumento das carências sociais, aumentou também a necessidade de ações de intervenção legislativa, diga-se, sem dúvida, de difícil acompanhamento pela atuação parlamentar. A decorrência factível desse movimento foi a diminuição da agilidade necessária no que concerne às demandas sociais e a migração espontânea das funções legislativas para outras esferas, ou seja, para o Executivo e para o Judiciário. Confirma essa profunda descaracterização do modelo político do Estado moderno a crise de representatividade que envolve sazonalmente o Poder legislativo e que resulta, portanto, em efetiva crise de legitimidade, essa sim preocupante e de proporções amplas. Nesse sentido, veja-se, dentre tantos exemplos, o que se extrai da tramitação legislativa da Lei 10.639/033, que, no curso de sua longuíssima tramitação (10 anos), mesmo versando sobre TP

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temática social de extrema relevância (política pública de reconhecimento identitário), passou pelas Casas do Congresso Nacional totalmente sem discussão e deliberação, sem o aporte de

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TAYLOR, Matthew M. O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 50, nº 2, 2007, p. 241. TP

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NERI, Christiane Soares Carneiro. Identidade negra e reconhecimento: interrogando a lei 10.639/03 nas escolas do Município de João Pessoa. 2011, 148p. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011. PT

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subsídios técnicos que viessem a robustecer seu potencial de instrumento transformador da realidade social conducente à promoção da igualdade racial, o que levaria a lei a ser efetivamente observada junto aos destinatários finais da norma, visto que fruto amadurecido da reflexão social. A ausência de deliberação parlamentar restou, entre outros fatores, por enfraquecer a iniciativa e tornar a Lei em questão totalmente ineficaz. No momento da implementação das políticas públicas a atuação do Judiciário é mais perceptível e comum, modificando as regras ou resultados das políticas por meio da revisão constitucional (Ex.: Adin – ADPF), controlando o avanço de políticas de constitucionalidade duvidosa ou assegurando a implementação de outras diante de oposição política considerada desarrazoada. O Judiciário, ao assumir postura proativa no que concerne a políticas públicas, vem exercendo a função de formulador de políticas e, nesse panorama, a judicialização da política leva a processos que demandam a reconstrução ou reinterpretação de políticas sociais promovidas pelo Executivo e Legislativo. Faz-se imprescindível frisar que existe uma diferença crucial entre judicialização da política e ativismo judicial e extremamente necessária para colocação das questões nos seus devidos termos. A judicialização da política é um fenômeno decorrente dos novos arranjos sociais surgidos com a globalização e que, por sua natureza, aproximam os novos atores ligados a esse processo social ao Poder Judiciário e os afastam do Poder Legislativo, sendo absolutamente necessária a provocação da máquina judiciária para que se dê início ao processo de análise do caso concreto, ou seja, a judicialização da política é a transferência das discussões dos embates políticos da arena ordinária (Legislativo) para a arena extraordinária (Judiciário). [...] a judicialização da política deve normalmente significar (1) a expansão da jurisdição dos tribunais ou dos juízes às expensas dos políticos e/ou dos administradores, isto é, a transferência de direito de tomada de decisão da legislatura, do gabinete ou da administração pública para os tribunais, ou, pelo menos, (2) a propagação dos métodos de decisão judiciais fora da jurisdição propriamente dita. [...] a judicialização envolve essencialmente transformar algo em processo judicial. (grifo nosso)4. U

U

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O ativismo judicial, em contraponto, é a postura decorrente do fenômeno da judicialização da política e que não necessariamente se verifica e se justifica em todos os casos. Essa sim é ação espontânea do Judiciário que atua sob novos paradigmas hermenêuticos. O Poder Judiciário, diante dos espaços abertos pela inação ou lentidão legislativa frente às novas demandas sociais, vem respondendo à sociedade através de atuação criativa que se equilibra entre a inércia e o ativismo para não fragilizar ainda mais o princípio da separação dos poderes e o modelo democrático brasileiro do consenso. 4

TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn. The global expansion of judicial power: The Judicialization of Politics. New York: New York University Press, 1995. TP

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Nesse passo, cabe analisar os critérios que a doutrina e o próprio Judiciário vêm estabelecendo para conferir maior representatividade democrática às decisões do Poder Judiciário, culturalmente percebido como incapaz de gerar unidade social, sem implicar ingerência ou usurpação funcional relativamente aos demais Poderes, através do cotejo entre os métodos legislativo e judiciário de atuação.

3. O método jurídico de solução de conflitos A concepção de Estado democrático de direito, prevista no art. 1º da Constituição Federal brasileira, é resultante da histórica conexão entre duas ideias próximas, mas que não se confundem: a de constitucionalismo e a de democracia. Em essência, constitucionalismo liga-se à contenção do poder e à supremacia das normas. Democracia, em apertada síntese, representa a soberania popular e o governo da maioria. Constitucionalismo e democracia, mesmo historicamente percorrendo caminhos convergentes, apresentam pontos de tensão, como, por exemplo, o sutil equacionamento entre a vontade da maioria e a concretização de conteúdos materiais da Constituição. Inicialmente, compete à jurisdição constitucional realizar esse controle e assegurar que a deliberação majoritária não vulnere os consensos mínimos pré-concebidos constitucionalmente pelo legislador constituinte originário, explícitos ou implícitos, inscritos sob a forma de princípios. Portanto, é recorrente na doutrina a busca pelo fundamento de legitimidade da intervenção do Judiciário na seara política, decidindo, analisando e valorando políticas públicas, fortalecendo, assim, a polêmica que envolve a harmonização entre princípios de envergadura constitucional em prol do regime democrático e do escopo último dos direitos e garantias fundamentais: a dignidade da pessoa humana. É preciso analisar a questão da legitimidade a partir de ideias centrais: (1) compete à Constituição veicular consensos mínimos imprescindíveis para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que devem ser protegidos das maiorias políticas eventuais. Esses consensos básicos, embora mudem de acordo com circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, englobam a tutela de direitos fundamentais, a separação e a organização dos Poderes da República e a estipulação de certos objetivos de feição axiológica ou política; (2) cabe à Constituição assegurar a dinâmica do pluralismo político, garantindo o funcionamento correto dos instrumentos democráticos, incluindo o elemento social na estrutura decisional, imprimindo à política e à legislação um ritmo e um processamento próprios que demandam representatividade e legitimidade. Por óbvio que não pode a Constituição suprimir a deliberação legislativa majoritária, nem parece ser esse o fim colimado pela jurisdição constitucional.

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Constitucionalismo

e

democracia,

então,

podem

ser

vistos

como

fenômenos

complementares e que se necessitam mutuamente no Estado contemporâneo. Ambos objetivam conferir justiça, segurança jurídica e bem-estar social à população. Nesse cenário, está também em pauta a representatividade democrática do Poder Judiciário quando surge como arena privilegiada de embates políticos e elemento decisivo na criação de políticas públicas, exatamente pelo tensionamento que se estabelece em face da potencial ameaça ao princípio democrático que, como demonstra Aguiar, decorre decisivamente da diferença ontológica dos métodos de atuação legislativa e judiciária para a solução de conflitos: [...] a arena legislativa opera em termos de barganhas e troca de favores, enquanto o judiciário pesa os argumentos; no legislativo predomina o princípio majoritário, e no judiciário, a decisão dada por um juiz imparcial; um produz regras gerais e políticas públicas, e outro estabelece casos individuais; um aloca valores em virtude de uma solução possível politicamente, enquanto o outro se certifica dos fatos do processo e da lei adequada na busca da “única solução correta”5. TP

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Depreende-se, a partir do cotejo feito por Aguiar entre os métodos de resolução dos conflitos, que o modelo democrático do consenso, ou seja, a possibilidade da sociedade de se autocompor, gerando valores e organizando vontades no sentido de alcançar a unidade, está passando, diante do crescimento da judicialização da política, por processo de remodelação que, para alguns autores (Tate e Vallinder) pode ser um sinal negativo, sinalizando o declínio da democracia, mas, para outros (Häberle), significa avanço em face da atual incapacidade do Legislativo de atender a novas demandas sociais. É nesse espaço deixado pelo Poder Legislativo que o Judiciário vem sendo exigido e chamado a atuar no resguardo dos direitos fundamentais de minorias alijadas do processo político ordinário. Desse modo, torna-se necessária a remodelação da estrutura institucional do Judiciário, abrindo sua dinâmica processual à participação social de forma quantitativa e qualitativamente mais representativa, desafiando o sistema autônomo do Judiciário até então ancorado em um formalismo-metódico apartado, em essência, da influência da ordem social, dando lugar ao que vem sendo chamado de “direito de sistema responsivo”. Com efeito, o sistema responsivo caracterizar-se-á por um forte compromisso com a justiça substantiva. Tal compromisso configura um instrumento de legitimidade para o sistema responsivo. Para alcançar tal justiça e se projetar no cenário responsivo, cumpre que a s instituições legais rompam com o insulamento característico do sistema autônomo e estabeleçam interação com a ordem social. Assim, o direito responsivo tende a acolher o conhecimento das aspirações sociais e os efeitos da ação oficial no raciocínio legal, primando por uma competência cognitiva desfeita a formalismos. Em outras palavras, tais premissas sustentam uma ordem legal mais aberta à participação e, por conseguinte, à crítica, em vistas de um aperfeiçoamento constante de suas práticas. Além disso, ao tornar-se um instrumento mais dinâmico na ordem social tende a ser convocado a posicionar-se

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AGUIAR, Thais Florêncio. A judicialização da política ou o rearranjo da democracia liberal. Revista ponto e vírgula, n. 2, 2007, p. 149. PT

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nas questões sociais e, assim, a expandir sua participação legal sob as esferas sociais, remodelando o papel do direito na sociedade.6 TP

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Levar a efeito essa abertura do método judiciário, no entanto, encerra alguns cuidados que não podem ser olvidados em defesa da integridade do próprio direito e das instituições judiciárias. A cautela deve ser a tônica do processo para que não haja abertura demasiada à discrição em detrimento da autoridade das normas e das instituições. Nessa perspectiva, a legitimidade democrática das decisões proferidas pelo Judiciário em questões atinentes a políticas públicas e a demandas sociais das minorias passa pela conjugação temporal entre o passado (sistema autônomo) e o futuro (abertura a mudanças), que é levada a efeito pela atividade hermenêutica dos juízes com o auxílio dos efetivamente interessados no caso e dos que possuem conhecimento técnico específico a subsidiar a mais justa e correta aplicação da lei.

3.1 A unidade social por meio do método jurídico Diante da recorrente ideia de que o método jurídico não é capaz de gerar unidade social e consenso, o Poder Judiciário, mais especificamente o STF, vem se munindo de instrumentos que aumentam a sua representatividade aos padrões democráticos historicamente ligados ao princípio majoritário. Seccionando o fenômeno, analisam-se agora as estratégias argumentativas que levam às decisões finais do Judiciário, como já dito, especificamente do STF. Sob esse enfoque, adota-se como parâmetro a doutrina de Peter Häberle7 e sua TP

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hermenêutica constitucional para a formulação de modelo situacional localizado mais condizente com o estágio atual da dinâmica da jurisdição constitucional, particularmente quanto à conferência de legitimidade democrática às decisões do Supremo Tribunal Federal em ações de cunho político. Häberle defende maior abertura das cortes constitucionais às vozes da sociedade, ou seja, a inserção dos argumentos dos interessados no caso e dos subsídios técnicos dos peritos, de forma dialógica, dentro do processo judicial, possibilitando o confronto democrático de ideias para a consecução do fim último colimado: a realização de justiça conformadora e pacificadora.

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AGUIAR, Thais Florêncio. A judicialização da política ou o rearranjo da democracia liberal. Revista ponto e vírgula, n. 2, 2007, p.154.

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Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição – contribuição para a Interpretação Pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 2002. PT

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Até pouco tempo imperava a idéia de que o processo de interpretação constitucional estava reduzido aos órgão estatais ou aos participantes diretos no processo. Tinha-se, pois, uma fixação da interpretação constitucional nos órgãos oficiais, naqueles órgão que desempenham o complexo jogo jurídico-institucional das funções estatais. Isso não significa que se não reconheça a importância da atividade desenvolvida por esses entes. A interpretação constitucional é, todavia, uma atividade que, potencialmente, diz respeito a todos. Os grupos mencionados e o próprio indivíduo podem ser considerados intérpretes constitucionais indiretos ou a longo prazo.8 TP

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O que se verifica é a possibilidade de utilização do argumento de Häberle para o estabelecimento do Poder Judiciário como espaço criativo e de discussão, aberto e condizente com a realidade pluralista atual, aproximando o método jurídico do método legislativo quanto à participação social na elaboração de decisões dotadas de poder unificador e pacificador, já que a Constituição não é construção imutável, mas aberta aos influxos da realidade e do tempo, adaptando-se, por meio do exercício interpretativo, às novas necessidades da população. Exemplos incontestes da influência de Häberle e de sua sociedade aberta dos intérpretes da constituição no Judiciário nacional é a adoção de instrumentos procedimentais democráticos como o amicus curiae e as audiências públicas, demonstrando a prevalência de um modelo procedimental mais amplo e ao alcance de uma gama maior de sujeitos intervenientes. O STF vem utilizando os novos mecanismos de abertura procedimental ainda de forma tímida, mas de forma notadamente exitosa na sua busca por legitimidade frente a seus novos desafios. Até o momento já formam realizadas cinco (05) audiências públicas com intensa participação da sociedade no STF, de acordo com o preceituado na Lei 9.868/99, art. 9º, § 1º.9 TP

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Analisando a realização de audiência pública na ação direta de inconstitucionalidade nº 3.510/DF (pesquisa científica com células–tronco embrionárias), assim se manifestou o Ministro Gilmar Ferreira Mendes: [...] a audiência pública realizada no dia 20 de abril de 2007 contou com a participação de especialistas na matéria (pesquisadores, acadêmicos e médicos), além de diversas entidades da sociedade civil, e produziu uma impressionante gama de informações e dados que permitiram ao Tribunal, no julgamento definitivo da ação (em 29/05/2008), realizar um efetivo controle e revisão de fatos e prognoses legislativos e apreciar o tema em suas diversas conotações jurídicas, científica e éticas. [...] O que ficou marcado nesse julgamento, de toda forma, foi a ampla participação de múltiplos segmentos da sociedade, o que fez da Corte um

8 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre, Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 24. TP

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§1º. Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria. (grifo nosso). PT

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foro de argumentação e de reflexão com eco na coletividade e nas instituições democráticas.10 TP

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Nessa busca do STF por instrumentos legitimadores das suas decisões e geradores de unidade social, a abertura do procedimento à moda de Häberle se mostra medida efetiva, mas ainda limitada e demasiado formalista. Falta incorporar ao procedimento os atores principais, mesmo que implicitamente referenciados, das demandas que chegam ao Supremo, ou seja, a comunidade diretamente interessada na solução do litígio e pertencente, normalmente, a minorias marginalizadas da ação de políticas públicas, ou beneficiárias de políticas ineficientes e mal formuladas. Nesse sentido, esses novos atores, ou ‘intérpretes em sentido amplo da Constituição’ têm que ser levados para dentro do procedimento como elementos decisivos para se alcançar a solução mais justa no caso concreto. Tendo acesso à diversidade de visões sobre o mesmo fato, o Judiciário, que não detém todo o conhecimento do saber humano, fatalmente prolatará decisões tecnicamente mais corretas e incluir-se-á legitimamente no jogo político em defesa dos direitos fundamentais das minorias e das maiorias oprimidas, no desempenho de sua função primordial de guardião da Constituição.

4. Considerações finais A modificação na relação entre os Três Poderes da República, decorrência direta da constante mutação social em tempos de globalização, pluralismo e multiculturalismo, vem gerando a necessidade de rearranjos e remodelações nas funções tradicionalmente atribuídas aos Poderes na histórica formatação montesquieuana. A judicialização da política emerge nesse contexto como reflexo dessa adaptação por que vem passando as estruturas sociais, políticas e jurídicas. O Poder Judiciário, ainda detentor de certa credibilidade social, vem sendo alçado a patamar até então nunca experimentado na história brasileira quanto à sua participação em deliberações de caráter eminentemente político, preenchendo os espaços vazios deixados pelo Poder Legislativo. E o Poder Judiciário vem enfrentado os novos desafios de forma intensa, não se escusando às novas funções, a despeito da ainda persistente desconfiança com relação a esse tipo de atuação proativa. O protagonismo judicial vem trazendo mais benefícios à sociedade do que inconvenientes. Atuando ainda de forma bastante cautelosa, mas buscando fundamentação e legitimação para sua atuação, o STF tem diante de si a difícil tarefa de conjugar, na dose certa, os necessários

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MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O pensamento de Peter Häberle na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, nº 12, julio-diciembre 2009, pp. 121-146. Disponível em: http://www.iidpc.org/revistas/12/pdf/137_162.pdf. Acesso em 12 nov. 2011. PT

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avanços de sua função ‘política’ e a manutenção do equilíbrio e respeito institucional entre os Três Poderes da República, para que não surja, a partir daí, o agigantamento de um Poder (Judiciário) em face dos outros. Com o aporte de fundamentos doutrinários como os de Häberle, o Judiciário pode se tornar arena legitimamente propícia ao exercício e vivência da democracia, especialmente ao abraçar a vontade e as necessidades de minorias sem acesso às instâncias políticas tradicionais.

Referências bibliográficas AGUIAR, Thais Florêncio. A judicialização da política ou o rearranjo da democracia liberal. Revista Pontoe-vírgula, n. 2, pp. 142-159, 2007. Disponível em: http://www.pucsp.br/ponto-e-virgula/n2/pdf/11-thais.pdf. Acesso em: 10 set. 2011. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e 'procedimental' da Constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris editor, 2002. MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. O pensamento de Peter Häberle na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Disponível em: http://www.iidpc.org/revistas/12/pdf/137_162.pdf. Acesso em: 12 nov. 2011. NERI, Christiane Soares Carneiro. Identidade negra e reconhecimento: interrogando a lei 10.639/03 nas escolas do Município de João Pessoa. 2011, 148p. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2011. TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn. The global expansion of judicial power: The Judicialization of Politics. New York: New York University Press, 1995. TAYLOR, Matthew M. O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro,

Vol.

50,



2,

2007,

pp.229

a

257.

Disponível

em:

http://www.scielo.br/pdf/dados/v50n2/a01v50n2.pdf. Acesso em: 15 set. 2011

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O Supremo Tribunal Federal e o modelo procedimentalista de jurisdição constitucional no Brasil Edhyla Carolliny Vieira Vasconcelos Aboboreira1 TP

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Resumo

Abstract

No campo da filosofia do direito, emerge acirrado debate sobre os fundamentos que irão justificar ou não o ativismo judicial a ser exercido pelas Cortes Constitucionais, visando compor um arcabouço teórico capaz de conferir ou não legitimidade a estas decisões. Trata-se da divergência posta entre comunitaristas, juristas herdeiros da Jurisprudência de Valores e pregadores do constitucionalismo dirigente; e os procedimentalistas, defensores de um modelo procedimentalista/discursivo de Jurisdição Constitucional, apoiados, essencialmente, na Teoria Discursiva do Direito, formulada por Jürgen Habermas. Este considera que a Jurisdição Constitucional deve velar pelo processo deliberativo de gênese democrática, desenvolvendo discursos de aplicação e não de fundamentação. Tendo em vista a atual efervescência desta discussão no Brasil, o trabalho debruça-se sobre a legitimidade das decisões do Supremo Tribunal Federal à luz da teoria procedimentalista proposta por Habermas, tendo como objetivo problematizar a questão a partir da análise do julgamento da ADI 4277 e ADPF 132, que reconheceu a união estável entre casais do mesmo sexo. A pesquisa, de cunho documental e qualitativo, utiliza o método pragmático de análise judicial, lastreado nas técnicas da documentação indireta e revisão bibliográfica. O julgamento referido, de inegável impacto jurídico e social, inaugura um novo marco quanto à caracterização do discurso normativo exercido no âmbito da Corte e ao questionamento da legitimidade democrática de seus julgados frente ao princípio majoritário.

In the field of philosophy of law, emerges fierce debate on the grounds that will justify judicial activism or not to be exercised by the Constitutional Courts, aiming at building a theoretical framework capable of conferring legitimacy or not these decisions. It is called the divergence between communitarians, legal heirs of the Jurisprudence of Values and leading preachers of constitutionalism, and the procedural, advocates of a procedural model / discourse of Constitutional Jurisdiction, supported mainly on the Discourse Theory of Law, formulated by Jürgen Habermas . This considers that the Constitutional Jurisdiction should ensure the democratic deliberative process of genesis, developing discourses of application and not reasoning. Given the current excitement in this discussion in Brazil, the work focuses on the legitimacy of the decisions of the Supreme Court in light of the proceduralist theory proposed by Habermas, aiming to discuss the issue from the analysis of the trial and the ADI 4277 ADPF 132, which recognized the common-law marriage between same-sex couples. The research, document and qualitative nature, using the pragmatic method of judicial review, backed in the techniques of indirect documentation and literature review. The trial referred to, of undeniable legal and social impact, starts a new landmark in the characterization of the legal discourse exercised within the framework of the Court and to question the democratic legitimacy of its decisions against the majority vote.

Palavras-Chave: Jurisdição Constitucional; Democracia; Legitimidade.

Keywords: Legitimacy.

Constitutional

Jurisdiction;

Democracy;

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Graduada em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba. Linha de Pesquisa: Inclusão Social, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos. Email: [email protected] PT

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1. Introdução Ao se pretender estudar uma abertura democrática da Jurisdição Constitucional Concentrada no Brasil, é impossível não emergir das análises o tema da legitimidade das Cortes Supremas no desenvolver de suas atividades decisório-argumentativas, que estão diretamente relacionadas com questões fundamentais que autorizam o acionamento e participação dos cidadãos no processo constitucional. Nos campos da filosofia do direito e da filosofia política, emerge um acirrado debate acadêmico sobre os fundamentos da base democrática que irão justificar ou não um maior ativismo judicial e/ou uma maior participação popular na Corte. Assim posto, o debate acerca da matéria, seja em sob quaisquer das bases estabelecidas, visa contribuir, substancialmente, para o desenvolvimento da democracia brasileira e suas instituições, tendo a filosofia do direito papel crucial no pensar do legislador, do gestor público, do operador jurídico, e dos destinatários de normas e políticas públicas, sejam integrantes ou não das forças que articulam os fatores reais de poder na sociedade. O modelo procedimentalista de jurisdição constitucional preocupa-se como um tribunal que possa atuar com base em uma hermenêutica construtiva, sem lançar mão de competências legislativas, preservando, assim, a gênese democrática do processo deliberativo de formação da opinião e da vontade. No Brasil, é notório o destaque que vem ganhando as decisões do Supremo Tribunal Federal em ambientes outros que não o estritamente jurídico, como o midiático, por exemplo. Razão pela qual é cada vez mais corrente o debate acadêmico a respeito do exercício das competências constitucionais pela Corte brasileira. Assim, este trabalho tem o escopo apresentar o modelo procedimentalista de jurisdição constitucional, analisando o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277. Inicialmente, será abordada, em linhas gerais, a Teoria Discursiva do Direito, proposta por Jürgen Habermas, e seus pressupostos de validade e faticidade. Em seguida, mostrar-se-á o papel da jurisdição constitucional a partir da concepção procedimentalista. No terceiro momento, serão apresentados os principais argumentos travados nas discussões teóricas nacionais, a partir das perspectivas de Lênio Streck e Álvaro Cruz. E, por fim, será analisado o conteúdo dos votos exarados no caso da ADI nº 4277.

2. A teoria discursiva de Jürgen Habermas Jürgen Habermas, filósofo e sociólogo alemão, tem trazido grandes contribuições para o campo das filosofias jurídica e política. As bases de seu pensamento estão apoiadas na Escola Alemã de Frankfurt, crítica voraz e pessimista do positivismo jurídico e sua razão instrumental.

257

Objetivando romper com a filosofia da consciência, inaugurada por Descartes e Kant, a qual lançara as bases da doutrina positivista no Direito, Habermas escreve sob o novo paradigma da filosofia da linguagem, sob a ótica de uma nova forma de conhecimento que se desenvolve pela comunicação intersubjetiva dos sujeitos cognoscentes. Nessa esteira, o referido autor elaborou a Teoria do Agir Comunicativo e a Teoria Discursiva do Direito. A Teoria do Agir Comunicativo se perfaz na busca de uma verdade científica nas ciências sociais, até então depurada por meios matemáticos, sob suposta neutralidade e objetividade, por intermédio do consenso obtido através do discurso entre agentes em uma situação ideal de fala2. TP

PT

Esta seria entendida, a grosso modo, como a oportunização de espaços de fala democráticos, em que os interlocutores se encontrariam em posições simétricas e iguais na oportunidade de se manifestarem. A linguagem a permear o discurso seria acessível a ambos, e se faria premente a necessidade de ausência de coação interna ou externa na execução do discurso. Com tal pensamento, Habermas busca atribuir verdadeira legitimidade ao conhecimento científico, estabelecido em bases discursivas e não simplesmente postas e falíveis, conforme revelou o decurso histórico da razão instrumental. Sobre os mesmos fundamentos, ele elaborou a Teoria Discursiva do Direito, dando ao discurso jurídico um novo paradigma de validade e legitimidade, segundo o qual, uma norma, para ser válida, deve conter, em seu procedimento de formação (o que o autor chama de discurso de fundamentação), a participação e o assentimento de todos os possíveis atingidos por ela. Combatendo

fortemente

o

ativismo

judicial,

Habermas

inaugurará

a

corrente

procedimentalista, em que se percebe claramente que o exercício democrático, validade e legitimidade das normas jurídicas, devem se dar, primordialmente, em seu processo de formação, franqueando o discurso a todos aqueles que serão destinatários do comando legislativo. Nesse sentido, tendo como pressuposto uma norma válida, caberia ao aplicador do Direito, em sua atividade jurisdicional, escolher a norma que melhor se adequaria ao caso concreto, e não criar direitos com base em uma hermenêutica ideológica, que o faria, dentro da técnica de ponderação de valores, escolher entre um comando ou outro. O mesmo raciocínio se aplica ao processo de controle de constitucionalidade das leis. A legitimidade do Direito, como se vê, é um dos temas centrais da obra habermasiana, pois, sem seus moldes tradicionais, ela não mais se adequa às teorias positivistas, que ressaltam o primado da lei com base no contrato social hobbesiano, nem mesmo às teorias da autonomia moral, de Imannuel Kant, e da Jurisprudência de Valores, cujo maior expoente é Robert Alexi.

TP

2 PT

CRUZ, Álvaro R. S. Habermas e o direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

258

Desta forma, diante do grau de complexidade e pluralismo a que chegaram as sociedades hodiernas, a legitimidade do Direito não mais poderia estar amparada na conformação da subjetividade moral humana com o Direito, conforme asseverava Kant, pois o que é o direito justo e legítimo para um, pode não o ser para o outro. De igual modo, não irá mais encontrar sustentação na chamada Jurisprudência de Valores. Esta fundamenta como norma legítima a resultante da ponderação entre princípios e/ou regras realizada pelo operador do Direito, que consistiria em sobrelevar determinados valores em relação a outros. Neste sentido, fatalmente, estariam em pauta apenas os valores dominantes nas classes que monopolizam o poder e o discurso. A batalha do discurso ideológico-valorativo tem ganhado grande destaque, no Brasil, com a crise de representatividade do Poder Legislativo, bem como com o ativismo crescente do Judiciário, notadamente da Corte Constitucional brasileira. Basta para a comprovação de tal assertiva a análise dos votos dos diferentes Ministros do Tribunal em casos de grande repercussão, como foi o caso do julgamento do RE nº 630147, que questionou a constitucionalidade das alterações trazidas pela Lei Complementar 135/2010, conhecida vulgarmente como “Lei da Ficha-Limpa”. Isto posto, vê-se que a feição multifacetada das sociedades contemporâneas, principalmente em virtude dos recentes avanços tecnológicos advindos com a Globalização: a queda virtual de fronteiras globais, o rápido acesso à informação etc., tende cada vez mais ao pluralismo em todas as suas interfaces, seja ideológica, social, política e/ou jurídica. Esta constatação torna uma tarefa praticamente impossível o destacar de autonomias morais e valores que ocorrem igualmente em todos os cidadãos, nas mais variadas questões que envolvem a vida em sociedade, para uma correta fundamentação e aplicação do Direito. Segundo a Teoria Discursiva do Direito, a legitimidade normativa se perfaz através da realização de dois tipos de discurso: o discurso de fundamentação e o discurso de aplicação. O discurso de fundamentação se opera de forma a conferir validade à norma, por meio de um agir comunicativo, buscando a formação de um consenso que busque “estabilizar expectativas de comportamento, (...) organizar o discurso estabelecido, trabalhando para que o mesmo surta efeitos”.3 TP

PT

Este consenso deve ser buscado no momento de formação da norma, ou seja, no âmbito do procedimento legislativo. Segundo Cruz4, TP

PT

A obtenção de qualquer consenso que objetive sustentar uma afirmação, na condição de uma norma social de observância geral, deve necessariamente passar pelo crivo do “princípio da moralidade”, ou seja, deve obter o assentimento 3 PT

CRUZ, Álvaro R. S. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 217, 2004.

TP

TP

4 PT

Idem.

259

de todos os possíveis atingidos, na qualidade de participantes de discursos racionais.

O princípio da moralidade se apóia na chamada moral pós-convencional que se consubstancia “num procedimento para avaliação imparcial de questões difíceis, um procedimento fundado na noção de reciprocidade, de maneira a permitir/garantir o florescimento de distintos projetos de vida”.5 TP

PT

Desta forma, diversos atores sociais, possíveis atingidos pelo regramento normativo, estariam incluídos na formação discursiva de direitos, colocando cada setor seu posicionamento e aceitação acerca de novos ou rediscutidos dispositivos. A norma válida seria aquela que passasse por um teste de reciprocidade entre os atores do discurso, e fosse capaz de angariar o assentimento de todos aqueles albergados por ela. Assim, tendo em vista que tal processo de formação discursiva do direito se dê sob a égide do princípio da democracia participativa, permite-se que a legitimidade jurídica surja da própria legalidade. Este pensamento, apesar de coincidir com a doutrina positivista no tocante ao primado da lei como pressuposto legítimo a nortear a aplicação da norma, diverge dessa justamente quanto às bases de fundamentação desta mesma legitimidade. Neste caso, o Direito válido não é posto, mas sim, construído intersubjetivamente. Habermas6 anota que, TP

PT

Para ser legítimo, o direito de uma comunidade jurídica concreta, normatizado politicamente, tem que estar, ao menos, em sintonia com princípios morais que pretendem validade geral, ultrapassando a própria comunidade jurídica.

Nesse sentido, no tocante a direitos que passaram pelo chamado teste de reciprocidade e apresentam pretensões de universalidade, ou seja, validade geral, estão os direitos fundamentais universais, que são divididos por Habermas7 em cinco categorias: TP

PT

(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação. (...) (2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito; (3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual. 5 PT

Ibidem, p. 213.

TP

6

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 350-351, 2003. TP

PT

TP

7 PT

Ibidem, p. 159-160.

260

(...) (4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam a sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo. (5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) até (4). Grifos do autor.

A partir deste rol de direitos fundamentais universais será possível aos sujeitos, ao se reconhecerem mutuamente como destinatários e autores da própria ordem jurídica, a garantia da sua autonomia privada frente ao Estado, bem como serem erigidos a um status que lhes possibilite “a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente”.8 TP

PT

Nesse lume, formar-se-á, conforme salienta Cruz9, TP

PT

Uma cidadania ativa, inteligente, crítica, participativa e organizada, capaz de resgatar racionalmente as pretensões de validade do Direito e de renovar o conceito de “sociedade civil”.

Uma vez que o discurso de fundamentação se opera no momento de produção legislativa, o discurso de aplicação diz respeito à atividade do operador do Direito, que terá como pressuposto de sua atuação normas válidas discursivamente pelo princípio democrático. Segundo Cruz10, “ele TP

PT

deverá examinar a identidade, ou não, do significante contido nas expressões incluídas na norma diante dos elementos descritivos do caso”. Saliente-se que não se trata aqui de mera subsunção do fato à norma, uma vez que o operador jurídico não procederá a uma aplicação cega do Direito. Quando se contrapõe validade versus faticidade, a jurisdição poderá afastar a aplicação da norma ao caso concreto se a mesma for considerada ilegítima, tendo em vista sua conformação ou não ao princípio da democracia. Nessa esteira, afirma Habermas11, TP

PT

(...) a jurisdição, ao levar em conta aspectos da aplicação, torna a desatar o feixe dos diferentes tipos de argumentos introduzidos no processo de normatização, fornecendo uma base racional para as pretensões de legitimidade do direito vigente.

No discurso se aplicação, ao invés de um agir comunicativo, paira entre os participantes um agir estratégico, em que cada um buscará argumentos que visem à prevalência da tese particular aventada. Ainda assim, será possível ao Judiciário adotar posicionamentos racionais, 8 PT

Ibidem, p. 159.

TP

TP

9 PT

CRUZ, Álvaro R. S. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 223, 2004.

10 PT

Ibidem, p. 225.

TP

TP

11

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 352, 2003. PT

261

pois não prestará a atividade jurisdicional à confirmação do melhor argumento, mas sim à mantença, no momento de aplicação da norma válida, do discurso de fundamentação e validade, resultante do processo democrático. Conforme assevera Habermas12, TP

PT

De fato, porém, uma compreensão procedimentalista conseqüente da constituição aposta no caráter intrinsecamente racional das condições procedimentais que apóiam a suposição de que o processo democrático, em sua totalidade, propicia resultados racionais.

Estaria assim garantida, ao menos procedimentalmente, a legitimidade do Direito como um todo, desde seu momento de formação ao de aplicação, restando à Jurisdição o papel de conduzir e afirmar esta racionalidade dentro do processo jurídico.

3. O papel da jurisdição constitucional a partir da concepção procedimentalista A pergunta que Habermas13 propõe ao abordar o papel e a legitimidade da jurisdição TP

PT

constitucional é como operar uma hermenêutica construtiva de forma que o judiciário “não lance mão de competências legisladoras”. O Autor analisa três aspectos/discussões a respeito do lugar/papel da jurisdição constitucional e suas críticas modernas: a) a interpretação liberal da divisão de poderes, b) a jurisprudência de valores, c) a proteção do procedimento democrático da legislação. Dentro do paradigma liberal, a jurisdição constitucional, seguindo a clássica divisão dos poderes, disciplina e controla a ingerência do Estado na vida dos indivíduos e a proteção das liberdades individuais. Com o advento do Estado Social, ela passa a também controlar/fiscalizar o agir positivo do Estado. Isto permite “crescimento de poder para a justiça e uma ampliação do espaço de decisão judicial, que ameaça desequilibrar a estrutura de normas do Estado clássico de direito, à custa da autonomia dos cidadãos.”14 TP

PT

Outra questão, de cunho metodológico, surge quando se analisa como os juízes compreendem a sua própria atividade. Aqui, é estabelecida a crítica à chamada jurisprudência de valores, em que os magistrados passam a nortear suas decisões através de critérios valorativos, que são arbitrários, em detrimento dos normativos, que gozam de coerência e racionalidade. Habermas15 afirma que “ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores TP

PT

materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transformar-se

12 PT

Ibidem, p. 354.

TP

13 PT

Ibidem, 297.

TP

14 PT

Ibidem, 306.

TP

TP

15 PT

Ibidem, p.321.

262

em instância autoritária”, pois não guarda compromisso com a norma (princípios), mas com juízos inconstantes, divergentes e de validade relativizada. A preocupação central é com o procedimento democrático garantido a partir de um sistema de normas e decisões racionais, capazes de ofertar a única solução correta para cada tipo de conflito, seja entre litigantes seja entre as próprias normas. Nesse sentido, o direito só pode ser considerado legítimo a partir da configuração das “condições processuais da gênese democrática das leis”, devendo o tribunal constitucional zelar, de acordo com Habermas16 pelo “sistema de TP

PT

direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos”, mas afastando uma posição paternalista cujo escopo seria sanar a “irracionalidade” do legislador. O paradigma procedimentalista aproxima-se muito do paradigma republicano à medida que reconhece o cidadão como inserido em uma comunidade de livres e iguais, cuja natureza do processo político opera-se com base no consenso obtido a partir de processos que favorecem o direito de autodeterminação. Assim, o republicanismo “liga a legitimidade das leis ao processo democrático de sua gênese, conservando, assim, o nexo interno da prática de autodeterminação do povo e do domínio impessoal das leis.”17 TP

PT

Habermas assevera, ainda, que o republicanismo vê o papel do tribunal constitucional como guardião da democracia deliberativa, mas ainda “é a favor de um ativismo constitucional, porque a jurisprudência constitucional deve compensar o desnível existente entre o ideal republicano e a realidade constitucional.”18 TP

PT

Nesse sentido, o Autor critica o caráter paternalista de que, ainda assim, se reveste a atuação do tribunal constitucional, bem como os autores comunitários que atribuem a validade do direito à recuperação de discursos éticos presentes na comunidade enquanto substância do discurso político deliberativo. [...] uma interpretação apoiada numa teoria do discurso insiste em afirmar que a formação democrática da vontade não tira sua força legitimadora da convergência preliminar de convicções éticas consuetudinárias, e sim de pressupostos comunicativos e procedimentos, os quais permitem que, durante o processo deliberativo, venham à tona os melhores argumentos19. TP

PT

A concepção procedimentalista chega a ver com bons olhos determinada forma de ativismo judicial, mas desde que ele se destine a preservar o procedimento político, democrático e deliberativo de formação da opinião e da vontade. Diferentemente do que apregoam os comunitaristas, a validade das leis deve superar não apenas os interesses dos cidadãos inseridos numa dada coletividade (formação do discurso 16 PT

Ibidem, p. 326.

TP

17 PT

Ibidem, p. 336.

TP

18 PT

Ibidem, p. 343.

TP

TP

19 PT

Ibidem, p. 345.

263

ético), mas adquirir pretensão universalizante na medida em que será capaz de ganhar o assentimento de todos os possíveis atingidos por ela, propiciando, assim, resultados racionais.

4. O modelo procedimentalista/discursivo de jurisdição constitucional no Brasil: discussões teóricas O modelo procedimentalista/discursivo de Jurisdição Constitucional está diretamente relacionado à proposta de divisão discursiva dos poderes, em que se busca resgatar a clássica doutrina proposta por Montesquieu, embora em bases distintas daquelas estruturadas no período liberal. Conforme leciona Cruz20, TP

PT

Segundo Habermas (1997), essa divisão se pautará essencialmente pela teoria discursiva da gênese normativa, na qual diferentes tipos de argumentação e formas de comunicação se fazem presentes.

A necessidade deste resgate é premente, pois, com o advento do Estado Social e o aumento das tarefas estatais, o Executivo passou a concorrer com o Legislativo na produção normativa (decretos, regulamentos etc.). Ao mesmo tempo, percebeu-se que “os Tribunais Constitucionais passaram, no contexto de controle de constitucionalidade das leis, de um tímido papel de legislador negativo a uma postura agressivamente legiferante.”21 TP

PT

Nesse sentido, ganha relevo e importância o discurso de fundamentação como capaz de harmonizar preferências concorrentes e fixar a identidade pessoal/coletiva de uma sociedade, construída pelo legislador político através do consenso. O discurso de aplicação, por sua vez, sendo realizado pelo Judiciário, permite que sejam reexaminados os argumentos utilizados no discurso de fundamentação, revelando a norma adequada ao caso concreto ou reconhecendo sua própria invalidade, mediante o processo de constitucionalidade das leis. Este é o cerne do modelo procedimentalista de Jurisdição Constitucional. A Teoria Discursiva propõe um processo de controle de normas (in)constitucionais que atenda aos requisitos de uma democracia participativa mediante dois pressupostos: o discurso de aplicação de normas e o princípio do contraditório. Assim, o principal sistema de controle proposto pelo modelo procedimentalista como fundamental ao desenvolvimento de uma cidadania ativa e que corrobore para a defesa do princípio democrático e dos direitos universais fundamentais é o da via incidental ou difusa, uma vez que privilegia, principalmente, o direito de postulação individual e autônomo ao Judiciário. 20 PT

CRUZ, Álvaro R. S. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 244-245, 2004.

TP

TP

21 PT

Ibidem, p. 244.

264

Ademais, no sistema de controle difuso, o magistrado estaria adstrito ao limites oferecidos pelo caso concreto no momento de realização de sua atividade hermenêutica, o que ajudaria a evitar ingerência de afirmações pessoais e ideológicas no seu julgado. Quanto ao sistema concentrado de controle de constitucionalidade, Cruz22 salienta: TP

PT

(...) impõe debates argumentativos impossíveis ao discurso de fundamentação, posto que este último não pode antecipar todas as constelações de circunstâncias concretas a serem regradas. Todavia, essa argumentação pode influenciar o legislador político (...). Grifo nosso. U

U

No controle abstrato de normas, não cabe ao Judiciário rediscutir as bases discursivas em que se assentou a validade da norma, ou seja, não deve o Tribunal Constitucional realizar novo discurso de fundamentação. Contudo, em virtude do caráter dinâmico da sociedade e da amplitude de relações sociais que escapam às possibilidades de discussão na produção normativa, a argumentação travada na Corte, a partir de acontecimentos reais, deve servir ao próprio legislador político para este revogar a norma tida por ilegítima e, portanto, inconstitucional. Nesse lume, preocupando-se primordialmente com a regularidade do processo legislativo, “a função essencial do controle de constitucionalidade será a de examinar e garantir a pura concretização das condições procedimentais da gênese democrática do Direito.”23 TP

PT

Além mais, o papel da Corte não deve ser tido como uma última palavra ou substituição do órgão legiferante, mas sim o de operar o Direito visando sempre à estabilização das expectativas sociais. Nesse sentido, sua atuação apenas seria necessária quando a norma supostamente ilegítima causasse julgamentos díspares na via concreta, fato que poria em cheque a sua validade. Desta forma, a ação do Tribunal jamais culminaria com a criação de novos regramentos subvertendo, assim, novamente, a divisão de poderes, mas consistiria em uma atividade reconstrutiva, pois adstrita aos trabalhos do legislador e às conclusões da Jurisdição Constitucional Ordinária. Ainda para Cruz24, TP

PT

A corrente se une ao comunitarismo em sua crítica à falsa neutralidade e ao formalismo das práticas positivistas no país. Contudo, critica o comunitarismo que pretende ver o Judiciário como tutor ou superego da sociedade de forma a guiá-la no caminho da inclusão social dos menos favorecidos. Mesmo um desvalido conhece e deve opinar qual o melhor meio para ampará-lo. A autonomia do indivíduo não pode jamais ser esquecida, pois sem ela a soberania política estará sempre viciada. Assim, o procedimentalismo no Brasil não se furta aos problemas 22 PT

Ibidem, p. 247.

TP

23 PT

Ibidem, p. 248.

TP

TP

24 PT

Ibidem, p. 265-266.

265

da necessária inclusão social. Contudo enxerga um caminho mais democrático, apesar de menos sedutor.

Destarte, pelo procedimentalismo, apoiado na Teoria Discursiva do Direito, a legitimidade dos julgados do Tribunal Constitucional estaria consubstanciada a partir da própria legalidade, esta estabelecida e validada pelo consenso legislativo. A adoção ou não do modelo procedimentalista/discursivo na Jurisdição Constitucional brasileira, como forma de se assegurar o princípio democrático de direito, tem causado muita celeuma na doutrina que se debruça sobre a hermenêutica constitucional. É o conhecido debate comunitaristas versus procedimentalistas. A posição oposta é defendida por Streck25: TP

PT

O lugar privilegiado assumido pela situação ideal de comunicação para a aferição da verdade argumentativa faz com que as exigências decorrentes da complexidade da cotidianidade das práticas jurídicas não encontrem na teoria do discurso proposta por Habermas maiores indicativos de viabilidade.

A principal crítica ofertada ao procedimentalismo pelo referido autor centra-se na questão de

“como

construir/alcançar

as

condições

para

a

formação

de

discursos

de

fundamentação/justificação como propõe a teoria habermasiana, em uma sociedade complexa e desigual (...) como o Brasil.”26 TP

PT

Defendem os críticos do modelo discursivo de Jurisdição Constitucional que a Teoria Discursiva foi formulada para países que efetivamente concretizaram em suas democracias a fase do Estado Social, o que não seria o caso do Brasil. A possibilidade de elaboração de discursos de fundamentação pressupõe a oferta de ampla participação política aos cidadãos por parte do Estado, gozando os mesmo de plena autonomia frente à chamada política deliberativa. Para Streck27, “quando Habermas apresenta sua tese do sujeito autônomo, coloca-se ao TP

PT

lado da realidade, pondo-a entre parênteses, embora, evidentemente, não a negue”. A efetiva participação do cidadão para conferência de validade à norma deve ser estruturada com base em uma liberdade comunicativa, inexistente em países de modernidade tardia, em que grande parte dos jurisdicionados vivem a baixo da linha da pobreza e não tem condições de discutir em paridade de armas com outros grupos mais fortes.

25 PT

STRECK, Lênio. Verdade e consenso. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 93, 2007.

TP

26 PT

Ibidem, p. 101.

TP

TP

27 PT

Ibidem, p. 104.

266

Nesse lume, a situação ideal de fala torna-se praticamente um pressuposto democrático utópico, sendo a teoria habermasiana considerada apenas como um elemento formal, teórico e epistemológico, inexeqüível à vista das desigualdades que permeiam os atores sociais. Apesar de concordar com as teses procedimentalistas que apontam o controle difuso como a melhor maneira de instrumentalizar os direitos fundamentais, salienta o mencionado autor que “é um equívoco pensar que o controle concentrado, por ser produto de um discurso de fundamentação (sic), transformaria o Tribunal Constitucional em legislador.”28 TP

PT

No seu entender, o controle abstrato não se daria isolado da situação concreta, do mundo prático, uma vez que o questionamento da norma se daria justamente sobre situações de inconstitucionalidades que se desenvolveriam com a sua vigência e/ou eficácia. Desta forma, o alcance do significado do comando normativo questionado não se resolveria apenas no momento do discurso de aplicação, mas sim a partir da compreensão do intérprete inserido no mundo. Ressalte-se, ainda, que a crítica à Teoria Discursiva do Direito como fundamento do modelo procedimental de controle de constitucionalidade de normas, defende arduamente a questão do constitucionalismo dirigente como necessária ao resgate das promessas da modernidade em países que ainda não atingiram o pleno desenvolvimento democrático. Ainda segundo Streck29, “o engendramento das teses processuais-procedimentais acerca TP

PT

da Constituição paulatinamente enfraquece o papel compromissório-vinculante dos textos constitucionais”, por ainda se intentar buscar um fundamento de identidade para as Constituições, seguindo o papel a ser exercido pela situação ideal de fala. Percebe-se,

portanto,

que

a

discussão

doutrinária

atual,

travada

entre

os

constitucionalistas adeptos da tese do procedimentalismo habermasiano versus os seus críticos comunitaristas revela uma preocupação comum em preservar, garantir e promover os direitos assegurados constitucionalmente e a plena realização do princípio democrático, como fruto de uma experiência constitucional histórica. Contudo, a questão central versa em torno do questionamento se isto será feito ou não com uma maior margem de liberdade hermenêutica na atuação dos integrantes do Supremo Tribunal Federal, ou seja, seria o ativismo judicial a solução para o resgate das promessas da modernidade no Brasil?

28 PT

Ibidem, p. 107.

TP

TP

29 PT

Ibidem, p. 115.

267

5. A atuação do Supreno Tribunal Federal: o caso da ADI Nº 4277 A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277, movida pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro perante o Supremo Tribunal Federal, peticionara que a Corte desse interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, de forma a reconhecer como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo e, a partir daí, todos os seus efeitos jurídicos. O art. 1723 do Código Civil, bem como o art. 226, § 3º, da Constituição Brasileira de 1988, reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar. A interpretação dada a estes dispositivos pelos juízes e tribunais pátrios, até bem pouco tempo atrás, era assaz restritiva, uma vez que afirmava estar albergada pelo direito apenas as relações afetivas ocorridas entre heterossexuais. Ao negar-se o status legal de família às uniões entre homossexuais, por conseguinte, eram negados todos os demais direitos decorrentes desta relação, como a colocação do companheiro ou companheira como dependente para benefícios de plano de saúde, previdenciários, questões sucessórias etc. Depreende-se que o direito não conseguiu acompanhar a dinâmica das interações sócio-culturais da sociedade e, em decorrência disto, necessitara ser alterado. Em um Estado Democrático de Direito, como é o caso, do Brasil, as relações políticas, sociais, individuais e institucionais ganham regulação através de todo arcabouço legal, cuja estrutura de legitimação encontra guarida na clássica distinção de atribuições entre os três poderes. Já que cabe ao Judiciário aplicar as leis e ao Executivo executá-las, seria precípua função do Legislativo editá-las e revisá-las, de acordo com o princípio democrático representativo. Ocorre que, não é de outrora, vislumbra-se o Congresso Nacional brasileiro de formação conservadora, cuja maioria constitui déficit de representatividade da maioria do povo brasileiro, embora este eleja os seus representantes. O fato é que, a minoria LGBTS tem sofrido seguidas “derrotas” no Poder Legislativo brasileiro, tendo em vista série de questões. Estas não serão comentadas aqui, pois não constituem objeto deste trabalho, ainda que rendam maravilhosa discussão no âmbito dos direitos humanos e da política. Ante a inércia do legislador pátrio, o Supremo Tribunal Federal fora chamado a atuar de forma elástica, positiva e de encontro à disposição literal da própria Constituição Federal de 1988. A preocupação com a legitimidade da decisão e da Corte Constitucional brasileira, advinda a partir deste julgamento, foram a tônica dos votos de alguns Ministros, como Ricardo Lewandowsky, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Cézar Peluso. O relator, Ministro Ayres Brito, fundamentou seu voto como “homenagem ao pluralismo como valor sócio-político-cultural”, salientando como premissa o afeto enquanto valor necessário contido no conceito e conteúdo das relações chamadas homoafetivas e da apreensão do significado do que vem a ser família no texto constitucional. 268

Daqui se destaca a nítida compreensão de que a família é, por natureza ou no plano dos fatos, vocacionalmente amorosa, parental e protetora dos respectivos membros, constituindo-se, no espaço ideal das mais duradouras, afetivas, solidárias ou espiritualizadas relações humanas de índole privada. O que a credencia como base da sociedade, pois também a sociedade se deseja assim estável, afetiva, solidária e espiritualmente estruturada.30 TP

PT

No voto proferido pelo relator, e acompanhado pelos seus pares, o mesmo considerou que a Constituição permite a liberdade de orientação sexual, na medida em que não proíbe tal conduta e utiliza o binômio homem/mulher apenas apoiado em critérios biológicos definidos pela genitália e não da expressão da sexualidade. O conceito de família abordado pela Constituição Federal de 1988 possui sentido coloquial, ligado à comunidade/núcleo afetivo, e não técnico-jurídico, o que confere a possibilidade de interpretações outras que vão além da mera literalidade do texto. Para o Ministro Joaquim Barbosa31, a fundamentação da decisão colegiada deve guiar-se por uma TP

PT

“pallete axiológica” erigida pelo Constituinte de 1988, cujo principal valor é a igualdade. Desta forma, buscando construir fundamentação que justifique a fuga interpretativa da literalidade do texto constitucional (“entre o homem e a mulher”), surge na decisão do Supremo Tribunal Federal o apego aos valores como orientadores da aplicação sistemática dos principais princípios trazidos pela Carta Magna de 1988, tais como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, o pluralismo e a não-discriminação. Como visto, Habermas32 (2002) já afirmara que, ao pautar sua interpretação por valores, TP

PT

poderá o tribunal constitucional emitir decisões arbitrárias e que ferem o princípio democrático por não permitir uma formação racional da escolha e da vontade, baseada no procedimento deliberativo. Buscando estabelecer a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal no caso em comento, o Ministro Gilmar Mendes salienta que, “[...] se o sistema, de alguma forma, falha na composição desta proposta e se o Judiciário é chamado, de alguma forma, a substituir ao próprio sistema político, óbvio que a resposta só poderá ser esta de caráter positivo”33. Ou seja, uma vez TP

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que todo o procedimento democrático regular falha, o Judiciário, sendo chamado a se manifestar, deverá fazê-lo de forma positiva, notadamente, quando se tratar da fruição de direitos fundamentais pelo cidadão. Outro aspecto de legitimação da Corte Suprema é a participação dos amici curiae, responsáveis por pluralizar o debate no STF, permitindo-se ao mesmo, segundo o Ministro Celso 30 STF. Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277. Inteiro teor do acórdão. Distrito Federal. Ementário nº 2607-03. Disponível em: . Acesso: 30 out. 2011. TP

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31 PT

Ibidem.

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32

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

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33

STF. Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277. Inteiro teor do acórdão. Distrito Federal. Ementário nº 2607-03. Disponível em: . Acesso: 30 out. 2011. PT

269

de Mello, dispor “de todos os elementos necessários à resolução da controvérsia, viabilizando-se, com tal abertura procedimental, a superação da grave questão pertinente à legitimidade democrática das decisões emanadas desta Corte.”34 TP

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Depreende-se, desta forma, que a atuação hermenêutica do Supremo Tribunal Federal, no que tange ao julgamento da ADI 4277, caminha opostamente à proposta teórica procedimentalista de Habermas35, pois a Corte tende a reconhecer-se legítima para “legislar” positivamente, ainda TP

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que de forma temporária, frente ao silencio do Poder Legislativo. Os fins perseguidos pelo tribunal deveriam ser a preservação do procedimento democrático deliberativo e não, necessariamente, a substituição de funções legislativas integradoras capazes de conferir “novos” direitos aos cidadãos, mesmo que exercendo papel contramajoritário. Nesse lume, o caso em epígrafe é bastante elucidativo, pois não se trata de silêncio/inércia do legislador. Ao contrário, existem debates acirrados no Congresso Nacional, bem como movimentações de grupos sociais e políticos, dentro e fora das instituições, no sentido de construir e estabelecer o reconhecimento de todos os direitos fundamentais às relações homoafetivas, não apenas no que diz respeito à constituição do casamento ou união estável, mas também da adoção. O processo democrático deliberativo de afirmação desses direitos deve-se dar, conforme o procedimentalismo, a partir da atividade dialógica, intersubjetiva, verdadeiro agir comunicativo, que permita a construção de consensos. Assim, restaria satisfeito o pressuposto da norma válida, pois, levado a cabo todo o processo comunicativo de deliberação, essa encontraria assentimento em todos os possíveis atingidos por ela. Não foi o que ocorreu com a decisão do Supremo Tribunal Federal, posta de cima para baixo, ainda que para defender grupos minoritários.

6. Considerações finais O modelo procedimentalista de jurisdição constitucional, construído a partir dos paradigmas presentes na Teoria Discursiva do Direito, tem como base a democracia deliberativa, afirmada através do consenso de atores, em situação ideal de fala, que se relacionam intersubjetivamente por meio do agir comunicativo. Neste arcabouço, o direito retira sua legitimidade da própria faticidade, absorvida do assentimento de todos os possíveis atingidos à disposição normativa elaborada. A esfera legislativa, cujo papel é resgatado da clássica divisão de poderes do Estado, é o local, por excelência da atuação discursiva dos cidadãos, agora não mais como sujeitos de 34 PT

Ibidem.

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35

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. TP

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direitos, mas como co-autores destes. É a formação livre da vontade destes atores que será capaz de conferir validade à norma, seja esta considerada enquanto direito positivado seja enquanto atividade interpretativa dos juízes. Estes deverão aplicar a norma válida, através do procedimento racional que leve à única e possível solução correta ao caso concreto. Assim, o papel da jurisdição constitucional, enquanto guardiã da Constituição, é assegurar que as demais leis e atos do Poder Público estejam em conformidade como o processo da gênese democrática do Direito, considerando o próprio conceito procedimentalista de Constituição. Não cabe ao Tribunal Constitucional, local de aplicação da norma válida outrora estabelecida discursivamente, atuar positivamente na conformação de discursos políticos movidos pelo agir estratégico, ainda que eles envolvam direitos fundamentais. Especificamente, a crítica habermasiana dirige-se ao modo de julgar que, não estando amparado em critérios racionais, volta-se para o apelo a valores, por sua vez arbitrários e contrários à ordem democrática, pois não seguem a ordem de universalidade. Aqui, se encaixa o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4277 que reconheceu como entidade familiar a união estável entre casais do mesmo sexo, fato que faria a atuação do Tribunal carecer de legitimidade. Ocorre que esta análise não procede, haja vista que não há, no Brasil, procedimento racional de escolha e formação da vontade, quiçá processo democrático deliberativo que envolva atores em situações ideais de fala, cujos pressupostos são a igualdade e a liberdade. O modelo procedimentalista de jurisdição constitucional pressupõe um arcabouço democrático ideal que funciona a partir de premissas que não envolvem apenas uma esfera de poder. No entanto, há que se ressaltar a importância do debate teórico que tem ocorrido no País. Embora

ainda

não

se

possa

defender

a

implantação

total

de

um

modelo

procedimentalista/discursivo de Jurisdição Constitucional no Brasil, a Teoria Discursiva do Direito traz importante contribuição para as discussões que envolvem temas como pluralismo, democracia participativa e efetivação de direitos humanos.

Referências bibliográficas CRUZ, Álvaro R. S. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. ______. Habermas e o direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. STF. Ação direta de inconstitucionalidade nº 4.277. Inteiro teor do acórdão. Distrito Federal. Ementário nº 2607-03. Disponível em: . Acesso: 30 out. 2011. STRECK, Lênio L. Verdade e consenso. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

271

Jurisdição Constitucional brasileira: passos e contrapassos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na construção de um estado democrático de direito Filipe Cesar Lopes1 TP

PT

2

Letícia Lacerda de Castro TP

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Resumo

Abstract

Esse trabalho tem por objeto a análise dos principais julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal nos últimos doze meses, sobretudo aqueles que, por sua importância, ocuparam um grande espaço na mídia nacional e despertaram a atenção do povo brasileiro, a saber: Recurso Extraordinário n° 633.703 (aplicação da Lei Complementar n°135/2010, “Lei da Ficha Limpa”, nas eleições de 2010), ADI 4277 e ADPF 132 (reconhecimento da união estável entre casais do mesmo sexo) e ADPF 187 (liberação da realização de “marchas” em favor da descriminalização da maconha). Todavia, haja vista que, até a apresentação desse trabalho no II Encontro PROCAD UFPE, UFPB e UFAL apenas o acórdão da ADI 4277 e ADPF 132, julgados conjuntamente, foi publicado, algumas análises ficarão circunscritas à atividade jurisdicional prestada pelo Supremo Tribunal Federal neste caso. O objetivo é perscrutar a conformidade do processo de tomada de decisões pela Jurisdição Constitucional brasileira com o nosso ordenamento jurídico (normas constitucionais e infraconstitucionais), atestando o grau de legitimidade democrática das soluções atribuídas aos hard cases postos sob julgamento. Cumpre ressaltar que esse estudo será desenvolvido à luz de um modelo procedimentalista/discursivo de jurisdição constitucional, em que o discurso de aplicação de normas e a essencialidade do contraditório configuram os principais elementos para o atendimento dos requisitos de uma democracia participativa. Dessarte, o marco teórico a ser adotado é o da teoria discursiva de Habermas. Noutra banda, será analisado o conteúdo decisório proferido pela Jurisdição Constitucional brasileira na ADI 4277 e ADPF 132 sob o crivo da teoria do processo constitucional, enquanto exigência de que a atividade jurisdicional seja prestada segundo o princípio do juízo natural, princípio da vinculação ao Estado Democrático de Direito, princípio do devido processo constitucional, princípio da fundamentação das decisões jurisdicionais e o princípio da eficiência.

This work has as objective the analysis of the main trial rulings by the Supreme Court in the last twelve months, especially those who because of their importance, occupied a large space in the national media and attracted the attention of the Brazilian people, namely: Extraordinary Appeal No. 633 703 (Application of Complementary Law No. 135/2010, the "Law of Clean Record" in the elections of 2010), ADI and ADPF 4277 132 (recognizing commonlaw marriage between same-sex couples) and ADPF 187 (release of the day " marches "in favor of the decriminalization of marijuana). However, considering that by presenting this work at the Second Meeting PROCAD UFPE UFPB UFAL and just above the ADI ADPF 4277 and 132, tried together, was published, some analysis will be limited to the jurisdictional activity provided by the Supreme Court in this case . The goal is to scrutinize the compliance of the decision making process by the Brazilian Constitutional Jurisdiction with our legal system (constitutional and infra), certifying the degree of democratic legitimacy of the solutions to hard cases attributed put on trial. It should be noted that this study will be developed in light of a procedural model / discourse of constitutional jurisdiction in which the discourse of application of standards and the essential nature of the adversary configure the key elements for meeting the requirements of a participatory democracy. Thus faces the theoretical framework to be adopted is the discursive theory of Habermas. Another band, the content will be considered by the decision handed down in the Brazilian Constitutional Jurisdiction ADPF ADI 4277 and 132 under the scrutiny of the theory of the constitutional process as a requirement of the judicial activity is provided on the principle of natural judge, bound by the principle of democratic rule of law, the constitutional principle of due process, principle of the reasoning of judicial decisions and the principle of efficiency.

Palavras-Chave: Jurisdição constitucional; Controle de constitucionalidade; Modelo procedimentalista/discursivo; Democracia participativa; Processo constitucional.

Keywords: Constitutional Jurisdiction; Control of constitutionality; Proceduralist model/discursive; Participatory democracy; The constitutional process.

1

Bacharel em Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito Processual pelo Instituto de Educação Continuada da PUC Minas. Mestrando em Direito Processual pela PUC Minas. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito Processual Penal do Núcleo Acadêmico de Pesquisa. Advogado. E-mail: [email protected]

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2

Bacharel em Direito pela Milton Campos. Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Mestranda em Direito Processual pela PUC Minas. Advogada. E-mail: [email protected] PT

TU

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UT

272

1. Introdução No constitucionalismo atual, há uma crise de legitimidade do exercício coativo do poder/direito, que, para Habermas, só se obtém por meio de um processo de formação da opinião e da vontade que se presume racional. Nesse sentido, os cidadãos não podem limitar-se à condição de destinatários da normatividade estatal, mas devem passar à condição de seus coautores. Logo, a Constituição passa a ser concebida como um mecanismo de organização de procedimentos que garante o fluxo da comunicação entre argumentos para a justificação de atos estatais. Com efeito, a Teoria Discursiva do Direito procura demonstrar que sua legitimidade repousa em normas jurídicas cujas obrigações tanto a maioria quanto a minoria estejam dispostas a aceitar. Dessa feita, a atividade jurisdicional exercida pela Jurisdição Constitucional será objeto do presente estudo, seja pela via concentrada ou pela via difusa, sem se olvidar da forte influência exercida pelo Comunitarismo e a “Jurisprudência dos Valores” no seu desenvolvimento. Em seguida, o trabalho buscará demonstrar a adequação do modelo procedimentalista/discursivo de Jurisdição Constitucional aos anseios de um Estado Democrático de Direito, segundo o qual deve ser ela exercida em contraditório e por meio de um discurso de aplicação. Por fim, serão analisados alguns excertos do acórdão proferido na ADI 4277 e ADPF 132 (reconhecimento de união estável a casais homoafetivos) naquilo em que estão contribuindo para a construção ou desconstrução de um Estado Democrático de Direito.

2. Jurisdição Constitucional José Alfredo de Oliveira Baracho3 atribui ao trabalho de Hans Kelsen sobre a garantia TP

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jurisdicional da Constituição, também denominada de Justiça constitucional, a importância conferida nos últimos anos à questão da custódia da Constituição. Baracho afirma que, nesse trabalho, Kelsen se apóia nas experiências do Tribunal Constitucional da Áustria e na Constituição austríaca de 1920, cujo texto traz temas caros ao estudo do Processo Constitucional, tais como: jurisdição constitucional, objeto, critério, resultado e procedimento do controle jurisdicional de constitucionalidade.4 TP

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Nesse prisma, urge destacar que “a garantia jurisdicional da Constituição ou a Justiça constitucional pertence a um sistema de técnicas que têm como objetivo a correta aplicação da

3

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 89-154, 1° e 2° semestre 1999.

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TP

4

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 99, 1° e 2° semestre 1999. PT

273

Constituição”5 e que “as garantias são os meios que a técnica jurídica moderna desenvolveu em TP

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relação à regularidade dos atos estatais em geral.”6. TP

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Dessa feita, Baracho classifica as garantias em preventivas, enquanto tendentes a prevenir e impedir a realização de atos irregulares, e, por outro lado, em objetivas, porquanto apresentam acentuado caráter repressivo, tornando nulo ou anulável o ato praticado irregularmente.7 TP

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Durante o desenvolvimento de seu trabalho, Kelsen entendeu que a verificação de constitucionalidade deveria ser confiada a órgão independente de qualquer autoridade estatal, sendo a anulação de ato inconstitucional a principal garantia e o meio mais eficaz de preservação da Constituição.8 Por conseguinte, atribuiu a uma jurisdição ou Tribunal constitucional a TP

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competência para anular os atos inconstitucionais. Nas lições de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, a noção em torno da qualificada jurisdição constitucional depreende-se de estudos desenvolvidos no âmbito da teoria geral do processo constitucional.9 TP

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Nesse sentido, esse doutrinador define jurisdição constitucional como sendo “a atividade jurisdicional exercida pelo Estado objetivando tutelar o princípio da supremacia da Constituição e o de proteger os direitos fundamentais da pessoa humana nela estabelecidos. Assim, a classificada jurisdição constitucional visa a preservar o ordenamento jurídico-constitucional no julgamento dos casos concretos submetidos à apreciação do Estado por meio do processo, com isto obtendo a preeminência das normas constitucionais sobre as disposições das leis ordinárias.”.10 TP

PT

A definição ora colacionada traz firme a idéia de que o sentido da expressão jurisdição constitucional foi ampliado, denotando bem mais que o exame de matéria jurídico-constitucional cuja finalidade é realizar o controle de constitucionalidade das leis ordinárias e atos estatais que estejam em contrariedade aos preceitos constitucionais, buscando manter a supremacia da Constituição.

5

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 100, 1° e 2° semestre 1999.

TP

PT

6

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 100, 1° e 2° semestre 1999.

TP

PT

7

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 100, 1° e 2° semestre 1999.

TP

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8

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 100, 1° e 2° semestre 1999.

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9

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 43, 2010.

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10

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 43-44, 2010. TP

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274

Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias11 justifica esta ampliação no fato da percepção que a TP

PT

doutrina teve de que a consagração de direitos fundamentais nas Constituições não seria suficiente para implementá-los. Dessa feita, emergiu como necessária a criação de um coeso e eficiente sistema de garantias e mecanismos aptos a proteger e assegurar a efetividade daqueles direitos, impedindo sua transformação em meras expressões formais de aformoseamento do texto constitucional. Com efeito, é bem de ver que “esse sistema de proteção dos direitos fundamentais definiuse por meio das garantias procedimentais constitucionais, também chamadas de tutela constitucional do processo, tais como devido processo legal (contraditório, ampla defesa, fundamentação das decisões estatais respaldadas na reserva legal), recurso de amparo, recurso de proteção, recurso constitucional, ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, argüição de descumprimento de preceito fundamental, mandado de segurança, habeas corpus, habeas data, mandado de injunção, ação popular, dentro das especificidades de cada ordenamento jurídico-constitucional.”.12 TP

PT

Nessa entoada, coube a José Alfredo de Oliveira Baracho trazer a seguinte definição: “Jurisdição constitucional é a função exercida para a proteção e para a manutenção da supremacia constitucional. A tutela é dirigida fundamentalmente contra as ações consideradas como contrárias à Constituição, e que se qualificam de inconstitucionais”.13 TP

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Todavia, segundo Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias, foi Mauro Cappelletti quem difundiu a locução jurisdição constitucional da liberdade, no intuito “de designar mecanismos processuais dirigidos especificamente à tutela dos direitos fundamentais consagrados na Constituição e os órgãos jurisdicionais incumbidos de realizá-la”14, inclusive identificando jurisdição constitucional e TP

PT

justiça constitucional enquanto “função jurisdicional de tutela e atuação dos preceitos da Constituição, abrangendo o controle de constitucionalidade das leis e os mecanismos de tutela dos direitos de liberdade do ser humano”15. TP

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É bem de ver que o Brasil, a exemplo do que ocorre em Portugal, estabeleceu modalidades concomitantes de efetivação da jurisdição constitucional, a saber: jurisdição difusa e jurisdição concentrada.

11

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 44, 2010. TP

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12

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 44-45, 2010. TP

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13 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 2, ns. 3 e 4, p. 122, 1° e 2° semestre 1999. TP

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14

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 46, 2010. TP

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15

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 46, 2010. TP

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275

A partir da primeira, é possível afirmar que “o controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos é feito de forma concreta e incidental, por qualquer órgão jurisdicional, ou seja, a questão constitucional é conhecida e apreciada de ofício ou sob arguição das partes (exceção) em qualquer processo que estas iniciarem, mas tal controle limita-se ao caso específico em julgamento.”16. Contudo, na jurisdição concentrada “o mesmo controle de constitucionalidade é TP

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atribuído exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal, mediante provocação das pessoas legitimadas a tanto no texto constitucional, em processo próprio, cujo julgamento se insere no âmbito da competência originária daquele Tribunal, que declara a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo sob apreciação em tese, de forma que seu pronunciamento final possa ter eficácia para todos.”17. TP

PT

Com efeito, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias assevera que a coexistência desses dois modelos no sistema constitucional brasileiro permitem concluir que “no Brasil, a rigor, toda jurisdição é constitucional, pois os órgãos jurisdicionais, quaisquer que sejam, não só podem como devem apreciar e decidir as questões constitucionais suscitadas em qualquer processo, nos casos concretos levados à sua apreciação para julgamento”18 e, a partir daí, definir que todo órgão TP

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jurisdicional exerce, ou ao menos deveria exercer, jurisdição constitucional. Aliás, bastante inovadoras são as lições de Rosemiro Pereira Leal19, ao asseverar que a TP

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Jurisdição Constitucional “se faz pelo devido processo constitucional instituído pelo povo para validar, legitimar e eficacizar a atuação de direitos em todo o arcabouço jurídico do discurso constitucional.”. Nesse sentido, a “Jurisdição Constitucional, nas democracias plenas, tem seu controle de atuação pelo devido processo legislativo que é instituto jurídico de sustentação permanente do devido processo constitucional. Aliás, a própria constituição é produzida, nas democracias, com total observância do devido processo constitucional (devido, porque legislado pela parte legitimada ao Processo) como eixo de geração do texto constitucional como cláusula constituinte fundante dos fundamentos do paradigma da Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático.”.20 TP

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Nesse prisma, é preciso esclarecer que no paradigma democrático, “à funcionalização de todo o organograma estatal há de se cumprirem os conteúdos da jurisdição constitucional que se faz pela autoaplicabilidade imperativa de seu arcabouço de normas.”.21 TP

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16

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 45-46, 2010. TP

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17

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 47, 2010. TP

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18

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 47, 2010. TP

PT

19 PT

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 52, 2011.

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20 PT

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 53, 2011.

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21 PT

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 53, 2011.

276

Todavia, a Jurisdição Constitucional Brasileira, não obstante estar inserida em uma matriz disciplinar democrática, seus agentes vem expressando grande afeição à “Jurisprudência de Valores”22, conforme depreender-se-á no próximo capítulo. TP

PT

2.1 A Jurisdição Constitucional brasileira sob a influência do Comunitarismo e a “Jurisprudência de Valores” É bem de ver que a clássica separação entre as tarefas estatais, típica de um Estado Liberal absenteísta e sua redefinição no Estado Social, cuja tutela intervencionista foi sua característica marcante, desapareceu gradativamente. Nesse prisma, “o paradigma constitucional contemporâneo espera que a sociedade e Estado atuem em razão do princípio da subsidiariedade, de forma a reconhecer/impor à autoridade estatal funções supletivas diante das insuficiências das instituições/associações privadas.”.23 TP

PT

Outrossim, Álvaro Ricardo de Souza Cruz24 afirma que nessa sociedade não se admite o TP

PT

emprego de medidas coercitivas pelo Estado fundadas exclusivamente no ritual do formalismo positivista e tampouco se tolera a discricionariedade estatal, sobretudo a judicial. Com efeito, a ponderação de valores surgiu como solução última e definitiva para o dilema positivista, que se mostrava cada vez mais incapaz a fazer frente aos progressos científicos e às mudanças

sociais.

Sustentava-se

na

perspectiva

da

racionalidade

do

“princípio

da

proporcionalidade” (ponderação relativa) e na sacralidade substantiva do princípio vetor da dignidade da pessoa humana (ponderação absoluta). Dessa feita, assevera Souza Cruz25 que ambas as formas de ponderação de valores, fosse TP

PT

pela “Jurisprudência de Valores” das Cortes Constitucionais Europeias, fosse pela teoria alexyana da argumentação, passaram a receber severas críticas, especialmente no final da década de 1980. Entre elas é possível destacar algumas: a) desnaturação do princípio da separação dos poderes; b) limitação da supremacia constitucional, pela transformação dos Tribunais Constitucionais em Assembleias Constituintes; c) desnaturação dos direitos fundamentais e da unidade normativa da Constituição; d) politização do Judiciário, por meio de decisões utilitárias de custo/benefício sociais; e) a decisão tornara-se campo para arbítrio puro, de preferências pessoais dos juízes; f) irracionalidade metodológica. Nessa esteira, não foram poucas as objeções levantadas contra a “Jurisprudência dos Valores” e o Comunitarismo. No entanto, é de bom alvitre trazer a lume o que representam essas 22 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 196, 2004.

TP

23 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 194, 2004.

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24 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 194, 2004.

TP

TP

25 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 195, 2004.

277

linhas de pensamento e como elas se fizeram/fazem presentes no seio da Jurisdição Constitucional brasileira. De plano, cumpre asseverar que “o comunitarismo rejeita a visão liberal de um pluralismo universalista, calcado em visões particulares sobre vida ‘vida digna’ e adota uma concepção cultural de uma coletividade em particular. A determinação material desse conteúdo moral de valores comunitários surgiria por meio de um amplo diálogo entre os interessados individualmente e a comunidade.”.26 TP

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Souza Cruz27 destaca que, nas teses vindas do estrangeiro, os comunitaristas rejeitam o TP

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Estado Liberal, neutro, mínimo, garantidor de liberdades e limitador negativo do arbítrio estatal, focados em uma noção de “soberania pública” em que, garantidos os direitos positivos do Welfare State, seriam ponderados os direitos individuais frente às responsabilidades sociais. Outrossim, cobram frente ao Estado um conjunto de ações afirmativas estatais em defesa de valores familiares, econômicos e culturais de uma dada comunidade. No entanto, a tarefa de uma justiça distributiva não é encargo exclusivamente estatal, mas compartilhado com outras instituições sociais tais como a família, a igreja e o empresariado. Neste sentido, a aplicação do Direito dar-se-ia em respeito à pluralidade de comunidades, pautando-se por uma moral comunitária em razão de uma responsabilidade social, com os valores densos da comunidade, enquanto virtude cívica republicana.28 TP

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Logo, urge destacar que “o pensamento comunitário adota, portanto, uma teoria constitucional calcada numa estrutura axiológica de decisões políticas/morais de uma comunidade. (...) essas idéias compartilhadas na sociedade e cristalizadas na Constituição, impõem uma ação afirmativa do Estado em seu favor.”.29 TP

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Noutra banda, Souza Cruz aponta importante distinção entre o comunitarismo americano e o comunitarismo brasileiro. “Ao contrário do comunitarismo americano, ligado às noções cooperativas entre as esferas múltiplas na sociedade, de modo a compartilhar com o Estado a tarefa de proteger o bem-estar social, o comunitarismo brasileiro coaduna-se melhor com uma concepção estatizante, coletiva e intervencionista, ‘jogando nas costas’ do Estado a tarefa de promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Assim, a redução de desigualdades econômicas e regionais é tratada como função essencial do Estado brasileiro.”.30 TP

26 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 154, 2004.

TP

27 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 155, 2004.

TP

28 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 155, 2004.

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29 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 157, 2004.

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30 TP

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SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 187, 2004.

278

Ou seja, o “comunitarismo neo-republicano” nacional tem suas bases ligadas a um constitucionalismo weimariano jamais concretizados em benefício do povo brasileiro, ao contrário das concepções americana e alemã. Com efeito, trabalhos de Canotilho, Jorge Miranda, Marcelo Caetanto, José Carlos Vieira de Andrade, em Portugal, e Pablo Lucas Verdú e Perez Luño, na Espanha, influenciaram significativamente o comunitarismo nacional, na perspectiva de que a Constituição se define como uma ordem concreta de valores.31 TP

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Dessa feita, o princípio da dignidade da pessoa humana foi alçado ao status de metavalor ou elemento agregador da unidade axiológica da Constituição, contribuindo para a consagração de um núcleo indisponível/absoluto dos direitos fundamentais pelos comunitaristas nacionais.32 TP

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Por conseguinte, é em torno da noção de dignidade de pessoa humana que os comunitaristas procuram conferir uma proteção especial e de cunho substantivo aos direitos fundamentais, tal como ocorre com as Cortes Constitucionais européias. Nesse diapasão, irrompe ao lado da matriz substantiva da dignidade da pessoa humana o “princípio da proporcionalidade” e a ponderação de valores como procedimento metodológico de afirmação de direitos fundamentais.33 TP

PT

Nesse sentido, são inúmeros os casos em que o Supremo Tribunal Federal tem incorporado em sua hermenêutica o princípio da ponderação de valores na decisão de casos a ele submetidos.34 TP

PT

Ademais, cumpre asseverar que o empenho dos comunitaristas em extinguir o Supremo Tribunal Federal e colocar em seu lugar uma Corte Constitucional encontra justificativa no fato deles acreditarem que esta é a única instituição capaz de guardar os valores constitucionais e assumir a defesa da Constituição, tornando-se instrumento de inclusão social. Aliás, por tal razão saudaram com tanto entusiasmo as novidades trazidas pelas Leis n. 9.756/98, 9.868/99 e 9.882/99, vez que reforçaram o modelo concentrado brasileiro em detrimento do controle difuso.35 TP

31

PT

PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 189, 2004.

TP

32 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 189, 2004.

TP

33

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 190, 2004.

TP

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34

Em substanciosa pesquisa acerca da jurisdição constitucional, Álvaro Ricardo de Souza Cruz traz em sua obra Jurisdição Constitucional Democrática, uma série de exemplos da utilização da “jurisprudência dos valores” pelo Supremo Tribunal Federal: Ponderação de valores como mecanismo de restrição de direitos (ADIn n. 855-2, publicado no DJU de 01.10.93), como limite ao poder normativo estatal (ADIn n. 1.158-8), na razoabilidade dos reajustes das mensalidades escolares (ADIn n. 319-DF), no exame de DNA em investigação de paternidade (Habeas Corpus n. 71.373-4-RS e76.060-1-SC) e em matéria criminal. TP

PT

TP

35 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 191, 2004.

279

2.2 O modelo procedimentalista/discursivo de Jurisdição Constitucional A Teoria Discursiva de Habermas sustenta que o controle de constitucionalidade das leis compõe o discurso de aplicação de normas, desde que exercido pelo Judiciário.36 TP

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Para o autor, esse controle de constitucionalidade é essencialmente concreto, pois surge da adequação das normas às circunstâncias de um caso concreto. É nesse prisma que “a esfera pública jurídica, por meio de cidadãos que aduzem a pretensão a direitos na Justiça, transforma os mesmos em co-autores do Direito.”.37 TP

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Dessa feita, cumpre realizar o resgate de alguns conceitos indispensáveis à compreensão do modelo procedimentalista de jurisdição constitucional concebido por Habermas. Habermas se preocupa em todo o instante com a legitimidade do Direito. Legitimidade esta que nem a teoria positivista e tampouco os comunitaristas foram capazes de solucionar, já que o problema não está em se questionar a correção/adequação de uma técnica hermenêutica, mas sim no risco de o subjetivismo, elemento presente no critério da “ponderação de valores”, “descambar para um decisionismo judicial arbitrário, em franca violação à democracia.”.38 TP

PT

Logo, Habermas, segundo Souza Cruz, afirma que: “A legitimidade do direito apóia-se, em última instância, num arranjo comunicativo: enquanto participantes de discursos racionais, os parceiros do direito devem examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia encontrar o assentimento de todos os possíveis atingidos.”.39 TP

PT

Dessa forma, Habermas aponta a moral pós-convencional como um procedimento para a avaliação imparcial das questões difíceis, fundado na noção de reciprocidade, de maneira a preservar o surgimento de distintos projetos de vida.40 TP

PT

Para Habermas, “o homem é capaz de superar os limites da moralidade convencional, ou seja, capaz de superar/filtrar seus limites culturais/valorativos pessoais por meio de princípios universais.”.41 Todavia, urge asseverar que esses valores universais são obtidos por meio de um TP

PT

plano geral de fundamentação da normatização jurídica, como o discurso de fundamentação e de aplicação do Direito.42 TP

PT

No entanto, essas formas de discurso serão trabalhadas em outra oportunidade. Porém, urge destacar que o princípio da moralidade se torna o “elemento essencial ao processo de

36 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 323324, 2010. TP

PT

37 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 247, 2004.

TP

38 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 210, 2004.

TP

39 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 213, 2004.

TP

40 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 213, 2004.

TP

41 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 216, 2004.

TP

TP

42 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 216, 2004.

280

normatização racional do direito. Ele ‘alivia’ o indivíduo do peso cognitivo da formação do juízo moral próprio e impede que, tanto a legislação quanto a aplicação do Direito se processem com suporte em valores próprios dos legisladores e magistrados.”.43 TP

PT

Ademais, outra particularidade da teoria discursiva/procedimentalista de Habermas “é a essencialidade do contraditório, vez que um discurso não se produz monologicamente, ou seja, exige mais de um participante.”.44 Ainda é de se ver que “no discurso de aplicação, o processo TP

PT

judicial prepara-se, inclusive, para a ação estratégica dos participantes, visto que a decisão, a despeito de sua racionalidade, contrariará os interesses de uma das partes.”.45 TP

PT

Dessarte, “o contraditório é elemento essencial da dimensão pragmática do processo na obtenção da ‘resposta correta’ ou da ‘norma ideal’. Ele compõe a racionalidade procedimental que afasta uma visão solipsista da Teoria da Decisão.”.46 TP

PT

Com efeito, Habermas estabelece uma conexão entre os direitos humanos e a gênese democrática do Direito, impondo ao juiz que, na aplicação do Direito, trabalhe com um discurso organizado em contraditório, concedendo simétrica paridade de participação às partes.47 TP

PT

Habermas concebe “o judicial review como mecanismo fundamental para o surgimento de uma cidadania ativa, em defesa do ‘princípio da democracia’ e dos direitos fundamentais.”.48 TP

PT

O “princípio da democracia” é indispensável à formação comunicativa do poder político, pois garante ao discurso de fundamentação abertura ao emprego de argumentos pragmáticos e o uso ético-político da razão prática. Nessa esteira, “a soma de tais argumentos é essencial para o exercício discursivo da autonomia política e para a composição de normas jurídicas de constituição, definidoras de competências, atribuições e procedimentos para a canalização da vontade da comunidade.”.49 TP

PT

No entanto, é importante que, para a argumentação pragmática e ético-política não se desnaturar em considerações puramente teleológicas, sejam traduzidas à linguagem jurídica, compatibilizadas simultaneamente com o “discurso jurídico” e o “princípio da soberania popular”.50 TP

PT

Esse último objetivo exige que a legislação expresse a vontade da totalidade dos cidadãos, convertendo estes de meros destinatários da norma em seus co-autores.

43 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 214, 2004.

TP

44 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 246, 2004.

TP

45 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 246, 2004.

TP

46 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 246, 2004.

TP

47 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 246, 2004.

TP

48 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 247, 2004.

TP

49 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 220, 2004.

TP

TP

50 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 220, 2004.

281

Contudo, é preciso destacar que o “princípio da democracia” somente será constituído na hipótese de a argumentação não-moral pautar-se pelo Direito. Mas a pergunta que se faz é a seguinte: Que direitos seriam estes? Habermas responde a indagação com os direitos fundamentais, haja vista a sua pretensão de universalidade, enquanto capazes de passar no teste de reciprocidade imposto pelo princípio da moralidade.51 TP

PT

Nesse instante, “o princípio da democracia (participativa)” se encontra ao lado do “princípio da moralidade”, permitindo que se extraia a legitimidade da legalidade. Com efeito, “o discurso de aplicação viabiliza uma decisão imparcial, a partir de ações comunicativas ou estratégicas, por meio de um mecanismo de depuração: o processo. Logo, afasta-se da argumentação moral, que deve sustentar-se, exclusivamente, na ação comunicativa dos falantes.”.52 TP

PT

Ademais, “o discurso de aplicação (jurisdição) afasta-se do discurso de fundamentação (legislação), em função das “formas de comunicação e dos potenciais de argumentos correspondentes”. Essa assertiva é feita por Habermas, ao asseverar que “do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as competências de instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam, resulta da distribuição das possibilidades de lançar mão de diferentes tipos de argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes que estabelecem o modo de tratar esses argumentos.”.53 TP

PT

É de se ver que, no discurso de fundamentação, o “agir comunicativo” é indispensável para a racionalidade e legitimidade da normatização jurídica. No entanto, o processo legislativo não é capaz de, por si só, excluir todo “agir estratégico” que se manifesta por lobbies ou grupos de pressão, e caso a influência de fatores escusos tais como o dinheiro ou a burocracia prevaleçam sobre a solidariedade e racionalidade argumentativa, o discurso de fundamentação será desnaturado, tornando-se incapaz de conferir legitimidade à legalidade.54 TP

PT

Contrariamente ao processo legislativo, no discurso de aplicação, o processo judicial permite/depura as ações estratégicas das partes envolvidas, sendo a imparcialidade neste caso independente do “agir comunicativo”. Todavia, no discurso de fundamentação, o “agir comunicativo” é seu pressuposto de validade.

51 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 221, 2004.

TP

52 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 229, 2004.

TP

53

HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 239, 2010. TP

PT

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54 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 229, 2004.

282

Nessa esteira, Habermas defende que a jurisdição exerce função distinta daquela exercida pelo legislador. Logo, não há que se falar em legislador concorrente ou um Poder Constituinte Originário anômalo! Em outras palavras, “no controle de constitucionalidade das leis, o Judiciário deixa de aplicar uma norma ordinária, válida prima facie, para aplicar diretamente a norma constitucional ao caso concreto.”.55 Nesse sentido, ele não está autorizado a proceder a um novo discurso de TP

PT

fundamentação. Pelo contrário, “pode justificar a não aplicação da norma ordinária, estritamente por meio do ‘princípio do discurso’, no qual encontra-se também o ‘princípio da moralidade’.”.56 TP

PT

Nesse sentido, “a jurisdição afasta a norma pelo fato de a mesma ter-se pautado por argumentos

pragmáticos/ético-políticos

não

devidamente

depurados

pelo

‘princípio

da

57

democracia’, ou seja, pela ilegitimidade da norma jurídica.”. TP

PT

De todo o exposto, percebe-se que Habermas pugna contra qualquer postura que legitime ato discricionário decorrente dos poderes estatais, tornando-os imunes ao judiciário, inviabilizando os espaços vazios da jurisdição. Nesse sentido, haja vista que a irracionalidade metodológica e o decisionismo são capazes de transformar a atividade jurisdicional em Poder Constituinte Originário, cumpre analisar alguns hard cases julgados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, a fim de verificar seu grau de conformidade

com

a

Jurisdição

Constitucional

alinhada

com

o

modelo

procedimentalista/discursivo de Habermas.

2.3 Análise de hard cases julgados pelo Supremo Tribunal Federal à luz da matriz disciplinar do Estado Democrático de Direito Em acórdão publicado pelo DJe em 14.10.2011, o Supremo Tribunal Federal julgou procedentes, por unanimidade, a ADI 4277 e a ADPF 132, reconhecendo as mesmas regras e conseqüências da união estável heteroafetiva à união estável homoafetiva. Todavia, não é objetivo do presente trabalho perscrutar os fundamentos que encaminharam a decisão neste ou naquele sentido. O que se busca aqui é aferir a conformidade do processo de tomada de decisões pela Jurisdição Constitucional brasileira com o nosso ordenamento jurídico (normas constitucionais e infraconstitucionais), atestando o grau de legitimidade democrática das soluções atribuídas aos hard cases postos sob julgamento. E nesse sentido, não obstante a Constituição da República apregoar a submissão de todas as funções estatais ao princípio do Estado Democrático de Direito, o Ministro Luiz Fux expressou 55 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 230, 2004.

TP

56

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 230-231, 2004. TP

PT

TP

57 PT

SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, p. 231, 2004.

283

certa afeição pelo subjetivismo ou discricionariedade, ao assim discorrer em seu voto: “(...) Mas também costumo dizer que, por debaixo de nossa toga - não é Ministro Ayres? – também bate o coração de um homem. E não é por outra razão que a própria sentença significa aquilo que o juiz sentiu, aquilo que é o sentimento do juízo.”58. TP

PT

Ora, segundo Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias a jurisdição “é atividade-dever do Estado, prestada pelos órgãos competentes indicados no texto da Constituição, somente exercida sob petição da parte interessada (direito de ação) e mediante a garantia do devido processo constitucional. Em outras palavras, a jurisdição somente se concretiza por meio de processo instaurado e desenvolvido em forma obediente aos princípios e regras constitucionais, dentre os quais avultam o juízo natural, a ampla defesa, o contraditório e a fundamentação dos pronunciamentos jurisdicionais, baseada na reserva legal, com o objetivo de realizar imperativa e imparcialmente os preceitos das normas componentes do ordenamento jurídico.”.59 Com efeito, TP

PT

essa é a única forma de afirmar a legitimidade democrática dos pronunciamentos jurisdicionais feitos nos processos. Para o referido autor, toda “a manifestação de poder do Estado, exercido em nome do povo, que se projeta no pronunciamento jurisdicional (e, também, no pronunciamento legislativo) tem de ser realizada sob rigorosa disciplina constitucional principiológica, qualificada como devido processo constitucional. (...) Com essa metodologia, afasta-se qualquer subjetivismo ou ideologia do agente público decisor (juiz), investido pelo Estado do poder de julgar, sem espaço para a discricionariedade ou a utilização de hermenêutica canhestra fundada no prudente ou livre arbítrio do julgador ou prudente critério do juiz, incompatível com os postulados do Estado Democrático de Direito”.60 TP

PT

Noutro giro, amparado pela leitura que faz da obra “Freedom’s Law: the moral reading of the American Constitution” de Ronald Dworkin, o mesmo Ministro Luiz Fux afirma que o tribunal, enquanto “governo”, deve suprir as lacunas deixadas pelo legislador. Em outras palavras, o judiciário tem ampla liberdade para proceder a um novo discurso de fundamentação. Entretanto, tudo isso ocorre aos arrepios do modelo procedimentalista de Jurisdição Constitucional, pois, conforme assevera Habermas: “O fato de o Tribunal constitucional e o legislador político ligarem-se às normas processuais não significa uma equiparação concorrente da justiça com o legislador. Os argumentos legitimadores, a serem extraídos da Constituição, são

58 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJe n° 198, 13 de outubro de 2011. TP

PT

59

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 32, 2010. TP

PT

60

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 36, 2010. TP

PT

284

dados preliminarmente ao Tribunal constitucional, na perspectiva de um legislador, que interpreta e configura o sistema dos direitos, à medida que persegue suas políticas.”.61 TP

PT

Com efeito, no controle de constitucionalidade das leis, o Judiciário não está autorizado a construir novos argumentos pragmáticos ou ético-políticos na sua argumentação, sob pena de se tornar um legislador concorrente, o que é um absurdo! Mas nem só de críticas ao exercício da jurisdição pelo Supremo Tribunal Federal se desenvolve o presente trabalho científico. É bem de ver que a Ministra Carmen Lúcia foi de uma lucidez ímpar, ao asseverar que “este é um tribunal que tem a função precípua de defender e garantir os direitos constitucionais”.62 TP

PT

Outro ponto digno de encômios à Ministra Carmem Lúcia, é que ela, ao contrário do Ministro Luiz Fux, retira da discussão argumentos pragmáticos e ético-políticos, conforme se depreende no excerto de seu voto: “(...) Faço-o enfatizando, inicialmente, que não se está aqui a discutir, nem de longe, a covardia dos atos, muitos dos quais violentos, contrários a toda forma de direito, que a manifestação dos preconceitos tem dado mostra contra os que fazem a opção pela convivência homossexual. Contra todas as formas de preconceito, contra quem quer que seja, há o direito constitucional. (...) E, reitere-se, todas as formas de preconceito merecem repúdio de todas as pessoas que se comprometam com a justiça, com a democracia, mais ainda os juízes do Estado Democrático de Direito.”63. TP

PT

É esse o discurso de aplicação pugnado pela teoria procedimentalista da Jurisdição Constitucional, em que se viabiliza uma decisão imparcial a partir de ações comunicativas ou estratégicas

depuradas

pelo

processo,

afastando

a

argumentação

moral,

sustentada

exclusivamente na ação comunicativa dos falantes. Nesse sentido, note-se que o devido processo constitucional, enquanto “metodologia normativa que, em grau máximo, informa e orienta o processo jurisdicional, o processo legislativo e o processo administrativo, fundamentos pelos quais podemos falar em processo constitucional legislativo, processo constitucional jurisdicional e processo constitucional administrativo”64, vem TP

PT

ganhando espaço no exercício da jurisdição pelo Supremo Tribunal Federal, cuja atividade jurisdicional deve ser prestada de forma vinculada ao Estado Democrático de Direito.

61

HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 324, 2010. TP

PT

62 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJe n° 198, 13 de outubro de 2011. TP

PT

63

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJe n° 198, 13 de outubro de 2011. TP

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64

DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, p. 35, 2010. TP

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285

3. Conclusão É de se ver que um controle concentrado de constitucionalidade das leis vem se fortalecendo cada vez mais no modelo misto brasileiro. Todavia, o modelo difuso é o mais adequado ao projeto constituinte brasileiro, rumo à consolidação de um Estado Democrático de Direito65, haja vista que ele possibilita ao juiz por meio de um discurso de aplicação das normas, TP

PT

em que as partes agem estrategicamente, a produção de uma decisão fruto de uma racionalidade procedimental que afasta a visão solipsista da Teoria da Decisão. Nesse sentido, é na aplicação do Direito que o juiz deverá trabalhar com um discurso organizado em forma contraditória, em que se concebe às partes a simétrica paridade de participação na construção do provimento. Com efeito, no âmbito das sociedades marcadas pelo pluralismo de visões do mundo, atribuir a um único órgão a função de proteger as normas constitucionais soa um tanto quanto autoritária, pois a marca desse tipo de sociedade complexa é o dinamismo em que se dão as relações no mundo da vida. Portanto, atribuir às decisões proferidas em controle concentrado o caráter erga omnes, inviabilizando futuras discussões sobre o sentido da Constituição é uma falácia que traz consigo ranços do autoritarismo. Para finalizar este trabalho, nunca é demais lembrar que a Jurisdição Constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal, enquanto atividade-dever do Estado, deve respaldar-se pela principiologia exposta na Constituição da República/88, sob pena de se atentar contra os postulados do Estado Democrático de Direito, sobretudo contra a soberania do povo brasileiro. Dessarte, imperiosa a conclusão de que a atividade jurisdicional prestada pela Jurisdição Constitucional brasileira deve ser conduzida por um devido processo constitucional, sem o qual o projeto constituinte democrático brasileiro jamais será implementado, permitindo que a sociedade caminhe a reboque das decisões tomadas pelo “diálogo entre especialistas”.

Referências bibliográficas BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do processo constitucional. Revista da Faculdade Mineira de Direito. v. 2, ns. 3 e 4, p.89-154. Belo Horizonte, 1º e 2º sem. 1999. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 Distrito Federal. Relator: Min. Ayres Britto. DJe n° 198, 13 de outubro de 2011. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 Rio de Janeiro. Relator: Min. Ayres Britto. DJe n° 198, 13 de outubro de 2011.

TP

65

GOMES, David Francisco Lopes. Projeto Constituinte, Hermenêutica e Jurisdição Constitucional. Constituição e Processo: A contribuição do Processo ao Constitucionalismo Democrático Brasileiro. Coords. Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Felipe Daniel Amorim Machado. Belo Horizonte: Del Rey, p. 197-207, 2009. PT

286

BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. GOMES, David Francisco Lopes. Projeto constituinte, hermenêutica e jurisdição constitucional. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coords.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.197-207. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v. 1, 2. ed. revista pela Nova Gramática da Língua Portuguesa. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010. LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 10ª. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Forense, 2011. SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

287

O sistema difuso de controle de constitucionalidade no Brasil e em Portugal: uma análise comparativa Isabela Lessa de Azevedo Pinto Ribeiro1 TP

PT

2

João Luiz Lessa de Azevedo Neto TP

PT

Resumo

Abstract

Para garantir a supralegalidade da constituição é preciso que exista um controle de compatibilidade das leis com a Constituição. Tanto no Brasil como em Portugal, tal controle é feito por um sistema misto e complexo, contudo, enfocar-se-á o controle difuso, que é aquele pelo qual todo e qualquer juiz, diante do caso concreto e de modo incidental, pode decidir acerca da constitucionalidade de determinada norma, gozando tal decisão de eficácia inter partes e efeitos ex tunc (retroativos). No Brasil foi acolhido já na primeira constituição republicana e em Portugal, por influência da experiência da brasileira, adotou-o junto com a primeira constituição republicana de 1911. No Brasil da decisão proferida em sede de controle difuso caberá Recurso Extraordinário para o STF, após o esgotamento da instâncias ordinárias. Havendo prequestionamento e repercussão geral o STF poderá declarar a inconstitucionalidade da lei, mas a suspensão da execução da lei é da esfera de competência do Senado Federal. Em Portugal, o Tribunal Constitucional tem uma atuação como juiz dos juízes em matéria constitucional, pois da decisão da questão de constitucionalidade incidentalmente suscitada caberá recurso para o Tribunal. O regime português apresenta-se como original, pois como é dado aplicar ou desaplicar as leis de acordo com o sistema difuso, mas há um procedimento que permite um modo de uniformização do entendimento constitucional através da passagem do difuso para o abstrato. No Brasil há quem defenda uma objetivização do controle de constitucionalidade, com uma desconsideração pelo nosso modelo tradicional em que compete ao Senado Federal a suspensão de execução da lei, colocando em cheque o princípio da harmonização.

To guarantee the constitutional supremacy it's necessary to control the compatibility of the laws with the constitution. Brazil and Portugal have mixed and complex system of control of constitutionality, in this paper we aim to analyse the judicial review, as the power given to any judge to decide over the constitutionality of any legal norm, deciding the issue with a biding decision to the litigants and ex tunc effects. The judicial review system was established in the Brazilian first republican constitution of 1891, the Brazilian experience influenced the first Portuguese republican constitution of 1911. In Brazil the litigants can appeal of the decision of constitutionality to the STF (Supremo Tribunal Federal), the STF can declare de unconstitutionality of the law but only the Senate can suspend the execution of the law with biding effects to all. In Portugal the Tribunal Constitutional is judge of the judges in constitutional matters, judging any appeal with constitutional subject. In Portugal there is the judicial review but it's also possible to start an abstract control of constitutionality based on the judicial review. In Brazil there are people defending the objectivation of the judicial review, not taking in account the traditional system in which competes to the Federal Senate to suspend the execution of the laws, which might affect the system of check and balances in Brazil.

Palavras-Chave: Controle de constitucionalidade difuso; Jurisdição constitucional luso-brasileira; Estudo comparativo.

Keywords: Judicial review; Constitutional jurisdiction in Brazil and Portugal; Comparative law.

1

Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Professora universitária. Advogada. E-mail: [email protected] TP

PT

TP

2

Bacharelando da Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista de Iniciação Científica do PIBIC-CNPq-FACEPE. E-mail: [email protected] PT

288

1. Controle de constitucionalidade: uma introdução Inicialmente é de se destacar a noção de que a Constituição é o ápice do sistema normativo, a lei que goza de supremacia, ela é, conforme destaca Pinto Ferreira, “pedra angular em que se assenta o moderno direito político3”, Contudo, convém destacar que só tem respaldo esta TP

PT

afirmação se houver instrumentos aptos a salvaguardar a observância dos ditames constitucionais em todos os atos normativos que surjam no ordenamento jurídico. No Brasil, destaca Nelson Saldanha, o constitucionalismo foi assimilado e convertido em ideal e em sua vertente liberal identifica-se com a própria noção de Estado de Direito4. É possível TP

PT

afirmar que prever meios de fazer o controle de constitucionalidade das leis é uma das características

do

constitucionalismo5. TP

PT

Pois,

seria

descabido

falar

em

controle

de

constitucionalidade se não estivéssemos diante de uma Constituição escrita, rígida6, que elenque TP

PT

direitos e liberdades fundamentais. O controle hierárquico das normas é uma necessidade de higidez, harmonia e coerência dos ordenamentos jurídicos cujas leis constitucionais gozam de superioridade, assim ele decorre diretamente da aplicação do princípio de constitucionalidade das leis. Existem duas grandes matizes- ou modelos- de controle de constitucionalidade que surgiram em locais e em situações jurídico-históricas diferentes. Aponta-se a existência de um modelo difuso ou americano e de um modelo concentrado ou austríaco de controle de constitucionalidade. Convém, desde logo, destacar que tal separação é esquemática e que do ponto de vista prático existe uma tendente aproximação entre ambos7. TP

PT

O primeiro é marcado pela possibilidade de judicial review estabelecendo que todo juiz é juiz também da constitucionalidade das leis, assim para decidir um caso concreto o juiz teria que decidir sobre a constitucionalidade das leis aplicáveis, tendo a constituição como parâmetro supralegal e vinculativo da lei. Este modelo vai ser impulsionado principalmente pela jurisprudência da Suprema Corte norte-americana8 que a partir do julgamento do caso Marbury v. Madison estabeleceu TP

3

PT

PT

FERREIRA, Luiz Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 6.ed. Saraiva, São Paulo, 1983, p.90.

TP

4 PT

SALDANHA, Nelson. Formação da teoria constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.219.

TP

5

DIPPEL, Horst. Constitucionalismo moderno. Introducción a una Historia que necesita ser escrita. In: Historia Constitucional (revista electrónica), n. 6, 2005. Disponível em:. Acesso em: 31 out 2011. TP

PT

TU

UT

TU

UT

6

Maurice Duverger destaca com clareza que “esta superioridade da Constituição não se verifica em todos os países. Para que ela exista é antes de mais necessário que as disposições da Constituição não possam ser modificadas pelo Parlamento.” DUVERGER, Maurice. Os grandes sistemas políticos. Coimbra: livraria Almedina, 1985, p.175. TP

PT

7

Ocorre, em verdade que vários estados combinam os dois modelos de controle de constitucionalidade, embora em alguns casos seja visível a prevalência tendencial de um ou outro modelo. MAUGÜÉ, Christine; STAHL, Jacques-Henri. La question prioritaire de constitutionnalité. Paris: Dalloz, 2011, p. 7.

TP

PT

8

“Les grandes étapes du developpement du judicial review ne son pas, comme em France, des réformes constitutionnelles, mais des décisions de la Cour, qui fixe elle-même les limites de sa propre jurisdiction.”HAMON, Francis; WEINER, Céline. La justice constitutionnelle en France et à l'étranger. Paris: LGDJ, 2011, p. 60. TP

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289

gradativamente os contornos de um julgamento de constitucionalidade incidental e difuso em relação a um caso litigioso concreto, a questão da constitucionalidade assume ares eminentemente prejudiciais, devendo ser decidida para que se possa julgar o caso, a partir da legislação aplicável, isto implica dizer: constitucionalmente adequada. O segundo modelo, baseado notadamente nas concepções de Hans Kelsen, prescreve um controle abstrato de constitucionalidade, feito não em relação a um caso concreto, mas tendo a própria norma de maneira abstrata como critério. Tal controle é exercido de modo centralizado por uma corte constitucional criada unicamente com este objetivo. Assim, resta escorreito destacar que o controle de constitucionalidade das leis tem por finalidade precípua a salvaguarda da condição de supremacia da Constituição. Pois, de nada adiantaria dizer que “a lei constitucional é um texto superior a todos os outros, que derivam dele e dele tiram sua validade9” se não existissem mecanismos aptos a assegurar esta superioridade. TP

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No presente trabalho, pretendemos fazer uma comparação entre o controle difuso de constitucionalidade nos direitos brasileiro e português, notando a existência de influências recíprocas na matéria e, em um contexto de aproximação de modelos de controle de constitucionalidade, apontar as soluções apresentadas em cada país.

2. Controle Difuso de Constitucionalidade: noções apriorísticas O Controle difuso, conforme destacado, tem sua origem histórica no decisum da Suprema Corte Norte-americana, no qual o Juiz John Marshall no caso Marbury v. Madison decidiu que a Constituição gozava de uma condição de supremacia e era parâmetro de adequação para todos os atos normativos produzidos no ordenamento jurídico. É mister salientar que nos EUA o controle de constitucionalidade está intrinsecamente ligado a mantença do pacto federativo, haja vista que no modelo de federação centrípeta adotado por lá há uma ampla e autônoma produção legislativa pelos estados-membro e sem um controle que garantisse uma harmonia mínima e um elo que salvaguarde a unidade, o próprio pacto federativo poderia restar fragilizado. O termo difuso remete ao fato de que todo e qualquer juiz exerce controle de constitucionalidade ao julgar um caso concreto. Inexiste meio processual especifico e próprio para provocar o exame de constitucionalidade da lei, pois este controle ocorre como mero incidente dentro de um processo que está em curso. Assim, tal meio de controle de constitucionalidade é difuso e se configura como o meio pelo qual o juiz, diante do caso concreto e de modo incidental, decide acerca da constitucionalidade de

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9 PT

DUVERGER, 1985, p.5.

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determinada norma, gozando tal decisão de eficácia inter partes e efeitos ex tunc (retroativos). Isto, como corolário inexpurgável do sistema de nulidades vigente no ordenamento jurídico. Este modelo diferencia-se do controle abstrato justamente pela característica que lhe é inerente de atribuir ao magistrado ou ao tribunal o poder de declarar, na apreciação do caso concreto, em que há interesse subjetivo em pauta, a inconstitucionalidade de ato normativo do poder público, de modo incidental, de maneira a não aplicar a lei impugnada ao caso concreto. No Brasil, sob forte influxo do constitucionalismo norte-americano foi acolhida já na primeira constituição republicana o controle difuso, ou por via de exceção. Sistemática de controle que foi mantida em todas as Constituições brasileiras. Em Portugal, por influência não apenas da experiência da Suprema Corte norte-americana, mas, também da experiência da Constituição brasileira de 1891, adotou-se junto com a primeira constituição republicana de 1911 o modelo de controle difuso de constitucionalidade. Em que pese esta tradição de controle difuso nos dois países, é de se ver que atualmente ambos contam também com um sistema de concentrado de constitucionalidade, possuindo o que se pode denominar de sistema complexo de controle. Neste ponto é de se destacar ainda que existe uma tendencial aproximação entre os dois sistemas de controle de constitucionalidade10. Seja com a adoção dos dois modelos em vários TP

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países, seja com uma objetivização e, de certo modo, uma abstrativização do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude e a preocupação em resguardar o valor da constituição tem levado a uma evolução convergente dos dois modelos, na medida em que procura-se assegurar um paradigma garantístico e constitucionalmente adequado11-12. TP

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3. Algumas notas sobre o controle difuso no Brasil O controle de constitucionalidade brasileiro surge sob o modelo difuso e judicial, com a previsão na primeira Constituição republicana em 1891, sob inspiração norte-americana. O sistema de controle difuso foi mantido e incrementando paulatinamente com a introdução de novos elementos por todas as Constituições posteriores.

10 PT

HAMON; WEINER, p. 17.

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11 PT

CORREIA, Fernando Alves. Direito constitucional: a justiça constitucional. Coimbra: Almedina, 2001, p. 49.

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12

Sintomático desta convergência de modelos ou melhor desta preocupação em se reforçar os mecanismos de controle de constitucionalidade é a reforma constitucional de 23 de julho de 2008 operada na França que veio a estabelecer um controle a posteriori por via de exceção naquele país, ao lado do tradicional controle a priori exercido pelo Conseil constitutionnel. Esta reforma entrou em vigor em março de 2010 e transformou mesmo a natureza do Conseil constitutionnel que se transformou em uma instância verdadeiramente jurisdicional para conhecer de questions prioritaires de constitutionnalité, mecanismo de controle difuso, concreto e incidental. MOLESSIS, Nicolas. “La dimension constitutionnelle des libertés et droits fondamentaux.” In: CABRILLAC, Rémy; FRISON-ROCHE, Marie; REVET, Thierry. Libertés et droits fondamentaux. 17. ed. Paris, Dalloz, 2011, p. 81. TP

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291

A Constituição brasileira de 1891 reconheceu a competência da justiça da união e da dos estados para conhecer da legitimidade das leis em contraposição à constituição, em uma redação que Ruy Barbosa apontava como muito mais clara e contundente que a da constituição Norteamericana. Destacando ainda a garantia de revisão das decisões pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de recurso13. TP

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É que não há no texto constitucional norte-americano qualquer menção expressa à judicial review ou ao poder de o judiciário de controlar a constitucionalidade das leis, isto fez com que a decisão de Marbury v. Madison fosse inovadora e extremamente controvertida na época14. Mas, TP

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ao ser incorporado o modelo de controle difuso no Brasil houve na constituição de 1891 uma previsão expressa de tal poder dado aos juízes. Logo em 1894 a lei nº 221, vai reforçar ainda mais o nosso sistema de controle de constitucionalidade ao estabelecer em seu art. 13, §10, que: “Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos correntes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição”. A maturidade de nosso sistema neste momento aparece no ensinamento de Ruy Barbosa ao apontar que o poder dos tribunais é um poder eminentemente hermenêutico e não de legislação já que os tribunais não interferem nem na elaboração das leis nem em sua aplicação de modo geral, competindo isto ao legislador e à administração respectivamente15. TP

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A Constituição de 1934 manteve o controle difuso e acresceu ao sistema a regra da “cláusula da reserva de plenário” para as decisões dos tribunais acerca da constitucionalidade das leis; introduziu a figura da representação interventiva; e atentando ao sistema de freios e contrapesos entre as funções estatais previu a competência do senado para suspender a execução da lei declarada inconstitucional pelo órgão de cúpula do judiciário. Estas três novidades subsistem até hoje16. É de se observar ainda que foi neste momento que nosso sistema de TP

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controle de constitucionalidade tornou-se misto no sentido de incluir a participação de mais de um poder: o judiciário ao julgar incidentalmente a questão e o legislativo, por poder através do senado 13

“A redacção é claríssima. Nella se reconhece, não só a competencia das justiças da União, como a das jus liças dos Estados, para conhecer da legitimidade das leis perante a Constituição. Somente se estabelece, a favor das leis federaes, a garantia de que, sendo contraria á subsistencia delias a decisão do tribunal do Estado, o feito pode passar, por via de recurso, para o Supremo Tribunal Federal. Este ou revogará a sentença, por não procederem as razões de nullidade, ou a confirmará pelo motivo opposto. Mas, numa ou noutra hypothese, o principio fundamental é a auctoridade, reconhecida expressamente no texto constitucional, a todos os tribunaes, federaes, ou locaes, de discutir a constitucionalidade das leis da União, e applical-as, ou desapplical-as, segundo esse criterio.” BARBOSA, Ruy. Os actos inconstitucionaes do congresso e do executivo ante a justiça federal. Rio de Janeiro, Companhia Impressora, 1891, p. 58. TP

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14

KLAUTAU FILHO, Paulo. “A primeira decisão sobre controle de constitucionalidade: Marbury v. Madison (1803).” In: SIMÕES, Sandro Alex de Souza; DIAS, Bárbara Lou da Costa Veloso. Ensaios sobre direito constitucional: estudos em homenagem ao professor Orlando Bitar. Belém: Editora CESUPA, 2003, p. 115-116. TP

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15 PT

BARBOSA, 1891, p. 58.

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16

Para conferir a construção histórica do controle de constitucionalidade no Brasil Cf. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 21 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.49-52. TP

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suspender a execução de da lei17. Com isto, estabeleceu-se a possibilidade de suspensão pelo TP

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Senado da lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, de modo a que a lei seja desaplicada para toda a sociedade e não apenas para determinado caso concreto18. TP

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A constituição de 1937, apontada, por Waldemar Martins Ferreira, como Constituição apenas no nome19, refletindo a ditadura do Estado Novo marca um retrocesso em nossa história TP

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constitucional. Nela ficou estabelecido, também, que apenas por maioria de votos dos juízes é que os tribunais poderiam declarar a inconstitucionalidade e que a juízo do presidente da República a lei poderia ser submetida a novo exame do parlamento para que fosse confirmada e tornada sem efeito a decisão do tribunal. Isto tornava de fato o presidente como o único controlador da constitucionalidade20. TP

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Sob a égide da Constituição de 1946 inicialmente retomou os modelos delineados pelas suas antecessoras de 1891 e 1934, com o controle difuso e a representação interventiva. Entretanto, através de Emendas Constitucionais foi introduzido no ordenamento pátrio o controle concentrado, na esfera de competência do Supremo Tribunal Federal, então, passou a existir um meio processual adequado, apto e destinado a provocar o exame direto da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal ou estadual, sendo legitimado o Procurador Geral da República para provocar esta prestação jurisdicional. Foi a Emenda Constitucional 16/65 que estabeleceu efetivamente o controle de constitucionalidade por via de ação direta, não mais limitada à hipótese de funcionar como requisito para a decretação de intervenção federal21. TP

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A partir de então, o controle de constitucionalidade no ordenamento pátrio passa a ser um complexo sistema combinado entre os modelos norte-americano e austríaco de controle de constitucionalidade. Deste, herdou-se a concentração em um único órgão e a possibilidade de examinar em abstrato a adequação das leis ou atos normativos aos ditames constitucionais e daquele a hipótese de todo o judiciário ante a um caso concreto examinar incidenter tantum a constitucionalidade das leis ou atos normativos. É de se registrar apenas o período conturbado de nossa história marcado no texto da constituição de 1967, determinado também pela Emenda 1/69, que embora fosse permitido o controle de constitucionalidade por via de ação direta pelo STF, através de representação do Procurador-Geral da República, o clima político era de repressão com o afastamento e aposentadoria compulsória de ministros do Supremo Tribunal Federal, marca da ditadura22. TP

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17

DANTAS, Ivo. O valor da constituição: do controle de constitucionalidade como garantia da supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 70. TP

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18 PT

DANTAS, 1996, p. 79.

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19

FERREIRA, Waldemar Martins. História do direito constitucional brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 1954, p. 112.

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20 PT

DANTAS, 1996, p. 82.

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21 PT

SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2008, p. 205.

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22 PT

DANTAS, 1996, p. 91-92.

293

A Constituição de 1988 não modificou os contornos do controle difuso, mas incrementou o controle concentrado, prevendo uma ação destinada a sanar a síndrome de ineficácia das leis constitucionais – ADI por omissão; ampliando significativamente o rol de legitimados à propositura das ações diretas de controle de constitucionalidade; previu a Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Se não bastasse tantos e complexos instrumentos para salvaguardar a supremacia constitucional em 1993 a EC nº 3 previu mais um mecanismo de controle a Ação Declaratória de Constitucionalidade, meio processual apto a ratificar aquilo que se presume, salvo prova em contrário – a constitucionalidade das leis e atos normativos. Apesar da evolução histórica do controle de constitucionalidade no Brasil, que resultou em complexa combinação entre os diversos sistemas de controle, uma nota distintiva mantém-se incólume desde o seu surgimento: o controle em última ou única instância é feito pelo órgão de cúpula do judiciário – o Supremo Tribunal Federal. Destarte, a despeito da combinação entre os sistemas mantém-se no Brasil um controle preponderantemente judicial e repressivo da constitucionalidade das leis. Maurice Duverger chama a atenção para as possíveis críticas ao controle de constitucionalidade exercido pelo Judiciário: “Disse-se que conduzia a um ‘governo de juízes’, uma vez que transferia para eles a decisão suprema.”23 Parece deveras atual e pertinente a TP

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crítica, pois nunca dantes pareceu tão verdade a inglória afirmação de que a Constituição é o que o Supremo disser que ela é. Não obstante ser a finalidade do controle judicial de constitucionalidade das leis e atos normativos que o Judiciário venha “completar, aperfeiçoar ou atualizar a legislação, por meio de uma espécie de legislação jurisprudencial24”, as decisões manipuladoras hão de ser criticamente TP

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analisadas, sobretudo, quando elas vierem a defender uma “auto ampliação” do poder do órgão competente para tão nobre mister de salvaguardar a Constituição. Neste sentido, observa-se que o STF tem dado contornos novos e questionáveis ao controle difuso de constitucionalidade. O controle difuso pode exsurgir de todo e qualquer tipo de processo e exigir o exame pelo STF, tanto no exercício de sua competência originária, como via Recurso Ordinário ou através do Recurso Extraordinário, em suma, será examinado em única ou última instância pelo Supremo. Portanto, através de recurso extraordinário ou nas questões de sua competência originária, o STF poderá incidentalmente a um caso concreto, discutir a compatibilidade de determinada lei ou ato normativo com a Constituição. Mas, não é possível olvidar que o controle nesta sistemática ocorre incidenter tantum a um caso concreto que observa os princípios e a lógica regente do processo civil clássico.

23 PT

DUVERGER, 1985, p.177.

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24

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional: aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006, p. 761. PT

294

O Recurso Extraordinário (RE), em sua origem, remonta ao writ of error do direito inglês e está relacionada à preocupação de manutenção do direito federal25, preocupação compatível com TP

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a proclamação da República e a adoção de um federalismo por desagregação. Posto que era necessário um instrumento capaz de zelar pela uniformização da lei federal em todo território nacional. Hodiernamente possui novos contornos, caracterizado como um recurso excepcional destinado à salvaguarda da supremacia constitucional e coerência intra-sistêmica. A uniformização jurisprudencial26 continua a ser uma nota distintiva deste Recurso, mas desde a TP

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Constituição de 1988 ele não reina mais sozinho para tal finalidade, pois com a criação do Superior Tribunal de Justiça a uniformização da lei federal ocorrerá pela via do Recurso Especial (REsp). Para Didier e Cunha o REsp nada mais é do que um RE para o STJ27. TP

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Desta feita, sobressai como cerne diferencial do Recurso Extraordinário ser uma via adequada para a escorreita interpretação constitucional, ou seja, “resguardar a interpretação dada pelo STF aos dispositivos constitucionais, garantindo a inteireza do sistema jurídico constitucional federal e assegurando-lhe validade e uniformidade de entendimento28”. TP

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O Recurso Extraordinário, como o próprio nome já destaca, não reside no rol das vias recursais ordinárias, não está destinado ao exercício do princípio constitucional implícito do duplo grau de jurisdição, seu escopo é outro: uniformizar e interpretar. O controle difuso de constitucionalidade é insofismavelmente sua função principal29, sua função maior. Por esta via é TP

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possível controlar a adequação de leis ou atos normativos provenientes de qualquer das esferas da federação: seja federal, estadual ou municipal. No que concerne aos requisitos de procedibilidade do Recurso Extraordinário, a serem observados em seu juízo de admissibilidade, ele há de observar os pressupostos recursais comuns a todo e qualquer recurso, tais como: preparo; tempestividade; regularidade formal; legitimidade; interesse; cabimento; e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de

25

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. “O cabimento do recurso extraordinário pela alínea ‘a’ do art. 102, III, da Constituição Federal e a ‘causa de pedir aberta’”. In: NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. v.11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 247. TP

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26 Neste sentido, destacando a excepcionalidade dos recursos excepcionais, José Miguel Garcia Medina diz: “pode-se dizer, de modo bastante singelo, que a função de tais recursos no sistema jurídico reside na necessidade de manter a unidade de entendimento acerca do direito constitucional ou federal.”. Cf. MEDINA, José Miguel Garcia. “Dispensa de prequestionamento.” In: NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. v.8. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 279 -287. TP

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27 DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões e processo nos tribunais. v.3. 9.ed. Salvador: Jus Podivm, 2011, p.255. TP

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28 PT

DIDIER; CUNHA, 2011, p.323.

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29

LEONEL, Ricardo Barros. “Recurso extraordinário e controle objetivo de constitucionalidade na Justiça Estadual”. In: NERY JR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. v.11. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 358. TP

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295

recorrer. Mas, a recorribilidade extraordinária possui um requisito específico: repercussão geral. E uma questão específica exigida para seu cabimento: prequestionamento30. TP

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Prequestionamento é a necessidade de ventilação prévia da matéria que justifica o seu manejo, ou seja, a questão justificadora do Recurso há de ter sido levantada e discutida no processo. O Supremo admite que a mera interposição de Embargos de Declaração já preenche os fins de prequestionamento, é o denominado prequestionamento ficto. Já repercussão geral remete à necessidade de que a questão impugnada ultrapassar os interesses subjetivos da causa. Assim, é necessário haver transcendência qualitativa ou quantitativa da matéria a ser examinada, ou seja, a questão há de ser juridicamente relevante ou deve interessar a um número significativo de pessoas. O conhecimento do Recurso fica condicionado ao entendimento de 2/3 dos membros do STF pela existência de repercussão geral. Esta necessidade de transcendência faz com que a questão ali discutida não remeta única e exclusivamente aos interesses das partes litigantes, ao ficar estabelecido o requisito da repercussão geral deu-se uma objetivização do RE. Estar-se-ia com isso legitimando a ampliação do âmbito subjetivo de eficácia da decisão do Recurso Extraordinário? Conforme se retomará adiante, há vozes no Supremo com este posicionamento. Por se tratar de um Recurso excepcional a necessidade de filtros para sua utilização é inegável, mas até bem pouco estes inexistiam. Na verdade, é possível vislumbrar que restringir a recorribilidade é valorizar a excepcionalidade da medida, além de contribuir para desafogar o Supremo. O Recurso Extraordinário deverá ser interposto, no prazo de quinze dias, junto ao órgão que prolatou a decisão em última ou única instância que está sendo impugnada pela via excepcional. A presença de todos os pressupostos há de ser examinada em seu primeiro juízo de admissibilidade pelo presidente ou vice-presidente do tribunal que proferiu a decisão (de última ou única instância) vergastada. A reforma do poder judiciário trouxe significativas mudanças e tornou o exame de admissibilidade do Recurso bem mais complexo, como destaca Barbosa Moreira31. E a introdução TP

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do requisito de repercussão geral cria a necessidade de contornos específicos sobre esta transcendência da questão discutida na decisão do caso concreto impugnada pelo RE. Mas, em nada alterou sua finalidade e objeto. Alterou assim, sua admissibilidade e o seu procedimento. O Supremo se for o caso declarará a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, esta decisão do Supremo, pela lógica do processo civil clássico, tem sua eficácia adstrita às partes. A

30

Apesar de comumente ser alocado o prequestionamento como um requisito de admissibilidade específico e cumulativo do Recurso Extraordinário, ele é uma criação dos tribunais superiores e que não reside no rol dos requisitos de admissibilidade constitucionalmente previstos para o referido recurso. TP

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31 PT

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

296

eficácia subjetiva da sentença se restringe aos que puderam influenciar na decisão que terão que cumprir (contraditório substancial). Assim, o STF declara a inconstitucionalidade da lei, mas a suspensão da execução da lei é da esfera de competência do Senado Federal. Walber Agra destaca que o Senado, no exercício do seu poder discricionário, poderá suspender ou não a eficácia da lei ou ato declarado inconstitucional pelo Supremo32. Parece TP

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escorreita a interpretação, pois de acordo com o que dispõe o artigo 52, da CF/1988, ao elencar a competência privativa do Senado, em seu inciso X: “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.” Assim, a resolução do Senado é o meio de se determinar o fim da eficácia de uma lei eivada de inconstitucionalidade, esta declarada por decisão definitiva do Supremo que foi instado a salvaguardar incidenter tantum a supremacia da Constituição. Mas não é dado ao STF pelo texto constitucional o poder de suspender a execução em âmbito geral de tal lei: tal competência é exclusiva do Senado Federal. Atente-se que a força vinculante e eficácia contra todos advêm da resolução do Senado, que atinge o plano de eficácia da norma33. Não há de se pensar que o senado decreta a nulidade TP

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da norma, o vício já foi reconhecido na decisão judicial. Nem que há uma revogação da lei, sua eficácia é na verdade fulminada e esta Resolução atinge a todos. Mas há uma corrente no STF que defende a existência de eficácia erga omnes e força vinculante no momento em que ele declara a inconstitucionalidade, prescindindo para tanto da Resolução do Senado. Observe-se que assim restaria alterada substancialmente a forma de freios e contrapesos prevista pelo constituinte, que propõe a declaração pelo órgão de cúpula do Judiciário e a suspensão por uma casa legislativa. É paradigmático para a questão o julgamento, ainda em curso, da Reclamação Constitucional nº

4.334-5/AC em que há, até o momento, os votos favoráveis dos Ministros

Gilmar Mendes e Eros Grau pela tese da mutação constitucional do sentido do texto do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal. Este julgamento se dá em um momento em que se observa um fenômeno no Brasil que tem-se descrito como um processo de objetivização do controle difuso de constitucionalidade, que começa a ter efeitos similares àqueles previstos ordinariamente para o processo objetivo de controle de constitucionalidade, o que pode ser percebido como uma valorização do controle concentrado. Há uma preocupação em desafogar os tribunais superiores e em se estabelecer mecanismos de uniformização de jurisprudência. Tal se nota claramente com a Emenda

32 PT

AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009, p. 564.

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33

DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de processo constitucional: controle de constitucionalidade e remédios constitucionais. São Paulo: Atlas, 2011, p. 344. TP

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297

Constitucional nº 45/2004 ao instituir a súmula vinculante34 e incluir o requisito de repercussão TP

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geral para que se possa conhecer dos recursos extraordinários. Preconizar o controle concentrado não pode implicar em uma diminuição do papel do controle difuso, torna-se evidente- e não apenas no Brasil- que existe uma evolução convergente dos modelos, contudo dentro de nossa tradição constitucional restringir o controle difuso é não apenas concentrar no Supremo Tribunal Federal o controle de constitucionalidade, mas também de certo modo limitar a noção constitucional-democrática de uma sociedade aberta de intérpretes da constituição35. TP

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Não se trata, logicamente, de se preferir um modelo ao outro. A riqueza de nosso sistema de controle de constitucionalidade reside justamente em sua complexidade e na existência de diversos mecanismos e meios para garantia da constituição. Entretanto não pode ser acrítica tal aproximação, nem feita exclusivamente pelo STF, sob o pretexto de mutação constitucional, em prejuízo de nossos órgão de legitimidade democrática.

4. Da decisão de controle de constitucionalidade difuso no Brasil As decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade, de modo geral, possuem eficácia inter partes e efeitos retroativos – ex tunc –. A eficácia subjetiva decorre do fato de ser uma decisão incidental a um processo qualquer, a um caso concreto; e a retroatividade dos efeitos advém da natureza declaratória da decisão de incompatibilidade. Frise-se, por ser a declaração de inconstitucionalidade uma questão incidental a um processo subjetivo esta decisão tem eficácia inter partes, pois este exame ocorre por via de exceção. Assim, a questão de constitucionalidade surge como mero incidente e como sói acontecer no processo civil clássico serão julgadas considerando as peculiaridades deste caso concreto em que surge o incidente. Mas, as questões a serem examinadas pelo Supremo via RE não hão de possuir repercussão geral: sim. Então, o STF parece querer apontar para uma mutação constitucional da previsão que prevê a necessidade de Resolução do Senado para dar eficácia contra todos da decisão que declara a inconstitucionalidade. Esclareça-se, há posições no STF que se põem na defesa da atribuição de eficácia erga omnes. Isto implicando a ampliação de poderes do STF e abstrativização das decisões no controle difuso.

34

O sistema da súmula vinculante aponta para um fortalecimento do sistema de precendentes no Brasil, criando a vinculação para todos os órgãos do judiciário da posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Isto não se confunde com a vinculação geral decorrente do julgamento de inconstitucionalidade no controle difuso, que impede que uma lei em abstrato seja aplicada por ser incompatível com a constituição. Sobre o tema da súmula vinculante: SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. Curitiba: Juruá, 2008.

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35

CONTINENTINO, Marcelo Casseb. Revisitando os fundamentos do controle de constitucionalidade: uma crítica à prática judicial brasileira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p.164-165. PT

298

Na verdade, pretende-se romper com nossa tradição histórica e com a previsão da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 52, X, que quanto ao controle difuso cabe ao STF a comunicar ao Senado Federal o conteúdo da decisão para que este suspenda a execução da lei. Desse modo, atribui-se à declaração de inconstitucionalidade efeito erga omnes e vinculante, mediante atuação de órgão do Poder Legislativo. Há uma previsão de atuação dos dois poderes em conjunto36. TP

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O problema é justamente saber se é possível harmonizar a atuação do STF com o ditame constitucional inserto no art. 52, X, CF. É legítima uma decisão do Supremo que promove a ampliação dos poderes dele mesmo? Ou seja, a discussão de maior relevância concerne à possibilidade do Supremo atribuir de eficácia erga omnes (extensível a todos) às decisões prolatadas em controle difuso. A linha argumentativa defendida, por aqueles que sustentam esta tese, é de que com o passar do tempo houve uma mutação constitucional na significação da previsão inserta no artigo 52, X, CF37. Por mutação constitucional se entende o processo informal de alteração da TP

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Constituição, não há alteração no texto, mas há na norma que dele ressai. Em “variados arestos da Corte, vislumbra-se a constante preocupação dos julgadores em ressaltar a idoneidade da interpretação judiciária como via de alteração informal da Constituição Federal de 1988.38” O que pode ser interpretado como uma tentativa de autolegitimação. Pois, TP

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defende-se que os processos de mutação constitucional são legítimos e o aplica para ampliação da própria esfera de atuação. O problema é que por previsão expressa existente no ordenamento jurídico apenas o Senado Federal, após decisão definitiva do STF poderia suspender a execução deste, concedendo, portanto, eficácia geral à decisão – em um sistema harmônico de freios e contrapesos –. Aliás, esta repartição funcional entre os órgãos estatais é justamente característica proeminente da separação de poderes, corolário do próprio Estado Democrático e Constitucional de Direito e nota distintiva de todas as Constituições do Constitucionalismo. A mutação da previsão constitucional decorreria da supremacia da Constituição e da necessidade de sua aplicação uniforme a todos, bem como na qualidade do Supremo de guardião máximo da Constituição. Para que o STF julgue o RE já é indispensável haver a transcendência da matéria discutida, assim seria possível ao Supremo conferir efeitos gerais às suas decisões, que

acaba

por

desencadear

na

recente

teoria

da

abstrativização

do

controle

de

constitucionalidade incidental. 36 MEDEIROS, Orione Dantas de. Mutação constitucional resultante de interpretação judicial e perspectivas do controle difuso no Brasil: reflexões acerca da reclamação 4.334-5/AC. In: Revista Idéia Nova. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/Nossa Livraria, ano 8, n. 4, jun/dez. 2010, p. 241. TP

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37

MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade : um caso clássico de mutação constitucional. In: Revista de informação legislativa, v. 41, n. 162, abr./jun. de 2004. TP

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38 PT

DANTAS, Ivo. Novo processo constitucional brasileiro. Curitiba: Juruá, 2010, p. 337.

299

Defender a aplicação da mencionada teoria é, de certo modo, equiparar as decisões tomadas no controle concreto de constitucionalidade às decisões do controle abstrato, uma vez que a amplitude da decisão atinge a todos os destinatários da norma. Expande, destarte, os efeitos do decisum para além das partes efetivamente envolvidas no caso concreto no qual incidentalmente surgiu a questão de constitucionalidade. Em havendo esta mutação constitucional, qual seria o papel do Senado agora? Para quem defende a teoria da abstrativização, o STF, ao declarar determinada lei inconstitucional, comunicaria ao Presidente do Senado, que seria encarregado apenas de conferir publicidade à decisão, não tendo o condão de garantir sua eficácia, pois a decisão, por ser ato jurisdicional, já seria dotada de plena efetividade social39. TP

PT

Na verdade, a tendência de objetivação do controle difuso vai além, pois, assim, como vem permitindo a aproximação do controle difuso com o concentrado em decorrência da ampliação do âmbito subjetivo de eficácia da decisão por via de exceção, o Supremo Tribunal Federal, vem reconhecendo a possibilidade de modulação de efeitos no controle difuso. Como? Permitindo uma aplicação analógica do art. 27, da Lei 9868/99, que regulamenta a Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Direta de Constitucionalidade, que permite por razões de segurança jurídica ou por excepcional interesse social ao Supremo restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou decidir em que momento ela passará a ser eficaz. Logo, através de um exame das decisões do STF em Recursos extraordinários, por exemplo, é possível visualizar a atribuição de efeitos prospectivos em controle de constitucionalidade difuso. Novamente, “o STF assume uma postura ativista, tornando-se senhor de sua própria competência jurisdicional.40” TP

PT

Acerca das possíveis críticas ao exercício do controle de constitucionalidade pelo judiciário, obtempera Duverger “a objecção não será válida se os juízes se limitarem a aplicar textos constitucionais relativamente claros. Mas se os juízes forem muito para além disso, corre-se o risco de eles desempenharem um verdadeiro papel legislativo.

41 TP

” Não estaria o STF indo para TP

além do previsto constitucionalmente? Como destaca Ivo Dantas, “a extensão da eficácia erga omnes pressupõe o STF como substituto do legislador, o que em primeira análise infringe o princípio da justeza ou conformidade funcional42”. TP

PT

Essa discussão no âmbito do Pretório Excelso tem relevância fundamental na sociedade, uma vez que poderá dotar o sistema jurídico de maior eficácia, celeridade e economia processual. Mas a teoria da abstrativização também encontra doutrinadores que não a veem com bons olhos, 39

MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade : um caso clássico de mutação constitucional. In: Revista de informação legislativa, v. 41, n. 162, abr./jun. de 2004. TP

PT

40 PT

DANTAS, 2010, p. 337.

TP

41 PT

DUVERGER, 1985, p.177.

TP

TP

42 PT

DANTAS, 2010, p. 347.

300

pois tal prerrogativa conferiria poder em demasia ao Supremo, além de ser ato não albergado pela legislação pela ordem constitucional vigente43. TP

PT

A questão exige analise cautelosa, pois defender a teoria da abstrativização implica corroborar para a consolidação de um ativismo judicial o que pode colidir com a tripartição de poderes, mas rechaçá-la não colabora para a justa e necessária busca de efetividade das decisões judiciais e segurança jurídica. Já que prestação jurisdicional não é loteria e não seria razoável em dado caso concreto um ato ser constitucional, em outro inconstitucional. Conforme destaca Ivo Dantas o problema é a legitimidade do STF para fazer essa interpretação, pois na prática essa “nova significação” amplia os poderes do próprio Tribunal e mitiga o papel do Senado no controle difuso, solapando neste meio de controle qualquer sistema de freio e contrapeso. Em síntese, “questiona-se, então, até que ponto a atividade jurisdicional do STF como Corte responsável pela interpretação última da CF/88 viabiliza a manifestação de mutações constitucionais legítimas.44” TP

PT

Parece tempo de rememorar que “o papel do STF, na atualização e guarda da Constituição, coloca-se em posição excepcional, sendo que no desempenho de suas atribuições só encontra limites na própria Constituição.45” TP

PT

5. Algumas notas sobre o controle difuso em Portugal Nenhuma das constituições portuguesas do século XIX contemplou qualquer forma de apreciação ou julgamento de constitucionalidade por parte dos tribunais, isto se dando por inspiração francesa. Neste período, assim como a constituição imperial brasileira de 1824, foi marcante a previsão de um poder moderador, exercido pelo monarca, tendo as decisões quanto a aplicabilidade das leis e o regime político sempre uma conotação política. Assim como no Brasil, ao menos sob o viés da lógica do sistema, cabia aos órgãos políticos as “prerrogativas de interpretar as leis e de velar na guarda da constituição46.” TP

PT

Como visto, a constituição brasileira de 1891 previu expressamente a possibilidade de controle difuso de constitucionalidade e isto influenciou diretamente a experiência portuguesa com

43

“A priori, o que nos parece inviável - e aqui reside basicamente nossa reflexão - é que se tente igualar os efeitos oriundos das decisões em sede de controle concentrado e difuso através do fenômeno da mutação constitucional, do art. 52, X, da CF/88.” MEDEIROS, Orione Dantas de. Mutação constitucional resultante de interpretação judicial e perspectivas do controle difuso no Brasil: reflexões acerca da reclamação 4.334-5/AC. n: Revista Idéia Nova. Recife: Universidade Federal de Pernambuco/Nossa Livraria, ano 8, n. 4, jun/dez. 2010, p. 241. TP

PT

44 PT

DANTAS, 2010, p. 338.

TP

45 PT

BARACHO, 2006, p.768.

TP

46

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo G. Gonet. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 164. TP

PT

301

o controle jurisdicional e difuso, que data de sua primeira carta republicana, a constituição de 191147. TP

PT

Desta maneira, a previsão inserta em nossa primeira constituição republicana e o amadurecimento da teoria constitucional no Brasil serviu de supedâneo para a legislação portuguesa sobre o Controle de Constitucionalidade. Neste compasso, a constituição portuguesa de 1911 vai permitir aos juizes o exercício de “uma competência que, por necessidade deveriam exercer48.” Entretanto, era limitado o poder de TP

PT

o juiz conhecer da inconstitucionalidade ao que fosse alegado e requerido pela parte, era como se vigesse o princípio do dispositivo para a matéria. É por isto que Jorge Miranda, embora anotando a existência desde logo de doutrina diversa, destaca que: Era único e genérico o regime criado pelos constituintes de 1911. Qualquer das partes no processo podia alegar qualquer inconstitucionalidade e a natureza desta só interessava pelo limite posto à iniciativa do juiz: se a parte invocasse um vício de forma, o juiz iria ultra petitum, se conhecesse de um vício de conteúdo (e viceversa), e só devia começar por apreciar a constitucionalidade formal, a formação da lei, antes da constitucionalidade material, se tivessem sido impugnadas as duas49. TP

PT

A partir daí se estabeleceu tendencialmente50 uma experiência de controle difuso, incidental TP

PT

e concreto em Portugal até a atual Constituição da República Portuguesa de 1976. Se bem que a constituição de 1933, em sua ultima versão resultante da revisão constitucional de 1971, começava já a delinear alguma experiência de controle concentrado e abstrato51, indicando uma TP

PT

tendencial dualidade de modelos. Contudo, foi a atual constituição portuguesa que estabeleceu as bases do controle concentrado e foi apenas em 1982, com a revisão da constituição de 1976, que se estabeleceu definitivamente uma jurisdição constitucional autônoma52. A aproximação com o modelo austríaco TP

PT

em Portugal coincide com a queda de seu regime autoritário e com a redemocratização, o que, aliás, encontra paralelo em outros países do sul da Europa, conforme observa Albrecht Weber53. TP

PT

47

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: inconstitucionalidade e garantia da constituição. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, t. VI, p. 138-139. TP

PT

48

MIRANDA, Jorge. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Coimbra: Coimbra Editora 2007, p. 108. (reimpressão do original de 1968). TP

PT

49 PT

MIRANDA, 2007, p. 113.

TP

50 PT

MIRANDA, 2008, p. 141.

TP

51

MOREIRA, Vital. “Le Tribunal constitutionnel portugais : le « contrôle concret » dans le cadre d'un système mixte de justice constitutionnelle.” In: Noveaux Cahiers du Conseil Constitutionnel. Paris: Dalloz, 2002, n. 10.

TP

PT

52

COSTA, José Manuel M. Cardoso da. A jurisdição constitucional em Portugal. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007, p. 11. TP

PT

53

WEBER, Albrecht. “Tipos de Jurisdicción Constitucional.” in: Anuario iberoamericano de justicia constitucional. Madri, Enero/Diciembre 2002, n.6, p. 591. TP

PT

302

A criação do Tribunal Constitucional neste momento está ligado à noção do reforço do controle de constitucionalidade enquanto mecanismo de garantia da constituição e do estado Estado Democrático de Direito, sendo tão importante simbolicamente quanto a garantia de liberdade de expressão ou o pluralismo político54. TP

PT

Atualmente, o modelo português se apresenta como misto complexo. Nele convivem paralelamente tanto a possibilidade de controle pela via concentrada, principal e abstrata, quanto pela via difusa, incidental e concreta, há ainda a possibilidade do chamado controle misto, com a declaração abstrata de inconstitucionalidade a partir do controle concreto. Também é possível a fiscalização

preventiva

de

constitucionalidade

e

o

controle das

omissões

legislativas

inconstitucionais. Em

outros

países

europeus

existe

a

possibilidade

de

controle

concreto

de

constitucionalidade, mas o modelo português tem como marcante a característica que este controle se dê pelos tribunais ordinários em primeiro lugar e pelo Tribunal Constitucional em sede de recurso e não de reenvio prejudicial. Isto implica dizer que a matéria é levada ao Tribunal Constitucional em sede de recurso contra uma decisão. Ou seja, existe o poder do juiz- e não apenas do Tribunal Constitucionalconhecer da constitucionalidade, é o juiz o primeiro a ter poderes para julgar quanto a constitucionalidade, só sendo a matéria levada ao Tribunal Constitucional como recurso. Caso fosse adotado um sistema de reenvio prejudicial o juiz não decidira quanto a constitucionalidade, apenas surgida a questão no processo ele suspenderia a marcha deste e enviara a questão ao Tribunal Constitucional- efetivamente o único com poderes para julgar quanto a constitucionalidade- e apenas após a decisão deste o juiz aplicaria a decisão da corte constitucional e julgaria o caso posto55-56. TP

PT

TP

PT

É este o ponto que destaca Maria Lúcia Amaral: A principal diferença existente entre os outros sistemas europeus de controlo de constitucionalidade das normas e o nosso está aqui. Nos outros direitos, sempre que há Tribunal Constitucional há também reenvio prejudicial (por parte dos tribunais comuns para aquele último quanto a questões de constitucionalidade); no

54 PT

HAMON; WEINER, 2011, p. 17.

TP

55

Este é o modelo da Alemanha, por exemplo, em que “o juiz só tem a obrigação e competência de realizar o exame de constitucionalidade (prufungskompetenz), mas não tem a competência de rejeitar ou deixar de aplicar a norma ainda não declarada inconstitucional, de maneira vinculante pelo TCF (Verwerfungskompetenz), ele tem o dever de suspender o processo, com o fim de apresentar a questão ao TFC para que este decida, não sobre o caso, mas sobre a constitucionalidade da norma aplicanda.” MARTINS, Daniel. Direito processual constitucional alemão. São Paulo: Atlas, 2011, p. 18-19. TP

PT

TP

56

Também na França, com a recente criação da questão prioritária de constitucionalidade, o juiz ordinário não pode conhecer nem suscitar de ofício da constitucionalidade das lei, pois o controle de constitucionalidade é uma função própria do Conseil constitutionnel, então o processo principal será interrompido até que seja julgada a questão de inconstitucionalidade. HAMON; WEINER, 2011, p. 45-47. PT

303

nosso, há Tribunal Constitucional e recurso, interposto para aquele de decisões jurisdicionais que desaplicam- ou aplicam- normas tidas por inconstitucionais57. TP

PT

Em Portugal, a semelhança do Brasil, todos os juízes detêm o poder- e o dever- de julgar quanto à inconstitucionalidade das leis que devam aplicar para decidir um caso concreto que lhes seja posto (isto resta consignado no artigo 204º da CRP). Por isto, o Tribunal Constitucional português não possui um monopólio das funções de interpretação da Constituição, antes, no controle difuso, atua com instância revisora, em sede de recurso dos juízos de constitucionalidade exercidos pelas instâncias a quo58. TP

PT

Isto faz com que o Tribunal Constitucional Português tenha uma atuação em duas frentes sendo, ao mesmo tempo, juiz dos juízes em matéria constitucional e juiz do legislador, já que pode julgar abstratamente a constitucionalidade. Na verdade, “diz-se também que a fiscalização concreta, incidental e difusa é uma ´introdução necessária´ dos recursos para o TC. Este poderá vir a revogar a decisão do juiz a quo incidente sobre questões de inconstitucionalidade59”. TP

PT

Em Portugal o juiz não se limita a conhecer do incidente de inconstitucionalidade e reenviálo para o TC. Ele decide o caso, interpretando e julgando a norma enquanto constitucional ou não, havendo a intervenção do TC, apenas enquanto instância recursal60. TP

PT

Isto é mais um ponto de proximidade entre o modelo lusitano e o brasileiro. No Brasil o controle se dá pelos juízes e pelo STF através do recurso extraordinário em Portugal também, sendo a matéria levada ao Tribunal Constitucional através do recurso de constitucionalidade. Os juízes ordinários portugueses podem julgar quanto à constitucionalidade (e também de certos casos de ofensa a chamada legalidade reforçada, conforme o art. 280, n. 2, da Constituição da República Portuguesa) de qualquer norma, contanto que ela seja relevante para a solução de um caso concreto. A questão de inconstitucionalidade pode ser suscitada por quaisquer das partes, pelo ministério público quer seja parte quer atue como custos legis, ou ainda conhecida de ofício pelo magistrado. Desta decisão caberá recurso para o Tribunal Constitucional, com objeto restrito à questão de constitucionalidade ou ilegalidade, conforme o caso. A doutrina portuguesa aponta a existência de determinados requisitos processuais para que possa ser suscitado um incidente de inconstitucionalidade. Primeiramente a questão tem de ser suscitada perante um órgão jurisdicional estatal, podendo ser levantada por uma das partes ou conhecida de ofício pelo juiz. Em segundo lugar tem de ser uma questão objetivamente de 57

AMARAL, Maria Lúcia. O modelo português de justiça constitucional, análise crítica. in: Anuario iberoamericano de justicia constitucional. Madri, Enero/Diciembre 2007, n.11, p. 39.

TP

PT

58 PT

AMARAL, 2007, p. 32.

TP

59 PT

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 983.

TP

TP

60 PT

CANOTILHO, 2008, p. 987.

304

constitucionalidade, carregando um juízo de conformidade ou desconformidade de um ato normativo com normas ou princípios constitucionais, suscitada durante um processo em curso. Exige-se ainda que a questão constitucional seja relevante para o julgamento da causa, sendo importante para a decisão do processo e a norma deve, em sendo julgada inconstitucional, ser efetivamente desaplicada. Cabe recurso tanto da decisão que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade, ou seja tenha um julgamento positivo de inconstitucionalidade, tando da que aplique a norma que tenha tido a inconstitucionalidade aventada, ou seja tenha um julgamento negativo de inconstitucionalidade. Assim, no sistema difuso de controle existem duas fases. Uma primeira perante o tribunal ordinário que esteja conhecendo do caso concreto e uma segunda fase perante o Tribunal Constitucional funcionando em seção (art. 70 LOTC), que se inicia através do recurso para o Tribunal Constitucional. Para que seja cabível o recurso é preciso que exista interesse de agir, assim apenas a parte prejudicada e o Ministério Público, conforme o caso e em virtude de sua atuação, é que podem recorrer. Os recursos para o TC podem ser facultativos ou obrigatórios. O recurso é facultativo para a parte do processo a quem prejudique a decisão prolatada pelo juiz quanto a constitucionalidade da norma e é obrigatório para o Ministério Público, por expressa imposição constitucional, quando: (i) houver uma decisão positiva de inconstitucionalidade que recuse a aplicação de normas constantes de atos legislativos ou equiparados (art. 280º/3., CRP); (ii) se tratar de decisões negativas de inconstitucionalidade, aplicando norma anteriormente julgada inconstitucional pelo TC (art. 280º/5., CRP). Isto é, caso uma norma seja julgada inconstitucional ou se ela for julgada constitucional pelo juiz ordinário, quando anteriormente foi julgada inconstitucional pelo TC, o recurso é obrigatório para o Ministério Público. Segundo Canotilho, tal situação se justifica pois: os recursos facultativos da parte e os recursos obrigatórios do MP têm lógicas diferentes. Os primeiros destinam-se, em geral, a defender interesses subjectivos (mas não só) e daí seu carácter facultativo. Os segundos se destinam a salvaguardar princípios objectivos da ordem juridico-constitucional, assim se justificando seu caráter obrigatório61. TP

PT

Isto faz com que nenhuma norma anteriormente julgada inconstitucional pelo TC e que volte a ser aplicada por um tribunal ordinário fique isenta de reapreciação pela corte constitucional, isto garante, não apenas a unidade sistêmica, mas também a possibilidade de revisão pelo TC de sua orientação. TP

61 PT

CANOTILHO, 2008, p. 993.

305

Conforme o caso, pode haver a possibilidade de recurso direto, assim que proferida em qualquer grau decisão quanto a constitucionalidade, para o tribunal constitucional ou o recurso só será cabível apenas após a exaustão dos recursos ordinários. Isto quer dizer que há situações em que não se é de esperar o esgotamento dos recursos ordinários para que caiba o recurso para o Tribunal Constitucional. Caso haja a desaplicação de uma norma com fundamento em sua inconstitucionalidade isto, de per se, é suficiente para permitir diretamente o recurso para o Tribunal Constitucional, mas no caso de aplicação pelo juiz de uma norma alegada por uma das partes como inconstitucional, nesta hipótese (exceto algumas situações especiais previstas nas alíneas g), h) e i) do nº 1 do art. 70 da Lei do Tribunal Constitucional-LTC) a admissibilidade de recurso depende da verificação de uma série de pressupostos processuais específicos62. TP

PT

O recurso das decisões negativas de inconstitucionalidade possuem, desta maneira, um regime específico marcado pela: (i) necessidade de exaustão de recursos ordinários (art. 70. nº 2 LTC); (ii) legitimidade para apresentar o recurso ao TC restrita da parte que suscitou o incidente (art. 280.º/4); (iii) a questão tem de ser invocada durante o processo e reiterada nos recursos ordinários seguintes; (iv) a parte tem o ônus de demonstrar desde logo a viabilidade do recurso, demonstrando que este tem utilidade para a decisão do caso concreto (art. 76.º/2 LTC); (v) também devem ser individualizadas as normas constitucionais infringidas e as normas infraconstitucionais

infringentes,

ou

seja

não

basta

a

mera

alegação

genérica

de

63

inconstitucionalidade (art. 75-º-A/2LTC) . TP

PT

Este tratamento se deve por haver uma presunção de constitucionalidade das leis, estas são via de regra constitucionais, emanadas por órgãos políticos com legitimidade democrática e estão sujeitas inclusive a um controle preventivo de constitucionalidade, por isto facilita-se o recurso para as decisões positivas de inconstitucionalidade e dificulta-se para as decisões negativas de inconstitucionalidades, a menos que nesta hipótese esteja-se diante de norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo TC ou pela Comissão Constitucional, já que a presunção de constitucionalidade resta abalada.

6. Da decisão de controle de constitucionalidade difuso em Portugal Na fiscalização abstrata a Constituição da República Portuguesa esclarece claramente, em seu artigo 282º, quais os efeitos da decisão, entretanto, o mesmo não ocorre com a fiscalização concreta. Os efeitos da decisão do Tribunal Constitucional são tratados pela doutrina em duas categorias. Fala-se em efeitos diretos e efeitos indiretos da decisão do TC em sede do controle de 62 PT

COSTA, 2007, p. 75-76.

TP

TP

63 PT

CANOTILHO, 2008, p. 995-996.

306

constitucionalidade difuso. Este agrupamento leva em consideração a relação do efeito com o processo em que foi julgada incidentalmente a constitucionalidade da norma. Assim, são ditos diretos os efeitos da decisão que guardam uma pertinência imediata para com o processo e indiretos os efeitos extraprocessuais desta. A decisão do TC tem como efeito direto a decisão definitiva da questão de constitucionalidade no âmbito do processo em que ela for suscitada, tem por assim dizer força de caso julgado em relação à questão. Isto implica dizer que se trata de uma decisão final e compulsória tanto para as partes quanto para os tribunais ordinários, independente de em qual grau se encontre o feito. Um segundo efeito, chamado de eficácia inter partes da decisão na verdade se refere ao âmbito subjetivo de vinculação à decisão. A decisão é diretamente vinculativa para as partes do processo em questão e reflexamente aos órgãos jurisdicionais que não podem voltar a decidir no mesmo processo sobre a questão de constitucionalidade após o pronunciamento do TC. Por fim, a decisão do TC está restrita à questão de inconstitucionalidade ou ilegalidade levantada no caso, trata-se de um limite material da competência do TC para decidir, isto significa que ele só pode decidir sobre a questão da constitucionalidade, sendo vedado o julgamento do caso concreto. Ele decide sobre a constitucionalidade ou não da norma, mas compete aos tribunais ordinários o julgamento do caso, aplicando ou desaplicando a norma conforme se trate de uma decisão positiva ou negativa de inconstitucionalidade. Assim, ao menos em termos tendenciais o Tribunal Constitucional não pode conhecer do caso concreto, embora logicamente as circunstâncias deste sejam imprescindíveis para o juízo quanto a inconstitucionalidade da lei. Mas decidida a questão de constitucionalidade pelo TC os tribunais ordinários não podem mais discutir a questão, tendo que aplicar ou desaplicar a norma, conforme o caso. Assim, pode-se dizer que a decisão do tribunal constitucional tem enquanto efeitos diretos a efetiva definição da questão, sendo esta restrita ao juízo de constitucionalidade, com força de caso julgado no processo e nos limites deste, vinculando as partes e o juiz64. TP

PT

Enquanto efeitos indiretos, surge a obrigatoriedade de o Ministério Público apresentar recurso ao Tribunal Constitucional sempre que em um processo seja aplicada uma norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal (nos casos de legalidade reforçada) pelo próprio TC, é o que resta consignado no artigo 280º/5., da CRP. Neste caso o Ministério Público atua como fiscal da legalidade constitucional, é que embora não seja vinculativa a decisão do TC em sede de controle é importante por uma questão de uniformidade jurisprudencial e de segurança jurídica a possibilidade de reanálise da questão pelo próprio TC, que, por outro lado, terá a oportunidade de eventualmente rever seu posicionamento anterior. TP

64 PT

CANOTILHO, 2008, p. 1000.

307

Destarte, quando houver a aplicação por um tribunal ordinário de uma norma anteriormente julgada incompatível com a constituição pelo Tribunal Constitucional em sede de controle difuso surge a necessidade de o Ministério Público levar a matéria ao conhecimento desta corte através de recurso, devolvendo a questão para que seja reapreciada. Ainda de maneira reflexa, uma decisão positiva de inconstitucionalidade pode vir a servir como base para um controle concreto. Trata-se da hipótese do processo misto de controle de constitucionalidade português (arts 281.º, n.º 3, da CRP, e 82.º da LTC), através do qual é possível vinculação geral quanto a questão de constitucionalidade a partir do controle concreto.

7. A aproximação entre o controle concentrado e difuso e a passagem da fiscalização concreta à fiscalização abstrata em Portugal O processo de declaração abstrata de inconstitucionalidade com base em controle concreto é uma figura sui generes de controle concentrado e ocorre em decorrência de controle concreto que pode se dar em havendo ao menos três julgamentos positivos de inconstitucionalidade, por iniciativa do Ministério Público ou de qualquer um dos juízes do Tribunal Constitucional (Art. 82º LTC). É um ponto de passagem da fiscalização concreta à fiscalização abstrata65, ficando claro a TP

PT

convergência entre o controle difuso e o abstrato, parte-se do concreto para o geral. Surge assim o que Canotilho chama de um fenômeno de generalização, pois através deste mecanismo “os efeitos jurídicos não se limitam aos casos concretos já julgados, antes se generaliza o juízo de inconstitucionalidade66.” Esta generalização do conteúdo da decisão tem por TP

PT

objeto e limita-se às normas julgadas inconstitucionais, e nos termos em que foram, nos três casos concretos. Esta generalização ocorre através de um novo processo de fiscalização abstrata sucessiva, sendo a questão novamente apreciada pelo TC. Assim não se trata de um mecanismo obrigatório ou automático. Parte-se de três julgamentos de controle difuso para um julgamento abstrato, com o detalhe de poderem os próprios membros do TC, além do Ministério Público, deflagrar o mecanismo67. TP

PT

O importante é que uma norma infraconstitucional seja julgada desconforme com a constituição em três oportunidades, não necessariamente infringindo o mesmo dispositivo constitucional. O Tribunal Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade com maior ou menor amplitude do que julgado nos casos concretos e nada impede que se declare abstratamente inconstitucional apenas um segmento da norma, não ela toda68. TP

65 PT

MIRANDA, 2008, p. 279.

TP

66 PT

CANOTILHO, 2008, p. 1024.

TP

67 PT

MIRANDA, 2008, p. 280-281.

TP

68 TP

PT

PT

MIRANDA, 2008, p. 281.

308

O regime português apresenta-se como original, pois como é dado aplicar ou desaplicar as leis de acordo com o sistema difuso e não existe a regra do stare decisis do direito norteamericano (vinculação pelos precedentes dos tribunais superiores) o sistema misto permite um modo de uniformização do entendimento constitucional através da passagem do difuso para o abstrato69. TP

PT

No Brasil, por seu turno, esta convergência entre os sistemas no Brasil tem sido feita de forma casuística e através das decisões do STF. Há uma desconsideração pelo nosso modelo tradicional em que compete ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, sem que se tenha qualquer apoio constitucional para tanto. Não coaduna com o paradigma constitucional de tripartição dos poderes esta atuação verdadeiramente legislativa do STF e o fato dela estar ocorrendo de maneira casuística, sem nenhum procedimento gera uma enorme insegurança jurídica e fere o devido processo legal. Não se pode olvidar que a existência de procedimentos assegura transparência e possibilita o controle da atuação do Judiciário. Aliás, a legitimidade deste poder não advém do exercício democrático, mas da observância e respeito ao procedimento. Assim, a existência de um procedimento previamente estabelecido no sistema português, neste contexto de objetivização do controle difuso e de aproximação dos dois grandes modelos de controle de constitucionalidade, é um exemplo de tratamento constitucionalmente legítimo para o tema. Pois a mutação constitucional e a diminuição do papel do Senado Federal pelo STF quando da ampliação subjetiva da eficácia da decisão no controle difuso é um ponto preocupante no concernente à legitimidade democrática e separação de poderes.

8. Conclusões 1. A proximidade linguística permitiu e fomenta a influência recíproca entre o sistema jurídico brasileiro e o lusitano. Em controle de constitucionalidade difuso a teoria constitucional que importou o sistema norte-americano para o Brasil foi exportado além-mar influenciando o sistema português. 2. Com o pós-guerra e o volver de atenções ao sistema de controle da constitucionalidade proposto por Hans Kelsen, concentrado em um único órgão, tanto Portugal como o Brasil, ainda que em momentos e de modo distintos, aderem a esta outra sistemática de controlar a constitucionalidade das leis, sem abrir mão contudo do sistema difuso já vigente, criando assim sistemas combinados e complexos de garantir a supremacia constitucional e a coerência intrasistêmica.

TP

69 PT

CANOTILHO, 2008, p. 1025.

309

3. No Brasil todo e qualquer órgão do judiciário tem competência para fazer o controle difuso de constitucionalidade das leis, mas os incidentes de constitucionalidade hão de ser julgados em todo e qualquer tribunal respeitando a cláusula da reserva de plenário. E o meio processual escorreito para participação do supremo neste processo é através do Recurso Extraordinário. 4. Em Portugal, de modo semelhante, todo e qualquer órgão do judiciário pode exercer o controle de constitucionalidade, sendo cabível recurso facultativo ou obrigatório, conforme o caso, para o Tribunal Constitucional. 5. Via de regra as decisões no controle difuso, que se dá incidentalmente no julgamento de um processo tem efeitos direto apenas inter partes e indiretos no Brasil de permitir a suspensão da execução da lei declarada inconstitucional pelo Senado Federal e em Portugal de permitir o desencadeamento de um processo de controle misto de constitucionalidade. 6. Há uma tendência de aproximação entre o modelo austríaco e americano de controle de constitucionalidade

e

se

observa

uma

tendente

objetivização

do

controle

difuso

de

constitucionalidade. Em ambos os países é visível a aproximação dos sistemas concentrado e difuso de controle da constitucionalidade das leis. 7. A convergência entre os sistemas não pode enfraquecer um ou priorizar o outro, há de se saber aproveitar as vantagens de cada um dos sistemas para a salvaguarda da supremacia da Constituição e harmonia do sistema. 8. Em Portugal há um procedimento para a convergência entre os sistemas de controle de constitucionalidade ou de generalização da decisão em sede de controle difuso. No Brasil a tese de que se pode atribuir efeitos erga omnes ao controle difuso, sem a participação do Senado Federal é preocupante por carecer de embasamento constitucional e por atingir a separação de poderes e o sistema de freios e contrapesos.

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310

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312

Supremo Tribunal Federal: Tribunal Constitucional Sul-Americano Luiz Magno Pinto Bastos Jr.1 TP

Thiago Yukio Guenka Campos

PT

TP

2 PT

Resumo

Abstract

O presente estudo tem por escopo analisar o papel desempenhado contemporaneamente pelo STF no arranjo político-constitucional brasileiro, a fim de identificá-lo como um autêntico tribunal constitucional. Contudo, a pesquisa não enfrentará o tema nos moldes como comumente é feita pela doutrina, que reduz a discussão à clássica tipologia binária de modelos de jurisdição constitucional (americano/austríaco), uma vez que os resultados são por demais conhecidos e um tanto quanto empobrecedores. Abordar-se-á o velho tema sob um distinto paradigma, isto é, a partir de um modelo-tipo de tribunal constitucional próprio do continente sul-americano, mais consentâneo à realidade brasileira, construído a partir da análise dos sistemas de jurisdição constitucional peculiares adotados pelos países do continente (em breve análise comparada). A partir do modelo desenhado, será possível identificar o STF como um autêntico tribunal constitucional sul-americano e, mais do que isso, concluir-se pela progressiva expansão de seu papel como tal desde a Constituição de 1988. Esse fortalecimento do papel do STF enquanto tribunal constitucional decorre, basicamente, de dois fatores: (a) inovações legislativas com vistar a permitir a dedicação cada vez maior da Corte na tarefa de sentinela da Constituição e a outorgar maior autoridade às suas decisões, reafirmando sua condição de intérprete supremo; e, (b) a mudança da autocompreensão da Corte de seu papel institucional dentro do ordenamento jurídico brasileiro, passando a assumir, definitivamente, o mister de protagonista na tutela da Constituição, o que foi ensejado sobretudo pela renovação de sua composição. Quanto à metodologia, empregou-se, preponderanemtente o método de abordagem indutivo, tendo em vista que, por fragmentos, identificaram-se subsídicos para a formulação de um modelo adequado para a compreensão do papel desempenhado pelo STF.

The claim of this study is to analyze the role played nowadays by Supreme Federal Court in the brazilian political-constitutional context, in order to indentify him as an authentic constitutional court. However, this research will not address the issue in the manner as is commonly done by the doctrine, which reduces the discussion to the classical binary typology of models of constitutional jurisdiction (american/austrian), since the results are well known and somewhat impoverishing. This research will address the old issue beneath a different paradigm, which means, from a proper South American model of constitutional court, more appropriated to the brazilian reality, built from the analysis of the peculiar constitutional jurisdiction systems, adopted by the countries of this continent (in a brief comparative analysis). From the model designed, it will be possible to identify the Supreme Court (STF) as an aunthentic South American constitutional court and, more than that, to concluse and realize it`s progressive expansion in such role since the 1988 Constituition. This strengthening of the role of the Supreme Court as a constitutional court is basically due to two factors: (a) legislative innovations in order to allow the growing commitment of the Court in the task of sentinel of the Constitution and grant greater authority to its decisions, reaffirming its condition as supreme interpreter; and (b) the change of the Court`s self comprehension of its intitutional role within the Brazilian legal system, assuming, definitely, the role of protagonist in the guardianship of the Constitution, which was occasioned primarily by the renewing of its composition. In the matter of methodology, it was used mainly the method of inductive approach, considering that, by fragments, were identified subsidies to formulate na appropriate model for understanding the role played by the Supreme Court.

Palavras-Chave: Direito Constitucional; Direito Comparado; Jurisdição Constitucional; Tribunal Constitucional Sul-Americano; Supremo Tribunal Federal.

Keywords: Constitutional Law; Comparative Law; Constitutional jurisdiction; South American Constitutional Court; Supreme Federal Court.

1 PT

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); [email protected].

TP

TP

2 PT

Bacharel em Direito da Universidade do Vale do Itajaí (Univali); [email protected].

313

1. Introdução Nos últimos tempos, talvez a temática mais debatida entre os constitucionalistas, ao lado dos direitos fundamentais, tenha sido a jurisdição constitucional. Uma imensidade de publicações abordando suas diversas nuanças emergiu entre nós desde a metade do século passado, época em que, após as experiências totalitárias vivenciadas, as constituições ocidentais encamparam definitivamente a necessidade de se limitar todos os poderes constituídos, inclusive o parlamento. Não obstante, são poucos os estudos brasileiros que, ao enfrentarem o tema, se ocupam com a análise institucional e o papel a ser desempenhado pelos tribunais constitucionais. Quando abordam o papel a ser desempenhado pelo STF, não raro omitem qualquer informação sobre a forma como devemos compreender sua atuação. Essas dificuldades resultam da falta de enfrentamento da questão a partir de um ponto de vista sul-americano. Justamente nesse espaço é que se insere o presente artigo. Este estudo tem por escopo analisar o papel desempenhado contemporaneamente pelo STF no arranjo político-constitucional brasileiro, a fim de identificá-lo como um autêntico tribunal constitucional. Contudo, não se enfrentará o tema nos moldes como comumente a abordagem é feita pela doutrina, que reduz a discussão à clássica tipologia binária de modelos de jurisdição constitucional (americano/austríaco), uma vez que os resultados são por demais conhecidos e um tanto quanto empobrecedores. Os clássicos modelos, apesar de sua incontestável relevância didática e histórica, não fornecem subsidíos suficientes para análise do papel atual do Supremo Tribunal Federal. Abordar-se-á o velho tema sob um distinto paradigma, isto é, a partir de um modelo-tipo de tribunal constitucional próprio do continente sul-americano, mais consentâneo à realidade brasileira, construído a partir da análise dos sistemas de jurisdição constitucional adotados pelos países do continente (em breve análise comparada). A partir do modelo desenhado, buscar-se-á identificar o STF como um autêntico tribunal constitucional sul-americano e, mais do que isso, verificar a progressiva expansão de seu papel como tal desde a Constituição de 1988.

2. Bases para a construção de um modelo de tribunal constitucional tipicamente sulamericano No contexto do constitucionalismo moderno, inaugurado pelo advento da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, a primeira constituição escrita, materializou-se a concepção de um documento político-jurídico limitativo dos poderes constituídos, inclusive do Legislativo. A constituição exige que todas as situações jurídicas de uma dada ordem jurídica devam estar concordes com os seus princípios e preceitos normativos, já que do princípio da supremacia constitucional decorre o da compatibilidade vertical das normas da ordem jurídica de um país3. As TP

PT

normas e atos jurídicos desconformes devem ser expungidos do ordenamento, donde emerge a

TP

3 PT

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18.ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

314

noção de positivação de mecanismos de garantia jurisdicional da constituição, cuja técnica principal e mais eficaz é o controle jurisdicional de constitucionalidade4. TP

PT

A partir dessa noção de submissão do legislador à Constituição é que se pode falar, então, em jurisdição constitucional no sentido empregado hoje, contexto no qual surge uma opulência de sistemas de jurisdição constitucional, comumente aglutinados pela doutrina em dois5 grandes TP

PT

modelos contrapostos: primeiramente, (a) o americano-difuso do judicial review of Legislation, que resultou da construção pretoriana da Suprema Corte estadunidense a partir da reconstrução moderna de precedentes britânicos que remontam à garantia do Law of the land, cujo marco é o multicitado leading case Marbury vs. Madison, de 1803. Nesse modelo, a fiscalização de constitucionalidade das normas incumbe a todos os órgãos judiciários, exercido incidentalmente, nos casos concretos (concrete case or controversy), por via de exceção, em que a decisão gera efeitos somente inter partes6; posteriormente, em razão de diversos inconvenientes à TP

incorporação

desse

modelo

PT

pelos

países

europeus7, TP

PT

(b)

o

austríaco-concentrado

do

Verfassungsgerichtsbarkeit, materializados nas constituições tcheca e austríaca de 1920, tendo Hans Kelsen como principal artífice na sua estruturação e teorização8. Nesse modelo europeuTP

4

PT

PT

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

TP

5

A doutrina reconhece um terceiro modelo, o francês, de fiscalização política exercida pelo Conselho Constitucional (Conseil Constitutionnel), de índole preventiva. Em razão da rigidez do princípio da separação de poderes na França, onde não se desenvolveu a mecânica estadunidense de checks and balances, não se admite a interferência do Poder Judiciário no âmbito de atuação do Parlamento. (CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000). Segundo Dominique Rosseau (Do Conselho Constitucional ao Tribunal Constitucional? Revista Direito Público, v. 1, n. 3, p. 89-98, jan./mar. de 2004. p. 89) “[a] criação, em 1958, do Conselho Constitucional possui uma intenção clara: pôr fim ao arbítrio e à hegemonia do Parlamento. Mas tem ainda outra intenção, expressa igualmente de modo claro: evitar a instauração de uma autêntica jurisdição constitucional, contrária à tradição política francesa.” Ressalte-se, contudo, que a reforma de 23/07/2008 acrescentou, inter alia, a possibilidade de controle judicial de constitucionalidade a posteriori na França, por via de exceção, que deixa de ser meramente preventivo e político. (SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, v. 250, p. 197-227, 2009).

TP

PT

6

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2.ed. Porto Alegre: Fabris, 1984. TP

PT

7

Algumas razões da inidoneidade da adoção do modelo americano pelos países europeus são apontadas por Louis Favoreu (As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004), quais sejam: a) a sacralização da lei (e não da constituição) na Europa, uma vez que, a partir da Revolução Francesa de 1789, grassou-se o dogma rousseauniano da infalibilidade da lei; b) a incapacidade dos juízes ordinários de exercerem a jurisdição constitucional, pois, acostumados a serem fiéis servidores das leis, careciam da aptidão necessária à tarefa de controlá-las; c) a ausência de unidade de jurisdição (separação de contenciosos nos países europeus), podendo acarretar divergência de opinião quanto à constitucionalidade de uma mesma lei pelas distintas jurisdições; e, d) a insuficiência da rigidez das constituições europeias. Além disso, Cappelletti (O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2.ed. Porto Alegre: Fabris, 1984) identifica duas inconveniências da incorporação do modelo difuso nos países da Europa continental, que adotam o sistema jurídico de derivação romanística (civil law) e que ignoram o princípio do stare decisis, típico dos sistemas de common law: a) a formação de “contrastes de tendências” entre órgãos judiciários, já que determinados órgão não aplicariam a lei por reputá-la inconstitucional, ao passo que outros a aplicariam, julgando-a constitucional, ensejando situações de insegurança jurídica; e, b) de cunho prático, consectário do delgado efeito inter partes das decisões, exigindo a instauração de novo processo por aquele que pretendesse a inaplicabilidade de uma lei inconstitucional, ainda que os tribunais já tivessem reiteradamente decidido nesse sentido.

TP

PT

8

O modelo austríaco, assim como o americano, também resultou de um ciclo evolutivo. Antes de Kelsen, Robert Von Mohl (1824) já propunha um modelo próximo ao americano. Nos “colóquios de juristas alemães”, realizados em Viena (1862) e Mayence (1863), concluiu-se que os juízes poderiam apreciar a constitucionalidade formal das leis. Joseph Eötvös defendia a criação de uma Corte Suprema e Heinrich Jaques a criação de uma jurisdição especializada incumbida de centralizar o controle de constitucionalidade (inclusive material) das leis. Por fim, a contribuição de Georg Jellinek, com a obra “Uma Corte Constitucional para Áustria” (1885), que representou um marco teórico, alinhavando o modelo de Corte Constitucional que seria adotado anos depois, em 1920, pela Áustria (JAYME, Fernando Gonzaga. Tribunal constitucional: exigência democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 1990). Antecedente mais remoto foi a TP

PT

315

kelseniano, o controle das normas passa a ser confiado a um Tribunal Constitucional, situado fora do Poder Judiciário, que desempenha função tipicamente política (legislador negativo)9. TP

PT

Bem-sucedido, o modelo kelseniano de jurisdição constitucional é incorporado — com variações — por inúmeros países na Europa, estimulados pela derrocada dos governos totalitários e pela redemocratização dos países10, edificados ainda sob a dupla desconfiança, tanto dos juízes TP

PT

ordinários quanto da soberania do legislador11. Neste contexto, a instituição de um tribunal TP

PT

constitucional passa a ser considerada como uma exigência democrática, haja vista que ”uma Constituição sem um Tribunal constitucional é uma Constituição ferida de morte, pois é no Tribunal Constitucional que a Constituição deposita suas possibilidades e seu futuro”12. TP

PT

Tem-se, portanto, no desdobramento histórico e na diversidade das realidades políticojurídicas estadunidense e europeia o substrato da clássica distinção doutrinária antitética dos modelos americano e europeu de jurisdição constitucional. Sempre lembrada, nesse ponto, a classificação dicotômica forjada pelo processualista italiano Piero Calamandrei13, segundo o qual TP

PT

o modelo americano caracteriza-se por ser um controle difuso, incidental, especial (rechaço da lei inter partes) e declarativo (produz efeito ex tunc), ao passo que o modelo kelseniano um controle concentrado, principal, geral (invalidação da lei erga omnes) e constitutivo (produz efeito ex nunc).

2.1 Modelos clássicos: obsolescência da concepção dicotômica Um primeiro passo em favor da sistematização de um modelo tipicamente sul-americano de jurisdição constitucional, que servirá de substrato para a edificação de um modelo-tipo de tribunal constitucional sul-americano, está no fato de a clássica dicotomia americano/europeu revelar-se insuficiente para o estudo dos múltiplos sistemas de jurisdição constitucional existentes atualmente, em especial os desenvolvidos pelos países da América do Sul. O jurista espanhol

tentativa de Emmanuel Joseph Sieyès de implantar um Jury Constitutionnaire na França, rejeitada pela Assembleia Constituinte de 1795. (SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, v. 250, p. 197-227, 2009). 9

A rigor, o Tribunal Constitucional, no desenho kelseniano, é complementar ao Poder Legislativo, reforçando-o frente aos juízes, na medida em que reafirma o princípio da sujeição dos juízes à lei sem vício. Assim, enquanto o modelo americano representa um ato de confiança dos juízes e de desconfiança no legislador, o modelo kelseniano, diametralmente antagônico, consagra um ato de desconfiança nos juízes e de fidúcia no legislador (FERNÁNDEZ SEGADO, Francisco. La obsolescencia de la bipolaridade “modelo americano-modelo europeo kelseniano” como criterio analítico del control de constitucionalidad y la búsqueda de una nueva tipología explicativa. Anuario Parlamento y Constitución, n. 6, p. 9-73, 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2010).

TP

PT

10 PT

LÖSING, Nobert. La jurisdiccionalidad constitucional en latinoamérica. Madrid: Dykinson, 2002.

TP

11 PT

FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004.

TP

12

García de Enterría apud CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito constitucional. 14.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 367. TP

PT

TP

13 PT

FERNÁNDEZ SEGADO, Francisco, op. cit.

316

Francisco Fernandez Segado14, por exemplo, sustenta que a expansão da jurisdição TP

PT

constitucional propiciou uma hibridação dos modelos que, aliado ao processo preexistente de convergência dos elementos dos sistemas tradicionais, resultou na perda de utilidade analítica da contraposição do modelo americano ao modelo europeu. Aliás, segundo o autor, sequer faz sentido falar em um “sistema europeu”, por existirem mais distinções entre os sistemas de jurisdição constitucional adotados pelos países europeus do que algum deles em relação ao estadunidense. Sem a pretensão de aprofundar o tema, que desborda dos limites deste estudo, basta destacar que importante corrente doutrinária põe em xeque essa clássica dicotomia por diversos fatores, sumarizados aqui em quatro principais: (a) uma progressiva aproximação dos modelos clássicos de jurisdição de constitucional, desde a reforma constitucional austríaca de 1929; (b) a convergência do papel desempenhado pelo órgão protagonista no controle de constitucionalidade de cada modelo, que cada vez mais se concentra na função de sentinela da constituição e dos direitos humanos; (c) a dificuldade de se identificar um modelo europeu de jurisdição constitucional e, portanto, de tribunal constitucional, tamanha a matização dos sistemas adotados pelos países europeus e de funções exercidas pelas cortes constitucionais europeias; e, fundamentalmente, (d) a profusão de modelos híbridos, uma vez que diversos países, sobretudo da América Latina, conjugam em seu sistema de jurisdição constitucional fragmentos de ambos os modelos15. TP

PT

Não se busca, com isso, sonegar certas distinções que remanescem entre os modelos, mas tão somente demonstrar uma progressiva convergência – que não se confunde com identidade – que sepulta muitas das diferenças antitéticas preconizadas por Calamandrei e repisadas pela doutrina, acenando para uma guinada no estudo dos modelos de jurisdição constitucional16. É dizer: não se pode mais analisá-los da mesma feição como outrora, em que TP

PT

14

La obsolescencia de la bipolaridade “modelo americano-modelo europeo kelseniano” como criterio analítico del control de constitucionalidad y la búsqueda de una nueva tipología explicativa. Anuario Parlamento y Constitución, n. 6, p. 9-73, 2002. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2010. TP

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15 Lucio Pegoraro identifica dois novos modelos: a) um tertium genus de jurisdição constitucional (sistema difusoconcentrado), caracterizado pela incidentalidade do acesso, ou seja, o controle de constitucionalidade é concentrado em um órgão central, e o elemento de difusão incide somente na fase introdutória do processo, não na fase decisória, conforme alhures delineado e exemplificado (Alemanha, Itália e Espanha); e, b) um quartum genus, presente na América Latina, Portugal, Rússia, Grécia e noutros países, em que a hibridação é ainda mais acentuada, porquanto autoriza qualquer juiz a diretamente não aplicar a lei inconstitucional (controle concreto), ao passo que estabelecem um tribunal ou sala especializada com competência para assumir o juízo de inconstitucionalidade (controle abstrato), entremesclando-se os modelos não somente na fase de instauração (tertium genus), senão também na fase decisória. Muitos desses países, aliás, contam com um procedimento concreto de tutela de direitos (amparo, habeas corpus, mandado de segurança, habeas data etc.), que permitem a convivência do controle difuso-concentrado. TP

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(PEGORARO, Lucio. Clasificaciones y modelos de justicia constitucional em La dinámica de los ordenamientos. Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, n. 2, p. 131-158, 2004. Disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2010; PEGORARO, Lucio. A circulação, a recepção e a hibridação dos modelos de justiça constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 42, n. 165, p. 59-76, jan./mar. de 2005 16

Em sentido contrário, Roger Stiefelmann Leal nega a existência de uma mistura ou de um tertium ou quartum genus, sob o argumento de que “não há propriamente hibridação, mas cumulação, mera reunião dos sistemas clássicos em paralelo”, sendo as questões apartadamente suscitadas, ora em sede de controle concreto, ora de controle abstrato. A alegada convergência, para o autor, centra-se em questões de cunho meramente processual, mas que em nada altera o TP

PT

317

predominavam classificações dicotômicas contrapostas. Vislumbram-se hoje inúmeros aspectos de convergência entre os modelos, notadamente o papel desempenhado pelas Cortes Constitucionais – tribunais constitucionais e supremas cortes –, que cada vez mais concentram sua atuação na sentinela da carta magna e na tutela dos direitos fundamentais. Enfim, a tipologia binária tradicional, a despeito de sua função pedagógica e de sua raiz histórica, não abarca a diversidade e a hibridação de sistemas existentes atualmente, em especial dos adotados pelos países da América do Sul, que reclamam a construção de um modelo mais adequado à sua realidade.

2.2 Modelo sul-americano de jurisdição constitucional: substrato para a identificação do tribunal constitucional sul-americano A partir da certificação pela doutrina da existência de uma tendência ao entremesclamento dos modelos tradicionais, é possível verificar certo consenso em relação à semelhança dos sistemas híbridos nos países da América do Sul, o que torna proveitoso um esforço para a identificação de um modelo de jurisdição constitucional sul-americano17, de contornos ainda pouco TP

PT

definidos.

2.2.1 Modelo Sul-Americano de Jurisdição Constitucional O desdobramento da jurisdição constitucional na América do Sul tem traços singulares, marcado pela superveniente influência do modelo europeu em ordenamentos originariamente inspirados no americano18. Enquanto as primeiras constituições republicanas sul-americanas do TP

PT

século XIX e da primeira metade do século XX experimentaram significativo influxo da experiência constitucional estadunidense – incorporação do sistema difuso encabeçado por uma suprema corte –, as novas constituições, posteriores à segunda metade do século XX, espelharam-se no modelo europeu de jurisdição constitucional concentrada em um tribunal constitucional.19 TP

PT

núcleo essencial da distinção, de viés institucional: o modelo americano caracteriza-se pela integração da jurisdição constitucional à jurisdição ordinária (estrutura monista), ao passo que o modelo europeu concentra o exercício da jurisdição constitucional a um órgão especial, apartado do aparato judicial, ao qual cabe apenas a jurisdição ordinária (estrutura dualista). Os denominados modelos mistos nada mais são do que subespécies do arquétipo de estrutura monista. Nesse diapasão, o autor conclui que a dicotomia clássica mantém-se íntegra e indispensável, uma vez que, na essência – cunho institucional –, a distinção entre os modelos remanesce. (LEAL, Roger Stiefelmann. A convergência dos sistemas de controle de constitucionalidade: aspectos processuais e institucionais. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 14, n. 57, p. 62-81, out./dez. de 2006). 17

Isso não impede a possibilidade de que países de outros continentes se enquadrem no modelo sul-americano, tampouco significa que o modelo encerra todos os países sul-americanos, como é o caso da Argentina, que conserva o modelo difuso, conforme será detalhado adiante.

TP

PT

18

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da justiça constitucional. Revista de direito constitucional e internacional, a. 15, n. 59, p.176-211, abr./jun. de 2007.

TP

PT

TP

19 PT

LÖSING, Nobert. La jurisdiccionalidad constitucional en latinoamérica. Madrid: Dykinson, 2002.

318

Não obstante essa tendência de incorporação do modelo europeu pelos países da América do Sul aliada à expansão da jurisdição constitucional impelida pelos diversos processos de (re)democratização no continente, não houve propriamente uma opção pelo modelo europeu em substituição do modelo americano. A tônica da realidade sul-americana consistiu na incorporação de elementos do arquétipo austríaco, sem abrir mão do controle concreto-difuso de matriz americana, mesclando essas influências e desenvolvendo um modelo paralelo ou misto. Elucida o jurista alemão Lösing20 que: TP

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Apesar da rápida expansão da jurisdição constitucional na América Latina nos últimos anos, não se trata de simples traslado dos modelos europeus (embora estes tenham influído consideravelmente), senão um desenvolvimento do próprio direito constitucional, em forma congruente e escalonada. Isto fica claro a partir da revisão do desenvolvimento constitucional da jurisdição constitucional desde a independência da Espanha. Daí que na América Latina o direito comparado sempre desempenhou um papel importante no desenvolvimento do próprio direito. A princípio, no âmbito do direito constitucional, o olhar se dirigia principalmente para os Estados Unidos, enquanto que o direito privado provinha principalmente do espaço jurídico europeu.21 TP

PT

Destarte, desenvolve-se um modelo singular na América do Sul que, como corolário do desdobramento histórico, incorporou fragmentos do modelo austríaco de jurisdição constitucional, assentado na figura de tribunais constitucionais, sem, contudo, desatar-se do modelo americano, originariamente albergado, dando origem a um sistema original, típico, nem americano, nem europeu, e sim, um modelo sul-americano. Entretanto, por se tratar de fenômeno recente e pouco abordado pela doutrina, ainda é difícil delinear com precisão as características desse modelo sul-americano, diante da profusão de arranjos

institucionais

de

controle

de

constitucionalidade

no

continente,

dotados

de

22

especificidades que serão abordadas a seguir. Digna de nota a doutrina de Favoreu : TP

PT

Em matéria de justiça constitucional, os países da América Latina não fizeram a escolha entre os modelos estadunidense e europeu: fizeram coexistir o controle concentrado e o controle difuso. [...]. De fato, podemos considerar que, ao lado dos modelos estadunidense e europeu, há também um modelo sul-americano, cujas características comuns ainda não foram definidas.

Justamente “por inexistir uma estrutura uniforme de controle de constitucionalidade das leis nos países da América Latina”, Fernando Jayme nega a existência de um modelo latinoamericano. Para o autor, o que verdadeiramente existe na América Latina “é uma pluralidade de modelos, ora identificados com o sistema americano, ora com o europeu, com o predomínio do

20 PT

La jurisdiccionalidad constitucional en latinoamérica. Madrid: Dykinson, 2002. p. 35-36.

TP

21 PT

Todas as traduções neste trabalho serão livres, razão pela qual não se fará mais essa observação doravante.

TP

TP

22 PT

FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004. p. 131.

319

sistema misto, que incorpora ambos os modelos de controle de constitucionalidade, o difuso e o concentrado” 23. TP

PT

Contudo, o fato de haver uma multiplicidade de sistemas na América do Sul, cada qual com suas peculiaridades, não é óbice à identificação de um modelo próprio. Justo por tratar-se de postulação de um “modelo” (padrão), não se exige uma “identidade” entre os sistemas cotejados, mas apenas a convergência de aspectos elementares que permita reuni-los e distingui-los dos modelos tradicionalmente concebidos, insuficientes para identificá-los. As singularidades de cada sistema não descaracterizam o modelo. A pensar desse modo, exigindo-se uma “uniformidade de controle de constitucionalidade nos países”, seria difícil, senão impossível, falar-se atualmente em um modelo de jurisdição constitucional, mormente em um modelo europeu, em razão da enorme diversidade entre os sistemas existentes, conforme mencionado. Sem a pretensão de uma análise comparada exaustiva, mas apenas aduzindo as características elementares de cada sistema de jurisdição constitucional desenvolvido pelos países sul-americanos necessárias para justificar o modelo proposto, far-se-á, em seguida, uma breve descrição deles24. TP

PT

Na Argentina, a despeito da modificação imprimida pela reforma constitucional de 1994, foi substancialmente mantido o conteúdo da Constituição da Nação de 1853 e, via de consequência, o modelo americano de controle jurisdicional difuso de constitucionalidade das leis, consagrado pela jurisprudência no Caso Sojo de 1887 – leading case similar ao Marbury vs. Madison – ante a ausência de previsão constitucional expressa do controle. Todos os juízes e tribunais podem repelir a lei inconstitucional, no caso concreto25, cuja decisão gera efeito somente inter partes. A TP

PT

Corte Suprema de Justicia de La Nación é o órgão cupular e intérprete supremo da Constituição. Não obstante, mesmo nos casos em que decida pela inconstitucionalidade de determinada lei, por meio da apelação extraordinária ou da ação de amparo, sua decisão somente gera efeito inter partes e dentro do processo, permanecendo a lei vigente e válida26, não vinculando os juízes TP

23

PT

PT

JAYME, Fernando Gonzaga. Tribunal constitucional: exigência democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 1990. p. 47.

TP

24

A análise comparada concentrar-se-á no critério subjetivo ou orgânico da conhecida classificação de Mauro Cappelletti, tendo em vista que esse é o aspecto essencial da distinção do modelo sul-americano em relação aos demais. Segundo esse critério, o autor distingue: “a) o ‘sistema difuso’, isto é, aquele em que o poder de controle pertence a todos os órgãos judiciários de um dado ordenamento jurídico, que o exercitam incidentalmente, na ocasião da decisão das causas de sua competência; e b) o ‘sistema concentrado’, em que o poder de controle se concentra, ao contrário, em um único órgão judiciário.” (Cf. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2.ed. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 67) TP

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25

Há a possibilidade de se ajuizar ação declaratória direta de inconstitucionalidade por qualquer pessoa que demonstre que a aplicação da norma inconstitucional possa lhe causar lesão de direito, conforme decisão da Corte Suprema de 1985, no caso Província de Santiago del Estero c/ Gobierno Nacional. Essa ação é julgada por qualquer juiz e gera efeito inter partes somente. (NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006). TP

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26 DALLA VIA, Alberto Ricardo. La justicia constitucional em Argentina. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, n. 1, p. 35-48, jan./dez. de 1997. Disponível em . Acesso em: 13 jul. 2010. TP

PT

320

inferiores, que podem aplicá-la noutros casos, embora os juízes, de modo geral, sigam a jurisprudência da Corte.27 TP

PT

A Bolívia, por meio da reforma constitucional de 1994, instituiu o Tribunal Constitucional como o máximo guardião e intérprete da Constituição que, organicamente inserto no Poder Judiciário, se mantém independente28. O modelo de justiça constitucional boliviano conservou TP

PT

elementos do controle difuso-concreto de constitucionalidade, caracterizando um sistema de jurisdição constitucional misto29. Aos juízes, por ocasião dos casos concretos, inclusive nas ações TP

PT

de proteção aos direitos fundamentais, incumbe afastar a lei que reputarem, com segurança, ser incompatível com a Constituição. De outro lado, em caso de dúvida sobre a constitucionalidade da lei, os magistrados devem submeter a questão, por meio do recurso incidental de inconstitucionalidade, ao Tribunal Constitucional, ao qual compete exercer, além do controle concreto, também o controle abstrato e concentrado de constitucionalidade das leis30. As decisões TP

PT

do Tribunal Constitucional no controle concreto geram efeitos inter partes; no controle abstrato, efeitos erga omnes31. TP

PT

O sistema equatoriano também é dito misto32, combinando o sistema concentrado no TP

PT

Tribunal Constitucional com o difuso, de acordo com a reforma constitucional de 199833. Portanto, TP

PT

os órgãos judiciais podem, diante de casos concretos, afastar preceitos normativos inconstitucionais, com efeitos inter partes. Nesses casos, devem apresentar um relatório ao Tribunal Constitucional para que a Corte, entendendo por bem, resolva as matérias constitucionais com efeitos erga omnes. O Tribunal também possui competência para julgar as ações diretas de 27 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

28 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

29

SILVA, José Afonso da. Controle de constitucionalidade: variações sobre o mesmo tema. Anuario Iberoamericano de Derecho Constitucional, Madri, v. 6, p. 9-19, 2002. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2010; RIVERA SANTIVÁÑEZ, José Antônio. El control de constitucionalidad en Bolívia. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, n. 3, p. 205-237, jan./dez. de 1999. Disponível em < http://www.cepc.es/rap/Publicaciones/Revistas/8/AIB_003_205.pdf>. Acesso em: 13 jul. 2010. TP

PT

Para o chileno Nogueira Alcalá (op. cit.), a Bolívia adotou modelo concentrado, uma vez que os demais órgãos judiciais, em caso de dúvida sobre a constitucionalidade da norma, devem promover o recurso incidental de constitucionalidade para deliberação do TC sobre a questão constitucional. Contudo, conforme acentua Rivera Santiváñez (op. cit.), exmagistrado do Tribunal Constitucional da Bolívia, mesmo com a reforma constitucional de 1994, com a criação do Tribunal Constitucional, os órgãos judiciais permaneceram com competência para diretamente rechaçar a norma inconstitucional, em caso de certeza de sua incompatibilidade com a Constituição, com fundamento no art. 228 da Constituição Boliviana. Só devem submeter a questão ao TC quando tiverem dúvida sobre sua inconstitucionalidade. 30 PT

RIVERA SANTIVÁÑEZ, José Antônio, op. cit.

TP

31

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006.

TP

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32

É necessário advertir que o modelo equatoriano estudado é aquele anterior à recente Constitución de La República Del Ecuador de 2008, que, aparentemente, conservou um sistema misto de jurisdição constitucional, conforme se deduz dos arts. 425 e 426 (controle difuso) e 428 e 436-439 (controle concentrado no Tribunal Constitucional) da Carta Política em vigor. Todavia, optou-se neste trabalho pelo estudo do sistema anterior, ante a escassez do acervo doutrinário e jurisprudencial equatoriano em torno do sistema adotado pela nova Constituição. TP

PT

33 Discute-se no Equador se em 1998 houve uma reforma à Constituição de 1979 ou se, deveras, promulgou-se uma nova Constituição (NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.), equivalente à discussão brasileira sobre a reforma constitucional de 1969. TP

PT

321

constitucionalidade (controle concentrado) e recursal contra decisões denegatórias em ações de tutela de direitos fundamentais.34 TP

PT

O Peru adota o sistema dual ou paralelo, caracterizado pela coexistência do sistema difuso-concreto – entregue aos juízes e tribunais ordinários, em que as decisões têm efeitos inter partes – com o sistema abstrato-concentrado35 no Tribunal Constitucional – situado fora do TP

PT

Judiciário, cujas decisões geram efeitos erga omnes – sem que os sistemas se misturem, nos ditames da Constituição de 1993. No caso do controle difuso-concreto, os órgãos judiciais, ao afastarem a aplicação de uma lei inconstitucional, devem submeter a questão à Sala de Derecho Constitucional y social de la Corte Suprema de Justicia, a qual possui, em definitivo, o poder de revisar o juízo de constitucionalidade no caso concreto. O Tribunal Constitucional, portanto, não participa do controle concreto, à exceção dos casos em que de decisões judiciais denegatórias das ações constitucionais protetoras de direitos fundamentais, ocasião em o Tribunal Constitucional possui competência revisional, quebrando-se o paralelismo dos sistemas difuso e concentrado, entremesclando-os.36 TP

PT

Pela vigente Constituição de 1967, o Uruguai encampa um sistema concentrado na Suprema Corte de Justicia, que encabeça o Poder Judiciário e possui competência exclusiva e originária para declarar a inconstitucionalidade das leis e decretos com força de lei. A Corte pode ser instada de ofício pelo juiz ou tribunal; pela parte ou terceiro interessado, no caso concreto, por via de exceção; e por via de ação direta, estando legitimados todos aqueles que se considerem lesados por uma lei em seu interesse direto, pessoal e legítimo. As decisões de inconstitucionalidade da Corte, em quaisquer casos, produzem efeitos circunscritos ao caso concreto e ao procedimento em que haja se pronunciado, dando-se ciência ao Poder Legislativo para que, a seu critério, mantenha ou revogue a lei37. Logo, no caso da ação direta, a decisão da TP

PT

Corte tem por efeito obstar que a lei declarada inconstitucional seja aplicada contra aquele que ajuizou a ação, autorizando-o a utilizá-la como exceção em todos os procedimentos judiciais.38 TP

PT

Por outro lado, a proteção de direitos fundamentais, concretizada por meio de habeas corpus e 34 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

35

O Peru foi o primeiro país da América Latina a instituir um código que disciplina de forma integral e sistemática o processo constitucional, o qual veda, expressamente, a concessão de liminar em ações diretas de constitucionalidade (ROMAN, Flávio José. O Supremo Tribunal Federal brasileiro e outros tribunais constitucionais sul-americanos: breve estudo comparado. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 15, n. 58, p. 51-77, jan./mar. de 2007).

TP

PT

36 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

37

BOSSIO REIG, Sara. A práxis do controle de constitucionalidade na atualidade. Supremo Tribunal Federal, palestras, 18 set. 2007. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2010. TP

PT

38

ESTEVA GALLICCHIO, La jurisdicción constitucional em Uruguay. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, n. 1, p. 357-378, jan./dez. de 1997. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2010. TP

PT

Conforme Sara Bossio Reig (op. cit., p. 9), presidente da Suprema Corte de Justiça do Uruguai, “[a] característica essencial da declaratória de inconstitucionalidade pela Suprema Corte de Justiça é que é um sistema concentrado e que se rege somente para o caso concreto. São casos exatamente iguais. Se essa lei atinge outra pessoa, essa pessoa precisa entrar com a mesma ação; a Corte, então, pode remeter-se à declaração anterior. Mas há necessidade de que a Suprema Corte diga se a lei é ou não constitucional.”

322

recurso de amparo, é conferida apenas aos tribunais inferiores, não sendo possível recorrer à Corte Suprema39. TP

PT

A Venezuela mantém um sistema misto de jurisdição constitucional. A Constitución Bolivariana de Venezuela de 1999 impõe a todos os juízes o dever de afastar as normas incompatíveis com a Constituição, em qualquer causa que conheçam (sistema difuso), ao passo que assenta um controle concentrado de constitucionalidade em uma Sala Constitucional do Tribunal Supremo, a quem cabe a interpretação última e vinculante da Constituição. À Sala Constitucional, que goza de autonomia funcional, financeira e administrativa, compete declarar a inconstitucionalidade de leis e atos estatais com força de lei, via ação popular que pode ser promovida por qualquer habitante do país, assim como revisar as sentenças de amparo constitucional e de controle de constitucionalidade das leis, garantindo a unidade de interpretação e aplicação da Carta. Não existem recursos ulteriores à suas decisões e podem, até mesmo, declarar a inconstitucionalidade de sentenças das outras Salas do Tribunal Supremo.40 TP

PT

O Paraguai, por sua vez, adota um sistema concentrado na Corte Suprema de Justicia, descabendo aos órgãos judiciais inferiores afastarem a lei reputada inconstitucional, ocasião em que devem consultar a Corte sobre a constitucionalidade da norma41. Tanto o pleno da Corte TP

PT

como a Sala Constitucional têm competência em matéria de jurisdição constitucional: à Sala Constitucional compete processar e julgar as exceções de inconstitucionalidade promovidas nos casos concretos e as ações diretas de inconstitucionalidade em face de leis, demais atos normativos e decisões judiciais; ao pleno da Corte cabe analisar as questões específicas determinadas por lei, como as ações de inconstitucionalidade relativas a questões eleitorais, assim como revisar as decisões da Sala Constitucional por solicitação de qualquer ministro42. As TP

decisões da Corte – do pleno ou da Sala – produzem, em regra, apenas efeitos inter partes

PT

TP

43 PT

No Chile assentou-se, com a reforma constitucional de 200544 à Constituição de 1980, um TP

PT

sistema concentrado no Tribunal Constitucional, situado fora dos três Poderes. Esse órgão é o 39

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006.

TP

PT

40 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

41 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

42

TORRES KIRMSER, José Raúl. La práxis del control de constitucionalidad en el Paraguay. Supremo Tribunal Federal, palestras, 21 set. 2007. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2010. TP

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43

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006.

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Torres Kirmser (op. cit.), presidente da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, ressalta que há quem entenda que as decisões da Sala Constitucional possuem efeitos para o caso concreto, ao passo que as do pleno geram efeitos erga omnes. Inclusive, faz menção a alguns precedentes em que a Corte Suprema tem atribuído efeitos erga omnes às decisões de inconstitucionalidade, malgrado destacar a tendência conservadora da Corte. 44

Antes da reforma constitucional de 2005, o Chile adotava um sistema de duplo controle concentrado de constitucionalidade, conforme Nogueira Alcalá (op. cit.). Havia um controle repressivo de constitucionalidade de forma concentrada e com efeitos inter partes exercido pela Suprema Corte, concomitante ao controle preventivo exercido, também de forma concentrada, pelo Tribunal Constitucional. TP

PT

323

único competente para declarar a inaplicabilidade de uma norma inconstitucional45, competindoTP

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lhe exclusivamente realizar o controle preventivo de normas infraconstitucionais e de tratados internacionais, assim como os controles repressivos abstrato e concreto. O controle concreto é exercido por uma Sala do Tribunal Constitucional, via recurso de inaplicabilidade por inconstitucionalidade manejável pela parte afetada46 no caso concreto, em que a decisão de TP

PT

inconstitucionalidade produz apenas efeitos inter partes. Declarada a inaplicabilidade do preceito legal, a questão é submetida ao pleno do Tribunal para que, realizando o controle abstrato de constitucionalidade de ofício, possa determinar a extrusão da lei inconstitucional (efeito erga omnes). É curioso o fato de que o Tribunal Constitucional chileno é o único da América Latina que não tem competência em matéria de proteção de direitos fundamentais por meio de um recurso de amparo extraordinário, tarefa entregue à jurisdição ordinária por meio do habeas corpus e recurso de proteção.47 TP

PT

A Colômbia, pela vigente Constituição Política de 1991, estabelece uma Corte Constitucional, órgão máximo de guarda da Carta e que integra o Judiciário, com competência para o controle abstrato e concentrado das leis48, cujas decisões produzem efeitos erga omnes49, TP

PT

TP

PT

ao mesmo tempo em que reconhece o poder aos juízes de, por meio da exceção de inconstitucionalidade, absterem-se de aplicar leis inconstitucionais ao caso concreto50. A Corte TP

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Constitucional, contudo, não participa desse controle difuso, porquanto das decisões judiciais que

45

Cea Egaña (Praxis del control de constitucionalidad en Chile. Supremo Tribunal Federal, palestras, 27 set. 2007. Disponível em: . Acesso em 17 jul. 2010) ressalta que não há uma posição definitiva no Chile, após a reforma de 2005, concernente à possibilidade dos tribunais superiores afastarem a aplicação de normas reputadas inconstitucionais em casos concretos de proteção de direitos fundamentais (habeas corpus e recurso de proteção), exercendo, assim, um controle difuso. Salienta, ademais, a existência de alguns precedentes de tribunais superiores neste sentido, mas que tal linha jurisprudencial, alguns meses após a reforma, não teve continuidade. TP

PT

46

Os tribunais ordinários e as cortes de apelação não podem propor a questão de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional, ranço da concepção perfilhada pelo constituinte de 1925 de que entregar o controle de constitucionalidade aos tribunais ordinários importaria na politização dos juízes, o que deveria ser evitado (NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.). TP

PT

47 PT

NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

TP

48

Curiosamente, na Colômbia, o controle concentrado antecedeu o controle difuso. É que a Constituição de 1858 da Colômbia implementou o controle concentrado de constitucionalidade das leis, antes mesmo da Áustria (1919-1920), conferindo efeitos erga omnes às decisões de inconstitucionalidade. O controle difuso somente foi incorporado por meio da reforma de 1910. Ademais, por meio desta reforma de 1910, a Colômbia estabeleceu, pela primeira vez no mundo, la acción popular de inconstitucionalidad, característica essencial do sistema colombiano, que legitima todos os cidadãos a pleitear, a qualquer tempo, o expurgo das leis inconstitucionais do ordenamento. Esta ação permanece garantida na Constituição vigente, competindo à Corte Constitucional seu julgamento, com efeitos erga omnes e ex nunc. (NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006). TP

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49

Interessante a disposição constitucional Colombiana que permite “a Corte Constitucional declarar a inconstitucionalidade formal do ato normativo por vício sanável e, assim, devolvê-lo à deliberação do Congresso para posterior análise da alegada inconstitucionalidade de fundo” (ROMAN, Flávio José. O Supremo Tribunal Federal brasileiro e outros tribunais constitucionais sul-americanos: breve estudo comparado. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 15, n. 58, p. 51-77, jan./mar. de 2007. p. 59). Ademais, a ação para arguir a inconstitucionalidade formal da lei caduca em um ano. Transcorrido o lapso, o vício do legislador considera-se sanado (GIRÓN REGUERA, Emilia. El control de constitucionalidade en Colombia. In: VIII Congreso Iberoamericano de Derecho Constitucional, Sevilha, 3-5 dez. 2003. Disponível em: . Acesso em: 19 jul. 2010). TP

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50 PT

ROMAN, Flávio José, op. cit.

324

negam a aplicação da lei inconstitucional para o caso concreto não cabe recurso àquela Corte, salvo quando houver ofensa a direitos fundamentais, ocasião em que poderá a Corte anulá-las51. TP

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Desse modo, vislumbra-se que o sistema colombiano aproxima-se do peruano, configurando um modelo paralelo ou dual52, entrecruzando-se apenas em tema de proteção dos direitos TP

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fundamentais. Por último, o Brasil, na esteira dos demais países sul-americanos, após a superação do dogma da soberania do Parlamento – tônica da Constituição Imperial de 1824 –, encampou embrionariamente um sistema difuso positivado na primeira Constituição Republicana de 1891, calcado no constitucionalismo estadunidense que exercia grande influência sobre Ruy Barbosa, principal artífice da Carta53. Em seguida, foram sucessivamente incorporados elementos do TP

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modelo concentrado europeu, num longo “processo de concentração”54, como a introdução da TP

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representação interventiva pela Constituição de 1934 e, sobretudo, pela Emenda Constitucional n.º 16 de 1965 à Constituição de 1946, que instituiu definitivamente o controle concentradoabstrato no Brasil, via representação genérica de inconstitucionalidade, a cargo do ProcuradorGeral da República, unicamente55. A vigente Constituição de 1988 manteve um sistema misto de TP

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jurisdição constitucional no país, combinando o controle difuso-concreto desempenhado por todos os órgãos judiciais, ao lado do controle concentrado-abstrato no Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário e intérprete supremo da Lex Mater, ao qual também compete a última palavra no controle difuso, por meio do recurso extraordinário56. A Carta Excelsa de 1988, TP

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dentre as inúmeras inovações, introduziu o controle de constitucionalidade por omissão e ampliou consideravelmente o rol de legitimados para a propositura da ação direta de constitucionalidade. Com a ampliação de legitimados, houve uma redução do significado do controle difuso de constitucionalidade, caminhando-se para um sistema misto de jurisdição constitucional com ênfase no controle concentrado, e não mais com acento no sistema difuso, como outrora.57 TP

51

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NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto, op. cit.

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52

Vale anotar a distinção de que no sistema peruano o Tribunal Constitucional situa-se fora do Poder Judicial, ao revés do que sucede no sistema colombiano, o que, por si só, não descaracteriza o sistema dual, uma vez que os sistemas difuso e concentrado mantêm-se puros e imiscíveis (salvo em matéria de proteção dos direitos fundamentais). Não obstante, a doutrina aponta irrefletida e equivocadamente, a nosso sentir, o sistema colombiano como sistema misto. Nesse sentido José Afonso da Silva (Controle de constitucionalidade: variações sobre o mesmo tema. Anuario Iberoamericano de Derecho Constitucional, Madri, v. 6, p. 9-19, 2002. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2010.), Girón Reguera (op. cit.) e Nogueira Alcalá (op. cit.).

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53 PT

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

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54

SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, v. 250, p. 197-227, 2009. TP

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55

CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. TP

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56 PT

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000.

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57

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 1996. PT

325

Dessa breve exposição, conclui-se que Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela adotam um sistema de jurisdição constitucional no qual concorrem harmonicamente os sistemas difuso e concentrado em seus ordenamentos, destoando de uma opção pelo sistema difuso ou pelo concentrado com a mera incorporação de elementos doutro modelo, a exemplo do que ocorre nos países europeus, tais quais Áustria, Alemanha, Itália, Espanha etc. A realidade sul-americana é distinta: instituem um órgão atarefando-o do controle de constitucionalidade concentrado das leis e, simultaneamente, autorizam órgãos judiciais a compartilharem o exercício da jurisdição constitucional, não como singelos legitimados para levarem a questão constitucional ao tribunal, e sim para diretamente afastarem o ato normativo reputado inconstitucional no (e para o) caso concreto. Portanto, inegável a existência de um típico modelo sul-americano de jurisdição constitucional, caracterizado fundamentalmente por haver a coexistência do controle de constitucionalidade concreto em mãos de órgãos judiciais, incumbindo-lhes, diretamente, a inaplicação das normas incompatíveis com a carta fundamental, com o controle abstrato concentrado em uma corte constitucional, podendo ela integrar ou não o Judiciário. Escapam desse modelo apenas os sistemas da Argentina – que, na contramão dos países circunvizinhos, mantém o sistema difuso de matriz americana –, do Uruguai e Paraguai – os quais incorporam um modelo concentrado na Suprema Corte, mas bem distinto do modelo europeu –, e do Chile – que hodiernamente desenvolve um sistema concentrado no Tribunal Constitucional, mas que, até a reforma de 2005, enquadrava-se no modelo sul-americano aventado, inclusive meses após a reforma, até o abandono da linha jurisprudencial que permitia aos tribunais superiores afastarem as normas inconstitucionais nas demandas atinentes à tutela de direitos fundamentais.

2.2.2 Tribunal Constitucional Sul-Americano Diante deste assentamento, é coerente postular que o conceito-tipo de tribunal constitucional não seja simplesmente (e impropriamente) transplantado do modelo europeu, já que este não se coaduna com o contexto sul-americano. A confrontação das experiências sul-americanas à concepção de tribunal constitucional de matriz europeia antes delineada resultaria na constatação da inexistência de tribunais constitucionais neste continente; ademais, tornaria dificultosa a análise sobre a função desempenhada pelos órgãos judiciais ordinários e sobre os efeitos a serem produzidos pelas decisões das cortes superiores. Tudo isso em virtude de um inadequado e rançoso eurocentrismo jurídico, pelo qual se dá primazia à forma em detrimento da substância58. De mais a mais, TP

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58 DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Tribunal constitucional do Brasil: novo paradigma do poder moderador. Revista Esmafe: Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, Recife, n. 7, p. 109-125, ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2010. TP

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326

conforme observa Moreira59 “não se deve trabalhar a perspectiva do Tribunal Constitucional como TP

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derivado de um único modelo”, uma vez que, atualmente, “não há um modelo de Tribunal Constitucional do Leste Europeu, o que se dirá do resto do mundo”. De fato, o que se pode perceber é que, na América do Sul, frequentemente, não há estrita separação entre Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais60. De acordo com Nogueira TP

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61

Alcalá , neste continente, o controle de constitucionalidade concentrado62, em que a competência TP

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para julgar o contencioso constitucional é de um só tribunal determinado para esse fim, é confiado a diferentes órgãos. Esse tribunal único, como visto, pode ser: (a) a Corte Suprema de Justiça, como ocorre no Uruguai, Paraguai63 e Brasil; (b) uma Sala Constitucional especializada da TP

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Suprema Corte, como acontece na Venezuela e Paraguai; (c) ou pode ser num Tribunal Constitucional, conforme se sucede na Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru. Os tribunais constitucionais sul-americanos não possuem, em regra64, o monopólio do TP

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controle de constitucionalidade, sendo complementados por elementos de jurisdição difusa em mãos de órgãos judiciais, a exemplo de Bolívia, Colômbia, Equador e Peru. Nos países em que o controle concentrado é exercido pela Suprema Corte ou numa Sala dela, esta também é complementada por órgãos judiciais, que exercem o controle de forma difusa, como ocorre no Brasil e Venezuela. Como se vê, a realidade sul-americana não se coaduna com a europeia, ante a indistinção entre Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais presentes na América do Sul e o compartilhamento do exercício da jurisdição constitucional entre Tribunais Constitucionais e demais órgãos judiciais. Justifica-se, por isso, a construção de um conceito de tribunal

Conforme Tremps (La justicia constitucional em La actualidad. Especial referencia a América Latina. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, p. 29-39, jan./jun. de 2003), a concepção de jurisdição constitucional e, via de consequência, de tribunal constitucional, reduzida ao seu conceito formal – somente existe jurisdição constitucional e tribunal constitucional se observadas as formas desenhadas por Kelsen – é insuficiente na atualidade. Hoje, deve-se atentar para o conceito material, ou seja, o conjunto de técnicas de garantia e tutela da constituição por meio de mecanismos jurisdicionais. 59

MOREIRA, Eduardo Ribeiro. É o STF um Tribunal Constitucional? Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, ano 1, n. 3, p. 75-92, jul./set. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2010. p. 90. TP

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60

É certo que essa aproximação das cortes ocorre em todo o mundo, porquanto há uma forte tendência que leva as cortes a exercerem as mesmas funções, concentrando-se, sobretudo, na guarda da constituição. Não obstante, essa indistinção é acentuada na América do Sul, em virtude da expressa previsão, em alguns países, do controle abstrato de normas concentrado na Corte Suprema (Brasil, Uruguai, Paraguai), ou Sala desta (Paraguai e Venezuela), ou do Tribunal Constitucional integrar o Poder Judiciário (Bolívia e Colômbia) (NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006).

TP

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61 PT

op. cit.

TP

62 PT

Ausente apenas na Argentina.

TP

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Conforme análise anterior, tanto o pleno da Suprema Corte paraguaia como a Sala Constitucional possuem competência para o controle concentrado de constitucionalidade. TP

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Exceção feita ao Tribunal Constitucional do Chile, após a reforma de 2005. Reitere-se que, mesmo após esta reforma, houve posição efêmera dos tribunais superiores no sentido de compartilharem o controle de constitucionalidade com o Tribunal Constitucional, no tocante à matéria de direitos fundamentais. E advirta-se, desde logo, ser inapropriado falarse em “monopólio” da jurisdição constitucional, conforme será retratado em seguida. TP

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327

constitucional adequado à realidade sul-americana, desapegando-se do europeu (concepção formal). Para uma análise adequada das Cortes Constitucionais sul-americanas, Flávio José Roman65 sugere “a identificação do tribunal constitucional a partir de suas funções e não de sua TP

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atuação exclusiva em matéria constitucional e de sua desvinculação ao Poder Judiciário”, escorando-se em Tavares66, o qual, por sua vez, reconhece a existência de um Tribunal TP

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Constitucional em qualquer modelo de jurisdição constitucional, malgrado com fortes variações. Para Tavares67, “a discussão encontra-se ligada à teoria de Kelsen e à criação de um TP

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órgão com exclusividade e monopólio no exercício do controle da constitucionalidade. É preciso, contudo, reavaliar essa tese”, partindo-se para a concepção de que “um Tribunal Constitucional deve ser identificado pelo exercício de funções típicas68 (dentre as quais sobressai a do controle TP

PT

da constitucionalidade das leis)”. Sob este enfoque material, levando em conta a função exercida pelo órgão, Ferrer MacGregor69 conceitua o Tribunal Constitucional como sendo o “órgão jurisdicional de maior TP

PT

hierarquia que possui a função essencial ou exclusiva de estabelecer a interpretação final das disposições de caráter fundamental”70, independentemente de sua denominação, do monopólio da TP

PT

jurisdição constitucional ou de sua posição orgânica no quadro estatal. Extraem-se

desse

conceito

substancial

os

dois

pressupostos

de

um

Tribunal

Constitucional: (a) função essencial de guarda da supremacia da Constituição e de sua interpretação; (b) ser o intérprete supremo da Carta. Ressalte-se, a propósito, a flagrante insubsistência teórica do critério do monopólio da jurisdição constitucional como pressuposto de existência do Tribunal Constitucional, largamente sustentado pela doutrina, apegada à teorização embrionária de Kelsen. Ocupando a constituição a posição de supremacia no ordenamento e possuindo força normativa, todo órgão de aplicação do

65

ROMAN, Flávio José. O Supremo Tribunal Federal brasileiro e outros tribunais constitucionais sul-americanos: breve estudo comparado. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 15, n. 58, p. 51-77, jan./mar. de 2007. p. 54. TP

PT

66 PT

TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.

TP

67 PT

TAVARES, André Ramos, op. cit., p. 158.

TP

68

São funções fundamentais (típicas) do Tribunal Constitucional, segundo Tavares (op. cit.), todas elas marcadas profundamente pela ideia de proteção da supremacia constitucional: a) interpretativa e de enunciação; b) estruturante; c) arbitral; d) governativa; e, e) legislativa stricto sensu. Já para Oscar Vilhena Vieira (Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994), quatro são as funções axiais: a) assegurar o regime democrático; b) garantir a supremacia das decisões constitucionais frente às decisões políticas ordinárias; o que inclui a garantia da separação de poderes e da federação; c) resguardar direitos e valores fundamentais; e, d) assegurar a realização dos parâmetros de justiça substantiva incorporados pelo texto constitucional. Este trabalho ocupar-se-á apenas com a função principal de controle de constitucionalidade. TP

PT

69

apud NOGUEIRA ALCALÁ, Humberto. Justicia y tribunales constitucionales en América del Sur. Caracas: Jurídica Venezolana, 2006. p. 62. TP

PT

TP

70 PT

Sem grifos no original.

328

direito envolve-se na interpretação constitucional, sendo impossível defender-se a exclusividade do tribunal constitucional para conhecer das questões constitucionais71. TP

PT

Já o critério (formal) de competência exclusiva de garante da constituição, com a exclusão das demais funções atípicas, possui relevância de caráter utilitário, mas igualmente não é capaz de descaracterizar um tribunal constitucional72. TP

PT

Superada, dessa forma, a concepção formal de Tribunal Constitucional73, atrelada às TP

PT

ideias de monopólio e de exclusividade, é possível advogar um modelo sul-americano de tribunal constitucional, identificado a partir de um conceito substancial de Tribunal Constitucional. Conforme arremata Flávio José Roman74: TP

PT

A prevalência é de modelos nos quais já não há o monopólio do controle de constitucionalidade pelo tribunal constitucional [...]. Mas, a ênfase do controle, em qualquer caso, ocorre no tribunal constitucional, que é o intérprete final da Constituição. Solidifica-se, portanto, na América do Sul o tribunal constitucional como garante da Constituição, mas não na sua concepção originária, porque estes tribunais estão inseridos em modelos combinados ou sobrepostos de jurisdição constitucional.

De forma sucinta, portanto, pode-se conceituar o modelo sul-americano de Tribunal Constitucional como sendo um órgão, ou sala especializada, cuja função essencial constitui-se na defesa da supremacia da constituição, sendo seu intérprete supremo75, e que exerce o controle de TP

PT

constitucionalidade abstrato das leis de forma concentrada, isto é, com exclusividade para exercer o controle abstrato, porquanto o controle concreto é compartilhado com tribunais e juízes inferiores. E que essas decisões do controle abstrato têm valor de coisa julgada e geram efeitos erga omnes. Esse conceito abrange tantos os Tribunais Constitucionais instituídos (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru), Salas Constitucionais especializadas da Corte Suprema (Venezuela), como também as Supremas Cortes que exerçam este controle (Brasil).76 TP

PT

71

ROMAN, Flávio José. O Supremo Tribunal Federal brasileiro e outros tribunais constitucionais sul-americanos: breve estudo comparado. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 15, n. 58, p. 51-77, jan./mar. de 2007. Some-se a isso, ainda, o fenômeno da constitucionalização do direito, traduzido na irradiação dos efeitos das normas ou valores constitucionais aos outros ramos do direito (SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008), que impõe a aplicação e interpretação constitucional pelos juízes nos diversos ramos jurídicos. TP

PT

72 PT

TAVARES, André Ramos. Teoria da justiça constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.

TP

73

Partindo-se desse conceito material, portanto, sobrepujam-se as ideias de que a competência para funções atípicas, o não monopólio do exercício do controle de constitucionalidade, o estabelecimento do órgão dentro do Judiciário e a forma de composição do Tribunal – modo de indicação dos juízes, requisitos e tempo no cargo (vitalício ou mandato fixo) – seriam capazes de desnaturar um Tribunal Constitucional. TP

PT

74 PT

ROMAN, Flávio José, op. cit., p. 74-75.

TP

75

O fato de no sistema dual, adotado por Peru e Colômbia, o Tribunal Constitucional não participar do controle difuso, salvo quando concernente à tutela de direitos fundamentais, não o descaracteriza como um tribunal constitucional sulamericano, mas se apresente como mera opção de arranjo institucional e de limitação de competência do Tribunal. Ele continua sendo o intérprete supremo da Constituição, o único órgão capaz de prolatar decisões com força de coisa julgada constitucional e efeitos erga omnes sobre a interpretação constitucional no controle concentrado. TP

PT

76

CAMPOS, Thiago Yukio Guenka; BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto. Subsídios para a construção de um modelo de tribunal constitucional sul-americano. Produção Científica Cejurps, v. 3, p. 515-526, 2008. TP

PT

329

3. A expansão do papel do STF como Tribunal Constitucional 3.1 Debate sobre sua natureza jurídica A celeuma doutrinária acerca da natureza jurídica do Supremo Tribunal Federal caminhou pari passu às propostas de instituição de um Tribunal Constitucional aos moldes europeus no país. De há muito existe quem se esforce no sentido de instituir um Tribunal Constitucional no Brasil. Já na Constituinte de 1934, foi apresentado um projeto com este desígnio – do Deputado Nilo Alvarenga, inspirado no modelo austríaco – rejeitado sem grandes discussões pela Assembleia Constituinte

77

. Nos idos de 1968, José Luiz de Anhaia Mello foi voz ressonante em

TP

PT

favor da criação de Cortes Constitucionais – a federal, para guarda da Constituição Federal e as estaduais, para defesa das Constituições estaduais – que não integrassem o Judiciário, configurando uma espécie de quarto poder, alicerçada na ideia do Poder Moderador78. TP

PT

No entanto, foi nos debates travados antes (Comissão Afonso Arinos) e durante a Assembleia Constituinte de 1988 que o debate ganhou corpo, oportunidade em que os “constituintes comunitaristas”79 advogaram a criação de um Tribunal Constitucional nos moldes TP

PT

dos Tribunais europeus80. Prevaleceu, contudo, a orientação de preservação da tradição TP

PT

centenária do Supremo Tribunal Federal e da criação do Superior Tribunal de Justiça, que se incumbiu do contencioso federal comum81 , conforme ideado por Miguel Reale e encampado pelo TP

PT

ex-ministro do STF Oscar Dias Corrêa82, o qual foi importante defensor da manutenção do STF83 TP

PT

TP

PT

que, segundo ele, “sempre foi e é um Tribunal Constitucional, por definição e criação”84. TP

PT

77

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 1996.

TP

PT

78

CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, corte constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

TP

PT

79

XIMENES, Julia Maurmann. O Supremo Tribunal Federal durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. A influência comunitarista. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2204, 14 jul. 2009. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2010. Segundo a autora (XIMENES, Julia Maurmann, op. cit., p.1), no processo constituinte foi possível distinguir, de um lado, os “constituintes comunitaristas” para quem, sob influência de Charles Taylor e Michael Walzer, “era preciso destacar e ‘proteger’ o texto constitucional por intermédio da jurisdição constitucional, adotada nos países europeus através dos Tribunais Constitucionais, cuja função é a guarda dos valores que integram o sentimento constitucional da comunidade”, e, de outro lado, os “conservadores liberais” que, inspirados em John Ralws, “entendiam que o Supremo poderia atender a esta demanda, sem a necessidade de criação e/ou transformação em um Tribunal Constitucional”. TP

PT

80

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. O Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n. 135, p. 185-190, jul./set. 1997.

TP

PT

81

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes, op. cit. O Supremo Tribunal Federal, atendendo ao convite do Prof. Afonso Arinos, presidente da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais que precedeu a Constituinte, enviou-lhe sugestões relativas ao Poder Judiciário, dentre as quais rechaçou a hipótese de sua transformação em Tribunal Constitucional, assim como desaprovou a criação do Superior Tribunal de Justiça (CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, corte constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1987). TP

PT

82 PT

op. cit.

TP

83

Para Corrêa (op. cit., p. 66), “O que acontece, em verdade – e se procura obscurecer –, é que o nosso controle de constitucionalidade é superior quer ao americano (difuso), quer ao europeu (concentrado). Precisamente porque é difuso e concentrado, exercendo-se sob todas as formas.” TP

PT

TP

84 PT

CORRÊA, Oscar Dias, op. cit., p. 62.

330

Por último, o tema voltou novamente à baila ante a perspectiva da reforma constitucional relativa à organização do Poder Judiciário85, concretizada pela Emenda Constitucional n. 45 de TP

PT

2004. Os argumentos sempre lançados por aqueles que negam a natureza de Tribunal Constitucional do STF podem ser sintetizados em: (a) o órgão não se situa fora do Judiciário86; (b) TP

PT

87

convive com o controle difuso, logo, não possui o monopólio da jurisdição constitucional ; (c) não TP

PT

possui competência exclusivamente voltada à jurisdição constitucional88; e, (d) a inadequada TP

PT

forma de recrutamento dos membros da Corte89, que compõe-se de “magistrados-funcionários”, TP

PT

com qualificação técnico-jurídica, mas não política90. TP

85

PT

PT

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes, op. cit.

TP

86

JAYME, Fernando Gonzaga. Tribunal constitucional: exigência democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 1990. Em sentido contrário, Moraes (Jurisdição constitucional e tribunais constitucionais: garantia suprema da constituição. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 289) enfatiza que “[a] transformação do STF em um exclusivo Tribunal Constitucional não impede sua permanência como órgão máximo do Poder Judiciário, autônomo e independente, e detentor de autonomias funcionais, administrativa e financeira, nos mesmos moldes do Tribunal Constitucional Federal alemão”. Tavares (Tribunal e Jurisdição Constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 1998, p. 155), por sua vez, ressalta que “a acomodação do Tribunal Constitucional como órgão máximo da hierarquia judicial faz com que ganhe ele em legitimidade. [...] não há razão para pretender-se adotar a fórmula das Cortes européias, como entidades apartadas do sistema judiciário. As instituições hão de se adaptar às realidades de cada nação. O sistema jurídico brasileiro apresenta a característica marcante de se fazer conviver, lado a lado, o controle difuso (por todos os órgãos judiciais para o caso concreto) e o controle concentrado (em abstrato, pelo Supremo Tribunal Federal). [...]. Portanto, se também todos os órgãos judiciais são defensores da Constituição, melhor será estruturar o Tribunal constitucional no topo da hierarquia judiciária, sem prejuízo de que haja alguns componentes diversos na estruturação e funcionamento desta Corte em relação aos demais órgãos da Justiça (como a forma de nomeação, a existência de processos sem partes propriamente ditas – denominados processos objetivos –, efeitos políticos das decisões etc.).” TP

PT

87

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000; FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Por um tribunal constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 32, n. 128, p. 149-156, out./dez. 1995. Contudo, o próprio José Afonso da Silva, noutro trabalho (Controle de constitucionalidade: variações sobre o mesmo tema. Anuario Iberoamericano de Derecho Constitucional, Madri, v. 6, p. 9-19, 2002. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2010), propugna a criação de um Tribunal Constitucional no Brasil em um modelo dual ou paralelo, isto é, em coexistência com o sistema difuso (sem o monopólio, portanto). De qualquer modo, além de não ser um requisito essencial (substancial), é insustentável a tese de monopólio da jurisdição constitucional pelo Tribunal Constitucional, como foi demonstrado em tópico anterior. Admitir esse argumento como válido equivale negar a natureza de Tribunal Constitucional dos Tribunais Constitucionais de países sul-americanos como Peru, Colômbia, Bolívia e Equador TP

PT

88

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 18.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000. Como visto anteriormente, trata-se de critério meramente utilitário, e não essencial. Refutando essa objeção de José Afonso da Silva, Oscar Dias Corrêa (O Supremo Tribunal Federal, corte constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 64) desenvolve o seguinte argumento: “deseja o ilustre Autor [José Afonso da Silva] que o STF julgue apenas as matérias constitucionais, só constitucionais. E como além delas – e as julga todas, sem exceção – ainda julga outras, deixa de ser Tribunal Constitucional. Seria como afirmar que porque o professor José Afonso escreve sobre direito constitucional, mas escreve também sobre direito financeiro, e direito processual, e economia etc. etc. (e, com seu talento e sua cultura, sobre tudo escreve, e bem), deixa de ser constitucionalista!”. TP

PT

89 Dispõe o art. 101 da CRFB/1988: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.” TP

PT

90

FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Por um tribunal constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 32, n. 128, p. 149-156, out./dez. 1995; SILVA, José Afonso da. Controle de constitucionalidade: variações sobre o mesmo tema. Anuario Iberoamericano de Derecho Constitucional, Madri, v. 6, p. 9-19, 2002. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2010. Em que pese a objeção, cabe ressaltar que atual composição do STF não é formada majoritariamente por ministros oriundos da carreira da magistratura. Apenas quatro deles exerciam a magistratura: Antonio Cezar Peluso, Luiz Fux, Enrique Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mendes de Farias Mello. Os dois últimos ingressaram na magistratura pelo quinto constitucional. Portanto, tão-somente Antonio Cezar Peluso, atual presidente da Corte, e Luiz Fux eram magistrados de carreira. Ademais, a falta de qualificação política e de conhecimento no campo das ciências humanas não é algo TP

PT

331

Os argumentos, contudo, deixam transparecer o apego exacerbado desses autores a uma inadequada concepção formalista (kelseniana) de Tribunal Constitucional, produto de um eurocentrismo empobrecedor91, que merece ser repensada à luz da realidade sul-americana. TP

PT

Nenhuma das objeções aponta um requisito essencial à caracterização de um Tribunal Constitucional, o qual deve ser analisado sob o aspecto substancial, como visto. Partindo-se do conceito-tipo de Tribunal Constitucional sul-americano desenhado, levandose em conta uma concepção material, indubitável que o STF, incumbido essencialmente da guarda da Constituição92 e sendo seu intérprete supremo, é um Tribunal Constitucional, tornando TP

PT

o debate estéril, sendo inócuo buscar assimilar o STF aos Tribunais Constitucionais europeus. De outro lado, “[o]s que têm pugnado pela criação de uma Corte Constitucional no Brasil sustentam que o Supremo Tribunal Federal tem exercido de maneira muito tímida a missão constitucional que lhe é confiada de guardião da Constituição”93. TP

PT

Todavia, como se verá no tópico seguinte, o STF vem progressivamente expandindo o seu papel protagonista de curador da Constituição e concentrando suas atividades nesta tarefa. Ademais, infere-se do discurso dos incautos defensores da criação de um Tribunal Constitucional de padrão europeu no Brasil que eles têm por objetivo, fundamentalmente, subjugar o assoberbamento do STF, encontrando no Tribunal Constitucional, de competência

comum apenas aos magistrados, pois advém dos próprios cursos de Direito oferecidos no país, que enfatizam o ensino do direito privado em detrimento do direito público, atingindo todos os bacharéis. Portanto, para contornar a falta de sensibilidade política dos ministros, é fundamental reforçar os cursos de Direito, já que, não obstante não seja o bacharelado requisito para ingresso na Corte, raramente foi preterido (ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. O Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n. 135, p. 185-190, jul./set. 1997). 91 DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Tribunal constitucional do Brasil: novo paradigma do poder moderador. Revista Esmafe: Escola de Magistratura Federal da 5ª Região, Recife, n. 7, p. 109-125, ago. 2004. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2010. TP

PT

92 PT

Art. 102, caput, da CRFB/1988: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”.

TP

TP

93

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. O Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n. 135, p. 185-190, jul./set. 1997. p. 187. PT

Alguns defensores da importação do modelo de Tribunal Constitucional europeu pelo Brasil pugnam pela expunção do controle difuso de constitucionalidade do sistema jurídico brasileiro (FERREIRA SOBRINHO, José Wilson. Por um tribunal constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 32, n. 128, p. 149-156, out./dez. 1995). Todavia, não há razão para tanto, devendo-se preservar a tradição centenária. Até porque, conforme Silva Neto (O controle difuso: uma forma de humanização do controle de constitucionalidade das leis. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 15, n. 59, p. 131-145, abr./jun. de 2007. p. 143), “o controle difuso de constitucionalidade, mantido até hoje inclusive em países como Portugal, retira do órgão de cúpula do Poder Judiciário o monopólio do controle difuso de constitucionalidade, servindo de importante mecanismo de acesso à justiça e, consequentemente, à jurisdição constitucional”. Complementa o autor que “uma das principais características e justificativas da defesa do controle difuso é a sua natureza humana, que vem servir ao homem concreto e não a um ente abstrato, destituído de sentimentos e emoções. É ao ser humano que se dirige o controle difuso de constitucionalidade das leis”. Para Moreira (É o STF um Tribunal Constitucional? Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, ano 1, n. 3, p. 75-92, jul./set. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2010, p. 76), “[o] controle difuso, em companhia do controle concentrado, não é condenável, muito pelo contrário é uma das melhores fórmulas encontradas para promover a jurisdição constitucional. Primeiro porque enseja uma democratização na proteção da Constituição pelos julgadores em todas as instâncias e tribunais, segundo porque permite que premissas sejam quebradas, mesmo nos termos atuais com a previsão de súmula vinculante, que pode ser alterada nos termos do §2º do artigo 103-A da Constituição da República. Terceiro porque dá ao ordenamento jurídico a segurança necessária derivada do controle em abstrato.”

332

reduzida e exclusivamente dirigida à jurisdição constitucional, a panaceia para a sobrecarga de demandas94. TP

PT

Entretanto, os próprios Tribunais europeus tomados como paradigma suportam a mesma problemática. Favoreu95 ressalta que, atualmente, os Tribunais Constitucionais da Alemanha, Itália TP

PT

e Espanha cada vez mais se parecem com “super Cortes de Cassação” e dedicam-se a um controle da “microconstitucionalidade”, isto é, do controle de constitucionalidade passaram para o exercício do controle de aplicação das leis. Resultado desse número excessivo de recursos interpostos em número crescente a cada ano, foram engendradas formas de “filtragem”, restringindo o acesso aos Tribunais e pondo o modelo em crise, passando a grande maioria das causas a serem julgadas por comissões de três juízes, em rito sumário, e não mais pelo Tribunal Constitucional96. TP

PT

De qualquer modo, não é objeto deste estudo analisar a necessidade e a pertinência de reformas para o aperfeiçoamento do STF, seja para redução da sobrecarga da Corte97 ou para TP

PT

conferir uma forma mais democrática de recrutamento de seus membros98. O que se assenta, TP

PT

repise-se, é que, independentemente da concretização dessas propostas, ainda que sejam 94

Nesse sentido, José Luiz de Anhaia Mello (1968, p. 240 apud CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, corte constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 43) “[a]rgumenta que ‘é assustador o grande número de feitos que superlotam as dependências do STF’, e esse fato é ‘mais um motivo para a criação da Corte Constitucional no Brasil’.”

TP

PT

95 PT

FAVOREU, Louis. As cortes constitucionais. São Paulo: Landy, 2004.

TP

96

GOMES, Rodrigo Carneiro. O tribunal constitucional: elementos e estrutura da separação de poderes. Revista Prismas: Direito, Política Públicas e Mundialização, Brasília, v.a, n.2, p.71-96, jul./dez. 2007.

TP

PT

97

Somente ano de 2009, o STF recebeu 84.369 processos e julgou 121.316, uma média de mais de onze mil julgamentos por ministro no ano. Em 2008, foram recebidos 100.781 processos e julgados 130.747; em 2007, 119.324 recebidos e 159.522 julgados; e, em 2006, 127.535 processos recebidos e 110.284 julgados. No ano de 2010, somente até dia 30 junho, 35.679 processos foram autuados e 52.114 julgados (dados obtidos do sítio eletrônico do STF: ). Como resultado desse volume de trabalho, alerta Roman (O Supremo Tribunal Federal brasileiro e outros tribunais constitucionais sulamericanos: breve estudo comparado. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 15, n. 58, p. 51-77, jan./mar. de 2007) que fica cada vez mais difícil que os processos sejam julgados pelos próprios ministros, aproximando-se da situação vivenciada pela Corte Suprema Argentina, em que a maioria dos processos são julgados por assessores, o que Nestor Pedro Sagüés alcunha de “Junior court” (1998 apud ROMAN, Flávio José, op. cit.). TP

PT

98

Conforme ressalta Peixoto (Críticas à morfologia subjetiva do Tribunal constitucional brasileiro. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, ano 3, n. 12, out./dez. 2009. Disponível em:. Acesso em: 8 jul. 2010), a sabatina e aprovação do Senado Federal é meramente “alegórica” e pro forma, já que este exerce papel desinteressado, cingindo-se a chancelar acriticamente as escolhas do Presidente da República. Lembra o autor que, na história brasileira, apenas cinco nomes foram rejeitados pelo Senado: o médico Barata Ribeiro e outros quatros generais, Innocêncio Galvão de Queiroz, Ewerton Quadros, Antônio Seve Navarro e Demosthenes da Silveira Lobo, todos por motivo de querelas políticas e durante o governo Floriano Peixoto (1891-1894). Buscando alterar a forma de composição do STF, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional n. 342/09, de autoria do Deputado Federal Flávio Dino, que sugere o mandato de onze anos para os ministros do STF, vedada a recondução, os quais deverão ser escolhidos da seguinte forma: cinco pelo Presidente da República, mediante aprova por três quintos dos membros do Senado; dois pela Câmara dos Deputados; dois pelo Senado; e dois pelo Supremo Tribunal Federal.(PEIXOTO, Leonardo Scofano Damasceno, op. cit.). Evitar-se-ia, com a retirada do poder de escolha exclusivamente nas mãos do Presidente da República, a chamada “renovação em bloco”, em que “a influência política poderá ser sentida e uma ideologia do poder permear o Tribunal Constitucional” (MOREIRA, Eduardo Ribeiro. É o STF um Tribunal Constitucional? Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, ano 1, n. 3, p. 75-92, jul./set. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2010, p. 3). Atualmente, exempli gratia, seis dos onze ministros foram indicados pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em sentido diametralmente oposto, também tramita a PEC n. 68/05, que propõe a seleção dos novos membros pelo próprio STF, dentre seis nomes encaminhados pelo Ministério Público, pela magistratura e pelos advogados (PEIXOTO, Leonardo Scofano Damasceno, op. cit.). TP

PT

333

recomendáveis, o STF já é um Tribunal Constitucional, e cada vez mais assume esse papel. “Afinal, é o STF o último guardião da Constituição brasileira, e as propostas sugeridas são para dignificá-lo como tal”99. TP

PT

3.2 Alteração da configuração institucional do STF e sua expansão A discussão na Constituinte de 1988 sobre a instituição de um Tribunal Constitucional no Brasil permitiu a ampliação da competência do STF concernente ao controle abstrato das leis e ao controle da omissão do legislador, conferindo preponderância ao sistema concentrado em relação ao difuso100, assim como atribuiu expressamente ao STF a função precípua de guardião da TP

PT

Constituição. Essas alterações fortaleceram sua condição de Tribunal Constitucional brasileiro101. TP

PT

Após esse verdadeiro marco de 1988, o STF passou, gradativamente, a assumir e a reforçar seu papel de Tribunal Constitucional brasileiro, especialmente após a reestruturação ensejada pela Emenda Constitucional n.º 45 de 2004. Essa expansão do papel do STF enquanto Tribunal Constitucional brasileiro decorre, basicamente, de dois fatores: (a) inovações legislativas com vistas a permitir a dedicação cada vez maior da Corte na tarefa de sentinela da Constituição e a outorgar maior autoridade às suas decisões, reafirmando sua condição de intérprete supremo; e (b) a autocompreensão do STF do seu papel dentro do arranjo político-constitucional pátrio. Sucintamente, no que tange às inovações legislativas, tem-se, primeiramente, que a própria Constituição de 1988 promoveu inúmeras alterações no sistema brasileiro, conferindo maiores poderes ao STF como guardião da constituição, sobretudo pela ampliação do rol de legitimados para propositura da ação direta de inconstitucionalidade, pela criação do mandado de injunção, da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e da arguição de descumprimento de preceito fundamental e pela recepção no texto constitucional do instituto da reclamação constitucional102, destinado a assegurar a preservação de sua competência e a autoridade de TP

PT

suas decisões (art. 102, I). Em seguida, pela Emenda Constitucional n. 3 de 1993 criou-se a ação declaratória de constitucionalidade. E, em 1999, regulamentou-se, por meio das leis 9.868 e 9.882, “com maior clareza procedimental todo o processo de controle de constitucionalidade no

99 TP

PT

MOREIRA, Eduardo Ribeiro, op. cit., p. 91.

100

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. São Paulo: Saraiva, 1996.

TP

PT

101

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. O Supremo Tribunal Federal como Corte Constitucional. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n. 135, p. 185-190, jul./set. 1997.

TP

PT

102 Antes mesmo da promulgação da Carta de 1988, a reclamação constitucional já se encontrava contemplada no Regime Interno do Supremo Tribunal Federal, ao qual fora outorgado força de lei pela Constituição de 1967/69. (TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: 2010). TP

PT

334

Brasil, com uma clara tendência concentradora e vinculante do controle de constitucionalidade exercido pelo STF”103. TP

PT

Estabeleceu-se, também, o efeito vinculante104 das decisões do STF no controle abstrato TP

PT

de constitucionalidade. Pela EC n. 3/1993, às decisões da Corte na ação declaratória de constitucionalidade, e, pela EC n. 45/04, foi estendido às demais ações diretas105. “Ele tem o TP

PT

escopo de aumentar a incidência das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, obrigando que órgãos e agentes públicos sigam o que fora decidido pelo tribunal.”106. TP

PT

Ainda em relação às inovações legislativas, merecem destaque a súmula vinculante e o pressuposto da demonstração de repercussão geral para a admissibilidade do recurso extraordinário pelo STF, instituídas pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004. A súmula vinculante – designação retrátil de súmula da jurisprudência dominante com efeito vinculante107 –, disciplinada pela Lei n.º 11.417/2006, foi pensada para garantir maior TP

PT

agilidade na prestação jurisdicional e como resposta à crise numérica experimentada pelo STF108. TP

PT

Cuida-se de decisões reiteradas do STF sobre determinada matéria constitucional em uma mesma orientação, “que, após obterem o consentimento de dois terços de seus membros e a partir de sua publicação, torna-se de observância obrigatória para os órgãos do Judiciário e da administração pública direta e indireta” 109. TP

PT

De fato, a despeito de ensejar críticas110 por segmento da doutrina, a súmula vinculante – TP

PT

tal qual o efeito vinculante das decisões no controle abstrato de constitucionalidade – é expressão do papel do STF como Tribunal Constitucional pátrio.

103 SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, v. 250, p. 197-227, 2009. p. 216. TP

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104

Teori Albino Zavascki (Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 51) destaca que efeito vinculante não se confunde com eficácia erga omnes: “Declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de um preceito normativo abstratamente considerado, a sentença proferida em ação de controle concentrado irradia efeitos para todos os possíveis destinatários da norma. Ou seja: a sentença tem eficácia subjetiva erga omnes. E à força dessa declaração submetem-se, obrigatoriamente, as autoridades que têm por atribuição aplicar a norma questionada, vale dizer, os órgão do Poder Judiciário e da Administração Pública. Relativamente a eles, a sentença tem, portanto, efeito vinculante.” TP

PT

105

“Vigora, porém, uma exceção. O indeferimento da liminar pleiteada em ADIn (e, por analogia, em ADPF) não implica vinculação no sentido da constitucionalidade do ato impugnado; e o indeferimento do pedido de liminar formulado em ADC tampouco gera efeito vinculante quanto à inconstitucionalidade (BERNARDES, Juliano Taveira. Efeito vinculante das decisões do controle abstrato de constitucionalidade: transcendência aos motivos determinantes? In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 358).

TP

PT

106

AGRA, Walber de Moura. Aspectos controvertidos do controle de constitucionalidade. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 110. TP

PT

107 PT

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: 2010.

TP

108

MENDES, Gilmar Ferreira. Passado e futuro da súmula vinculante: considerações à luz da emenda constitucional n. 45/2004. 2005. Disponível em: . Acesso em 15 fev. 2009. TP

PT

109 PT

AGRA, Walber de Moura, op. cit., p. 177.

TP

110

Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Curso de direito constitucional. 33.ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 384), “sendo a súmula um texto escrito, não exclui, por um lado, a problemática da interpretação, e, o que é mais grave, cristaliza a posição jurisprudencial, dificultando a sua adaptação a novos tempos, ou sua mudança em decorrência de novos argumentos. Na verdade, a súmula brasileira mais se aproxima de uma lei interpretativa editada TP

PT

335

Em verdade, o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte ou pelo Tribunal Constitucional, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais.111 TP

PT

Quanto à exigência de repercussão geral, mecanismo de filtragem que enaltece a função do STF de defensor da Constituição, anota Morais112: TP

PT

a legislação também vem atribuindo, de forma expressa, natureza objetiva ao recurso extraordinário. É o que se percebe, v.g., com a criação da “repercussão geral” através do art. 102 §3º da Constituição, com redação dada pela EC 45/04, e a regulamentação do art. 543-A do CPC pela Lei n.º 11.418/06, segundo os quais, à luz do writ of certiorari norte americano, caberá ao recorrente, ao manejar o recurso extraordinário, demonstrar que a questão constitucional objeto do recurso extrapola os simples interesses subjetivos envolvidos na demanda, sendo dotada de repercussão que permita o julgamento do recurso pelo Supremo Tribunal Federal no exercício de sua finalidade precípua, a de guardião da Constituição. [...] o objetivo fundamental da instituição da ”repercussão geral” é de ordem qualitativa com fim precípuo de alçar à Corte Constitucional brasileira apenas os recursos cujos objetos detenham relevância para a ordem constitucional, quais sejam aqueles que importem em alteração ou violação à realidade político-social desejada pela Constituição.

Além das reformas promovidas pelo Congresso Nacional, o próprio STF, fomentado pela mudança de composição da Corte, assumiu nova postura no enfrentamento das questões constitucionais, passando a arrogar-se o mister de um verdadeiro Tribunal Constitucional, o protagonista na tutela da Constituição. Essa renovada compreensão da Corte de sua função político-constitucional é evidenciada em seus julgamentos recentes, alguns deles adiante retratados. No julgamento do recurso de agravo de instrumento n. 375.011, a ex-Ministra Ellen Gracie Northfleet dispensou o preenchimento do requisito do prequestionamento de um recurso extraordinário buscando conferir efetividade ao posicionamento do STF sobre questão constitucional adotada em outro julgamento, manifestando-se expressamente pela transformação do recurso extraordinário em remédio de controle abstrato de constitucionalidade.113 TP

PT

Já na decisão do RE n. 298.694, o Tribunal admitiu a possibilidade de o STF julgar o recurso extraordinário embasado em fundamento distinto daquele enfrentado pelo tribunal recorrido, autorizando uma causa petendi aberta, a exemplo do que ocorre nas ações diretas de

pelo Supremo Tribunal Federal do que do stare decisis norte-americano”. Outra objeção à adoção da súmula vinculante, lembrada por Tavares (op. cit.), consiste na afronta à independência do Judiciário e da livre convicção do julgador. 111 PT

MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., p. 8.

TP

112

MORAIS, Dalton Santos. Controle de constitucionalidade: exposições críticas à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 103-104. TP

PT

113

DIDIER JR., Fredie. O recurso extraordinário e a transformação do controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro. In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2008. TP

PT

336

constitucionalidade.114. Essa admissão, além de decorrência do iura novit curia e do narra mihi TP

PT

factum dabo tibi ius, bem demonstra a preocupação principal da Corte em tutelar a Carta Magna. Gilmar Mendes115 recorda que, em 1997, a 1ª Turma do STF, por ocasião do julgamento TP

PT

no RE 190.728, assentou a dispensabilidade de observância da cláusula de reserva de plenário116, TP

PT

nos casos em que o STF já tenha decidido a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da matéria, por quebra da presunção de constitucionalidade. Essa decisão foi seguida pela 2ª Turma, de acordo com o acórdão prolatado no AgRgAI 168.149, de relatoria do ministro Marco Aurélio: Versando a controvérsia sobre o ato normativo já declarado inconstitucional pelo guardião maior da Carta Política da República – o Supremo Tribunal Federal –, descabe o deslocamento previsto no art. 97 do referido diploma maior117. TP

PT

Essa orientação, que prestigia a força das decisões pelo intérprete supremo, foi positivada, posteriormente, no ordenamento processual civil pátrio, pela Lei n.º 9.756/98118. TP

PT

Valem lembrar os lampejos de afirmação pela Corte da tese da transcendência do efeito vinculante às razões decisórias determinantes. Citem-se, e.g., as deliberações nas Reclamações Constitucionais 1.987/DF e 2.363/PA, em que o STF conferiu vinculação mais extensiva de suas decisões, abrangendo não só a parte dispositiva, mas também as próprias razões119 que TP

PT

embasaram as decisões, cuja autoridade poderia ser garantida inclusive por via da reclamação constitucional120. TP

PT

Também ilustra esta nova percepção do STF a guinada jurisprudencial acerca do mandado de injunção. Superando o vetusto entendimento de que esse writ processual guardava similitude com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão – limitando-se a Corte, em caso de

114 PT

DIDIER JR., Fredie, op. cit.

TP

115

MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Revista de Informação Legislativa, v. 41, n. 162, p. 149-168, abr./jun. de 2004. Disponível em: . Acesso em 26 jul. 2010.

TP

PT

116

Dispõe o Art. 97 da CRFB/1988: “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.” TP

PT

117 PT

apud MENDES, Gilmar Ferreira, op. cit., p. 157.

TP

118

A referida Lei incluiu o parágrafo único ao art. 481 do Código de Processo Civil, que, desde então, dispõe: “Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.”

TP

PT

119 Deve-se distinguir, entretanto, dois tipos de fundamentação: a ratio decidendi, que é o motivo determinante da decisão, sem a qual a parte dispositiva não teria consistência; e o obiter dictum, que constitui argumento de passagem e de mero reforço à razão de decidir, insuficiente para, autonomamente, determinar ou alterar a parte dispositiva do decisum. O efeito vinculante mencionado somente recai sobre a ratio decidendi e não sobre o obiter dictum. (BERNARDES, Juliano Taveira. Efeito vinculante das decisões do controle abstrato de constitucionalidade: transcendência aos motivos determinantes? In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2008). TP

PT

120

Sem embargo, nos últimos tempos, o STF tem reiteradamente exprimido posição refratária à adoção da tese, como no julgamento da Reclamação 2.475, em que, por maioria, posicionou-se no sentido da inadmissibilidade da eficácia vinculante aos motivos determinantes da decisão, cingido-se o efeito vinculante à parte dispositiva (MORAIS, Dalton Santos. Controle de constitucionalidade: exposições críticas à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Salvador: Juspodivm, 2010). Mencione-se, ainda, as decisões das Reclamações 3.294 AgR/RN e 9.778 AgR/RJ. TP

PT

337

procedência, a comunicar o Poder responsável de sua omissão para supri-la –, em 25/10/2007, o Tribunal, discutindo o direito de greve de servidores públicos nos Mandados de Injunção 607, 708 e 712, por unanimidade, declarou a omissão do Congresso Nacional em legislar sobre o exercício do direito de greve no setor público “e, por maioria de votos, decidiu aplicar, com certas adaptações, a lei de greve existente e em vigor par ao setor privado (Lei n. 7.783/89).”121. TP

PT

Por último, cumpre ressaltar que há um movimento no STF, liderado pelo ministro Gilmar Mendes, no sentido de se atribuir eficácia erga omnes às decisões de inconstitucionalidade em sede de controle concreto, independentemente da manifestação do Senado Federal, que, a despeito da expressa previsão do art. 52, inciso X, da CRFB/88122, passaria a ter uma função de TP

PT

meramente tornar pública a decisão. Esta releitura do papel do Senado Federal, segundo o ministro Gilmar Mendes em seu voto123, decorre de uma mutação constitucional124, não fazendo TP

PT

TP

PT

mais sentido conservar essa atribuição após a introdução do controle abstrato de normas no ordenamento.125 TP

PT

Portanto, é perceptível que há, tanto pelo esforço do Legislativo como pela própria postura que vem tomando o STF, “um nítido movimento de ‘abstrativização’ do controle difuso, de forma a tornar ainda mais preponderantes as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que proferidas na via difusa de controle de constitucionalidade”126. Essa tendência à “abstrativização” TP

PT

guarda estrito liame com o aperfeiçoamento do STF como Tribunal Constitucional, na medida em que ele se afasta da função de mera instância recursal para dedicar-se à sua missão fundamental de defesa da Carta. Mas a constatação dessa tendência não o descaracteriza como Tribunal

121 PT

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 8.ed. rev. e atual. São Paulo: 2010. p.1013.

TP

122

“Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: [...]; X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.

TP

PT

123

A questão foi levantada pelo Ministro Gilmar Mendes, em seu voto proferido na sessão de julgamento realizada em 01/02/2007, da Reclamação Constitucional n.º 4.335-5/AC, tendo o Ministro Eros Grau o acompanhado. Os Ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa apresentaram entendimento em sentido contrário. O julgamento está suspenso em razão de um pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowsky (LEITE, Glauco Salomão. A extensão da eficácia erga omnes e do efeito vinculante às decisões de inconstitucionalidade em controle difuso pelo Supremo Tribunal Federal: hipótese de mutação (in)constitucional. Observatório de Jurisdição Constitucional, Brasília, ano 2, ago. de 2008. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2010). TP

PT

124

Essa tendência à nova interpretação do dispositivo em comento enseja grande celeuma doutrinária. Glauco Salomão Leite (op. cit.) entende que essa “mutação constitucional” representa verdadeira abrogação do art. 52, X, da CRFB/88, por extrapolar os limites semânticos estabelecidos pelo enunciado normativo. Logo, “sob roupagem de uma mutação (in)constitucional, o STF realizaria uma clara usurpação de competência reformadora. Daí, a violação ao princípio da separação de poderes.” (LEITE, Glauco Salomão, op. cit., p. 15). Já Dirley da Cunha Júnior (O princípio do “stare decisis” e a decisão do Supremo Tribunal Federal no controle difuso de constitucionalidade. In: NOVELINO, Marcelo (org.). Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2.ed. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 307) defende não haver razão para justificar a distinção de efeitos entre as decisões de inconstitucionalidade pelo STF: “Temos esperanças que o Supremo Tribunal Federal amadureça o assunto e aceite o seu novo e verdadeiro papel de Corte Constitucional, cujas decisões adotadas no controle de constitucionalidade, independentemente de em processos abstratos ou concretos, passem a projetar os seus efeitos em face de todos.” TP

PT

125 PT

CUNHA JÚNIOR, Dirley da Cunha, op. cit.

TP

126

MORAIS, Dalton Santos. Controle de constitucionalidade: exposições críticas à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 96. TP

PT

338

Constitucional Sul-Americano, já que se conserva o controle difuso-concreto, pelo qual ficam autorizados todos os órgãos judiciais a compartilharem o exercício da jurisdição constitucional.

4. Considerações finais A consolidação do Estado Constitucional de Direito propiciou a difusão de inúmeros sistemas de jurisdição constitucional, tornando dificultoso o estudo dessa gama de sistemas a partir da tradicional dicotomia, amplamente citada pela doutrina, que contrapõe o modelo americano-difuso ao austríaco-concentrado. Em razão do processo de aproximação dos modelos tradicionais, desde a novelle austríaca de 1929, e, sobretudo, pela multiplicidade de sistemas que conjugam fragmentos de ambos os arquétipos (hibridação), torna-se empobrecedora a redução do estudo do tema àquelas tipologias. Apesar de sua relevância didática e histórica, elas não dão conta da realidade plural hoje vivenciada, sobretudo em relação ao contexto sul-americano. A análise dos sistemas de jurisdição constitucional adotados pelos países sul-americanos e do papel exercido por suas cortes constitucionais deve ser feita a partir de um modelo próprio do nosso continente, caracterizado justamente por ter incorporado uma diversidade de aspectos do modelo concentrado, sem a rejeição de mecanismos difusos, conjugando ambos os modelos. Por isso, não faz mais sentido analisar o atual papel desempenhado pelo STF no contexto políticoconstitucional brasileiro tomando como paradigma o modelo europeu de tribunal constitucional. A partir do modelo sul-americano de jurisdição constitucional, foi possível identificar um modelo tipicamente sul-americano de tribunal constitucional, caracterizado por ser um órgão ou sala especializada incumbido essencialmente da salvaguarda da constituição, com autoridade de intérprete supremo, mas que, conquanto exerça o controle abstrato de constitucionalidade das leis de forma concentrada, compartilha com outros órgãos judiciais o exercício do controle concreto. Com base nessa formulação, indubitável que o STF enquadra-se no conceito-tipo de tribunal constitucional sul-americano. É, de fato, um autêntico Tribunal Constitucional brasileiro e, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988, vem fortalecendo seu papel como tal. Não há dúvidas de que o sistema de jurisdição constitucional brasileiro necessite ser aprimorado. Mas é preciso que voltemos mais os olhos às experiências vizinhas sul-americanas, muito mais próximas à realidade brasileira. Com isso, buscamos também incentivar o estudo comparado com países sul-americanos, muitas vezes esquecido pela doutrina brasileira, mas que pode fornecer elementos preciosos à organização e à dogmática jurídicas brasileiras.

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2010. TREMPS, Pablo Perez. La justicia constitucional em La actualidad. Especial referencia a América Latina. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, p. 29-39, jan./jun. de 2003. VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal: jurisprudência política. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. XIMENES, Julia Maurmann. O Supremo Tribunal Federal durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. A influência comunitarista. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2204, 14 jul. 2009. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2010. ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001.

343

Uma perspectiva acerca dos guardiões da constituição e suas possibilidades de cooperação Maria Daniele Viana da Silva1 TP

PT

Resumo

Abstract

A constatação do reconhecimento de vários guardiões da Constituição, ainda que apenas algum(s) dele(s) detenha(m), formalmente, a possibilidade de aferir a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com uma constitucional. A sociedade hodierna revela-se complexa, competitiva, pautada em relações de vasta abertura cognitiva, as quais, não raro, perpassam as fronteiras nacionais, acarretando dentre outros efeitos, a necessidade de diálogos e circulação de ideias. Nesse cenário, destaca-se o Constitucionalismo cooperativo, ao levar em consideração o pluralismo constitucional, assim como buscar a superação dos obstáculos em se estabelecerem relações entre diferentes ordens nacionais, sem o esquecimento das respectivas peculiaridades nacionais. Com base nesta concepção cooperativa, não se manifesta coerente cogitar-se, previamente, acerca do detentor da “última palavra”, tendo em vista as influências recíprocas entre os ordenamentos constitucionais nacionais e supranacionais, os quais seguem se desenvolvendo num contínuo processo de simbiose. Associada a essa tendência na seara internacional, ressalta-se a possibilidade cooperativa de convívio também no âmbito interno do Estado, implicando, dessa feita, a formação de relações compartilhadas, com a finalidade permanente de busca do “guardião mais adequado”, observando-se as funções atribuídas a cada poder, conforme o conteúdo dos direitos em discussão. A presente pesquisa baseia-se numa análise bibliográfica ao enfocar algumas perspectivas preocupadas com a maior abertura e defesa da Constituição e, consequentemente, dos direitos humanos. Abordamse, assim, autores que, de maneira distinta e peculiar, criticam o isolacionismo da “última palavra” pertencente, em regra, ao poder Judiciário, bem como os potenciais prejuízos decorrentes da ausência de cooperação e diálogo entre as estruturas de poder seja no plano externo, seja no interno. Resta esclarecer, ademais, que não se trata de uma pesquisa terminativa, mas sim ainda incipiente, merecendo, portanto, posterior aprofundamento em oportunidades futuras. Enfim, este trabalho encontra-se concluído.

The realization of the recognition of several guardians of the Constitution, even if only some (s) of it (s) holds (m), formally the possibility of assessing the compatibility of a standard with an infra-constitutional. The company today revealed a complex, competitive, based on relationships of cognitive wide opening, which, not infrequently, cut across the national borders, leading among other effects, the need for dialogue and exchange of ideas. In this scenario, we highlight the cooperative constitutionalism, by taking into account the constitutional pluralism, as well as seeking to overcome the obstacles to establish relations between different national orders, without forgetting their respective peculiarities. Based on this design cooperative, does not manifest itself consistently think in advance about the holder of the "last word" in view of the reciprocal influences between national and supranational constitutional order, which follows been developing a continuous process of symbiosis. Associated with this international trend in harvest, it emphasizes the possibility of cooperative interaction also in the internal state, implying that made the formation of shared relationships, with the purpose of permanent quest for the "most appropriate custodian," observing the functions assigned to each branch, as the content of the rights under discussion. This research is based on a literature review by focusing on some perspectives concerned with the openness and defend the Constitution and therefore human rights. It addresses, so that authors, a distinct, peculiar, criticize the isolationism of the "last word" owned, as a rule, the judiciary, as well as potential losses arising from the lack of cooperation and dialogue between the structures of power is externally, either on the inside. It remains to clarify further that it is not a study is completed, but still in its infancy, requiring, further development in future opportunities. Finally, this work is completed.

Palavras-Chave: Constitucionalismo; Diálogos; Direitos; Guardiões.

Keywords: Constitutionalism, Cooperation; Dialogues; Rights; Guardians.

TP

1 PT

Cooperação;

Estudante do curso de graduação em Direito na UNICAP. E-mail: [email protected] TU

UT

344

1. Introdução Tratar-se-á, na presente pesquisa, de uma abordagem contestativa de algumas das premissas

que

encontram-se

convencionalmente

solidificadas

no

pensamento

jurídico-

constitucional no que concerne à estipulação prévia da “última palavra” referente a questões cruciais existentes na sociedade brasileira, no que tange a seus direitos. Dessa forma, primeiramente, aborda-se que deve-se reconhecer a existência de vários Guardiões da Constituição, ainda que apenas algum(s) dele(s) detenha(m), formalmente, como função precípua, a possibilidade de analisar a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com uma constitucional, todavia, isso não implica ser, como pode aparentar, que haja apenas um único e exclusivo detentor da conhecida expressão “da última palavra” sobre a Lei Maior, ou seja, um único Guardião da Constituição, como pregavam alguns autores como Hans Kelsen, no que tange a um Tribunal Constitucional e Carl Schmitt referindo-se ao Reich. Com base em tal perspectiva, vislumbra-se, rapidamente, o princípio da Separação dos Poderes sob uma ótica de construção histórica e cultural que deve ser analisado conforme o Estado em que se insira, em outros termos, sendo tal princípio, antes de tudo, referente a funções predeterminadas, não significa isso que o mesmo preconize, na atualidade, premissas inflexíveis, ao revés, e nessa linha, leciona Garapon que o poder não deve ser desmembrado/divido em três segmentos, cada qual com incumbências específicas e taxativas, pautado numa separação absoluta. Dessa maneira, contradizendo o que inicialmente se abordava no palco do Estado Liberal, os poderes apenas podem manter o equilíbrio se partilharem os mesmos âmbitos, dessa forma, cada um deles “legisla”, “administra” e “julga” nos Estados que adotam a separação de poderes, ainda que de maneira peculiar e diferenciada, tendo em vista que antes, cada um deles, possui função precípua, mas não única. Nesta esteira, põe-se em questão também o que se acostumou, após a Constituição Federal de 1988, a se chamar de Supremacia de um poder em detrimento do outro, no caso do Poder Judiciário, especificamente do Supremo Tribunal Federal reverenciado sob o ângulo de Guardião da Constituição e restaurador da Democracia. Compreende-se que, naquele momento, de fato, a principal preocupação, tendo em vista o período de exceção político-institucional vivido anteriormente, eram proteger o texto constitucional, assim como ressaltar e demonstrar a recuperação da normalidade democrática. Todavia, verificase que, passados mais de 20 anos da promulgação da Carta Política, é possível constatar a paulatina consolidação da ordem democrática no Brasil. Em contrapartida, o Supremo afirma lhe incumbir ainda, por exigência de imposição constitucional, a singular prerrogativa de dispor do monopólio da “última palavra”. Rebatendo tal concepção, por fim, abraçamos a concepção de que se pode falar em supremacia. Contudo, essa supremacia não deve centralizar-se em uma ou outra estrutura de poder, mas sim sobre a Constituição e os direitos, uma vez que, no âmbito do 345

Estado Democrático de Direito, todas as estruturas devem, em última análise, prestar e reverenciar a centralidade da pessoa humana. Com base nessa expectativa de reverenciamento, busca-se vislumbra, brevemente, o novo arranjo de relações cooperativas internas e externas, assim como as possibilidades dialógicas entre os poderes juntamente com a sociedade, verifica-se, assim, uma perda de sentido indagarse acerca do estabelecimento de prévias supremacias, especificamente do Judiciário (STF), tendo em vista que o núcleo da discussão – proteção e concretização dos direitos - passa a envolver posturas de responsabilidade igualitária em prol de uma empreitada que merece grande engajamento: tarefa premente de guarda da Constituição.

2. Quem deve ser o guardião da constituição?2 TP

PT

Nas primeiras décadas do século XX, no auge do advento do Estado Social, Hans Kelsen3 TP

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e Carl Schmitt4, dois filósofos do direito, dedicaram-se, dentre outras tarefas, a perquirir quem, de TP

PT

fato, deveria ser compreendido como o “verdadeiro” Guardião da Constituição, em outras palavras, aquele que, como garante da Lei Maior, seria o legítimo detentor da proteção da norma hierarquicamente superior e fundamental a qual valida todas as demais normas do ordenamento jurídico estatal e, por conseguinte, aquele que poderia perscrutar se uma determinada norma hierarquicamente inferior, vale dizer, infraconstitucional, seria compatível ou não com a Constituição de determinado Estado. Nesta linha, Kelsen expõe suas ideias rebatendo as de Carl Schmitt, ao afirmar que o Guardião da Constituição deve ser uma instância que esteja afastada de seu próprio controle. Ou seja, aquela a quem a Constituição confia uma parcela de poder deve ser considerada inidônea para a função de garante da mesma, pois possui, primordialmente, em seus termos, a oportunidade jurídica e o estímulo político para vulnerá-la”5. Para sustentar tal pensamento, TP

PT

transcreve o brocardo jurídico de que “ninguém pode ser juiz em causa própria”6. TP

PT

2

Título retirado do penúltimo capítulo da compilação de artigos de Hans Kelsen, 1881-1973, Jurisdição Constitucional. introdução e revisão técnica Sérgio Sérvulo da Cunha-São Paulo: Martins Fontes, 2003- (justiça e direito); com nota de Carré de Malberg e o debate ocorrido na sessão de 1928 do Instituto Internacional de Direito Público. Título original: Verfassungs-undVerwaltungsgerichtsbarkeitimDiensedesBundesstates...

TP

PT

3

CLÉVE, Aborda Clèmerson Merlin. Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora RT, 1995,p.54:“Hans Kelsen foi o mentor da concepção de fiscalização de constitucionalidade incorporada pela Constituição de 1920 e aperfeiçoada em 1929. Para ele, do fato de uma lei contrariar a Constituição não se deve deduzir que ela seja nula ou inexistente. Segundo o autor, pois, a inconstitucionalidade consiste em mero pressuposto da sanção da anulação. A lei inconstitucional não é nula, mas sim anulável, sendo válida até a sua anulação. Daí porque a decisão que reconhece a inconstitucionalidade é constitutiva, produzindo eficácia ex nunc.”

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PT

4

No prefácio do livro O Guardião da Constituição, aborda Gilmar Mendes: p.xi Segundo Schmitt, a criação ou o reconhecimento de um Tribunal Constitucional, por outro lado, transfere poderes de legislação para o Judiciário, politizando-o e desajustando o equilíbrio do sistema constitucional do Estado de Direito. TP

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5 PT

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003 – (Justiça e Direito), p.240.

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TP

6 PT

Ibidem.p.240

346

Com base nesta premissa, Kelsen contesta veemente o escrito de Schmitt, qual seja O Guardião da Constituição (Der Hüter der Verfassung)7dedicado justamente à questão da garantia TP

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da Constituição do Estado democrático-parlamentar do Reich alemão e, para tanto, repulsa a pretensão do citado pensador de restaurar a Teoria do Poder Neutro do monarca –pouvoir neutrecriada por um dos mais antigos ideólogos da monarquia constitucional, a saber, Benjamin Constant, para aplicá-la sem limitações ao Chefe de Estado Republicano8. TP

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Constant, ao pregar que o monarca seria o possuidor de um Poder Neutro, rege-se, essencialmente, pautado na hipótese de que o Poder Executivo esteja fragmentado em dois poderes diversos: um passivo e outro ativo, e que o monarca apenas enquanto esteja na posição passiva será considerado no exercício do poder “neutro”. Nesse passo, Carl Schmitt sustenta que, embora o Chefe de Estado apareça como detentor do poder neutro, este não se caracteriza como um terceiro poder superior aos demais, porém como um órgão de mesma hierarquia, situado ao lado dos demais poderes estatais. Neste passo, Kelsen continua a impugnar esta afirmação de Schmitt, pois ao mesmo tempo em que prega esse pensamento, digamos, cooperativo internamente, cinge-se a uma ampla interpretação da competência do presidente do Reich contida no art.48 da Constituição de Weimar. Para finalizar, cola-se uma sustentação kelseniana da qual nos utilizaremos, doravante, embora de forma adaptada a nosso contexto, a saber: (...) quando na Constituição de Weimar se prevê, ao lado de outras garantias, o presidente do Reich como garante da Constituição, manifesta-se a verdade elementar de que essa garantia só pode representar uma parte das instituições de proteção da Constituição e que seria uma sumária superficialidade esquecer, em função do presidente do Reich atuando como garante da Constituição, os estreitos limites desse tipo de garantia e as muitas outras espécies e métodos de garantia constitucional!9 TP

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Com base na explanação deste jusfilósofo, podemos pautados numa reflexão contextualizada à nossa realidade brasileira, conjecturar a possibilidade de ir além de uma abordagem tão somente de garantes judiciários da Constituição, ou seja, retira-se daí aferições de uma possível abertura para vários Guardiões da Constituição, na medida em que os poderes estatais devem respeito e cumprimento à Constituição Federal, bem como os cidadãos; mormente 7

SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Trad. de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luis Moreira. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007. No prefácio desta obra, aborda Gilmar Mendes:“Referido trabalho foi publicado, inicialmente, em 1929, sob o título Das Reichgerichtsals Hüter de Verfassungg. Em 1931, Carl Schmitt publicou versão ampliada daquelas reflexões, denominada Der Hüter der Verfassung. Na referida obra, Schmitt questionava o papel do Judiciário como guardião da constituição. Segundo sua concepção, somente o Presidente do Reich teria legitimidade para desempenhar semelhante função”. p.ix

TP

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8

SCHMITT, Carl. p.201 Conforme o direito positivo da Constituição de Weimar, a posição do presidente do Reich, eleito pela totalidade do povo, só pode ser construída com a ajuda de uma teoria mais desenvolvida de um poder neutro, intermediário, regulador e preservador.

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TP

9 PT

KELSEN, Hans. op.cit. p.240 .

347

se partimos de uma maior abertura da interpretação constitucional, ao encontrar-se na necessidade de influência desses que 10

chamados “intérpretes oficiais” TP

PT

formam o elemento subjetivo do Estado, perante os

da Constituição (correspondentes aos Ministros do STF P

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P

especificamente e ao Judiciário). Em outras palavras, retira-se do pensamento kelseniano apenas aquilo que corrobora nosso pensamento, isto é, não a centralidade do controle de constitucionalidade jurisdicional ou, ainda, numa instituição autônoma não jurisdicional como tal pensador pregava, tão pouco uma visão exclusivamente schmittiana; perfilha-se, ao revés, uma compreensão baseada na conciliação para além de ambos os pensamentos, transplantando-o à perspectiva comunicacional no âmbito do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro.

2.1 A nova roupagem do princípio da separação dos poderes no Brasil pós-1988, uma questão cultural? Na concepção política clássica da separação dos poderes, os órgãos devem ser especializados e independentes uns dos outros de forma equilibrada e harmônica, a fim de garantir a liberdade. Segundo Celso Ribeiro Bastos, “mérito essencial da teoria de Montesquieu não reside (...) na identificação abstrata das formas de atuar do Estado”11. Outros pensadores, TP

PT

P

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antes dele, já tinham chegado até aí. “Montesquieu, entretanto, foi aquele que, por primeiro, de forma translúcida afirmou que a tais funções devem corresponder órgãos distintos e autônomos. Em outras palavras, para Montesquieu, à divisão funcional deve corresponder a divisão orgânica. Os órgãos que dispõem de forma genérica e abstrata, que legislam, enfim, não podem, segundo ele, ser os mesmos que executam, assim como nenhum desses pode ser encarregado de decidir as controvérsias. Há de existir um órgão (usualmente denominado poder) incumbido do desempenho de cada uma dessas funções, da mesma forma que entre eles não poderá ocorrer qualquer vínculo de subordinação. Um não deve receber ordens do outro, mas cingir-se ao exercício da função que lhe empresta o nome.”12 A pretensão de Montesquieu era construir uma técnica capaz de permitir TP

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P

uma forma equilibrada e moderada de governo, com poderes divididos (articulação de atividades específicas – funções – a órgãos distintos e autônomos) de tal maneira que, no interior da estrutura do Estado, o poder se incumbisse de controlar ou limitar o próprio poder. P

Com as transformações ocorridas pelo Estado e seu respectivo paradigma, tal princípio passou a ser relativizado de forma que na visão de Loewestein o princípio da separação das 10

HÄRBELE, Peter. Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição, trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 13. TP

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11 PT

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. ed.11, São Paulo: Saraiva, 1989. p.300

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12 PT

Idem.

348

funções estatais e sua distribuição entre diferentes órgãos “nem é essencial para o exercício do poder político, nem representa uma verdade evidente e válida para todo o tempo”13. TP

PT

A engenharia dessa técnica de contenção do poder foi influenciada pelo contexto e pelas circunstâncias como uma postura contra o absolutismo dos séculos XVII e XVIII. Por isso que “o liberalismo constitucional identificou a liberdade individual com a separação dos poderes”14. TP

PT

Contudo, se foi relevante no momento em que passou a ser aplicada, atualmente perde a sua magnitude, estranhando o jurista citado o fato de as Constituições européias promulgadas após a Segunda Guerra Mundial permanecerem fiéis ao que ele qualifica de velho e ultrapassado princípio15. De acordo com Loewenstein, essa afeição ao dogma talvez ocorra devido ao fato de a TP

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teoria política não ter reformulado ainda uma nova conformação do poder. Garapon, por sua vez, aduz-se que o poder não deve ser desmembrado/divido em três segmentos, cada qual com incumbências específicas e taxativas, pautado numa separação absoluta. Sendo assim, os poderes apenas podem manter o equilíbrio se partilharem os mesmos âmbitos, dessa forma, cada um deles “legisla”, “administra” e “julga” em todos os Estados que adotam a separação de poderes16. TP

PT

Os poderes, cada qual com suas particularidades, baseando-se em tal premissa “garaponiana”, não são melhores ou superiores aos outros, porém diferentes, com atribuições e compromissos distintos, os quais, em sua essência não se excluem, ao revés, complementam-se. Nesse cenário, portanto, todos os poderes- inclusive o Judiciário- exercem, de certa forma, função política. Nesse quadrante, a teoria constitucional no Brasil, entretanto, não raramente, é marcada por uma recepção tradicional do princípio da separação de poderes. E tal perfilhamento ocorre, muitas vezes, olvidando-se que as culturas jurídicas apresentam marcantes distinções entre si, justamente por se incluírem em sistemas jurídicos diferentes, vigentes nos respectivos estados soberanos a que pertencem. Consoante as palavras de Roberto Kant de Lima, por este motivo, quando de maneira equívoca, um destes sistemas é fragmentado, para que estas sejam incorporadas ao nosso ou a outro qualquer sistema, com o fim de, supostamente, buscar-se o “aperfeiçoamento” de um deles, os efeitos desta recepção tornam-se diversas vezes imprevisíveis e resultam pouco esclarecedores para a comparação empreendida. Nessa linha, o autor citado aborda que a antropologia contemporânea – ciência que cuida do sistema da vida humana social e culturalmente organizados de forma diferenciada – consagra que, pelo método comparativo, enfatiza-se as diferenças das realidades comparadas,

13 PT

LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona, Ariel, 1986. p.56.

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14 PT

Idem.

TP

15 PT

CLÈVE, Merlin Clérmerson. Atividade legislativa do Poder Executivo. –São Paulo: RT, 2000. p.33.

TP

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16 PT

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p.178.

349

contextualizando-as, para buscar equivalências entre institutos aparentemente distintos e dessemelhanças entre aqueles que, aparentemente, ou nominalmente, se assemelham. Com base nessa perspectiva, não se trata de avaliar positiva ou negativamente as peculiaridades empíricas presentes, julgando-as a partir de uma referência única, etnocêntrica (etnocentrismo, em ciência social, é a tendência humana universal a perceber e julgar culturas e sociedades estranhas mediante o crivo dos valores da sua própria cultura), mas compreendê-la através de sua própria teia de significados. Assim, não é suficiente levar em conta apenas o nome do instituto que se utiliza em determinado Estado, porém é indispensável analisar qual o sentido da sua abordagem no cenário do sistema jurídico de cada sociedade, bem como na maneira como este instituto é adaptado na prática jurídica local. Destarte, dois fatores projetam-se com o fito de superação de um tratamento rígido a respeito do balizamento teórico de pensadores políticos como Locke e Montesquieu. De um lado, as próprias crises do Estado e da função legislativa e os novos formatos de controle de constitucionalidade no século passado têm impulsionado uma perspectiva institucional mais flexível por parte da teoria constitucional. De outro

lado, as mais recentes interpretações

formuladas pela teoria política propiciaram leituras mais condizentes com as linhas de pensamento dos séculos XVII e XVIII17. TP

PT

P

No quadro brasileiro, reconhece-se que as atuais posturas do poder judiciário e, sobretudo, do Supremo Tribunal Federal, não se afastam dessa nova forma de abordagem de tal princípio. Se a separação dos poderes, mormente no século XVIII, estava comprometida com a transição política para evitar rupturas institucionais, no caso da jurisdição constitucional brasileira, ela é abraçada para fundamentar e justificar, em diversas vezes, o alargamento das atribuições institucionais do STF18. TP

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3. Possibilidades dialógicas e cooperativas interna e externa em defesa dos direitos 3.1 A supremacia dos direitos e a supremacia judicial Ao dispor acerca de um instrumento conhecido como "cláusula não obstante" (notwithstanding clause), a Constituição do Canadá de 1982 instituiu mecanismo através do qual o Poder Legislativo poderá aplicar um determinado diploma normativo, ainda que ele seja incompatível com o Texto Constitucional (na visão do Judiciário). Tal hipótese despertou o interesse de vários estudiosos, notadamente daqueles que enxergam, com ressalvas, a prática tradicional do judicial review e influenciou outros países a abraçarem mecanismos similares (Inglaterra, Nova Zelândia, Israel). Este modo de fiscalização de constitucionalidade das leis, aqui 17

VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.) et al. Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, 2009.p.95.

TP

PT

TP

18 PT

Idem.

350

designado de controle brando de constitucionalidade (weak-form judicial review), prega que o Judiciário, inobstante exerça

um papel significativo

na

interpretação

dos

dispositivos

constitucionais, não deve possuir a prerrogativa de deter a “última palavra”. Estima-se, portanto, o elemento democrático, de modo a permitir aos representantes do povo que detenham também de maneira última e definitiva quais são, precisamente, os ajustes basilares daquela sociedade.19 TP

PT

Com efeito, o surgimento de novas “versões” de judicial review, que dispõem sobre engenhos dialógicos entre os juízes e os poderes políticos, aflora uma relevante alternativa para os estudiosos do direito constitucional dedicados à observância do respeito aos princípios democráticos adotados em considerável parte do mundo ocidental. P

Vislumbra-se no cenário atual que é indubitável o protagonismo dos tribunais superiores – principalmente o do Supremo Tribunal Federal – na vida brasileira. Dessa forma, o surgimento de novas “versões” de judicial review, que dispõem sobre engenhos dialógicos entre os juízes e os poderes políticos, aflora uma relevante alternativa para os estudiosos do direito constitucional dedicados à observância do respeito aos princípios democráticos. Da pesquisa com células-tronco, quotas nas universidades, desarmamento, aborto (anencéfalos), demarcação de terras indígenas, reforma agrária, distribuição de medicamentos, lei de imprensa, lei de crimes hediondos, poder da polícia de algemar, direito de greve, cassação de governadores à decisão sobre o fim do diploma para o exercício do jornalismo, análise da lei da ficha limpa, extradição de Battisti, etc.

Percebe-se, assim, que se tornou difícil pensar,

atualmente, em alguma questão política, moral, econômica, científica, ambiental que não possa ser levada à apreciação do Judiciário.

Nessa linha, a afirmação estampada no art.102 da

Constituição Federal de 1988, preceitua que: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”, e tal asseveração buscou traduzir o empenho do Constituinte na corrida pela estabilização do processo de redemocratização, comprometendo-se a Corte, diante deste mister, a preservar a nova ordem constitucional recém-instaurada imbuída de expectativas. No momento, a principal preocupação, tendo em vista o período de exceção políticoinstitucional vivido anteriormente, eram proteger o texto constitucional, bem como valorizar e demonstrar a recuperação da normalidade democrática20. Esses artifícios aperfeiçoam-se com a TP

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P

constante declaração de supremacia do Judiciário, o qual se insere no próprio modo de

19

PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Supremacia judicial e controle de constitucionalidade. Direito Público; Vol. 1, Nº 31 (2010): DPU Nº 31 – Jan-Fev/2010. p.2 Disponível em: http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/view/799. Acesso em 09/09/2011. TP

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TU

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20

VALLE, Vanice Regina Lírio do; SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo Cooperativo ou Supremacia do Judiciário? Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2011.p.2252-2253. TP

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351

pronunciamento da Suprema Corte, não se revelando tímida sua atuação precoce de reprovação P

P

acerca das reações do legislativo as quais, eventualmente, surgem contrárias às suas decisões. P

Com efeito, verifica-se que passados mais de 20 anos da promulgação da Carta Política, é possível constatar a paulatina consolidação da normalidade democrática no Brasil. Em contrapartida, o Supremo afirma lhe incumbir, por exigência de cunho constitucional “a singular prerrogativa de dispor do monopólio da última palavra em tema de exegese das normas inscritas no texto da Lei Fundamental”. (Mandado de Segurança 26.603, Rel. Min. Celso de Mello- Tribunal Pleno - j. em 04.10.2007 ).21 TP

PT

Dessa forma, a declaração decorrente do pleno, como várias outras no mesmo sentido, induz a evidenciar o vetor de supremacia do Judiciário em âmbito nacional, em caminho crescente, quase como consectário nacional do triunfo do constitucionalismo democrático.22 TP

PT

Tendo em vista esta presença proeminente do STF na esfera sócio-política brasileira, é inegável que a sua atuação, principalmente no controle de constitucionalidade, não deve olvidar a possibilidade de diálogo com os demais poderes políticos na significativa tarefa de conferir sentido aos enunciados de nossa norma fundamental. Esta percepção pode trazer novos ambientes para o debate acerca da supremacia judicial no Brasil, e é precisamente sobre esta possibilidade que se tentará fazer algumas reflexões, doravante. Quando se alude à supremacia judicial não se indaga acerca da possibilidade de os juízes, em decorrência da interpretação, afastarem a aplicação das normas infraconstitucionais diante de sua incompatibilidade seja formal seja material com a Constituição, fazendo valer, portanto, a sua maior hierarquia perante todo o ordenamento jurídico. O que se discute é a detenção do monopólio na interpretação da Lei Maior por parte do Poder Judiciário, mais precisamente do STF, e, ademais, se a apreciação dos mesmos (Poder Judiciário e especialmente do STF) será definitiva e última, em outros termos, se será revestida de primazia em detrimento daquela proferida pelos demais poderes políticos. Resta indubitável, assim, que não cabe apenas a um Poder da República ( no caso STF) a interpretação da Constituição de 1988, haja vista que, de acordo com sua própria letra, por meio de mecanismos diversos, os demais poderes também detêm a possibilidade de deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional, tanto o Executivo quanto o Legislativo, aquele preventiva, através do veto jurídico e repressivamente, ao constatar sua inconstitucionalidade manifesta, este por meio do pronunciamento da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Portanto, o que produz cizânia na presente discussão é se a interpretação judicial predominará sobre a interpretação política, segundo alegam alguns constitucionalistas de escol, como Luis Roberto Barroso. 21 PT

SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010. p.29.

TP

TP

22 PT

Idem.

352

Diante disso, se os reclames sobre a autoridade última na configuração do sentido do Texto Supremo permanecem uma questão hodierna; não parece menos claro que a análise dessa temática projete hoje, manifestamente, uma compreensão dos próprios questionamentos que o constitucionalismo se vem propondo, em tempos de Estado Democrático, em que as relações de interação – ao invés da afirmação da supremacia – apresentam-se como o ponto crucial dos Estados Nações23. TP

PT

Para advogar o argumento de que a interpretação proveniente do Judiciário em casos de elevada repercussão sócio-política, ao menos por diversas vezes, não será definitiva e peremptória, é preciso tocar na discussão envolvendo a dicotomia constitucionalismo-democracia. A relação que se situa entre ambos e a primazia de um ou de outro numa determinada ordem constitucional devem ser analisadas levando-se em consideração não só a supremacia da Constituição – que conduz à possibilidade de realização do controle jurisdicional de constitucionalidade -, como também o nível de dificuldade necessário para a alteração do Texto Constitucional24. TP

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Dessa forma, será diretamente proporcional a relação entre a rigidez da Constituição e a prevalência do constitucionalismo em face da democracia, isto é, quanto mais rígida for a Constituição mais proeminência terá o constitucionalismo em detrimento da democracia, em contrapartida, será inversamente proporcional a relação entre a dificuldade do processo de alteração da Constituição e a valorização da vontade popular, em outros termos, quanto menos dificultoso for o seu processo de modificação, maior será o estima da vontade popular, menos restringida por aquela exprimida por gerações de outrora. Ao se alegar que o controle fraco de constitucionalidade é mais proveitoso do que o controle forte, ordinariamente, esta alegação está pautada precisamente na possibilidade de diálogo entre os poderes responsáveis pela interpretação da Constituição, ao não se colocar a posição do Judiciário (no caso, STF) como prévia e definitiva. A possibilidade de aprovação de uma emenda à Constituição é uma das formas pelas quais este diálogo pode ocorrer, contanto que o seu trâmite não seja excessivamente rigoroso25. TP

PT

P

O controle fraco de constitucionalidade, em um país como o Canadá (no qual a aprovação de uma emenda à Constituição depende de aprovação do Legislativo, formado pelo Senado e pela Câmara dos Comuns, bem como da confirmação pelas

Assembléias legislativas de, pelo

menos, dois terços das províncias, conforme disposto na Seção V, Constitution Act, 1982), admite que o Poder Legislativo (federal ou provincial) aplique uma lei inconstitucional – superando, assim, o pronunciamento do Judiciário – de maneira ágil, o que seria impraticável se fosse preciso

23 PT

VALLE, V. R. L.do; SILVA, C. de A.. p.2254.

TP

24 PT

PINTO, José Guilherme Berman Corrêa.op.cit.p.22.

TP

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25 PT

PINTO, José Guilherme Berman Corrêa.op.cit. p.22-23.

353

emendar a Constituição. O mesmo ocorre nos Estados Unidos, onde se determina, para aprovação de uma emenda constitucional, os votos de dois terços dos membros das duas Casas do Congresso Nacional, além da ratificação por três quartos das Assembleias Legislativas dos Estados ou de Convenções extraordinariamente convocadas para tanto (art. V, Constituição norteamericana).26 TP

PT

Situação distinta verifica-se no Brasil, como demonstram as mais de 60 emendas, atualmente 67, à Constituição aprovadas em menos de 23 anos de sua vigência. Sabe-se que a reforma do Texto Constitucional condiciona-se tão somente ao Poder Legislativo federal, o qual deve se manifestar por meio dos votos de três quintos dos membros de ambas as Casas, em dois turnos de votação (art. 60, § 2º, da CF/1988).

O rito das emendas, de certa forma simples, abre

espaço para rebates relativamente ágeis oriundos do Legislativo ao Judiciário, ou seja, aceita que, uma vez declarada a inconstitucionalidade de uma dada lei, o Legislativo sobrepuje esta decisão não através de outra lei, mas por meio da alteração do texto da própria Constituição27. A título de TP

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ilustração, mencionam-se alguns casos a seguir: Destaca-se, primeiramente, o exemplo concernente à decisão do STF que derrubou a exigência de diploma e registro no Ministério do Trabalho para o exercício do jornalismo. A contrapartida na Câmara foi rápida e, 21 dias depois, o deputado Paulo Pimenta (PTRS), que é jornalista e tem o diploma, já havia obtido a assinatura de 191 deputados para a apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 386/09) que restitui a exigência. Em reposta a uma possível restauração da exigência de diploma regulamentada em lei, em notável reação à decisão judicial, provocou-se imediata resposta negativa por parte do Presidente do STF (à época Gilmar Mendes), ao afirmar friamente que seria considerada inconstitucional, pela corte, nova lei sobre o tema, ratificando, em outros termos, que no concernente a tal matéria, estava impossibilitada qualquer relação dialógica entre o legislativo e o judiciário. Para o deputado, a decisão do Supremo é equivocada, inclusive quanto à interpretação do artigo 220 da Constituição, que trata da liberdade de expressão. "O dispositivo constitucional não deixa à margem de suas preocupações a necessidade da observância de determinadas qualificações profissionais que a lei estabelecer", afirma.28 TP

PT

Um exemplo muito recente foi a regulamentação do aviso prévio proporcional. Nesta esteira, a Constituição Federal de 1988 versa que é direito do trabalhador urbano e rural, a 26 PT

Idem.

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27 PT

Idem p.24.

TP

TP

28

Pimenta considera que, para ser jornalista, é necessário mais do que o simples hábito da leitura e o exercício da prática profissional. Para o deputado, o jornalista precisa adquirir preceitos técnicos e éticos, necessários para o desempenho de tarefas como entrevistar, noticiar e editar. "Evidentemente que o diploma, por si só, não evita a ocorrência de abusos. Contudo, mais certo é que a ausência de formação técnica e noções de ética profissionais potencializam enormemente a possibilidade de os abusos ocorrerem", diz o deputado. Disponível em:http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/137462.html. Acesso em 14/09/2011. PT

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354

concessão de "aviso prévio proporcional ao seu tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei" (artigo 7º, inciso, inciso XXI). Dessa forma, a expressão final do texto constitucional direcionava para a necessidade de regulamentação de tal dispositivo constitucional, por meio de lei, para o exercício desse direito pelo trabalhador. Até o advento da lei 12.506, de 11 de outubro de 2011, publicado no DOU de 13 de outubro de 2011, que veio a nortear o tema e sobre o qual trataremos a seguir, vários projetos de lei tramitavam no Congresso Nacional sobre a matéria. Concomitantemente, na esfera judicial, havia pelo menos quatro Mandados de Injunção (MI) que tramitavam no STF (processos: MI 943, 1011, 1074 e 1090) com o objetivo de suprir a lacuna deixada pelo legislador ordinário. Em junho de 2011, no julgamento do processo MI 943 no STF, o Ministro Relator do processo explicitou em seu voto que entendia procedente o mandado, mas que sugeria a suspensão do julgamento para uma análise cautelosa das hipóteses possíveis. Diante desse cenário, o Congresso Nacional inquietou-se e regulamentou o instituto do aviso prévio proporcional, dessa forma, não obstante o trâmite para a formulação de tal projetou tenha durado longo espaço de tempo, ou seja, desde 1989, sua aprovação, provavelmente, diante do posicionamento do Judiciário, durou pouco tempo, sendo logo sancionado pela Presidenta da República. Portanto, a premissa para o prosseguimento desta breve pesquisa parte da seguinte afirmação: ainda há de se falar em supremacia. Contudo, essa supremacia não deve centralizarse em uma ou outra estrutura de poder, mas sim sobre a Constituição e os direitos, uma vez que, no âmbito do Estado Democrático de Direito, todas as estruturas devem, em última análise, prestar e reverenciar a centralidade da pessoa humana.

3.2 Cooperação interna e externa em defesa dos direitos A sociedade mundial hodierna revela-se bastante complexa, competitiva, pautada na abertura cognitiva que a nova arena de fluidez de fronteiras geográficas e de proliferante circulação de ideias determina; neste cenário, consoante Garapon, deve-se temer mais às más compreensões entre culturas jurídicas, ou seja, às divergências não assumidas por serem desconhecidas, do que às diferenças entre sistemas jurídicos. Essas más compreensões são ainda mais nebulosas de serem percebidas, ao se considerar que as diferenças não são visíveis de plano pelo comparatista. Acreditamo-nos semelhantes, mas somos diferentes; pensamos que as mesmas coisas se encontram por detrás das palavras, sem compreender que elas procedem de representações coletivas muito distintas. E ainda mais plenas de virtualidades por não serem – ou só muito

355

raramente – explicitadas. Nessa esteira, contra o combate das culturas ou o concerto das nações destaca-se uma possível alternativa: o do diálogo.29 TP

PT

Disto advém que os sujeitos constitucionais de poder não se mostram, de per si, muitas vezes, aptos a solucionar as grandes discórdias quanto a direitos30. Sobressai, destarte, o TP

PT

P

P

fenômeno do Transconstitucionalismo, e nas palavras de Marcelo Neves, o que caracteriza esse processo entre ordens jurídicas é ser um constitucionalismo relativo a (soluções de) problemas jurídico-constitucionais que se refletem concomitantemente concernentes a diversas ordens. P

Quando questões de direitos fundamentais ou de direitos humanos submetem-se ao tratamento P

jurídico concreto, perpassando ordens jurídicas diversas, a “conversação” constitucional, torna-se indispensável.31 TP

PT

Nesta perspectiva, aduz Garapon: Vemos nascer – ou renascer – um verdadeiro diálogo das culturas jurídicas por via das cortes supremas ou dos próprios juízes; entretanto, se esse diálogo quiser escapar da insignificância dos lugares comuns, ele não pode ignorar a exigência – deve até mesmo ter o ardor – de uma verdadeira comunicação32. TP

PT

É nesta quadra de novas relações de interdependência no cenário internacional que brotam as concepções de Estado Constitucional Cooperativo, o qual, segundo Härbele “(...) encontra sua identidade também no Direito Internacional, no entrelaçamento das relações internacionais, na percepção da cooperação e responsabilidade, assim como no campo da solidariedade (...)”.33 TP

PT

Explana Härbele que o Estado Constitucional Cooperativo não atua baseado na ótica da primazia de ordens jurídicas – nacional ou internacional – ao revés, compreende que “(...) o efeito recíproco entre as relações externas ou pautadas pelo Direito Internacional, e a ordem constitucional interna (nacional), são norteadas pelo

Direito Internacional e pelo direito

34

constitucional interno e crescem juntas num todo (...)” . Assim, as relações cooperativas entre TP

PT

Estados constitucionais devem operar, destarte, pautadas nas coincidências dos aspectos de contato, imbuída de caráter dialógico que abarquem acordo e aprendizado mútuo. Deste modo, o Constitucionalismo Cooperativo, leva em apreço o pluralismo constitucional e supera os obstáculos de estabelecerem-se relações de acoplamento entre

29

GARAPON, Antoine; Ioannis Papadopoulos. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e common law em uma perspectiva comparada. Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008.p.1. TP

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30

SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010. p.32.

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31

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NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.129.

TP PT

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32

GARAPON, Antoine; Ioannis Papadopoulos. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e common law em uma perspectiva comparada. Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008.p.1. TP

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33 PT

HÄRBELE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.p.4.

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34 PT

HÄRBELE, Peter.op.cit.p.12.

356

diferentes ordens nacionais, e destas com o direito comunitário, sem o esquecimento das suas respectivas identidades e peculiaridades. É dizer, não demonstra ser compatível com esse sentido de constitucionalismo, baseado na cooperação e no diálogo, imaginar a “última palavra”, tendo em vista que os efeitos recíprocos entre os ordenamentos constitucionais nacionais e supranacionais seguem se desenvolvendo num contínuo processo de simbiose, o qual Härbele designa poeticamente de crescimento conjunto.35 TP

P

PT

Associada a essa tendência cooperativa entre ordens jurídicas além das fronteiras P

nacionais, isto é, no âmbito externo, não se olvida o convívio e o reconhecimento dessa possibilidade no âmbito interno de um mesmo Estado, ou seja, a formação de relações cooperativas entre diferentes esferas, de maneira equilibrada, com a finalidade constante pela P

P

busca do “guardião mais adequado”, observando-se as funções atribuídas a cada poder, de acordo com o conteúdo dos direitos em discussão e, consequentemente, deixando de lado a preocupação de “prévia supremacia ou última palavra” atribuída exclusivamente a algum poder ou instituição. P

Essa visão apresenta-se, a nosso sentir, como estratégia mais legítima para o exercício compartilhado da efetivação dos direitos, afastando-se, dessa maneira, a preocupação acerca da primazia apriorística deste ou daquele poder para assegurar a supremacia da Constituição e dos direitos humanos.

4. Conclusão Diante de todo o exposto, verifica-se que, para o cumprimento dos direitos da pessoa humana, torna-se imperioso por meio de uma alternativa dialógica/comunicacional, não imbuída necessariamente de consenso, mas comprometida com a conversação entre Guardiões e a sociedade, afastar-se da preocupação apriorística de “quem” deve ser o detentor da “última palavra” ou o único Guardião da Constituição diante desse novo cenário pós-1988 no Brasil, (não olvidando as diferenças culturais inerentes aos diversos sistemas jurídicos, bem como às peculiaridades dos poderes estatais, como alega Antoine Garapon) e destacar-se a compreensão na seguinte assertiva: é importante que se afirme a supremacia da Constituição e a proteção desse status seja atribuição precípua do Judiciário ( sobretudo, STF), tal apreensão não implica, entretanto,

o

afastamento

ou

exclusão

da

possibilidade/utilidade/necessidade

de

se

comunicarem/compartilharem tal mister juntamente com as demais estruturas de poder em prol da efetivação dos direitos humanos, que deve ser a preocupação maior num Estado Democrático de Direito.

TP

35 PT

SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010. p. 44.

357

Referências bibliográficas BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. ed.11, São Paulo: Saraiva, 1989. CLÈVE, Merlin Clérmerson. Atividade legislativa do Poder Executivo. –São Paulo: RT, 2000. CLÉVE,Aborda Clèmerson Merlin. Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora RT, 1995. GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Rio de Janeiro: Revan, 2001. GARAPON, Antoine; Ioannis Papadopoulos. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e common law em uma perspectiva comparada. Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2008. HÄRBELE, Peter. Estado Constitucional Cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. HÄRBELE, Peter. Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris. 1997. KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003 – (Justiça e Direito). LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. Barcelona, Ariel, 1986. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. T

PINTO, José Guilherme Berman Corrêa. Supremacia judicial e controle de constitucionalidade. Direito Público; Vol. 1, Nº 31 (2010): DPU Nº 31 – Jan-Fev/2010. SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Trad. de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luis Moreira. – Belo Horizonte: Del Rey, 2007. SILVA, Cecília de Almeida et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010. VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.) et al. Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, 2009. VALLE, Vanice Regina Lírio do; SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo Cooperativo ou Supremacia do Judiciário? Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI.

358

Medidas Provisórias e Democracia: Uma análise da atuação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na edição abusiva de Medidas Provisórias Mariana Falcão Bastos Costa1 TP

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Resumo

Abstract

Este estudo tem por cerne a edição abusiva de Medidas Provisórias no Brasil e o papel que assume os três poderes estatais nesta edição. Buscar-se-á desconstruir a ideia amplamente aceita de que tal edição é a mera imposição das vontades do Executivo ao Legislativo, ao que bastaria a realização do Controle de Constitucionalidade Abstrato pelo Judiciário para limitar tal edição ante a observância dos requisitos constitucionais de urgência e relevância do interesse público. Trabalhamos com a hipótese de confluência de interesses desses três poderes (possíveis barganhas) para burlar o trâmite regular na edição de leis. Objetivamos, portanto, questionar o efetivo papel da Medida Provisória no arranjo institucional brasileiro, bem como a (in)definição do padrão de governabilidade no Brasil, focando, sobretudo, no papel que a Jurisdição constitucional assume nesse quadro, ao que propomos mecanismos de controle desse abuso que efetivamente se coadunem com um país com pretensões democráticas. Questionamos até onde há nessas medidas uma representatividade dos interesses da população brasileira e como se mascara os conflitos existentes fugindo do debate (aparente consentimento do Congresso). Pretendemos elucidar tais questões pertinentes as relações entre MPs e Democracia, através de pesquisa bibliográfica e, sobretudo, análise das MPs editadas em 2007, bem como ADI nº 3964.

This study aims to examine the abusive edition of Provisional Measures in Brazil and the role that takes the three state powers in this issue. This research will deconstruct the accepted idea that such issue is the simple imposition of the will of the executive to the legislature, and that the realization of Abstract Judicial Review by the judiciary will limit this by observance of constitutional requirements as emergency and relevance of public interest. We hypothesized confluence of interests of these three powers (bargaining possible) to escape the procedural steps in the regular edition of laws. Our objective, therefore, is question the actual role of the Provisional Measures in Brazilian institutional arrangement, as well as (in)definition of governance in Brazil, focusing mainly on the paper that assumes the constitutional jurisdiction in this context, we propose mechanisms which effectively controls the abusive edition as compatible with a country with democratic pretensions. We question how far these measures is a representation of the interests of the population and how mask the conflicts running out of the debate (apparent consent of Congress). We intend to fully resolve these issues relevant relations between MPs and Democracy through literature and especially analysis of MPs published in 2007, as well as ADI nº. 3964.

Palavras-Chave: Democracia; Medidas Provisórias; Edição abusiva; três poderes; mecanismos de controle.

Keywords: Democracy; Provisional Measures; abusive edition, three powers, mechanisms of control.

1

A autora é mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas/UFAL, pósgraduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários/IBET, Cientista Social e Advogada. Email: [email protected] TP

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1. Introdução O cerne do debate atual acerca de Medidas Provisórias se dá quanto a visão do papel dos Poderes que compõe o Estado brasileiro. Assim, há aqueles que, amparados na separação formal dos poderes, associam Medida Provisória ao revés da Democracia, enfocando a usurpação do papel do Poder Legislativo. Por outro lado, a análise das relações efetivas entre Legislativo e Executivo, tem mostrado que mesmo com o expediente da Medida Provisória, há convergência de interesses entre esses dois poderes, e mesmo colaboração. Contudo, apesar das divergências quanto o papel da Medida Provisória em nosso arranjo institucional, os mais diversos posicionamentos teóricos parecem coadunar com o entendimento de que, frequentemente, edita-se Medidas Provisórias sem o preenchimento dos requisitos de urgência e relevância que a justificam. Diante desse quadro, insere-se a problemática que perpassa o presente trabalho, que consiste em saber se é possível limitar a edição de Medida Provisória, mediante o controle de constitucionalidade abstrato exercido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente quanto a observância dos requisitos constitucionais para sua edição. Para tanto fez-se necessário aprofundar o debate sobre como se dá a Democracia no Brasil, ressaltando suas peculiaridades. Afinal, adota-se aqui a posição de que rotular a Medida Provisória como instrumento antidemocrático deixa de lado o que efetivamente ocorre para sua edição, e o desvirtuamento do papel que o constituinte previu para tal instrumento. Apenas ao sair do campo das conjecturas e analisar sua elaboração é possível apontar o que verdadeiramente ocorre, esclarecendo pontos de aparente contradição quanto a esta problemática. Tendo em vista a necessidade de elucidar questões pertinentes as relações entre Medidas Provisórias e Democracia, para perceber o efetivo papel dos mecanismos que restringem a utilização de MPs aos casos previstos na Constituição brasileira, adotamos uma postura analítica, articulando teoria e prática para se obter uma visão de conjunto que consegue aprofundar esse debate, através de pesquisa bibliográfica, articulando os referenciais teóricos aqui trabalhados, sobretudo a perspectiva Bobbiana a respeito de Democracia. Na presente pesquisa, buscou-se dar um tratamento qualitativo aos dados coletados, já que só houve una ADI que suspendeu eficácia de Medida Provisória no período analisado, qual seja, de janeiro de 2007 a dezembro de 2008.

360

2. Reflexões sobre Democracia no contexto brasileiro Em que pese as pré-noções que dão suporte para pensar a Medida Provisória enquanto um instrumento antidemocrático, como o presente trabalho propõe-se a questionar o efetivo papel da MP2 em nosso arranjo institucional, é preciso, primeiramente, qualificar essa forma de exercício TP

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do poder adotado pelo Brasil, qual seja, conforme reza a Constituição Federal de 1988: a Democracia. Só assim podemos avaliar se a adoção de MPs é critério a descredenciar o Brasil como país democrático, bem como as implicações da larga utilização deste instrumento. Nesse sentido, em consonância com o entendimento de Bobbio acerca de liberalismo enquanto “uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social”3, podemos qualificar a democracia brasileira como liberal. Afinal, através da simples TP

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leitura da Constituição brasileira de 1988 percebe-se a preocupação com a limitação do poder do Estado a propiciar “segurança nas fruições privadas”4, ou seja, cabe ao Estado brasileiro garantir TP

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apenas as condições minimamente necessárias para que os indivíduos possam se desenvolver. Outrossim, podemos enquadrar a democracia brasileira como representativa, já que através do processo eleitoral, elege-se os que irão exercer diretamente o poder. Tendo em vista o argumento de Rousseau5 de que a soberania não pode ser representada surge a indagação TP

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quanto à representatividade do Parlamento como critério para avaliar a democracia brasileira. Por outro lado, num país de dimensões continentais como o Brasil, e com uma população imensa seria impossível que todos os habitantes participassem diretamente de todas as tomadas de decisões. Ainda segundo Rousseau “Se houvesse um povo de deuses, seria governado democraticamente. Mas aos homens não convém tão perfeito governo”.6O que fazer então? TP

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Entendimento diverso ao de Rousseau assume Locke7, ao defender que o Parlamento TP

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constitui o poder supremo da população. Nesse sentido, BOBBIO justifica a necessidade da democracia representativa por ser “[...] o único governo popular possível num grande Estado”.8 TP

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Sendo o “[...] prosseguimento natural de um Estado desejoso de assegurar aos seus cidadãos o máximo de liberdade.”9 Assim, mostra o nexo existente entre liberalismo e democracia, “entre uma TP

2 PT

Utilizaremos a sigla MP para designar Medida Provisória

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3 PT

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 7.

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4 PT

Idem, p. 8.

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5 PT

ROUSSEAU, Jean- Jacques. Do Contrato Social. São Paulo:Martin Claret, 2005.

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6 PT

Idem, p. 72.

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7 PT

LOCKE, Jonh. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2005.

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8 PT

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 32.

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9 TP

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Idem, p. 68.

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determinada concepção de Estado e os modos e as formas de exercício do poder capazes de melhor assegurar a sua atuação”10. TP

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Esse autor assevera a distinção da liberdade para os antigos e para os modernos, posto que para os primeiros significa a distribuição do poder, e para os últimos a limitação do poder, chamando de liberdade às garantias dadas pelas instituições a possibilitar o desenvolvimento das atividades privadas.11 TP

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Amparado na acepção corrente eis a definição de democracia por Bobbio: [...]por “ democracia” entende-se uma das várias formas de governo, em particular aquelas em que o poder não está nas mãos de um só ou de poucos, mas de todos, ou melhor, da maior parte, como tal se contrapondo às formas autocráticas, como a monarquia e a oligarquia.12 TP

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O indivíduo é visto como anterior à criação do Estado, daí porque “[...] o Estado liberal é justificado como o resultado de um acordo entre indivíduos inicialmente livres que convencionam estabelecer os vínculos estritamente necessários a uma convivência pacífica e duradoura.”13 TP

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Altera-se, portanto a perspectiva de como se vê o Poder. Conforme Bobbio “[...]o problema do Estado passou a ser visto não mais da parte do poder soberano mas da parte dos súditos, não seria possível a doutrina do Estado liberal, que é in primis a doutrina dos limites jurídicos do poder estatal. Sem individualismo não há liberalismo”14. TP

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Mesmo ao exaltar os mecanismos que propiciam a participação direta da população na tomada de decisões, tais quais o referendo, o plebiscito, o orçamento participativo, constata-se a inviabilidade de chamar a população para participar, diretamente, de todas as tomadas de decisões. Nesse sentido, cabe o alerta de Bobbio sobre os perigos do “cidadão total” visualizado por Rousseau. Afinal, não sobraria tempo para mais nada além de tomar decisões. Daí advém a importância da representação dos interesses, frise-se advindos do somatório das vontades particulares, por um órgão especializado nessa tarefa. Em nosso arranjo institucional fora concebido o Parlamento para tal incumbência. Ao vislumbrarmos o papel do Parlamento cabe assegurar sua missão institucional, possibilitando a defesa da pluralidade de interesses da população brasileira, conciliando interesses divergentes, sem suprimir as vontades de parcela relevante da população, como costuma acontecer. Somente assim a soberania popular deixa de ser um princípio a guiar a Democracia brasileira e aproxima-se da realidade.

10

Idem, p. 69.

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11 PT

Idem, p. 8.

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12 PT

Idem, p. 7.

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13 PT

Idem, p. 14.

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14 PT

Idem, p. 16.

362

O fato da maioria dos países latino americanos, incluindo o Brasil, ter sofrido, com variações, ditaduras militares, a democracia, como contraponto à ditadura, acompanha uma série de expectativas, sobretudo, de acabar com as mazelas de um regime autoritário. Ocorre que, tamanhas expectativas não foram concretizadas por democracias em via de consolidação. Assim, a decepção proporcionada por uma democracia idealizada e intangível, parece afastar a consolidação de instituições democráticas possíveis e desejáveis em tais países. Evidencia-se assim, a necessidade de reformas políticas, com o intuito muito além de melhorar a imagem de tais instituições, mas a capacidade real das democracias, revertendo o quadro de deterioração das instituições políticas, como partidos e parlamento. Outrossim, mesmo numa análise introdutória percebe-se que os diversos sistemas de governos combinam-se com os mais diversos regimes e em cada contexto um instrumento tal qual a MP pode assumir características distintas. Assim, cumpre esclarecer que não há uma relação direta entre governos que utilizam MPs e Democracia, ou seja, a utilização ou não de tal instrumento não é sinônimo de mais ou menos Democracia. Não governar através de MPs não é sinônimo de mais Democracia, porém, utilizar tal instrumento abusando das prerrogativas constitucionais, ferindo a Constituição, contrapõe-se a Democracia, ao menos formalmente. Porém, as repercussões daí advindas não se restringem ao aspecto formal, afinal, a edição desenfreada de MPs repercute, de fato, na realidade brasileira, conforme será demonstrado ao longo desta análise.

2.1 Questões acerca da separação dos poderes A grande polêmica que envolve as MPs dizem respeito à alteração ou não da natureza dos governos democráticos que as utilizam. Apoiar-se em critérios formais da teoria da separação dos poderes, preconizada por Montesquieu15, nos levaria à conclusão de que há a usurpação do Poder Legislativo pelo TP

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Executivo, através de atitudes autoritárias do Chefe do Executivo e, portanto, agindo antidemocraticamente. Considerando que as edições de MPs são, ou melhor, deveriam ser condicionadas aos requisitos constitucionais de relevância e urgência eis o que o constitucionalista José Afonso da Silva expõe em sua obra: Os pressupostos da relevância e da urgência já existiam, sempre apreciados subjetivamente pelo Presidente da República, nunca foram rigorosamente respeitados. Por isso, foram editadas medidas provisórias sobre assuntos irrelevantes ou sem urgência. Jamais o Congresso Nacional e o Poder Judiciário se dispuseram a apreciá-los, para julgar inconstitucionais medidas provisórias que

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15 PT

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

363

não atendessem a eles, sob o falso fundamento de que isso era assunto de estrita competência do presidente da República.16 TP

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É implícito nesta fala a suposição de que a separação dos poderes preconizadas em sede constitucional se dá na realidade política de nosso país, posto que para este autor o Poder Legislativo e o Poder Judiciário deveriam apreciar tais requisitos, desconsiderando que esta não intervenção, sob a desculpa que se trata de assunto de competência do presidente, pode esconder uma confluência de interesses, muito mais do que a aceitação da imposição das vontades do Presidente.

2.2 Aspectos da relação efetiva entre o Poder Legislativo e Executivo Os argumentos formulados por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi aprofundam as discussões acerca da relação entre o Poder Executivo e Legislativo. Tais autores ao ressaltarem que “[...] a tese do abuso da prerrogativa pelo Poder Executivo parece competir com a tese da abdicação legislativa.”17 levantam a discussão se o Executivo extrapola as suas funções, é porque TP

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o Legislativo realmente permite. Neste sentido, no governo Collor, o uso abusivo de MPs é comumente interpretado como a necessidade de governar unilateralmente, impondo sua vontade ao Congresso, já que pertencia a um partido minoritário (PRN), sem bases aliadas. Mas tal interpretação torna-se descabida ao tratar de governos tais quais o de Fernando Henrique Cardoso, de Itamar Franco e do Lula, pois apesar de contarem com amplo apoio no Congresso Nacional, utilizam de instrumento extraordinário, que é a MP, de forma ordinária. Desta feita, resta empiricamente refutada a tese da necessidade do Poder Executivo utilizar-se de tal instrumento para fazer valer sua vontade. Afinal, as amplas coalizões partidárias de base asseguram este desfecho, sobretudo se mencionarmos o Lobby que existe para aprovação de determinadas pautas. Argelina Figueiredo e Fernando Limongi (2003) aprofundam a polêmica sobre a relação entre MPs e Democracia, da seguinte maneira: [...] MPs são armas poderosas nas mãos do governo, mas não alteram a natureza dos governos democráticos (grifo nosso) O poder de decreto não torna o executivo capaz de governar contra a maioria, que pode alterar e rejeitar decretos. Mesmo quando essa possibilidade parece remota, mesmo quando diante da política de fatos consumados, maiorias podem vir a emendar e rejeitar decretos.18 TP

16

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SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 451.

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17

LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina. Medidas Provisórias. In: BENEVIDES, Maria Victoria; VANNUCHI, Paulo; KERCHE, Fábio (Orgs). Reforma Política e cidadania. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2003. P. 272. TP

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18 PT

Idem, p. 288-289.

364

Apesar, de defendemos aqui os argumentos de tais autores, quanto o aspecto das MPs não serem atos autoritário do Chefe do Executivo, e nesse sentido, não alterarem a natureza dos governos democráticos, se considerarmos o desrespeito aos requisitos constitucionais para sua edição, defendemos que há sim implicações na forma de exercício do Poder aqui adotado, qual seja, a Democracia. A noção de democracia e o ideal de liberdade advindo da separação plena dos poderes, advém do modelo norte americano, deveras distinto do que ocorre no Brasil. Afinal, lá em busca desta separação total, o presidente não propõe leis. Aqui, nosso modelo institucional, longe de propiciar a separação plena dos poderes, instiga as imbricações de suas funções, propiciando um diálogo ainda maior entre esses dois poderes, ao contrário do que muitos pensam, e sem juízos de valor a este respeito. Porém, é certo que o constituinte brasileiro acabou por propiciar que tais poderes não se distanciassem. E é com esta realidade que devemos trabalhar. Evidencia-se que o arranjo institucional brasileiro não permite a separação plena dos poderes, sendo os partidos políticos importantes atores na integração entre os poderes.19. TP

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Diante deste quadro é plausível a indagação de Figueiredo e Limongi: “ [...] em lugar de usar seus poderes legislativos contra a vontade da maioria, por que o presidente não os usaria em favor da maioria? “ (LIMONGI; FIGUEIREDO, 2003, p. 279)

3. Dinâmicas que regem as instituições políticas no Brasil Segundo Fabiano Santos e Márcio Grijó Vilarouca, a democracia brasileira, através das instituições políticas inscritas na Constituição de 1988, tem seu ritmo definido por três dinâmicas distintas, quais sejam: 1. O presidencialismo de coalizão 2. O federalismo predatório 3. A judicialização da política20 TP

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O federalismo predatório diz respeito ao fato de no Brasil não existirem mecanismos de cooperação entre os entes estatais, sendo cada um por si, e muitas vezes sobrecarregando a União, com pesados encargos de dívidas. Para os citados autores “[...] na ausência de mecanismos que imponham a cooperação, cada governador sabe que o melhor é não cooperar”.21 TP

19

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Idem, p. 277.

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20

SANTOS, Fabiano; VILAROUCA, Márcio Grijó. Panorama de las instituciones democráticas en Brasil bajo la égida de La Constitución de 1988. In: HOFMEISTER, Wilhelm (Org.). Reformas políticas en América Latina. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2004, p. 105. TP

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21 PT

Idem, ibdem.

365

O isolamento dos estados brasileiros impede que o federalismo brasileiro assuma seu papel de controle do poder central, sendo pelo contrário, dependentes e subordinados a este poder concentrado no chefe do Executivo. O presidencialismo de coalização associa-se ao fato do poder Executivo deter o poder de agenda, assim os partidos são incitados a formar bases de apoio ao governo, introjetando seus projetos em tal agenda política. Ademais, através de instrumentos tais quais a MP é possível resguardar os parlamentares da tomada de decisões anti-populares, passando tal custo ao governo. Restando demonstrado que a interferência do Legislativo indica a contestação da hipótese de renúncia do papel deste poder. Outrossim, muitos estudiosos, dentre eles Argelina Figueiredo e Fernando Limongi ao tratar da combinação entre presidencialismo e multipartidarismo enfocam a questão da efetividade do governo. Afinal, faz-se necessário alianças entre partidos para efetivar suas propostas, já que na dinâmica da política brasileira não se consegue propor nada individualmente. Indaga-se se o grande número de partidos fragmenta as posições quanto às propostas do governo central, impondo dificuldades para o desempenho da democracia à brasileira. No que pertine à judicialização da política, há implicações quanto à concentração do poder no Executivo, pois conforme Montesquieu , quem detém poder ilimitado, tende a abusar deste poder, ou seja, o poder Judiciário assume a função de frear tamanho poder concedido ao chefe do Executivo. Assim, sobretudo através do controle de constitucionalidade o Supremo Tribunal Federal é acionado a impor limites aos abusos cometidos, conforme demonstra a edição desenfreada de MPs não respeitando os requisitos constitucionais mínimos, quais sejam, urgência e relevância do interesse público. No tocante à relação entre poder de agenda e MPs, assim asseveram Fabiano Santos e Márcio Vilarouca: Os atuais poderes de agenda do presidente derivam do monopólio do Executivo na emissão de projetos [...], em recorrer a requerimentos de urgência e principalmente na possibilidade de emitir medidas provisórias com vigência imediata a partir de sua publicação.22 TP

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O controle exercido pelo Supremo Tribunal Federal é visto por alguns estudiosos, tais quais Santos e Vilarouca, como uma espécie de MP às avessas, afinal, na maioria das vezes tal controle se exerce através da concessão de uma liminar que é indefinidamente mantida, raramente se julga o mérito definitivo nas ADIns (Ação direta de inconstitucionalidade). Ademais, o Supremo passa a ser co-participe na atividade legislativa do país, podendo gerar um desequilíbrio

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22 PT

Idem, p. 124.

366

entre o papel dos poderes, já que concentra tamanho poder. “O Poder Judiciário acaba por intervir diretamente no processo de produção legal, sem possuir mandato para isso”.23 TP

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Já as relações estabelecidas entre o Executivo e o Legislativo estão organizadas de maneira vertical pelo Presidente da República; tal poder é intensificado pelo federalismo mitigado brasileiro, dificultando o controle do poder central. Por fim, entende-se que a consolidação das instituições democráticas brasileiras depende de reformas políticas, sobretudo, visando diminuir o peso do Executivo na formulação da agenda decisória do legislativo, proporcionando a cada poder exercer suas funções, em consonância com a Constituição Federal. Neste sentido, as MPs, enquanto instrumento excepcional, não devem ser utilizadas com o caráter de imposição definitiva de medidas que deveriam ser provisórias.

4. Repercussões da utilização abusiva de Medidas Provisórias Devido à crescente interação entre os diversos países mudanças antes restritas a âmbitos nacionais repercutem mundialmente. Tal entrelaçamento, sentido, sobretudo, nas relações econômicas, com crises que atingem a todos, seja em maior ou menor grau, se dá também em outras esferas como a política e a cultural. Em meio a mudanças constantes surge a necessidade do Estado ter um instrumento hábil para dar respostas rápidas e eficientes, papel conferido as Medidas Provisórias. É tamanha a força de tal instrumento de alterar a conjuntura nacional que somente se justifica sua utilização em casos excepcionais. A edição abusiva de MPs, ferindo os preceitos constitucionais para sua edição, não nos parece observar as regras que caracterizam a Democracia. Porém, este campo de análise não nos permite aprofundar este debate, pois ficaríamos presos num campo formal. Sobretudo se indagarmos qual a forma de considerar preenchidos os requisitos constitucionais para ser legítima esta edição. Outrossim, amparados na posição adotada por Limongi e Figueiredo de que há confluência de interesses entre os três Poderes, quem estaria apto a limitar os interesse do Poder Executivo? Porém, entender esta lógica não significa aceitá-la. Afinal, se o grande diferencial das MPs quando contrapostas às Leis ordinárias é o fato de terem efeitos imediatos, é inegável como esse instrumento beneficia tais interesses escusos.

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23 PT

Idem, p. 131.

367

5. O papel do controle de constitucionalidade abstrato exercido pelo Supremo Tribunal Federal no tocante ao respeito aos requisitos constitucionais para edição de Medidas Provisórias Ante a instabilidade faz-se necessário exaltar a estabilidade, afastando um regime de exceção em aparente curso no Brasil. Se a criação de instrumento tal qual a MP justifica-se pela instabilidade, sobretudo econômica, acentuada nos últimos tempos, busca-se com ela afastar tal instabilidade e não exacerbá-la, o que ocorreria se o poder conferido a tal instrumento fosse irrestrito. Nas palavras de Leon Fredja Szklarowsky, a MP: [..] é um mal necessário, que, todavia, utilizado, com parcimonônia e cautela, revela-se, nestes conturbados tempos em que vivemos , um instrumento ágil, sob rígido controle parlamentar e judicial, consubstanciando-se na verdadeira simbiose entre o Executivo e o Legislativo.[..] a raiz do mal não está nas leis em si, mas na sua efetiva execução e na consciência de sua obediência.24 TP

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Outrossim, a Lei, tomada em seu sentido formal, sentido que, coadunando com a posição adotada por José Afonso da Silva25, só existe nos regimes constitucionais de separação de TP

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Poderes, advindo tal conceito de ser a função legislativa atribuída a órgão distinto dos incumbidos das funções executiva e jurisdicional, bem como, enquanto elemento essencial do Estado Democrático de Direito, não pode ser substituída por outra espécie normativa, sobretudo por MP, que tem mera força de lei. A esse respeito Dantas assevera que a MP: [...] possui em si uma eficácia precária dependente[...]de sua conversão pelo Congresso Nacional, para ser portadora de uma eficácia plena, da qual, evidentemente, decorrerão o sistema de respeito aos direitos fundamentais e, sobretudo, a segurança jurídica26 TP

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Somente através da segurança jurídica os indivíduos poderão efetivar seus interesses, pois suas escolhas serão baseadas em uma situação concreta, estável, e não baseada em incertezas. Com a substituição da Lei (entendida formalmente) por MP, os indivíduos afetados por seus efeitos, que são imediatos, restam impossibilitados de as conhecer, tamanha freqüência que são editadas. Nesse sentido, é salutar o controle de constitucionalidade no tocante às MPs, 24 PT

SZKLAROWSKY, Leon Fredja. Medidas Provisórias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 11.

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SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 444.

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26

DANTAS, Ivo. Aspectos jurídicos das medidas provisórias. 3ª edição, revista e aumentada, inclusive com jurisprudência e o projeto de emenda constitucional – 23.04.97 – de autoria do Senador José Fogaça, Brasília : Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1997, p. 129. TP

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368

mormente em face da necessidade de rigidez Constitucional. É necessário o equilíbrio entre a flexibilidade de tais medidas ante a necessária rigidez constitucional, afastando as incertezas proporcionadas por um Estado sem Leis (strictu senso) ou pior, com ‘leis’(MPs) quase diárias. No caso das MPs é imperativo que haja o controle quanto a observância dos requisitos de relevância e urgência para sua edição, mormente diante do uso abusivo de tais medidas, possibilitando atingir sua efetiva execução, coadunando com a concepção originária do Constituinte brasileiro. Enfim, a problemática que perpassa o presente estudo não é tanto considerar a MP como instrumento a corroborar com o enfraquecimento das instituições democráticas em si mesmo, mas como a utilização abusiva da mesma desconfigura o preenchimento dos reais motivos pra os quais foi criada. Devido às relações peculiares travadas entre os poderes Legislativo e Executivo em nosso arranjo institucional, Dantas conclui mesmo se tratar de um ‘Modelo brasileiro’, ou seja, algo atípico e sem precedentes em outros países, frisando porém que tal organização das relações de poder não se deu “por conta de uma elaboração teórica e pensada, mas como conseqüência de acordos e concessões que se fizeram no desenrolar dos trabalhos constituintes e nos quais, muitas vezes, interesse pessoais e demagógicos impuseram-se a uma reflexão científica.”27 TP

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Devemos, pois, trabalhar com a realidade brasileira, não para aceitá-la com todas suas deficiências, mas; para propor bases sólidas de mudança é preciso partir da origem dos problemas.

5.1 Processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal O posicionamento de Dirley da Cunha Jr quanto o controle de constitucionalidade se apresentar “como um relevante meio de conter os excessos, abusos e desvios de poder, garantindo os direitos fundamentais”28 coaduna com a necessidade de limitar a edição de MPs à TP

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observância dos requisitos constitucionais de relevância e urgência. Cumpre esclarecer que através da Constituição brasileira de 1988 ampliou-se o modelo concentrado da constitucionalidade, tendo a Lei 9.868 de 20 de novembro de 1999 disciplinado o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

27

DANTAS, Ivo. Aspectos jurídicos das medidas provisórias. 3ª edição, revista e aumentada, inclusive com jurisprudência e o projeto de emenda constitucional – 23.04.97 – de autoria do Senador José Fogaça, Brasília : Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1997, p. 44-45. TP

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CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Editora Juspodvm, 2008, p. 254.

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Tal aperfeiçoamento do controle concentrado emerge com a ampliação do rol de legitimados para provocar a jurisdição concentrada do Supremo Tribunal Federal. 5.2 A (in)eficiência do controle de constitucionalidade abstrato no tocante à necessária celeridade na apreciação de Medidas Provisórias A análise jurisprudencial a ser tratada no item 6 deste artigo faz crê que não há celeridade quanto ao controle judicial das MPs. Dirley ressalta que “questão interessante consiste em saber como conciliar a provisoriedade dessas medidas com o rito demorado da ação de inconstitucionalidade.”.29 TP

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Dito isto, o controle de constitucionalidade perde sua eficácia quanto ao preenchimento dos requisitos constitucionais para edição de MP, ou seja, a inércia do Judiciário acaba por transformar em lei medida que fere à observância de tais requisitos, limitando o seu controle aos critérios materiais para sua expedição, desrespeitando assim os critérios formais para edição de uma MP, ao considerar a lei dela proveniente como qualquer outra lei, que passa por um trâmite muito mais rigoroso para sua edição.

6. Breve análise das Medidas Provisórias editadas em 2007 A análise superficial dos dados contidos no site da Câmara de Deputados e do Planalto, no que concerne às MPs editadas no ano de 2007, parecem corroborar com a ideia de que o Congresso Nacional assume um posicionamento de aceitação ante a edição abusiva de tais Medidas pelo Executivo. Tal assertiva é respaldada pelo fato do Congresso deter o poder de impedir até mesmo que a tramitação de uma MP seja iniciada, uma vez que cabe ao Legislativo verificar se atende aos requisitos constitucionais de relevância e urgência para admiti-la. Ou seja, o Congresso Nacional poderia reduzir bastante o número de MPs, se assim desejasse. Porém, tal constatação, à primeira vista simples, é bastante complexa, haja visto que uma série de fatores dispostos ao longo desta pesquisa apontam para o fato de que o Legislativo não assume um papel de passividade, porém, através de mecanismos de barganha, estabelece relações de trocas com o Executivo. Essa mudança de perspectiva quanto aos papéis de tais poderes no arranjo institucional brasileiro permite uma compreensão mais profunda da dinâmica desta relação. Neste sentido, faz-se necessário abandonar a concepção de dois poderes antagônicos, para pensar que tais poderes podem ter interesses comuns, e o fato da aceitação pelo Legislativo da agenda política proposta pelo Executivo, revela a força deste argumento. Afinal, como dito

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CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Editora Juspodvm, 2008, p. 348.

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alhures, o poder de decreto do Executivo não é absoluto, e, portanto, se o Legislativo, em geral, não limita tal poder, questiona-se se realmente deseja limitar. Vejamos os dados: Das 70 Medidas apresentadas em 2007, todas, sem qualquer exceção, foram admitidas pela Câmara de Deputados. Ou seja, segundo a casa dos representantes do “povo” tais medidas atendem aos requisitos supramencionados. Deste total 60 foram convertidas em lei, representando cerca de 85% de todas as medidas. Somente 3 foram revogadas. Nesse sentido, merece um olhar mais atento a revogação da Medida Provisória 379/2007, que trata de alterações na lei 10.826/2003 que dispõe sobre registro, posse, comercialização de armas de fogo e munição e sobre o Sistema Nacional de Armas – SINARM e define crimes. A peculiaridade de tal revogação está no fato desta ter se dado pela aprovação de outra Medida Provisória, qual seja 390/ 2007. Na exposição de motivos para edição da medida revogadora, o então Ministro de Estado da Justiça, e o então Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, enfatizam que a medida 379/2007 está trancando a pauta de votações e que necessita ser votada a proposta de Emenda à Constituição nº 50 de 2007, que prorroga a vigência da desvinculação de arrecadação da União e da contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira, sendo imperioso revogar tal medida para desobstruir a pauta. Para tanto, fundamentam com jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que, sempre se admitiu que uma MP fosse revogada por outra. Enfatizam, ainda, que tal proposta de emenda à Constituição trata de matéria da mais alta relevância e urgência, posto que, se a prorrogação de ambos os instrumentos de política fiscal não forem apreciados tempestivamente pelo Poder Legislativo, haverá prejuízos às contas públicas e à governança do Governo Federal. Com a leitura da exposição dos motivos para revogação de tal medida, evidencia-se que não foram questionados os requisitos de urgência e relevância ou mesmo, qualquer irregularidade à sua edição, mas tão somente fora revogada porque o interesse na aprovação da proposta de Emenda à Constituição era maior, não havendo qualquer indagação sobre a necessidade da edição de tal medida. Indaga-se- por que nunca é questionado quão urgente e relevante é uma medida, no caso, quão imperioso ao interesse nacional é alterar dispositivos de tal lei, que versa sobre armas de fogo? O que impressiona é como o importante é aprovar as matérias de interesse do governo, mesmo que precisem abusar de suas prerrogativas. Assim, revogam MP quando sobrepõe-se matéria de maior importância em sua agenda política, como é o caso da Emenda à Constituição nº 50.

371

Assim, no tocante à MP a versar sobre armas de fogo, revogam e reeditam de acordo com suas prioridades. Quanto a MP 394/07, segundo o site da Câmara dos Deputados consta: Suspensa a eficácia e a tramitação desta MPV, em face de liminar deferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3964, até o julgamento do seu mérito. (BRASIL, Câmara dos Deputados) Apesar da parca interferência do poder Judiciário no controle dos critérios constitucionais de tais medidas, afinal, dentre 70 medidas é a única que houve o controle de constitucionalidade abstrato pelo Supremo Tribunal Federal, sendo nítido o desrespeito à Constituição na tentativa de reedição na mesma sessão legislativa de MP: é de extrema necessidade acionar o Judiciário, cabendo analisar sua atuação e eficiência. Passemos a análise de referida Ação Direta de Inconstitucionalidade.

7. Análise jurisprudencial Segundo a manifestação do então Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, na Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3964: Obcecados com o desvio de Poder que praticam no Legislativo, e tentam em vão colar no Executivo, sofrem já os requerentes de um desvio de enfoque, que não lhes permite discernir que a Medida Provisória revogada dispunha de maneira ampla sobre a matéria a ela pertinente, enquanto a nova, que não repete a outra, limita-se a um único artigo, dispondo sobre prazo para registro de armas de fogo, medida de ordem pública, relevante, e urgente, não atendível por projeto de lei, já que os requerentes não votam sequer Medida Provisória, preferindo à urgência o trancamento da pauta. 30 TP

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A tentativa de o Presidente defender a edição de MP com teor da revogada apoiando-se na morosidade do Legislativo, sugere um antagonismo de interesses entre tais poderes. Porém, como visto alhures, o Legislativo detém a prerrogativa de impedir até mesmo que a tramitação de uma MP seja iniciada, vez que é preciso parecer favorável proferido em Plenário pelo Relator, pela Comissão Mista, concluindo pelo preenchimento dos requisitos constitucionais para que tramite a Medida e possa ser convertida em Lei. Ao se aproximar da dinâmica das relações entre Legislativo e Executivo, através do uso de MPs, é possível propor alternativas para reformas políticas que mais do que o respeito aos procedimentos formais previstos na Constituição, limite o poder que detém nossos dirigentes de

30

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3964/DF. Requerente: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB e outro. Requerido: Presidente da República. Relator Ministro Carlos Brito. Brasília, 12 de dezembro de 2007. Disponível em: Acesso em: 18 de fevereiro de 2009. TP

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372

tratar o público como se privado fosse, privilegiando em sua agenda política os interesses daqueles que financiam suas campanhas. Os interesses do Legislativo e Executivo parecem convergir para ampliar o poder que lhes é conferido. Porém, não se quer com tal assertiva defender uma separação plena dos poderes, deveras impossível em nosso arranjo institucional, sob pena de alterar a própria Constituição, que abre espaço para o diálogo entre esses dois poderes, mas que instrumentos tais quais as MPs sejam utilizados minimamente em conformidade com o que o constituinte propôs. Afinal, seu desvirtuamento exacerba ainda mais os benefícios aos interesses escusos destes poderes. Nesse sentido, o Judiciário não deve ser visto como um Poder neutro que irá acabar com o desvirtuamento dos motivos que justificam a utilização de MP, porém, como um mecanismo disponível na tentativa de limitar o abuso como vem sendo utilizado tal instrumento. Cumpre ainda salientar que não nos propomos no presente trabalho a exarcerbar pretensas qualidades do Poder Judiciário na consolidação de uma Democracia, entendida sobretudo, quanto a importância do processo de criação das leis, “observando a necessária participação discursiva dos parlamentares que, apoiados na soberania da vontade popular, atuam e concretizam [...] a legitimidade democrática do Processo Legislativo [...] realizada em contraditório, ampla defesa e isonomia”31, possibilitando o “direito à convivência político-ideológica TP

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dos contrários, que é um dos mais visíveis conteúdos da Democracia”.32 TP

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Não vislumbramos a atuação do Judiciário como único meio de limitar os abusos cometidos pelos demais Poderes, sobretudo tendo em vista os abusos cometidos pelo próprio Judiciário, vez que desarmonizaria ainda mais o desejado equilíbrio entre os Poderes ao dotar o Judiciário como um poder central, que outrora era do Executivo. Ou seja, apenas desloca-se a concentração de Poder. Porém, tendo em vista que devemos trabalhar com a realidade, já que o Judiciário dispõe de mecanismos, como o controle de constitucionalidade que possibilita o respeito à Constituição, impõem-se a utilização destes tais mecanismos de controle. Segundo Carlos Brito: É a medida provisória, portanto uma regração que o Presidente fica autorizado a baixar para o enfrentamento de certos tipos anomalia fática. Um tipo de anormalidade – este o ponto central da questão – geradora de instabilidade ou conflito social que não encontra imediato equacionamento nem na Constituição, diretamente, nem na ordem legal já estabelecida33. TP

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31

DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no Processo Legislativo. Teoria da legitimidade democrática. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003, p. 23.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3964/DF. Requerente: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB e outro. Requerido: Presidente da República. Relator Ministro Carlos Brito. Brasília, 12 de dezembro de 2007. Disponível em: Acesso em: 18 de fevereiro de 2009. TP

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3964/DF. Requerente: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB e outro. Requerido: Presidente da República. Relator Ministro Carlos Brito. Brasília, 12 de dezembro de 2007. Disponível em: Acesso em: 18 de fevereiro de TP

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Quanto à medida em apreço assevera que “[...] o que a Constituição proíbe obter diretamente, não se pode obter por meios transversos, que configuraria hipótese clássica de fraude à Constituição”34. TP

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Assim, se é proibida reedição de MP na mesma sessão legislativa, não se pode alterar minimamente a redação da medida para entender tratar de nova medida, completamente diversa daquela. Ademais “reeditá-la significa artificializar os requisitos constitucionais de urgência e relevância, já categoricamente desmentidos pelo ato de revogação em si”.35 Ou seja, não há que TP

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se falar em urgência de tal medida se o próprio executivo a revogou, se fosse tão urgente assim não justificaria revogá-la. Com a simples leitura dos votos em tal medida cautelar em ação direta de constitucionalidade percebe-se que mais do que a decisão do caso concreto em si, sobre o controle do uso de armas, os ministros votaram sobre a funcionalidade da democracia parlamentar. Em outras palavras: os que votaram contrários a medida cautelar, a suspender os feitos de referida MP, alegaram serem discricionários os requisitos de urgência e relevância para sua edição, não devendo o Judiciário adentrar-se em tal questão. Assim, uma vez que a maioria acatou a cautelar, e suspendeu a eficácia, entendeu pela inobservância de tais requisitos, sobretudo quanto à urgência, posto que o próprio Executivo revogou MP versando sobre tal temática (armas de fogo) e assim entenderam que não são discricionários tais requisitos, dotandoos de certa objetividade. Ainda segundo Celso Melo: [...] se ´relevância e urgência’ fossem noções só aferíveis concretamente pelo Presidente de república, em juízo discricionário incontrastável, o delineamento e a extensão da competência para produzir tais medidas não decorreriam da Constituição, mas da vontade do Presidente, pois teriam o âmbito que o chefe do Executivo lhes quisesse dar. Assim, ao invés de estar limitado por um círculo de poderes estabelecidos pelo Direito, ele é quem decidiria sua própria esfera competencial na matéria, idéia antinômica a tudo que resulta do Estado de Direito.36 TP

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Idem.

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Idem.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3964/DF. Requerente: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB e outro. Requerido: Presidente da República. Relator Ministro Carlos Brito. Brasília, 12 de dezembro de 2007. Disponível em: Acesso em: 18 de fevereiro de 2009. TP

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8. Conclusões Primeiramente desconstruímos a relação causal deveras estabelecida entre Medidas Provisória e Democracia. Afinal, percebeu-se que não há uma relação direta entre Medidas Provisórias e Democracia, ou seja, o aumento na edição de MPs não significa, necessariamente, numa afronta a forma de exercício do poder adotado pelo Brasil, frise-se, desde que respeitados os requisitos constitucionais para sua edição. Afinal, numa situação de crise é justificado recorrer mais vezes a tal instrumento. Percebeu-se também que não há uma usurpação do Poder Legislativo pelo Executivo, haja vista tal concepção levar em conta uma separação formal dos poderes, que não existe na prática. Nesse sentido, a própria Constituição Federal propicia um diálogo constante entre esses dois poderes, com imbricações nas suas funções. Portanto, a problemática que perpassa o presente trabalho não é tanto considerar a Medida Provisória como instrumento a corroborar com o enfraquecimento das instituições democráticas em si mesmo, mas, como é latente a desconfiguração dos motivos que justificam sua utilização, fazendo-se necessários meios que assegurem a observância dos requisitos constitucionais para sua edição. Afinal, através da edição de MPs sem a observância dos requisitos constitucionais que a justifiquem são tomadas decisões obstando a participação popular em circunstâncias em que não há excepcionalidade que configure necessária a utilização de tal instrumento. Diante desse quadro, com a edição desenfreada de Medidas Provisórias, não restritas aos casos de urgência e relevância previstos na Constituição Federal, há uma gritante afronta a Supremacia Constitucional, ensejando o controle de constitucionalidade abstrato pelo Supremo Tribunal Federal. Durante muito tempo tal órgão esquivou-se de tal tarefa, justificando sua abstenção na discricionariedade do Chefe do Executivo ao entender preenchidos tais requisitos. Ou seja, sempre que o Presidente da República edita uma MP pressupõe-se que entende preenchidos tais requisitos, assim estes nunca estariam ausentes. Porém, diante do uso indiscriminado deste instrumento, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal começou a mudar, ao conceder liminares, suspendendo a eficácia de MPs através do julgamento de ADI. No entanto, muito ainda há que mudar, afinal, ao invés de cautelares que suspendem a eficácia de MPs, indefinidamente, desconsiderando a celeridade de tal instrumento, necessita-se de um julgamento definitivo, e célere. A eficiência do Supremo é posta a prova ao não julgar uma ADI numa atitude ainda de abstenção como a de outrora.

375

Contudo, não adotamos a posição de que o Judiciário é um Poder neutro, sem vinculações políticas de qualquer tipo, e portanto, apto a fiscalizar as atribuições dos demais poderes, reforçando o panorama de judicialização da política. Porém, sendo o órgão incubido como guardião da Constituição Federal, e sendo esta fonte dos direitos e garantias da população, é preciso usar todos os mecanismos postos a disposição para protegê-la, dentre eles o controle de constitucionalidade abstrato. O poder de tomar decisões através de MPs não pode ser irrestrito, seus limites são a observância dos requisitos constitucionais para sua edição, porém, só existe a supremacia constitucional frente a mecanismos capazes de assegurar o cumprimento integral de seus preceitos. No caso em perspectiva, o controle de constitucionalidade abstrato é um meio que se mostra eficaz, apesar dos avanços que ainda se espera quanto aos posicionamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal. Coadunamos com a posição de Mangabeira Unger37 de que a saída para o Brasil é um TP

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"experimentalismo democrático", dando flexibilidade ao federalismo e força à maioria desorganizada,

que

é

submetida

à

vontade

de

uma

minoria

organizada.

Em suma, concluímos que as Medidas Provisórias não foram concebidas para suprir o papel de instrumento de governabilidade que é o da lei, porém, tal instrumento em si mesmo não parece-nos afrontar a Democracia, mas sim o uso que vem sendo feito dele. Nesse sentido, o controle de constitucionalidade abstrato mostrou-se apto a limitar a utilização abusiva que vem ocorrendo, contudo, ainda há muito o que se aperfeiçoar quanto a efetividade de tal mecanismo de controle ante uma inércia de tal Poder que nos afigura proposital ao servir a interesses comuns dos três poderes.

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UT

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12

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dezembro

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2007.

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39,

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378

A democratização do processo e a manifestação do amicus curiae Marta Valéria Cordeiro Bastos Patriota1 TP

PT

Resumo

Abstract

A presente obra busca traçar os efeitos da democratização e do amplo acesso ao Judiciário na sobrecarga de processos nas Cortes Superiores e no ativismo judicial, bem assim a necessidade de se compatibilizar o binômio qualidade-quantidade das tutelas prestadas. Nessa esteira, considerando que a qualidade da tutela encontra estreita relação com a abertura do debate da matéria discutida no processo aos sujeitos que, em alguma medida, possam sofrer algum reflexo da decisão, frisar-se-á a imprescindibilidade da manifestação do amicus curiae, enquanto instrumento à ampliação da matéria em discussão e concretização da justiça, bem como da verdade processual, ao consolidar os interesses dispersos na sociedade, mas pertinentes à solução do conflito. Para tanto, destacar-se-á quais soluções têm sido implantadas no ordenamento jurídico nacional, notadamente nas causas repetitivas e demandas de relevo social, a fim de garantir a segurança e estabilidade dos julgados, bem como a celeridade na prestação da tutela jurisdicional. Ao final, pontuar-se-á que a manifestação do amici não deve se limitar a um juízo de conveniência ou oportunidade do magistrado, revelando-se, em essência, um ato impositivo.

This article attempts to delineate the effects of the democratization and the large access to the Judiciary at the overweight of procedure at the Supreme Courts and at the judicial activism, as well as the necessity of compatibilizing the binomial quality-quantity of the judicial protection provided. In this way, considering that the quality of the request is closely related with the open debate of the subject discussed in the law suit to the subjetcs that, in certain way, may suffer any reflex of the decision, it will be pointed the indispensability of the amicus brief manifestation, as instrument to the enlargement of the subject in discussion e concretization of the justice, as well as the procedural truth, that consolidate the interests scattered in the society, but relevant to the solution of the case. For that, it will be pointed wich solutions have been installed in the national laws, especially at the repetitive cases and national rebound law suits, to ensure safety and stability of the sentences, as well as the celerity of the judgments. In the end, it will be showed that the amici brief manifestation cannot be limited to a convenience or opportunity by the judge’s understanding, it reveals, in essence, a compulsory act.

Palavras-Chave: Democratização; Sobrecarga Processual; Ativismo Judicial; Amicus Curiae; Legitimidade.

1 Bacharel em Direito-UFPE, email: [email protected].

379

1. Introdução Na tentativa de conter a sobrecarga de trabalho das Cortes Superiores de Justiça, que contribui para a ineficácia, para demora da prestação judicial, bem como para o consequente descrédito social frente ao Poder Judiciário, são instituídas nos ordenamentos jurídicos diversas soluções intituladas Reformas de Descongestionamento de Tribunais. Independente das causas determinantes da insistência recursal2, os efeitos dessa cultura TP

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brasileira de litígio têm alcançado proporções extremas de abarrotamento de demandas nos tribunais. No Brasil, de longe o país com o maior registro de acúmulo de recursos semelhantes em trâmite nos tribunais superiores3, a instituição de medidas de controle recursal mostram-se TP

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sobremaneira relevantes. Se, de um lado, o aumento no número de processos evidencia a democratização e o maior acesso da população ao Judiciário, como garantia da própria cidadania, de outro, tal liberalidade é o que tem contribuído para a ineficiência na prestação da tutela. Em busca da quantidade, expoente das garantias constitucionais do amplo acesso à justiça e da inafastabilidade da jurisdição, tolhe-se a qualidade da tutela prestada, ante a suposta incompatibilidade entre as parcelas do binômio qualidade-quantidade. Em resposta ao volume impraticável de demanda, são prolatadas decisões sem a presteza necessária à ideal e justa resolução dos litígios, que ocultam ou ignoram a realidade da baixa qualidade das tutelas4. TP

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De modo a evitar a reincidência de situações dessa magnitude, na esteira do que existe nos ordenamentos jurídicos de tradição da common law, bem assim no direito português e

2

Consoante destacou J. E. Carreira Alvim, existe no Brasil uma cultura recursal inerente à tradição jurídica, fundamentada na existência da garantia ao duplo grau de jurisdição, a impedir qualquer tentativa de fazer uma decisão definitiva. De um modo ou outro, o denominado recorrista encontra fundamento para a interposição do seu recurso, ainda quando a lei não preveja, seja na defesa de teses que não se mantêm pelos seus próprios fundamentos, seja para retardar a marcha processual. In ALVIM, J. E. Carreira. Recursos especiais repetitivos: mais uma tentativa de desobstruir os Tribunais. Revista de Processo, São Paulo, v.33, n.162, p.168-185, ago. 2008. TP

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TP

3

Em obra sobre o tema, destaca Sidnei Beneti que, em comparação com outros tribunais, para atender ao do volume da demanda, um magistrado de um Tribunal Superior brasileiro necessita, sozinho, julgar à proporção da totalidade dos magistrados estrangeiros considerados durante um ano. Concluiu o autor que no Brasil, em 2007, o STF, com 11 Ministros, recebeu 119.324 processos novos e proferiu 159.522 julgamentos. Por seu Turno, o STJ, com 33 Ministros, recebeu 301.067 processos e proferiu 330.257 julgamentos. Na Alemanha, a Corte Constitucional, com 18 magistrados, julga cerca de 3.000 casos por ano, o que é considerado excessivo. No Canadá, a Corte Suprema, com 9 magistrados, julgou 96 casos em 2007; na França, o Tribunal Constitucional, em 2007 julgou 8 casos e nunca em sua história chegou a 20 casos num ano, e a Corte de Cassação em 2007 recebeu 9.047 novos processos e julgou 7.913; nos Estados Unidos, a Corte Suprema, com 9 magistrados, no ano de maior sobrecarga, julgou 151 processos. BENETI, Sidnei. Reformas de Descongestionamento de Tribunais. In BONAVIDES, Paulo; MORAES, Germana; ROSAS, Roberto (Org.). Estudos de direito constitucional em homenagem a Cesar Asfor Rocha : (teoria da constituição, direitos fundamentais e . jurisdição). Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.510 4

Recentemente, ao argumento da busca por assegurar o direito constitucional à “razoável duração do processo judicial”, o fortalecimento da democracia, além de eliminar os estoques de processos responsáveis pelas altas taxas de congestionamento, os tribunais e associações sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça, criaram a campanha “Meta 2: bater recordes é garantir direitos”. Instantaneamente, os milhares de processos que abarrotam as salas das varas, turmas e seções deveriam ser extintos, não importa em quais condições. À evidência, a qualidade cedeu à urgência do tempo, visto que uma justiça à destempo não é justiça.

380

alemão, tem-se implantado no direito brasileiro o que se pode chamar de uma embrionária cultura de litigância em massa. Nesse cenário, destaca-se a figura do amicus curiae, cujo interesse ultrapassa o das partes litigantes e de eventuais terceiros intervenientes, revelando-se indispensável à representatividade social, visto que proporciona ao magistrado o acesso mais amplo à matéria em discussão, sob o manto da cooperação necessária entre os sujeitos processuais. É o que se ora defende no presente trabalho.

2. O Processo Civil Constitucionalizado 2.1 O direito processual e o princípio fundamental do contraditório O atual modelo de processo, traçado pela Constituição Federal de 1988, revela-se essencialmente garantístico, na medida em que a tutela processual deve ser prestada, necessariamente, na mais estreita fidelidade aos princípios assegurados constitucionalmente, incluindo-se, para tanto, medidas de tutela específicas à proteção das liberdades e garantias aí protegidas. A respeito do tema, Cândido Rangel Dinamarco, define o “direito processual constitucional” como: Um método consistente em examinar o sistema processual e os institutos do processo à luz da Constituição e das relações mantidas com ela. O método constitucionalista inclui em primeiro lugar o estudo das recíprocas influências existentes entre Constituição e processo – relações que se expressam na tutela constitucional do processo e, inversamente, na missão deste como fator de efetividade dos preceitos e garantias constitucionais de toda ordem5. TP

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Nesse sentido, prescreve Frederico Marques, a partir dos ensinamentos de Couture e Calamandrei, que o processo, enquanto forma de composição de litígios, tem por causa finalis a resolução de conflitos de interesses, de modo a dar a cada um o que é seu e concretizar a justiça e a liberdade. O scoppo del processo constitui, assim, a asseguração do respeito à dignidade da pessoa humana e a liberdade do cidadão6, expressas nas garantias constitucionais. TP

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A aplicação das regras de direito processual não pode ocorrer sem que sejam observados os preceitos fundamentais da Constituição, sob pena de ofensa à eficácia dinâmica das normas. Na ciência jurídica, verifica-se um escalonamento entre as normas, em que uma serve de fundamento de validade à outra, verticalmente inferior. Nesse sentido, comenta José Afonso da Silva, a partir das lições de Hans Kelsen:

5

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. 1. São Paulo: Malheiros, 2001, p.188/189.

6

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. v. 1. Campinas: Millenium, 2000, p.9.

381

(…) Constituição é, então, considerada norma pura, puro dever-ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política ou filosófica. A concepção de Kelsen toma a palavra Constituição em dois sentidos: no lógico-jurídico e no jurídico-positivo. De acordo com o primeiro, Constituição significa norma fundamental hipotética, cuja função é servir de fundamento lógico transcendental da validade da Constituição jurídico-positiva, que equivale à norma positiva suprema, conjunto de normas que regula a criação de outras normas, lei nacional no seu mais alto grau7. TP

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Conforme será melhor discutido adiante, no atual contexto social, não encontra respaldo a tese de que a relação processual se limita à clássica estruturação triangular (autor – Estado-juiz – réu), podendo terceiros, inicialmente desinteressados, demonstrar interesse em se manifestar na causa, caso a decisão nela proferida, de algum modo, venha a afetá-los em seu direito. Em outra mão, a fim de dar concretude à duração razoável do processo8 e à segurança TP

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jurídica, tem-se observado o surgimento de institutos como a repercussão geral, a súmula vinculante, o procedimento dos recursos repetitivos, o que, na verdade, é uma tendência legislativa a instituição de procedimentos que alcancem várias demandas simultaneamente. Define-se, desta forma, o direito controvertido de tantos quanto se encontram na mesma situação jurídica, contribuindo a obstar o grande volume de demandas frequente nos tribunais superiores. Nessa relação que se estabelece entre o direito processual e o direito constitucional, também deve ser observada a efetivação dos direitos fundamentais integrantes do núcleo duro da Carta Magna, entre os quais se destaca, por sua importância ao presente trabalho, o princípio do contraditório.

2.2 A virada hermenêutica constitucional e o contraditório como cooperação A partir do reconhecimento da força normativa da Constituição, a interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se a fim de ajustar-se aos ideais e princípios constitucionais. Mais do que meros

referenciais

lógicos

ou

metodológicos,

os

princípios

constitucionais

revelam-se

pressupostos finalísticos, vetores de interpretação e aplicação das normas constitucionais. Nessa esteira, a identificação dos legitimados a realizar tal interpretação assume maior destaque na Teoria Constitucional, notadamente a partir dos estudos realizados por Peter Häberle, para quem “limitar a hermenêutica constitucional aos intérpretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um

7

Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.41.

8

Aqui entendido como o tempo máximo razoável e eficazmente necessário para a conclusão de um processo, sem desconsiderar suas vicissitudes e peculiaridades.

382

autoengodo” 9. Adiante, arremata o referido autor, ao refletir sobre a Teoria da Democracia como TP

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Legitimação que: ‘Povo’ não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz presente de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão.

Com

o

constitucionalismo,

mais

especificamente,

na

sua

recente

fase

neoconstitucionalismo, não mais subsiste espaço para o hermetismo característico do direito positivo clássico, estritamente legalista, autóctone e unidisciplinar. Instaura-se a chamada “sociedade aberta de intérpretes”, essencialmente multidisciplinar, que permitem a efetiva conjugação entre o real e o normativo, de modo a evitar que a Constituição vire norma sem efeito10. TP

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À luz dessa perspectiva, tem-se destinado especial destaque, na doutrina brasileira, ao princípio da cooperação, considerado como uma das facetas do princípio do contraditório, e entendido como o necessário diálogo a ser travado entre o juiz e as partes, em vista de se alcançar a melhor decisão para a controvérsia. Em realidade, não há como desconsiderar os interesses particulares e distintos que justificam a atuação das partes e do magistrado no processo, mas tal fato não exclui a existência de um interesse comum entre as partes. Trata-se do agir no processo, cada sujeito com seus direitos, deveres e ônus, de modo a resolver a questão pendente de apreciação pelo Poder Judiciário de modo mais efetivo e, com isso, evitar posteriores discussões, de modo a resguardar, ao máximo, a segurança jurídica. Tal mudança se deve à progressiva substituição de paradigma do processo, antes liberal – em que as partes o conduziam, enquanto o juiz mantinha-se absolutamente inerte – e agora voltado à verdade material e à justa composição do litígio. Transmuda-se o papel do juiz liberal/autoritário para o juiz colaborador, situado em condição de igualdade das partes e voltado para a solução jurídica mais adequada ao caso concreto11. TP

PT

9

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da constituição / Peter Häberle ; tradução de Gilmar Fereira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2002, p.34. 10

TAVARES, André Ramos. Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2008. p.155. 11

Nesse sentido, precisa a análise de Mariana França Gouveia: O juiz deve preocupar-se com a realidade daquilo que julga, isto é, com a correspondência entre a realidade intra-processual e a realidade extra-processual. Ou seja, o juiz não pode, nos dias que correm, limitar-se a analisar aquilo que consta do processo, fechando os olhos à realidade que, em certa altura do processo, máxime na produção da prova, lhe aparece. Uma decisão que consiga esta correspondência será uma decisão justificada e logo legitimadora. GOUVEIA, Mariana França. Regime processual experimental. Coimbra: Almedina, 2006, p. 13/14.

383

Ressalte-se que referido modelo não seria possível caso a conjuntura jurídica não fosse favorável. Com efeito, a democratização da jurisdição tem gerado a popularização da Justiça e despertado, ainda que de modo incipiente, à cultura da litigância de massa. Diante disso, não mais subsiste a decisão em definitivo sem uma explicação às partes, ou melhor, uma atuaçãocognição do juiz alheia aos interesses de todas as partes envolvidas no litígio. É mediante a colaboração que o processo, enquanto meio à concretização da justiça e da verdade processual, alcançará seu escopo entre os sujeitos processuais. Nesse contexto, o amicus se mostra bastante útil ao deslinde processual, haja vista personificar os interesses e valores dispersos pela sociedade e pelo Estado, fornecendo ao magistrado dados, informações pertinentes à solução da causa. Precisas, portanto, as palavras de Cassio Scarpinella Bueno a respeito da relação entre o princípio da cooperação e o amicus curiae12: TP

PT

Justamente em função da incidência concreta do “princípio da cooperação”, destarte, o amicus curiae legitima-se, ao lado das partes ou de quaisquer outros sujeitos processuais, como portador de informações, elementos, dados, documentos, valores que, de outro modo, poderiam não chegar ao conhecimento do magistrado, que não estaria, rigorosamente falando, apto a proferir a melhor decisão para o caso concreto.

Abandonou-se, assim, a suficiência do princípio do contraditório essencialmente formal, no sentido tradicional de direito de defesa do acusado, reconhecendo-se a necessária participação social ou ainda de órgãos do próprio Estado nos processos. Nessa nova conjuntura do processo constitucional civil, sobretudo quando a norma aplicada ao caso concreto pretende surtir efeitos além dos sujeitos que fazem parte do processo, o dogma do contraditório nos conduz ao postulado democrático do princípio da cooperação. Em obra específica sobre o tema, Daniel Mitidiero assinala que no contexto da colaboração, o juiz do processo é isonômico, na sua condução através do diálogo, e assimétrico, dada a imperatividade estatal, no ato da decisão. Por força do contraditório, vê-se o órgão jurisdicional obrigado ao debate13. Isso implica afirmar que o direito fundamental ao contraditório corresponde TP

PT

ao dever de o julgador dar atenção ao que for alegado pelos sujeitos processuais, para, então, fundamentar sua decisão14. TP

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Mais do que nunca, se o Estado incumbiu-se na competência de dirimir conflitos, sendo negada ao indivíduo a vingança privada, deve o exercício da jurisdição ser realizado do modo mais completo possível. Ao passo que para o julgador é garantido o livre convencimento

12

Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006, p.56.

13

Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo: RT, 2009, p.72

14

Idem, ibidem, p.138.

384

motivado, em relação aos demais sujeitos processuais, protege-se direito subjetivo a colaborar nesse convencimento, trazendo aos autos toda a sorte de informações necessárias. Inspirado em tais fundamentos, cuidou a Comissão de Juristas encarregada de elaborar o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil de destacar, entre os princípios e garantias fundamentais do processo civil, a cooperação entre os sujeitos processuais15. TP

PT

Faz-se, pois, necessário aproximar o juiz do fato social como um todo e o amicus curiae, também aqui, encontra-se apto a desempenhar seu papel de cooperar não apenas com o julgador, mas com as próprias partes nessa busca pela verdade. Pela sua importância no processo, demanda uma análise mais detalhada, consubstanciada no item subsequente.

3. Demandas repetitivas no ordenamento brasileiro 3.1 O julgamento por atacado (art. 543-c, do CPC) – Lei 11.672/08 A partir de estudos realizados no âmbito do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil, mais precisamente pelo Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Athos Gusmão Carneiro, foi sancionada a Lei nº 11.672, em 08 de maio de 2008, a qual instaurou o chamado “Julgamento por Atacado” 16. TP

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A disciplina do novo art. 543-C do CPC estabelece, em seu § 1º, que caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça. Desse modo, quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, serão selecionados um ou mais recursos para serem julgados primeiro pelo STJ, a fim de que a decisão aí prolatada seja aplicada aos demais recursos que se encontrarem sobrestados por força da lei em apreço. Intentou o legislador, com tal norma, imprimir uma maior celeridade no processamento dos recursos dirigidos ao STJ e, com isso, diminuir o volume dos que alcançam aquela Corte pela via recursal.

15

Art. 5º As partes têm direito de participar ativamente do processo, cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência.

Art. 8º As partes têm o dever de contribuir para a rápida solução da lide, colaborando com o juiz para a identificação das questões de fato e de direito e abstendo-se de provocar incidentes desnecessários e procrastinatórios. 16

NETTO, Nelson Rodrigues. Análise crítica do julgamento "por atacado" no STJ (Lei 11.672/2008 sobre recursos especiais repetitivos). Revista de Processo, São Paulo, v. 33, n. 163, p. 234-247, set. 2008.

385

Compulsando os parágrafos seguintes do referido artigo, observa-se que não foi previsto qualquer meio de impugnação às decisões dos presidentes dos tribunais de origem, restando silente a respeito, também, a Resolução 817 do STJ. TP

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Observa-se que é da competência do Relator inclusive determinar que os recursos repetitivos fiquem suspensos, nos tribunais inferiores, quando houver jurisprudência dominante sobre a questão de direito em tela, ou que tal matéria já esteja na Seção ou Corte Especial para ser julgada. Além dessa atribuição, caberá ao Ministro Relator, ainda, admitir ou não a manifestação de terceiros que comprovem interesse na controvérsia, conforme disposto no § 4º do art. 543-C, do CPC. Ocorre que a identificação das questões substancialmente idênticas pode se mostrar por vezes tortuosa, razão pela qual a Resolução 8 do STJ, no art. 1º, § 1º, estabeleceu, de forma objetiva, que se levará em consideração apenas os recursos que melhor tratarem sobre questão central discutida18. TP

PT

Diante de tal pressuposto, poderia o autor do recurso eleito como paradigma desistir, nos termos do disposto no art. 501, do CPC? A respeito, importa observar os dois procedimentos que surgem no julgamento dos recursos repetitivos: a) o recursal, relativo à discussão da matéria individual do recorrente; b) o incidental, instaurado por força da afetação para a definição da tese do tribunal superior. Desse modo, a desistência apenas poderá alcançar o primeiro procedimento listado, visto que o segundo tem nítida feição coletiva, pelo que não pode ser objeto da desistência19. TP

PT

Outro ponto de destaque no artigo 543-C, CPC, é, mais uma vez, o silêncio normativo T

quanto à recorribilidade das decisões pautadas no § 7º, que assim dispõe:

17 A Resolução 8 do STJ, em vigor desde 08 de agosto de 2008, estabelece os procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais e repetitivos no âmbito daquela Corte. Destaca-se, por oportuno, o teor do art. 2º, §§ 1º e 2º:

Art. 2º. (...) §1º. A critério do Relator, poderão ser submetidos ao julgamento da Seção ou da Corte Especial, na forma deste artigo, recursos especiais já distribuídos que forem representativos de questão jurídica objeto de recursos repetitivos. §2º. A decisão do Relator será comunicada aos demais Ministros e ao Presidente dos Tribunais de justiça e dos Tribunais Regionais Federais, conforme o caso, para suspender os recursos que versem sobre a mesma controvérsia. 18

Art. 1º, § 1º: Serão selecionados, pelo menos 1 (um) processo de cada Relator e, dentre esses, os que contiverem maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial. 19

Nesse sentido, salienta Leonardo José Carneiro da Cunha: Quando o recorrente, num caso como esse, desiste do recurso, a desistência deve atingir, apenas, o procedimento recursal, não havendo como negar tal desistência, já que, como visto, ela produz efeitos imediatos, não dependendo de concordância da outra parte, nem de autorização ou homologação judicial. Ademais, a parte pode, realmente, precisar da desistência para que se realize um acordo, ou se celebre um negócio jurídico, ou por qualquer outro motivo legítimo, que não necessita ser declinado ou justificado. Demais disso, o procedimento recursal é, como se sabe, orientado pelo princípio dispositivo. Tal desistência, todavia, não atinge o segundo procedimento, instaurado para definição do precedente ou da tese a ser adotada pelo tribunal superior. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. O regime processual das causas repetitivas. Revista de Processo, São Paulo, v. 35, n. 179, jan. 2010.

386

§ 7o Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: PU

UP

I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.

Por fim e, para o presente trabalho, de maior destaque, impende salientar que, na hipótese de o recurso afetado como paradigma mostrar-se insuficiente ao melhor convencimento do magistrado que irá julgá-lo, não há qualquer previsão na lei quanto à recorribilidade da escolha do paradigma20. Tal omissão, à evidência, ameaça a participação no contraditório dos sujeitos que, TP

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de algum modo, tenham interesse na controvérsia, ao fundamento de que os princípios da celeridade e da segurança jurídica devem sobrepujar-se ao do contraditório e da ampla defesa21. TP

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3.2 Incidente de coletivização (Novo Código de Processo Civil) Atenta aos reclames doutrinários, bem assim à tendência jurisprudencial de uniformização de julgados, a Comissão de Juristas, instituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 379, de 2009, encarregada de elaborar o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, presidida pelo Ministro Luiz Fux, empenhou-se na criação de um novo diploma normativo capaz de reduzir o número de demandas, impugnações e recursos que tramitam no Poder Judiciário. De certo modo, a normatização de tais institutos apenas refletem a atual tendência processualista de uniformização de decisões judiciais, de modo a evitar a desnecessária repetição de julgamentos e conferir maior segurança jurídica e estabilidade de decisões. Em última análise, espera-se reduzir o grande número de processos no Poder Judiciário, a fim de compatibilizar o binômio quantidade/qualidade, sem comprometer a eficácia da prestação jurisdicional. Era o que já se observava no ordenamento jurídico brasileiro em relação à exigência de repercussão geral, enquanto pressuposto para a interposição dos recursos extraordinários, à previsão da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal e do procedimento de julgamento conjunto de recursos especiais e extraordinários repetitivos.

20

Esse foi, inclusive, um dos pontos destacados pelos juristas que conduziram a 3ª Audiência Pública de análise do Anteprojeto do Novo CPC, realizada em 11.03.2010, no Rio de Janeiro. Na oportunidade, enfatizou-se a importância da criação no CPC de recurso específico contra atos dos Presidentes de Tribunais que apliquem mal os arts. 543-B e 543C, especialmente quando adotarem posição contrária ao entendimento dos Tribunais Superiores.

21

Ao discorrer sobre o tema, Daniel Ustárroz salienta duas dificuldades práticas na seleção do recurso paradigma: a) a forma como serão selecionados os recursos representativos da controvérsia determinante para o sucesso do procedimento; b) a forma pela qual a sociedade participará do debate quanto à melhor orientação pretoriana, sob pena de se ofuscar a aplicação democrática do direito. USTÁRROZ, Daniel. Amicus curiae: um regalo para a cidadania presente. Revista jurídica, Porto Alegre, v. 56, n. 371, p. 73-95, set. 2008, p.94.

387

A novidade trazida pelo novo código reside na possibilidade de se estender tal análise a todos os graus de jurisdição, viabilizando o filtro das demandas ainda na origem22, pelo juiz de TP

PT

primeiro grau, que poderá decidir a causa de imediato, albergado pela jurisprudência sumulada oriunda do julgamento dos recursos repetitivos, hipótese hoje prevista apenas para o julgamento pelos tribunais superiores, nos termos artigo 543-C do CPC, já tratado no ponto anterior. Inspirado no direito alemão, prevê o Anteprojeto em comento a instituição do chamado Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, admissível quando constatada, na instância ordinária, a existência de controvérsia capaz de gerar multiplicação de demandas e, em decorrência, a proliferação de decisões conflitantes, caso julgadas em apartado. Na esteira do Procedimento-Modelo alemão, o incidente, tal como disposto no art. 895, caput e §§, do Anteprojeto, será instaurado23 perante o Tribunal local, por iniciativa do juiz ou TP

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relator, das partes, do Ministério Público, da Defensoria. Na hipótese, o pedido de instauração do incidente será dirigido ao Presidente do Tribunal que determinará, na própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e segundo graus de jurisdição24. TP

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Saliente-se que a extensão da eficácia da decisão aqui prolatada cingir-se-á à área de competência territorial do tribunal, salvo orientação diversa por parte dos Tribunais Superiores, a requerimento do Ministério Público, da Defensoria Pública, das partes ou de quaisquer interessados, inclusive do amicus curiae. Nesse sentido, estabelece o art. 903 que julgado o

22

Tal previsão foi combatida pelos oradores da 7ª Audiência Pública para a análise do Anteprojeto do Novo CPC, realizada em 15/04/10, em Porto Alegre. Na oportunidade, concluiu-se que a previsão de que o incidente de coletivização deveria ser julgado por Tribunal Superior, pois desde logo se terá a última palavra sobre o assunto e a visão nacional do problema. 23

Na ocasião da 8ª Audiência Pública para a análise do Anteprojeto do Novo CPC, realizada em 15/04/10, em Curitiba, destacaram os oradores a possibilidade de condução do incidente seja pelo MP, seja pelo advogado original, ou mesmo por amici curiae. Destacou-se, que deveriam ser previstos meios mais robustos de contraditório e ampla defesa, para que não afete quem não participou. Isso porque o processo deve ser considerado na perspectiva do ser, e não do dever-ser, de modo que a preocupação deve se localizar sobre o que empiricamente funciona, com a real aplicação. A ideia de fortalecer a jurisprudência é louvável, mas se deve deixar claro que o que vincula é a causa de pedir jurídica, tomando-se a distinção entre pressupostos fáticos e dos pressupostos jurídicos adotados nas decisões paradigmas dos recursos repetitivos, repercussão geral, incidente de coletivização, entre outros. 24

Eis o teor dos artigos 895 e 899, tal como previstos no referido Anteprojeto:

Art. 895. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. § 1º O pedido de instauração do incidente será dirigido ao Presidente do Tribunal: I - pelo juiz ou relator, por ofício; II - pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição. § 2º O ofício ou a petição a que se refere o § 1º será instruído com os documentos necessários à demonstração da necessidade de instauração do incidente. § 3º Se não for o requerente, o Ministério Público intervirá obrigatoriamente no incidente e poderá assumir sua titularidade em caso de desistência ou de abandono. Art. 899. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e segundo graus de jurisdição. Parágrafo único. Durante a suspensão poderão ser concedidas medidas de urgência no juízo de origem.

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incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os processos que versem idêntica questão de direito25. TP

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Faculta-se às partes, aos interessados, ao Ministério Público e à Defensoria Pública, tendo em vista a garantia da segurança jurídica, requererem a suspensão de todos os processos em curso que versem sobre a matéria objeto do incidente. Tal providência poderá ser também requerida por quem seja parte nesses processos cuja matéria seja idêntica à versada no incidente26. TP

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Salutar o comando dirigido ao relator do incidente para proceder à oitiva das partes e dos demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, legitimando, assim, a manifestação do amicus curiae como instrumento à elucidação da questão de direito controvertida27. TP

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Em estrita observância aos escopos de celeridade e eficiência do novo instituto, dispõe o art. 904 que tal incidente deve ser julgado no prazo de seis meses, preferindo sobre os demais feitos, salvo os que versem sobre réu preso e pedido de habeas corpus, in verbis: Art. 904. O incidente será julgado no prazo de seis meses e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. § 1º Superado o prazo previsto no caput, cessa a eficácia suspensiva do incidente, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário. § 2º O disposto no § 1º aplica-se, no que couber, à hipótese do art. 900.

Por oportuno, ressalte-se que eventuais recursos especial ou extraordinário interpostos da decisão do incidente gozarão de efeito suspensivo e, em relação ao último,

25

Tal previsão foi combatida pelos oradores da 8ª Audiência Pública para a análise do Anteprojeto do Novo CPC, realizada em 15/04/10, em Curitiba. Para eles, a vinculação de decisões de TJ’s parece ser inconstitucional. 26

É o que prevê o art. 900:

Art. 900. As partes, os interessados, o Ministério Público e a Defensoria Pública, visando à garantia da segurança jurídica, poderão requerer ao tribunal competente para conhecer de eventual recurso extraordinário ou especial a suspensão de todos os processos em curso no território nacional que versem sobre a questão objeto do incidente. Parágrafo único. Aquele que for parte em processo em curso no qual se discuta a mesma questão jurídica que deu causa ao incidente é legitimado, independentemente dos limites da competência territorial, para requerer a providência prevista no caput. 27

Eis o teor do art. 901:

Art. 901. O Relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de quinze dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida; em seguida, no mesmo prazo, manifestarse-á o Ministério Público. (…) § 2º Em seguida, os demais interessados poderão se manifestar no prazo de trinta minutos, divididos entre todos, sendo exigida inscrição com quarenta e oito horas de antecedência.

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considerar-se-á presumida a repercussão geral acerca de questão constitucional que esteja em discussão28. TP

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Observe-se que em tais hipóteses, os autos serão remetidos ao tribunal superior competente independente do juízo de admissibilidade na origem. Ao final, não observada a tese firmada no julgamento do incidente, caberá reclamação ao tribunal competente29. TP

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4. A manifestação do amicus curiae 4.1 Natureza jurídica Reconhecida a concreta impossibilidade de o juiz deter, em absoluto, os conhecimentos necessários para a prestação da melhor tutela jurisdicional, impõe-se a abertura hermenêutica do processo, através da intervenção de sujeitos que, de algum modo, possam auxiliá-lo em questões técnico-jurídicas. No exercício de tal mister, cumpre o amicus curiae importante papel enquanto instrumento de auxílio30 do Estado-juiz no exercício da tutela jurisdicional, mediante a apresentação de teses TP

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jurídicas (por meio de memoriais e exposições orais), capazes de colaborar para a formação do convencimento e julgamento da causa31. TP

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Todavia, não atua na condição de parte, tampouco de terceiro32 ou custos legis, embora TP

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componha, ao lado do juiz, do Ministério Público, das partes e do auxiliar do juízo, o quadro de 28

A respeito, estabelece o art. 905, in verbis:

Art. 905. O recurso especial ou extraordinário interposto por qualquer das partes, pelo Ministério Público ou por terceiro interessado será dotado de efeito suspensivo, presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional eventualmente discutida. Parágrafo único. Na hipótese prevista no caput, interpostos os recursos, os autos serão remetidos ao tribunal competente, independentemente da realização de juízo de admissibilidade na origem. 29

Art. 906. Não observada a tese adotada pela decisão proferida no incidente, caberá reclamação para o tribunal competente. Parágrafo único. O processamento e julgamento da reclamação serão regulados pelo regimento interno do respectivo tribunal. 30

MARINHO, Luciano. Amicus curiae: instituto controvertido e disseminado no ordenamento jurídico brasileiro. Revista ESMAFE - Escola de Magistratura Federal da 5. Região, n.16, p.49-56, dez., 2007.

31

A respeito, destaca Juliano Heinen a existência de “um benefício mútuo na adoção do amicus curiae: da sociedade que pode participar na formação da construção de paradigmas hermenêuticos constitucionais, e da própria Suprema Corte que pode contar com uma visão pluralista e matizada do tema posto em pauta”. In HEINEN, Juliano. A figura do amicus curiae como um mecanismo de legitimação democrática do direito. Revista forense, Rio de Janeiro, v. 103, n. 392, p. 149-165, jul./ago. 2007, p. 160.

32 Revela-se tortuosa na doutrina e na jurisprudência a definição da natureza jurídica do amicus curiae. Segundo Antônio do Passo Cabral, o amigo da cúria seria uma espécie de intervenção de terceiros, visto que “decerto não se inclui no conceito de parte, pois não formula pedido, não é demandado ou tampouco titulariza a relação jurídica objeto do litígio. Também não exterioriza pretensão, compreendida como exigência de submissão do interesse alheio ao seu próprio, pois seu interesse não conflita com aquele das partes. E dentro da conceituação puramente processual de terceiros, devemos admitir necessariamente que o amicus curiae inclui-se nessa categoria. Sua manifestação deve ser compreendida como verdadeira modalidade de intervenção de terceiros.” In CABRAL, Antonio do Passo. Pelas asas de Hermes: a intervenção do amicus curiae, um terceiro especial : uma análise dos institutos interventivos similares : o amicus e o Vertreter des öffentlichen Interesses. Revista de Processo, São Paulo, v. 29, n. 117, p. 9-41, set./out. 2004. Por seu turno, Edgard Silveira Bueno Filho concluiu tratar-se de uma forma qualificada de assistência, visto que “além da demonstração de interesse no julgamento da lide a favor ou contra o proponente, a assistência do amicus curiae só será admitida pelo Tribunal depois de verificada a representatividade do interveniente.” In BUENO FILHO, Edgard

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sujeitos processuais. Aproxima-se, no máximo, da condição de auxiliar do juízo, de um terceiro indiferente, na medida em que oferece o substrato técnico-jurídico suplementar ao magistrado, em sua tarefa hermenêutica, atribuindo esse o valor à manifestação daquele nos limites que sua convicção determinar. A despeito da escassa normatividade do instituto, pode-se afirmar que os fundamentos constitucionais da intervenção do amicus curiae repousam em princípios como o pluralismo político (art. 1º, V), o exercício dos poderes constitucionais diretamente pelo povo (art. 1º, parágrafo único), a cidadania (art. 1º, II), a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), o direito à livre convicção político-filosófica (art. 5º, VIII), o acesso à informação (art. 5º, XIV), o devido processo legal (art. 5º, LIV). Nessa esteira, consagra-se como garantia institucional33 em defesa dos interesses de uma TP

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sociedade aberta e plural de intérpretes, no contexto de um processo não mais limitado apenas à lide, ou à autoridade concreta da lei, mas voltado à efetivação dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais, de modo a evitar que a jurisdição se torne uma instância autoritária de poder, consoante destaca Gustavo Binenbojm34: TP

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(…) há que se fomentar a idéia de sociedade aberta de intérpretes da Constituição, formulada por Peter Häberle, segundo a qual o círculo de intérpretes da Lei Fundamental deve ser elastecido para abarcar não apenas as autoridades públicas e as partes formais nos processos de controle de constitucionalidade, mas todos os cidadãos e grupos sociais que, de uma forma ou de outra, vivenciam a realidade constitucional.

Não mais subsiste espaço para o hermetismo característico do direito positivo clássico, estritamente legalista, autóctone e unidisciplinar. Instaura-se a chamada sociedade aberta de intérpretes, essencialmente multidisciplinar, que permitem a efetiva conjugação entre o real e o normativo, de modo a evitar que a Constituição vire norma sem efeito35. A respeito, pontua Peter TP

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Häberle36: TP

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Uma constituição, que estrutura não apenas o Estado em sentido estrito, mas também a própria esfera pública (Öffentlichkeit), dispondo sobre a organização da própria sociedade e, diretamente, sobre os setores da vida privada, não pode

Silveira. Amicus curiae – a democratização do debate nos processos de controle de constitucionalidade. Revista Jurídica do Centro de Estudos Judiciários, Brasília, n. 19, p. 85-89, out./dez. 2002, p. 27. 33

Segundo Paulo Bonavides, a função do amicus curiae encontra-se intrinsecamente relacionada com a evolução do processo, a partir de uma nova concepção de jurisdição, voltada à concretização dos preceitos constitucionais. In BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo:Malheiros, 2003.

34

A dimensão do amicus curiae no processo constitucional brasileiro: requisitos, poderes processuais e aplicabilidade no âmbito estadual. Direito Federal: Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil, p. 22-78, 141-166, out./dez. 2004, p.149. 35

TAVARES, André Ramos. Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2008. p.155. 36

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 2002, p.33.

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tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente como sujeitos.

A manifestação do amicus curiae no processo colabora para a ampliação do debate de matérias de extrema relevância o que culmina, em última análise, na democratização da jurisdição, tornando o processo socialmente efetivo37, capaz de veicular aspirações da sociedade TP

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como um todo. A respeito, destaca Cândido Rangel Dinamarco38: TP

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Assim é que a efetividade do processo está bastante ligada ao modo como se dá a participação dos litigantes em contraditório e à participação inquisitiva do juiz (…) O grau dessa participação de todos constitui fator de aprimoramento da qualidade do produto final, ou seja, fator de efetividade do processo do ponto-devista do escopo jurídico de atuação da vontade concreta do direito.

Com efeito, não pode a pretensa imparcialidade dos juízes se sobrepor ao direito de manifestação social acerca do conteúdo democrático decisório, constitucionalmente assegurado. Mesmo porque a interpretação normativa, mormente a constitucional, encontra-se pautada na democracia, na abertura procedimental de intervenção da sociedade civil na formação do convencimento do intérprete oficial da vontade geral expressa na norma39. TP

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Diante disso, na condução do processo, assume o juiz importante papel instrutório, o que reduz as diferenças de oportunidades outrora ameaçadas pela situação econômica dos sujeitos e contribui para a efetividade do processo. Consoante denuncia Carlos Alberto Alvaro de Oliveira40: TP

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Exatamente em face dessa realidade, cada vez mais presente, na rica e conturbada sociedade de nossos tempos, em permanente mudança, ostenta-se inadequada a investigação solitária dos órgãos judiciais. Ainda mais que o monólogo apouca necessariamente a perspectiva do observador e em contrapartida o diálogo, recomendado pelo método dialético, amplia o quadro de análise, constrange à comparação, atenua o perigo de opiniões preconcebidas e favorece a formação de um juízo mais aberto e ponderado.

Ora, o exercício da democracia e da cidadania plena exige políticas públicas que objetivem não apenas a garantia formal do acesso à justiça, mas aquela capaz de garantir a efetividade de

37 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Por um processo socialmente efetivo. Revista de Processo, São Paulo, n. 105, p. 181, jan./mar. 2002, p. 181. 38

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p.359.

39

A respeito, destaca Ricardo Maurício Freire Soares: “(…) não tem fundamento a alegação de que a ampliação do leque de intérpretes ameaçaria a independência dos juízes e a vinculação à lei constitucional. Isto porque não é possível ocultar fato de que o julgador interpreta a Constituição, com base no conjunto axiológico da sociedade. O intérprete se orienta não só pela teoria, mas também pela práxis social. Esta última, no entanto, não é conformada pura e simplesmente pelos operadores do direto. Do ponto de vista histórico-cultural, o processo de interpretação constitucional é infinito e sempre inconcluso, cabendo ao jurista o papel de mediador das demandas comunitárias, ao lado dos demais autores sociais TAVARES, André Ramos. Leituras complementares de direito constitucional: controle de constitucionalidade e hermenêutica constitucional. 2. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2008. p.112.

40

Poderes do juiz e visão cooperativa do processo. Revista da AJURIS, Porto Alegre, v. 30, n. 90, 2003, p.27.

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um processo justo e adequado e, bem assim, a igualdade de condições dos indivíduos pertencentes à coletividade.. TP

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Mediante a intervenção do amicus curiae, concretiza-se a liberdade de participação política do cidadão, assegura-se o poder de voz dos sujeitos sociais na atividade jurisdicional, fundamento das demais liberdades41, legitimam-se os argumentos decisórios, no exercício jurisdicional da TP

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estabilização de conflitos sociais. Trata-se, essencialmente, de política pública de acesso à justiça, um canal de comunicação entre a sociedade aberta de intérpretes e o julgador. Foi esse, inclusive, o impulso que levou à criação do instituto no direito americano. Diante dos questionamentos das partes que se sentiam prejudicadas ante a aplicação do stare decisis, que nem sempre refletia as peculiaridades de cada caso, a Suprema Corte americana concluiu por estruturar a participação do friend of the court nos processos. A partir de então, além de manifestar-se sobre o caso, o amicus seria interrogado pelos membros da Corte que, ao término, fundamentariam seus votos na decisão final. Isso porque o sistema de precedentes judiciais pautado no stare decisis redunda na chamada doutrina da dependência (path dependency), por vezes impedindo a renovação de argumentos, cristalizados por precedentes consolidados na Corte. Significa que em defesa da estabilidade e previsibilidade jurídicas, o que não deixa de ser salutar e desejável em um ordenamento, tolhe-se o ciclo de evolução das teses jurídicas. Diante dessa realidade, o que se tem observado é a tentativa, por parte dos potenciais litigantes, especialmente o amicus curiae, de promover a mudança de paradigmas da matéria discutida e consolidada em superados precedentes, mediante a manipulação crítica e a condução das decisões importantes dos casos. Ora, tal pretensão não encontrará resultados se não existir um ambiente favorável à renovação hermenêutica. Em estudo sobre o tema, André Pires Gontijo e Christiane Oliveira Peter da Silva42, remetendo à pesquisa efetuada por Paul Collins, destacam os três modelos de TP

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julgamento e as suas implicações na atuação do amicus. O primeiro é o modelo legal (legal model) que analisa a influência da informação, inclusive a prestada pelo amicus, aos juízes, especialmente se ela inovar no precedente consolidado. O segundo modelo trata do voluntarismo judicial (attitudinal model), o modelo dominante, em que o juiz já tem fixadas suas preferências ideológicas, revelando-se as decisões a exteriorização das preferências dos juízes participantes.

41

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 71.

42 O papel do amicus curiae no processo constitucional: a comparação com o decision making como elemento de construção do processo constitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 16, n. 64, jul./set. 2008.

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À evidência, o memorial do amicus surtiria poucos efeitos, visto que cada juiz dificilmente alteraria sua hermética tese particular. Por fim, o terceiro modelo destaca os grupos de interesses, valendo-se os juízes das decisões para satisfazerem interesses políticos dos grupos que o procuram, de modo a garantir por vezes o prestígio social do magistrado ou, numa perspectiva mais nobre, assegurar a representatividade social nas decisões de cúpula. Tratando-se de um sistema jurídico essencialmente misto, pautado na aproximação do sistema da common law com a civil law, têm sido estabelecidos uma série de institutos no Brasil que valorizam a força do precedente judicial, enquanto garantias da estabilidade e segurança jurídicas, bem assim da celeridade e economia processuais indispensáveis à efetividade do acesso à justiça43. TP

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4.2 Os limites à manifestação do amicus curiae Do cotejo da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos últimos 20 anos44, tem-se que TP

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o direito brasileiro ainda não despertou para a importância da manifestação ampla do amicus curiae, especialmente nos litígios de massa, limitando-se a previsão do amicus às ações de controle de constitucionalidade, cuja intervenção, no decorrer do tempo, foi assumindo novos relevos. No tocante ao limite temporal, a despeito de Supremo Tribunal Federal reconhecer a importância da abertura do processo aos intérpretes da Constituição, enquanto garantia democrática de representatividade do pluralismo político disperso na sociedade, firmou-se o entendimento de admitir a intervenção do amicus curiae apenas até a data em que o Relator liberar o processo para pauta45. TP

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Tal tendência restou destacada na 3ª Audiência Pública de análise do Anteprojeto do Novo CPC, realizada em 11.03.2010, no Rio de Janeiro. Na oportunidade, enfatizou-se o dever de gestão e possibilidade de criação de procedimentos no caso concreto, destacando-se os parâmetros do CPC inglês e da regulamentação de Portugal. Salientou-se, ainda, o modelo de Common Law, que confere maior destaque aos fatos da causa julgada pelos tribunais, de modo a se evitar a dispersão de votos, que diminui a força dos precedentes. Ao final, sugeriu-se a maior adoção das práticas dos distinguishing e do overruling.

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Nesse sentido, destacam André Pires Gontijo e Cristine Oliveira Peter da Silva: “Observa-se a evolução do papel do amicus curiae na sua atuação perante o STF, o qual começou como um ‘colaborador informal’, com um memorial juntado por linha (ADIn 748-AgRg); avançou no reconhecimento com amicus e de se papel como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte (enquanto Tribunal Constitucional) demonstrando as razões que tornam desejáveis e útil a sua atuação na causa por meio de manifestação escrita (ADIn 2.130); modificou o entendimento do STF, no sentido de proceder a uma leitura sistemática do art. 7º, §2º, da Lei 9.868/99, alterando o marco temporal para o ingresso na qualidade de amicus, em prol de uma perspectiva pluralista do controle abstrato das normas (da ADIn 2.238 para a ADIn 1.104); outra modificação de entendimento passando a poder sustentar oralmente (da ADIn 2.321 para a ADIn 2.777), em razão da finalidade da norma em democratizar o processo de controle concentrado de constitucionalidade, além de poder suscitar, perante o relator, a adoção de providências instrutórias (Lei 9.868/99, art. 9º, §§1º, 2º e 3º).” GONTIJO, André Pires; SILVA, Christine Oliveira Peter da. O papel do amicus curiae no processo constitucional: a comparação com o decision making como elemento de construção do processo constitucional no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 16, n. 64, jul./set. 2008.

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Pela pertinência, destaca-se o acórdão a seguir ementado, in verbis: AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL PELO RELATOR. ART. 4º DA LEI Nº 9.868/99. 1. É manifestamente improcedente a ação direta de inconstitucionalidade que verse sobre norma (art. 56 da Lei nº 9.430/96) cuja constitucionalidade foi expressamente declarada pelo Plenário do

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Na oportunidade, entendeu a Corte Suprema que o relator, ao encaminhar o processo para a pauta, já teria firmado sua convicção, razão pela qual os fundamentos trazidos pelos amici curiae pouco seriam aproveitados, e dificilmente mudariam sua conclusão. Além disso, entendeu-se que permitir a intervenção de terceiros46, que já é excepcional, às TP

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vésperas do julgamento poderia causar problemas relativamente à quantidade de intervenções, bem como à capacidade de absorver argumentos apresentados e desconhecidos pelo relator. Por fim, ressaltou-se que a regra processual teria de ter uma limitação, sob pena de se transformar o amicus curiae em regente do processo. Esse entendimento restou disposto no Informativo 54347, TP

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de 20 a 24 de abril de 2009.

Supremo Tribunal Federal, mesmo que em recurso extraordinário. 2. Aplicação do art. 4º da Lei nº 9.868/99, segundo o qual "a petição inicial inepta, não fundamentada e a manifestamente improcedente serão liminarmente indeferidas pelo relator". 3. A alteração da jurisprudência pressupõe a ocorrência de significativas modificações de ordem jurídica, social ou econômica, ou, quando muito, a superveniência de argumentos nitidamente mais relevantes do que aqueles antes prevalecentes, o que não se verifica no caso. 4. O amicus curiae somente pode demandar a sua intervenção até a data em que o Relator liberar o processo para pauta. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. Preliminarmente, o Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, rejeitou a admissão do amicus curiae, vencidos a Senhora Ministra Cármen Lúcia e os Senhores Ministros Carlos Britto, Celso de Mello e o Presidente. E, no mérito, por maioria, desproveu o recurso de agravo, vencidos os Senhores Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto e Eros Grau. Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie. Plenário, 22.04.2009. (STF, ADI-AgR 4071) (grifos acrescidos) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4071/DF. Requerente: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Requerido: Presidente da República Congresso Nacional. Relator: Min. Menezes Direito. Brasília, 22 de abril de 2008. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2010. 46

Segundo Roberto Carlos Martins Pires, sempre que uma decisão seja capaz de influenciar, ainda que indiretamente, uma coletividade, há de ser reconhecida a intervenção de terceiros, inclusive o amicus curiae. In PIRES, Roberto Carlos Martins. A intervenção de terceiros no amicus. Revista ESMAFE: Escola de Magistratura Federal da 5. Região, Recife, n.13, p. 289-300, mar. 2007, p. 299. 47

INFORMATIVO Nº 543. TÍTULO: Intervenção de “Amicus Curiae”: Limitação e Data da Remessa dos Autos à Mesa para Julgamento PROCESSO ADI – 4071 ARTIGO: A possibilidade de intervenção do amicus curiae está limitada à data da remessa dos autos à mesa para julgamento. Ao firmar essa orientação, o Tribunal, por maioria, desproveu agravo regimental interposto contra decisão que negara seguimento a ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB contra o art. 56 da Lei 9.430/96, o qual determina que as sociedades civis de prestação de serviços de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar 70/91. Preliminarmente, o Tribunal, também por maioria, rejeitou o pedido de intervenção dos amici curiae, porque apresentado após a liberação do processo para a pauta de julgamento. Considerou-se que o relator, ao encaminhar o processo para a pauta, já teria firmado sua convicção, razão pela qual os fundamentos trazidos pelos amici curiae pouco seriam aproveitados, e dificilmente mudariam sua conclusão. Além disso, entendeu-se que permitir a intervenção de terceiros, que já é excepcional, às vésperas do julgamento poderia causar problemas relativamente à quantidade de intervenções, bem como à capacidade de absorver argumentos apresentados e desconhecidos pelo relator. Por fim, ressaltou-se que a regra processual teria de ter uma limitação, sob pena de se transformar o amicus curiae em regente do processo. Vencidos, na preliminar, os Ministros Cármen Lúcia, Carlos Britto, Celso de Mello e Gilmar Mendes, Presidente, que admitiam a intervenção, no estado em que se encontra o processo, inclusive para o efeito de sustentação oral. Ao registrar que, a partir do julgamento da ADI 2777 QO/SP (j. em 27.11.2003), o Tribunal passou a admitir a sustentação oral do amicus curiae — editando norma regimental para regulamentar a matéria —, salientavam que essa intervenção, sob uma perspectiva pluralística, conferiria legitimidade às decisões do STF no exercício da jurisdição constitucional. Observavam, entretanto, que seria necessário racionalizar o procedimento, haja vista que o concurso de muitos amici curiae implicaria a fragmentação do tempo disponível, com a brevidade das sustentações orais. Ressaltavam, ainda, que, tendo em vista o caráter aberto da causa petendi, a intervenção do amicus curiae, muitas vezes, mesmo já incluído o feito em pauta, poderia invocar novos fundamentos, mas isso não impediria que o relator, julgando necessário, retirasse o feito da pauta para apreciá-los. No mais, manteve-se a decisão agravada no sentido do indeferimento da petição inicial, com base no disposto no art. 4º da Lei 9.868/99, ante a manifesta improcedência da demanda, haja vista que a norma impugnada tivera sua constitucionalidade expressamente declarada pelo Plenário da Corte no julgamento do RE 377457/PR (DJE de 19.12.2008) e do RE 381964/MG (DJE de 26.9.2008). Vencidos, no mérito, os Ministros Marco Aurélio, Carlos Britto e Eros Grau, que proviam o recurso, ao fundamento de que precedentes versados a partir de julgamentos de recursos extraordinários não obstaculizariam uma ação cuja causa de pedir é aberta, em que o pronunciamento do Tribunal poderia levar em conta outros artigos da Constituição Federal, os quais não examinados

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A respeito, Cassio Scarpinella adverte que, na ausência de disposição normativa expressa, a intervenção do amicus no fechamento da parte postulatória é a mais consentânea com a sua finalidade48. Isso porque, ao atuar em prol da melhor decisão jurisdicional, a partir da cooperação TP

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ao convencimento do magistrado, é de se esperar que se pronuncie após as razões das partes. Saliente-se que essa suposta fase de manifestação não é, por si só, preclusiva, devendo, antes, ser levado em conta para a admissão do ingresso do amicus a pertinência material de sua intervenção. Em outros termos, o limite temporal encontrar-se-á pautado na qualidade dos fundamentos apresentados pelo interveniente, na exata medida em que essa atuação acrescenta substancialmente a controvérsia em análise. Por sua vez, no tocante ao limite quantitativo, quanto à legitimidade para o terceiro intervir em processo alheio, na condição de amicus curiae – é necessário que ele comprove deter algum argumento relevante à convicção do juiz. Isso porque se, de um lado, a intervenção desse terceiro contribui à efetivação do contraditório, sob o enfoque do exercício da cooperação entre as partes, de outro, a sua manifestação infundada terminará por esvaziar o escopo do procedimento, qual seja a celeridade no julgamento das causas. Ao que se observa, o ingresso do amicus curiae, implica o juízo de admissibilidade, por parte do magistrado, do pleito de intervenção, ocasião em que será comprovado existir ou não o interesse (institucional) desse terceiro sobre a controvérsia. Contudo, tal direito não vinculará aquele em sua convicção, sendo, nesse ponto, um ato discricionário do magistrado, visto que a lei não o condiciona à tese apresentada pelo amicus quando da formação do seu convencimento, ressaltando-se que a decisão deverá ser fundamentada. Em outros termos, inexistindo na lei em apreço qualquer limite quantitativo à manifestação do amicus, impõe-se o limite qualitativo à intervenção desse, qual seja a demonstração de fundamentos e subsídios úteis e primordiais ao deslinde da causa. Nesse sentido, não será o número de intervenientes que irá determinar a admissão de um ou outro amicus, mas a pertinência jurídica dos subsídios apresentados, pelo que restarão rejeitados todos aqueles cujos fundamentos em nada acrescentarem ao já discutido. Ora, do cotejo das recentes decisões da Suprema Corte, observa-se que, a par da oscilação de sua jurisprudência – o que denuncia um casuísmo e subjetivismo nas decisões – tem-se buscado imprimir às decisões, a exemplo do controle difuso de constitucionalidade, feições mais objetivas, em atendimento à racionalidade, segurança jurídica e celeridade dos julgamentos.

nos processos subjetivos em que prolatadas as decisões a consubstanciarem os precedentes. ADI 4071 AgR/DF, rel. Min. Menezes Direito, 22.4.2009. (ADI-4071) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo nº 543. Brasília, 20 a24 de abril de 2009. Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2010. 48

SCARPINELLA BUENO, Cassio. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006, p.542-543.

396

Nesse sentido, a aferição da pertinência jurídica dos subsídios apresentados não redundaria no subjetivismo que se tem buscado afastar? Como imprimir objetividade a um conceito – representatividade adequada – com tamanha carga de indefinição semântica? Seria esse definido nos moldes impressos na ação civil pública? Até o momento, tais questionamentos o legislador ordinário, a jurisprudência pátria, tampouco a doutrina nacional não se dispuseram a enfrentar e propor soluções e essas, por óbvio, ultrapassam os limites deste ensaio, sem desmerecer a importância de sua análise. Por fim, considerando que o Supremo Tribunal Federal abre o debate à sociedade por meio de audiências públicas, em relação a temas de interesse geral e polêmicos, como forma de garantir uma maior adequação e representatividade da decisão aos anseios sociais, convém analisar a razão pela qual não se admite que a iniciativa da manifestação parta da própria sociedade. Uma rápida análise da questão permite-nos afastar a tese da afronta à celeridade. Ora, a manifestação do amicus tem o condão de antecipar ao conhecimento do julgador, durante a construção do seu convencimento, as repercussões que a decisão ao final enfrentaria na sociedade, antecipando o dissenso aí dispersos, inerente às discussões das matérias postas em litígio. Nesse sentido, a consequência lógica dessa intervenção seria a redução da pressão social negativa sob a atuação do Poder Judiciário o que, em última medida, contribuiria para reduzir o descrédito da sociedade frente a esse Poder e, ainda, promover a estabilização das demandas. Além de, por tal via, satisfazer a sensação de déficit de representatividade suportada pela sociedade, desde o nascedouro da norma, se evidencia desde o nascedouro da norma, na medida em que a atividade legislativa cinge-se a um mero instrumento à consolidação dos interesses de camadas sociais que consolidam a corrupção, trocas de favores, manobras de assistência mútua, intrigas por interesses eleitoreiros.

5. Conclusão Na atual conjuntura jurídico-processual brasileira, a sobrecarga de recursos nos Tribunais Superiores tem imprimido uma nova feição ao tradicional sistema processual individualizado. Com efeito, a fim de garantir a segurança e estabilidade dos julgados, bem assim a celeridade da prestação jurisdicional, tem sido implantada no ordenamento jurídico brasileiro uma série de institutos voltados às chamadas causas repetitivas. Ocorre que a qualidade da tutela encontra estreita relação com a abertura do debate da matéria discutida no processo aos sujeitos que, em alguma medida, possam sofrer algum reflexo da decisão. Ora, uma decisão hermética, cristalizada em superados precedentes, alheia aos interesses sociais, embora objetive a segurança e previsibilidade jurídicas, apenas contribui para a 397

insatisfação dos litigantes atuais e potenciais e, assim, para o aumento no número de demandas e descrédito social perante o Poder Judiciário, em um ciclo infindável. Sob tal ótica e, tomando-se como pressuposto o fato de que o processo só alcançará seus objetivos mediante a cooperação entre os sujeitos processuais, o amicus curiae mostrar-se-á sobremaneira útil à concretização da justiça e da verdade processual, ao consolidar os interesses dispersos na sociedade, mas pertinentes à solução do conflito. Diante dessa realidade, a qualificação técnica especializada do amicus curiae mostra-se essencial à renovação das teses, proporcionando ao magistrado o acesso mais amplo à matéria em discussão, sob o manto da cooperação necessária entre os sujeitos processuais. Além disso, o interesse institucional que lhe é ínsito, ao ultrapassar o das partes litigantes e de eventuais terceiros intervenientes, contribui de modo mais eficaz para a estabilização das demandas. Uma decisão aberta às teses que circundam o litígio, sem estar vinculada apenas àquelas trazidas pelos sujeitos que compõem as causas paradigmas, revelam-se mais eficazes no que tange ao sentimento de satisfação dos litigantes que, porventura, não integrem diretamente a causa principal repetitiva. Também nesse particular a intervenção do amicus é fundamental. Isso porque o interesse que o legitima é exatamente a melhoria da prestação jurisdicional, para além das partes individuais, o que contribui, de certo modo, para a segurança das decisões. A despeito disso, ainda é escassa a normatividade do amicus no direito brasileiro, limitando-se a situações pontuais, tais como as ações de controle de constitucionalidade e o procedimento dos recursos repetitivos. Diante de tal cenário, oportuna a inovação legislativa apresentada pelo Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, ao positivar a manifestação do amicus, em todos os graus de jurisdição, inclusive nas demandas repetitivas e no incidente de coletivização. Todavia, apesar dos avanços, pecou a Comissão do Anteprojeto do CPC por não positivar a legitimidade recursal do amici, o que se mostraria salutar em um cenário de cooperação processual e massificação de demandas, massa, cujos efeitos intersubjetivos são mais amplos que os das demandas individuais. A fim de assegurar a representatividade de sujeitos que sofrerão a influência direta da decisão, embora não tenham participado formalmente do processo decisório, tendo em vista que a colaboração, enquanto personificação da ampla defesa, é o que legitima as tutelas prestadas, a manifestação do amicus, abarcando todas as informações pertinentes ao caso, mostra-se uma imposição e não um subjetivismo, enquanto juízo de oportunidade, do juiz.

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Da jurisdição constitucional ativista à democracia deliberativa: uma busca por um novo paradigma para a relação entre o direito e a política Rafael Bezerra de Souza1 TP

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Resumo

Abstract

Este artigo apresenta uma análise crítica acerca da judicialização da política e do ativismo judicial como fenômenos político-institucionais, bem como de seus reflexos e conseqüências para a histórica trajetória da relação entre o direito e a política. Ainda, apontase a Democracia Deliberativa, a partir de um olhar dialógico, como novo paradigma para um equilibrado redimensionamento da relação entre o direito e a política, em superação de concepção tradicional, baseada no positivismo formalista, o qual defendia a sua rígida distinção. Este novo paradigma tem por fundamento a construção de um novo desenho institucional que evite a incessante oscilação entre posições binárias extremas, na busca pelo equilíbrio entre os sujeitos constitucionais, incluindo a sociedade civil.

This article presents a critical analysis of the judicialization of politics and judicial activism as political and institutional phenomenons, as well as its impacts and consequences for the historical trajectory relation between law and politics. Still, points to Deliberative Democracy, from a dialogical look, like a new paradigm for balanced scaling relation between law and politics, in overcoming traditional design based on formalistic positivism, which defended its rigid distinction. This new paradigm is based on the construction of a new institutional design that avoids the constant oscillation between binary extreme positions in the search for balance between constitutional subjects, including civil society.

Palavras-Chave: Direito; Política; Constitucional; Teorias Dialógicas.

Keywords: Theories.

1

Jurisdição

Law;

Politics; Judicial

Review; Dialogic

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Atua na área de Teoria do Direito e da Constituição

400

1. Considerações iniciais No contexto do pensamento jurídico moderno, o Constitucionalismo caracterizou-se, preponderantemente, pelo estabelecimento de uma relação conflituosa e oscilante entre o direito e a política. Após o surgimento do Estado Moderno desenvolveu-se a chamada Dogmática Oitocentista, que teve sua origem nas tradições romano-canônica e iluminista, preceituando a lei como algo objetivo, puro e imune a elementos de cunho subjetivo2. TP

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A referida concepção tradicional e formalista, de cunho liberal, exercera forte influência no desenvolvimento do pensamento jurídico do mundo ocidental3, destacando-se como um dos seus TP

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principais dogmas a imanente identidade racional e objetiva do direito, a qual seria resultado direto da sua pretensa neutralidade axiológica e da independência do juiz, atributos exigidos pela racionalidade moderna para a consecução do seu caráter de cientificidade. Ainda, do ponto de vista metodológico, o pensamento positivo-formalista concebeu o processo hermenêutico como algo eminentemente lógico-dedutivo, mecanicista, baseado na subsunção da realidade fática sob a norma jurídica (lei), negando veementemente qualquer existência de dimensão política da função judicial. No entanto, paulatinamente, observou-se, a partir das chamadas Teorias Críticas e da crescente interdependência entre as diversas áreas do conhecimento, a insuficiência dos tradicionais paradigmas teórico-constitucionais para a compreensão da realidade constitucional contemporânea4. TP

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Este processo se evidencia, no plano da Filosofia Política5, quando da análise das TP

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sociedades contemporâneas, marcadas pela complexidade e pelo pluralismo, bem como, pela existência de profundos “desacordos morais razoáveis” entre inúmeras “doutrinas abrangentes”, revelando, assim, a emergência de: construções teóricas que preconizam a multiplicidade de autores no complexo processo de configuração de sentido das cláusulas constitucionais, notadamente aquelas garantidoras de direitos fundamentais6. TP

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2

TAVARES, André Ramos. A constituição é um documento valorativo? Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-09/RBDC-09-337-Andre_Ramos_Tavares.pdf. Acesso em: 26 nov. 2011. TU

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Como exemplo, a Escola da Exegese, na França, a Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha e o Formalismo Jurídico, nos EUA.

4

SILVA, Cecília de Almeida; MOURA, Francisco; BERMAN, José Guilherme; VIEIRA, José Ribas; TAVARES, Rodrigo de Souza; VALLE, Vanice Regina Lírio. Diálogos institucionais e ativismo. 1°. Ed. Curitiba: Juruá, 2010.

5

NETO, Cláudio Pereira de Souza. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, p. 65, 2006.

6

VALLE, Vanice Regina Lírio & SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo cooperativo ou supremacia do judiciário? Disponível em: www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2209.pdf. Acesso em: 21 ago. 2011. TU

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Neste cenário de profundas mudanças de paradigmas da Teoria da Constituição na concretização das normas constitucionais - como não poderia deixar de ser - a relação entre o direito e a política também sofreu intensa mutação. O presente estudo, na tentativa de debater a referida mudança, fará uso da chamada “metáfora do pêndulo da modernidade”, utilizada por muitos autores para traduzir a dinâmica do atual ordenamento social, pluralista e autônomo, que oscila incessantemente entre radicalismo e moderação7. TP

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Esta metáfora bastante utilizada pela Teoria Social é representativa não apenas da relação entre o direito e a política, mas também da reflexão crítica proposta acerca do processo não-linear de construção do fenômeno constitucional8. TP

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2. As oscilações do pêndulo: os radicalismos da relação entre o direito e a política A concepção tradicional do direito, típica do Estado legalista, vigente durante a segunda metade do século XIX, teve como um dos seus grandes expoentes Georg Jellinek que, através da sua Doutrina da Teoria Geral do Estado, defendeu a total separação entre o direito e a política9. TP

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Assim sendo, à política vinculava-se o binômio soberania popular-princípio majoritário, sintetizado pelo domínio da vontade, enquanto que ao direito vinculava-se o binômio primado da lei-respeito aos direitos fundamentais, sintetizado pelo domínio da razão. Logo, referidos subsistemas eram tidos como inconciliáveis. Esta leitura instrumental e formalista compreendeu o direito a partir de dois planos contrapostos: o da criação e o da aplicação. O primeiro, que representava a clássica ideia do primado da lei e da soberania do Parlamento, já evidenciava a impropriedade da perquirida separação, haja vista que neste plano não há como “o direito ser separado da política, na medida em que é produto do processo constituinte ou do processo legislativo, isto é, da vontade das maiorias”10. TP

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Por outro lado, no plano da aplicação do direito, o discurso retórico da dogmática oitocentista defendeu que a sua separação da política era possível e desejável, tendo como fundamento a redução da atividade interpretativa do juiz a um silogismo lógico-formal, a qual retirava qualquer papel criativo do juiz.

7

HELLER, Agnes & FEHER, Ferenc. O pêndulo da modernidade. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v0612/Pendulo.pdf. Acesso em: 21 nov. 2011. TU

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8

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9

BERCOVICI, Gilberto. Constituição e política: uma relação difícil. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n61/a02n61. Acesso em: 20 out. 2011. TU

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BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, v.16, p. 3-42, 2010.

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Essa pretensão autopoiética, de autonomia absoluta, a qual concebe o direito como algo encapsulado, imune à interferência dos demais subsistemas sociais, dentre eles a política, vem se tornando cada vez mais problemática na contemporaneidade. Há, na doutrina atual, praticamente um consenso de que os processos de interpretação e de aplicação do direito envolvem elementos cognitivos e volitivos, bem como o entendimento de que a norma jurídica não é um dado, e sim um construído.11 TP

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Neste sentido, a tentativa de ocultar a presença do aspecto volitivo no processo interpretativo vem fracassando, fato que externaliza a crise de um paradigma jurídico que insiste em apontar apenas para as dimensões “tecnológicas” do direito, negligenciando o discurso social que efetivamente assegura a legitimidade e a organização do poder, qual seja, a sua função política12. TP

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Todavia, o natural movimento de oscilação em análise tem ganhado inesperada intensidade, principalmente a partir do fim da II Guerra Mundial, com o surgimento do chamado Estado Constitucional de Direito. Este novo paradigma representou um marco para o desenvolvimento do constitucionalismo contemporâneo, revelando além da reaproximação entre o direito e a moral (“virada kantiana”), a centralidade da Constituição, a supremacia judicial, e, nos últimos anos, a ascensão, o protagonismo e a hipertrofia institucional do Poder Judiciário no Brasil e no mundo, vislumbrando-se o desenvolvimento de uma pretensa “onda global rumo à constitucionalização”13. TP

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Na origem deste processo encontra-se a expansão do Poder Judicial nas democracias modernas. A doutrina contemporânea elenca um amplo quadro-geral de fatores políticos e jurídicos capazes de traduzir as principais motivações para a expansão da autoridade judicial, tais como: a existência de um sistema político democrático; as mudanças vivenciadas pelo Estado e pelo direito por ocasião da ascensão e da decadência do Welfare State e a separação dos poderes14-15. TP

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Ainda, corroborando com a análise acima, aponta-se a ocorrência da sobrecarga do Executivo, em face: 1) do surgimento de incessantes demandas sociais multifacetadas; 2) da crise da Democracia Representativa, a partir do descolamento entre representantes e representados e

11

LEITE, Glauco Salomão. A “politização” da jurisdição constitucional: uma análise sob a perspectiva da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann. Disponível em: www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto973.pdf. Acesso em: 17 ago. 2011. TU

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14

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WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Resende; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

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3) da retração do sistema representativo, em razão da sua incapacidade de fazer frente aos direitos sociais e coletivos incorporados nas constituições contemporâneas16-17. TP

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Assim sendo, é neste cenário de profunda mudança de paradigmas18 que se consolidou TP

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uma das principais manifestações do processo de expansão do Poder Judicial: o crescente fenômeno da judicialização da política e das relações sociais. Tal fenômeno possui como característica marcante o avanço do direito sobre a política19 e a transferência de poder para as TP

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instituições judiciais, em detrimento das instâncias político-representativas tradicionais, sendo referido como “o recurso cada vez maior a tribunais e a meios judiciais para o enfrentamento de importantes dilemas morais, questões de política pública e controvérsias políticas20. TP

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Constatou-se, assim, um aumento gradativo das funções e da importância política dos tribunais constitucionais21. Como conseqüência direta deste processo o chamado “Terceiro Poder” TP

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constituiu-se em uma “arena pública”, em substituição ao circuito clássico “sociedade civil – partidos políticos – representação – formação da vontade majoritária”22. TP

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Todavia, apesar dos Tribunais e das Cortes Constitucionais exercerem um importante papel para a consolidação do regime democrático, a sua proeminência fora acompanhada de diversas críticas por parte da doutrina nacional e alienígena, em face do novo status político alcançado. Como efeitos suscitados em decorrência da judicialização da política pode-se assinalar: 1) a carência de legitimidade democrática do Poder Judiciário para sobrepor as suas decisões às dos agentes políticos eleitos; 2) a elitização do debate público; 3) o desestímulo ao político e à soberania popular e 4) a descrença no princípio majoritário23-24-25. TP

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BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, v.16, p. 3-42, 2010. 17

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Em que se evidenciam um flagrante “vácuo institucional” de poder e a gradativa perda da capacidade funcional e institucional dos Poderes Legislativo e Executivo. T

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VIEIRA, op. cit.

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HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo FGV Direito Rio, Volume 251, p. 139, mai/ago 2009. Disponível em: www.direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/RDA%20251.pdf. Acesso em: 18 ago. 2011. UT

21

Segundo Tate & Vallinder(1995) apud Aguiar (2007), a eclosão do judiciário como instância política derivou-se diretamente da influência da jurisprudência e da Ciência Política norte-americana no cenário pós-45, marcadamente a partir da emergência do modelo político do Judicial Review, que se apresentou como modelo a ser seguido pelos demais países em processo de democratização, incluindo-se neste processo o Brasil. T

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WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Resende; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 23 BARROSO, Luís Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, Ed. Renovar, v.16, p. 3-42, 2010. 24

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Desta feita, a respectiva conjuntura demonstra o quanto o fenômeno da judicialização da política é diverso e multifacetado, evidenciando-se a ocorrência de um verdadeiro alargamento do referido conceito26. De inicialmente vinculado à já controvertida elaboração de políticas públicas TP

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por juízes, o controle normativo protagonizado pelo “Terceiro Poder” atingiu outro patamar, incluindo a transferência massiva das mais centrais e polêmicas controvérsias políticas que envolvem uma sociedade em uma democracia27. TP

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Em análise acerca da realidade brasileira, Barroso28, Sarmento29 e Vieira30 asseveram que TP

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o fenômeno da judicialização da política assume proporções ainda maiores no nosso país, tendo em vista o recente processo de constitucionalização do ordenamento jurídico e o atual desenho institucional que revela a existência de uma constituição abrangente, analítica e ubíqua. Além disso, também chamam a atenção para o sistema de controle de constitucionalidade misto vigente em nosso país, o qual permite um amplo direito de propositura perante à Corte Suprema, bem como, para a concentração de poderes na esfera de jurisdição do Supremo Tribunal Federal (STF). Neste sentido, constata-se que o STF, nos últimos anos, vem assumindo uma postura destoante da jurisprudencial defensiva (self-restraint) adotada historicamente. Passada a promulgação da Constituição de 1988, observa-se a migração para uma atuação substancialista e ativista, sob o argumento da tutela de direitos fundamentais, fato que vem deslocando o Supremo para o centro do arranjo político-institucional brasileiro31. TP

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Este processo de expansão da autoridade do Supremo Tribunal Federal em detrimento aos demais Poderes, no qual este fora alçado à última instância de definição dos valores da sociedade32 é classificado por Vieira33 como uma Supremocracia e apontado por Hirschl34 como TP

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transição para

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31

VIEIRA, op. cit.

32

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33

VIEIRA, José Ribas. Saídas institucionais ou a força do processo democrático na prevalência da constituição? Direito Administrativo em Debate. Rio de Janeiro, fev. 2009. Disponível em: www.direitoadministrativoemdebate.wordpress.com. Acesso em: 21 ago. 2011. UT

405

uma Juristocracia, sinalizando, assim, para uma postura de Supremacia Judicial. Em consideração a esta perspectiva, pode se observar na abordagem pautada pela Teoria Constitucional e pelo campo das Ciências Políticas que ocorrera uma significativa mudança de paradigmas teórico-constitucionais, podendo se destacar a transição da tradicional tensão entre democracia e constitucionalismo para o estabelecimento de uma nova linha de tensão, agora evidenciada entre Poderes35, atrelada à já propalada crise da Teoria da Separação de Poderes. TP

PT

Esta nova realidade jurídica aponta, portanto, para uma instabilidade institucional, bem como para um inexorável movimento de oscilação do pêndulo entre o direito e a política: da inicial autonomia absoluta, passando pelo enlace entre o direito e a política promovido, especialmente pela constituição36 e alcançando a quase superação da política pelo direito. TP

PT

3. Teorias Dialógicas e o Constitucionalismo Cooperativo: em busca do equilíbrio entre o direito e a política A literatura corrente sobre o fenômeno constitucional da judicialização da política apresenta grande contribuição para compreensão da realidade jurídica brasileira, contudo, na maior parte das vezes, os estudos seguem uma linha de argumentação linear, restando o debate proposto limitado. Os clássicos impasses teóricos no sentido de questionar a necessidade de um “guardião da constituição” ou a cargo de quem ficaria esta atribuição; ou ainda sobre a (in)suficiência de legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional e, por fim, sobre a superação ou não dos postulados kelsenianos do papel do Poder Judiciário como mero legislador negativo, parecem ainda externar uma excessiva pretensão autopoiética do direito37-38. TP

PT

T

TP

Assim, em contraponto ao pensamento constitucionalista convencional, parecem aflorar correntes que buscam superar as radicalizações dualistas, personificadas em Dworkin e Waldron. Neste sentido, a postura epistemológica ora pretendida terá por base a análise das conseqüências do fenômeno da judicialização da política, a partir de uma abordagem político-institucional, sob um 34

TU

HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo FGV Direito Rio, Volume 251, p. 139, mai/ago 2009. Disponível em: www.direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/RDA%20251.pdf. Acesso em: 18 ago. 2011. UT

35

CARVALHO, Ernani Rodrigues. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. In: Revista de Sociologia e Política, n° 23, p. 115-126, nov. 2004. 36

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UT

37 SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo FGV Direito RIO, Vol. 250 – jan/abr. 2009. Disponível em: www.direito.fgv.br/diretorio.fgv.br/files/RDA%20250.pdf. Acesso em: 18 ago. 2011. TU

UT

38

CARVALHO, Flávia Martins; VIEIRA, José Ribas; RÉ, Mônica Campos. As teorias dialógicas e a democracia deliberativa diante da representação argumentativa do Supremo Tribunal Federal. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 5, p. 81-92, out. 2009. Disponível em: www.reid.org.br/arquivos/00000120-reid-5-06-flaviamartins.pdf. Acesso em: 17 ago. 2011. TU

UT

406

olhar dialógico, ou seja, que parte da perspectiva da construção de mecanismos de “diálogos entre Poderes”, inseridos em um marco teórico fundado na Democracia Deliberativa39. TP

A

relevância

da

reflexão

ora

proposta

acerca

das

Teorias

PT

Dialógicas

e

do

Constitucionalismo Cooperativo parte de uma conjuntura de pluralismo político marcante na sociedade contemporânea, a qual demandam uma flexibilização da noção de supremacia judicial. Estudos nesta linha de pensamento possibilitam a rediscussão do papel da Constituição, apontando para a necessidade de rearranjo da arquitetura institucional em busca de uma configuração adequada para as instituições democráticas, a partir da superação da tradicional concepção da relação entre o direito e a política e da constituição de um processo políticodecisório estável, simétrico e menos ativista por parte de um dos sujeitos constitucionais. A partir do cenário delineado e da reflexão crítica acerca do modelo vigente de jurisdição constitucional no Brasil, baseado na supremacia do judiciário e, mais recentemente, na postura ativista do STF, observa-se que o estabelecimento do equilíbrio da relação entre o direito e a política passa pelo redimensionamento das relações inter-poderes. Desta feita, reafirma-se a necessidade de superação dos velhos dilemas dicotômicos já incessantemente debatidos pela doutrina, tais como o da supremacia do Legislativo vs. supremacia do Judiciário, fazendo-se relevante uma reflexão sobre o papel e a configuração dos novos desenhos institucionais, bem como, nas palavras de Vieira40 e de Valle & Silva41, da TP

PT

TP

PT

construção de mecanismos que possam constituir alternativas à mencionada dicotomia, bem como às abruptas oscilações, permitindo a contribuição de outras esferas – seja de poder político organizado, seja da sociedade. Neste sentido, Carvalho42 propõe a constituição de uma nova arquitetura institucional que TP

PT

possui como pano de fundo o redimensionamento do desenho institucional do Estado brasileiro, pressupondo-se não mais a centralidade do debate teórico na figura de um ou outro titular, mas sim, o reconhecimento de que nenhum dos sujeitos constitucionais de poder se revela, por si só, apto a solucionar os profundos dissensos apresentados neste cenário. Aponta-se, portanto, para a

39

SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo FGV Direito RIO, Vol. 250 – jan/abr. 2009. Disponível em: www.direito.fgv.br/diretorio.fgv.br/files/RDA%20250.pdf. Acesso em: 18 ago. 2011. TU

UT

40

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VIEIRA, José Ribas. Saídas institucionais ou a força do processo democrático na prevalência da constituição? Direito Administrativo em Debate. Rio de Janeiro, fev. 2009. Disponível em: www.direitoadministrativoemdebate.wordpress.com. Acesso em: 21 ago. 2011. UT

41

TU

VALLE, Vanice Regina Lírio & SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo cooperativo ou supremacia do judiciário? Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, nov. 2009. Disponível em: www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2209.pdf. Acesso em 21 ago. 2011. UT

42

CARVALHO, Ernani Rodrigues. Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem. In: Revista de Sociologia e Política, n° 23, p. 115-126, nov.2004.

407

necessidade de discussão de um novo arranjo nas relações institucionais entre os Poderes e de uma maior participação da Sociedade Civil no processo político-decisório43. TP

PT

Considerando a implantação de um sistema fraco de controle de constitucionalidade (weak-form judicial review), sob a premissa de que a supremacia há de residir nos direitos constitucionalmente assegurados e não na jurisdição constitucional, as Teorias Dialógicas aparecem como vetor fundamental para o restabelecimento do equilíbrio entre os poderes políticos. Esta visão também descaracteriza o binômio Jurisdição Constitucional-Supremacia do Judiciário, na perspectiva de que a construção do sentido constitucional exige uma análise dialética44. TP

PT

Assim sendo, as Teorias do Diálogo Institucional, também conhecidas como Teorias Dialógicas e o Constitucionalismo Cooperativo, ainda segundo Valle & Silva, identificam-se com a seguinte concepção: Os grandes conflitos relacionados a direitos serão melhor decididos num ambiente que se beneficie da visão pluralista dos distintos atores envolvidos na importante tarefa de proteção a direitos fundamentais e da constituição45. TP

PT

Desta feita, de acordo com as autoras supracitadas, na lógica do Constitucionalismo Cooperativo, a garantia de direitos não se volta como melhor opção para uma repartição de papéis estática, mas ao contrário: A efetividade de direitos estará melhor atendida por uma fórmula institucional que, a partir do reconhecimento da sua complexidade e multiplicidade, permite sucessivas acomodações em que, à vista dos limites intrínsecos de um ou outro poder, permita, ora precedência em favor do legislativo, ora a supremacia judiciária. O jogo é de busca permanente do protagonista mais adequado, tendo em conta as funções originalmente postas a cada qual dos poderes, conforme o conteúdo do direito em discussão46. TP

PT

Verifica-se, assim, que o novo paradigma em questão além de promover uma aproximação entre o discurso jurídico e o discurso político, defende a adoção de uma postura mais cooperativa por parte dos Poderes constitucionais, no que concerne ao estabelecimento do significado dos direitos constitucionais47. TP

PT

43

SILVA, Cecília de Almeida; MOURA, Francisco; BERMAN, José Guilherme; VIEIRA, José Ribas; TAVARES, Rodrigo de Souza; VALLE, Vanice Regina Lírio. Diálogos institucionais e ativismo. 1°. Ed. Curitiba: Juruá, p. 2010 44

SILVA et. al., op cit.

45

TU

VALLE, Vanice Regina Lírio & SILVA, Cecília de Almeida. Constitucionalismo cooperativo ou supremacia do judiciário? Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, nov. 2009. Disponível em: www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2209.pdf. Acesso em 21 ago. 2011. UT

46

VALLE, Vanice Regina Lírio & SILVA, Cecília de Almeida, op. cit.

47

LOIS, Cecília Caballero & COSTA E SILVA, Rafael Vasconcelos de Lima. Diálogos institucionais e democracia: novas configurações constitucionais para a proteção e guarda dos direitos nas sociedades pluralistas. In: Artur Stamford da Silva (Org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife, Ed. Universitária da UFPE, p. 303-329, 2011.

408

Todavia, para a existência de uma interação dialógica e cooperativa entre os diversos atores que assumem posições no processo político-democrático, observa-se que um cenário político-deliberativo se mostra mais apropriado48. Este entendimento também é compartilhado por TP

Neto TP

49 PT

PT

quando assevera que a proposta democrático-deliberativa deve prevalecer por melhor

permitir a cooperação democrática em contextos de desacordo moral e de pluralismo.

4. Conclusão Resta legítima a pretensão do direito de ser dotado de diferenciação funcional em relação aos demais subsistemas, incluindo a política, pois, certamente, são incontestáveis as peculiaridades operacionais de ambos. Em contrapartida, é com a mesma firmeza que assinalamos que a definição desta linha divisória nem sempre é nítida e imutável. Por outro lado, tanto o incremento da supremacia judicial como o anterior estágio de supremacia do parlamento revelam o quão preocupante se apresenta o cenário vivenciado pelas instituições político-jurídicas nos últimos duzentos anos. Deste modo, cada vez mais a opção por um ideal de diálogo institucional que iniba a postura de supremacia de quaisquer dos Poderes instituídos se faz necessário para uma distribuição equilibrada, descentralizada e democrática de poder. Neste sentido, a busca por um novo desenho institucional que evite a incessante oscilação entre posições binárias extremas no que pertine à relação entre o direito e a política constitui um caminho viável e legítimo a ser percorrido pelo constitucionalismo contemporâneo na concretização de direitos fundamentais.

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WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Resende; MELO, Manuel Palacios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

411

A objetivação do recurso extraordinário: o alargamento da influência política do Supremo Tribunal Federal enquanto expressão do processo de mutação constitucional Renato Dowsley de Morais1 P

P

Resumo

Abstract

Enquanto órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal sempre exerceu, concomitantemente com seu precípuo papel jurídico, inarredável função política. O incremento desta última – mormente em razão dos novos contornos atribuídos ao controle de constitucionalidade abstrato pela Constituição Federal 1988 e da postura cada vez mais proativa desta Corte –, associado às inovações legislativas no regramento do recurso extraordinário, notadamente o instituto da repercussão geral, conduzem à possibilidade de defesa da objetivação dos efeitos desse apelo extraordinário. Objetiva-se demonstrar que a ruptura do subjetivismo clássico que sempre informou a matéria dá lugar à possibilidade de investigação abstrata de constitucionalidade, em prol da manutenção da higidez da ordem jurídica constitucional. Inserido na teoria realeana, esse processo mutacional surge como expressão concreta do diálogo travado entre fatos e valores que, a partir do disciplinamento da repercussão geral, encontra chancela normativa e autoriza o afastamento da alegação de que a defesa desse processo de objetivação funda-se unicamente em um pragmatismo irresponsável, ameaçador da tripartição clássica de Poderes. Busca-se evidenciar que, na verdade, a negação do caráter substancial classicamente atribuído ao ato senatorial de extensão dos efeitos da decisão do STF importa, a rigor, no ponto final de um fenômeno já em trânsito, encarado, como regra, de modo pacífico pela doutrina e jurisprudência nacionais.

While major organ of the Brazilian Judiciary, the Supremo Tribunal Federal always practices, in conjunction with its main legal role, unwavering political function. The increase of this last – mainly because of the new contours assigned to abstract control of constitutionality by the Federal Constitution of 1988 and increasingly proactive stance of this Court –, associated with legislative innovations in the discipline of extraordinary appeal especially the institution of general repercussion, lead to the possibility of defending the objectification of the effects of this extraordinary appeal. The objective is to demonstrate that the disruption of subjectivism classic that always informed the matter gives rise to the possibility of abstract constitutional research for the sake of maintaining the healthiness of Constitution. Inserted in “realeana theory” this mutational process appears as a concrete expression of the dialogue between facts and values that, from the disciplining effect of general repercussion, found normative basis and authorizes the removal of the claim that the defense of objectification is based solely on irresponsible pragmatism, threatening the classical tripartition of Powers. The aim is to show that, indeed, the denial of a substantial character classically attributed to the act senatorial extending the effects of STF decision in matter, strictly speaking, the end point of a phenomenon already in transit, seen as a rule in a peaceful manner by national doctrine and jurisprudence.

Palavras-Chave: Jurisdição constitucional; Controle de constitucionalidade; Supremo Tribunal Federal; Recurso Extraordinário.

Keywords: Constitutional jurisdiction; Judicial review; Supremo Tribunal Federal; Recurso Extraordinário (extraordinary appeal).

1

Estudante de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), [email protected]

412

1. Dos contornos iniciais da problemática – a adoção à brasileira do modelo norteamericano de controle de constitucionalidade: uma introdução necessária A ideia de um controle de constitucionalidade difuso, realizado por qualquer órgão do poder Judiciário nasce em 1803, quando no caso Marbury v. Madison, a Suprema Corte norteamericana afixa no plano jurisprudencial o dogma da supremacia constitucional2-3-4. Dessarte, a P

P

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todo juiz passa a ser assegurada a prerrogativa de, no caso concreto, afastar a incidência de um dado dispositivo legal, desde que lhe pareça haver choque entre a norma a ser aplicada e a Constituição5. P

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Assim é que, na realidade norte-americana, uma vez reconhecida a inconstitucionalidade de um dano enunciado normativo o magistrado declara esta condição. É como se então a lei jamais houvesse possuído eficácia jurídica6. Mais ainda: a sentença, dotada de eficácia ex tunc, P

P

limita-se a atestar a realidade de que a norma impugnada jamais existiu, sequer tendo sido objeto de votação7. P

P

Nesse cenário, situa-se à cúspide a Suprema Corte, a quem cabe a palavra derradeira sobre a matéria constitucional discutida no caso concreto e a cujas decisões atribui-se força vinculante, por força do princípio do stare decisis8. P

P

2

Com efeito, Jorge Miranda lembra (Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007), que não existe fundamento constitucional a amparar esse instituto de controle normativo, embora sólidas razões jurídicas tenham sido invocadas desde o início para sustentá-lo. Aponta elas o mestre português: (i) o poder legislativo é um poder constituído, que não pode ser exercido em contrário com a Constituição, obra do poder constituinte; (ii) os tribunais só podem aplicar leis válidas e são inválidas as leis contrárias à Constituição – que é lei superior a todas as outras lei.

3

O seguinte excerto foi extraído do voto do Chief Justice Marshall proferido por ocasião do célebre julgamento: It is emphatically the province and the duty of the Judicial Department to say what the law is. Those who apply the rule to particular cases, must of necessity expound and interpret the rule. (...) So if a law be in oppositon to the constitution: if both the law and the constitution apply to a particular case, so that the court must either decide that case conformably to the law, disregarding the constitution; or conformably to the constitution, disregarding the law; the court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty. If then the courts are to regard the constitution; and the constitution is superior to any ordinary act of the legislature; the consitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply. (Disponível em: , acesso em 13.11.2011) U

U

4

“O que levou o juiz da Corte Suprema a elevar ao nível maior a Constituição, e estabelecer que ela era superior a qualquer outra norma - inclusive aos tratados e às leis, que o texto assevera, todas representam a ‘supreme law of the Land’, e a criar o instituto do controle judicial da inconstitucionalidade, e a indicar qual o órgão competente para o exercício dessa função controladora, foi a decisão política fundamental subjacente: a supremacia da Constituição e o poder de controle exercido por um dos órgãos do Poder Judiciário federal, o que era expressão da supremacia política da União Federal, contrastante com a soberania dos Estados, e, ainda, com a mera união confederal desses Estados soberanos.” (VILANOVA, Lourival. Escritos jurídicos e filosóficos. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 384) 5

DANTAS, Ivo. O valor da constituição – Do controle de constitucionalidade como garantida da supralegalidade constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

6

BITTENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2ª ed. Brasília: Ministério da Justiça, 1997.

7

MIRANDA, 2007.

8

“Na matriz inglesa, como na sua prole, inclusive nos Estados Unidos, é dever maior dos juízes stare decisis et non quieta movere. A sentença há de estar com as coisas decididas e não mover as quietas. Não deve mexer no que está pacífico. Sob esse princípio de jurisprudência se acomoda a justiça constitucional norte-americana, dando estabilidade ao controle difuso.” (BARROS, Sérgio Resende de. Constituição, art. 52, inciso X: reversibilidade? Revista de Informação Legislativa, v. 40, n. 158, p. 233-239, abr./jun. de 2003)

413

Sobreleva-se, com isso, o caráter político da atividade jurisdicional exercida pelo Tribunal. Vale dizer, a aceitação do instituto do precedente vinculante aponta, reflexamente, à ideia de uma regra tácita que investiu o juiz da competência para criação normativa diante de uma situação fática que se repete, como conduta costumeira. Na realidade brasileira, onde a influência norte-americana foi sentida sobremaneira9, “o P

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controle de constitucionalidade existe, em molde incidental, desde a primeira Constituição republicana,de 1891”10. A rigor, podemos admitir que mesmo antes disso, quando ainda P

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experimentávamos os ditames da Constituição provisória de 1890 já vislumbrávamos os contornos iniciais de um sistema de controle que seria reafirmado logo em seguida na Constituição de 189111. P

P

Deveras, a redação do art. 58, §1º, ‘b’, desta Carta provisória preceituava que, Art. 58................................................................................................................. §1º. Das sentenças da justiça dos Estados em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: ............................................................................................................................ b) quando se contestar a validade de leis ou atos dos governos dos Estados em face da Constituição ou das leis federais e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos os atos, ou leis impugnados12. P

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A possibilidade de extensão dos efeitos da decisão proferida pelo Poder Judiciário que reconheceu, in concreto, a inconstitucionalidade de uma dada norma, no entanto, somente seria positivada com o advento da Constituição de 1934, que em seu art. 91, V, atribuiu ao Senado Federal a competência de suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei, ato, deliberação ou regulamento que tivessem sido declarados inconstitucionais13. P

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Com isso, atendeu-se à época à preocupação de evitar o surgimento de um “governo dos juízes”. O Senado atuaria, então, como um elemento legitimador daquela ordem que se esforçava

9

“A exemplo do que ocorria com o writ of error do direito americano, a Constituição Federal de 1891 mencionava que o recurso extraordinário seria cabível quando se questionasse sobre a validade ou incidência de tratados ou leis federais, e a decisão dos tribunais dos Estados fosse contra elas. Incorporou, assim, o texto constitucional, concepção corrente no direito norte-americano e no direito argentino, embora nesses países o recurso extraordinário não constasse nas respectivas Constituições.” (DANTAS, Ivo. Da repercussão geral como pressuposto específico e como filtro ou barreira de qualificação do recurso extraordinário. Revista Jus Vigilantibus, Sexta-feira, 3 de julho de 2009. Disponível em: , acesso em 14 de novembro de 2011) 10

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista da Escola Nacional da Magistratura, Brasilia, v. 1, n. 2, p. 26/72, out. 2006. Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2011.

11

Cf. ALENCAR, Ana Valderez Ayres Neves de. A competência do Senado Federal para suspender a execução dos atos declarados inconstitucionais. Revista de Informação Legislativa, a. 15, n. 57, p. 223-328, jan.-mar. 1978. 12

ALENCAR, 1978.

13

BARROS, 2003; AGRA, Walber de Moura. Aspectos controvertidos do controle de constitucionalidade. Salvador: JusPodivm, 2008.

414

para manter a fiscalização incidental, competência do Poder Judiciário, sem amesquinhar o Legislativo14. P

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As raízes de inspiração norte-americana sofreram, por essa razão, severas modificações. Quer-se dizer, importamos a sistemática da investigação difusa de constitucionalidade, mas não a força vinculante das decisões, de modo que o legislador constitucional se viu compelido a buscar no ente senatorial o veículo capaz de legitimar a atribuição de eficácia erga omnes à decisão a princípio concreta. Na prática, então, o acórdão do Supremo Tribunal esterilizava apenas virtualmente a norma, vinculando, quando muito, a própria Corte na análise de situações semelhantes no futuro. Aqueles que não integrassem a contenda e, portanto, não fossem alcançados pelo comando sentencial teriam de ingressar em juízo reclamando igual prestação jurisdicional15. P

P

A não ser, é claro, que, tomando conhecimento da decisão do STF, o Senado resolvesse ampliar o alcance daquela decisão proferida inter partes, lembrando que esse juízo – salvo pontuais vozes dissonantes – sempre foi visto tradicionalmente como ato discricionário do órgão Legislativo, eis que relacionados a caracteres de ordem política e social, descabendo cogitar, portanto, acerca de uma eventual vinculação à decisão do Tribunal16. P

P

Quando em 1988 a Constituição restaurasse a ordem democrática no país essa tradição seria mantida. Ou seja, os limites subjetivos da decisão de inconstitucionalidade concreta somente poderiam ser superados se o Senado suspendesse a execução do enunciado declarado inconstitucional por decisão definitiva do STF (art. 52, X). Paralelamente a isso, contudo, o ordenamento brasileiro assiste a uma guinada radical na disciplina normativa do controle de constitucionalidade, na medida em que passa a vislumbrar a ampliação inédita do rol de legitimados à propositura da ação direta, de caráter abstrato e cujas decisões são dotadas, por isso mesmo, de eficácia geral (art. 102, §2º, CF). Amplia-se, necessariamente, diante dessa nova realidade, a influência política do Supremo Tribunal, que passa, lentamente – mormente em razão da abiatrofia do Legislativo –, a ser o palco de embates políticos cada vez mais relevantes, num processo que Bruno Galindo chama de “judicialização da política”17. P

P

14

CASTRO, João Bosco Marcial de. O controle de constitucionalidade das leis e a intervenção do Senado Federal. Porto Alegre: Nuria Fabris Editora, 2008.

15

BROSSARD, Paulo. O senado e as leis inconstitucionais. Data de publicação: Abr-1976. Fonte: Revista de Informação Legislativa, v. 13, nº. 50, p. 55-64. 16

Cf. MARINHO, Josaphat. O art. 64 da Constituição e o papel do Senado. Data de publicação: Jun-1964. Fonte: revista de informação legislativa. V.1, n. 2, p. 5-17. 17

Princípio da legalidade oblíqua e súmula vinculante: a atuação legislativa da jurisdição constitucional nos 20 anos da Constituição de 1988. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Coord.). Princípio da legalidade – Da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

415

Ora, mas se partirmos da premissa de que as decisões do Poder Judiciário representam, em maior ou menor medida, manifestações de índole política (não partidária) do Estado18, temos P

P

de reconhecer que a ampliação do rol de legitimados à propositura da ação direta – capaz de motivar, na prática, inclusive a afirmação de um novo paradigma19 – implica no reconhecimento P

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tácito de uma revisão legislativa do papel tradicionalmente atribuído a Corte Suprema do país20. P

P

Afinal, o STF “é a nação, através dele, em sua autoconsciência jurídica, como exigência de direito justo, de justa participação do que a cada um cabe, e de justo exercício do Poder”21. P

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2. Os fundamentos da teoria clássica sob uma ótica eminentemente processual Imaginemos que ‘A’ ingressa em juízo pleiteando que o Congresso Nacional seja compelido a prestar-lhe as informações requisitadas na via administrativa com o fito de instruir futura ação popular contra um dos parlamentares da Casa. Pensemos, ainda, que o fundamento jurídico de sua pretensão repousa no pedido de declaração de inconstitucionalidade de um dado dispositivo normativo que, hipoteticamente, institui a prerrogativa de o ente administrativo recusar o oferecimento de informações dessa natureza, circunstância que importa em violação indevida ao preceito fundamental inserto no art. 5º, XXXIII, da CF. Assim é que, nesse caso, a questão da inconstitucionalidade é ventilada em juízo de modo apenas incidental. Vale dizer, quando formula pretensão perante o Judiciário o demandante ‘A’ não pretende, prima facie, a declaração de inconstitucionalidade da norma. Ao contrário, “nas ações relacionadas ao controle difuso de constitucionalidade das leis, a inconstitucionalidade aparece como questão prejudicial”22. P

P

Pretende-se, no exemplo citado, a condenação do ente público a prestar as informações solicitadas anteriormente na via administrativa, só que isso pressupõe um juízo positivo acerca da ventilada inconstitucionalidade. Ora, mas se esta questão representa, tão somente, elemento da argumentação do autor e não objeto de seu pedido propriamente dito, forçoso é reconhecer que a

18

LIMA, Francisco Gerson Marques de. O STF na crise institucional brasileira. São Paulo: Malheiros, 2009.

19

“(...) Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade” (MENDES, Gilmar Ferreira. O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um caso clássico de mutação constitucional. Data da publicação: Abr-2004. Fonte: Revista de Informação Legislativa, v. 41, n. 162, p. 158) 20

Sobre o caráter político da atividade jurisdicional de investigação de constitucionalidade, dentre outros: APPIO, Eduardo. A Teoria da Inconstitucionalidade Induzida. Disponível em: . Acesso em: 23.08.2011; SANTOS, Gustavo Ferreira. Jurisdição constitucional e separação de poderes: limites e legitimidade do controle da constitucionalidade das leis. Revista da Pós-Graduação em Direito da UNICAP, Recife, v. 1, n. 1, p. 61-80, Jan-Dez/2001;2002. 21

VILANOVA, 2003, p. 398.

22

PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. A classificação das ações de Pontes de Miranda e a eficácia preponderante da decisão de inconstitucionalidade.In: COSTA, Eduardo José da Fonseca; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa (coord.). Teoria Quinária da Ação. Salvador: Editora JusPodivm, 2010, p. 518.

416

sentença prolatada pelo Juízo apreciará essa parcela da argumentação sem inseri-la, no entanto, na parte dispositiva da sentença. Com efeito, A questão prejudicial abordada e julgada em um decisum só fará coisa julgada se for colocada principaliter tantum – já na própria petição inicial ou por meio de ação declaratória incidental (art. 325 do CPC). Se for tratada como simples fundamento na demanda, incidenter tantum – em outras palavras, como questão incidental –, a solução da questão prejudicial não terá aptidão para ser acobertada pela coisa julgada material (art. 469, III, CPC)23. P

P

Isso porque, estando o juiz vinculado aos limites objetivos da lide fixados pela parte autora (art. 468 do CPC), há se reconhecer que a autoridade da coisa julgada somente está autorizada a recair sobre a parte da decisão que efetivamente julga o pedido. Além do mais, o art. 469, I, do CPC é claro ao preceituar que os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, não fazem coisa julgada. Classicamente, então, se o STF condenasse o Congresso Nacional a prestar as informações requeridas, após declarar a inconstitucionalidade do enunciado normativo que respaldou a negativa do ente público, os efeitos dessa decisão vinculariam apenas os litigantes. Ou seja, a Constituição teria sido defendida na hipótese, mas olvidada em todos os outros casos24. Essa, a rigor, a tese amplamente aceita pela doutrina e jurisprudência pátrias, acolhida P

P

por nosso direito positivo na bem elaborada lei nº. 221, de 20 de novembro de 189425. P

P

Ocorre, no entanto, que modificações instituídas no regramento do recurso extraordinário parecem apontar para a instigação do debate se, de fato, esse alcance subjetivo tradicionalmente imprimido à decisão proferida pelo Supremo Tribunal no controle difuso permanece intocável em nosso ordenamento. Referimo-nos à figura da repercussão geral26-27. P

P

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23

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil. V. 2. 4 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2009, p. 418.

24

ALENCAR, 1978.

25

BITTENCOURT, 1997.

26

Para além do paralelo sempre traçado entre repercussão geral e a antiga arguição de relevância (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. O controle de constitucionalidade das leis e a emenda constitucional n. 45/2004. In: DIDIER JR., Fredie; BRITO, Edvaldo; BAHIA, Saulo José Casali (coord.). Reforma do Judiciário. São Paulo: Saraiva, 2006; DANTAS, Ivo. Novo processo constitucional brasileiro. Curitiba: Juruá, 2010; DIDIER JR., Fredie. Transformações do recurso extraordinário. In: DIDIER JR., Fredie; BRITO, Edvaldo; BAHIA, Saulo J. Cassali (Coord.). Reforma do Judiciário. São Paulo:Saraiva, 2006), insta reconhecer que esse instituto guarda relação de similitude palpável com o writ of certiorari do direito norte-americano. Na realidade de nossos vizinhos do norte, esse o instrumento que permite o acesso das partes à Suprema Corte. Assim é que “as partes requerem um writ of certiorari, por intermédio do qual pleiteiam o direito de que a Corte Suprema aprecie e julgue a questão. Ocorre que este tribunal superior tem o poder discricionário de decidir se vai examinar o recurso ou não, pela ‘decisão de quatro’, ou seja, é necessária a anuência de no mínimo quatro Justices em apreciar o caso. Tal decisão não precisa ser fundamentada. Se o certiorari for negado, a decisão da instância inferior é mantida, e as partes não poderão requerer o writ novamente.” (REIS, Maria do Carmo Guerrieri Saboya. Anotações sobre o Poder Judiciário americano. Revista do Tribunal Federal da 1ª Região, Brasília, v. 8, n. 1, p. 37-52, jan./mar. 1996). 27 Ampliando ainda mais o espectro de análise, Ulisses Schwarz Viana em interessante estudo (Repercussão geral sob a ótica dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2010) aponta os pontos de aproximação e distanciamento

417

A EC n. 45/2004, inovando em matéria processual, instituiu novo requisito intrínseco de admissibilidade recursal, ao prever no §3º do art. 102 que no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusálo pela manifestação de dois terços de seus membros. Assim, “não havendo repercussão geral, não existe poder de recorrer ao Supremo Tribunal Federal”28. P

P

A fim de complementar o dispositivo constitucional, a Lei n. 11.418/06 firmou, em linhas gerais, que para efeito de repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa (art. 543-A, §1º, do CPC). Dessarte, não basta que a matéria ventilada no recurso seja de natureza constitucional, “sendo necessário que esta matéria traga uma abrangência larga, atingindo interesses que vão além daqueles que pertencem às partes da relação processual”29. P

P

Essa transcendência levada ao STF pode ser caracterizada tanto numa perspectiva qualitativa como quantitativa. No primeiro caso, discute-se a importância da questão debatida para a sistematização e desenvolvimento do direito; na segunda hipótese, o número de pessoas suscetíveis de serem alcançadas pela decisão do Tribunal30. P

P

Começa a se desenhar, assim, um cenário no mínimo paradoxal: enquanto se prevê, como pressuposto à análise do recurso, requisito relativo à dimensão transcendente da discussão travada, diz-se – com um certo quê de contradição – que, ao final, quando proferida a decisão para o caso cuja repercussão geral foi conhecida, esta valerá apenas para as partes litigantes. É bem verdade que essa inovação representa, claramente, uma tentativa do legislador de reduzir a sobrecarga de processos em tramitação no Pretório Excelso31, mas isso não tem o P

P

condão de afastar os contornos nitidamente objetivos atribuídos à disciplina do controle difuso. Existe, ainda, outro ponto digno de nota. Retomemos o exemplo inicialmente proposto, dando-lhe, dessa vez, traços distintos. Suponhamos, então, que milhares de outros cidadãos brasileiros ingressaram em juízo aduzindo pretensão idêntica à de ‘A’, com fundamento também no pedido de declaração de inconstitucionalidade de norma federal. E que, surpreendentemente,

dos institutos da repercussão geral e de seus “pares” no direito norte-americano, alemão e espanhol (writ of certiorari, Verfassungsbeschwerde e recurso de amparo, respectivamente) 28

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 33.

29 30

DANTAS, 2009. MARINONI; MITIDIERO, 2008.

31

Cf. PIMENTA, 2006. Também assim, BRAWERMAN, André. Recurso extraordinário, repercussão geral e a advocacia pública. Revista brasileira de direito constitucional, São Paulo, v. 5, n. 10, p.143-160, jul./dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 4 dez. 2009.

418

quase a totalidade das pretensões tenham percorrido trajetória idêntica e sido remetidas ao STF para conhecimento de pretensão recursal extraordinária. Erigido à condição de paradigma, o juízo acerca da existência (ou não) de repercussão geral no recurso extraordinário de ‘A’ será capaz de decidir o futuro de todos os outros apelos, sobrestados na origem, por força do permissivo constante no art. 543-B, §1º, do CPC. Desse modo, negada a existência de repercussão geral os recursos detidos considerar-seão automaticamente inadmitidos (art. 543-B, §2º, CPC). Eis o julgamento por amostragem32. Ao P

reverso, se reconhecidos efeitos transcendentes à discussão ventilada no recurso-modelo

P

P

33 P

e,

consequentemente, julgado seu mérito, os demais serão apreciados pelos Tribunais de origem, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se (art. 543-B, §3º, CPC). Afinal, mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada (art. 543, §4º, CPC). Ademais, o exame do Plenário do STF sobre a repercussão geral de determinada questão “vincula os demais órgãos do tribunal e dispensa, inclusive, que se remeta o tema a um novo exame do Plenário, em recurso extraordinário que verse sobre a questão cuja amplitude da repercussão já tenha sido examinada”34. P

P

Nota-se facilmente, então, que os contornos puramente subjetivos da lide são fragmentados, não apenas do ponto de vista estritamente formal – no tocante à inadmissão do recurso por inexistência de repercussão geral –, mas sobretudo quando admitida a reforma da decisão pelos Tribunais de origem ou liminarmente pelo STF, com base no mérito discutido no recurso paradigma. Enquanto pressuposto específico de cabimento do recurso extraordinário35, portanto, a P

P

repercussão geral termina representando inegável contributo à temática da objetivação dos efeitos do recurso extraordinário, constituindo, o ponto de partida – do ponto de vista do direito positivo – à defesa da tese de uma real eficácia geral das decisões proferidas in concreto pelo STF no controle difuso36. P

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32

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil – meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. V. 3. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2009. 33 Algo interessante é que “as alegações da parte interessada como exigência de admissibilidade do recurso não vincula os ministros do Supremo Tribunal Federal. Não se aplicam as regras dos arts. 2º, 128 e 460 do CPC. Os ministros do STF podem decidir fora da causa de pedir. Situação semelhante acontece apenas no controle de constitucionalidade concentrado. Mais uma nuance que demonstra que existe uma tentativa de objetivação ou abstrativização do recurso extraordinário.” (CHAVES, Charley Teixeira. Repercussão geral: a objetivação do recurso extraordinário. De Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, n. 15, jul. 2010. Disponível em: . Acesso em: 8 fev. 2011) 34

DIDIER JR., 2006, p. 130.

35

DANTAS, Ivo. Novo processo constitucional brasileiro. Curitiba: Juruá, 2010.

36

Apontando a relevância da repercussão geral para defesa dessa tese de objetivação: CHAVES, 2010; DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Artigo 102, parágrafo terceiro. In: BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge. AGRA, Walber de Moura (ccord.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

419

3. Sobre a nulidade no direito constitucional brasileiro e algumas inconsistências Esse tópico apartado justifica-se na medida em que põe ainda mais em evidência a dimensão constitucional da problemática, sem, no entanto, olvidar o caráter processual que lhe é inerente. Quando tratamos da problemática da (in)constitucionalidade dizemos acerca de uma falha sistêmica, de uma incompatibilidade entre enunciados constitucional e infraconstitucional, abordada do ponto de vista interno37. Nesse cenário, "define-se inconstitucional uma lei cujo P

P

conteúdo ou cuja forma contrapõe-se, expressa ou implicitamente, ao conteúdo de dispositivos da Constituição"38. P

P

Tradicionalmente, doutrina e jurisprudência pátrias atribuem à norma inconstitucional a pecha de nulidade39. Isso porque, novamente influenciadas pela visão norte-americana, sustentam P

P

que o enunciado inconstitucional “is to be regarded as having never, at any time, been possessed of any legal force”40. P

P

Ocorre, como já mencionado, que na sistemática do controle difuso essa declaração de nulidade fica restrita, em princípio, apenas às partes litigantes, sendo facultado ao Senado Federal a extensão dos efeitos dessa decisão, atribuindo-lhe ou não, conforme juízo discricionário seu, efeitos erga omnes. Temos, então, que um enunciado normativo é declarado inconstitucional e, portanto nulo, por decisão definitiva de mérito do STF – reconhecemos, tacitamente e por coerência lógica, que essa nulidade representa a hipótese mais grave de invalidade, vez que significa uma afronta à unidade de todo o ordenamento, cujo ápice é representado pela Constituição41-42 –, mas deixamos P

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que a não-aplicação geral da norma dependa exclusivamente da vontade de um órgão político43 e P

P

não do órgão judicial a quem incumbe a guarda da Constituição44 (art. 102, caput). P

P

37

NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988.

38

NEVES, 1988, p. 73.

39

AGRA, 2008; MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996; BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006; BARBOSA, Ruy. Os atos inconstitucionaes do Congresso e do Executivo ante a justiça federal, 1893. 40

BITTENCOURT, 1997, p. 141.

41

FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Efeitos da declaração de inconstitucionalidade. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. 42

“A lógica é irrefutável. Se a Constituição é a lei suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela incompatível é violar sua supremacia. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de vigência da Constituição naqueles mesmo período, em relação àquela matéria. A teoria constitucional não poderia conviver com essa contradição sem sacrificar o postulado sobre o qual se assenta. Daí porque a inconstitucionalidade deve ser tida como uma forma de nulidade, conceito que denuncia o vício de origem e a impossibilidade de convalidação do ato” (BARROSO, 2006, p. 16) 43

“O Senado, na etapa em que lhe compete atuar, forma livremente o seu convencimento político sobre a conveniência e oportunidade de estender ou não, a todos e para o futuro, aquilo que o Supremo declarou com eficácia restrita às partes” (SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. A evolução do controle de constitucionalidade e a competência do senado federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992, p. 110) 44

MENDES, 2004.

420

Com efeito, "tal fato reforça a ideia de que, embora tecêssemos loas à teoria da nulidade da lei inconstitucional, consolidávamos institutos que iam de encontro à sua implementação"45. P

P

Afigurar-se-ia mais consentâneo com as premissas fixadas a nível doutrinário e jurisprudencial advogar a tese de não-atribuição de efeito substantivo ao ato senatorial, ao invés de conceder-lhe a prerrogativa de emprestar eficácia erga omnes à decisão do STF46. P

P

A decisão do Senado também não parece ser capaz de se adaptar a outras particularidades

(rectius,

circunstâncias)

que

envolvem

a

investigação

acerca

da

inconstitucionalidade normativa no direito brasileiro. Basta que pensemos na temática da declaração de inconstitucionalidade sem redução do texto e da interpretação conforme à Constituição. No primeiro caso, a lei não tem sua eficácia jurídica negada, mas determinada hipótese de incidência é afastada47, permanecendo íntegro o texto normativo. Pretende-se, com isso, evitar P

P

lacunas jurídicas decorrentes da declaração de inconstitucionalidade, que podem gerar uma anomia no ordenamento48. P

P

Na interpretação conforme à Constituição49, partindo-se do pressuposto inarredável de que P

P

determinado preceito constitucional comporta duas ou mais interpretações, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela consentânea com os princípios e regras constantes na Lei Fundamental50. Opera-se, dessa maneira, uma redução P

P

efetiva no âmbito possível de aplicação da norma, a partir desse corte hermenêutico51. P

P

Ocorre que, em ambos os casos, não se verifica a atuação do Senado. Isso porque, a rigor, a vigência da norma não foi afetada52 e, portanto, como só cabe cogitar da intervenção P

P

senatorial para suspender a eficácia de lei declarada inconstitucional pelo STF – e que, portanto, teve sua hipótese de incidência normativa fulminada –, não há se falar em exercício de sua influência nessas duas hipóteses. Sobreleva-se, com isso, que se qualquer dessas formas de controle vier a ser exercida incidenter tantum, a despeito de inaugurar precedente hermenêutico de inquestionável relevância 45

MENDES, 2004, p. 160.

46

MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990.

47

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

48

AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

49

“(...) a interpretação conforme à Constituição não deve ser vista como um simples princípio de interpretação, mas sim como uma modalidade de decisão do controle de normas, equiparável a uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.” (MENDES, 1996, p. 267) Faz a mesma observação BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2009 50

BARROSO, 2009.

51

Embora seja possível visualizar uma aproximação deste instituto com o da declaração de nulidade sem redução do texto, eles, a rigor, não se confundem. Isso porque, neste último caso, existe uma parcela da norma efetivamente inconstitucional que é declarada nula, inobstante a redação do dispositivo seja mantida intacta. Já na interpretação conforme a constituição apenas se afasta uma das interpretações capaz de tornar nulo o preceito constitucional.

52

BARROSO, 2006.

421

– eis que afasta eventuais dúvidas, incertezas, na aplicação do preceito normativo efetiva ou aparentemente em confronto com a Constituição –, terá sua eficácia restrita às partes litigantes. Imaginemos, então, que a dúvida dirimida pelo STF, em uma dessas hipóteses, diga acerca de matéria tributária na qual a imensa maioria dos jurisdicionados se vê atingida diretamente. Para os adeptos do pensamento tradicional, toda essa coletividade terá de aduzir em juízo pretensão idêntica à do caso paradigma e eventualmente percorrer todo o trajeto recursal até o STF para, ao final, ter certificado aquilo que já o fora há algum tempo! Afinal, mesmo para os que advogam a necessidade da interferência do Senado para legitimar a extensão dos efeitos da decisão proferida em sede de controle difuso, como forma de manutenção da tripartição de Poderes, ver-se-iam impossibilitados de aduzir tese no sentido de lançar ao ente Legislativo o juízo discricionário de saber se a interpretação dada pelo STF deve ser estendida a todos.

4. Da objetivação: uma proposta de revisão paradigmática As inovações legislativas – e reviravoltas jurisprudenciais – que tivemos oportunidade de ventilar até aqui (além de algumas outras que fugiram à dimensão que se pretendeu imprimir ao presente escrito) parecem apontar para o fato de que advogar em defesa de uma objetivação do recurso extraordinário não importa em enaltecer um pragmatismo irresponsável. Assim é que, não olvidando a relevância e o prestígio das opiniões em contrário53, passamos às últimas notas P

P

cabíveis por ora, devotando-as à defesa mais objetiva – com o perdão do trocadilho – de nosso posicionamento. Se partirmos da "fórmula realena", segundo a qual "o Direito é uma integração normativa de fatos segundo valores"54, somos conduzidos a pensar no direito enquanto realidade trivalente, P

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onde fatos, valores e normas dialetizam incessantemente55. P

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Nesse cenário ganha ainda maior relevo o afirmado por Marcelo Neves, para quem, (...) embora a inconstitucionalidade das leis (lato sensu) seja um problema de relação intra-sistemática imediata entre norma constitucional e norma infraconstitucional, abordado do ponto de vista interno, evidencia-se, numa perspectiva semiótica, que o seu tratamento e solução jurídicos são condicionados intensamente pelo contexto fático-social e pelo ideológico, em face das propriedades semânticas e pragmáticas da linguagem constitucional (...)56 P

53

Dentre outros, BARROS, 2003; DANTAS, 2010; CHAVES, 2010.

54

REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 119.

55

REALE, 1994.

56

NEVES, 1988, p. 73.

P

422

Assim é que, ao lançarmos ao debate a tese de mutação constitucional do alcance tradicionalmente atribuído ao art. 52, X, falamos, senão mais, em uma revisão hermenêutica a partir do diálogo da norma constitucional com fatos e valores sociais. Reconhecendo que no processo de gênese normativa intenções de valor várias incidem sobre uma mesma base fática, dando origem a diversas intenções normativas num diálogo onde, afinal, apenas uma destas se converte em norma jurídica em razão da interferência do Poder, há se reconhecer que esse argumento de autoridade legitimador das mudanças normativas jamais pode ser examinado de modo isolado – menos ainda ser reduzido à dicção literal do dispositivo legal, olvidando aqueles valores e valores pressupostos no processo de nomogênese. Quando, então, pensamos na disciplina do recurso extraordinário e nessa pretensa objetivação de seus efeitos, não podemos desvencilhar essa análise dos fatos e valores que instruem o instituto da repercussão geral. Daí porque pensamos que a revisão do paradigma subjetivo classicamente ínsito à disciplina recursal encontra, na repercussão geral, fundamento bastante plausível a amparar a defesa da tese de superação dos referidos limites subjetivos e, consequentemente, de uma legítima mutação constitucional. Afinal, se o legislador entende ser justo e razoável afixar como requisito recursal uma investigação prévia acerca da relevância social que a análise daquele recurso ostenta, com maior razão haver-se-ia de admitir que a decisão que aprecia a matéria – já reconhecidamente relevante – produza efeitos erga omnes. Soa como um contrassenso a ideia de filtrar os recursos socialmente relevantes, mas restringir sobremaneira seus efeitos. A regra parece ser a de que agora uma vez interposto o recurso extraordinário passa a se perquirir não apenas os interesses concretos de 'A' ou 'B', essa é apenas uma das faces da temática57. A outra diz acerca da defesa da própria higidez da ordem constitucional, nos moldes P

P

que o moderno direito espanhol vem atribuindo ao recurso de amparo58. P

P

Fixada essa premissa – de que o recurso extraordinário se presta também à defesa da ordem constitucional –, parece também coerente supor que, se em ambos os modelos de controle (difuso e concentrado) pretende-se salvaguardar a supremacia das normas constitucionais, não

57

VIANA, 2010.

58

Corrobora essa argumentação o excerto a seguir colacionado, pinçado do voto do Ministro Gilmar Mendes (Relator) no julgamento do RE 376852 MC/SC: “Esse novo modelo legal [referindo-se à Lei nº. 10.259/01] traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesses das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde). Nesse sentido, destaca-se a observação de Häberle segunda a qual “a função da Constituição na proteção dos direitos individuais (subjectivos) é apenas uma faceta do recurso de amparo”, dotado de uma “dupla função”, subjetiva e objetiva, “consistindo esta última em assegurar o Direito Constitucional objetivo” (Peter Häberle, O recurso de amparo no sistema germânico, Sub judice 20/21, 2001, p. 33 (49).”

423

haveria razão para atribuir às decisões que põem fim à discussão nesses dois casos cargas eficaciais tão distintas59. P

P

Finalmente, há se reconhecer que as razões do anacronismo da intervenção senatorial não se encerram aí. Note-se, ainda, que os novos contornos atribuídos à ação direta de inconstitucionalidade, lembrados no início deste trabalho, mormente no tocante à extensão do rol de legitimados à propositura, conduzem, inevitavelmente, à inferência de que o legislador pretendeu, de fato, atribuir novo caráter ao papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal na jurisdição constitucional brasileira60. P

P

Vale dizer, se ampliamos substancialmente o rol de legitimados a ajuizar investigação direta de inconstitucionalidade, dizemos, ainda implicitamente, que buscamos o fortalecimento de um novo modelo, onde o STF passa a ostentar caráter mais próximo de um Tribunal Constitucional, nos moldes europeus, do que de uma mera Corte de revisão. Assim é que, aceitando a premissa lançada por Francisco Fernández Segado61, P

P

concordamos que “não há como ser justificada, dentro da perspectiva evolutiva e operacional, a insistência na busca de conceitos importados puros de controles concentrado e difuso de constitucionalidade”62, de modo que a mutação que ora se ensaia no ordenamento brasileiro, P

P

longe de importar em afronta ao sistema de tripartição dos Poderes, representa o fortalecimento de construções doutrinárias e jurisprudenciais corajosas, na revisão das estruturas jurídicas, de modo a revisitá-las e adequá-las às aspirações sistêmicas. Cumpre, então, reconhecer que a eficácia geral da decisão do STF em sede de controle difuso independe da intervenção do Senado, cujo papel no sistema de controle brasileiro deve se limitar a conferir publicidade à decisão do Tribunal63, numa espécie de chancela política à P

P

atividade de guarda da Constituição levada a cabo pela Corte.

5. A tridimensionalidade aplicada: uma conclusão a priori Estudos

jurídicos

parecem

tender,

naturalmente,

a

exames

(e,

eventualmente,

reducionismos) dogmáticos perigosos. Não se pretende negar a relevância de investigações dessa natureza à ciência jurídica, mas a perene restrição do pensamento ao direito posto encerra um complexo vício hermenêutico que, inevitavelmente, conduz ao tolhimento do fenômeno jurídico em uma sociedade essencialmente hipercomplexa.

59

CASTRO, 2008; MARINONI; MITIDERO, 2008.

60

MENDES, 2004; BARROSO, 2006.

61

La obsolescencia de la bipolaridad tradicional (modelo americano – modelo europeo-kelseniano) de los sistemas de justicia constitucional. In: Direito Público, Ano I, n. 2, Brasília, IDP/Síntese, out./dez. 2003. 62

VIANA, 2010, p. 31.

63

BITTENCOURT, 1997.

424

Vilipendiando o arcabouço social subjacente à norma de Direito terminamos por negligenciar a amplitude do fenômeno jurídico, em um processo de desconstrução da realidade valorativa que instrui a estrutura positiva codificada. Autorizamos, assim, o surgimento de posturas inflexíveis que sequer se atrevem a pensar além da “zona de conforto legislativa”, numa espécie de exaltação tímida (e silente) de escolas hermenêuticas de outrora, onde a lei não era discutida, mas rigorosamente aplicada. No presente caso constatamos que, não raras vezes, esse vácuo racional justifica a adoção de posturas flagrantemente insensíveis ao diálogo. Um exemplo simples: muitos são os que, recorrendo a razões de índole histórica execram a possibilidade de retirar do ato de intervenção do Senado seu caráter substantivo. O pensamento é tão simples quanto intransigente, na medida em que usa argumentos de autoridades distintos (historicidade e regramento constitucional do instituto) na tentativa de obstar até mesmo o diálogo, a discussão sobre a mudança. Olvida-se, com isso, justamente a dimensão triádica do fenômeno jurídico e se impõe óbice à plena experiência do direito enquanto fenômeno social e não como simples apanhado de enunciados literais mais ou menos abrangentes. Assim é que, no presente trabalho, procurou-se superar a superficialidade da norma e introduzir aspectos que a nosso juízo deveriam informar, senão a completude, ao menos a maioria das investigações científicas no campo do direito, de modo a evidenciar o quanto mais possível seu caráter inquestionavelmente social (ubi societas, ibi jus). A menção à teoria tridimensional do direito, destarte, atua como elemento integrador dos argumentos expendidos ao longo do trabalho, seja no tocante ao instituto da repercussão geral, ao incremento da função política do STF ou aos novos traços característicos da ação direta de inconstitucionalidade, inaugurados pela Constituição de 1988. Procuramos demonstrar que, a aparente rigidez do enunciado do art. 52, X, de nossa Lei Fundamental não tem o condão de, por si só, desautorizar a adução de argumentos em prol de uma “virada hermenêutica”. Vale dizer, se estamos paulatina e flagrantemente pulverizando os limites subjetivos vinculados à disciplina do controle difuso de constitucionalidade com o respaldo legislativo, doutrinário e jurisprudencial necessários, parece-nos, de fato, que a manutenção do instituto da intervenção senatorial não é capaz de harmonizar os anseios sociais por uma prestação jurisdicional célere e equânime com um Judiciário sobrecarregado de demandas numa sociedade que todos os dias reafirma seu culto ao litígio. A “superação” da subjetividade como pressuposto de atuação eficiente da tutela jurisdicional soa, de fato, como um caminho sem volta. E, muito além da aparente afronta à esfera de direitos dos indivíduos, essa afirmação surge-nos como uma tentativa de resposta sistêmica

425

justamente aos desejos da sociedade. Afinal, como já disse Ruy Barbosa, justiça tardia não é justiça. Nesse cenário, de intersubjetivismos complexos e estruturas sistêmicas truncadas, a intervenção do Senado Federal constitui a nosso ver resquício histórico de um temor a essa altura descabido, uma estrutura absolutamente avessa ao sistema jurídico hodierno.

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Teoria

da

Inconstitucionalidade

Induzida.

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428

Jurisdição e direitos participativos: o papel do judiciário na implementação do dever de consulta prévia Victor Alencar Mayer Feitosa Ventura1 TP

PT

Resumo

Abstract

O presente trabalho investiga a possibilidade de maior protagonismo judicial na efetivação do direito à consulta prévia, levando-se em consideração que os povos indígenas têm direito a ser ouvidos antes de qualquer tomada de decisão que afete suas vidas e seus territórios. O objetivo é analisar se o judiciário nacional tem-se demonstrado apto a julgar violações a esse direito, sem que isso constitua ameaça ao princípio da interdependência entre as funções estatais. Partindo-se da premissa de que é dever do Estado proporcionar espaços de diálogo entre os povos indígenas e o poder público, cabe ao judiciário determinar a realização do procedimento de consulta prévia e responsabilizar o ente estatal nos casos de omissão. Essa atuação contribui para a consolidação do novo formato de Estado, multiétnico, plural e intercultural, implicando em ganhos de democracia e de governabilidade. Para tanto, será feita a análise de documentos legais internos, como a Constituição Federal, e documentos internacionais, como a Convenção nº 169 da OIT; a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; informes e comentários gerais do Conselho de Direitos Humanos da ONU; além de decisões de cortes constitucionais latino-americanas.

This article analyses the possibility of greater judicial intervention in the concretization of the human right to previous consultation, taking into account that indigenous peoples have the right to be heard before every decision-making which might negatively affect their lives and their territories. The purpose is to investigate whether the Brazilian judiciary has been demonstrating, or not, ability to judge the violations of this right without threatening the principle of interdependence between the states functions. According to the premise that the State must create dialogue arenas between indigenous peoples and the public authority, it is a task of the judiciary to impose the consultation proceeding and to hold the State liable in cases of omission. Such performance contributes to the consolidation of a new State’s model, multiethnical, plural and intercultural, what implies in democracy and governability gains. In order to do so, domestic and international legal documents will be bought into observation, such as the Federal Constitution, the ILO Convention n. 169, the UN Declaration on the Rights of Indigenous Peoples, reports and recommendations of the UN Human Rights Council, besides decisions of other Latin American constitutional courts.

Palavras-Chave: Direitos participativos; Direito à consulta prévia; Povos indígenas; Papel do Judiciário.

Keywords: Participatory Rights. Right to previous consultation. Indigenous people. Judiciary activism.

1

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), área de concentração em Direitos Humanos. Bolsista CAPES.

429

1. Considerações iniciais A Constituição Federal de 1988 delineou os marcos do desenvolvimento brasileiro em facetas múltiplas que abrangem aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais. Os próprios objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro incluem a formação de uma sociedade livre, plural e multiétnica, com respeito aos direitos humanos coletivos de povos e minorias étnicas. O problema é que essa orientação parece não ter sido seguida pelas autoridades públicas brasileiras, particularmente pelo Judiciário, foco do presente artigo. Na conjuntura atual brasileira, vigora um modelo desenvolvimentista cego ao projeto constitucional e insensível aos direitos dos povos tradicionais e indígenas. Essas populações, historicamente discriminadas e subjugadas, enfrentam hoje as consequências nefastas de medidas administrativas e legislativas tomadas por pessoas que não vivem no local de repercussão de sua decisão e não suportarão os efeitos dessas medidas. Pode-se dizer que, de certa maneira, as populações atingidas com as decisões de desenvolvimento são conduzidas a reboque, no melhor estilo colonial, na medida em que as decisões governamentais tomadas na busca da modernização nacional continuam sendo fruto de processos privados opacos, que descartam a opinião das populações afetadas, em flagrante violação aos direitos das comunidades envolvidas. Entre os casos mais emblemáticos do desenvolvimento a qualquer custo estão a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte/PA e a operação desastrosa da Companhia Siderúrgica do Atlântico, no Estado do Rio de Janeiro. Em que pese a multiplicidade de normativas internacionais de garantias aos direitos de participação dos povos indígenas, o desrespeito aos direitos indígenas tem sido a tônica das opções oficiais brasileiras, não apenas no que tange à elaboração de leis, como também à efetivação de direitos no âmbito dos processos judiciais. Percebe-se nesse cenário amplo campo de estudos e debates acerca do engajamento do judiciário na inefetividade de direitos constitucionalmente previstos e internacionalmente ratificados pelo Brasil. Para fins de melhor compreensão e abordagem do tema, o artigo versará apenas sobre a concretização do direito humano dos povos indígenas à consulta prévia, livre e informada2, conforme disposto no art. 231, TP

PT

§3º da Constituição Federal brasileira. No primeiro capítulo, serão delineados alguns conceitos fundamentais, como povos indígenas, direitos participativos e direito à consulta prévia. Em seguida, o direito/dever de consulta prévia será mais detalhadamente analisado, levando-se em consideração sua origem, a previsão dos documentos dos Ius Cogens internacional, bem como sua procedimentalização nos casos concretos. O último capítulo versará sobre o papel do poder judiciário na efetivação desse 2

A escolha da expressão “dever de consulta prévia” no título do trabalho decorre da intenção em enfatizar a parcela de responsabilidade do Estado na efetivação desse direito. No entanto, no corpo do artigo será utilizada a expressão “direito de consulta prévia”, pois é como normalmente se designa esse instrumento, seja no direito internacional, seja no direito interno. Essa opção decorre, ainda, da conhecida Ética dos direitos e deveres, segundo a qual os direitos e deveres são dois lados da mesma moeda, que seria a responsabilidade social.

430

direito participativo específico, sendo analisados alguns casos levados à Corte Interamericana de Direitos Humanos, abordando-se também o que representa a ausência de casos assim no Supremo Tribunal Federal. Em remate às considerações tecidas ao longo do texto, a conclusão trará alguns esforços internacionais de países como a Colômbia, Equador e Bolívia em promover os direitos humanos dos povos indígenas,3 com especial ênfase à sua participação nos processos TP

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políticos de tomada de decisões, que envolvem frontalmente o direito à consulta prévia.

2. O reconhecimento dos direitos participativos De maneira geral, os direitos participativos, ou participatory rights como são conhecidos nos documentos internacionais, resultam da tensão verificada entre os atores sociais reivindicativos, nomeadamente os movimentos ambientalistas, e a arena política estatal, na busca de melhores parâmetros de proteção ambiental. Desde os anos 60 do século passado intensificaram-se movimentos populares, com apoio massivo das camadas sociais, em prol da conservação do ambiente, surgidos concretamente do receio de populações afetadas pela degradação artificial do ambiente natural ao seu redor. Dessas demandas sociais decorrem diversas conquistas, com destaque para o reconhecimento formal dos direitos à informação e à participação na formulação de políticas ambientais.4 TP

PT

A importância dos direitos de participação de atores não-estatais na esfera pública, seja pela criação de políticas públicas, seja por meio da elaboração de leis ambientais, remete ao fato de que a maior parte da pressão por mudanças legais na seara ambiental foi exercida pelos movimentos sociais.5 Além disso, merece relevo o pioneirismo do direito internacional ambiental TP

PT

em incorporar nos seus documentos os mecanismos de democratização, que mais tarde foram assimilados por outros ramos da doutrina internacional.6 Os direitos à informação e à participação TP

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no processo político decisório ambiental, inicialmente entendidos como princípios jurídicos (com toda a abstração inerente), passaram à categoria de direitos subjetivos reconhecidos não somente no direito internacional, como em vários ordenamentos nacionais, inclusive o brasileiro. Como

3 Movimento comumente denominado de “Neoconstitucionalismo latino-americano”, iniciado com as Constituições do Equador (2008) e Bolívia (2007), que revigoram os direitos da Natureza, ou Pacha Mama, e a filosofia do “Bem Viver”, de inspiração marcadamente indígena. Cf. CORTE CONSTITUCIONAL DE ECUADOR para el período de transición. El nuevo constitucionalismo em América Latina. 1ª ed. Quito: Corte Constitucional del Ecuador, p. 34, 2010. 4

Importa destacar que esses direitos devem ser entendidos como um binômio inseparável, visto que sem informação não há qualidade na participação, nem a detenção da informação sem quaisquer medidas práticas poderá promover mudanças. 5

Cf. DANNENMEIER, Eric. A European commitment to environmental citizenship: article 3.7 of the Aarhus convention and public participation in international forums. Yearbook of International Environmental Law, Vol. 18, Oxford University Press, p. 38, 2007.

6

Entre os mecanismos inovadores encontram-se o direito à informação nos casos de edificação de mega projetos estruturantes, que possam afetar a saúde das populações diretamente interessadas, assim como o direito à participação nas audiências públicas prévias à autorização dessas obras, previstos na Convenção n. 169 da OIT, bem como na Convenção Européia de Aarhus, de 1998.

431

exemplos de ordens jurídicas onde vigem direitos participativos positivados, podem-se citar os países vizinhos Colômbia, Equador e Bolívia. No caso dos povos indígenas, os direitos de participação fluem do direito humano fundamental

à

autodeterminação,

amplamente

reconhecido

em

diversos

documentos

internacionais, analisados neste ensaio mais adiante. A afirmação dos direitos participativos dos povos indígenas no Brasil e no mundo surge em resposta às violações sistemáticas de suas garantias mais elementares, como o direito à identidade, ao território, à saúde e, em última instância, à vida.7 Para Chang, a participação indígena pode ser vista como condicionante para o TP

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cumprimento e maior efetivação das leis ambientais.8 De fato, para melhores resultados, a TP

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cidadania participativa não deve encontrar barreiras dentro da sociedade, nem ser discriminada em razão de raça, sexo, etnia ou outros critérios, pelo contrário, deve contribuir para o reconhecimento de métodos e novas alternativas de inclusão efetiva dos povos indígenas nos procedimentos democráticos, em particular quando o assunto debatido for forte o bastante para afetar a sua subsistência. No entanto, para os efeitos deste artigo, antes de analisar o direito humano à consulta prévia, como expressão dos direitos participativos dos povos indígenas, importa explicar o que se entende especificamente por “povos indígenas”.

2.1 Conceito de povos indígenas De antemão, cabe expor algumas tradicionais definições de “povos indígenas” como sujeitos dos direitos de participação ora estudados. Assim, no contexto da luta por sua afirmação e por direitos, os “povos indígenas” podem ser definidos, conforme o Relator Especial da ONU, Martinez Cobo, em 1971, como sendo aqueles que gozam de “continuidade histórica em sociedades pré-invadidas e pré-coloniais, que se desenvolveram nos seus territórios e se consideram diferentes do restante da sociedade que agora prevalece nesses mesmos territórios ou em partes deles. Eles compõem no presente e transmitem para suas gerações futures seus conhecimentos ancestrais e sua identidade étnica como base de sua existência como povos, segundo seus próprios padrões culturais, instituições sociais e sistemas legais.” TP

9 PT

Percebem-se,

então, dois critérios para fixação do conceito acima exibido. O critério objetivo abrange a existência anterior à chegada dos colonizadores e o critério subjetivo invoca sua identificação como grupos distintos dos que ora conduzem a vida política e econômica no território indígena. 7

Cf. Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Organização das Nações Unidas, Nova Iorque, 2007.

8

Cf. CHANG, Ada Alegre. ¿Por qué no se cumplen las normas ambientales? Revista de la Sociedad Peruana de Derecho Ambiental, vol. 10, Lima, p. 5-6, 2002.

9

“Indigenous communities, peoples and nations are those which, having a historical continuity with pre-invasion and precolonial societies that developed on their territories, consider themselves distinct from other sectors of societies now prevailing in those territories, or parts of them. They form at present and transmit to future generations their ancestral territories, and their ethnic identity, as the basis of their continued existence as peoples, in accordance with their own cultural patterns, social institutions and legal systems.” Cf. MARTINEZ-COBO, José R. The Study of the Problem of Discrimination Against Indigenous Populations. U.N. ESCOR, Subcommittee on Prevention of and Discrimination against Minorities. U.N. doc. E/CN.4/Sub.2/1986/7/Add.5, para. 379.

432

Outro elemento para delimitação de “povos indígenas” é fornecido pela Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas (Nova Iorque, 2007), que nos artigos 2º e 3º os definem como livres e iguais a todos os demais povos e titulares ao direito de autodeterminação política, econômica, social e cultural. Mais adiante, o artigo 46 menciona que o conceito de “povo” não deverá ser interpretado para conferir direitos de participação em atividades que visem desmembrar ou reduzir a integridade territorial e a unidade política dos Estados soberanos. Essa adição ao texto internacional deveu-se provavelmente aos temores dos Estados signatários de que movimentos separatistas pudessem lançar mão desse direito de autodeterminação para afirmar sua secessão do ente político estatal dominante. Por sua vez, a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no artigo 1º, ao especificar os destinatários da Convenção, fornece dois critérios para a definição de povos indígenas. Primeiramente, a relevância de sua autodeterminação segundo costumes e tradições próprias; depois, sua pertença às regiões geográficas ocupadas previamente à época dos descobrimentos e colonização, seguida de desapropriações forçadas e subordinação dos povos ancestrais.10 TP

PT

Na mesma linha cognitiva dos critérios subjetivos até aqui expostos, o Projeto de Declaração Interamericana dos Direitos dos Povos Indígenas11 identifica como elemento TP

PT

primordial a “auto-identificação” do sujeito enquanto indígena, ou seja, membro de um povo indígena. De acordo com o texto do projeto, artigo 1º (2), “na determinação dos grupos a que se aplicam as disposições da presente Declaração, deverá considerar-se como critério fundamental a auto-identificação como indígena”. O projeto menciona ainda a necessidade de serem os povos indígenas regulados por status jurídico próprio, composto por costumes e tradições. Fábio Comparato, ao tempo em que reconhece a ausência de consenso quanto à definição de “povos”, em parte causada por confusão nos próprios textos das Nações Unidas, aponta como solução considerar o termo “povo” como uma “context dependent notion”, ou seja, como noção dotada de diversas acepções, mas que deve ser definida de acordo com o contexto em que seja utilizada.12 TP

10

PT

Cf. Convenção n. 169, Organização Internacional do Trabalho, Genebra, 1989.

Artigo 1º. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 11

Cf. Projeto de Declaração Interamericana dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 26 de Fevereiro de 1997. Aguarda votação na Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. Disponível em: . Acesso em: 29 Nov. 2011. TU

UT

12

Cf. COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 409, 2010.

433

Apesar dos esforços acadêmicos, inexiste uma definição consensual e inequívoca de povos indígenas no Direito Internacional. Esse fato se deve à resistência dos países em enxergar nos índios povos autodeterminados, precisamente por temerem ameaças de possíveis sentimentos separatistas. No entanto, para efeitos do presente trabalho, o conceito de povos indígenas tomará pó base aqueles dois critérios (objetivo e subjetivo) mencionados, em harmonia com a definição apresentada pelo Relator Especial da ONU em 1971, posto que esta reforça a autonomia indígena ao percebê-la distinta dos setores dominantes da sociedade e ressaltando sua ancestralidade. Esse mesmo conceito resgata o direito de identidade inerente aos povos indígenas, a partir do qual derivam outros direitos. Neste sentido, destaca-se que o direito de participação das comunidades indígenas nos processos políticos deve ser considerado direito fundamental por permitir o exercício do direito, igualmente fundamental, à integridade indígena.13 De fato, essa afirmação aparentemente comum TP

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e repetida merece ser constantemente reforçada, na medida em que setores intelectuais da sociedade brasileira relutam em compreender tal situação. O fato é que, após séculos de injustiças, é preciso reconhecer como consensual a ideia de que os povos indígenas não devem ser tratados como meros “silvícolas”, incapazes de determinar a sua vontade. Na arena desses direitos participativos, merece destaque especial o direito à consulta prévia, livre e informada, como condição do desenvolvimento político, econômico, social e cultural dos povos indígenas, além de meio hábil para interromper todas as formas de discriminação e opressão a que estão submetidos, independentemente da localidade onde ocorram.14 TP

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3. Direito à consulta prévia, livre e informada Trata-se de direito humano fundamental, vez que assegura a subsistência das comunidades indígenas enquanto grupos sociais circundados de dignidade e integridade étnica, ao garantir-lhes participação ativa nos processos político-decisórios de medidas administrativas ou legislativas que possam afetar a continuidade de seus integrantes. A consulta prévia pode inclusive ser compreendida como importante instrumento de cooperação entre os povos indígenas e os Estados,15 desde que não implique na submissão material dos indígenas às decisões TP

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estatais, nem sirva como mero elemento formal de legitimação das decisões tomadas. Em se tratando de cooperação entre partes desiguais, o mecanismo não deverá equiparar as partes, mas ao contrário, deve considerar as limitações da parte mais vulnerável, no caso, as comunidades indígenas. 13

Cf. DUPRAT, Deborah. O papel do judiciário. Instituto Socioambiental. 2006. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/direitos/o-papel-do-judiciario/introducao. Acesso em: 28 Nov. 2011. TU

UT

14

Cf. Preâmbulo da Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Nova Iorque, 2007.

15

Cf. ANAYA. James. Promoción y protección de todos los derechos humanos, civiles, políticos, económicos, sociales y culturales, incluido el derecho al desarrollo. Naciones Unidas. Consejo de Derechos Humanos. A/HRC/12/34, p. 11, 2009.

434

Em auxílio à compreensão do conceito de direito à consulta prévia, importa analisar algumas passagens de importantes documentos normativos internacionais que servem de marco legal à efetivação desse direito. Entre os mais relevantes, encontra-se a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, documento que mais claramente afirma o direito à consulta prévia, presente em diversos trechos (artigos 10, 11, 15, 17, 19, 28, 29, 30, 32, 36 e 38), mas que encontra sua definição no artigo 19, cujo teor se copia: “os Estados consultarão e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem.” 16 TP

PT

Não obstante se trate de documento jurídico não vinculante, por ser simples declaração internacional, para a doutrina internacionalista o direito/dever de consulta prévia já se afirma como princípio geral, responsável por reger as relações entre povos indígenas e Estados. Esta é a opinião de James Anaya, Relator Especial da ONU sobre a situação dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos indígenas, para quem o artigo 19 da Declaração ergueu-se ao status de princípio internacional.17 TP

PT

4. Fundamentação legal: o direito à consulta prévia no Direito Internacional. A origem do direito ora analisado remete (i) à concepção de povos indígenas como sujeitos de direitos fundamentais coletivos, e não como um somatório de sujeitos de direitos individuais; e (ii) às consequências do direito fundamental à autodeterminação, previamente abordado. Com efeito, parcela significativa da doutrina internacional reconhece no direito à autodeterminação a qualidade de Direito Internacional Costumeiro, vigendo, portanto, com eficácia vinculante entre os Estados. O principal argumento em torno da tese repousa no fato de que esse direito é condição essencial à concretização de outros direitos, conforme exposto no preâmbulo da Declaração da ONU Sobre os Direitos dos Povos Indígenas.18 TP

PT

As primeiras tentativas de melhoria das condições indígenas foram encabeçadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que em 1957 promulgou a Convenção n. 107. No contexto em que foi aprovada, pode-se imaginar o intenso teor paternalista que marcou a convenção, especialmente quando se remetia ao índio como potencial mão-de-obra ainda não plenamente assimilada pelo sistema produtivo capitalista.

16

Cf. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

17

Cf. ANAYA, James. Op. cit. p. 13.

18

Preâmbulo da Declaração. “Reconhecendo que a Carta das Nações Unidas, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais1 e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assim como a Declaração e o Programa de Ação de Viena afirmam a importância fundamental do direito de todos os povos à autodeterminação, em virtude do qual estes determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.”

435

Em seguida, surgiram os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), ambos de 1966. Com redação semelhante, dada a proximidade com que foram aprovados, os dois pactos afirmam nos artigos 1º e 2º o direito à autodeterminação dos povos e a possibilidade de disporem livremente de seus recursos e riquezas naturais com vistas ao seu próprio desenvolvimento.19 Indubitavelmente, dois pilares TP

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fundamentais no reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, que permitiram interpretações progressistas no sentido de preservar as identidades coletivas de populações indígenas em todo o mundo. Entre as consequências dos dois documentos, pode-se citar a ampliação dos direitos de participação desses povos, como o de consulta prévia, em decorrência direta e inequívoca de sua autodeterminação. Em 1989, foi aprovada a Convenção n. 169 da OIT, que substituiu a antiga Convenção n. 107. A nova Convenção logrou finalmente adequar-se aos mandamentos atuais de proteção e garantia dos direitos humanos dos povos indígenas, centrando-se não apenas em aspectos de natureza meramente econômica, como também em relevantes fatores como identidade étnica, autodeterminação, igualdade em relação aos demais povos, entre outros. O artigo 6º (1) “a” determina que os governos, ao aplicar as regras da Convenção, devem “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. Igualmente importantes são os artigos 15 (1) e (2)20, assim TP

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como o artigo 27 (1).21 Percebe-se, de fato, que o espírito de consulta e participação consiste TP

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plataforma fundamental das disposições da Convenção22 e, precisamente em decorrência de sua TP

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completude e alcance, a Convenção n. 169 da OIT é atualmente um dos textos legais

19

PIDCP. Organização das Nações Unidas, Nova Iorque, 1966. Artigo 1º. Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e, desse modo, providenciam o seu desenvolvimento econômico, social e cultural. 2º. Para atingirem os seus fins, todos os povos podem dispor livremente das suas riquezas e recursos naturais, sem prejuízo das obrigações que derivam da cooperação econômica internacional baseada no princípio de benefício recíproco, assim como do direito internacional. Em caso algum poderá privar-se um povo dos seus próprios meios de subsistência. 20

Artigo 15, Convenção n. 169, OIT, 1989.

1. Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados. 2. Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dos recursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes na terras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos com vistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se os interesses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de se empreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploração dos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverão participar sempre que for possível dos benefícios que essas atividades produzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possam sofrer como resultado dessas atividades. 21

Artigo 27, Convenção n. 169, OIT, 1989.

1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais. 22

Cf. ANAYA, James. Op. cit. p. 14.

436

internacionais mais utilizados por entidades e movimentos sociais indigenistas em argumentações jurídicas e na luta contra violações de direitos dos índios.23 TP

PT

No que diz respeito à atuação das Nações Unidas no campo dos direito indígenas participativos, registram-se esforços, desde 1985, no sentido de admitir uma declaração internacional voltada para os povos indígenas. Anos de negociações em um Grupo de Trabalho sobre Populações Indígenas (WGIP, em inglês) acabaram resultando em uma proposta com a participação de governos, representantes indígenas e da sociedade civil. Essa proposta foi galgando degraus na burocracia internacional, tendo passado por uma Subcomissão de Prevenção de Discriminação e Proteção de Minorias da ONU, em 1994, estando, desde então, emperrada na Comissão de Direitos Humanos, até 2007, quando foi aprovada, ainda assim, sob fortes manifestações de movimentos indigenistas. Também essa Declaração deriva do direito primordial dos povos indígenas à livre determinação e dos princípios conexos de democracia e soberania popular, em contraponto ao governo de imposição. Para o tema do direito humano à consulta prévia ora analisado, a Declaração já contribui sobremaneira com o Preâmbulo, quando estabelece que os povos indígenas devam exercer controle sobre acontecimentos que os afetam, promovendo assim o desenvolvimento político, econômico, social e cultural da comunidade, de acordo com suas aspirações e necessidades. No corpo da Declaração, destacam-se, pela relevância ao presente tema, os artigos 3º (sobre a autodeterminação); 5º (sobre a participação dos povos indígenas na vida política do Estado); 18 e 19 (sobre o dever estatal de consulta prévia); 26 (sobre os direitos ao território) e, por fim, o artigo 38 (que estimula a parceria e cooperação entre os povos indígenas e os Estados para concretização da Declaração). Apesar de considerado um documento internacional não vinculante, está cercado de possibilidades concretas de se transformar em direito costumeiro internacional (vinculante), cuja finalidade reside na promoção de relações mais harmoniosas entre Estados e Povos Indígenas, baseadas nos princípios da justiça, democracia, respeito aos direitos humanos, não-discriminação e boa-fé. Ainda no Sistema Global de proteção aos Direitos Humanos, a Carta da Organização das Nações Unidas fornece novos subsídios à argumentação ora defendida, ao determinar que as relações entre as nações se desenvolvam com base no princípio da autodeterminação dos povos,24 entre estes, os povos indígenas. No mesmo sentido, a Convenção sobre a Eliminação da TP

PT

Discriminação Racial, de 1966, estabelece que por “discriminação racial” entender-se-á qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada, entre outros, em origem étnica, abrindo

23

Percebe-se esta tendência pela importância atribuída à Convenção n. 169 da OIT nos sites de Organizações como o Instituto Socioambiental, disponível em: e o CIMI, disponível em: . TU

24

UT

Carta da ONU, artigo 1 (2), São Francisco, 1945.

437

espaço para inclusão dos povos indígenas.25 Sob esse ponto de vista, o órgão de fiscalização da TP

PT

Convenção, Comitê sobre a Eliminação da Discriminação Racial (CERD) é responsável por analisar os casos e relatos de violações aos direitos dos povos indígenas à consulta prévia, livre e informada, havendo inclusive demandado do governo brasileiro, em 2008, informações detalhadas sobre a existência de processo de consulta prévia dos povos situados na Terra Indígena Raposa Serra do Sol relativamente ao projeto de exploração de recursos hidrelétricos na região.26 TP

PT

Transportando a análise do direito humano à consulta prévia para o âmbito do Sistema Interamericano de proteção dos Direitos Humanos, destacam-se dois importantes instrumentos. Primeiramente, a Convenção Americana de Direitos Humanos, que no artigo 23 (1), “a”, determina que todos os cidadãos possuem direito de participação da condução dos assuntos públicos, inclusive diretamente. Em segundo lugar, existe a Carta Democrática Interamericana, assinada em 2001, com passagens de seu preâmbulo e do artigo 9º que reforçam a relevância da participação pública na consolidação da liberdade e solidariedade, bem como na promoção dos direitos humanos dos povos indígenas, entre outros.27 TP

PT

Os instrumentos expostos compõem não somente normativas de soft law internacional, como as declarações, mas também o Ius Cogens internacional, não no sentido estritamente dos tratados internacionais, mas relativo também ao direito decorrente das responsabilidade assumidas pelos Estados perante a comunidade internacional. Entre as normativas de Ius Cogens, é possível citar a Convenção n. 169 da OIT. De qualquer forma, ainda que os documentos legislativos abordados não sejam plenamente justiciáveis, nem gozem de caráter vinculante, é inegável que desempenham extraordinário papel como vetores de interpretação de outros textos internacionais e domésticos. Entre outros motivos, é com base neles que se fortalece a compreensão dos direitos participativos indígenas, bem como o direito humano à consulta prévia nas legislações e práticas jurídicas nacionais.

25

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), Nova Iorque, 1966. Artigo 1º: Nesta Convenção, a expressão "discriminação racial" significará qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anula ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de sua vida. 26

“The Committee wishes to receive clear information from the State party on the following: […] the process to obtain the free, prior and informed consent of the indigenous peoples in the Raposa Serra do Sol with regard to the project to explore hydroelectric resources in this indigenous land.” Carta de Fatimata-Binta Victorie Dah, de 7 de março de 2008, disponível em: . Acesso em: 29 Nov 2011. TU

27

UT

Carta Democrática Interamericana, Organização dos Estados Americanos (OEA), Washington, 2001.

Preâmbulo: Reafirmando que o caráter participativo da democracia em nossos países nos diferentes âmbitos da atividade pública contribui para a consolidação dos valores democráticos e para a liberdade e a solidariedade no Hemisfério; Artigo 9º. A eliminação de toda forma de discriminação, especialmente a discriminação de gênero, étnica e racial, e das diversas formas de intolerância, bem como a promoção e proteção dos direitos humanos dos povos indígenas e dos migrantes, e o respeito à diversidade étnica, cultural e religiosa nas Américas contribuem para o fortalecimento da democracia e a participação do cidadão.

438

4.1 Procedimentalização do direito à consulta prévia Uma vez expostos os fundamentos legais nacionais e internacionais do direito humano fundamental à consulta prévia, bem como sua conceituação, importa abordar algumas questões relativas à procedimentalização desse direito. Como se pode imaginar, não consiste em tarefa das mais fáceis a viabilização da consulta prévia na infinidade de casos concretos envolvendo potenciais agressões aos direitos indígenas, surgidos quase que diariamente. Com efeito, inúmeras são as medidas administrativas ou legislativas capazes de abalar a subsistência das populações indígenas vulneráveis, especialmente num país de proporções continentais como o Brasil. De outra monta, a ainda latente indisposição das autoridades brasileiras em dialogar com essas minorias, optando pela via mais simples de submissão às decisões tomadas, contribui para a construção de cenários céticos quanto à concretização do direito/dever de consulta prévia. Na ausência de um manual prático de realização de consultas prévias, importa reunir passagens selecionadas dos instrumentos internacionais trabalhados, que indiquem metodologias de aplicação da consulta prévia, juntamente com os comentários do Relator Especial da ONU, James Anaya, já considerados, e interpretá-los num caldo de diretrizes e recomendações que possam conduzir ao bom funcionamento do mecanismo em estudo. Nesse sentido, não pode haver dúvidas quanto à necessidade de a consulta se desenvolver no curso de processos democráticos, com a maior gama possível de interesses públicos devidamente representados, levando-se em conta elementos de legitimidade da representação, de acessibilidade aos locais do processo consultivo e de ampla participação (a se dar em grandes locais e em condições salubres de debate). Em particular, a informação deve ser ampla e irrestrita, cabendo ao ente estatal o fornecimento de dados os mais detalhados possíveis acerca das medidas alvo da discussão. Neste sentido, o direito à informação (right to know) funciona como um dos pilares dos direitos participativos, juntamente com o direito à participação efetiva e o acesso à justiça.28 TP

PT

Antes de tudo, importa delinear as situações nas quais a consulta deve ser realizada, para então deliberar acerca de seu desenvolvimento. Segundo James Anaya, a consulta prévia é aplicável sempre que uma decisão do Estado possa afetar os povos indígenas em modos não percebidos por outros indivíduos da sociedade.29 Nessa afirmação percebe-se o porquê da TP

PT

inaplicabilidade da lógica da supremacia dos interesses públicos quando se tratam de minorias. Embora por interesses públicos se compreenda parcela significativa da população de determinado Estado, a tomada de decisões não pode observar tal lógica nas situações que envolvam grupos vulneráveis. Deste modo, decisões que possam afetar populações indígenas, ainda que efetivamente desejadas pelos demais setores da sociedade, não deverão ser aditadas sem seu

28

Cf. Convenção de Aarhus, Comunidade Européia, Aarhus, 1998.

29

Cf. ANAYA, James. Op. cit. p. 16.

439

prévio, livre e informado consentimento.30 Assim determinam as normativas internacionais, bem TP

PT

como a Constituição Federal. Ainda que não haja direito positivado, ou seja, legalmente reconhecido, como o direito à terra, por exemplo,31 permanece o dever estatal de conduzir a consulta prévia, vez que tal direito TP

PT

decorre da prerrogativa de livre determinação das comunidades indígenas. Entendidas como negociações em busca de acordos mutuamente aceitáveis, é imprescindível que as consultas sejam realizadas antes da aprovação da medida governamental, de modo a que os indígenas tenham capacidade de influir verdadeiramente nas decisões. Essa determinação procura evitar a prática historicamente perseguida pelos Estados nacionais de apenas anunciar as suas deliberações ou de usar o mecanismo da consulta prévia para legitimar o processo centralizado de escolha, prática conhecida como “decide, announce and defend”, que significa, em suma, decidir privativamente, anunciar posteriormente para, somente então, defender a decisão tomada. Entretanto, a obrigatoriedade da consulta prévia não deve ser confundida com o poder de veto dos povos indígenas, posto que, de fato, as comunidades afetadas não dispõem de poder de veto sobre as propostas governamentais de desenvolvimento, mas apenas do poder argumentativo em face do ente estatal.32 TP

PT

Como em toda negociação, exige-se que as consultas prévias sejam regidas por princípios de boa-fé de todas as partes envolvidas no processo, de acordo com o artigo 19 da Convenção n. 169 da OIT. No relatório apresentado por Anaya, merece igual destaque o elemento da confiança na busca pelo consenso, embora reconheça as dificuldades em fazer os Estados superarem o desequilíbrio de poder entre eles e as comunidades indígenas, emperrando assim o almejado espírito de colaboração.33 TP

PT

Expostas as situações em que deva ser realizada a consulta e os princípios que regem tal procedimento, merece destaque o fato de que, diante do pluriverso de possíveis de relações entre povos indígenas e Estados nacionais, inexista um procedimento único e auto-evidente de consulta. Ao contrário, essa mesma complexidade recomenda a existência de procedimentos democráticos especiais e diferenciados, que correspondam às legislações internas e sejam fieis às demandas locais por promoção dos direitos dos povos indígenas. Ao fim e ao cabo, importa 30

Segundo a lógica da supremacia do interesse público, a construção de uma usina hidrelétrica em território tradicionalmente ocupado por povos indígenas não necessitaria de procedimento de consulta prévia, já que a obra seria desejada por setores da sociedade que não vivenciarão os efeitos negativos da empreitada. A ser realizado um plebiscito nacional sobre a construção de Belo Monte/PA, por exemplo, dificilmente o resultado seria contrário à obra. Todavia, nem por isso o ente estatal estaria eximido do dever de celebrar a consulta às comunidades afetadas de maneira imperceptível aos demais segmentos sociais.

31

Não é caso brasileiro, pois a Constituição Federal especifica em diversas passagens do texto constitucional (artigos 231 e 232) o respeito aos direitos dos povos indígenas, particularmente à autodeterminação, à identidade, à não discriminação, à terra e à participação nos processos político-decisórios.

32

Existem apenas duas situações previstas na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas que determinam a obtenção de consentimento das comunidades afetadas: quando as medidas tratem do traslado dos índios para fora e suas terras tradicionais (artigo 10) e quando versarem sobre o armazenamento de lixo tóxico em terras indígenas (artigo 29). 33

ANAYA, James. Op cit. p. 20.

440

ater-se ao objetivo primordial do direito à consulta prévia, alcançar um acordo mutuamente aceitável ou obter o consentimento dos povos indígenas afetados.

5. O papel do poder judiciário na efetivação do direito à consulta prévia A concretização dos direitos humanos coletivos de participação ora trabalhados consiste em grande desafio para as autoridades nacionais e internacionais. Se, por um lado, o poder executivo deseja a edição de medidas administrativas e legislativas que tragam crescimento econômico a qualquer custo para o Brasil, ainda que para isso seja preciso restringir direitos direitos humanos fundamentais culturais e sociais dos povos indígenas, o direito à consulta prévia deve, por outro lado, ser assegurado por intermédio da atuação do judiciário, para efetiva mediação do conflito gerado. Com efeito, diante das violações legais e administrativas, recorre-se com frequência cada vez maior à figura do magistrado. O fato é que a progressiva intervenção do Estado Social nas relações privadas provocou a expansão das prerrogativas do juiz, com o surgimento do “juiz político”, seguindo a perigosa tendência de judicialização da política verificada no Brasil e em outros países latinoamericanos. Trata-se de um fenômeno que se caracteriza pela “postura ativista dos juízes, que passam a interpretar criativamente o direito, ocasionando assim uma espécie de transferência do poder legislativo, antes concentrado nos poderes legislativo e executivo, para os juízes e tribunais”.34 TP

PT

Dado que proliferem situações de desrespeito aos direitos indígenas por parte dos administradores, como ocorre nos casos das grandes obras de infraestrutura, paira então a questão da materialização, pela via judicial, dos direitos ultrajados. Nesse sentido, é preciso averiguar se o protagonismo judicial, mesmo correndo o risco de resultar em déficits democráticos e violação do princípio da interdependência entre as funções da República, não poderia representar avanços na efetivação prática de direitos humanos de categorias vulneráveis, como é o caso do direito à consulta prévia assegurado legitima e legalmente às comunidades tradicionais afetadas pelas decisões de grandes empreendimentos. No caso das questões envolvendo direitos indígenas, percebe-se a incidência de dilemas morais que assumem a forma de direitos fundamentais positivados, porém indeterminados em seu sentido específico.35 Entretanto, ainda que se reconheça a tendência de os magistrados julgarem TP

PT

casos polêmicos em conformidade com suas convicções pessoais, não quer isto dizer que o juiz se exima da aplicação das normas de Direito Internacional e da própria Constituição. Ao contrário, a hermenêutica constitucional moderna indica que o juiz deva levar em conta (i) os instrumentos 34

Cf. LOIS, Cecília Caballero e COSTA E SILVA, Rafael Vasconcellos de Lima. Diálogos institucionais e democracia. SILVA, Artus Stamford (Org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: Editoria Universitária UFPE, p. 307, 2011. 35

LOIS, Cecília Caballero. Op cit. p. 306.

441

legais internacionais no momento de formação do seu conhecimento, atribuindo aplicação prática às obrigações assumidas pela Brasil junto à comunidade internacional, e (ii) a Constituição Federal. A partir dessa compreensão, buscou-se analisar algumas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo violações do direito humano à consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas. A finalidade é perceber em que medida a atuação do órgão judiciário nacional de cúpula, que tem como atribuição precípua a interpretação e aplicação da Constituição Federal, auxiliaria na efetivação do dever estatal de realização da consulta prévia. Assim, embora no site do STF não tenha sido possível encontrar resultados para o verbete “consulta prévia”, convém destacar que foi encontrada uma única decisão do Supremo envolvendo o direito humano à consulta prévia. Na Ação Popular n. 3388, de Roraima, julgada em 2009, relatada pelo Ministro Carlos Britto, foi discutida a constitucionalidade da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (RSS). Mesmo que o voto do ministro relator tenha sido no sentido de reconhecer a legalidade da demarcação, questionada pelos requerentes (proprietários privados da região), percebe-se o descaso para com o direito/dever de consulta prévia. Na decisão, Carlos Britto defende reiteradas vezes a concretização daquilo que denomina de “constitucionalismo fraternal” ou solidário, voltado para a “igualdade civil-moral” das minorias com base no valor da integração comunitária. Firma-se em favor das demarcações de terras indígenas e apresenta diversos argumentos legais em seu abono. Contudo, no item “v” de sua decisão, o ministro relator afirma categoricamente que o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI (grifos do autor).36 TP

PT

Ao considerar que a exploração de recursos energéticos em territórios indígenas independe absolutamente de consulta prévia, o magistrado desconhece e ignora toda a legislação internacional que se debruça sobre a matéria e orienta (ou deveria orientar) a interpretação dos judiciários nacionais. Segundo o argumento utilizado pelo ministro Carlos Britto, a critério do Ministério da Defesa e do Conselho de Defesa Nacional, serão definidas as atividades de “cunho estratégico” para o país, reconhecendo enorme discricionariedade aos órgãos executivos, fato que via de regra entra em conflito com os direitos das populações indígenas. Seguindo esta argumentação, bastaria um comunicado do Ministério da Defesa para sanar todas as querelas

36

Pet 3388, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, Brasília/DF, julgado em 19/03/2009.

442

envolvendo mega-projetos de infraestrutura que violam a integridade e a identidade étnica indígenas. Para os fins do presente estudo, não deixa de ser significativo que a única decisão judicial do STF que menciona o direito indígena à consulta prévia, ao invés de afirmá-lo e protegê-lo, venha contrariamente no sentido de amenizá-lo. Ao asseverar que políticas de “expansão estratégica da malha viária” e de “exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico” em territórios indígenas poderão ser conduzidas na ausência do procedimento de consulta prévia, o ministro Carlos Britto, e com ele todo o STF, se posicionam na contramão dos documentos internacionais que salvaguardam esse direito humano fundamental, especialmente relevante para a preservação de outro direito fundamental, o da integridade étnica e da identidade indígena. Na verdade, com essa decisão, não apenas todas as declarações e convenções internacionais são afastadas do campo interpretativo do jurista, como também a própria Constituição Federal, que enfatiza com rigor a necessidade de serem ouvidas as comunidades indígenas previamente à autorização para extração de recursos minerais e exploração de potenciais energéticos. De cunho estratégico ou não, o fato é que os direitos dos indígenas são desconsiderados, e isso decorre inclusive da própria ambiguidade conceitual da figura da consulta prévia, com a possibilidade de uso conforme o desejo e as apreciações subjetivos do Poder Executivo, nas figuras do Ministro da Defesa ou do Presidente da República. Porém, é preciso dizer que a percepção do ministro Carlos Britto quanto ao direito à consulta prévia não dista muito das posições do judiciário nacional quando a matéria em litígio envolve direitos indígenas. Muito embora o relator elabore uma decisão na sua totalidade benéfica e generosa para com os índios,37 é indesculpável que o magistrado desconheça o direito à TP

PT

consulta prévia, bem como o dever estatal de realizá-la. De acordo com a Subprocuradora Geral da República, Deborah Duprat, há graves problemas no judiciário a partir do momento em que é possível identificar uma linha de incoerências que permeiam a atuação judicial nessas questões.38 TP

PT

De um lado, as sentenças são seletivas, particularmente nos casos envolvendo a demarcação de terras indígenas, nas quais os magistrados ignoram conceitos importantes como território indígena e insistem em dar-lhes tratamento idêntico ao instituto da propriedade privada, subvertendo toda a lógica de proteção às terras indígenas. De outro lado, prevalece um arraigado sentimento de intolerância institucionalizado, por parte daqueles que deveriam lidar com as minorias,39 podendo-se mesmo concluir que inexiste, de maneira geral, reconhecimento pelo TP

PT

judiciário brasileiro do direito à diferença e à identidade dos povos indígenas. Ao contrário, 37 “O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena.” Cf. Pet 3388, Relator Ministro Carlos Britto. 38

Cf. DUPRAT, Deborah. Op cit.

39

Cf. Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio), artigo 57.

443

verifica-se com frequência a criminalização de movimentos indigenistas.40 Registre-se ainda a TP

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morosidade exagerada no julgamento de processos nas primeira e segunda instância, que se chegarem ao STF encontrarão novas e variadas barreiras que emperrarão seu curso normal. Deborah Duprat traz o caso da etnia Pataxó Hã-hã-hãe, da Bahia, que até hoje aguardam decisão no STF relativamente à demarcação de suas terras.

6. Conclusão Diante do quadro exposto, ante os fundamentos normativos nacionais e internacionais do direito humano à consulta prévia e sua natureza de direito participativo fundamental à concretização do direito à identidade e à autodeterminação dos povos indígenas, é perfeitamente plausível a defesa de uma atuação reativa ou proativa do poder judiciário no sentido da efetivação desse direito. Contudo, as formas de implementação do direito à consulta prévia, livre e informada não tem correspondido, no caso brasileiro, ao desejado pelos movimentos sociais, em particular os indigenistas. Aparentemente, o judiciário nacional não percebeu o projeto de desenvolvimento multifacetado exposto na Constituição Federal, de natureza econômica, política, social e cultural, que se funda na sustentabilidade, na diversidade cultural e no respeito à diferença. Embora o texto constitucional estipule o dever de celebração da consulta prévia, não é o que se verifica na prática, revelando a relutância dos magistrados pátrios em aplicar os mandamentos constitucionais em suas decisões. Essa indefinição, ou mesmo as decisões que circundam o direito aqui abordado em nome da efetivação de estratégias consideradas relevantes para o discurso da segurança nacional, afasta o Estado brasileiro do ideal de Estado multicultural e pluriétnico, ignorando as tendências jurídico-políticas atuais de reconhecimento dos direitos indígenas e da natureza (ou Pacha Mama). Afasta também o ordenamento brasileiro de outros contextos jurídico-políticos sulamericanos, como Bolívia, Equador e Colômbia. O Tribunal Constitucional Colombiano, por exemplo, reconheceu em 1997, há mais de uma década, portanto, o direito à consulta prévia dos povos indígenas como mecanismo através do qual se protege a integridade das comunidades, sendo por isso considerado direito fundamental.41 Desde então, diversas foram as decisões que TP

PT

responsabilizaram o Estado colombiano pelo descumprimento desse direito. A Bolívia, por sua vez, aprovou em 2007 a nova Constituição, de feições marcadamente progressistas, afirmando os direitos pelos quais há muito tempo luta a (expressiva) população 40

A atuação do Poder Judiciário na questão indígena, em especial por intermédio do Supremo Tribunal Federal, a exemplo do que tem ocorrido em outras áreas, continua e continuará refletindo as tensas contradições decorrentes da disputa entre capital e os interesses sociais. Cf. Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Relatório sobre a violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília. 2008. 41

Cf. Corte Constitucional Colombiana. Sentença SU 039 de 1997.

444

indígena daquele país. Entre o hall de direitos reconhecidos constam os de natureza participativa, especialmente o de consulta prévia, livre e informada. A sede por direitos permitiu o inédito episódio de repúdio social à construção de estrada que faria a ligação entre o país e o Brasil, mas que cortava o território indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS).42 Sem obedecer à TP

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consulta prévia, o governo anunciou a construção da rodovia, mas não contava com a oposição de milhões de cidadãos, em apoio à causa indígena. Por fim, sobreleva destacar que são perceptíveis avanços (ainda que limitados) nas relações entre as autoridades públicas e os Estados nacionais no contexto latinoamericano. Porém, em que pese a proliferação de instrumentos jurídicos e de exemplos regionais de aplicação dos mesmos, o Brasil ainda se apresenta diante da comunidade internacional como o país aonde o judiciário reluta em abandonar seu caráter marcadamente civilista e patrimonialista rumo aos movimentos neoconstitucionalistas de vanguarda, cuja preocupação se volta para a proteção dos direitos humanos coletivos, sociais e culturais, incluídos os direitos dos povos indígenas.

Referências bibliográficas ANAYA. James. Promoción y protección de todos los derechos humanos, civiles, políticos, económicos, sociales y culturales, incluido el derecho al desarrollo. Naciones Unidas. Consejo de Derechos Humanos. A/HRC/12/34, p. 11, 2009. CHANG, Ada Alegre. ¿Por qué no se cumplen las normas ambientales? Revista de la Sociedad Peruana de Derecho Ambiental, vol. 10, Lima, p. 1-12, 2002. COMPARATO. Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Relatório sobre a violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília. 2008. CORTE CONSTITUCIONAL DE ECUADOR para el período de transición. El nuevo constitucionalismo en América Latina. 1ª ed. Quito: Corte Constitucional del Ecuador, p. 34, 2010. DANNENMEIER, Eric. A European commitment to environmental citizenship: article 3.7 of the Aarhus convention and public participation in international forums. Yearbook of International Environmental Law, Vol. 18, Oxford University Press, p. 38, 2007. DOUROJEANNI, Marc. Vitória indígena na Bolívia. Notícia de 14 Nov. 2011. Acesso em: 29 Nov 2011. Disponível em: . U

U

DUPRAT, Deborah. O papel do judiciário. Instituto Socioambiental (ISA). 2006. Disponível em: . Acesso em: 28 Nov. 2011. U

U

42

Cf. DOUROJEANNI, Marc. Vitória indígena na Bolívia. Notícia de 14 Nov 2011. Acesso em: 29 Nov 2011. Disponível em: .

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LOIS, Cecília Caballero e COSTA E SILVA, Rafael Vasconcellos de Lima. Diálogos institucionais e democracia. SILVA, Artus Stamford (Org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: Editoria Universitária UFPE, p. 303-329, 2011. MARTINEZ-COBO, José R. The Study of the Problem of Discrimination Against Indigenous Populations. U.N. ESCOR, Subcommittee on Prevention of and Discrimination against Minorities. U.N. doc. E/CN.4/Sub.2/1986/7/Add.5, para. 379, 1986. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição n. 3388, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, Brasília/DF, julgado em 19/03/2009.

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A participação do “amicus curiae” nas ações de controle concentrado de constitucionalidade: a superação do déficit democrático das decisões do STF através da teoria processual de Fazzalari Vitor Fernando Gonçalves Cordula1 TP

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Resumo

Abstract

Em uma época de ampliação da jurisdição constitucional, ocasionada, dentre outros fatores, pela inércia do poder que detém a competência para legislar, e reconhecendo o déficit democrático do poder judiciário para interpretar os atos normativos, atribuindo-lhes sentido e determinação, uma vez que seus membros não são eleitos por sufrágio universal, o presente artigo analisa a possibilidade de se reconhecer no instituto do amicus curiae um mecanismo legitimador das decisões do Supremo Tribunal Federal no controle concentrado de constitucionalidade. A partir da teoria processual de Elio Fazzalari, abraçando a premissa de que o grau de representatividade do órgão jurisdicional é determinado pela influência das partes na elaboração da decisão judicial, pretende-se verificar a contribuição que pode ser dada pelo “amigo da corte” para qualificar as decisões de um procedimento sem partes, como é o caso das ações de controle concentrado. A partir do estudo de julgamentos recentes, tais como o da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510/DF e das Argüições de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, 130, 134 e 153, onde o instituto foi amplamente utilizado, propõe-se verificar, na prática, a plausibilidade das hipóteses elaboradas a partir do ponto de partida teórico já referenciado atestando-se ou refutando-se a viabilidade do instituto para o cumprimento do seu objetivo. Pretende-se, igualmente, analisar as alterações legislativas e da própria postura do Pretório Excelso acerca da matéria, que foi se modificando ao longo de seus julgados.

In a time of expansion of constitutional jurisdiction, caused, amog other factors, by the inertia of the power who has the competence to legislate, and recognizing the democratic deficit of the judiciary to interpret the normative acts, giving them direction and determination, since its members are not elected by universal suffrage, this article examines the possibility of recognizing in the institute of amicus curiae a mechanism of legitimation of decisions taken by the Supreme Court in the concentrated control of constitutionality. From the procedural theory of Elio Fazzalari, embracing the premise that the degree of representativeness of the court is determined by the influence of the parties in the preparation of court decision, intends to examine the contribution that can be given by the “friend of the court” to describe the decisions of a procedure without parts, as the actions of concentrated control. From the study of recent trials, like the Direct Action of Unconstitucionality nº 3.510/DF and the Pleas for Violation of Fundamental Precept nº 54, 130,134 e 153, where the institute was widely used, intends to check in practice, the plausibility of the hypotheses developed from the theoretical point of departure already referenced sating or refutin the viability of the institute for the fulfillment of your objective. It’s also intended to examine the legislative changes and the actual position of the Supreme Court on the subject, which has been changing over its decisions.

Palavras-Chave: Amicus curiae; Legitimidade; Processo; Jurisdição Constitucional.

Keywords: Amicus curiae; Constitutional Jurisdiction.

Legitimacy;

Process;

1

TU

Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Membro do grupo de pesquisa Realismo Jurídico e Direitos Humanos, vinculado à Pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected] UT

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1. Introdução Atualmente, muito se discute acerca do protagonismo do Poder Judiciário que, ante a inércia do Poder Legislativo e confiante na credibilidade de seus membros para com a população nacional, avoca para si funções constitucionalmente delegadas aquel’outro Poder. É o que se convencionou chamar de ativismo judicial – ou judicialização da política2. Deste contexto surgiram vários debates e TP

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foram resgatados outros tantos, que ante a atual conjuntura, tomaram novo fôlego, com novas perspectivas. Dentre tais discussões, avulta em importância aquela relacionada à legitimidade do Poder Judiciário, composto por membros não eleitos democraticamente, para interpretar – e até mesmo criar – atos normativos elaborados – ou que deveriam ter sido elaborados – pelo Poder Legislativo. Não se tratar de tema novo, não havendo que se falar em ineditismo quanto à matéria. Passando pelo embate entre os defensores do controle jurisdicional da constitucionalidade (aqui representados por Ronald Dworkin) e pelos que repudiam qualquer método de controle extra-parlamentar ao fundamento de que somente os representantes populares é que poderiam fiscalizar a si mesmos (aqui representados por Jeremy Waldron), pretende-se alcançar o meio termo, reconhecendo no Judiciário o melhor intérprete não obstante se reconheça, outrossim, a carência de representatividade popular para o desempenho de sua missão. Definida a premissa sobre a qual será alicerçada o raciocínio aqui proposto – ou seja, através da idéia de que apesar de ser o Judiciário a via mais adequada, não é a mais democrática – , passa-se a apresentação da problemática inicial, na qual demonstraremos que apesar de o amicus curiae ser compreendido como instituto legitimador das decisões judiciais tomadas em sede de controle de constitucionalidade, a sua atual natureza jurídica – reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal – torna impossível a realização dessa missão, que só seria possibilitada através do seu reconhecimento como parte no processo. Em seguida, a fim de melhor compreender o conceito de parte e de processo, bem como as conseqüências daí decorrentes, será analisada a teoria do processualista italiano Elio Fazzalari que, remodelando os conceitos de procedimento e processo, adequou o modo pelo qual se presta a jurisdição estatal ao que o professor Rosemiro Pereira Leal denomina de devido processo constitucional. Finalmente, demonstrados os limites impostos pela natureza jurídica atual dos amici curiae, projeta-se o instituto como parte no controle concentrado de constitucionalidade passando-se à analise das faculdades processuais que lhes seriam atribuídas a partir deste reconhecimento – nos moldes propostos por Fazzalari. A questão será tratada no âmbito do controle concentrado de

2

Não é objetivo deste trabalho tratar do ativismo judicial ou da judicialização da política. A referência a que se faz a estes fenômenos, ora tidos como sinônimos, ora tidos como distintos, tem por escopo tão somente alertar o leitor da proximidade entre tal (ou tais) fenômeno(s) e o problema aqui tratado, vez que o resgate e a relevância deste foram agravados por aquele(s).

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constitucionalidade, vez que a ausência de partes neste procedimento, tido como objetivo – além dos efeitos vinculante e erga omnes – tornará o debate ainda mais oportuno. Por derradeiro, ressaltamos que a demonstração do posicionamento da Suprema Corte acerca das discussões aqui desenvolvidas será realizada através da análise de suas decisões ao longo do processamento e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510/DF e das Argüições de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, 130, 134 e 153, onde o instituto foi amplamente utilizado. É também no âmbito destes precedentes que serão projetadas as conseqüências provocadas pela alteração da natureza judicial do amicus curiae.

2. O reconhecimento do déficit democrático do Poder Judiciário para interpretar atos normativos em abstrato Em que pese o reconhecimento, praticamente unânime na doutrina, do caso Marbury versus Madison como sendo o marco inaugural do controle jurisdicional da constitucionalidade das leis, a tensão que lhe serviu de mola propulsora já estava presente desde as declarações de direitos emanadas pelos estadunidenses e pelos franceses, em 1776 e 1789, respectivamente. É a partir destes catálogos de direitos que os súditos do ancien régime reivindicam para si a titularidade do poder soberano e limitam a extensão deste através da imposição de uma série de restriçõesgarantias à atuação do governante estatal. Através do pensamento do abade de Sieyes, o terceiro estado conscientizou-se da sua real posição na organização do corpo social e, como dito, avocou para si a condição de soberano. Entretanto, não poderiam os revolucionários agir em desacordo com os valores por eles próprios instituídos e consagrados no texto constitucional. Queria isto dizer que a soberania popular estaria condicionada pelo respeito a garantias mínimas, imanentes ao ser humano, derivadas simplesmente do reconhecimento dessa natureza – humana. Da constatação de que também o poder soberano é condicionado, e portanto, deveria obedecer a determinados limites, nasce a idéia de que deve haver um órgão institucional responsável por auferir esta compatibilização. Esta missão foi conferida ao Poder Judiciário, guardião da constitucionalidade das leis. Chegando a idêntica conclusão Hübner Mendes analisa as repercussões desta alteração no ofício do magistrado, asseverando que “esta é uma interface especialmente conflituosa em virtude do tempero constitucional. O juiz deixa de ser apenas a ‘boca da lei’ perante o Poder Executivo e o cidadão. É também a ‘boca da constituição’ diante do legislador.”3 TP

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Portanto, vê-se que o controle jurisdicional da constitucionalidade das normas foi entendido como conseqüência direta do reconhecimento de limites ao poder soberano. Noutro dizer, a partir do movimento constitucionalista, através do qual um núcleo duro de garantias fundamentais passou a ser intangível, o poder soberano passou a ser relativizado, o que por sua vez, provocou a

3

Mendes, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 21.

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necessidade de se reorganizar a engenharia institucional do Estado moderno para atribuir essa função a um dos seus três poderes – tendo sido o escolhido o Pode Judiciário4. TP

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Contudo, não obstante se reconheçam a nobreza de intenções e a genialidade do pensamento sobre o qual se fundamenta o sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade, a forma de investidura dos membros daquele Poder suscita um novo problema: a ausência de legitimidade de suas decisões. Se é fato que o povo – poder constituinte – fixa limites para atuação dos poderes constituídos, quer seja o Executivo, quer seja o Legislativo, quer seja o Judiciário, a imputação à este último da competência para extirpar do mundo jurídico os atos praticados por aquel’outros que extrapolem as fronteiras elaboradas, acabou investindo-o de uma dignidade maior que àquela atribuída aos demais. E pior, optou-se pelo menos democrático dentre os três. Esta é a premissa sobre a qual se fundamenta a problemática aqui proposta. Ausente tal constatação não há que se cogitar de mecanismos, tais como o amicus curiae, para legitimar uma atuação que já se considera democrática o bastante. Assim sendo, mister se faz identificar e delimitar os contornos dessa carência de legitimidade para que, posteriormente, possa se pensar em métodos de solucionar a questão. Ressalte-se que a intenção não é negar a necessidade de se controlar a produção normativa infraconstitucional – e até constitucional, por meio de emendas constitucionais – por parte do legislador constituído – ou constituinte derivado. O que se pretende tão somente é verificar a legitimidade do Poder Judiciário para realizar esse procedimento de fiscalização. Ou seja, sendo necessário controlar a atividade legiferante, auferindo a sua compatibilidade com o texto maior, porque atribuir tal função ao Poder Judiciário? A quem deve ser confiada a missão de guardião da ordem constitucional? Respondendo a tais indagações, Ronald Dworkin5 e Jeremy Waldron6 chegam a conclusões TP

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diametralmente opostas. Enquanto aquele defende a ideia de um juiz Hércules, que julgaria de acordo com a “melhor razão”, este entende que somente os representantes do povo, democraticamente eleitos é que poderiam rever os seus próprios atos, posicionando-se contra qualquer tipo de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Contudo, ambos admitem que o Tribunal Constitucional não é democrático. A resposta de Dworkin fundamenta-se em uma teoria constitucional – na qual se prioriza a garantia dos direitos humanos em detrimento da vontade da maioria – ao passo em que Waldron busca argumentos em uma teoria de legitimidade da autoridade. Daí porque este não admite ser a atuação dos legisladores, dotados de maior representatividade, inferior à dos magistrados.

4

Há, contudo, exceções a tal regra, como é o caso da França. Lá o controle de constitucionalidade compete ao Conseil Constitutionnel, órgão de natureza política, desvinculado de qualquer dos três poderes.

5

Dworkin, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

6

Waldron, Jeremy. “Freeman’s Defense of Judicial Review”, Law and Philosophy, Vol. 13, 1994. apud in: Mendes, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008

450

Retirando a legitimidade da autoridade decisora da equação, Dworkin procura tão somente o arranjo mais propício à decisão “correta”. Desta feita, embora defenda a escolha do Poder Judiciário para desempenho do mister fiscalizatório, Dworkin reconhece a ausência de representatividade da decisão judicial, que estaria justificada por ser a “melhor decisão”. Com isto, claro está que aqueles que reconhecem a necessidade de um controle de constitucionalidade jurisdicional vislumbram neste modo de organização das funções institucionais a única saída – a mais adequada – para preserva o núcleo duro de valores enraizados em uma dada sociedade e refletidos na sua constituição. Não o reconhece

porque

seja

democrático.

Pelo

contrário,

vislumbram

até

vantagens

nesse

distanciamento entre os decisores e o jurisdicionado, vez que tal postura contribuiria para a neutralidade do julgamento e seria garantia de sucesso na busca da “melhor solução”7. TP

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Foi com base neste raciocínio – que vislumbrava a figura do julgador imparcial, distante das pressões democráticas – que se elaborou o modelo austríaco de controle de constitucionalidade. Modelo este que tem por característica básica a aferição em abstrato do ato normativo cuja constitucionalidade se impugna. Abstração esta que retira a figura da parte do processo, que passa a ser objetivo. Assim, o Poder Judiciário foi escolhido para fiscalizar a constitucionalidade da produção normativa por sua neutralidade, associando-se tal característica à idéia de ser este um Poder contramajoritário, alheio ao sentimento popular. Entretanto, o fato de o julgador não estar vinculado ao cidadão/eleitor não significa dizer que este deve ser excluído do processo de elaboração da decisão. Tal conclusão atentaria contra os próprios valores tutelados pela jurisdição constitucional. A neutralidade do julgador deve estar relacionada à inclusão de todas as partes no processo e não na sua exclusão. Nesta perspectiva, indaga-se: não haveria meios de se inserir instrumentos democratizantes no exercício daquele Poder? Respondendo afirmativamente a esta pergunta, Peter Häberle procura demonstrar que a atividade interpretativa da Corte Constitucional deve possibilitar a “livre discussão do indivíduo e de grupos ‘sobre’ e ‘sob’ as normas constitucionais”8, de modo que ao cidadão seja assegurada a TP

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possibilidade de contribuir para a formação da convicção do julgador. Com base na teoria de Häberle, e atento ao déficit democrático dos magistrados para aferir em abstrato a constitucionalidade de determinado ato normativo, o legislador brasileiro editou as Leis nº 9.868/99, 9.882/99 e 11.418/06, responsáveis por instituir, no âmbito do sistema nacional de

7

Neste sentido, Dworkin assevera que “O juiz que não se encontra pressionado pelas demandas da maioria política está em melhor posição para avaliar o argumento de princípio” Ob. cit.

8

Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997, p. 13.

451

controle jurisdicional da constitucionalidade das leis o instituto do amicus curiae, que terá sua finalidade e natureza jurídica melhor delimitadas a seguir.

3. A missão do amicus curiae e sua atual natureza jurídica segundo o Supremo Tribunal Federal A idéia de um “amigo da corte” no controle de constitucionalidade brasileiro é inovação jurídica provocada pela forte recepção do pensamento de Peter Häberle na doutrina constitucional pátria. Esse professor alemão debruça-se sobre o embate entre constituição jurídica e constituição real, resgatando a velha problemática enfrentada por Fernando Lassalle9. Häberle crê na TP

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importância da inserção de todos aqueles que irão arcar com as decisões tomadas no processo de sua elaboração, pois de outro modo, a decisão estaria alheia aos reclames sociais, o que provocaria um distanciamento insuperável entre a norma e a realidade fática. Propõe, portanto, um método hermenêutico constitucional participativo como solução para a superação do conflito entre a constituição real e a constituição jurídica. Para ele, “quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por cointerpretá-la”.10 Assim, o magistrado não seria o TP

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único agente capaz de atribuir sentido ao comando constitucional, mas poderiam fazê-lo também todos os indivíduos sobre os quais a norma irá incidir compondo o que Häberle denomina de “comunidade aberta dos intérpretes da constituição”. Este conceito de comunidade aberta é a chave para o seu pensamento, vez que reflete a ideia de processualização da interpretação constitucional. Entendendo a constituição como processo público, Häberle institucionaliza os fatores reais de poder, tornando-os agentes conformadores da norma constitucional pela via interna, ou seja, por dentro do sistema posto. Dessa forma, os grupos de interesse da sociedade – ou quaisquer outras entidades presentes no corpo social – poderão alterar o sentido da norma constitucional através da mutação da sua interpretação sem modificação de texto. Portanto, a participação do vários setores da sociedade no debate constitucional é fator de estabilidade e perpetuação do sistema, sem o qual a o Texto Maior vê ameaçada a sua própria força normativa. Em idêntico sentido conclui Inocêncio Mártires Coelho que “onde se assimilam os conflitos institucionais e se acolhem as mutações constitucionais dele decorrentes, não resta espaço para erupções inconstitucionais”11. TP

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A constituição seria um processo constante, fruto de um debate plural entre os fatores reais de poder presentes no corpo social e os agentes oficiais, institucionalizados, responsáveis pela interpretação oficial das normas constitucionais. A necessidade de conformação entre a vontade de

9

Lassalle, Ferdinand. A essência da constituição. 3 ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988.

10

Häberle, Peter. Ob. cit., p. 13.

11

Coelho, Inocêncio Mártires. Fernando Lassalle, Konrad Hesse, Peter Häberle: a força normativa da constituição e os fatores reais de poder. Universitas/Jus, Brasília: Centro Universitário de Brasília, n. 6, JAN/JUN/2001.

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constituição (Ville zur Verfassung), e àqueles fatores é condição sem a qual careceria de normatividade o Texto Maior, destinado então, a tornar-se mera folha de papel.12 TP

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Neste contexto, para concretização destas idéias em nosso ordenamento jurídico, é que foi criado o instituto do amicus curiae. Seria este, portanto, um instrumento legitimador das decisões tomadas pelo Poder Judiciário em questões de relevante valor social. Neste sentido é que se exige do requerente à amicus curiae a representatividade mencionada pelo § 2 º do art. 7º da Lei nº 9.868/99. Ao “amigo da corte” cabe a função de levar ao Tribunal Constitucional a vontade da parcela da população que representa, bem como os argumentos de convencimento daqueles, com vistas a influenciar na formação do resultado final, transformando-o em um ato intersubjetivo. Traz-se à colação o seguinte aresto jurisprudencial que demonstra não só a recepção antes mencionada das idéias de Häberle pelo Supremo Tribunal Federal, como também a finalidade acima referenciada atribuída ao “amigo da corte” pelo Pretório Excelso: A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99 – que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae – tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional” (ADI 2.130-MC, rel. min. Celso de Mello, DJ 02.02.2001). Vêse, portanto, que a admissão de terceiros na qualidade de amicus curiae traz ínsita a necessidade de que o interessado pluralize o debate constitucional para o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade.13 (grifos nossos) TP

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Entretanto, não obstante o reconhecimento da grandeza da missão de que é incumbido o novel instituto, a Corte Suprema atribui-lhe natureza jurídica de simples interveniente, estranho à relação jurídica processual. Não podendo ser compreendido como parte, cabe-lhe tão somente se manifestar – quando aceito o seu requerimento para ingressar no feito – podendo, no máximo, sustentar oralmente a sua argumentação pelo tempo de 15 (quinze) minutos. Essa natureza jurídica é incompatível com a finalidade perseguida pelo instituto, pois, conforme se verá adiante, somente através do seu reconhecimento como parte no processo é que será o amicus curiae investido de todas as faculdades processuais necessárias para desempenhar a contento o papel que lhe foi outorgado. Neste ponto, o estudo da teoria processualista de Fazzalari é imprescindível à compreensão da relação de dependência que aqui se estabelece entre o reconhecimento do amicus curiae como parte do processo e a realização de seu objetivo. 12

Coelho, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista de Direito Público n. 7, Jan-Fev-Mar/2005. p. 21-33. Disponível em . Acessado em: 20.11.11.

13

Brasil, Supremo Tribunal Federal, ADIN 3889/RO, Decisão monocrática, Min. Joaquim Barbosa, DJ de 06.11.2007. apud in Bisch, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, européia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 111.

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4. O processo judicial visto como o procedimento em contraditório: a teoria de Fazzalari A partir do movimento neoconstitucionalista, o ordenamento jurídico passou a ser interpretado à luz da Constituição Federal. Esta passou a ser o astro maior da constelação normativa. Quer isto dizer que todas as leis passaram a ser interpretadas conforme os princípios norteadores elencados pelo Texto Maior. Por via de conseqüência, também o exercício da prestação jurisdicional teve de ser remodelado para adequar-se ao novo paradigma. Neste contexto, o processo, sendo instrumento através do qual o Poder Judiciário exerce sua função típica – de solucionar os conflitos que lhe são apresentados pelo jurisdicionado –, também teve de ser reorganizado para se conformar à nova engenharia institucional provocada pela valoração da norma constitucional. Atento a essas preocupações, o processualista italiano Elio Fazzalari remodela o conceito de procedimento e, principalmente, de processo para adequá-los a essa moderna visão – neoconstitucionalista e neoinstitucionalista – do direito processual civil. Segundo Fazzalari, o procedimento deve ser entendido como um conjunto de atos preparatórios de um determinado provimento. O provimento, por sua vez, é o ato praticado pelo Estado que, investido do seu poder de império, provoca a limitação dos direitos individuais do jurisdicionado. Quando este procedimento observar a garantia do contraditório, estar-se-á diante do processo. Portanto, o processo seria o procedimento qualificado pelo contraditório14. TP

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Ainda segundo o mesmo autor, o contraditório – elemento qualificador do procedimento – poderia ser representado pela idéia de simétrica paridade entre as partes interessadas no provimento final, ou com já falava Ihering, pela paridade de armas. Portanto, todos aqueles que fossem juridicamente afetados pela decisão teriam a faculdade de participar do procedimento de sua elaboração, em condições semelhantes àquelas garantidas aos demais interessados. Cumpre asseverar, como faz Plínio Gonçalves, que: A idéia da participação, como elemento integrante do contraditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desenvolveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera participação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo. O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas os “interessados e os contrainteressados” na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos, ou seja, interferindo imperativamente em seu patrimônio.15 TP

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14

Nas palavras de Fazzalari, “Se, poi, il procedimento è regolato in modo che vi partecipino anche coloro nella cui sfera giuridica l'atto finale è destinato a svolgere effeti (talché l'autore di esso debba tener conto della loro attività), e se tale parecipazione è congegnata in modo che i contrapposti interessati (quelli che aspirano alla emanazione dell'atto finale interessati in senso stretto - e quelli che vogliono evitarla - contro-interessati) siano sul piano di simmetrica parità; allora il procidimento comprende il contraddittorio, si fa più articolato e complesso, e dal genus prodecimento è consentito enucleare la species processo”. (Fazzalari, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale, 5ª ed., Padova: Cedam, 1989. p. 57/58.) 15

Gonçalves, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Minas Gerais: Aide Editora. 1992. p. 127.

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Esse novo conceito de processo, alicerçado sobre a base do contraditório e que tem na valorização da parte a sua maior característica, reestrutura o exercício da prestação jurisdicional adequando-a ao paradigma neoconstitucionalista. De fato, através da participação efetiva daqueles que irão suportar os efeitos da decisão judicial no procedimento de sua elaboração, a atuação do Poder Judiciário ganha a legitimidade que lhe é ausente. Cotejando essa nova abordagem que foi dada ao processo judicial com o ideal interpretativo de Peter Häberle, vislumbra-se a convergência entre ambas as teorias. Ambas pensam o processo como instrumento indispensável para consecução dos objetivos constitucionais, quer seja porque legitima a decisão estatal, quer seja porque a conforma aos anseios da sociedade aberta, plural e participativa. Podemos identificar elementos tanto da teoria processual de Fazzalari quanto da teoria da sociedade aberta dos interpretes da constituição de Häberle na lição de Rosemiro Pereira Leal, para quem “a concretização do direito não é ato maiêutico do juiz, mas hermenêutico das partes a partir da procedimentalização argumentativa em modelo (escrito ou oral) autorizado pelo devido processo constitucional na intra e infra constitucionalidade”16. TP

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Conformando a idéia dos dois autores referenciados, o professor mineiro atribui às partes a missão/faculdade de participar da elaboração da norma que está por vir, aquela que será aplicada ao caso concreto, notadamente sobre as suas esferas jurídicas. Através desta participação, a decisão judicial deixaria de ser um processo histórico – inevitável – e passaria a ser um processo democrático, de certa forma dirigido pelos interessados diretos, que seriam libertos de atos de imposição oriundos de forças alheias, tomando para si as rédeas do seu destino. Em suas palavras: Não mais nos orientamos atualmente por processo histórico (causalidade histórica) fora das constituições em concepções fatalistas e inescapáveis (ortodoxomarxista) a determinar a consciência dos homens, mas o que se busca é a construção de uma sociedade (não-causalidade sociológica) que passe pelo processo democrático do exercício coletivo das conquistas teórico-jurídiconormativas de todos igualmente decidirem e interpretarem o devir. Claro que tal esforço teórico tem seus fundamentos na instituição constitucionalizada do processo que se define pelos princípios do contraditório, isonomia e ampla defesa, condutores dialógicos (afirmações-negações) no espaço político de juridificação (edificação jurídico-sistemática) dessa nova realidade esperada. (grifos no original)

Neste diapasão, devem ser partes todos aqueles que forem direta ou indiretamente afetados pela decisão judicial. Por tudo isto é que não se pode aceitar seja o amicus curiae algo diferente de parte. Sem o reconhecimento desta natureza jurídica, vislumbrando naquela figura um mero perito17, TP

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auxiliar do juízo, lhe serão negadas todas as garantias constitucionais de que são investidos os 16

Leal, Rosemiro Pereira. Toeria Geral do Processo: Primeiros Estudos. 9ª Edição. Revista e aumentada. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2010. p. 58. 17

Ver acompanhamento processual da ADPF nº 54, onde se encontram várias decisões do Min. Marco Aurélio neste sentido.

455

participantes efetivos (partes) do processo judicial. É dizer, não terá direito-garantia ao contraditório, à ampla defesa, enfim, ao devido processo constitucional. Por tudo isto é que, entendido como terceiro especial, o amicus curiae não estaria em simétrica paridade com os demais integrantes do processo. Dentre os vários desdobramentos dali decorrentes, há que se ressaltar o de maior repercussão na missão do “amigo da corte”: para elaboração da decisão final o julgador não estaria obrigado a observar em relação àquele terceiro, que tão somente se manifestou acerca da matéria, o dever de fundamentação previsto pelo art. 93, IX, da Constituição Federal18. Noutro dizer, o TP

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julgador pode simplesmente se omitir acerca dos argumentos trazidos à discussão pelo amicus curiae e o seu pronunciamento ainda assim estaria válido e conforme os princípios (garantias) processuais constitucionais. Tal é a consequência de se negar àquele instituto, pretensamente legitimador, a condição de parte – na conceituação apresentada por Fazzalari –, pois sendo a fundamentação decisional o meio através do qual as partes poderão fiscalizar a atuação do juiz e verificar os motivos pelos quais a sua decisão diverge ou converge com a argumentação trazida, não há que se falar em necessidade de fundamentar quando carece o sujeito de direito ao contraditório – vez que não lhe é outorgada a natureza jurídica de parte do processo. Identificando a existência da relação umbilical aqui apontada entre o contraditório e o dever de fundamentação da decisão judicial assevera Daniel Mitidiero que: Tem-se sustentado, acertadamente, que o dever de fundamentação das decisões consiste na ‘última manifestação do contraditório’, porquanto a motivação ‘garante às partes a possibilidade de constatar terem sido ouvidas’. Há, pois, um nexo inarredável entre inafastabilidade da jurisdição, direito fundamental ao contraditório e dever de fundamentar as decisões jurisdicionais, sem o qual não se pode reconhecer a existência de um processo justo.19 (grifos nossos) TP

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Desse modo, há um efeito cascata: quem não é parte não tem direito ao contraditório; ausente este, ausente também o dever de fundamentar, pois não há necessidade de garantir ao sujeito que seus argumentos foram ouvidos. A corte não precisa argumentar para afastá-los, pode simplesmente desconsiderá-los. Assim, o grau de participação do “amigo da corte” na elaboração da decisão tomada em sede de controle de constitucionalidade está sujeita à vontade do julgador. Ele poderá debruçar-se sobre a manifestação do terceiro ou não.

18

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; 19

Mitidiero, Daniel. Bases para construção de um processo civil cooperativo: o direito processual civil no marco teórico do formalismo-valorativo. Tese de doutoramento apresentada ao programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: < http://www.lume.ufrgs.br /bitstream/handle/10183/13221/000642773.pdf?sequence=1> Acessado em: 20.11.11.

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Demonstra-se, portanto, as conseqüências da atual natureza jurídica atribuída aos amici curiae, que não sendo sujeitos no processo, não podem requerer diligências, auxiliar na instrução probatória, direcionar os rumos do julgamento. A eles é facultado simplesmente o direito de ser ouvido. Frise-se que o direito de ser ouvido não implica sequer no direito de obter resposta acerca de seus argumentos. Tal cenário é constatado quando se impede que o amicus curiae possa recorrer da decisão do Tribunal20. TP

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Ressalte-se neste ponto que o novo desenho processual aqui proposto não tem por escopo desprestigiar o julgador ou tolher-lhe a missão de decidir. Conforme bem asseverou o Rosemiro Pereira Leal, são “guardadas as características de suas atuações legais de articulador-construtor (parte) e aplicador-julgador (juiz)”21. Corroborando este entendimento Aroldo Plínio Gonçalves TP

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afirma que “a participação do juiz não o transforma em um contraditor”22. Deste modo, verifica-se TP

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que não é intenção do pensamento vanguardista rebaixar o decisor, ou elevar as partes à sua condição, mas tão somente possibilitar àquelas a faculdade de participar do exercício decisor. Este entendimento está em total consonância com o pensamento de Häberle, para quem o processo de interpretação dos atores não oficiais é anterior àquele realizado pelo magistrado, a quem compete decidir a contenda.

5. Conclusão: o controle concentrado da constitucionalidade e a necessidade de superação do paradigma objetivista - o reconhecimento do amicus curiae como parte no processo Como dito alhures, o modelo austríaco de controle da constitucionalidade caracteriza-se pela apreciação em abstrato do texto normativo impugnado. Neste modo de cognição, não seriam considerados aspectos concretos, razão pela qual não faria sentido falar-se em partes. Não haveria interesses contrapostos, mas apenas o interesse comum de verificar a compatibilidade do texto impugnado à norma constitucional. Entretanto, filiando-se às idéias de Häberle – assim como faz o STF –, verifica-se que a participação dos membros da sociedade na formação do provimento de jurisdição constitucional é condição sine qua non para que o Texto Maior seja investido de toda a sua potência normativa. O distanciamento da vontade popular provoca rupturas que poderiam ser evitadas caso os agentes não oficiais possuíssem canais institucionalizados de comunicação efetiva. 20

Brasil, Supremo Tribunal Federal. ADI-ED 3615/PB, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 25.04.2008. Nesta questão restou vencido o Min. Gilmar Mendes que se manifestou de modo favorável ao amicus curiae, entendendo que o mesmo possuía legitimidade recursal. 21

Leal, Rosemiro Pereira. Toeria Geral do Processo: Primeiros Estudos. 9ª Edição. Revista e aumentada. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2010. Completando a lição, assevera o autor que “A jurisdição não é atividade jurídico-resolutiva e pessoal do juiz ou dos agentes do Estado, mas o próprio conteúdo da lei conduzido por aqueles agentes indicados na lei democrática. Tanto a parte como o juiz exercem, nos procedimentos, jurisdição, guardadas as características de suas atuações legais de articulador-construtor (parte) e aplicador-julgador (juiz), sendo que ambos são figurantes da estrutura procedimental que é o espaço democrático sempre aberto (direito de petição) de instalação estrutural do contraditório, isonomia e ampla defesa como direitos constitucionalmente fundados em nome do processo institucional de discussão, afirmação e produção jurídica permanente.” (grifos no original), p. 63 22

Gonçalves, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Minas Gerais: Aide Editora. 1992. p. 121.

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De outra banda, Fazzalari adverte que a participação pretendida por Häberle só será efetiva quando os sujeitos do diálogo estiverem em simétrica paridade, participando proativamente do procedimento de construção da decisão que ao final será tomada pelo Tribunal, pois como aduz o processualista italiano, deles são os interesses em jogo. Partindo-se de tais premissas, não há como negar o anacronismo do processo objetivo. Tal modalidade não se compatibiliza com a sociedade plural, democrática, aberta, hodiernamente vivenciada dentro do estado constitucional de direito. Neste novo paradigma social, não faz sentido falar-se em ausência de partes ou julgamento abstrato. Pelo contrário. A Corte Constitucional deve sim exercer a sua jurisdição de maneira dialógica, construindo a sua interpretação através de um ato hermenêutico – e não maiêutico – do qual possam participar todos aqueles que podem ser atingidos pela decisão final. Para isto, o amicus curiae deve ser compreendido como parte do processo de jurisdição constitucional. O reconhecimento de natureza jurídica diversa traz conseqüências processuais que tornam impossível a consecução de suas finalidades. Finalidades estas que transcendem ao instituto, sendo ínsitas ao próprio estado constitucional de direito. O amicus Curie é instrumento de realização da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, não é fim em si mesmo. As leis nº 9.868/99 e 9.882/99 que instituíram o amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade estão imbuídas deste novo paradigma a que se faz alusão. Neste sentido, o responsável pela elaboração das leis, apresentas ao Congresso Nacional no mesmo ano que o seu mentor traduzira a obra de Peter Häberle para o idioma pátrio, manifestou-se de modo favorável à legitimidade recursal do “amigo da corte”23. TP

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Ora, se possui legitimidade recursal é porque, sendo interessado no provimento final alcançado pelo Tribunal, poderá ser parte na relação processual, investindo-se dos poderes e faculdades processuais necessários ao desempenho de seu direito. Contudo, para que possa ser reconhecido como parte no controle concentrado de constitucionalidade é preciso que este admita a participação dos sujeitos interessados no processo. Participação esta que – como já mencionado anteriormente – não irá subtrair a imparcialidade do julgador, que não é contraditor. Este formará o seu convencimento, de modo livre e motivado, a partir de um raciocínio intersubjetivo, mas que, ao fim e ao cabo, é seu. A participação dos interessados na decisão provocará no magistrado apenas o dever de melhor fundamentar a decisão, vez que o obrigará a formar sua cognição dentro daquela moldura delineada pelos argumentos trazidos aos autos24. TP

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Faz-se alusão ao voto do Min. Gilmar Mendes no julgamento da -ED 3615/PB, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 25.04.2008. 24 Repise-se que sem se reconhecer o amicus curiae como parte no processo, não estará obrigado o magistrado a se manifestar sobre os fundamentos por ele apresentados, o que o impossibilitará de restringir a moldura dentro da qual deve ser formada a cognição judicial.

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O que se busca com a subjetivização do controle concentrado não é o fim da jurisdição constitucional, mas a sua adequação aos moldes da sociedade atual.

Referências bibliográficas BISCH, Isabel da Cunha. O amicus curiae, as tradições jurídicas e o controle de constitucionalidade: um estudo comparado à luz das experiências americana, européia e brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADIN 3889/RO, Decisão monocrática, Min. Joaquim Barbosa, DJ de 06.11.2007. ______. ADI-ED 3615/PB, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ de 25.04.2008. COELHO, Inocêncio Mártires. Fernando Lassalle, Konrad Hesse, Peter Häberle: a força normativa da constituição e os fatores reais de poder. Universitas/Jus, Brasília: Centro Universitário de Brasília, n. 6, JAN/JUN/2001. ______. Konrad Hesse/Peter Häberle: um retorno aos fatores reais de poder. Revista de Direito Público n. 7, Jan-Fev-Mar/2005. p. 21-33. Disponível em . Acessado em: 20.11.11. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale, 5ª ed., Padova: Cedam, 1989 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Minas Gerais: Aide Editora. 1992. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997, p. 13. LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 3 ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1988. LEAL, Rosemiro Pereira. Toeria Geral do Processo: Primeiros Estudos. 9ª Edição. Revista e aumentada. Rio de Janeiro: Ed. Forense. 2010. MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008 MITIDIERO, Daniel. Bases para construção de um processo civil cooperativo: o direito processual civil no marco teórico do formalismo-valorativo. Tese de doutoramento apresentada ao programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em:

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20.11.11. WALDRON, Jeremy. “Freeman’s Defense of Judicial Review”, Law and Philosophy, Vol. 13, 1994. apud in: Mendes, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.

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Direito humano fundamental do trabalho na contemporaneidade e a teoria marxista Adriana Guedes de Castilho.............................................................................................................................................461 Acerca da não edição da lei do IGF no Brasil: uma crítica de inspiração marxista Brena de Melo Freitas.......................................................................................................................................................471 Atomocentrismo e o discurso dos direitos humanos Danilo José Viana da Silva...............................................................................................................................................484 A retórica metódica jurídica na aplicação da lei da contradição de Mao Tse Tung no estudo do direito Fernando Joaquim Ferreira Maia......................................................................................................................................494 A Frágil Tensão da Integração: uma breve consideração acerca da universalidade dos direitos humanos e organização das demandas particulares a partir da teoria do discurso de Ernesto Laclau Leonardo Monteiro Crespo de Almeida.............................................................................................................................510 Uma investigação da validade da teoria dialética do direito a partir da verificação de sua utilização pelos advogados populares Marcos Lima Filho.............................................................................................................................................................520 A crítica marxiana aos direitos humanos n’a questão judaica a partir do(s) conceito(s) de alienação Ronaldo Bastos..................................................................................................... ...........................................................541 A efetividade dos direitos humanos sob o capitalismo e a crítica anticapitalista dos direitos humanos Thiago Arruda Queiroz Lima.............................................................................................................................................557

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Direito humano fundamental do trabalho na contemporaneidade e a teoria marxista Adriana Guedes de Castilho1 TP

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Resumo

Abstract

O objeto do estudo é o direito do trabalho na contemporaneidade, através da análise da influência econômica na trajetória da modernidade, no desenvolvimento dos direitos sociais para, ao final, traçar pontos da teoria marxista na sociedade atual. A conquista dos direitos humanos está relacionada com o desenvolvimento do capitalismo. A era do capitalismo liberal foi de luta contra a dominação e desigualdade política que fez surgir os direitos civis e políticos. A origem do Estado social se deu com a crise do liberalismo e movimentos sociais contra a exploração e desigualdade social, originando direitos sociais e econômicos. Na era pós-moderna observase uma relativização dos direitos sociais conquistados, principalmente os direitos trabalhistas. O direito do trabalho é um direito humano fundamental da categoria dos direitos sociais reconhecido mundialmente, presente na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 no art. XXIII, sendo, posteriormente, implantado nos Estados, através de uma legislação trabalhista protetiva que preservavam a dignidade humana do trabalhador. O estudo mostra que as críticas de Marx aos direitos humanos como direitos do membro da sociedade burguesa e ao direito como mero reflexo da relação econômica capitalista podem ser identificadas no exame da conquista e supressão de direitos trabalhistas na sociedade contemporânea, decorrentes das modificações ocorridas no capitalismo, podendo ser identificado, hoje, termos marxistas como alienação, mais valia, dominação em um contexto mais danoso para o ser humano. A metodologia adotada é bibliográfica com análise de obras relacionadas ao marxismo e ao atual modelo econômico.

The object of the study is the right of the work in the actually, through the analysis of the economical influence in the path of the modernity, in the development of the social rights for, at the end, to draw points of the Marxist theory in the current society. The conquest of the human rights is related with the development of the capitalism. The era of the liberal capitalism was of fight against the dominance and political inequality that made to appear the civil laws and political. The origin of the societal State felt with the crisis of the liberalism and social movements against the exploration and social inequality, originating societal and economical rights. In the post-modern is a relativization of the conquered societal rights, mainly the labor laws is observed. The right of the work is a fundamental human right of the category of the societal rights recognized globally, present in the Declaration of the Human Rights of 1948 in the art. XXIII, being, later, implanted in States, through a protective labor legislation that you/they preserved the worker's human dignity. The study shows that the critics of Marx to the human rights as rights of the member of the bourgeois society and to the right as mere reflex of the capitalist economical relationship can be identified in the exam of the conquest and suppression of labor laws in the contemporary society, current of the modifications happened in the capitalism, could be identified, today, we have Marxists as alienation, more value, dominance in a more harmful context for the human being. The adopted methodology is bibliographical with analysis of works related of the Marxist anda current economical model.

Palavras-Chave: Direito Contemporaneidade.

Keywords: Right of the work; Marxism; Actually.

do

trabalho;

Marxismo;

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Mestranda do programa de pós graduação em Direito Econômico da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Email – [email protected] ou [email protected] TU

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1. Introdução A trajetória da modernidade está relacionada com o desenvolvimento do capitalismo e a conquista dos direitos humanos. Os direitos sociais foram conquistados a partir de movimentos sociais que reivindicavam condições mais dignas de trabalho e menos desigualdade social. O direito do trabalho é um direito humano fundamental da categoria dos direitos sociais reconhecido mundialmente, presente na Declaração dos Direitos Humanos de 1948 no art. XXIII que coloca que toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Os Estados passaram a positivar legislações trabalhistas protetivas em respeito a dignidade do trabalhador. Contudo, diante de uma crise econômica e novas modificações para manter o capitalismo, o Estado de bem estar social não se mantém e as idéias liberais ressurgem no campo econômico, pondo em causa direitos sociais que pareciam conquistas irreversíveis, o que traz graves conseqüências para os trabalhadores na contemporaneidade. O tema do presente trabalho é Direito humano fundamental do trabalho na contemporaneidade e teoria marxista. O estudo buscou identificar pontos da teoria marxista na atual sociedade que podem confirmar o que foi descrito por Marx quanto à exploração do proletariado no sistema capitalista e a influência da economia na política e no direito, conduzindo a vida social conforme a dinâmica da base produtiva das sociedades e das lutas de classes. Para tanto, analisou-se a trajetória do desenvolvimento do capitalismo, da conquista dos direitos humanos e transformações nos direitos trabalhistas diante das crises e alterações econômicas do capitalismo que originaram um sistema capitalista globalizante.

2. Direitos Humanos Fundamentais O direito ao trabalho é um dos direitos humanos, fazendo parte dos direitos sociais, sendo resguardado internacionalmente.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

reconhece como núcleo básico dos direitos fundamentais da pessoa humana o do direito ao trabalho no seu artigo XXIII com a seguinte redação: Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. A positivação do que estava discriminado na declaração ocorreu através da implantação de uma legislação protetiva de direitos trabalhistas nos Estados, dentro de um modelo estatal que se denominou de Estado de bem-estar social.

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O surgimento do Direito Social está ligado a própria transformação do Estado Liberal em Estado Social, o que acabou sendo o protagonista do desenvolvimento da atuação que se convencionou chamar de política do bem-estar social2. TP

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Ao analisar a trajetória histórica do capitalismo, observa-se que os direitos humanos surgem como resposta aos problemas sofridos pela sociedade na época. O direito ao trabalho surge em resposta ao desemprego derivado do processo de rápida urbanização, que gerou desconcentrações de mão de obra, no período de evolução do sistema capitalista, passando-se a exigir um mínimo de condições. Assim, a Declaração foi um marco que serviu de espelho para os Estados que ainda não possuíam positivação dos direitos sociais.

2. Do Estado liberal ao Estado liberal: conquista e perda dos direitos trabalhistas e atuação do Poder Judiciário O título “Do Estado liberal ao Estado liberal” enfatiza a relação entre as idéias liberais e o capitalismo. Karl Marx descreve que seria característica do capitalismo ciclos de prosperidade e, em seguida de recessão, com crises periódicas de desemprego. O período de depressão econômica faria inchar o exército de reserva constituído de desempregados e deprimiria o padrão de vida do operariado, reduzindo-o ao nível ou abaixo do nível de subsistência. O capitalismo não sofreria apenas uma grande depressão, ou o desemprego em massa duraria para sempre. Sob o efeito da depressão, os salários do operariado cairiam, mas não tão rapidamente quanto a produção. Ao fim de algum tempo, a oferta voltaria a ser inferior à procura no mercado consumidor, iniciando-se a recuperação da economia3. TP

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Marx parece não ter errado quando descreve o sistema capitalista, haja vista que as mudanças econômicas provocaram uma mudança política no papel do Estado. Esse é o entendimento de Boaventura de Sousa Santos ao descrever a trajetória da modernidade como vinculada ao desenvolvimento do capitalismo e dos direitos humanos. O Estado liberal nasce do capitalismo liberal com expansão e consolidação dos direitos civis e políticos contra uma desigualdade política que se traduz no conceito de dominação. Contra a desigualdade sócio-econômica que se traduz no conceito de exploração, surge o Estado social, caracterizado pela conquista dos direitos sociais e econômicos. Posteriormente, era pós-moderna,

2

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. O que é Direito Social? In Curso de Direito do Trabalho. Coleção Pedro Vidal Neto. São Paulo: LTR, p. 15, 2007.

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HUNT, E.; SHERMAN, Howard J. História do Pensamento Econômico. Petrópolis: Vozes, 1986.

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é o período da desigualdade simbólico-cultural que se traduz no conceito de alienação, época de pôr em causa os direitos sociais e econômicos conquistados4. TP

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2.1 Do Estado Liberal ao Estado Social: Conquista dos Direitos Sociais Contra o estado absolutista, surgem às idéias liberais que dominam o pensamento político, econômico e social da época, defendo-se a liberdade individual. A concepção liberal de Estado de Kant é descrita por Bobbio como uma das melhores formulações. Baseando-se na liberdade individual, o estado seria mais perfeito se cada vez mais garantisse a todos o desenvolvimento da liberdade individual. Nesse sentido, o Estado não se preocuparia em prescrever fins para cada indivíduo, mas atuar de maneira que cada indivíduo possa alcançar livremente os próprios fins. Essa concepção se opõe à concepção absolutista que atribuía ao Estado o fim principal de dirigir os súditos para a felicidade5. TP

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O Estado Liberal tem origem com vários movimentos chamados de constitucionais que pregavam a liberdade individual que deu origem aos direitos civis e políticos consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Karl Marx faz crítica a essa declaração na obra A questão judaica como originada de interesses burgueses e os direitos consagrados visavam manter a condição da burguesia como classe dominante. Os direitos consagrados na Declaração não seriam direitos da humanidade genérica, mas sim do homem burguês6. TP

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As idéias liberais adentraram, também, no campo econômico, adotando-se o modelo econômico liberal que defendia o “Estado mínimo”, rejeitava qualquer intervencionismo estatal na economia, reservando para o Estado as funções de proteger a propriedade privada, facilitar a produção privada, manter a ordem pública. O pai do liberalismo econômico foi Adam Smith com sua obra: A riqueza das nações, publicada em 1776, revolucionando o pensamento político da época. Smith defendia a concorrência entre os privados, dentro de um mercado livre, acreditando que os seus interesses naturalmente se harmonizariam em proveito do coletivo. Hunt & Sherman explicam a idéia de Smith ao defender a economia de mercado: Smith acreditava que todo indivíduo esforça-se continuamente para encontrar o emprego mais vantajoso para o capital. Os indivíduos desprovidos de capital estão sempre procurando o emprego que lhes ofereça o maior retorno monetário possível pelo seu trabalho. Se ambos, capitalistas e trabalhadores, ficassem entregues à própria sorte, o interesse próprio os levaria a empregar seu capital ou seu trabalho onde este fosse mais produtivo. Um mercado livre, no qual 4

SANTOS, Boaventura de Souza. Os Direitos Humanos na Pós-modernidade. Oficina do Centro de Estudos Sociais, Coimbra, 1989.

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Bobbio, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. Brasília: UNB, 1984. T

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Marx, Karl. Sobre a questão Judaica. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: Boitempo, p. 25, 2010.

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produtores, movidos pelo desejo egoísta de obter mais lucro, concorreriam entre si para atrair o dinheiro dos consumidores, o capital e o trabalho seriam obrigatoriamente, por força do próprio mercado, investidos de forma mais produtiva, assegurando a produção dos gêneros necessários e desejados pelos consumidores. Além disso, o mercado levaria os produtores a aprimorar constantemente a qualidade de seus produtos e a organizar a produção da forma mais eficiente e menos dispendiosa possível. Todas essas ações benéficas seriam a decorrência direta da concorrência entre os homens, cada qual agindo em seu próprio interesse7. TP

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Pela teoria de Adam Smith o mercado seria capaz de se regular sozinho como se existisse uma “mão invisível”, termo por ele desenvolvido, que orientasse os indivíduos e levasse a interação, sem a necessidade de intervenção estatal. A classe dominante, em nome do liberalismo político e econômico, ditava as leis do mercado e do trabalhador. Como conseqüências dessa política econômica têm-se infindáveis horas de trabalho, exploração de trabalho infantil, baixos salários, dificuldade de moradia, desemprego. Conseqüências que se agravaram após a grande depressão de 1929, exigindo a necessidade de medidas para manter o sistema capitalista, recuperar a economia e conter os movimentos sociais que reivindicavam melhores condições de trabalho. Inicia a era do Estado social ou de bem-estar com um programa de medidas sociais e econômicas que ficou conhecido por New Deal, adotando a teoria econômica de Keynes que, em resumo, defendia uma posição oposta aos economistas clássicos, com a necessária intervenção do estado na economia com o objetivo de conduzir a um regime de pleno emprego. Nesse período, importantes direitos trabalhistas foram conquistados e incorporados nos ordenamentos jurídicos8. TP

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Na opinião de Bobbio: Da crítica das doutrinas igualitárias contra a concepção e a prática liberal do Estado é que nasceram as exigências de direitos sociais, que transformaram profundamente o sistema de relações entre o indivíduo e o Estado e a própria organização do Estado (...). Liberalismo e igualitarismo deitam suas raízes em concepções da sociedade profundamente diversas: individualista, conflitualista e pluralista, no caso do liberalismo; totalizante, harmônica e monista, no caso do igualitarismo. Para o liberal, a finalidade principal é a expansão da personalidade individual, abstratamente considerada como um valor em si; para o igualitário, essa finalidade é o desenvolvimento harmonioso da comunidade. E diversos são também os modos de conceber a natureza e as tarefas do Estado: limitado e garantista, o Estado liberal; intervencionista e dirigista, o Estado dos igualitários9. T

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E na busca desse Estado igualitário descrito por Bobbio, os movimentos sociais ganham força reivindicando a ampliação do rol de direitos com novos paradigmas normativos de 7 8 9

HUNT, E.; SHERMAN, Howard J. Ob. Cit., p. 60. HUNT, E.; SHERMAN, Howard J. Ob. Cit. Bobbio, Norberto. Igualdade e liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, p. 42, 2000. T

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abrangência política, social e jurídica mais amplos a fim de extinguir ou minorar as desigualdades sociais e econômicas porventura existentes no seio da sociedade. Todavia, se Marx estava certo sobre os períodos de recessão e prosperidade do capitalismo, sobre a influência das relações econômicas na lei e a política e que a exploração dos trabalhadores faz parte da dinâmica do capitalismo, seria, então, apenas uma questão de tempo para a política e leis trabalhistas sentirem os reflexos da relação econômica. É o que será abordado no próximo item.

2.2 Do Estado Social ao Neoliberalismo e Globalização: Perda dos Direitos Trabalhistas O primado do trabalho e do emprego na vida social constitui uma conquista que se sedimentou na gestão pública do chamado Estado de bem-estar social. Na era do Estado de bemestar social o capitalismo enfrenta sua segunda crise, por volta de 1970, que fez reascender as idéias do liberalismo. Surgindo, assim, um processo de desconstituição central do primado do trabalho no sistema capitalista, em virtude da nova modalidade de hegemonia no sistema econômico-social dominante, que envolve o fenômeno da globalização. Os avanços tecnológicos, permitindo a intercomunicação imediata entre diversos pontos do globo e a absoluta liderança do capital financeiro especulativo associado a uma política neoliberal, trazem mudanças significativas no campo econômico e, por conseguinte, no direito do trabalho. A era pós-moderna, contemporaneidade ou era do consumo tem início a partir da queda do muro de Berlim, período do colapso do sistema comunista e avanço do capitalismo globalizante como único modo de produção. A globalização é o termo usado para se referir as transformações no sistema capitalista. É um fenômeno econômico de busca de conquista de mercados sem restrições às fronteiras nacionais; fenômeno político da crescente interdependência dos países; fenômeno financeiro dos investimentos especulativos planetários, causando simultaneamente a reestruturação dos agentes econômicos, a transformação do papel do Estado e do Direito em todos os países envolvidos, afetando as relações econômicas, jurídicas e sociais do planeta10. TP

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A globalização traz consigo uma política neoliberal de desenvolvimento econômico através das leis de mercado. São características dessa política: mínima participação do Estado na economia e no mercado de trabalho; privilegia o capital financeiro especulativo; aumento excessivo da produção; redução burocracia e dos gastos sociais; investimento estrangeiro direto, privatizações estatais, livre comércio; desregulamentação ou afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas, para permitir novas formas de contratação que reduzam os custos das empresas.

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AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, 2009.

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Como conseqüência, esse modelo levou ao abandono de princípios éticos fundamentais e a supressão de direitos conquistados em favor da eficiência econômica, dos quais resultaram relevantes conseqüências políticas e jurídicas11. TP

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Aos poucos, a defesa da liberdade na era pós-moderna, especifica no campo econômico, levou a profundas transformações na sociedade, no papel do Estado, relativizando conceitos de soberania, autonomia e independência política, transformações do direito e reestruturação dos agentes econômicos. As conseqüências Os efeitos dessa nova liberdade nos direitos trabalhistas serão analisados no próximo ponto.

2.2.1 Direitos trabalhistas na contemporaneidade A política neoliberal trouxe conseqüências danosas para contemporaneidade. A era do consumo ou modernidade tardia ou pós-moderna começa com um aumento da desigualdade social, miséria e desemprego, além de perda de muitos dos direitos trabalhistas que antes pareciam conquistas irreversíveis. Maria Áurea Cecato destaca que os problemas laborais, apesar de não terem origem na globalização, com ela se intensificam, provocando profundas transformações no direito do trabalho. Há um recuo da força imperativa das leis do trabalho em nome do mercado com drástica redução dos direitos laborais, forçando os trabalhadores a suportarem condições de trabalho menos favoráveis e a verem retiradas conquistas que se pensava estarem solidamente implantadas. Os salários caem cada vez mais para trabalhadores desqualificados, surgem novas formas de remuneração, como pagamento por produção; cresce significativamente a adoção da contratação por tempo determinado; flexibilização das normas de acordo com as exigências do mercado; expansão da jornada de trabalho por tempo parcial, reduzindo-se os custos para o empregador; há menos legislação e mais negociação coletiva; cresce a subcontratação e a terceirização. Essa cadeia de efeitos projetou-se, por via de conseqüência, sobre o movimento sindical e a negociação coletiva. Os sindicatos perderam significantemente seu poder de negociação, com o aumento exorbitante da massa de desempregados, modificam o conteúdo de suas reivindicações, deixando de lutar por condições melhores de trabalho, aceitando imposições pela manutenção dos empregos.12. TP

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Na esfera internacional, aproveitando-se das facilidades da globalização e das fronteiras abertas, os Estados e as multinacionais passaram a adotar práticas inidôneas para baratear a

11

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo: O Declínio do Direito. In: Direitos Humanos e globalização. Fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. Porto alegre: EdiPUCRS, 2010. 12

CECATO, Maria Áurea Baroni. Direito Laborais e desenvolvimento: Interconexões. Boletim de Ciências Econômicas. Coimbra, vol LI, 2008.

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mão-de-obra, realizando o chamado “dumping social”, caracterizado por medidas de violação aos direitos sociais, em especial, pagamento de baixíssimos salários aos empregados, buscando aumentar a lucratividade e a competitividade no mercado internacional em detrimento dos direitos trabalhistas, sob a falsa alegação de que, assim, poder-se-ia preservar mais postos de trabalho. Apesar de existir uma legislação trabalhista internacional através da Organização Internacional do Trabalho, para a efetivação dos objetivos da OIT se faz necessária uma cooperação internacional de outros órgãos, todavia os interesses econômicos são óbices a essa cooperação. Nesse contexto, se destaca atualmente o suposto conflito entre as ações da Organização Mundial de Comércio (OMC) e a OIT em relação à promoção dos Direitos sociais. A OMC tem objetivos econômicos e comerciais e tem em mãos mecanismos de constrangimento para cumprimento de suas próprias normas, assim como de outras que se inserem na esfera das produções normativas da OIT. A OIT buscou o apoio da OMC para o estabelecimento de um vínculo direto entre comércio e os direitos fundamentais dos trabalhadores, a proposta de implantação da “cláusula social” como instrumento de sanção comercial pela violação das normas fundamentais, de forma a coibir o desrespeito aos referidos direitos, através da desvantagem comercial, mas não obteve a cooperação desejada por razões de ordem econômica. A complexa relação entre política social e política comercial gera conflitos entre países industrializados e os que ainda não alcançaram esse estágio. Os países industrializados alegam que já adotam medidas de proteção mais avançadas e que se prejudicariam na concorrência comercial. E os não industrializados argumentam que a proteção dos primeiros não é humanitária, mas puramente comercial e que já se encontram em posição de desvantagem e, com a adoção da cláusula social passaria a ter ônus maior no custo de seus produtos, o que redundaria em prejuízo ainda maior na competição internacional13. TP

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Nota-se que os argumentos para não inserção da cláusula social pelos Estados são de natureza econômica, mesmo sabendo-se que os direitos enunciados na Declaração não são de natureza a onerar economicamente os Estados e suas empresas, são direitos mínimos em respeito à dignidade do trabalhador.

3. Considerações finais Inicio estas considerações com uma indagação: se afinal de contas Marx não tinha razão quando dizia que o capitalismo seria sempre dominação de uma classe sobre outra com o econômico capaz de influenciar a política e o direito? E é isso que se confirma ao final desse 13

CECATO, Maria Áurea Baroni. Ob. Cit, p. 16.

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estudo quando se analisa o retrocesso dos direitos trabalhistas e o ideal de liberdade que se firmou no campo econômico. As mudanças econômicas do capitalismo levaram a novos paradigmas normativos de abrangência política, social e jurídica com reflexo mais agravante nos direitos trabalhistas. O novo modelo econômico liberal saiu da figura do ser humano da era clássica para o agente econômico, assim se intensificou, principalmente, como liberdade de mercado e a força dessa liberdade associada a novas políticas públicas voltadas, prioritariamente, à busca de lucro e concentração de capital nas mãos da classe dominante levou a conseqüências drásticas para o trabalhador. As alterações, desregulações, flexibilização, relativização ou qualquer outro termo adotado para não dizer perda de direitos trabalhistas, tornam a teoria Marxista, ainda, atual. A exploração do proletariado e a influencia da economia na política e no direito, conduzindo a vida social conforme a dinâmica da base produtiva das sociedades e das lutas de classes é o que ainda é visto na contemporaneidade com uma intensidade ainda maior do que a descrita por Marx. O liberalismo, a mais-valia, a dominação e a alienação tão comentadas por Marx em suas obras, hoje, adquirem um novo contexto, todavia não deixam de representar a exploração do trabalhador e a dominação da classe hegemônica que desfruta de influência sóciopolítica. O liberalismo sempre estará relacionado ao capitalismo. Quando o socialismo já não tinha mais ameaça com a queda do comunismo no mundo, as idéias liberais ressurgem adaptadas ao campo econômico como uma maneira de firmar o capitalismo como único modo de produção. A mais-valia é dividida por Marx em absoluta que é estender a duração da jornada de trabalho mantendo o salário constante e relativa que é ampliar a produtividade física do trabalho pela via da mecanização. Na contemporaneidade isso ocorre de uma forma ainda mais grave, substituindo cada vez mais a mão-de-obra pela mecanização e tecnologia, o que é conhecido por automação. A automação diminui os custos, aumenta a velocidade da produção, aumentando o lucro. A dominação de uma classe sobre outra se torna evidente no capitalismo. Após a queda do socialismo como modelo puro de governo, a prevalência do sistema capitalista e mais tarde a política neoliberal intensificaram as desigualdades entre os diversos estratos da pirâmide social, quer nos países desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, acarretando uma acentuada concentração de riquezas e exploração da classe trabalhadora. A alienação de hoje segue a mesma lógica da alienação humana descrita por Marx. Na teoria marxista, a da sociedade burguesa seria a valorização exacerbada do bem material (fetichismo) e também a não percepção pela classe trabalhadora da exploração. Na sociedade pós-moderna essas características acontecem são mais evidentes, pois a produção elevada de hoje estimula o consumismo e a valorização exacerbada do material com pouca necessidade de 469

mão de obra. O trabalhador de hoje é estimulado a consumir e a não perceber que é explorado cada vez mais com a perda de direitos. Parece mesmo que Karl Marx não estava errado em relação a força da economia no direito e na política, sendo capaz de alterar conquistas históricas que pareciam solidificadas.

Referências bibliográficas AGUILLAR, Fernando Herren. Direito Econômico: do direito nacional ao direito supranacional. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. T

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_____. Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. Brasília: UNB, 1984. T

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Acerca da não edição da lei do IGF no Brasil: uma crítica de inspiração marxista Brena de Melo Freitas1 TP

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Resumo

Abstract

Este resumo objetiva encetar um diálogo entre a dogmática tributária e a filosofia do direito, particularmente no que toca a lições clássicas de Marx e Engels pela inegável contribuição para uma crítica sobre o direito. É consabido que o marxismo não tem uma teoria sistematizada do direito, mas na medida em que discute o Estado, tem-se indiretamente uma teoria sobre o direito. A perspectiva marxista é trazida à colação neste artigo para consubstanciar uma alusão crítica à não edição da Lei do IGF a partir da concepção de ideologia como consciência invertida e mais especialmente da concepção Engeliana sobre a origem do Estado. O Brasil possui, além da 3ª maior carga tributária do mundo, constantes investidas parlamentares visando burlar entraves constitucionais para ampliação da carga tributária (como criar contribuição de iluminação pública para substituir a taxa que antes foi julgada inconstitucional pelo STF). Contraditoriamente, subsiste sem normatização e, pois, sem aplicação, um promissor tributo Federal: o Imposto sobre Grandes fortunas (IGF). Diante de tantas omissões legislativas, marcamos como objeto deste estudo uma que se destaca pelo flagrante aspecto ideológico que assegurou nos últimos 23 anos a não apreciação ou arquivamento de projetos de lei visando instituir o imposto, ou ainda, a proposição de projetos de emenda visando mesmo retirar do texto constitucional sua previsão. O estudo se pauta, essencialmente, na análise das justificativas dadas pelos parlamentares nesses projetos. O marco teórico utilizado consiste em estudo de Engels sobre a origem do Estado em vista da necessidade de tributação para mantença do mesmo. A contradição entre a crescente sede arrecadadora fiscal e a omissão do nosso legislativo quanto ao IGF sugerem a estratégia ideológica que inspira o legislador: defender interesses particulares, ou, nas palavras de Marx e Engels “as ideias das classes dominantes”. Independentemente das contingências de tempo e lugar, o discurso jurídico é forma de racionalizar e legitimar determinados interesses econômicos sob um manto de isonomia e pluralismo. São essas ideias que concretizam as normas. A não edição da lei complementar do IGF, na contramão de todas as medidas pró-arrecadação e antielisivas do Estado vem, pois, consagrar não só uma parcial atuação legiferante, mas sobretudo uma ideológica defesa da ordem capitalista.

This study aims to join tax and dogmatic philosophy of law, particularly in the classic lessons of Marx and Engels, the great contribution to a critique of the law. Everyone knows that Brazil has the 3rd highest tax burden in the world and, frequently, the parliamentary attempts to win limits of the Constitution and increase the tax burden. Contrary, a federal tax promising continues without regulation and without application: it is the IGF (Tax on Large Fortunes). Among many legislative privations, we chose this because itself distinguished by a strong ideology which enabled for 23 years not examination or filing of the bills and to take up the tax by constitution. The study is directed mainly by the analysis of the justifications given by parlamentary in projects. The theory used was of Engels's book about the origin of the state and the necessity of taxation for their maintenance. The contradiction between fiscal activity and the negation of our Congress suggests the ideology that inspires it: the defense of particular interests, or, in the words of Marx and Engels' ideas of the dominant group.". Independently of time and place, the juridical discourse is a way to rationalize and legitimate economic interests under a mirage of equality and pluralism. These are ideas that materialized the laws. The omission of the IGF against all measures for tax collection establishes a partial activity of Congress and an ideological defense of the capitalist order. T

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Advogada e Professora Especialista em Direito Civil e Processual Civil - ESA/OAB com Bacharelado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. E-mail: [email protected] T

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1. Introdução – visão panorâmica da tributação no Brasil Por já ser demasiadamente reconhecida a alta carga tributária suportada no Brasil, e para resumir o sentimento do cidadão em poucas palavras este retrato colaciona-se conciso pronunciamento parlamentar registrado em atas do congresso nacional: A fúria arrecadadora empolga, cada vez mais, os governantes, principalmente na esfera da União. Incapazes de conter os gastos públicos, recorrem, com espantosa facilidade ao aumento de impostos e taxas, formalmente, quando não impõem ao contribuinte já sobre carregado aos novos, sob as mais estranhas fórmulas e alegações, obedecendo ou não ao que lhes permite a legislação em vigor, a partir da própria Constituição indevidamente interpretada quando não abertamente desrespeitada. [...] Um país que gasta sem peias e que desperdiça no serviço público o que pode e o que não pode, um país assolado pela corrupção administrativa e castigado pela impunidade, quando recorre à majoração fiscal, ao arrocho nos impostos, taxas e contribuições, não somente sacrifica a vida do contribuinte, mas gera, mais do que a justa insatisfação e descrença na administração pública, a explicável revolta popular.2 TP

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A atualidade destas palavras poderia enganar o leitor tomando-as como algum recente pronunciamento parlamentar. Entretanto, foram proferidas em oportunidade dos debates da Assembleia Nacional Constituinte em 1987, o que revela a perenidade da problemática da tributação no Brasil pela manutenção da mesma inquietação e anseios por melhoria na representação do povo. Pensar em tributação no Brasil é pensar em altar carga tributária sobre empresas, empregados, consumidores. Em números3, o percentual tributado sobre os salários dos TP

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trabalhadores e das empresas chega a 42,15% o segundo pior do mundo. Sobre os consumidores incidem 9 impostos federais; 3 estaduais e 4 municipais afora as taxas (contabiliza-se pelo menos 30 taxas brasileiras constitucionais excluindo-se aquelas que continuam a ser cobradas inobstante sua constitucionalidade aguarde definição pelo Supremo há anos). Várias outras medidas se aliam a alta carga tributária para indicar a enérgica atuação estatal em prol da favorecer e ampliar a tributação e com ela a arrecadação, posto que fonte de sustento do Estado: altas alíquotas; majoração de percentuais de alíquotas por ato exclusivo do Executivo à revelia do Legislativo enquanto representante popular; definição de responsáveis tributários para garantir que alguém pague o tributo ainda que não seja quem diretamente deu causa ao fato gerador da obrigação tributária; crescente número de contribuições, dentre outros. O Estado, sempre insaciado, estende a perseguição por mais formas de arrecadação pela via legislativa. Visualiza-se o proposto num ligeiro olhar histórico sobre a classificação dos 2

BRASÍLIA. Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1987/1988. Disponível em: . Acesso em 08/10/2011. T

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PORTAL ECONOMIA. Os impostos no brasil. Disponível em: Acesso em 05/10/11. Dados de 2003. T

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tributos, originalmente consagrado no Código Tributário Nacional em três classes (impostos, taxas e contribuições de melhorias) e, hoje, após sucessivas Emendas Constitucionais, estão dispostos na Constituição Federal - CF - pelo menos 5 modalidades de tributos fora outras espécies ainda sem classificação certa pela quase atecnia de sua natureza/estrutura bem mais decorrentes da vontade do legislador de burlar entraves constitucionais à tributação que propriamente pela criatividade jurígena do nossos parlamentares.4 TP

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Como se fosse pequeno todo esse aporte contributivo, ainda paira sobre a cabeça do cidadão um infindável número de tipificações de crimes contra a ordem tributária que quase permite a talvez desejável conclusão que tudo que não for tributo e não for cumprimento de obrigação tributária (incluindo as acessórias!) restará passível de ser receita por multa oriunda da tipificação de crime contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo. 5 TP

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Dá-se por justificado o epíteto de leão para à Fazenda Pública. Malgrado todo esse sedento comportamento fiscal de tributar por todas as formas possíveis e sempre estar procurando acrescentar novas formas de arrecadação, é no mínimo digno de estranheza a subsistência de algum imposto que ainda não tenha tido a necessária regulamentação para fins de implementá-lo. Rapidamente se atiça a curiosidade do leitor diante deste paradoxal quadro: o que restaria sem ser objeto de tributação? Resta, vultuoso objeto que o legislador nem de fortuna ousou designar, mas de grandes fortunas. Eis o IGF, Imposto sobre Grandes Fortunas. Contextualizado, pois, o sentido sempre arvorador pró-recolhimento e pró-tributação que se opera, e, opostamente, a manutenção de um imposto sem regulamentação, cumpre-nos agora tentar entender as razões para tal silêncio legislativo à luz de fundamentos da origem do Estado traçados por Friedrich Engels.

2. Breves considerações sobre o IGF Definir em poucas palavras o IGF não é tarefa fácil, posto que o constituinte não a disciplinou deixando um cheque em branco já assinado em favor da União para preenchê-lo como bem o desejasse fazer, conforme demonstra a carga de imprecisão do termo grandes fortunas.

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É exemplo, neste interregno, a controvertida contribuição para iluminação pública, criada após ter sido julgada como inconstitucional a antecedente taxa de iluminação pública pelo STF. T

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BRASIL. Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990. Disponível em: . Acesso em 03.08.2011, passim. T

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No anteprojeto da CF o atual IGF, enquanto imposto da União, fora proposto nos seguintes termos6: TP

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Art. 137. Compete à União instituir impostos sobre: [...] XI: propriedade de bens móveis de caráter suntuário excluídos os de valor cultural, artístico ou religioso, definidos em lei complementar.

Na redação final, o imposto em comento ganha outra feição, ao que grifamos: Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I - importação de produtos estrangeiros; II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; III - renda e proventos de qualquer natureza; IV - produtos industrializados; V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; VI - propriedade territorial rural; VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar.

O confronto da redação final com a primeva indica-nos que originalmente as grandes fortunas eram restritas a bens móveis excluindo-se destes os que se revestissem de conotação e relevância cultural, artístico ou religioso. Essa restrição saiu do texto constitucional para constar nos atuais projetos de lei complementar7 que, por outro lado, incluem também os bens imóveis. TP

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Pode-se ainda perceber que o IGF é um daqueles assuntos que gozam de incompletude no trato constitucional, pois o artigo 153, ao dispor sobre os Impostos da União, apenas lançou a permissão para sua existência carecendo de Lei Complementar (LC) para instrumentalizar-se. É notória a diferença já aí de tratamento dos demais impostos previstos no mesmo artigo por inexigirem a LC.8 TP

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BRASÍLIA. Anais da Assembleia Nacional Constituinte 1987/1988. Disponível em: . Acesso em 08/10/2011. T

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Ressalva-se na maioria dos projetos alguns dos seguintes bens:

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a) os instrumentos utilizados pelo contribuinte em atividades de que decorram rendimentos do trabalho assalariado ou autônomo, com valor estipulado; b) os objetos de antiguidade, arte ou coleção, nas condições e percentagens fixadas em lei; c) outros bens cuja posse ou utilização seja considerada pela lei de alta relevância social, econômica ou ecológica. ou ainda d) o imóvel de residência do contribuinte, até determinados valores, por exemplo, R$ 600.000,00 (seiscentos mil reais). 8

A CF exige Lei complementar e não ordinária para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, consoante seu art. 146. T

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Experiências no mundo com impostos similares carregam suas particularidades e - ao menos em respeito às peculiaridades do nosso sistema tributário – não deveriam ser avocadas para pôr termo9 aos projeto de lei para implementação no Brasil do IGF, quer porque existem TP

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dados pouco confiáveis ou escassos nesse sentido, quer porque a situação que pôs termo à exação noutro país pode muito facilmente não ser ocorrente na conjuntura pátria. Diante de casos como aversos passados na Alemanha e nos Estados Unidos10 onde o TP

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socorro ao Estado em crise partiu espontaneamente dos próprios afortunados, restaria quase certo o favorecimento e proveito da arrecadação. Experiências há, negativas e positivas, cabe ao nosso congressista usar dos precedentes para proveito e aprimoramento do nosso ordenamento.

3. Os projetos legislativos para o IGF no Brasil É certo que a CF já antecipou e até muito detalhadamente dispôs sobre as espécies tributárias; repartição de competência para cobrar (arts. 153 a 156) e divisão de seu produto entre os entes (arts. 157 a 162). Todavia, como já noticiado, ainda persevera sem a imprescindível regulamentação o imposto sobre grandes fortunas, assim vigorosamente mantido malgrado todas tentativas estatais no sentido oposto: criação e ampliação da receita tributária. Se certo o silêncio do legislador porquanto subsiste sem regulamentação o imposto, o que primeiro se questiona é se não estaria ele esquecido de tal tributo. Seria certo supor, indaga-se, que por serem tantas as leis a serem diariamente debatidas e votadas restou olvidado o IGF tal qual existem tantas outras questões constitucionais na mesma situação? Cumpre-nos informar que não. Prova disso são os 26

projetos normativos que se

sucederam desde a promulgação da Constituição até os presentes dias tratando do tema.11 TP

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Estes 26 projetos podem ser melhor analisados se divididos em dois grupos: (i) os projetos de Lei ou de Emenda Constitucional que visam instituir o referido tributo e (ii) aqueles que se

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Diz-se que não deveria pôr termo porque o senador Antonio Carlos Magalhães Junior, por frágeis argumentos com ares de determinismo face ao insucesso do tributo em outro país pelo grande numero de exceções que foram criadas ao imposto, pôs fim à análise do PLS 128/08 no início do ano passado sem demonstrar/subsidiar minimamente as razões que motivaram seu ato, indubitavelmente desejado e aclamado por muitos que ali mesmo no congresso seriam destinatários do tributo. Observe-se que os Projetos de Lei Complementar (PLC) brasileiros em trâmite trazem poucas excludentes à incidência do imposto.

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10 CARVALHO JR. Pedro Humberto de. Imposto sobre grandes fortunas. Disponível em: . Acesso realizado em 10.08.2011. T

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São eles: PLP-62/2011 ; PLP-26/2011; RIC-4564/2009; EMC-360/2008 PEC03107 => PEC-31/2007 ; PLP-277/2008 ; RIC-2400/2008 ; PEC-45/2007 ; PEC-474/2005 ; EMC-404/2003 PEC04103 => PEC-41/2003 ; EMC-18/2003 PEC04103 => PEC-41/2003; PEC-41/2003; PLP-193/1994 ; PL-2097/1991; PLP-77/1991; PLP-70/1991; PLP-268/1990; PLP218/1990; PLP-208/1989; PLP-202/1989; PLP-108/1989; SBT-1 CFT => PLP-277/2008. Disponível em: . Acesso realizado em 10.08.2011. T

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destinam adversamente a extingui-lo do nosso sistema tributário por meio de projetos de emenda constitucional. No primeiro grupo, estão os projetos que intentaram e foram arquivados bem como os que ainda vingam apensados e pendentes de apreciação. O questionável comum arquivamento a 5 projetos deu-se por idêntica causa: questões procedimentais do regimento interno que se impõem não por outra razão senão a indiferença parlamentar aos referidos projetos. Noutras palavras, propõe-se os projetos, mas relutam os parlamentares em darem-lhe seguimento, e eis que, pela paralisia que lhes foi imposta, acabam por terem que ser arquivados pela falta de apreciação na mesma legislatura em que foram propostos! (pasme!) 12 TP

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Apesar da desanimadora constatação acima, convém continuar a análise, pois subsistem alguns projetos no trâmite legislativo. Como justificativa para defesa da regulamentação do tributo, extrai-se dos projetos os seguintes argumentos favoráveis: a) o sistema tributário permanece socialmente injusto e em descompasso com todas as políticas públicas que vem sendo adotadas orientadas para o crescimento econômico e inclusão social; b) o atual sistema permite que as famílias com menor renda desembolsem considerável percentual de seus rendimentos para pagar obrigações tributárias no mesmo passo que famílias com rendimentos maiores, cujo percentual não lhes é tão sacrificante para mantença dos gêneros essenciais à subsistência; c) permite uma modificação da distribuição da carga tributária entre os diferentes segmentos familiares e empresariais - e no interior de cada um destes segmentos da base de contribuintes; d) ao contrário do receio de que tal imposto venha a repelir o capital do país para ilhas fiscais, espera-se que pela modicidade das tarifas não suscite tal impacto e que por outro lado, venha sim a atrair na medida que permita a desoneração do fluxo econômico, gerando maior consumo, produção e lucros. e) não há de se falar em conflito da base de cálculo com os impostos incidentes sobre o patrimônio pois tem base de cálculo mais ampla: valor total dos bens (o imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza, exempli gratia, incide sobre a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica) f) com o auxílio das instituições financeiras e de mercado e o registro de todas as transações realizadas permitir-se-ia o necessário controle sobre as transações de títulos mobiliários a

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Justificação legal dada para o arquivamento: Art. 105 e 117 do Regimento Interno. BRASÍLIA. Regimento Interno. Disponível em: www2.camara.gov.br/.../Constituicoes_Brasileiras/regimento-interno-da-camara-dosdeputados>. Acesso em 08/10/2011. T

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somarem-se na fortuna; g) por ser decorrente de lançamento por declaração do contribuinte poderia utilizar da mesma estrutura hoje já disposta para cobrança do IR; h) especula-se

num potencial tributário maior que o do ICMS, inobstante o pífio valor das

alíquotas (0,3 a menor a 5% a maior delas já propostas) se comparadas com as alíquotas de outros tributos, como de 20% para o empregador só a título de contribuição previdenciária; i) a reforma tributária deve se pautar por reforço da tributação direta e sua progressividade, ao mesmo tempo que se reduz a carga tributária oriunda da tributação indireta com a conseqüente desoneração da cesta de bens de consumo da população de baixa renda; j) em vista da redução das desigualdades sociais, uma nova e robusta fonte de receita seria um pilar determinante para searas como educação ou saúde, reconhecidamente carecedoras de verbas públicas para – se devidamente utilizadas – melhor equipar e estruturar o atendimento à população sem exigir deste contingente de necessitados dos serviços públicos mais tributos (como o extinto CPMS e os seus desejados sucedâneos) k) a finalidade de tributar para repelir a acumulação improdutiva (ou de pequeno retorno econômico) é mais um argumento favorável ao desenvolvimento econômico geral e não grupal (dos que podem poupar, investir) E mesmo quando submetido o tema à Comissão de Finanças e Tributação ( SBT-1.) para exame do mérito e da adequação financeira e orçamentária do projeto n. 277/2008 às leis orçamentárias foi com clarividência indubitável dado por compatível e adequado aos termos solicitados.13 TP

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Um estudo mais acurado do tema exigiria se traçar os elementos que caracterizam qualquer imposto: contribuinte; fato gerador; base de cálculo e alíquotas, minimamente. Pelo objeto limitado deste estudo, nos conteremos em fazer breve apreciação quanto à fatispécie, pressuposto normativo, hipótese de incidência, bem delimitada pelo magistério tributário. Aqui, a delimitação recai sobre o mais que impreciso termo “fortuna”. Não já sendo bastante a sua carga subjetiva, ainda frisou o constituinte que pretendia destinar a incidência dos tributos para os detentores de “grandes fortunas”. Pela brevidade do estudo poderíamos, ao menos, perquirir se não teria o constituinte com o adjetivo grande desejado propositadamente excluir(-se) uma grande gama ou maior parte dos afortunados, pois haveríamos de estimar, por exemplo, que nos dias atuais, um parlamentar ex-presidente do Brasil que acumule aposentadorias com salário de senador além de verbas como de gabinete, atualmente de R$ 60.000,00 totalizando aproximadamente gastos mensais para o Brasil em valor

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BRASÍLIA. Projeto de Lei Substitutivo Disponível em: < http://www.camara.gov.br/sileg/default.asp>. Acesso em 08/10/2011. T

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superior a R$ 150.000,0014, afora aplicações e outras formas que tenha de fazer render seus TP

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bens, consegue, tranquilamente, mais de 1 milhão em um só ano. Se esse honrado salário que, com duvidosa constitucionalidade se mantém acima do teto permitido na Constituição, poderia devolver ao próprio Estado um percentual desse valor, quanto não poderiam os bem sucedidos empresários donos de conglomerados econômicos de nosso país? Que valor, então, serviria de paradigma para os destinatários desse imposto? Os projetos já existentes apontaram como grande fortuna percentuais mínimos que variam de R$ 1 milhão a R$ 5 milhões de reais a serem apurados e declarados pelo contribuinte em data fixa anual a partir do somatório de seus bens com ressalvas já anotadas. Abaixo disso, os afortunados estariam isentos. Mais difícil, talvez, tenha sido estabelecer as alíquotas porque ter-se ia que no mesmo passo estabelecer faixas de mais fortuna que justificassem o aumento e o quantum do aumento da alíquota. Em resumo, podemos sintetizar as propostas com faixas que genericamente variam de 0,3 a 5% de alíquota para o montante mínimo de 50 milhões como referência para a alíquota máxima. Na esteira da oposição que nos autoriza o regime democrático, não é de nos surpreender que onde existiu espaço pra se procrastinar por longos 23 anos a tentativa de implementar o imposto também houvesse espaço para neste mesmo período terem se sucedido tentativas de extirpá-lo em definitivo, revogando-o do próprio texto constitucional. Como argumentos lançados mão para tais proposituras tem-se por destacar os seguintes: a) afugentaria o capital para o exterior; b) desestimularia a poupança interna num país como o Brasil – em desenvolvimento – cujo nível de poupança já limítrofe ou deficitário; c) pequeno potencial tributários por experiência de outros países15; TP

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d) geraria conflitos com outros impostos sobre o patrimônio; e) não teria como incidir eficazmente sobre títulos mobiliários; f) sua eficácia exigiria a criação de um complexo aparato administrativo e fiscalizatório e que o mesmo importaria em custo mais alto para o erário que o oriundo da própria arrecadação. 14 Exemplo para um total de remunerações neste ano de aproximadamente R$ 62.000,00 – Senador José Sarney -, somado com as verbas referidas e disponíveis no próprio site da câmara dos deputados para a 54ª Legislatura (20112015). BRASÍLIA. Resumo de verbas e cotas parlamentares. Disponível em: < http://www2.camara.gov.br/acamara/conheca/camara-destaca/54a-legislatura/arquivos-deapa/resumo-de-verbas-e-cotas-parlamentares-3>. Acesso em 08/10/2011. T

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A referência negativa a outros países ressoa em mais de um projeto como um boato que se espalha e assim ganho eco verossímil. Faltante, entrementes, dados indicativos desses precedentes. T

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Desconstitui-se essas refutações com um questionamento mais detido delas mesmas, pois não apresentam lastro, sendo argumentos frágeis e sem demonstrativos, dados ou precedentes que os resguardem. Inobstante sua temeridade, persistem alguns em trâmite como legítima representação da vontade do povo em nosso sistema democrático. Pertinentes seria a extinção proposta face à economia, finanças e distribuição de tributos no país? Por que a não aprovação ainda que de forma simbólica, em baixíssimas alíquotas somente para as 10 maiores fortunas do país, revertendo o luxo em verba para saúde ou educação? A questão sai, assim, do plano da legitimidade e legalidade procedimental para passar ao campo que poderíamos chamar de político. O estudo cede espaço ao fundamento teórico que poderia se especular ser a resposta para a inércia do legislador.

4. Da origem do estado à manutenção do estado capitalista Por todos os dados apresentados acima, torna-se possível um mínimo questionamento sobre a seriedade da condução dos projetos normativos em trâmite em nossos parlamentos, federais, estaduais e municipais. É fato noticiado cotidianamente a sobreposição de interesses particulares e grupais ao bem comum resultam nas mais estranhas medidas adotadas por nossos poderes para justificar os fins pretendidos. A utilização da estrutura pública para fins não públicos16 é o fato-premissa para o TP

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questionamento teórico que se torna oportuno. A lição representativa que trazemos por referência, dentre muitas outras que poderiam ser avocadas mas pelo objeto limitado deste artigo não cabem, é a narrativa da origem do Estado feita por Friedrich Engels em seu livro a Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado17. TP

PT

O autor faz uma síntese histórica partindo do nascimento da gens na fase média do estado selvagem, perpassando seu apogeu na fase inferior da Barbárie, e, chegando às primícias da Civilização, com detalhes que permitem identificar claramente as características que circundaram os momentos de divisão do trabalho. São marcantes os efeitos da primeira grande distribuição social do trabalho, a começar porque permitiu a domesticação do gado e sua criação de forma a não se ter mais a preemência de caçar o alimento diário, mas de tê-lo disponível procriando para saciar o homem. Após, seguese o desenvolvimento da horticultura (forma precedente à agricultura) e ofícios manuais 16 T

No sentido clássico italiano do interesse público primário que se volta para satisfação do bem comum.

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17

ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 12a edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1991, p.181. T

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479

domésticos. Todos guardam como maior mérito ter permitido a produção em escala maior que a das necessidades para manutenção. Surge, noutras palavras, o excedente de produção. Que haveria de ser feito com ele, ou quem o administraria/possuiria? O Leitor de Engels não fica sem resposta, mas tais detalhes fogem à pretensão estabelecida neste estudo, sendo-nos bastante o fato que passa a ser necessário mais força de trabalho para aumentar cada vez mais a produção e exsurge a deixa para as guerras com a subsequente transformação dos prisioneiros de guerra em escravos para a produção. Pode-se, em resumo, traçar que após a primeira grande distribuição social do trabalho nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos; exploradores e explorados.18 TP

PT

Daí para frente se observa a ampliação de estamentos e com ela de contradições sociais. Para sanar a tensão social ensejada pelos antagonismos de posses/classes surge a necessidade de uma estrutura acima de todos, com poder e condições de se impor, de ser a voz final que direciona a sociedade para a pacificação social. Eis, pois, a gênese do Estado. O mesmo autor distingue algumas de suas características, dentre as quais cumpre enaltecer uma: para sua manutenção o Estado precisa de receitas e essas se dão eminentemente pelos impostos.19 TP

PT

Eis o liame com o IGF: os tributos se prestam a garantir a manutenção do Estado em si e em sua atuação (atividades para a sociedade). Imperioso é fazer incidir tributos sobre os cidadãos em vista - teoricamente - dos próprios cidadãos. A forma desta incidência é que precisa ser pensada para que consiga atingir desigualmente os desiguais, na máxima da isonomia substancial. Nortes não faltam, a começar na própria Constituição ao estabelecer a não cumulatividade, progressividade, dentre outros, como orientadores para a forma de incidência tributária. Mas para o IGF o que teríamos se a Constituição muito sucintamente apenas o permitiu? Teríamos sim, um importante fator distintivo dos demais tributos todos do ordenamento: o mérito de tributar sobre o que não é bem economicamente produtivo para a o país. Atinge aquilo que é tão somente para o luxo, ao “suntuoso” como dizia o anteprojeto da Constituição, não sendo bem que gere proveitos para além do seu proprietário/possuidor. Noutras palavras, assim foi justificado o PL n. 108 de 1989:

18 T

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2004, passim.

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19

Aos olhos do ordenamento jurídico tributário brasileiro indubitavelmente Engels teria falado no gênero tributo e não na espécie impostos. T

480

Tem-se visto, na prática, que, em termos tributários, desconsiderar a riqueza e ter em vista somente a renda como medida da capacidade contributiva enseja graves injustiças […] Duverguer (Hacienda Púublica, Bosch, Barcelon 1968, pág. 104 e seg.) e Villeges (Curso de Finanças, Derecho Financeiro\ Tributario, 3ª ed., Buenos Aires, Depalma, 1979, pág. 36 e seg.) apontam como grande vantagem do imposto sobre grandes fortunas o fato de que este grava os bens improdutivos, tais como iates, parques, metais preciosos, joias, objetos de arte, investimentos em terrenos baldios urbanos e em terras rurais não cultivadas, os quais, embora não sejam alcançados pelo imposto de renda, são claros índices de capacidade contributiva. Assim, o imposto sobre o patrimônio, gravando não os fluxos de riqueza, mas a sua acumulação, é um excelente instrumento complementar do imposto de renda, inclusive para a conveniente discriminação no trato positivo.20 TP

PT

Diante, pois da origem do Estado e sua necessidade de receitas tributárias, da dominação de classes pela elite e de fundamentos do Estado brasileiro21, para não fugirmos à concretude do TP

PT

tema, temos por plenamente justificada a mantença da situação que aqui se critica: a indiferença do legislador aos anseios por justiça tributária. Não é defender um imposto para termos mais um. Já temos bastante! É defender a tributação isonômica, que incidindo sobre as grandes fortunas poderia desonerar as alíquotas sobre o proletariado, a classe dos explorados, os que verdadeiramente sustentam o país e o luxo de 5 ou 10% da nação22. TP

PT

5. Conclusão Decerto que dificilmente se poderá chegar a uma conclusão sobre as razões da inércia de nossos congressistas quanto ao IGF. Se é consabido da lição de Marx e Engels que as ideias de uma época são as ideias das classes dominantes23, e se até então não se operou a LC, inevitavelmente (e somente isso por TP

PT

ousar concluir) há de se constatar que prevalece nesses 23 anos após a promulgação da CF uma elite afortunada que não desejando ser tributada para além do que proporcionalmente aos mais famintos brasileiros contribuem, impõe/patrocina ou como quer que seja, consegue fazer com que 20

______. Projeto de Lei n. 108 de 1989. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505193> . Acesso em 15.09.2011.

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21 T

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Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 22

ÚLTIMO SEGUNDO. Censo 2010: 10% mais ricos concentram 44,5% da renda dos brasileiros. Disponível em: Acesso em 05/11/11.

23

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2004, p. 17ss

481

os congressistas mantenham a situação de não tributação: quer pelos adiamentos desmedidos dos pronunciamentos e apreciações, quer pelos projetos para extinções, quer pelos arquivamentos forçadamente impostos aos projetos. Por que o congressista não editou após 23 anos a Lei do IGF ? O questionamentos que deixamos ao leitor, após as breves digressões feitas, é se realmente a razão estaria no não querer, ato voluntário individual ou grupal, ou se antes mesmo de por querer, o próprio sistema não permitisse, resultando num não puder para o legislador derivado. Haveria condições inquebrantáveis para manutenção do sistema capitalista no Brasil que impediriam a incidência de tal tributo? Em termos finais, tem-se a considerar que a problemática aqui versada não tem o condão de definir a viabilidade absoluta ou não do imposto, mas tão somente especular em cima das justificativas dispostas nos projetos normativos apresentados desde 1989 , cônscios de que um mínimo da Receita estatal precisa ser vertido para a sociedade e esse mínimo não pode ser consideravelmente antes tirado dos próprios destinatários do favor estatal. A máxima de Marx e Engels quanto as ideias de uma época enseja corolário indubitável de que o IGF persiste sem edição da LC, ainda que o fosse com alíquotas mínimas, porque representaria uma taxação – mesmo que irrisória – sobre o capital das classes dominantes, que por sua vez, não admitem abrir mão de qualquer tostão de mais valia. É nesse ínterim que há muito tempo se fala em reforma tributária, na qual nos aparenta intrínseca a discussão do IGF, conforme se reproduz mais um pronunciamento na Assembleia Nacional Constituinte: O país quer crescer. Mas não pode esperar por um crescimento planificado e ordenado nos gabinetes da burocracia. O país quer distribuir mais equitativamente a renda interna. Mas não pode esperar que tal distribuição venha a ser feita segundo os critérios de gananciosos “marajás” da administração pública, nem segundo fórmulas mágicas de distributivismo retórico.

Ainda é assim, concluo, que o Brasil quer e espera crescer.

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UT

18

ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [1987], v. 3, p. 195; TSE TUNG, Mao. Sobre a contradição. In: TSE TUNG, Mao. Obras escolhidas de Mao Tse Tung. Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras, 1975, t. I, p. 538.

19

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500

determinados, mas que o movimento das ideias é o reflexo do movimento real, transportado e transposto para o cérebro do indivíduo20. TP

PT

Pode-se dizer que o conhecimento humano é sempre válido, pois não existem coisas que não podem ser conhecidas e sim coisas a serem descobertas pelo homem mediante a ciência21. TP

PT

Qual a consequência dessa formulação? A história não pode ser compreendida como uma sucessão de acasos, mas como um desenvolvimento de leis objetivas e necessárias dos modos de produção. Também só se pode alcançar um conhecimento correto depois de várias repetições que vão da matéria à consciência e da consciência à matéria22. TP

PT

A interpretação da história e das ideias dos homens deve ser realizada mediante o estudo do processo histórico de evolução das leis objetivas de desenvolvimento dos modos de produção, pois, como já dito, é o modo como os homens produzem a riqueza que condiciona a vida social, política e espiritual em geral e atua na consciência do indivíduo23. TP

PT

Dois aspectos sempre vão atuar aqui independentemente do tipo de modo de produção: as forças produtivas (compostas pelos meios de produção e pela força de trabalho) e as relações de produção e as leis econômicas. As forças produtivas e as relações de produção desenvolvem relações mútuas e interdependentes marcadas por contradições. Alterando-se as forças produtivas, modificam-se as relações de produção. Por sua vez, as relações de produção atuam sobre as forças produtivas de forma a ampliar ou retardar o seu desenvolvimento. As contradições objetivas na sociedade surgem justamente quando não houver correspondência obrigatória entre o caráter das forças produtivas e as relações de produção24. Quando isso ocorre, as relações de TP

PT

produção passam a ser um entrave ao livre desenvolvimento das forças produtivas, impulsiona-se a contradição no processo de produção de riquezas de um modo geral, opõem-se objetivamente interesses determinados e prolifera a luta de ideias na sociedade. A alteração desses fatores modifica as estruturas sociais e políticas da comunidade. Sobre a infraestrutura social se erige toda uma superestrutura ideológica que corresponde não só ao pensamento e à consciência, mas fundamentalmente aos mecanismos de reprodução da

20 MARX, Karl. Posfácio à segunda edição alemã do primeiro tomo de O capital. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [1987], v. 2, p. 15; MARX, Carlos; ENGELS, Federico. La sagrada família: o critica de la critica critica. Buenos Aires: Claridad, 1971, p. 54, 69, 151; LÊNIN, Vladimir Ilich. Materialismo y empiriocriticismo. Pekin: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1975, p. 34-36; ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [1987], v. 3, p. 182; STÁLIN, J. Materialismo dialético e materialismo histórico. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 1979, p. 23. 21

ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [1987], v. 3, p. 180-181.

22

TSE TUNG, Mao. De onde provienen las ideas correctas? Disponível em: < http://www.marxists.org/espanol/mao/1963donde.htm>. Acesso em: 19 set. 2011. TU

UT

23

MARX, Karl. Prefácio à contribuição à crítica da economia política. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [1987?], p. 301. 24

STÁLIN, J. Materialismo dialético e materialismo histórico. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 1979, p. 38, 40.

501

ideologia social, cujas contradições subjetivas refletirão, ainda que de maneira indireta, as contradições do processo de produção de riquezas25. TP

PT

É óbvio que o pensamento e a consciência, bem como os demais fatores da própria superestrutura ideológica do Estado, interagem com outros aspectos da vida social. Porém a relação econômica se impõe como condicionante sempre. Não se trata, aqui, de um efeito automático, pois os homens, por si mesmos, fazem a sua própria história, mas de um condicionamento sobre a base de relações reais, entre as quais as econômicas, que, embora possam vir influenciadas por outras relações, como já dito, são decisivas26. TP

PT

Em situações

excepcionais, outras relações sociais podem ser determinantes, inclusive a superestrutura ideológica, mas apenas quando impedirem o desenvolvimento do modo de produção27. Fora TP

PT

dessas hipóteses, a vida material acaba por influenciar a consciência28. TP

PT

Por fim, o materialismo histórico e dialético funda a análise marxista. O método em questão não diz respeito a uma análise econômica meramente materialista da realidade. O marxismo examina os fenômenos não só à base do contexto social, econômico, político e histórico em que a sociedade está inserida, mas fundamentalmente na perspectiva da tomada do poder político pela aliança operária e camponesa, no uso desse poder para realizar as tarefas da transição e a etapa superior da transformação social, com a superação da divisão do trabalho, da produção e do próprio poder estatal29. TP

PT

4. O direito e o pensamento de Mao Tse Tung: a contradição como fundamento da realidade humana Segundo Mao Tse Tung, a lei fundamental do materialismo dialético é a da contradição. Esta se dá de forma interna na relação social, na natureza, na sua interação com outras relações sociais e é a causa do desenvolvimento, da transformação, do nascimento e da extinção da própria relação30. TP

PT

O método dialético materialista ensina que o geral está sempre na especificidade das contradições nas relações sociais. Produz um movimento de dentro para fora. Mao Tse Tung 25 MARX, Karl. Prefácio à contribuição à crítica da economia política. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, [1987?], p. 301-302; MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo: Ícone, 2004, p. 125. 26

VYSINSKIJ, A. J. Problemi del diritto e dello Stato in Marx. In: CERRONI, Umberto (Org.). Teorie sovietiche del diritto. Milano: Giuffrè, 1964, p. 259-260. 27 TSE TUNG, Mao. Sobre a contradição. In: TSE TUNG, Mao. Obras escolhidas de Mao Tsetung. Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras, 1975, t. I, p. 567-568. 28

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 6. ed. São Paulo: HUCITEC, 1987, p. 26-28, 35-39.

29

LÊNIN, Vladimir Ilich. O Estado e a revolução: a doutrina marxista do Estado e as tarefas do proletariado na revolução. São Paulo: Global, 1987, p. 71-72, 79-80. 30

TSE TUNG, Mao. Sobre a contradição. In: TSE TUNG, Mao. Obras escolhidas de Mao Tse Tung. Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras, 1975, t. I, p. 529, 530.

502

afirma que o estudo das contradições vai do particular ao geral e, depois, do geral ao particular e compreende não só a formação social como um todo, mas também as suas etapas, as suas particularidades31. A contradição existe no desenvolvimento de todas as formas sociais e evolui do TP

PT

início ao fim, além de repercutir no plano das ideias32. A essência de cada formação da sociedade TP

PT

é determinada e diferenciada pelas especificidades de suas contradições internas. Dentre as várias contradições existentes, haverá sempre uma que será a contradição principal (além do núcleo da contradição), que, por sua vez, influenciará e determinará o surgimento e o desenvolvimento das demais contradições sociais. Nada impede que no curso do desenvolvimento da relação social ocorra uma alternância entre a contradição dita principal e a secundária33. TP

PT

De qualquer forma, em todo fenômeno da sociedade o fator subjetivo deve ser interpretado a partir do fator objetivo/material/concreto. O desenvolvimento das ideias é por ele impulsionado e serve de base para selecionar hipóteses e resolver problemas quanto ao consciente humano independentemente do caráter da relação social, da existência ou não das classes sociais e de interesses antagônicos entre estas. Para Mao Tse Tung, todas as coisas - a comunhão, as diferenças, o movimento e a inércia - comportam contradições34. TP

PT

Como já visto, o novo e o velho, ao se chocarem entre si, se excluem, lutam um contra o outro, se revezam ao longo do processo histórico; aquilo que é novo tende a se tornar velho, e o que é velho tende a se tornar novo e, assim, sucessivamente. Os contrários não existem isoladamente e estão ligados entre si. E mais, eles se convertem um no outro, conforme o desenvolvimento da realidade, e se transformam mutuamente e constantemente35. Isto ocorre do TP

PT

início ao fim do desenvolvimento da relação social. Nada é estável, tudo é dinâmico, tudo muda e evolui. O universal, o geral e a verdade são sempre relativos. O antagonismo entre as classes sociais é consequência da luta entre os contrários. É o que Lênin denomina de unidade/identidade dos contrários36. TP

PT

As alterações na natureza humana são decorrentes do desenvolvimento dessas contradições na forma de os homens produzirem as coisas. Quando o homem vem à Terra, a primeira coisa que se coloca para ele não são questões abstratas ou subjetivas, mas a

31

Idem, ibidem, p. 541-542, 549, 558.

32

LÊNIN, Vladimir Ilich. En torno la cuestion de la dialectica. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2009. TU

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33

TSE TUNG, Mao. Sobre a contradição. In: TSE TUNG, Mao. Obras escolhidas de Mao Tse Tung. Pequim: Edições em Línguas Estrangeiras, 1975, t. I, p. 559, 561-562. 34 TSE TUNG, Mao. Metodo dialectico para la unidad interna del partido. TSE TUNG, Mao. Obras escogidas de Mao Tse Tung. Pekin: Ediciones en Lenguas Estranjeras, 1977, t. V, p. 562, 563. 35

TSE TUNG, Mao. Sobre el tratamiento correcto de las contradicciones em el seno del pueblo. In: TSE TUNG, Mao. Obras escogidas de Mao Tse Tung. Pekin: Ediciones en Lenguas Estranjeras, 1977, t. V, p. 428. 36

LÊNIN, Vladimir Ilich. En torno la cuestion de la dialectica. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2009. TU

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503

sobrevivência. E, para sobreviver, o homem vai precisar produzir alimentos, edificar abrigos, construir instrumentos de caça etc. Nessa situação, a condição material de existência do homem nucleia as relações sociais e se traduz em pensamentos, ideias, valores sociais, linguagens, significados e palavras. O impacto das condições materiais no “consciente humano” se dá também mediante contradições nos conceitos e dicotomias do pensamento, o que estimula o desenvolvimento de teorias, métodos e ideologias, os quais sempre refletem interesses econômicos, políticos e sociais específicos. A atividade de persuasão deve justamente tratar essas contradições. Todavia, a influência da infraestrutura social sobre a ação do indivíduo não é absoluta e nem sempre é capaz de gerar uma ideologia correspondente, pois, segundo Mao Tse Tung, a contradição também ocorre entre a base econômica e a consciência37. O inverso também é TP

PT

verdadeiro, pois, toda vez que a superestrutura ideológica falha, a consciência social, via instrumentos retóricos, pode repercutir na infraestrutura social. As contradições fazem mover, numa cadeia sucessiva e regressiva, a intervenção retórica do indivíduo no contexto em que está inserido. Contudo, a falência dos mecanismos de reprodução da ideologia acaba por permitir que o aperfeiçoamento e a construção retóricos deem ao indivíduo, enquanto orador, autonomia política e social ativa. A lei da contradição de Mao Tse Tung tem forte impacto no juízo do marxismo acerca da realidade jurídica, pois o direito só adquire vigência formal por vontade do Estado. O seu conteúdo legitimador deriva do desenvolvimento das forças produtivas, das condições de distribuição e reflete a luta de classes. As relações de produção se expressam nas correspondentes formas de direito. Ao chegarem a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas chocamse com as relações de propriedade e, nesse abalo, brota a relação jurídica. Nesse sentido, o marxismo concebe o direito como superestrutura ideológica do Estado. O direito passa a ser um instrumento para reproduzir a ideologia dominante na sociedade, institucionalizar o poder político, regular o modo de produção, proteger e reproduzir as relações sociais mais vantajosas à classe social dominante. Como a cada estágio de desenvolvimento das forças produtivas corresponde uma forma determinada de comércio e consumo, bem como uma sociedade civil, o ordenamento jurídico passa a integrar o conjunto das relações políticas da sociedade. O Estado tende, mediante o direito, a criar um conformismo social útil à classe social hegemônica38. TP

PT

37

TSE TUNG, Mao. Sobre el tratamiento correcto de las contradicciones em el seno del pueblo. In: TSE TUNG, Mao. Obras escogidas de Mao Tse Tung. Pekin: Ediciones en Lenguas Estranjeras, 1977, t. V, p. 430. 38

TSE TUNG, Mao. Sobre el tratamiento correcto de las contradicciones em el seno del pueblo. In: TSE TUNG, Mao. Obras escogidas de Mao Tse Tung. Pekin: Ediciones en Lenguas Estranjeras, 1977, t. V, p. 431; VYSINSKIJ, A. J. Problemi del diritto e dello Stato in Marx. In: CERRONI, Umberto (Org.). Teorie sovietiche del diritto. Milano: Giuffrè, 1964, p. 259-260.

504

A concepção marxista do direito deriva do Estado. Existe uma relação epistemológica indissolúvel entre o conhecimento do Estado e o do direito, que afirma o direito como forma social opressora e manipulada, por estar a serviço do poder político classista, calcado numa infraestrutura determinada. A verdadeira emancipação humana se daria numa sociedade sem classes, de forma que o livre desenvolvimento de cada um fosse a condição do livre desenvolvimento de todos. A relação jurídica oferece uma desigualdade econômica mascarada por uma igualdade jurídica. A forma do direito só tem valor quando se reduz à forma do conteúdo da relação econômica. A forma e o conteúdo são uma unidade indissolúvel. No entanto, são marcados por uma cadeia de contradições, e identificar a contradição principal pode ser um meio de aplicação da retórica pelo pós-marxismo. O pensamento de Mao Tse Tung permite entender, a partir da acentuação do elemento “contradição”, que o direito encobre relações de dependência e desigualdade, apresentadas como formas jurídicas de legalidade. O marxismo procura superar o formalismo jurídico mediante a revelação do conteúdo de opressão e contradição social inserido nas normas jurídicas, tendo por base as estruturas econômicas reais, visto que é nas relações sociais que se encontra o substancial do direito, e essas relações são codificadas só em um sistema econômico39. TP

PT

Ao se identificarem as contradições na norma jurídica, pode-se apreender a organização material do poder e revelar a relação de classe em que a violência física é organizada como condição de existência e garantia de reprodução. A existência de mecanismos de reprodução ideológica e de institucionalização do poder político pressupõe a monopolização da violência pelo Estado, encoberta e legitimada pelo direito40. Todavia, existe um tensionado gerado pelo TP

PT

progressivo acirramento da luta social. A retórica metódica, ao desconstruir os mecanismos que a linguagem jurídica opera, pode ser direcionada para identificar as estratégias persuasivas que encobrem a contradição principal e ajudar a revelar o poder estatal como a violência organizada de uma classe social contra as outras.

5. Conclusão: a retórica metódica e o desenvolvimento do direito na superestrutura ideológica pelo pós-marxismo O pós-marxismo é um movimento difuso de retificação e efetivação do marxismo. Seu T

objetivo é reconstruir o marxismo. Ao reconhecer a luta de classes e analisar os fenômenos à T

base dos condicionantes históricos e materiais em que o homem está inserido, coloca o mundo do

39

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505

trabalho na direção da conquista e uso do poder político para assegurar as tarefas da transição socialista rumo ao comunismo. Adquire caráter original com o prosseguimento das experiências recentes de construção do socialismo e tem como núcleo o reconhecimento do fracasso das primeiras experiências T

socialistas e a compreensão de que a construção de uma nova sociedade deve se dar à base do seu contexto social, econômico, político e histórico dentro do quadro de correlação de forças. O maoísmo, como variante da nacionalização do marxismo e do abandono de qualquer ideia de paradigma, aproxima-se do movimento pós-marxista, pois se volta para o problema da transição ao socialismo, o que implica uma preocupação com as etapas do capitalismo de Estado. Por outro lado, o pós-marxismo se interessa pela tese maoísta de que a contradição está presente na relação entre consciência e matéria e considera isso chave para o desenvolvimento da superestrutura ideológica do Estado e a busca de mecanismos retóricos suficientes para otimizar essa superestrutura, universalizar a ideologia dominante, neutralizar e eliminar as outras ideologias. Nessa visão, a tese maoísta se intersecciona com a retórica jurídica, pois a fusão do real com a linguagem é um meio que facilita o consenso. O ato humano, enquanto metalinguagem que cria, modifica e extingue relações, mesmo quando não tem a intenção de alterar a realidade, se ele influi na vida concreta, passa a ter carga persuasiva e pode permitir o consenso. Mesmo estratégias que, consciente ou inconscientemente, não se revelam diretamente em discursos expressos em palavras, mas, de forma tácita, em ações, podem ter carga que leve ao consenso, pois é suficiente a mobilização de vontades. Implica transformação da vontade de um indivíduo ou de um grupo na vontade de outro indivíduo ou de outro grupo, de tal maneira que todos, orador e auditório, passem a pensar da mesma forma como se fossem uma só pessoa. O ordenamento jurídico pode ser veículo de transmissão e de aceitação de ideias, mas nem sempre de modo livre e espontâneo. Adeodato cita a ameaça de violência e a falsidade como exemplos de condutas que podem levar à obtenção do consenso, mas de forma forçada41. A persuasão é apenas uma das formas de se atingir o TP

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consenso. A ação constitutiva do consenso no ordenamento é histórica, reflete a ideologia formada no processo histórico de evolução das leis objetivas de desenvolvimento dos modos de produção, mas também é retórica, se dá no ambiente da linguagem, em que significante e significado têm certa interdependência em relação à matéria. O pós-marxismo, particularmente, se importa com a metódica, pois esta vai além das retóricas metodológicas e dos métodos ao permitir maior controle da linguagem e legitimar, desse 41

ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional (sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 111-112. T

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modo, as regras da convivência humana, além de testar o acordo diante das regras do jogo e servir de suporte à aceitação de decisões. Ela não se limita ao consenso, pois admite a categoria sujeito e objeto e as contradições decorrentes nas relações humanas. Limita-se apenas ao registro e à análise dessas relações. É evidente que na própria produção do discurso, seja ele escrito ou oral, o orador revela o ser social que ele é e dialoga com o auditório sobre suas teorias, métodos e ideologias. Todo discurso jurídico é produzido à base de dado contexto social, econômico, político e histórico em que está inserido, sempre numa relação de alteridade, para o outro e recepciona as suas contradições42. TP

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Nessa ótica, a principal contribuição de Mao Tse Tung é acentuar que, embora os movimentos da matéria tenham uma essência comum, cada um é condicionado por contradições subjetivas próprias que forçam uma rotatividade e uma fricção dos processos sociais e contradições em relação à consciência. A atividade retórica pode e deve auxiliar na detecção das estratégias persuasivas que encubram as contradições fundamentais e secundárias na sociedade e a diferenciação das várias etapas de desenvolvimento dessas contradições e fenômenos existentes.

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A Frágil Tensão da Integração: uma breve consideração acerca da universalidade dos direitos humanos e organização das demandas particulares a partir da teoria do discurso de Ernesto Laclau Leonardo Monteiro Crespo de Almeida1 TP

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Resumo

Abstract

O presente artigo pretende mostrar como a desconstrução laclauliana dos conceitos metafísicos de universalidade e particularidade, tal qual apresentada em seu livro Emancipation(s), pode servir como fio condutor para uma leitura dos direitos humanos a partir de um contexto teórico pósestruturalista. Com isso, busca-se ressaltar como esse conceito pode ser discursivamente direcionado para a emancipação dos grupos subalternos, quanto para a sua submissão. O confronto sobre a significação dos termos que compõem os direitos humanos se relaciona com as identidades sociais que deles necessitam, sendo estas também moldadas por aqueles. Tomando certos argumentos já introduzidos por Laclau em sua obra escrita com Chantal Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy – Towards a Radical Democratic Politics, como a impossibilidade da sociedade e o vazio constitutivo do universal, sustenta-se que a relação conflituosa por meio da qual se busca determinar o significado do universal a partir de conteúdos particulares é sempre incompleta por causa da própria intransponibilidade do abismo situado entre o particular e o universal. Essa incompletude viabiliza tanto a constante reformulação dos direitos humanos enquanto proposta emancipatória, quanto a possibilidade de o mesmo ser apropriado para a legitimação dos interesses de grupos hegemonicamente situados. Reside aí a chamada frágil tensão da integração: a possibilidade constante de um discurso com pretensões inclusivas se transformar em algo que perpetua as condições que aparentemente busca eliminar.

This present article intends to show how Laclau´s deconstruction of the metaphysical concepts of universality and particularity, as exposed in his work Emancipation(s) could be useful as a guiding principle for a reading of the Human Rights in a poststructuralist theoretical context. Taking as a starting point the failed experiences of socialism governments, this Article shows Human Rights as a concept that could be discursively conducted for the emancipation of subaltern groups, or just for maintaining their condition of oppression and submission. Using certain arguments already exposed by Laclau in his work with Chanta Mouffe, Hegemony and Socialist Strategy – Towards a Radical Democratic Politics, like those which affirms the impossibility of society and the constitutive emptiness of the universal, this article sustains that the tense relationships estabilished by the social identities in order to determinate the universal´s ultimate meaning within particular contents is always already doomed to failure because of the unbridgeable gap between the particular and the universal. This incompleteness opens up the possibility of a constant reformulation of human rights as an emancipatory program, but also makes available it´s use for legitimize the interests of hegemonic situated groups. It´s this double movement that we call the fragile tension of inclusion, which means the always incessant possibility of a specific discourse, usually marked with inclusive claims, to be something that reproduces conditions that it firstly pursued to eliminate.

T

1

Mestrando em Teoria do Direito pela Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Bacharel em Filosofia pela UFPE e em Direito pelas Faculdades Integradas Barros Melo. E-mail: [email protected]. T

510

1. Introdução Os acontecimentos das últimas quatro décadas apontam para uma teia de posições e posturas que nos levam a formular duas observações: 1. o fracasso não apenas da utopia de uma sociedade plenamente livre de dominação, mas também a periculosidade presente na própria ideia de utopia, e 2. a ascensão cada vez mais constante dos direitos humanos e dos valores democráticos

como

um

programa

político

normativo

que,

muito

embora

ainda

em

desenvolvimento, tem se descrito como o mais eficiente, e menos abusivo. A intensificação das discussões acerca dos direitos humanos, e seu papel em um espaço político de ampla diversidade cultural e política, termina por reconfigurar a maneira em que pensamos esses espaços. A concepção firmada em torno da figura do Estado-nação começa a aparecer deslocada ao levarmos em consideração a presença constante dos embates multiculturais, e das relações jurídicas internacionais progressivamente mais complexas. Adquirindo cada vez mais importância perante essas questões encontram-se as formas peculiares assumidas pelos movimentos sociais, formas que cada vez mais desafiam as fronteiras geográficas e culturais estabelecidas. Deste modo cada vez mais são repensadas novos modelos de solidariedade a nível mundial, sem deixar de lado o regional. A luta contra as múltiplas formas de opressão, embate este cujo anseio principal se espera ser traduzido na progressiva emancipação dos vários segmentos sociais, constitui um dos legados mais expressivos do pensamento marxista. Resta saber o que fazer com essa herança e como situar ela a partir de nossa época. Se, por um lado, as fracassadas experiências socialistas na antiga União Soviética, Camboja, Coreia do Norte terminaram por problematizar o vínculo entre prática política e utopia, esta ainda se faz presente tanto na ideia dos Direitos Humanos, quanto nas lutas emancipatórias que agora se encontram cada vez mais difusas e diversas, ultrapassando inclusive as fronteiras dos embates entre classes econômicas para aí adentrar na esfera das minorias étnicas, dos gêneros sexuais, da defesa do meio ambiente, tudo isso a partir de vários contextos distintos. É sobre a relação problemática dos direitos humanos com as variadas formas de lutas emancipatórias, que esse artigo busca tecer algumas considerações. Faremos isso a partir de uma obra em particular, Hegemony and Socialist Strategy – Towards a Radical Democratic Politics, escrita ainda na década de oitenta por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe2, e uma obra TP

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posterior, Emancipation(s), esta sendo uma organização de importantes artigos assinados apenas por Laclau.

2 Levando-se em consideração que Hegemony... é a única obra aqui mencionada onde Laclau compartilha com Mouffe, toda vez que mencionarmos ´Laclau/Mouffe´ estamos aqui aludindo para as posições e conceitos esboçados nesse livro em particular. Ao mencionarmos somente Laclau estamos apontando para as obras em que é o único o autor.

511

Na primeira obra, os autores questionam diretamente o discurso triunfalista dos partidários da democracia liberal, que celebram o chamado fim do comunismo, mas que por outro lado permanecem com reflexões incipientes diante de expressivos problemas encontrados nas nações de economias capitalistas3. Questionam também inúmeras restrições ao chamado marxismo TP

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ortodoxo, ou tradicional, restrições estas que acabam por inviabilizar a assimilação de uma série de embates emancipatórios por parte da chamada esquerda política. Essa ausência de assimilação decorre, em parte, da inadequação entre a forma e as questões trazidas por esses novos movimentos, assim como as categorias legadas pelo marxismo ortodoxo, que informam em grande parte as reflexões teóricas da esquerda. A análise realizada por Laclau/Mouffe interliga o político com o teórico, na medida em que ao identificar essas restrições, os autores anseiam estabelecer um novo horizonte para o pensamento de esquerda, tornando viável com isso uma série de demandas antes insuscetíveis de serem assimiladas por este tipo de pensamento. O fio condutor que perpassa essa obra consiste na genealogia do conceito de hegemonia, retirado da obra de Antônio Gramsci, mas aqui modificado para atender as necessidades dos autores. Neste contexto teórico, a hegemonia é uma questão para dois tipos de grupos em situações específicas: (1) – refere-se aos que se encontram no poder, em uma posição privilegiada, e desejam assim permanecer e (2) – refere-se aos grupos que se encontram em posição de subalternidade, e almejam confrontar os detentores desse poder. O conceito de hegemonia como concebidos por Laclau/Mouffe a partir do que disse Gramsci expressa uma tentativa de conceber a política como modeladora das identidades sociais ao invés de ser apenas a expressão dos interesses de identidades preexistentes aos embates da política. É na concepção gramsciana do marxismo que Laclau/Mouffe enxergam um novo vocabulário apto a representar, e problematizar, os vários segmentos sociais que buscam politizar suas demandas. Jeremy Gilbert, em seu livro Anticapitalism and Culture – Radical Theory and Popular Politics alude para a importância que a concepção gramsciana de “vontade coletiva” tem para o trabalho de Laclau/Mouffe, principalmente no que concerne à ilustração de um bloco que é composto pelos mais diferentes segmentos sociais4. TP

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Os artigos de Emancipation(s) trabalham uma série de problemáticas e questões um tanto quanto diversas entre si, mas todas elas são cortadas pela desconstrução dos tradicionais conceitos da teoria política, como representação, sujeito, universalidade e particularidade, além da própria emancipação. Este trabalho seguirá a seguinte ordem de exposição dos temas. Primeiro ilustraremos as tensões entre a universalidade subjacente aos direitos humanos, e as diversas manifestações 3

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. 2 ed. London: Verso, p. 1-4, 2001.

4

Cf. GILBERT, Jeremy. Anticapitalism and Culture - Radical Theory and Popular Politics. Oxford: Berg, p. 150, 2008.

512

particulares que aqui assumem a forma de demandas dos mais diferentes estratos sociais. A finalidade consiste em ressaltar a importância dos direitos humanos diante da formulação dessas demandas. Em seguida se buscará ilustrar algumas limitações que cercam os direitos humanos, principalmente no que concerne a sua aplicabilidade e reconhecimento, daqueles que lhe são mais necessitados. O que se pretende ressaltar é a fragilidade que se encontra na inclusão dos grupos subalternos diante dos direitos humanos.

2. Identidades Sociais e Práticas Democráticas: a busca por um novo horizonte político emancipatório Ao iniciar a obra Hegemony and Socialist Strategy – Towards a Radical Democratic Politics, Laclau/Mouffe ressaltam os vários experimentos socialistas do século vinte, e o modo como essas repercussões vieram a produzir uma crise teórica e prática para todos aqueles que se viam como de esquerda. O que se entende por discurso triunfalista do liberalismo político consiste na afirmação da democracia representativa enquanto única alternativa viável, devendo esta ser aperfeiçoada por contínuas reformas preferencialmente limitadas por uma Constituição. Neste panorama, o capitalismo também apareceria como barreira insuperável em termos de sistema econômico. A proliferação de novos sujeitos políticos termina por confrontar tradicionais categorias de esquerda, como classe e emancipação, repercutindo a nível teórico o que em termos de engajamento prático já era visto como problemático5. Por isso, pensam os autores, é necessário TP

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enfrentar diretamente essa crise, reformulando conceitos e repensando premissas, não deixando de lado a tradição marxista, mas buscando situar-se para além dela a partir de uma reformulação, como também crítica, de suas principais categorias. A crescente complexidade social faz com que qualquer tentativa de se chegar a uma significação última da sociedade seja fadada ao fracasso, principalmente em termos de eliminação total das relações antagônicas subjacentes às identidades sociais. Como bem afirma Daniel de Mendonça: “A complexidade do social, no entanto, impede necessariamente a completa universalização ou totalização desses conteúdos particulares, uma vez que tentativas de fechamento completo de sentidos sociais são empreitadas sempre incompletas e precárias”6. TP

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Com isso também a própria impossibilidade de prevermos qual será a identidade a se destacar perante as outras, encarnando aí o papel de representação do social. Essa

5

Quanto ao aparecimento dos novos subjeitos e movimentos políticos, Cf. LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. 2 ed. London: Verso, p. 166, 2001.

6

MENDONÇA, Daniel de. A teoria da hegemonia de Ernesto Laclau e a análise política brasileira. Revista Ciências Sociais Unisinos. São Leopoldo - RS , Unisinos, n. 43(3), p. 250, set/dez., 2007.

513

representação, porém, é sempre marcada pela precariedade e contingência. Precariedade haja vista que a representação jamais engloba a totalidade do social, e a contingência porque a ocupação desse papel por um grupo específico não consiste em uma necessidade metafísica, e sim fruto de articulações discursivas contingentes situadas entre os vários grupos sociais. A dimensão conflituosa da democracia é afirmada em toda a sua intensidade, inclusive na rejeição a qualquer tipo de proposta situada em torno de um ideal de consenso que viesse a possibilitar um diálogo compreensivo entre as diferentes identidades sociais. A radicalidade que os autores buscam incorporar ao projeto político democrático não consiste apenas no reconhecimento de uma certa precariedade das formações hegemônicas, ou seja, a contingência que desde já é responsável por uma fixação de sentido, ainda que muito instável seja essa fixação. A democracia radical é uma proposta que também se encontra bastante atenta aos desdobramentos proporcionados pelos novos movimentos sociais, transformando com isso o panorama político em um verdadeiro mosaico composto pelos mais diversos interesses e necessidades, deixando para trás qualquer concepção de conflito restrita aos embates travados por classes sociais antagônicas.

3. A Problemática Relação entre Universal e Particular: os Direitos Humanos como conteúdo particular universalizado A partir de seu artigo contido no livro Emancipation(s), intitulado Universalism, Particularism and The Question of Identity, Laclau realiza um estudo histórica sobre a relação metafísica entre universal/particular. A análise dessa relação servirá de fio condutor para que sejam expostos os impasses políticos contemporâneos implicados tanto pela crise prática, quanto teórica do pensamento de esquerda em um contexto histórico recente. De um modo muito geral, na filosofia antiga o particular existe enquanto corrupção do próprio ser7. Já no pensamento medieval cristão, o ponto de vista do universal somente a Deus TP

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seria acessível, ficando a cargo da revelação o estabelecimento de uma ponte entre esse ponto de vista e aquele que é sustentado pela humanidade precária e limitada. Além da revelação, Laclau destaca a encarnação, outro termo de grande importância para se compreender a correspondência entre universal e particular a partir do pensamento cristão, principalmente porque este universal é inacessível ao homem. Através da lógica da encarnação, o universal divino se aloja no particular humano, muito embora ainda inexista qualquer vinculação racional entre esses dois termos. Com a chegada da modernidade, a relação entre universal e particular é mais uma vez modificada, e o lugar ocupado por Deus passará a ser o da Razão. Essa modificação, 7

Cf. LACLAU, Ernesto. Universalism, Particularism and The Question of Identity. In:_____. Emancipation(s). London: Verso, p. 22, 2007.

514

aparentemente sútil, tem como principal consequência a desvinculação da relação entre universal/particular da chamada lógica da encarnação. Se a posição ocupada pelo humano no pensamento medieval ressaltava toda a sua limitação, a introdução da razão modifica também essa posição, tendo em vista que tudo passará a ser acessível à luz da razão, sendo esta também universal. A distância que se havia estabelecido entre o universal e particular é rompida por um corpo que se pretende universalizado8. Mas será mesmo que a lógica da encarnação foi superada, ou ela permaneceu TP

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mascarada? Os autores modernos sustentavam uma universalidade que no fundo se tratava de um projeto cultural bastante particular, a saber, o europeu. A busca pelas sociedades ainda não submetidas ao domínio da razão terminou por servir como uma das molas propulsoras do imperialismo. Como estratégia retórica de justificação das práticas de exploração econômica, criou-se todo um contexto de progresso social enquanto mecanismo responsável por transformar os bárbaros em civilizados. Deste modo, expandiu-se progressivamente o domínio da razão pelas mais diversas sociedades. A Europa deixava de representar os interesses dos europeus para representar os da humanidade. Laclau ressalta que uma replicação dessa lógica da encarnação, que se pensava superada, é também encontrada no pensamento marxista, principalmente em sua vertente leninista. Substituindo a “Europa”, não faltam palavras como “o partido”, “a nação”, “o Estado”, responsáveis por representar os interesses das classes operárias9. Caberia ao partido ser a ponte TP

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que liga os dois extremos “mutilados”: a classe operária em sua dimensão universal, como agente histórico privilegiado, e as suas necessidades e aspirações concretas. Tanto com relação ao que chamamos de pensamento iluminista, como também no marxista, difícil é superar a lógica da encarnação. Mas onde Laclau quer chegar ao realizar esse esboço histórico, cujo foco ao final reside nas dificuldades em se superar um certo tipo de lógica? A primeira preocupação, e talvez a principal, consiste em negar a purificação dessa relação, seja em termos de se visualizar um puro universal, ou o que é igualmente problemático, um puro particular. Se até aqui os esforços analíticos foram mobilizados para se mostrar o quanto as tentativas de se visualizar um universal purificado do particular mostraram-se problemáticas, para não dizer inviáveis, não são essas as tentativas que mais preocupam Laclau. Recentes posições de algumas vertentes do multiculturalismo visualizariam na eliminação de qualquer referência ao universal, uma forma de resguardar as identidades sociais particulares de uma assimilação fatal por um grupo hegemonicamente situado. Esse tipo de posicionamento guarda consigo tanto problemas de ordem teórica, quanto prática. A afirmação de uma identidade 8

Cf. LACLAU, Ernesto. Ibid. p. 23-24.

9

Cf. Ibid, p. 25.

515

social particular reside em sua relação diferencial com as outras identidades, e ela é sempre situada a partir de um espaço mais amplo, situado para além dessas identidades ainda que também as envolva. O “jogo” entre as identidades não deve ser compreendido como tomando parte em uma estrutura formal, ahistórica e auto referencial. Ao contrário, o “jogo” se faz presente nas práticas sociais discursivas que já se encontram inseridas em um contexto mais amplo. Esse contexto atua como espaço por meio da qual as identidades sociais são afirmadas, e é por isso que Laclau o denomina universal. Aí também já se mostra a sua não aceitação de um puro particularismo. O autor destaca esse ponto da seguinte forma: Se cada identidade situa-se em uma relação diferencial, e não antagônica, com todas as outras identidades, então a identidade em questão é puramente diferencial e relacional; logo ela pressupõe não apenas a presença das outras identidades, mas também uma totalidade que constitui a diferença enquanto diferença10. TP

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Além desse problema teórico, cabe ressaltar o componente do poder nas relações que são estabelecidas entre essas identidades, ou seja, as relações diferenciais, em alguns casos, são marcadas por operações de exclusão e subjugação. Uma política identitária guiada por uma concepção de pura particularidade pode vir a fazer com que uma identidade social politicamente enfraquecida venha a se subtrair da vida política, recusando-se a combater e problematizar o status quo porque não aceita as instituições que podem viabilizar esse tipo de reinvindicação. O que pode vir a se suceder é o continuo deslocamento dessa identidade para a periferia, tornandose marginalizada e ainda mais enfraquecida em termos de expressão sócio-política dos seus interesses. O ponto que Laclau está querendo destacar consiste na necessidade de que tem uma identidade social de partilhar certos princípios com a comunidade em que ela se situa, isso se almejar fazer com que suas pretensões venham a ser atendidas, como também que seus direitos venham a ser respeitados. É neste momento que Laclau insere a problemática da subjetividade e sua relação com a tensão entre universal/particular. Sendo muito influenciado por Jacques Lacan no que concerne acerca do sujeito, Laclau afirma a impossibilidade de que a identidade venha a se tornar uma totalidade fechada e transparente. Ao contrário, a identidade se encontra marcada por uma falta constitutiva, não lhe sendo possível chegar a um estado por meio da qual ela venha a atingir a plenitude de sua constituição. Com isso, o autor destaca a constante instabilidade que persiste na

10

Cf. LACLAU, Ernesto. Universalism, Particularism and The Question of Identity. In:_____. Emancipation(s). London: Verso, p. 27, 2007. No Original: “For if each identity is in a differential, non-antagonistic relation to all other identities, then the identity in question is purely differential and relational; so it presupposes not only the presence of all the other identities but also the total ground which constitutes the differences as differences”.

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concepção de cada identidade, não lhe sendo possível uma determinação última de sua significação. O universal emerge do particular, mas ele não atua como um elemento que o subsume em nesta espécie de totalidade. Aqui o universal se situa como um horizonte incompleto que aponta para a falha continua na constituição das próprias identidades. Disso segue-se que, muito embora o universal careça de um conteúdo essencial, ele é palco para a ocupação de inúmeros conteúdos contingentes, dentre os quais podemos considerar a democracia liberal e os direitos humanos. Os direitos humanos, a partir deste contexto teórico, podem ser observados como produto das práticas discursivas de inúmeras identidades sociais, atingindo após inúmeros embates uma dimensão hegemônica. As identidades sociais em suas estratégias políticas passam vê-lo como referência, utilizando-o como elemento que defende e sustenta um espaço de reinvindicação sócio-político de caráter emancipatório. Os vários termos que compõem o discurso dos direitos humanos, como ´liberdade´, ´igualdade´, ´solidariedade´, encontram-se constantemente redefinidos a partir das práticas políticas dessas identidades sociais. Laclau identifica uma ambiguidade subjacente aos embates produzidos em torno de um sistema de poder específico. Se as identidades não podem se afirmar em suas relações diferenciais sem fazer referência a um contexto mais amplo, qualquer transformação nesse contexto implicará também uma modificação nas identidades que a ele se encontram vinculadas. Os direitos humanos são passíveis de atuarem como suporte discursivo para as reinvindicações dos mais variados grupos, como também proporcionar percursos emancipatórios para as identidades sociais subalternas. Valores como liberdade e igualdade podem ser redefinidos e apropriados por essas identidades para que suas necessidades sejam institucionalmente reconhecidas, e assim problematizadas. Trata-se de uma estratégia dentre várias que permite dar visibilidade a um número de demandas que de outro modo seriam ignoradas, ou tidas como inexistentes. Problema maior ocorre quando o discurso dos direitos humanos passa a ser conduzido a partir do referencial daqueles grupos sociais que se situam no topo da pirâmide políticoeconômica11. Todo o potencial emancipatório pertencente a este discurso provavelmente será TP

PT

minimizado, ou até substituído, por estratégias de legitimação cuja principal consequência residirá na manutenção das relações de poder já sancionadas pelo status quo. O que antes era direcionado para a problematização da opressão acaba por se converter no próprio instrumento de dominação.

11

Cf. DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire – The Political Philosophy of Cosmopolitanism. New York: Routledge, p. 65-70, 2007.

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Nada impede que o significado da igualdade se restrinja ao de livre empreendedorismo e que a liberdade venha a significar apenas a não intervenção estatal nos valores e costumes comunitários, deixando a cada um a responsabilidade por garantir o seu bem-estar econômico, inclusive entre aqueles que pouco possuem. Cabe também apontar para o modo com que esse tipo de discurso pode ser utilizado para legitimar a invasão de um país por uma potência estrangeira, muito embora os interesses determinantes sejam econômicos, e não pautados pelos direitos humanos. Esse é um tipo de problema incontornável e que não pode ser resolvido a priori, uma vez que colocaria em risco a própria dinâmica conflituosa associada ao espaço democrático. Democracia é conflito, e este não cessa a partir do momento em que se chega a uma representação universal da sociedade, tendo em vista que essa representação encontra-se sempre suscetível de ser desestabilizada e subvertida. Se a democracia é possível, isso ocorre porque o universal não possui um corpo necessário, nem também um conteúdo necessário; grupos diferentes competem entre si pela função de uma representação universal... É esse fracasso final da sociedade em se constituir como sociedade – o mesmo que o fracasso da diferença em se constituir como diferença – que faz com que a distância entre o universal e o particular se torne intransponível e, como resultado, encarrega aos agentes sociais concretos com a tarefa impossível de realizar uma interação democrática12. TP

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É essa intransponibilidade entre universal e particular que inviabiliza o discurso dos direitos humanos como conteúdo que se identifica com o lugar vazio do universal, assim buscando um fechamento definitivo. Com isso, encontra-se instaurado todo o drama do político, onde muito embora as resoluções finais sejam impossíveis, permanece indispensável a manutenção das lutas e dos conflitos por uma sociedade menos pautada pela subjugação.

4. Considerações finais Com a teoria do discurso de Ernesto Laclau, uma defesa da universalidade dos direitos humanos a partir de uma perspectiva metafísica, enquanto conteúdo insuscetível de ser deslocado, se torna insustentável. A possibilidade de ascensão dos direitos humanos reside paradoxalmente na impossibilidade de sua consolidação definitiva enquanto discurso que venha a suturar, fechar, o espaço de significação social. Os constantes processos de desestabilização abrem espaço tanto para a transformação constante dos conteúdos dos direitos humanos, tornando-os ainda mais comprometidos com as 12 LACLAU, Ernesto. Universalism, Particularism and The Question of Identity. In:_____. Emancipation(s). London: Verso, p. 35, 2007. No Original: “If democracy is possible, it is because the universal has no necessary body and no necessary content; different groups, instead, compete between a function of universal representantion... It is this final failure of society to constitute itself as society - which is the same thing as the failure of constituting difference as difference - which makes the distance between the universal and the particular unbridgeable and, as a result, burdens concrete social agents with the impossible task of making democratic interaction achievable”.

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práticas emancipatórias dos vários grupos subalternos, como podem assumir feições de legitimação de atitudes e ações autoritárias e opressivas por parte daqueles que possuem o suporte econômico e o poder político.

Referências bibliográficas DOUZINAS, Costas. Human Rights and Empire – The Political Philosophy of Cosmopolitanism. New York: Routledge, 2007. GILBERT, Jeremy. Anticapitalism and Culture - Radical Theory and Popular Politics. Oxford: Berg, 2008. LACLAU, Ernesto. Universalism, Particularism and The Question of Identity. In:_____. Emancipation(s). London: Verso, 2007. LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. 2 ed. London: Verso, 2001. MENDONÇA, Daniel de. A teoria da hegemonia de Ernesto Laclau e a análise política brasileira. Revista Ciências Sociais Unisinos. São Leopoldo - RS , Unisinos, n. 43(3), p. 250, set/dez., 2007.

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Uma investigação da validade da teoria dialética do direito a partir da verificação de sua utilização pelos advogados populares Marcos Lima Filho1 TP

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Resumo Analisar os erros e acertos da teoria dialética direito de Roberto Lyra Filho no que concerne à captação intelectual do fenômeno jurídico com base na mediação com a prática dos advogados populares é o objeto deste artigo. O marco teórico da pesquisa será o materialismo histórico de Karl Marx e o método utilizado será o dialético do mesmo autor. Avaliar a validade da descrição ideal do movimento real do direito por parte da referida teoria é o objetivo deste texto. O escrito será composto por uma introdução em que se detalhará as informações contidas neste resumo. Em seguida, inicia-se o desenvolvimento com uma breve explanação sobre a teoria dialética do direito de Roberto Lyra Filho para que o leitor possa julgar a qualidade da leitura do autor deste artigo. Depois, apreciar-se-á os argumentos jurídicos utilizados pelos advogados populares da cidade de João Pessoa nas suas lides visando a constituir o elemento concreto, donde partir-se-á a abstração intelectual do estudo, consoante o método proposto. Na parte final do desenvolvimento, apresentar-se-á os erros e acertos da teoria lyriana acerca do fenômeno jurídico através da avaliação das categorias da lei e do direito na obra do referido autor. Nas considerações finais, far-se-á uma avaliação em torno da validade da explanação da teoria investigada no sentido da apreensão cognitiva do movimento do fenômeno jurídico na totalidade. A pesquisa encontra-se na fase de investigação dos argumentos jurídicos utilizados pelos advogados populares de João Pessoa. Palavras-Chave: Dialética; Lyra Filho; Advocacia Popular; Validade.

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Mestrando em Ciências Jurídicas pelo Programa de Pós-Graduação da UFPB na área de concentração em Direitos Humanos, em fase de conclusão de curso e aprovado para o doutorado na mesma instituição.

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1. Introdução A teoria dialética do direito é uma proposta da Nova Escola Jurídica Brasileira, da década de 1980, de construção de uma nova teoria do Direito a partir da análise dialética da obra de Marx, da qual são retiradas algumas concepções jurídicas que vão embasá-la para, mais tarde, serem finalizadas por Roberto Lyra Filho. Ela trata o direito enquanto fenômeno social que surge a partir das lutas sociopolíticas da sociedade, separando-o da forma que o veicula, a lei. Com isso, ela retira o direito exclusivamente do âmbito do Estado e coloca-o na sociedade. Para o referido expoente da escola, o que define o Direito não é sua forma, mas seu conteúdo, através de critérios como a adequação histórica e justiça social que indicariam a sua legitimidade. Para averiguar a validade da citada teoria como descrição ideal do movimento real do fenômeno jurídico, utilizar-se-á a categoria da advocacia popular. Esta é uma atividade profissional que reúne militantes da área jurídica em torno de causas populares visando a dar suporte técnico e político a novos sujeitos de direitos que não têm condições financeiras de ter acesso à advocacia tradicional de grandes escritórios. Como uma atividade contra hegemônica, ela está mais aberta a novas experiências tanto na relação cliente advogado como na busca do reconhecimento dos direitos de seus assistidos, o que favorece a utilização de diferentes estratégias e visões de encarar o fenômeno jurídico. A escolha da advocacia popular como categoria para viabilizar a pesquisa e servir de parâmetro à verificação da utilização da referida teoria dá-se pois, ambas criticam o positivismo jurídico e propõe a sua superação através de junção entre teoria e prática para um modelo que reconheça as reivindicações dos grupos populares organizados como prioridade jurídica em detrimento dos interesses dos grupos e classes dominantes. Ora, se os dois temas possuem finalidade semelhante, a superação do positivismo jurídico, e compartilham seus pressupostos políticos, éticos e científicos, deduz-se daí que os advogados populares são a principal categoria profissional do direito que possibilita uma pesquisa em torno da viabilidade da explicação da teoria dialética do Direito. Destarte, pretende-se investigar a validade da explicação do fenômeno jurídico efetuada por Roberto Lyra Filho, ou seja, sua capacidade de captar e explicar idealmente o movimento real do fenômeno jurídico, tendo como ponto de partida a investigação acerca de sua aplicação na resolução dos conflitos jurídicos e os reflexos de sua possível utilização na educação jurídica popular com lideranças de movimentos sociais, ambas pelos advogados populares. Essa preocupação com a utilização da teoria constitui o ponto de partida para a elaboração do pensamento do autor, mas a sua finalidade precípua é a avaliar a explanação do Direito dada pelo referido autor. Para entender o problema que aqui será tratado, é importante compreender o seguinte contexto: a teoria dialética do direito alcançou recentemente um grande patamar de discussão em virtude de ataques desferidos contra ela através de declarações do Ministro do Supremo Tribunal 521

Federal (STF) Gilmar Mendes e dos escritos de Reinaldo Azevedo, dois representantes das classes dominantes no Brasil. Em respostas a esses e outros ataques, Sousa Júnior (2008, p.13) declarou que a referida teoria não se constitui num fundamento de um direito futuro, mas na explicação do Direito na realidade atual. Contudo tal assertiva não pode ser tomada como um pressuposto, ela deve ser provada. Nesse sentido, diante da ausência de estudos acerca da temática, bem como, para a necessária compreensão do fenômeno jurídico através de sua crítica, faz-se mister a pergunta guia que norteará a pesquisa: é possível, a partir das relações concretas, utilizar a teoria dialética do Direito como fundamento para a explicação do fenômeno jurídico, em outras palavras, a teoria dialética do direito consegue captar o direito, descrevê-lo e propor uma fundamentação? Como solução inicial para esse problema, delineia-se que os advogados populares não utilizam a teoria dialética do direito de Roberto Lyra Filho para execução de suas atividades jurídico-políticas em João Pessoa, logo, a referida construção intelectual não tem validade para explicar o movimento real do fenômeno jurídico, pois não encontra mediação com a realidade na atual forma de organização social. Com a realização da pesquisa, objetiva-se primordialmente a elucidação da validade explicativa, no sentido de descrição ideal do movimento real do fenômeno jurídico, pela teoria dialética do direito de Roberto Lyra Filho. As motivações para construção do trabalho em questão dão-se na medida em que se tratam de questões relegadas pelo estudo jurídico tradicional. A teoria dialética do Direito foi relativamente abandonada sem ser devidamente discutida como ressaltam Costa (2009, p. 60) e Galvão Jr. (p. 13), este chega a falar em um “exílio” do pensamento lyriano. No tocante à advocacia popular, também são poucos os escritos sobre o tema, o que dificulta a compreensão de uma atividade que deveria ser central, visto que, em tese, a advocacia deveria servir aos que têm seus direitos desrespeitados e a maioria destes não possuem condições de acessar os escritórios de advocacia tradicionais. Como marco teórico que norteará a pesquisa, ou seja, o ponto de vista a partir do qual se percebe objeto de estudo e a realidade em que ele está inserido, é o materialismo histórico de Karl Marx. Segundo esta teoria, as relações jurídicas para serem compreendidas, como qualquer relação social, devem levar em conta as relações de produção que estão na base dessa sociedade e que as condicionam. (MARX, 2008, p.47) As relações de produção são aquelas relações necessárias nas quais estão definidos quem detém a propriedade das forças produtivas e, conseguintemente, a apropriação do trabalho gerado por elas. (BOTTOMORE, 2001, p. 157) Por forças produtivas, entende-se os recursos naturais, a força de trabalho, os instrumentos de trabalho, o conhecimento. (MARX, 2010, p. 105). O fato das relações jurídicas serem determinadas pelas relações de produção não quer dizer que o direito não sofra reformas, adaptações e melhoras ou pioras, do ponto de vista de 522

quem as conquistou ou perdeu, mas afirma que uma transformação social que mude a posição das classes que serão favorecidas hegemonicamente por esta forma de relação social não passa meramente pela sua superestrutura ideológica, onde está localizado o fenômeno jurídico, ou pior ainda, por uma das relações sociais que se desenvolvem nela. Uma transformação desse cunho, em que são invertidas as classes que fazem as regras da vida social, só pode haver com uma mudança na própria estrutura que determina essas relações sociais, ou seja, com uma mudança na totalidade das relações de produção. Estas transformações, por sua vez, são sujeitas às contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção ou sua expressão jurídica, isto é, as relações jurídicas de propriedade, ou seja, no momento em que estas passam a ser entraves ao desenvolvimento daquelas é que se possibilita uma transformação de tal envergadura. Contudo, deve-se alertar que esses processos sociais, sobretudo a transformação das relações sociais que estão na superestrutura, não se dão de modo mecânico, mas através da luta entre as classes e grupos que estão em conflito na sociedade. No tocante à metodologia, os aspectos da pesquisa empírica serão sonegados propositalmente em virtude do pouco espaço para sua discussão. O leitor que desejar ter acesso a ela terá de buscar a versão completa deste trabalho a ser defendido em breve. Não obstante isso, o método de abordagem será o dialético, utilizando seus aspectos objetivos (Engels, 2000, p. 34) na descrição da realidade como movimento e mudança, interpenetração dos contrários e mudança da quantidade para qualidade e vice-versa, bem como seu aspecto subjetivo (Marx, 2008, p. 258) de captação da realidade a partir do concreto, elevando-o ao abstrato através do pensamento. Com a abstração, determina-se seus elementos mais simples que compõem esse concreto, retornando a ele não mais como um todo caótico, mas como uma síntese desses múltiplos elementos. Após explicitar os pressupostos do autor e da pesquisa, abri-se caminho para a passagem rumo a compreensão do autor deste artigo acerca do que é a teoria dialética e como as noções de direito, lei, justiça manifestam-se nela. Com essa exposição, pretende-se munir o leitor com a interpretação dada à obra lyriana, explicitando os pontos de partida do pesquisador e possibilitando a compreensão do presente escrito mesmo para aqueles que não tenham intimidade com a teoria avaliada.

2. Uma interpretação do direito em Lyra Filho A teoria dialética do Direito2 constitui uma tentativa de Roberto Lyra Filho de construir uma TP

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teoria do Direito que fundamentasse os direitos das classes e grupos espoliados e oprimidos,

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Roberto Lyra Filho utiliza a distinção em que Direito (com inicial maiúscula) significa o fenômeno social que indica a legítima organização social da liberdade e direito (com inicial minúscula) indica as ideologias jurídicas que utilizam uma determinada concepção parcial acerca do fenômeno jurídico como se fosse a sua totalidade. Objetivando-se ser fiel a descrição da leitura do referido autor, utiliza-se a distinção apontada, contudo sem pretensão de corroborá-la.

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também chamados de direitos humanos. Apesar de ter sido forjada em mais de quarenta anos de pesquisas sobre a obra marxiana, há de ressaltar-se que Lyra Filho não era um autor marxista, posto que rechaçava sua dialética racionalista e somava outras influências antitéticas para o marxismo como o misticismo de Hegel e o panteísmo de teólogos como Teilhard e Tillich (LYRA FILHO, 1986, p. 287). Não obstante isso, ele procurou estabelecer um diálogo aberto com os clássicos de Marx, construindo com ele, e até mesmo contra ele, sua teoria jurídica. Utilizando uma interpretação dialética em que afirmação, negação e negação da negação perfazem o itinerário do estudo, o autor buscou levantar os indícios desta teoria em Marx para, a partir deles, continuar o trabalho. É desta forma que ele afirma: Procurei estabelecer os parâmetros e padrões dialéticos, segundo os quais se podem ler as idéias jurídicas marxianas, sem que se sacrifique uma parte delas, em benefício de afirmações e negações constantes de todo movimento e do conjunto ou subtotalidade da obra: daí saltarem os indícios duma negação das negações do Direito, que não chegam a articular-se em verdadeira e própria teoria geral do Direito inteiro. Por outras palavras, como se recomenda num estudo de autor e doutrina, foi procurada sua dialética interna (LYRA FILHO, 1983, p. 90)

Partindo da afirmação de que não há em Marx uma teoria geral do Direito, mas idéias desarticuladas que se negam vez por outra, Lyra Filho buscou, nessas contradições, extrair o material necessário para a tarefa, a qual ele assume o compromisso, de realizar a teoria dialética do Direito, bem como, o esboço do seu suporte. Assim, ele tentaria construir a síntese dialética do processo iniciado por Marx, através da negação da negação do Direito, ou seja, sua reafirmação, conservando aquilo que há de progressivo nas idéias defasadas. Cumpre ressalvar que apesar do diálogo com Marx, o método utilizado para superá-lo é hegeliano3. TP

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Ele acreditava que se poderia chegar a uma essência dos fenômenos sociais, dentre elas, a do Direito. Porém, essa essência, como se percebe pela citação, “se mantêm em um movimento de constante e contínua transformação”. Então, para definir-se corretamente o Direito, Lyra Filho (1995, p. 12) defende que se deve buscar o seu ser naquilo que há de permanente em suas mudanças no tempo, ou seja, “nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico social”. Para isso, o fenômeno jurídico deve ser observado dentro das relações sociais, na totalidade da qual ele faz parte. Essa busca da essência do Direito dentro dessa totalidade em movimento é o que se chama: ontologia dialética, a busca “daquilo que ele é, enquanto vai sendo”.

3

“A dialética em Hegel portanto, é algo como a exposição de Deus. Por isto mesmo, no ‘desvirar’ de Marx, a dialética não apenas é colocada com os pés no chão, mas ao mesmo tempo e literalmente, perde a cabeça.” (LYRA FILHO, 1986, p. 283)

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No tocante a sua ontologia, Lyra Filho (1986, p. 284) critica o legado marxiano por prescindir dum gancho ontológico4. Dessa forma, ele vai buscar em Tillich a noção do Ser como “a TP

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força de ser em tudo o que é”, isto é, como motor de toda dialética no qual os contrários realizam a fusão suprema. Na próxima parte do trabalho, expor-se-á como Lyra Filho aplica essa ontologia do Ser ao fenômeno jurídico e como este se distingue das noções de lei e justiça na obra lyriana.

2.1 Lei, Direito e Justiça No estudo do direito há sempre muita confusão quando se trata de definir os temas desse subitem. Essa confusão se dá devido à identificação que se faz entre lei e direito e à dificuldade que os autores do campo jurídico têm para definir a essência desses objetos. Para entender-se o pensamento Lyriano é essencial destrinchar-se esses problemas. Sobre a lei, o autor aduz, que ela é uma das manifestações do Direito, emanada do Estado e que, por ser produzida por aqueles que o controlam, pode carregar tanto Direito quanto Antidireito. Ele critica a identificação entre Direito e lei, colocando-a como parte do “repertório ideológico do Estado” (Lyra Filho, 1995, p.8) numa tentativa de convencer que toda norma que parte dele possui legitimidade e que não existe mais nenhum demanda a ser buscada além das leis, pois o poder já teria suprido tudo através delas. Contudo, ele faz a ressalva sobre de qual Estado surgem essas normas. Se seu regime político é democrático ou autoritário; se há realmente uma busca da Justiça Social ou apenas demagogia; qual classe social, burguesia ou trabalhadora, impera; se os grupos hipossuficientes têm garantido o seu “direito à diferença” (LYRA FILHO, 1995, p.10); se há respeito pelos Direitos Humanos, entendidos estes como opção jurídica inevitável, supra-estatal e com validade anterior e superior a qualquer lei. Desta forma, ele salienta que as leis são formas ou veículos que não podem ser rejeitadas nem corroboradas a priori, o operador deve entender o contexto histórico e as contradições da sociedade de onde elas se originam para que seja feita a triagem entre Direito e Antidireito. Com relação ao Direito, Lyra Filho (1995, p. 10) critica sua redução ao ordenamento jurídico. Pois, para ele, o fenômeno jurídico é bem mais amplo e está diretamente vinculado à Justiça Social, indicando as diretrizes para uma vida mais livre e em que estariam atendidos os critérios de legitimidade e adequação histórica. “O Direito autêntico e Global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as 4

Essa afirmação de Lyra Filho, se não for uma revisão de posicionamento teórico, soa um tanto contraditória, uma vez que em outro livro (1980, p. 39), ele escreve que a referência à “ontologia do direito não é necessariamente uma decorrência de posições metafísicas, pois até nas direções marxistas se cuida de ontologia, quer geral (LUKÁCS, 1972: passim), quer especificamente (SZABÒ, 1971: 19-24)”.

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melhores conquistas”. Portanto, o fenômeno jurídico não poderia jamais ser uma coisa parada, fixa, imutável preso a códigos que duram no tempo sem acompanhar as transformações que ocorrem na sociedade. Lyra Filho (1995, p.81) defende que a História é um processo social de libertação constante e que a essência do homem é a liberdade. Com base nisso, ele punha o fenômeno jurídico como parte desse processo de progresso da civilização humana, representando “a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem”. Para entender-se como isso se daria, seria necessário acompanhar os conflitos sociais entre classes dominantes e dominadas e grupos sociais opressores e oprimidos e buscar, no clamor dos dominados e oprimidos, as reivindicações justas que corresponderiam ao Direito. Faz-se necessária a ressalva, para que não acusem o autor deste trabalho de falsificação ideológica, de que Lyra Filho (1986, p.275) não romantizava os pobres numa tendência populista, uma vez que defendia explicitamente que a verdade duma teoria não aparece em função do seu ajustamento direto à boca dos espoliados e oprimidos. Sua leitura sobre o Direito é que este é um conteúdo e não uma forma como historicamente se argumenta nos estudos da área. Assim, ele defendia a utilização das necessidades sociais de classes e grupos subalternos, bem como, a aferição dessas demandas em relação ao progresso histórico já consagrado para definição de uma determinada reivindicação como Direito ou Antidireito. Desta forma, ele argumentava que havia “direitos além e acima das leis, até contra elas, como o direito de resistência [...] ou o Direito Internacional” (LYRA FILHO, 1993, p. 23) e que esses Direitos seriam oriundos do processo histórico com suas lutas políticas e que cabia ao operador jurídico desvendá-los na práxis social. Por exemplo: O caso de um conflito de terra em que de um lado esteja um movimento social de luta pela propriedade coletiva da terra e, de outro, um latifundiário que usa da terra para especular ou para outro fim que não esteja de acordo com as normas mais avançadas de organização social. Nesse caso, o proprietário alegará que tem direito à terra, pois a comprou de acordo com as normas previstas na legislação estatal. O movimento social alegará igualmente que tem Direito à terra, pois precisa dela para produzir comida a fim de subsistir e vender o excedente para a alimentação da população do país. Neste conflito concreto, o Direito legítimo seria o do movimento social, pois ele atende a uma necessidade de classes e grupos subalternos, assim como, consagra uma reivindicação em consonância com o progresso histórico. Desta forma, aí estaria o Direito autêntico, independentemente do que diz a lei, ou seja, o Direito correspondendo à forma concreta da Justiça, através de normas que indicam o modelo atualizado e vanguardeiro de organização social da liberdade.

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Explicadas as concepções de lei e de Direito em Lyra Filho, resta a noção de Justiça que o referido jurista entrelaça ao fenômeno jurídico. “Justiça é Justiça Social”, para ele, não se deve buscar um conceito geral e abstrato do Justo, este deve ser buscado dentro do processo social, posto que, assim como o Direito, ele advém como resultado da análise dialética das lutas sociais, apontando o sentido do caminho a ser trilhado na busca do fim da exploração humana por si mesmo. Destarte, a Justiça, buscada nas lutas populares, estaria sempre indicando os novos princípios condutores de uma legítima organização social da liberdade e seria expressa através da positividade dialética5 do Direito. TP

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Importante lembrar que do mesmo modo que fazem parte do processo histórico o Direito e a Justiça em Lyra Filho, há também o Antidireito e a Injustiça. Aquele seria a negação do Direito que surge do clamor dos espoliados e oprimidos e que é negado para atender a interesses classísticos ou de grupos continuístas do poder estabelecido com vistas à manutenção do status quo. Este seria a reação dos conservadores às tentativas de transformação social por parte dos dominados concretizada através do Antidireito. Expostas as noções principais da proposição de uma nova teoria do direito por Lyra Filho, passa-se a apresentação de suas principais críticas ao positivismo jurídico enquanto teoria que tenta justificar o direito nas sociedades atuais.

2.2 A Crítica ao Positivismo Lyra Filho construiu sua análise acerca das teorias positivistas no final da guerra fria, mais especificamente no início da década de oitenta, quando o regime soviético estava em declínio e a ideia majoritária, mesmo nos setores políticos da esquerda, era de que o socialismo real havia fracassado e era preciso superá-lo6 rumo a um socialismo democrático. Neste sentido sua crítica TP

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vai ao positivismo e aos Estados que faziam uso dele sejam aliados do bloco americano ou do soviético. Diante desse cenário histórico, Lyra Filho (1980, p. 30) defende a ideia de que o grande erro do positivismo consiste em tomar as normas oriundas do Estado ou da classe dominante como o Direito completo. Assim, seu limite seria o da ordem posta, garantida com normas sociais não-legisladas como os costumes da classe dominante ou através do monopólio jurídico do Estado.

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“a positivação dialética do direito, isto é, a sua efetivação gradual e em luta na totalidade histórica em movimento, mediante a qual se esclarecem, concretizam e polarizam, como direitos reclamados, os aspectos concretos do direito geral de libertação” (Lyra Filho, 2000)

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Apesar dessa assertiva, Lyra Filho não apontou em que documentos ou autores baseou sua análise política sobre o a União Soviética.

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As normas, que ele (1995, p. 30) define como “padrões de conduta, impostos pelo poder social, com ameaça de sanções organizadas (medidas repressivas, expressamente indicadas com órgãos e poder especial de aplicação).”, expressam demandas da classe dominante e as que não a fazem, revelando aspirações de classes ou grupos dominados, só são toleradas na medida em que são compatíveis com a estrutura social estabelecida. Perceba o leitor que Lyra Filho não distingue quem dita as regras do jogo, para ele, isso não faz diferença no sentido, e somente neste, de que qualquer classe quando chega ao poder está fadada a exercer a dominação social de maneira injusta, oportunizando o surgimento de novos Direitos ligados às classes dominadas. Aqui cabe a ressalva que ele considerava o socialismo um avanço histórico em relação ao capitalismo e a assertiva acima só encontra verdade no contexto apontado acima, de todo modo, tanto a burguesia quanto o proletariado deveriam abrir mão do positivismo jurídico em nome do socialismo democrático e da dialética social do Direito. Isso demonstra também a crença Lyriana (1993, p. 24) em uma transição pacífica para o socialismo que se daria por uma evolução revolucionária sem a necessidade do uso da violência. Ele prossegue na sua análise do positivismo, criticando o fundamento meta jurídico positivo (1980, p. 26-28) que legitima a ordem positivista. Dessa forma, Lyra Filho (1995, p. 36) aduz que ou o positivismo se entende como não-jurídico, fazendo o direito proceder da dominação, ou ele recorre a um princípio que não é de direito positivo para legitimar a lei e a ordem. A crítica Lyriana nesse ponto é muito perspicaz e acerta o calcanhar de Aquiles da teoria juspositivista, uma vez que expõe o argumento transcendental, por trás de toda entronização fática Kelseniana. Outra questão que ele levanta é por que se atribui ao Estado o monopólio da produção jurídica? Na sua resposta, ele aduz que como nenhum positivista consegue responder a essa questão, eles acabam recorrendo à ideologia política e com isso levantam outro problema o da proclamada neutralidade política a que o autor chama de mito, pois, desta maneira, o poder ficaria sem justificação. Como exemplo, Lyra Filho (1995, p. 37; 1980 p. 32) cita as idéias de Hans Kelsen de que a força é empregada “enquanto monopólio da comunidade” e para realizar “a paz social”, demonstrando assim, a opção política do autor pela teoria liberal que equipara Estado e comunidade, escondendo a dominação, a luta de classes e o aspecto axiológico do positivismo. Ainda no tocante a validade da justificação positivista, Lyra Filho (1980, p. 32) exibe a tautologia que há no argumento de seus ideólogos. Consoante estes, o direito seria válido por ser jurídico ou devido a sua produção ser realizada por um poder autorizado por um princípio jurídico, ou seja, novamente caí-se no pleonasmo jurídico porque jurídico. Mais uma crítica ao positivismo jurídico que Lyra Filho (1983, p. 76) endossa é o reconhecimento da lei como único produto jurídico. Para ele a normogênese jurídica deve ser 528

tirada do “crânio de Júpiter – legislador ou filósofo,” e colocada num intercâmbio perene com as “condições reais da estrutura social”. Continuando, ele trata da segurança jurídica, um dos pilares do positivismo como uma falácia (LYRA FILHO, 1995, p. 37-38) anunciada aos quatro cantos, posto que não há maior insegurança do que uma infinita legislação dizendo o permitido e o proibido e, o pior, através de um poder que não precisa provar sua legitimidade e que presume como tal, por ter seguido as regras por ele mesmo estabelecidas. Desta maneira, ele adverte que a legalidade por si só não garante a legitimidade, lembrando que qualquer regime de tirania pode revestir-se de legalidade, assim como, qualquer estrutura de dominação e que isso precisa ser avaliado criticamente. Note leitor que, apesar de afastar-se do liberalismo, Lyra Filho também renuncia a analisar o fenômeno jurídico como uma mera questão entre classes sociais, já que a ditadura do proletariado não justificaria uso da violência e o desrespeito aos direitos humanos corroborada numa ordem jurídica socialista. Voltando aos problemas do positivismo jurídico, Lyra Filho (1980, passim) desabona a opção metodológica em separar o estudo do fenômeno jurídico e das ciências sociais em disciplinas estanques que pouco se comunicam, o que leva, no caso da dogmática, ao isolamento do operador em face dos conflitos sociais reais por conta do confinamento do estudo do dever ser normativo que oculta as contradições da estrutura social. Findada a apresentação da obra de Roberto Lyra Filho como preliminar necessária para uma melhor discussão sobre a validade desta teoria, caminha-se ao próximo ponto que será expor quais são as determinantes que distinguem um advogado popular enquanto operador do direito na cidade de João Pessoa.

3. A advocacia popular em João Pessoa A advocacia popular entra neste trabalho como categoria mediadora da prática para análise da validade explicativa da teoria dialética do Direito. Sua escolha para tal figuração deuse, conforme já explicitado na introdução (ver p. 2), pela afinidade de objetivos e o semelhante público com quem trabalham. Ora, se a categoria prática que mais apresenta congruências com a teoria lyriana não puder utilizar suas formulações, quem as usará? Por isso ela foi escolhida. Bem, como a advocacia popular exercerá papel importante neste trabalho, nada mais apropriado do que dedicar-lhe um tópico específico. Só que tal empenho apresenta a dificuldade de encontrar informações sistematizadas acerca do tema, o que remeteu a pesquisa empírica ora explicitada.

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3.1 Perfil Sócio-Econômico A designação do adjetivo popular ao substantivo advogado está ligada intimamente aos diversos traços que o distinguem dos demais profissionais da área jurídica, em especial, do advogado tradicional. A identificação dessas características reais que o identificam sob o prisma sócio-econômico é que se procura fazer nessa seção, visando a familiarizar o leitor com a categoria mediadora deste trabalho acadêmico. O primeiro e mais forte deles que se pode apontar é o compromisso político com a causa que defendem. Para que possam atuar na defesa de causas que não lhes afetariam o patrimônio, se eles não fossem advogados nela, em troca de uma remuneração baixa, com risco de vida e sem condições adequadas de trabalho, só se faz isso em nome de um motivo maior e este é a “convicção política” (SILVA JÚNIOR, 2011) ou o “comprometimento mesmo com a causa” (OLIVEIRA, 2011). É a crença no bem coletivo que a causa política que defendem e a coerência ética em praticá-las, mesmo com prejuízo de uma carreira mais bem provida materialmente, que anima a atividade do advogado popular. Um traço distintivo diferente do anteriormente encontrado nas pesquisas realizadas nacionalmente com advogados populares é o baixo índice de filiação partidária, apenas 33% deles. Contudo essa queda já era uma tendência se observa-se que na pesquisa realizada em 1996 por Junqueira (2002, 196) esse percentual era de quase 70% e em 2007, segundo Kopittke (2010, p. 69), essa proporção caiu para 54%. Desse modo, não seria surpresa que a taxa continuasse a cair se os motivos que a proporcionaram ainda estão vigentes, principalmente em consequência da chegada do PT e demais partidos de esquerda ao poder. Como os advogados populares trabalham muito com a indignação às injustiças e com o sentimento de compaixão aos oprimidos, fica difícil compatibilizar isso com os planos políticos realistas ou pragmáticos dos partidos que estão mais preocupados com os fins dos seus projetos do que com os meios. Ademais, as concepções em que estão baseados os partidos estão muito além daquilo que pode ser dito nas propagandas e nos programas eleitorais, assim, muitas vezes carecem de uma compreensão mais acurada e são mal interpretados. Quando o programa real é posto em prática, há muita decepção por quem não tinha uma noção mais próxima do que esperar, tendo em vista seu uso ideológico. Some-se a tudo isso, as contradições de que fazem parte dos processos sociais, sobretudo, num país imenso e culturalmente tão diversificado como o Brasil. Dessa maneira, todos esses ingredientes contribuem para a decepção e posterior desvinculação dos advogados populares com os partidos e aproximação dos movimentos sociais populares. Proveniente dessa convicção ideológica conscientemente afirmada está a segunda característica que é o público com que lidam. Essa clientela é constituída por sindicatos de trabalhadores, associações e, sobretudo, movimentos sociais populares. Em suma são representantes da classe trabalhadora e dos grupos sociais oprimidos (negros, indígenas,

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mulheres, homossexuais e transexuais) cujos reclamos não dizem respeito apenas a problemas individuais, mas a sociedade como um todo. Ao público de baixa renda financeira com que lidam liga-se diretamente os parcos recursos monetários que recebem. Os movimentos sociais populares por não dispõem de recursos suficientes para recorrer a advogados tradicionais, contam com a solidariedade dos advogados populares em atuar nas causas mesmo com uma remuneração abaixo do preço de mercado para um advogado de boa formação técnica, o que não quer dizer que não recebam dinheiro ou que levem uma vida franciscana, a comparação da remuneração aqui é feita em relação aos demais profissionais que atuam no Poder Judiciário. Isso foi constatado tanto na pesquisa de Junqueira (2002, p. 204) em que a questão financeira é dos principais obstáculos ao exercício da profissão P

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como na de Kopittke (2010, p. 64) em que 51% dos advogados recebem de 1 a 4 salários-mínimos P

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e outros 46% recebem de 5 a 10. Em João Pessoa, nenhum advogado popular entrevistado consegue sobreviver apenas da atividade, todos, além dessa atuação, tinham alguma outra fonte de remuneração, escritório particular, docência acadêmica e até prestação de serviços à órgãos públicos foram citados como forma de sustentabilidade, a grande maioria por necessidade. Essa diminuição na remuneração deverá levar a transformações nas atividades das assessorias conforme apontado no final da seção acima. Ao contrário do que poderiam pensar algumas mentes mais apressadas e propensas à lógica do capital, o fato dos advogados populares aceitarem receber uma remuneração abaixo do que poderiam conseguir, caso optassem em seguir pela advocacia tradicional com interesses particulares, não deriva de uma falta de preparo profissional. Esses profissionais comumente apresentam uma boa formação e advém de escolas bem conceituadas nas suas regiões. Isso pode ser observado tanto aqui, em João Pessoa, onde 50% dos entrevistados são mestres e os outros 50% possuem pelo menos uma especialização, como também em âmbito nacional, conforme a afirmação de Kopittke (2010, p. 65) de que 65% dos advogados populares possuem pós-graduação, porém apenas 12% com mestrado ou, ainda, em alguns países da América Latina, como pode ser percebido na seguinte citação de Hurtado (1989, p. 45)7: P

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Ellos no son necesariamente los desempleados ni los graduados de las escuelas de derecho con menos prestigio. En realidad, una mayoría de ellos parecen haberse graduado en las elitistas escuelas tradicionales. Lo que los distingue a ellos es su actitud crítica hacia las formas tradicionales del ejercicio del derecho. Su perspectiva es fundamentalmente crítica de la profesión legal. Es una crítica tanto moral como política de la profesión que permanece ciega ante la desigualdad y la injusticia.8 P

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7 Artigo baseado na pesquisa empírica realizada entre 1983 e 1986 na Colômbia, no Peru, Chile e Equador pela Asociación Interamericana de Servicios Legales (ILSA). 8

Eles não são, necessariamente, os desempregados nem os graduados das escolas de direito com menos prestígio. Na realidade, a maioria deles parece ter sido formada nas escolas elitistas tradicionais. O que os distingue é a sua atitude crítica em relação às formas tradicionais de exercício do direito. A sua perspectiva é fundamentalmente crítica da profissão legal. (tradução livre).

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Note-se que o vertiginoso aumento na percentagem de advogados populares com titulação de pós-graduação stricto sensu entre pesquisa realizada por Kopittke e a aqui apresentada está diretamente ligada, além da amostragem restrita, à diminuição da remuneração desses profissionais, o que gerou a necessidade de migrarem para a Academia, ou seja, tornaram-se professores. No final da década de oitenta, quando Hurtado realizou sua pesquisa, a advocacia popular estava em ascensão e seus melhores profissionais tinham como sobreviver dela. Já em 2008, quando Kopittke realiza seu estudo, a advocacia popular estava perdendo parte dos seus melhores quadros para as Universidades. Esse movimento é fundamental para compreender a ascensão do número de programas de extensão universitária que trabalham com assessoria jurídica popular demonstrada por Luz (2007), bem como, para entender a formação de novos grupos de pesquisadores interessados em discutir a relação do direito com os movimentos sociais, um dos exemplos destes é o grupo direito e movimentos que está se estruturando no Nordeste. Ademais, os advogados populares estão sempre buscando a renovar o conhecimento. Dos entrevistados, todos disseram que quando podem participam de cursos ou grupos de pesquisa para aperfeiçoar a formação, atualmente 50% estão envolvidos nessas atividades. Outra característica adversa e que realça a necessidade de compromisso político da advocacia popular para enfrentá-los são os riscos de crimes cometidos9 contra seus membros. P

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Kopittke (2010, p. 79) demonstrou que 43% dos profissionais militantes relataram já terem sofrido ameaças. Em João Pessoa, apenas uma advogada não sofreu nenhum tipo de ameaça, todos os demais sofreram ameaças de vários tipos como roubo de placa de carro, trancamento de carro em estacionamento vago seguido de perseguição na estrada e outros crimes como apartamento ou sede de organização invadidos para roubar dados de investigações. Esse risco de ser alvo de ação criminosa é decorrente da luta política que o público dos advogados populares trava e eles envolvem-se. Eles defendem grupos que carecem de recursos materiais ou são oprimidos em razão da não aceitação de suas características específicas. Para enfrentar essa realidade, esses grupos sociais vão ter que exigir que, no caso da falta de recursos materiais, seja retirada uma parcela destes de alguém que tenha, para que seja dado aos que necessitam. Só que quem detém a propriedade dos recursos materiais não aceita perder, mesmo que o tenha em demasia. No caso dos conflitos por discriminação e opressão, os grupos opressores não aceitam abrir mão da intolerância nem dos benefícios advindos com essa dominação também, pelo contrário, busca-se sempre reafirmá-lo mesmo que inconscientemente. Daí, gera-se o conflito e geralmente a parte que tem menos recursos financeiros e, portanto 9

Recentemente foram assassinados dois advogados populares: Manuel Mattos na fronteira da Paraíba com Pernambuco e Sebastião Berreza no Tocantins. Os dois pela militância nas suas causas. A Dignitatis, que atua na federalização do processo criminal da morte de Manuel Mattos, teve sua sede arrombada no início de 2011.

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menos influência sobre o Estado, leva a pior. Como os advogados populares defendem esses grupos socialmente vulneráveis, eles terminam pagando o preço também da violência dos dominadores. Sobre a pergunta de quais espaços de militância social, os advogados populares passaram antes de sua atuação profissional, o movimento estudantil foi o mais citado com 66,6% das respostas. A mudança na conexão com o movimento estudantil e com os próprios movimentos sociais populares indica uma guinada da militância social jurídica que anteriormente era mais próxima aos partidos políticos em direção aos movimentos sociais populares. Trabalhos voluntários de cunho religioso e em bairros pobres onde morava também foram citados. No tocante à questão de raça, entendida aqui como conceito identitário e não biológico, a predominância da afirmação da afrodescendência em relação à branca, já demonstra o perfil conscientemente politizado dos integrantes da atividade, pois, tendo em vista o contexto do racismo velado no Brasil em que poucos assumem a raça negra é incomum uma atividade em que a maioria dos membros se identifique de tal maneira. Quanto ao gênero, outra curiosidade aparece, dos entrevistados metade eram homens e metade mulheres e entre eles não há diferença de remuneração dentro do mesmo posto o que já denota outra distinção marcante. Numa sociedade em que as mulheres, na iniciativa privada, recebem menos do que os homens, e se considerarmos especificamente o quadro da advocacia tradicional, em que as bancas de advogados mais renomadas são formadas por homens, essa distinção fica ainda mais notória. Há de se ressalvar aqui, contudo, que a pauperização dos profissionais também é um traço distintivo atual da advocacia popular em João Pessoa que também influi na igualdade de gênero na remuneração da atividade. Essas são as principais características do perfil sócio-econômico dos advogados populares em João pessoa, procurou-se, no decorrer desta seção, trazer à baila aspectos captados em outras pesquisas anteriores e comparar com as atuais feições, resguardando as diferenças de cada estudo, como o número de participantes, as singularidades locais e o tempo diverso.

3.2 Atividades As atividades desempenhadas pecos advogados populares no cotidiano de sua militância também constituem um diferencial em relação aos demais operadores do meio jurídico. O papel dos assessores jurídicos populares não se restringe à assistência processual, pelo contrário, eles costumam atuar em diversas linhas e esta geralmente não é a principal. Procurar-se-á demonstrar algumas dessas atividades que estão presentes no cotidiano desses profissionais. Uma primeira constatação é que todos os advogados populares atuam mediante organizações não governamentais, sejam associações, fundações ou de outra natureza jurídica. Isso se dá por basicamente por três motivos: questão da proteção, de financiamento e a natureza coletiva das causas defendidas. 533

A proteção faz-se necessária, pois como se viu acima, não são poucos os relatos de crimes cometidos contra esses militantes. O agir pela entidade proporciona mais discrição uma vez que o nome publicizado nas ações extra-judiciais é o da organização, fazendo com o que nome do advogado fique preservado e menos vulnerável a perseguições. Ademais as próprias organizações atuam em conjunto formando redes sociais com vistas a agilizar a troca de informações e prevenir ou remediar o mais rápido possível alguma violação de direito. Não obstante o exposto acima, o principal motivo para atuação via organização é também a viabilidade financeira do trabalho. Os advogados populares na maioria das vezes não recebem diretamente do movimento e dependem de governos ou agências financiadoras nacionais ou internacionais. Só que para captar essa verba é necessário uma pessoa jurídica sem fins lucrativos que possa elaborar projetos e prestar contas do dinheiro a ser captado. Por isso, a forma de atuação em organizações dos advogados populares. A última causa da atuação por entidade é a natureza coletiva das demandas dos advogados populares. Mesmo quando agem em processos individuais, como a defesa de uma liderança de movimento social que está sendo alvo de processo judicial, a questão que o desencadeou foi a luta política coletiva do movimento. Embates políticos, inclusive os travados através de processos judiciais, exigem pensar em estratégias para conseguir superar as adversidades, e, nos casos de atividades contra-hegemônicas como a advocacia popular, elas são grandes. Também por isso, essa organização do trabalho em entidades coletivas que possibilitam a troca de ideias e experiências entre os seus membros. Os advogados populares atuam basicamente em quatro frentes: a assistência judicial, a confecção de relatórios e pareceres, fomento aos espaços de articulação dos movimentos sociais populares e a educação jurídica popular. A assistência judicial consiste na proposição de documentos legais como ações judiciais emblemáticas ou denúncias internacionais. Essa linha de atuação está em todas as entidades, mesmo que em algumas como a Fundação de Defesa de Direitos Humanos Margarida Maria Alves (FDDHMMA) e o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Oscar Romero (CEDHOR) essa atuação em processos internacionais se dê em parceria com outras organizações. Geralmente, as ações no Judiciário nacional estão ligadas a questões emergenciais como pedidos de medicamentos negados ou prisão de lideranças dos movimentos. Excepcionalmente, essas ações refletem casos de grande repercussão jurídico-politíca. Elas constituem formas de disputa dentro do Judiciário pelo reconhecimento de uma interpretação da realidade como um todo e do ordenamento jurídico em particular mais condizente com as necessidades dos grupos espoliados e oprimidos, servindo também como denúncia e como meio de expor a contradição entre previsão legal e realidade, forçando o Judiciário a tomar uma posição diante dela como nos dizeres de Andrade (2001, p. 59 e 60):

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Muitas reivindicações populares encontram-se erigidas à condição de lei. Como exemplo, cito a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código do Consumidor, a Lei nº. 8009/90 (bens impenhoráveis), entre tantas outras. Essas normas, contudo, em contradição com todas as falácias positivistas, simplesmente não são cumpridas ou, quando são, sofrem violenta interpretação restritiva. [...] Adotando a Constituição Federal como norma condutora, em especial seus princípios, os juristas alternativos efetuam, sempre, uma interpretação social ou teleológica das leis, ou seja, objetivam dar um sentido à norma, buscando atender (favorecer) as classes menos privilegiadas.

Um exemplo recente desse tipo de atuação com grande repercussão nacional foi a da Justiça Global e da Dignitatis no processo de federalização do caso que investiga o homicídio de Manoel Mattos. Impressionante é que com tão parcos recursos, essas entidades conseguiram enfrentar interesses tão poderosos como os dos próprios grupos de extermínio e de seus financiadores que não desejavam a federalização. Entre os adversários estavam: o Estado da Paraíba, nas diversas funções, que negou enquanto pode a existência de tais grupos, pois não queria admitir a sua ineficiência em combatê-los, bem como a participação de seus agentes neles e os das associações de juízes estaduais que defendiam o posicionamento segundo o qual a federalização desmoralizaria os magistrados estaduais. Como pode se perceber, foi uma luta de Davi contra Golias. No campo internacional, a atuação visa a pressionar o Estado brasileiro a cumprir obrigações legais que são relegadas ou desrespeitadas por ele, podendo ter um “caráter simbólico” como o “pedido de que o Estado brasileiro reconstrua o busto de João Pedro Teixeira na margem da BR 232” (ARAÚJO, 2011) para preservar a memória do movimento e para que o Estado reconheça sua conduta em favor da destruição dessa luta. Outra frente de ação dos advogados populares é a confecção de relatórios e pareceres. Os relatórios têm pode ter por objeto descrever a situação de vulnerabilidade dos movimentos assistidos ou sistematizar as atividades desenvolvidas com eles. Já os pareceres têm como matéria alguma determinada demanda jurídica dos movimentos, cujo laudo é encomendado ao advogado popular seja pelo próprio movimento, seja pelos representantes do Estado. A finalidade dos relatórios pode ser tanto publicizar as necessidades dos movimentos e denunciar a omissão do Estado, como preservar a memória dos embates sociais para a conquista de direitos. Com os pareceres, o objetivo é tentar influenciar o Estado para que leve em conta as reivindicações dos movimentos sociais populares na elaboração de políticas públicas. Os relatórios são elaborados em todas as entidades e cinco dos seis membros entrevistados disseram que os confeccionam. Os pareceres foram citados apenas por dois membros da Dignitatis. Uma terceira frente de ação é a articulação tanto da sociedade civil com entre si. Nela, seus membros são responsáveis não só por subsidiar a criação de espaços de participação política como os Conselhos de Direitos ou de redes como o Movimento Nacional de Direitos 535

Humanos, mas também por participarem ativamente desses espaços, promovendo a articulação das diversas entidades existentes na luta por direitos. Em João Pessoa, todos os advogados entrevistados já participaram desses espaços e, atualmente, apenas um deles não participa mais. Dentre as entidades, cumpre destacar que a FDDHMMA “fez parte da criação em 2007 da rede nacional de educação jurídica popular” (ALVES, 2011). Esses espaços servem principalmente para enfrentar os projetos políticos que não respeitam os direitos dos movimentos sociais populares, como também para unificar as diversas demandas fragmentadas, formando uma pauta comum em torno da luta pela concretização de direitos das camadas que tem dificuldade para acessar os serviços do Estado. Outros exemplos atuais são: a atuação da Dignitatis e do Cedhor na reconstrução do Conselho Estadual de Direitos Humanos e do Movimento Nacional de Direitos Humanos ambos na Paraíba e, no âmbito regional, especificamente do Nordeste, a participação dos advogados populares da Dignitatis, através da articulação em rede com outras entidades do gênero e profissionais da área chamada Confederação do Equador na formação de comitês para avaliar os impactos da transposição do Rio São Francisco sobre os grupos sociais vulneráveis. Outra finalidade dessas articulações é a troca de experiência e a formação continuada através de encontros, palestras, debates ou mesmo através de modalidades eletrônicas como o uso da rede mundial de computadores. Sua importância está na busca de uma reflexão sobre a prática para que não se caia em um ativismo cego sem direcionamento político. Além disso, esses espaços servem também para formação de novos membros. Em 2002, com esse objetivo, a Dignitatis promoveu o Seminário Terra e Território juntamente com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A quarta e mais importante frente de atuação dos advogados populares é a educação jurídica popular. Trata-se de uma ação de formação, geralmente, com lideranças de movimentos sociais, comunidades e sindicatos com vistas a informar os direitos estabelecidos no ordenamento jurídico estatal, mas principalmente, a conscientizar esses grupos dos seus papéis de atores sociais e construtores de direitos. Presente em todas as entidades pesquisadas e praticada por todos os advogados populares investigados, a educação jurídica popular contitui tanto uma frente de ação como um prática dentro dos outras formas de atuação da advocacia popular, ou seja, o pessoal responsável pela elaboração de relatórios, pela confecção de peças judiciais, todos eles utilizam a educação jurídica popular nos seus trabalhos. Trata-se de modus operandi próprio do advogado popular que se vale da prática pedagógica para mediar o conhecimento técnico-jurídico com o conhecimento popular. A educação jurídica popular teve como inspiração o movimento de educação popular e as ações oriundas das comunidades eclesiais de base o que se confirma com as afirmações de cinco dos seis entrevistados de que Paulo Freire constitui o marco teórico de suas ações. Uma das 536

experiências de destaque na área é o programa “Juristas Populares”10 da FDDHMMA. Além de P

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programas perenes de educação jurídica popular, existem os projetos esporádicos como é caso do I Curso de Extensão para Comunidades Quilombolas e Indígenas do Estado da Paraíba em 2008, que a Dignitatis realizou através de projeto em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba financiado pela Secretária Especial de Promoção de Política de Igualdade Racial do Estado Federal. Da adoção de Paulo Freire como marco teórico decorre o consequente acatamento da concepção problematizadora11 da educação, em que o advogado, na sua prática pedagógica, P

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busca trabalhar com os movimentos sociais de uma forma que eles consigam relativa autonomia no trato com os diversos atores estatais e possam inclusive tirar proveito desse instrumento, o direito, que, em tese, serviria para lhes tolher as lutas políticas. Com isso tenta-se minimizar a desigualdade das partes no processo12 com a adoção de postura reivindicante e participativa dos P

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movimentos sociais populares aos quais cabe pressionar publicamente as instituições a responderem suas demandas em virtude de não contarem com a influência junto aos membros do Judiciário como ocorre com os clientes da advocacia tradicional. (MARINONI; BECKER, 2009). A educação jurídica popular é importante na medida em que propaga as ideias das classes e grupos espoliados e oprimidos em relação ao direito e ao Estado, empoderando as lideranças populares. Seu papel é justificar idealmente as lutas sociais desses movimentos sociais populares através da transformação em luta justa do que antes era considerado, preconceituosamente, de transgressões ou perturbações da paz vigente. Essas noções são fundamentais, quando da discussão sobre as estratégias de embate político dos movimentos sociais. Chegado ao fim da empreitada, acredita-se que o leitor conseguiu compreender todas as premissas que fundam as conclusões que aqui serão expostas. Dessa forma, o próximo tópico será dedicado ao fechamento do trabalho avaliando os erros e acertos da construção teórica lyriana.

10

“Curso de Formação de Juristas Populares: é um projeto com 11 anos de existência, já formou cerca de 200 pessoas de diversas comunidades de João Pessoa, Bayeux, Mari e Santa Rita, dentre outros.O objetivo do curso é dar noções de todas as áreas do Direito, como Direito do Consumidor, do trabalho, de familia, penal, previdenciario, dentre outros.O perfil dos alunos engloba líderes comunitários, como presidentes de sindicatos, associações de moradores, dentre outras lideranças populares, sendo necessário que o candidato faça parte de alguma entidade, por mais simples que seja, que atue em defesa dos direitos humanos, sob qualquer âmbito.” Disponível em: http://www.fundacaomargaridaalves.org.br/atuacao/. Acesso em: 03/03/2010. 11

Paulo Freire (2010, p. 71) contrapõe à concepção bancária da educação, um modelo de educação que busca a libertação humana, ou seja, o processo através do qual os indivíduos vão tomando consciência da situação que lhes oprime para poder superá-la através da ação com outros homens na tarefa de recriarem um mundo cada vez mais humano e, a partir daí, poderem ser senhores dos seus próprios destinos, escolhidos por eles e não determinado pela propaganda opressora. Para mais detalhes acerca de educação em direitos humanos e a concepção problematizadora da educação ver: LIMA FILHO, Marcos. A Educação em Direitos Humanos como Instrumento Político para a Efetivação de Direitos Humanos. Anais do VI SIDH-PB, 2011, no prelo. 12

Aqui nos referimos tanto a influência da posição de classe social como a das relações pessoais no processo.

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4. Considerações finais Avaliando todas as considerações realizadas acima, defende-se que Lyra acerta na crítica ao direito positivo, mas erra na explicação sobre o que o direito é. Seu acerto contribuiu, e ainda contribui, para desmistificar as ilusões referenciais dos juristas conservadores. Contudo, seu erro fez com que os juristas progressistas trocassem a ideologia conservadora por uma sacralização do direito, ou seja, permaneceu-se no mesmo patamar teórico-ideológico, apenas mudou-se o lado da mistificação. Reconhece-se que o contexto histórico em que foi produzida a teoria do direito, ditadura militar no Brasil e predominância da ideologia do fim do socialismo real, foi propício a tal formulação, uma vez que as mortes de militantes causadas pelo regime militar, criavam apelo à luta por respeito aos diretos, em especial aos direitos humanos, como tentativa de conter a hecatombe de ativistas e a reclamação do espólio do socialismo real poderia acarretar um ambiente de justificação de tal mortes. Assim, a crítica é arrefecida por esses motivos. Em que pese a atenuação proporcionada pelo sofrimento oriundo do contexto histórico, não se pode ratificar que a esperança no direito seja a saída para tal imbróglio. Como estratégia retórica, tal teoria tem um importante papel a cumprir nesse período, entretanto confundir a justificativa ideológica com a leitura dos fundamentos de tal fenômeno não deve ser corroborada. O direito, ou os direitos humanos, não é nem pode ser tratado como uma bandeira da esquerda para substituir o socialismo. Ele, como a principal arma ideológica em uma sociedade capitalista, deve ser utilizado para legitimar as reivindicações dos subalternos, pois é a forma que encontra ressonância em tais sociedades e consegue justificar qualquer atitude inclusive as mortes. Consoante toda relação social que está superestrutura, o direito não constitui um ser em si mesmo e deve ser analisado em consonância com a base material das sociedades. Ele jamais poderá ser tomado com um fenômeno acima das lutas de classes e grupos que disputam a hegemonia nela, como um presente dos céus, dado por um observador externo, ou mesmo conquistado nas lutas políticas reformadoras, que, assim como o direito, não possuem autonomia absoluta em relação à produção material da vida social. Esse é o erro crasso de Lyra Filho. Ele erra ao tratar o direito como um fenômeno com conteúdo próprio, resultando numa ontologia jurídica paralela às relações de produção material da vida social. O direito na análise lyriana, mesmo que partindo de uma base material, ganha um conteúdo idealista ao ser-lhe atribuída uma essência dignificante que acompanha a realização de Deus na Terra e uma ideológica ligação com os espoliados e oprimidos. Essa legitimidade do direito como um fruto das lutas populares que Lyra Filho defende é bastante nociva aos grupos oprimidos e a classe trabalhadora, na medida em que alimenta uma ilusão numa esfera social bastante limitada, o direito. 538

É por isso leitor que Lyra Filho tenta se distanciar do jusnaturalismo, mas o seu argumento de validade para o Direito é a legitimidade oriunda do vetor histórico que seria “o indício” ou “o sentido objetivo duma caminhada para emancipação humana” (Lyra Filho, 1986, p. 272-273), ou seja, aquela reivindicação que apontasse para a coexistência das liberdades de indivíduos, classes, grupos e povos (Lyra Filho, 1983, p. 91). Há um retorno da preocupação com a Justiça na análise do Direito que tenta se desvencilhar de argumentos metafísicos, mas que encontra Deus na base de toda a tentativa de justificação, pois esse sentido é dado por Ele que “guia por dentro a universal marcha do Universo”, isto é, Deus se manifesta em todas as coisas e garante o progresso incessante. (Lyra Filho, 1986, p. 288). Destarte, apesar da tentativa de afastamento, a leitura que faz-se de Lyra Filho aqui é que ele é jusnaturalista. Lyra Filho quer derivar sua interpretação da visão jurídica em Marx com base apenas nos primeiros escritos de sua juventude. Nestes, o filósofo alemão revela-se um democrata radical que compartilha a ideia de um direito natural racional conforme os artigos da Gazeta Renana acerca dos roubos de Lenha (MARX, 2007, p. 33). Embora se reconheça a autenticidade desse período da obra marxiana que data de 1842, não se pode negar que, em todo seu desenvolvimento intelectual posterior, essa visão acerca do direito foi suplantada. Em seu lugar, uma crítica feroz ocupa o espaço. Ademais, além de não encontrar alento na obra marxiana, tal formulação sobre o que é o direito também não encontra mediação com a realidade hodierna. Nenhuma das categorias defendidas por Lyra Filho para justificar sua teoria foram encontradas nas peças jurídicas dos advogados populares utilizadas na pesquisa. O direito, e em especial os direitos humanos, tem sido utilizado para justificar guerras imperialistas e perseguição aos membros de movimentos sociais populares. Ora, pode-se argumentar em contrário que as classes e grupos oprimidos também expõem suas reivindicações através da forma jurídica. Isso não revela nenhum paradoxo, ao contrário confirma o caráter ideológico que o direito possui de justificar as ações das classes e grupos em confronto na sociedade cuja causa central é a contradição capital versus trabalho. É essa, pois, avaliação da teoria dialética do direito de Roberto Lyra Filho.

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Disponível

em:

. Acesso em: 25 mai 2009. MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. ______. Trabalho Assalariado e Capital & Salário, Preço e Lucro. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010. ______. Los Debates de la Dieta Renana. Barcelona: Gedisa, 2007. 540

A crítica marxiana aos direitos humanos n’a questão judaica a partir do(s) conceito(s) de alienação Ronaldo Bastos1 TP

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Resumo Este artigo tem por objetivo realizar um cotejo analítico entre dois textos de Marx: o primeiro, chamado de “O trabalho alienado”, que se encontra nos Manuscritos econômico-filosóficos, onde o autor-objeto estudou o fenômeno da alienação do trabalhador no seio do capitalismo, e o segundo, “A questão Judaica”, onde ele empreendeu uma crítica aos direitos humanos a partir da diferenciação entre os direitos do homem e do cidadão, com predominância do primeiro, defendendo que a distinção entre estas duas condições, que estão interligadas entre si, é o efeito de uma sociedade que está alienada e, por conseguinte, produtora de um direito da mesma categoria. A predominância dos direitos do homem é fruto de uma emancipação parcial e incompleta, qual seja, a emancipação política, enquanto que, para haver desalienação, é preciso realizar a emancipação humana, que é prática e total. Marx defende que esta última só poderá ser realizada no comunismo, onde o trabalho não é mais exercido de forma alienada, pois nesta sociedade não há classes e, por conseguinte, não existem conflitos distributivos. Nas considerações finais, investigaremos se há possibilidade de desalienação do homem na sociedade capitalista, o que propiciaria a efetivação dos direitos humanos, ou se é necessário superar este modelo econômico, indicando que o discurso humanista, em sociedades deste padrão, teria objetivo tão-somente retórico. Palavras-Chave: Marxismo; Alienação; Direitos Humanos.

1 Pós-Graduando em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera-Uniderp e aprovado na seleção 2012 do Mestrado em Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Autor de “O Conceito do Direito em Marx”, pela SAFE, no prelo. E-mail: [email protected].

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1. Introdução: A Questão Judaica como etapa da evolução intelectual de Marx A crítica aos direitos humanos constitui uma das etapas da evolução intelectual de Marx, etapa necessariamente anterior ao que se convencionou chamar de marxismo. Nesta época ainda não estava formulada a concepção materialista da história, o materialismo histórico, e o método dialético ainda não era realista, mas hegeliano, isto é, idealista e especulativo. Estas metódicas (materialismo histórico e dialético) só viriam a ser utilizadas em uma obra de cesura – A Ideologia Alemã. Antes disso, Marx passa por duas fases anteriores: na primeira, ele defende os direitos humanos com todo vigor, o que o conduz ao exílio, e, na fase imediatamente posterior, ele os critica, por considerá-los representantes do homem particular, egoísta, que se emancipou politicamente, mas não humanamente. A primeira fase corresponde à época do debate sobre a liberdade de imprensa2 e sobre a TP

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lei dos furtos de lenha , onde Marx foi um jusnaturalista, do ponto de vista jurídico, pois acreditava TP

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que existiam direitos inatos, e politicamente um democrata radical, perseguidor do e perseguido pelo Estado Prussiano. Marx acusava-o de não respeitar os princípios da liberdade (principalmente de imprensa) e da igualdade, direitos que eram avançados para a época, mas, ainda sim, representativos do Estado burguês, do homem egoísta. N’A Questão Judaica, ele ingressa em uma nova fase, pois passa a criticar esses mesmos direitos que outrora defendeu, por acreditar que eles correspondem aos direitos do homem egoísta, particular, separado do Estado. Marx, nesta época, ainda não era marxista (como vimos, ele só fundaria o seu método n’A Ideologia Alemã). Assim, o máximo que ele conseguia observar eram os efeitos (a propriedade privada, o dinheiro e o egoísmo), mas não sabia o que ou quem gerava essas consequências. Ele só via as representações, mas não enxergava as causas. Marx só iria se dar conta disso tudo em 1945, quando descobriria o conteúdo do social, o motor que moldava tanto a sociedade quanto os seus interesses, isto é, as relações de produção, e é a partir de tal descoberta que ele funda o conhecimento científico da sociedade, o materialismo histórico e dialético, que apesar de não ser objeto do nosso artigo, é nele que vai desembocar o problema da alienação e a crítica aos direitos humanos, que iremos nos ocupar no próximo tópico. Assim, a importância deste texto está em que ele constitui uma etapa da evolução do pensamento marxiano. Em 1844, há uma cisão entre o Marx jusnaturalista (ontológico), que considerava que o direito tinha um papel civilizatório e representava as esferas de conquistas sociais dos cidadãos (como a liberdade de imprensa), e o Marx crítico dos direitos humanos, mas ainda jusnaturalista, que acreditava que o papel do Estado era defender o interesse geral, e se não agia assim era porque a sua administração estava de acordo com os ideais burgueses. 2

Cf. MARX, Karl. Liberdade de imprensa. Trad. Cláudia Schilling e José Fonseca. Porto Alegre: L&PM, 2007.

3

Cf. MARX, Carlos. “La ley sobre los robos de leña”. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura, 1987

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O próximo passo dele será a assunção de um comportamento mais cético quanto ao direito, presente n’A Ideologia Alemã, segundo o qual o direito seria um instrumento ideológico do poder econômico, e, por isso mesmo, só poderia estar a serviço de interesses particulares de classe. Por esta razão é que acima afirmamos que esse texto constitui mais uma etapa na progressão intelectual de Marx, do jusnaturalismo ao ceticismo, que desembocará na ideia da extinção da forma jurídica. Porém, antes de investigarmos a crítica aos direitos humanos n’A Questão Judaica é preciso estudar um texto específico, O Trabalho Alienado, onde Marx expõe a sua teoria da alienação, que constitui o pendão hermenêutico do seu sistema.

2. Alienação e estranhamento: a descoberta do pendão hermenêutico para a crítica dos sistemas sociais Os Manuscritos econômico-filosóficos – livro composto por três partes (ou manuscritos) – saiu da pena de Marx no ano de 1844, porém só veio totalmente a público no século XX. Possivelmente o segundo manuscrito seria o mais importante, porém foram perdidas 39 das suas 43 páginas, fato que prejudicou a leitura do terceiro manuscrito, já que neste Marx se remete muitas vezes ao texto perdido. Por isso, o presente trabalho preferiu estudar o primeiro manuscrito, e mais especificamente um texto particular – quiçá um dos mais comentados de Marx –, chamado de O trabalho alienado, em que o autor faz uma análise fenomênica da alienação do homem no seio do capitalismo. O trabalho alienado tem pouquíssimas páginas, porém a sua importância para o marxismo é difícil de mensurar, pois os conceitos presentes neste texto constituem a base do pensamento de Marx, consubstanciando a forma através da qual ele conseguiu aproximar as suas ideias filosóficas dos estudos econômicos. Marx, em 1844, descobriu o princípio que fundamentaria todas as críticas posteriores, pelo fato de ter encontrado a raiz da crítica da economia política através do sistema da alienação. Além disso, a crítica do trabalho alienado e dos seus principais substratos fáticos – a propriedade privada e a divisão do trabalho – é o que há de mais coerente na longa caminhada de Marx até o surgimento de O Capital. O trabalho alienado revela características tormentosas do regime capitalista – como a valorização das coisas e a desvalorização do homem e o problema do fetichismo da mercadoria – e, quando associado ao sistema do dinheiro, forma a crítica mais contundente que Marx realizou ao capitalismo e, por conseguinte, à sociedade burguesa, que é um espectro social dividido em duas classes – os possuidores e os sem propriedade4 –, onde os que ganham não trabalham e os TP

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MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 110.

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que trabalham não ganham5, sociedade cujo sistema da alienação atrelado ao sistema do dinheiro TP

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configura a própria razão de existir, pois o que aparece como atividade de alienação para o trabalhador surge como condição de alienação para o não-trabalhador.6 TP

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Porém, antes de compreender o conceito de alienação proposto por Marx, é interessante saber qual o significado desta palavra, já que ela possui mais de um, para somente depois proceder à investigação acerca de qual conceito Marx propôs. A palavra alienação corresponde a três palavras em alemão.7 São elas: Entäusserung, TP

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Entfremdung, Veräusserung. A última tem significado jurídico, por isso descarta-se da presente interpretação já que Marx está tratando de um conceito filosófico e, além disso, ele usa essa palavra predominantemente nos textos da maturidade, quase nunca nos textos da juventude – e o Manuscrito é um livro do chamado “jovem Marx” –, quando as palavras empregadas são as duas primeiras.8 TP

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Ent, em ambas, significa “movimento para”. Äussere quer dizer “exterior”, de modo que Entäusserung significa “projeção para o exterior”. Jean Hyppolite define este termo como o “ato pelo qual uma realidade projeta para fora dela mesma alguma coisa, tornando-se objetiva essa mesma coisa”.9 A palavra Entfremdung tem significado semelhante: Ent exprime “movimento para TP

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o exterior” e Fremd quer dizer “estranho”. Entfremdung, assim, significa “movimento de projeção pelo qual alguém ou alguma coisa cria uma realidade que se torna estranha”.10 TP

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Vê-se que o vocábulo alienação, quando utilizado por Marx, se define pelo ato de alguém projetar alguma coisa – um objeto – que se torna uma realidade estranha. Resta saber se Marx diferencia os dois termos – Entäusserung e Entfremdung – ou se os emprega aleatoriamente. Émile Bottigeli11 afirma que é impossível perceber a mínima diferença conceitual entre eles nos TP

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textos de juventude de Marx. Aron, corroborando esta tese, acrescenta que o próprio Marx não os diferencia, já que, por vezes, emprega os dois termos simultaneamente.12 TP

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Apesar disso, entendemos que os dois significados são perceptíveis quando se estuda o conceito de alienação, já que Marx, apesar de usar apenas um conceito, deu a ele quatro sentidos diferentes.

5

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto alegre: L&PM, 2001, p. 52.

6

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, ob. cit., p. 122.

7

ARON, Raymond. O marxismo de Marx. Trad. Jorge Bastos. São Paulo: Arx, 2003, p. 150 e ss.

8

Idem, p. 150.

9

HYPPOLITE, Jean. Genèse et structure de la “Phenomenologie de l’sprit” de Hegel. Paris: Montaigne, 1946. Apud ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., p. 151.

10

ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., p. 151.

11

MARX, Karl. Manuscrits de 1844: économie politique et philosophie : apresentação, tradução e notas de Émile Bottigelli. Paris: Édicions sociales, 1962, p. 1. Apud ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., p. 151. 12

ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., p. 151.

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Marx se propunha a investigar os homens concretos, naturais, produtores dos próprios meios de existência, ao contrário da economia política da época (séculos XVIII e XIX), que realizava estudos gerais e abstratos, o que a deixava apenas na superfície fenomênica, impossibilitando a investigação da realidade de forma mais profunda. É por isso que Marx criticou os economistas clássicos, dizendo que não iria explicar a alienação começando por um estado original mitológico, mas por um fato econômico concreto13, ou seja, não estudaria o mundo das TP

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ideias, no sentido platônico, mas a história concreta dos homens concretos. Há um fato: o trabalhador se torna mais pobre quanto mais riquezas produz e se desvaloriza quanto maior o valor que adquire os objetos por ele produzidos.14 Marx percebeu a TP

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irrazoabilidade desta relação e a injustiça decorrente, e a sua indignação provém do fato dos economistas não perceberem tal contradição, resultante da objetivação do trabalho. A objetivação do trabalho se caracteriza pelo surgimento de um efeito que não mantém relação direta com a causa que o antecede, já que a origem do trabalho é um sujeito, o homem, e o seu produto é um objeto, a coisa física. O movimento é contraditório porque a natureza é pura e só cria pureza; assim, o processo produtivo deveria desembocar na subjetivação do trabalho, já que é o homem – um sujeito – quem o faz, quem o realiza, e não na sua objetivação. Mas é justamente isso o que acontece. A mercadoria produzida pelo trabalhador se torna independente dele e se opõe a ele como a um ser estranho, pois o trabalho se fixa em um objeto.15 Esta realização é tão antitética que gera a desrealização do trabalhador a um grau tão TP

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elevado de invalidação que pode causar até a sua morte.16 TP

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De fato, o trabalhador põe vida no objeto, já que é só através da sua intervenção que a natureza é transformada em produtos consumíveis.17 Mas no momento em que os objetos se TP

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tornam independentes, estranhos ao trabalhador, a cada objeto produzido menos vida ele tem, podendo gerar, depois de anos de trabalho, um esgotamento mortífero. Porém, mesmo quando isso não ocorre, os objetos produzidos ficam tão poderosos que a sua independência do trabalhador gera a completa dependência deste em relação ao produto do seu próprio trabalho. Tal relação de dependência absoluta é explicada da seguinte maneira: o trabalhador não pode criar nada sem a natureza, entendida esta como o mundo externo sensível. Ao mesmo tempo em que a natureza fornece os meios de existência do trabalho, ou seja, os objetos, fornece

13

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 111.

14

Idem, p. 111.

15

Idem, p. 111.

16

Idem, p. 112.

17

Isso acontece porque um bem só possui valor de uso quando nele está materializado trabalho humano abstrato. Marx, em uma obra posterior, chamou essa relação de “tempo de trabalho socialmente necessário”, definido como o “tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor de uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais existentes e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho”. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 26ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 61.

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também os meios de existência física do trabalhador.18 E quanto mais o trabalhador se apodera TP

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da natureza, do mundo exterior, mais ele se priva dos próprios meios de existência. Assim, o objeto é imprescindível à sua existência na medida em que o habilita para existir, primeiro como trabalhador e depois como sujeito físico. Desta forma, “ele só pode se manter como sujeito físico na condição de trabalhador e só é trabalhador na condição de sujeito físico”.19 TP

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É esta relação que a economia política não entende e que Marx descobriu analisando os homens concretos e o trabalho alienado. A alienação, portanto, é o sistema que explica a desigualdade do regime capitalista, caracterizado, dentre outras coisas, pela propriedade privada, pela divisão do trabalho e pela desvalorização do homem.20 TP

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Marx, nos Manuscritos, caracterizou detalhadamente a alienação, mas deu a ela quatro sentidos diferentes. O primeiro sentido é chamado de estranhamento do objeto, proveniente da objetivação do trabalho. O trabalhador cria um objeto que se torna independente e se opõe a ele como a um ser estranho.21 Aqui a alienação consiste na fabricação de um objeto pelo trabalhador que, TP

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quando transformado em mercadoria, não lhe pertence mais como produtor, separando-se dele, ganhando vida própria. Ademais, quanto mais “vida” (na verdade, valor monetário) tem a coisa, menos vida possui o trabalhador, porque ele põe parte da sua vida na confecção do objeto, medida esta pela quantidade necessária de horas trabalhadas para a feitura da coisa.22 Assim, o trabalho produz TP

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riqueza e beleza para o burguês, mas deformidade e estupidez para o trabalhador.23 TP

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O segundo sentido exposto por Marx é decorrência lógica do primeiro, pois a alienação não se caracteriza apenas pelo resultado (objeto), mas também pelo processo produtivo. O trabalhador não poderia estar alienado pelo produto do trabalho se não estivesse alienando a si mesmo na própria atividade produtiva.24 TP

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Assim, a alienação do trabalho consiste, primeiramente, no fato de que o trabalho é exterior ao trabalhador, pois ele não labora para si, mas para outro; desta forma, ele nega a si mesmo, foge da sua característica.25 Em decorrência disso, ele não é feliz quando está no TP

18

Idem, pp. 112-113.

19

Idem, p. 113.

20

Idem, p. 111.

21

Idem, p. 113.

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22

Marx deixa claro que “o que determina a grandeza de um valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessária ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso”. In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I. Trad. de Reginaldo Sant’anna. 26ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2008, p. 61.

23

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 113.

24

Idem, p. 114.

25

Idem, p. 114.

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trabalho, mas só fora dele, de modo que para o trabalhador o trabalho nunca é voluntário, tendo sempre um caráter despótico, forçado.26 TP

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O terceiro sentido é o mais complicado, pois possui uma carga filosófica maior que os sentidos precedentes. A alienação se caracteriza aqui em alienação da vida genérica, tornando esta um simples instrumento da vida individual.27 TP

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A vida genérica consiste na consciência que o homem tem de si.28 Primeiro como membro TP

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pertencente à espécie humana, que vive conscientemente, com lucidez; fato que diferencia os homens dos animais, já que estes não se utilizam da consciência para viver, mas do instinto. Em segundo lugar e em decorrência disso, o homem exercita a sua vida genérica quando comanda a sua existência, isto é, vivendo como ser livre. Destarte, para os fins aqui propostos, decretemos que a essência da vida humana seja o trabalho e que a vida genérica seja a “essência humana”.29 Feuerbach é partidário desta tese, pois TP

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afirma que a vida genérica se consubstancia quando o homem participa da humanidade, ou seja, quando ele é capaz de tomar consciência da sua essência.30 TP

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Então, o homem é essencialmente um ser genérico no trabalho, pois esta é uma atividade vital praticada com lucidez, que traz felicidade e é exercida livremente. Porém, no sistema capitalista, o trabalhador não labora pelo prazer de trabalhar e a sua felicidade está fora do trabalho, já que o homem foge dele como se foge da peste31, pelo fato de que no trabalho TP

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industrial o homem nega-se a si mesmo, perde a sua essência. Assim, o trabalho é apenas um meio de existência para o trabalhador, pois sem ele o obreiro morreria de fome; não é, portanto, a existência em si, a essência humana. No capitalismo, o homem não vive no trabalho, mas através do trabalho, porque o labor não constitui a satisfação de uma necessidade, mas simplesmente um meio para a busca de outras necessidades. Por isso, o homem só se sente como ser ativo – essencialmente humano – nas suas funções animais (comer, beber, procriar), enquanto que nas funções humanas propriamente ditas ele se vê reduzido a animal, o que gera uma inversão lógica em sua consciência, já que em um mesmo homem a parte animal torna-se humana e a humana, animal.32 O trabalho alienado, desta TP

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forma, inverte a relação, já que o homem, como ser lúcido, consciente, enfim, genérico,

26

Idem, p. 114.

27

Idem, p. 117.

28

MARX, Karl. Diferenças entre as filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro. São Paulo: Global, s/d.

29

ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., p. 162.

30

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1998.

31

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 114.

32

Idem, pp. 114-115.

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transforma a sua atividade vital, o trabalho, caracterizador da sua humanidade, em simples meio da sua existência.33 TP

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O quarto sentido é a conclusão que Marx tira dos outros. O resultado da alienação a respeito do produto do trabalho, da atividade produtiva e da vida genérica desemboca na alienação do homem em relação ao próprio homem.34 É a alienação da parte pelo todo, do TP

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homem (como indivíduo) em relação aos demais. Se o homem está alienado da sua vida genérica, portanto destituído da essência humana, significa que ele está alienado dos outros e que todos os outros estão alienados da essência humana.35 De fato, como no modo de produção capitalista o trabalhador depende do nãoTP

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trabalhador, os homens não mantêm relações diretas – humanas – uns com os outros, pois tais relações são mediatizadas por mercadorias e por aquilo que é equivalente a qualquer mercadoria, o dinheiro.36 TP

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Isso ocorre porque o modo de produção capitalista provoca a reificação das pessoas, na medida em que elas passam a existir, tão-somente, como representantes das mercadorias37 e TP

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estas as dominam, o que ocasiona uma inversão lógica na economia – enquanto o capital é erigido à condição de sujeito de direitos, com vida própria, o trabalhador se vê reduzido à condição de mercadoria, como ser desprovido de vontade. Todavia, não são com os pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria.38 São os homens que assim fazem. E só procedem desta maneira porque estão TP

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alienados, haja vista que trabalham para outro, produzindo um objeto que lhe é estranho, a partir de uma atividade auto-alienativa, que destrói a sua vida genérica e o afasta dos seus pares. Isso acaba por transformar os próprios homens em valores de troca, simples objetos (sujeitos reificados) que se vendem a outro homem como mercadorias e, desta forma, são manipulados pelo mercado. A esta altura, é necessário um esclarecimento: a alienação não é um conceito exclusivamente econômico, haja vista que se irradia, como um pendão hermenêutico, pelos diversos sistemas sociais. Na verdade, a alienação econômica foi um estudo posterior de Marx, mais amadurecido, apesar de ainda juvenil, já que ele, como todo hegeliano de esquerda, começou com a crítica da religião. Assim, esse é o itinerário correto para se estudar a obra de Marx: parte-se da crítica da alienação sagrada – a religião – até se atingir a crítica das alienações mundanas: o Estado e o direito. 33

Idem, p. 116.

34

Idem, p. 118.

35

Idem, p. 118.

36

ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., p. 163.

37

MARX, Karl. O capital, op. cit., p. 110.

38

Idem, p. 109.

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Assim, é a partir do entendimento da dinâmica da alienação que o intérprete deve buscar material filosófico para entender os sistemas sociais de um ponto de vista marxiano. Tais sistemas, quando desnudados e esclarecidos, aparecem como representações falsas da realidade, meras ideologias. O direito, antes de fugir à regra, a confirma.

3. A crítica marxiana aos direitos humanos: sobre a contradição entre a liberdade e a igualdade Como vimos na seção precedente, a alienação é o pendão hermenêutico da obra de Marx, pois ela é utilizada para criticar variados sistemas sociais: a religião, a política, a economia e o direito. Nesta seção, abordaremos a crítica que Marx realizou aos direitos humanos n’A Questão Judaica (Zur Judenfrage) a partir do conceito de alienação, momento em que o autor abandona a postura liberal e começa a se livrar do ranço jusnaturalista, o que só aconteceria completamente em 1945, com A Ideologia Alemã. A questão judaica foi publicada no primeiro e único volume dos Anais Franco-Alemães, na primavera de 1844, e marca uma mudança intelectual e política do nosso autor, que abandona a defesa dos direitos burgueses – a liberdade e a igualdade, principalmente – e passa a ser crítico dos direitos humanos, porque estes eram representativos do homem egoísta, particular e afastado dos outros, em uma palavra, do homem burguês. O que é interessante é que, em uma época anterior, mais precisamente quando dos debates sobre a liberdade de imprensa e sobre a lei dos furtos de lenha, Marx tinha defendido estes direitos (humanos). Todavia, em 1844, ele entrou em um processo de evolução intelectual, que o fez abandonar progressivamente o jusnaturalismo e que o levaria a um ceticismo jurídico progressivo até a sua última obra, O capital. Os direitos humanos que Marx se detém são aqueles originados da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Nacional em 26 de agosto de 1789. Este documento consagra a liberdade, a igualdade e a fraternidade como pedras de toque da “nova era”, colocando um fim ao Antigo Regime. Isso não significa, porém, como esclarece Hobsbawm, que, embora ela seja um manifesto contra a sociedade hierárquica dos privilégios nobres, esteja voltada a uma sociedade democrática e igualitária.39 TP

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Com efeito, liberalismo e democracia estão longe de serem compatíveis, talvez porque que liberdade, igualdade e fraternidade sejam ideais mais contraditórios do que conciliatórios. Isso resta claro na análise do “neoliberalismo”, que só pode existir com o progressivo desmantelamento do Welfare State. Liberdade e igualdade são grandezas inversamente proporcionais, ou seja, a primeira é tanto maior quanto mais mitigada for a última. Na verdade, a 39

HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 91.

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liberdade existiria plenamente se não fosse a igualdade, razão pela qual nas democracias modernas a igualdade só pode ser formal, nunca real. Ainda hoje os filósofos não conseguiram elaborar uma teoria política conciliatória, assim como os bioquímicos ainda não elaboraram uma fórmula que permitisse a mistura da água com o óleo. A nossa opinião é que não há interesse nem para uma coisa nem para a outra. O que interessa é que é a partir da contradição entre liberdade e igualdade que Marx vai desenvolver a sua crítica aos direitos humanos. Como são princípios que não se combinam, eles impedem a emancipação humana, conferindo apenas a emancipação política, que é insuficiente e parcial, mas que atinge os objetivos burgueses: a manutenção do status quo. A sociedade civil, porém, onde vivem os cidadãos, continua conflituosa e desigual, privatística e belicosa, alienante e alienada. Ao invés de acabar com a desigualdade, o Estado burguês prioriza a liberdade e oferece apenas uma igualdade formal, perante a lei, que não mitiga a liberdade nem confere igualdade real. Mas não para por aí, pois até as formalidades legais podem ser suprimidas caso haja interesse, conforme esclarece a segunda parte do primeiro artigo da Declaração: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. Ora, então só são livres e iguais enquanto isso for conveniente, o que leva a crer que não são nem livres nem iguais. Hoje pode parecer estranho que o problema dos direitos humanos seja tratado em um texto sobre a religião, mais precisamente a religião judaica, mas é o método dialético que permite tal situação, já que ele estuda os fenômenos considerando as suas conexões, concatenações e dinâmicas, além do seu processo de nascimento e caducidade, tudo isso a partir de uma investigação histórica, ou seja, materialista.40 Assim, emancipação religiosa tem tudo a ver com a TP

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luta política, ou como o próprio Marx explica, “a questão da relação entre emancipação política e religião transforma-se para nós na questão da relação entre emancipação política e emancipação humana”41. TP

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Foi justamente esse o erro de Bruno Bauer: não ter abordado a questão judaica pela metódica dialética. Para Marx, como ele não investigou a relação entre a emancipação política e a emancipação humana, não conseguiu entender perfeitamente o problema dos judeus42, e mais, TP

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acrescentamos, o problema dos direitos humanos e sua efetivação, ficando restrito a um problema religioso, quando a questão era também política.

40

ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Edições Sociais, 1977, p. 40. 41

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider e Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 38. 42

Idem, p. 36.

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“Que emancipação almejam os judeus”, inquire Marx, “a emancipação humana ou a emancipação política?” A resposta desta pergunta constitui o fio condutor do texto que estamos comentando, pois se for a primeira que eles querem então se trata de uma emancipação real, prática e desalienada, todavia se o desejo for pela última se trata de uma emancipação parcial, falsa e que não altera o estado das coisas, ou seja, o status quo. Ambas são promovidas pelo Estado, só que a primeira exigiria dele, além de uma ação, uma mudança completa de atitude, o que envolveria inclusive uma transformação de paradigmas econômicos; já a segunda bastaria tão-somente uma omissão. O Estado burguês escolheu a segunda opção: deslocou as exigências da religião para a sociedade civil, e, assim, emancipou o homem apenas politicamente, abstendo-se de resolver o problema da religiosidade ao transformar o Estado em laico ou leigo, ou seja, retirou os empecilhos que havia para o homem comum (isto é, religioso) participar ativamente da vida pública, mas não retirou do homem a religiosidade que o alienava. Portanto, a emancipação política não é prática e real, mas parcial e incompleta. É, antes de tudo, mais uma omissão estatal do que uma ação. Como afirma Marx: O limite da emancipação política fica evidente de imediato no fato de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre43. TP

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Essa conduta do Estado revela que ele não tem interesse em resolver os problemas dos variados conflitos que ocorrem na sociedade civil (especialmente os distributivos). Ao contrário, sempre que lhe é apresentado um problema social, o poder público prefere legalizar o conflito ao invés de extingui-lo (v., neste sentido, a história do direito do trabalho, ramo do direito que surgiu para proteger o sistema capitalista, e não os trabalhadores44), o que levou Marx, em outro TP

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momento, a afirmar que um governo é um comitê cuja principal função é administrar os interesses da burguesia.45 TP

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O problema da parcialidade da emancipação política consiste no fato de que enquanto houver transferência dos conflitos sociais para a sociedade civil, o homem nunca vai se emancipar, porque se, por um lado, a bürgerliche gesellschaft é o terreno da bellum omnium contra omnes, por outro lado sabemos que as forças que se digladiam nesta sociedade são desiguais, e, por isso, necessitam da intervenção do Estado, e não da sua omissão.

43

Idem, p. 39.

44

“O direito do trabalho normatiza o conflito para que a luta não aconteça de forma amadora, através de guerras, revoluções e levantes, ou seja, de forma desordenada e sem parâmetros. Ele prefere, ao invés de extinguir as classes, reconhecê-las, inserindo o trabalhador na dinâmica do regime capitalista, desconsiderando a desumanidade e a exploração do capital”. In: BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx. Porto Alegre: SAFE, 2012 (no prelo).

45

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Trad. Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 27.

551

Segundo Atienza, a crítica de Marx neste período se baseava em que – para ele – “as ordens, os estamentos, introduziam um elemento de particularidade no Estado; vale dizer, introduziam os interesses particulares no que deveria ser a esfera dos fins e dos interesses gerais e, portanto, iguais”46. De fato, se o Estado se abstém de intervir em prol do mais fraco para fazer TP

PT

com que todos tenham iguais oportunidades (e, assim, promover a igualdade real) é porque está do lado do mais forte e, por conseguinte, da liberdade, só podendo oferecer ao populacho a igualdade formal. Continuando com a argumentação de que a emancipação política é parcial, Marx argumenta o seguinte: [...] a anulação política da propriedade privada não só não leva à anulação da propriedade privada, mas até mesmo a pressupõe. O Estado anula à sua maneira a diferenciação por nascimento, estamento, formação e atividade laboral ao declarar nascimento, estamento, formação e atividade laboral como diferenças apolíticas, ao proclamar cada membro do povo, sem consideração dessas diferenças, como participante igualitário da soberania nacional, ao tratar todos os elementos da vida real de um povo a partir do ponto de vista do Estado. Não obstante, o Estado permite que a propriedade privada, a formação, a atividade laboral atuem à maneira delas, isto é, como propriedade privada, como formação, como atividade laboral, e tornem efetiva a sua essência particular. Longe de anular essas diferenças fáticas, ele existe tão somente sob o pressuposto delas, ele só se percebe como Estado político e a sua universalidade só torna efetiva em oposição a esses elementos próprios dele47. TP

PT

Por isso, Marx, respondendo às perguntas dos seus adversários no sentido de que se o objetivo do comunismo era acabar com a propriedade, argumentou que não, pois o objetivo do comunismo era extinguir tão-somente a propriedade burguesa48, e isto por uma razão muito TP

PT

simples: a propriedade burguesa é a mola mestra do sistema da alienação, construído em prol da liberdade pura e irrestrita, independentemente de qualquer sentido ou interesse, inclusive a despeito da igualdade dos homens. Mas toda emancipação, adverte Marx, é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem.49 TP

PT

É neste contexto que Marx diferencia os direitos do homem e do cidadão, presentes nas Declarações francesas e na americana, que corresponderia, respectivamente, à emancipação política (parcial) e à emancipação humana (total). Os primeiros seriam os direitos do homem privado, egoísta e separado dos outros homens e da comunidade, ou seja, um direito alienado, que, segundo Marx, corresponde ao que chamamos comumente de “direitos humanos”.

46

ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos. Madrid: Editorial Mesquita, 1983, pp. 36-37.

47

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider e Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 40. 48

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Trad. Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 47.

49

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider e Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 52.

552

Direitos do homem (drois de l’homme), portanto, são os direitos dos membros da sociedade burguesa, cuja normatização veio a lume graças à emancipação política50, o que a TP

PT

teoria constitucionalista moderna chama de direitos de primeira geração ou dimensão, ou seja, direitos liberais que exigem uma abstenção (omissão) do Estado de intervir na vida dos particulares. Mas não pense que com a segunda ou terceira geração/dimensão, que exige prestações positivas do Estado, os direitos humanos se “humanizam”, pois como estranha Marx, ainda no século XIX, quando lhe perguntam se o objetivo do comunismo é extinguir a propriedade, ele responde que a propriedade está extinta para a maioria da população, que só vende a sua força de trabalho porque não pode ter outros meios de produzir e, assim, sobreviver.51 TP

PT

Neste contexto, a liberdade, como faceta dos direitos humanos, só pode ser a liberdade burguesa, liberdade ilimitada para uns e encarcerada para outros, total para uns e anulada para outros. Por outro lado, a igualdade, só pode ser a igualdade formal, porque se fosse material entraria em conflito insolúvel com o direito de propriedade, que é a liberdade de produzir, mesmo que impedindo a liberdade daqueles que não têm os meios e só podem se vender. Isso faz com que “cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição da sua liberdade”.52 TP

PT

A emancipação política, ao invés de extinguir a religião e a propriedade, antes as pressupõe. Assim, adverte Marx, “o homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a liberdade de religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou liberdade de propriedade”53. E TP

PT

conclui: Portanto, nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o homem como um ente genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta54. TP

PT

Diante deste quadro, talvez a solução seja a promoção da emancipação humana, que diz respeito ao encontro do homem com o cidadão, ou seja, da coincidência entre o homem abstrato e o homem individual. Isso é possível, segundo Marx, “quando o homem tiver reconhecido e 50

Idem, p. 48.

51

“Revoltai-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas, em vossa sociedade atual, a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. Ela existe precisamente porque não existe para nove décimos de seus membros. Criticai-nos por querermos suprimir uma propriedade que pressupõe, como condição necessária, que a imensa maioria da sociedade seja desprovida de toda propriedade”. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. Trad. Sueli Tomazzini Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2001, p. 51. 52

MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider e Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49. 53

Idem, p. 51.

54

Idem, p. 50.

553

organizado suas forças próprias como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política”55, porque a separação entre os que trabalham e TP

PT

os que compram a força de trabalho, e mais, entre os que produzem as relações de produção e os que produzem as ideias é que gera toda ideologia, em seu sentido negativo, e permite a dominação através da alienação. É claro que os direitos humanos conquistados pela emancipação política constituem um momento importante no progresso para a superação da alienação, mas só ela não basta. Por isso, é preciso a emancipação humana, que, para Marx, só seria possível no comunismo, onde não existiriam mais classes e, por conseguinte, alienação, dominação e exploração. P

4. Considerações finais: o problema da desalienação como forma de emancipação humana Por que só no comunismo seria possível a conquista da emancipação humana? Marx afirma que a razão é que nele o trabalho seria desalienado e, portanto, o homem teria conquistado P

P

a emancipação humana. O raciocínio é razoável, só não sabemos se é o comunismo que vai P

P

realizar isto. Mas, neste trabalho, acompanhemos o argumento marxiano: se a alienação é o mecanismo através do qual se explica a exploração do homem-trabalhador pelo indivíduo-burguês no sistema capitalista, a forma mais coerente de erradicar a alienação seria desalienando o modo de exercer o trabalho, porque desta forma restaurar-se-ia – o raciocínio parece ser tautológico, mas não o é – o humanismo que caracteriza o ser humano (e alcançaríamos a propalada “emancipação humana”), além de esclarecer as bases fundamentais – rectius: desiguais – que deram origem aos direito humanos. P

Raymond Aron enfrenta a questão56, afirmando que o marxismo e o socialismo real TP

PT

tentaram dar três soluções. A primeira consistiria em não trabalhar mais para produzir mercadorias.57 Assim, haveria a TP

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extinção do mercado e iniciaria uma imensa distribuição de objetos produzidos em comum, por todos. A segunda forma diz que a solução não consistiria em não mais trabalhar para produzir uma mercadoria, mas não trabalhar para um outro. Com a substituição do mercado, haveria a propriedade pública58, de modo que não mais se trabalharia para um outro, mas a serviço de TP

PT

todos. Esta foi a reivindicação do socialismo durante um século, com a fórmula “supressão do salariado”59. TP

PT

55

Idem, p. 52.

56

ARON, Raymond. O marxismo de Marx, op. cit., pp. 172-173.

57

Idem, p. 172.

58

Idem, p. 173.

59

MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 142.

554

A terceira solução seria não trabalhar.60 Entenda-se: não mais trabalhar como se trabalha TP

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na sociedade burguesa, pois este é um trabalho escravo, supressor da dignidade do homem e obstáculo à sua afirmação como pessoa. Marx propunha trabalhar, sim, mas um trabalho que não seria escravo, um trabalho desalienado. Apesar das ditas “soluções”, acredita-se que nenhuma delas seja satisfatória, e nisso não há problema algum para a credibilidade deste opúsculo, na medida em que não se defende aqui um Marx canonizado, ao contrário, estuda-se Marx com a crença – inclusive ideológica, pois isto é inerente a quem tem que fazer escolhas – de que as suas contribuições são reais, o que não o isenta de falhas ou omissões. De fato, o próprio Marx não ensinou como desalienar o trabalho, apenas imaginou como o seria no comunismo: o homem poderia caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar depois do jantar61, enfim, seria um regime que incentivaria a formação TP

PT

politécnica e baniria os “especialistas”. O lema seria: cidadão comunista é cidadão completo! Porém, como fazer a transição do trabalho no capitalismo – que é alienado – para o socialismo/comunismo, isso ele não disse, sob a justificativa – irônica, diga-se – de que a missão dele não era preparar a receita para a cozinha do futuro.62 Do mesmo teor é a sua resposta ao ser TP

PT

indagado sobre que funções sociais análogas às atuais funções do Estado subsistirão; segundo ele, só a ciência poderia responder a esta pergunta.63 TP

PT

Pelo visto, essa resposta cabe aos seus intérpretes. O problema é que talvez somente a análise do socialismo real pudesse responder a esta pergunta, o que extrapolaria os limites do presente trabalho, e, ainda, não garantiria a obtenção de uma única resposta. Apesar dos pesares, podemos concluir duas coisas: por um lado, o conceito de alienação ainda é válido, pois serve de método para explicar variados fenômenos superestruturais, como a religião, a política e o direito, e, por outro, a crítica dos direitos humanos ainda é pertinente, pois só com ela poderíamos ultrapassar esses direitos individuais e, assim, construir a emancipação humana.

Referências bibliográficas ARON, Raymond. O marxismo de Marx. Trad. Jorge Bastos. São Paulo: Arx, 2003. ATIENZA, Manuel. Marx y los derechos humanos. Madrid: Editorial Mesquita, 1983.

60

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista. Trad. Frank Müller. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 116. 61

Idem, p. 66.

62

MARX, Karl. O capital, op. cit., p. 368.

63

MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, LENIN, Vladimir. Crítica ao programa de Gotha, crítica ao programa de Erfurt e marxismo e revisionismo. Porto: Portucalense, 1971.

555

BASTOS, Ronaldo. O conceito do direito em Marx. Porto Alegre: SAFE, 2012 (no prelo). ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Edições Sociais, 1977, p. 40. FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1998. HYPPOLITE, Jean. Genèse et structure de la “Phenomenologie de l’sprit” de Hegel. Paris: Montaigne, 1946. Apud ARON, Raymond. O marxismo de Marx. Trad. Jorge Bastos. São Paulo: Arx, 2003. HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. MARX, Carlos. “La ley sobre los robos de leña”. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura, 1987. MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, LENIN, Vladimir. Crítica ao programa de Gotha, crítica ao programa de Erfurt e marxismo e revisionismo. Porto: Portucalense, 1971. ______. Diferenças entre as filosofias da natureza de Demócrito e Epicuro. São Paulo: Global, s/d. ______. Liberdade de imprensa. Trad. Cláudia Schilling e José Fonseca. Porto Alegre: L&PM, 2007. ______. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 110. ______. Manuscrits de 1844: économie politique et philosophie : apresentação, tradução e notas de Émile Bottigelli. Paris: Édicions sociales, 1962, p. 1. Apud ARON, Raymond. O marxismo de Marx. Trad. Jorge Bastos. São Paulo: Arx, 2003. ______. O capital: crítica da economia política: livro I. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 26ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 61. ______. Salário, preço e lucro. In: MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 142. ______. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider e Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 38. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: Feuerbach – a contraposição entre as cosmovisões materialista e idealista. Trad. Frank Müller. São Paulo: Martin Claret, 2005. ______. Manifesto do partido comunista. Porto alegre: L&PM, 2001.

556

A efetividade dos direitos humanos sob o capitalismo e a crítica anticapitalista dos direitos humanos Thiago Arruda Queiroz Lima1 TP

PT

Resumo

Abstract

Os direitos humanos, desenvolvidos dentro de uma ordem capitalista, têm, nototiamente, pouco efetividade para as classes subalternas. A efetividade, enquanto realização do conteúdo normativo, dos direitos humanos deve ser entendida a partir das questões que fundamentam o atual estado de coisas. Dentro de um quadro social em que prevalecem os imperativos de mercado e os interesses de uma classe, a realização dos direitos humanos permanecerá inalcançável, uma vez que se choca com a lógica mercantilizadora própria ao capitalismo.

The human rights, develope within the capitalism, have, notably, low effectiveness. Efectivenesse, as realization of the law content, of the human rights must be understood from the questions that substantiate the current status quo. Within a system in wich prevail the market imperatives and the interests of one classe, the realization of human rights will remain unreachable, since it collides with the merchantilizing logic of capitalism.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Efetividade; Estado; Sociedade Civil.

Keywords: Human Rights; Capitalism; Efectivenesse; State; Civil Society.

Capitalismo;

1

Graduado em Direito junto à Universidade Federal do Ceará e mestrando em Direitos Humanos junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB).

557

1. Introdução O ponto mais óbvio, mais comum em qualquer discussão – na academia, na política ou nas ruas – sobre direitos humanos talvez seja mesmo sua inefetividade. A tal ponto que não é raro que sejam feitas piadas em torno da questão; a tal ponto que a efetivação dos direitos humanos aparece recorrentemente como algo inatingível, um “sonho distante”. Sem nos determos aqui em tecer a crítica sobre o direito, é tão sensível a distância entre o que “prevêem” as normas e a realidade experimentada que essa inefetividade aparece como um topoi. Não se trata, portanto, de simples reprodução de um senso comum, ou do entendimento de um ou outro agrupamento, mas da constatação, empírica e cotidiana, de um fato evidente. Dados dos governos, relatórios produzidos pelas Nações Unidas, pesquisas científicas e mesmo pensadores liberais tendem a reiterar essa compreensão do cenário, em níveis local e global. Contudo, pouco se investigam as reais questões que determinam essa inefetividade. Neste artigo, dispomo-nos, a partir do método materialista, a compreender as raízes deste fator, em uma análise dos elementos fundantes do atual modelo societário capitalista.

2. A discussão sobre a efetividade das normas na ciência jurídica Com o objetivo de dirimir possíveis dúvidas com relação ao conceito de efetividade, devemos deixar claro o que queremos dizer com a utilização desse termo. Há, de fato, uma presunção intuitiva de que se trata da concretização do que prevê uma norma; mas isso não é, por si, suficiente para que prossigamos. Essa discussão, sem dúvidas, deve envolver o que se tem entendido por eficácia no âmbito da ciência do direito. Para Neves2, dois diferentes conceitos são aplicados à eficácia. Um primeiro estaria ligado TP

PT

à possibilidade de a norma produzir efeitos – e não à produção dos efeitos propriamente. Teríamos, então, um conceito jurídico em sentido estrito, útil à dogmática e ao entendimento da norma dentro do direito como um sistema. Para Neves, trata-se de um conceito “jurídicodogmático” da eficácia, que se refere à “possibilidade jurídica de aplicação da norma”3. Assim, “a TP

PT

pergunta que se põe é, nesse caso, se a norma preencheu as condições intra-sistêmicas para produzir os seus efeitos jurídicos específicos”4. TP

PT

O segundo conceito de eficácia teria um sentido “empírico”, “real” ou “sociológico”5. Aqui, o TP

PT

que prevalece é a concretização da norma, a sua relação com as condutas dos sujeitos a quem se dirige: se ela produz de fato os efeitos que se propõe a produzir (e não se pode, jurídicamente,

2

NEVES, 2007.

3

NEVES, 2007, p. 43.

4

NEVES, 2007, p. 43.

5

NEVES, 2007, p. 43.

558

produzí-los) . Desse modo, “a pergunta que se coloca é, então, se a norma foi, realmente, “observada”, “aplicada”, “executada” (imposta), ou “usada”6. TP

PT

Para Neves, no entanto, a eficácia, mesmo em sentido sociológico, diferencia-se da efetividade, no sentido de que a eficácia tem relação com com a realização da norma sob uma forma imediata, em seu “programa condicional”7. A efetividade, no entanto, liga-se ao TP

PT

cumprimento da norma em um sentido mais profundo, amplo, de modo que “se refere À implementação do “programa finalístico” que orientou a atividade legislativa, isto é, a concretetização do vínculo “meio-fim” que decorre abstratamente do texto legal”8. TP

PT

Em Kelsen9, como também observa Neves10, o sentido do termo eficácia é sociológico, ou TP

PT

TP

PT

seja, tem a ver com a realização propriamente dita do conteúdo normativo, e não com a possibilidade formal de que os efeitos sejam produzidos. Além disso, esse conceito de eficácia parece confundir-se com o que KELSEN chama de efetividade11. TP

PT

Na elaboração de Ferraz Jr.12, encontramos distinção semelhante àquela feita por Neves TP

PT

(2007), contudo aplicada ao conceito de efetividade. Ferraz Jr. localiza na teoria jurídica tradicional uma compreensão “sintática” e uma compreensão “semântica” de efetividade: a primeira teria o significado jurídico-dogmático; enquanto a segunda, sociológico. Ferraz Jr. formula, então um conceito que chama de “pragmático” de efetividade, a partir de uma combinação dos dois conceitos anteriores. Já Barroso13, ao distinguir, nessa mesma esteira, a “eficácia jurídica” da “eficácia social”, TP

PT

iguala esta última a efetividade. E aponta que a efetividade “significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”14. TP

PT

Não nos interessa aqui esgotar as discussões sobre o assunto, mas tão-somente deixar claro: o presente trabalho não tem como escopo a investigação no campo da dogmática jurídica. A efetividade dos direitos humanos será aqui tratada sobretudo a partir de uma base sociológica – base para onde apontam, como vimos, algumas das percepções lançadas acima. Nesse sentido, interesa-nos compreender as razões pelas quais os bens protegidos enquanto “direitos humanos” não encontram, de fato, acesso ampliado em um quadro social capitalista.

6

NEVES, 2007, p. 43.

7

NEVES, 2007, p. 47.

8

NEVES, 2007, p. 47.

9

KELSEN, 2009, p. 11 e ss.

10

NEVES, 2007.

11

KELSEN, 2009, p. 232 e ss.

12

FERRAZ JR. 1997, p. 93 e ss.

13

BARROSO, 2006.

14

BARROSO, 2006, p. 82-83.

559

3. Os direitos humanos em seu berço, o capitalismo. Se nos dispomos a realizar uma análise relacional dos direitos humanos, está claro que não é possível afastar nem os direitos humanos das revoluções liberais, nem as revoluções liberais das transformações sobre a base econômica às quais estão ligadas, qual seja, a emergência de um modo de produção específico, o capitalista, e da ascensão da nova classe dominante, burguesa. Analisar historicamente esse conjunto é um trabalho que, por si, traz um conteúdo: negar a naturalização do que é historicamente constituído. Isso, é bem verdade, significa ir na contra-mão do que, consciente ou inconscientemente – e implicita ou explicitamente – tem-se praticado na academia. A maior parte dos “analistas” tem estado rendida ao que seus olhos podem enxergar. Não visualizam outro futuro, precisamente porque não observam o passado com a devida atenção, seduzidos pela morte da História – apesar de todas as tentativas de assassinato, é verdade, ela persiste. Segundo essa recorrente análise, então, o capitalismo apresenta-se como eterno; a própria História serve apenas para se encontrar a inclinação natural do ser humano ao capitalismo, de modo que tal sistema justifique-se por si, dentro de um esquema evolutivo. É essa a preocupação de Wood: Essas explicações paralogísticas têm sua origem na economia política clássica e nas concepções iluministas do progresso. Juntas, elas fazem um relato do desenvolvimento histórico em que o despontar e o amadurecimento do capitalismo já estariam prefigurados nas mais antigas manifestações da racionalidade humana, nos avanços tecnológicos iniciados quando o homo sapiens pela primeira vez manejou uma ferramenta, e nos atos de troca que os seres humanos praticaram desde tempos imemoriais. A trajetória da história para a “sociedade mercantil”, ou capitalismo, foi longa e árdua, admitem eles, e houve muitos obstáculos em seu caminho. Mas, apesar disso, seu progresso foi natural e inevitável.15 TP

PT

Desse modo, é a própria noção liberal (através da “economia política clássica” e das “concepções iluministas do progresso”) que sustenta um caráter natural e evolutivo do capitalismo. Ou, em outras palavras, os liberais alegam como natural e evolutivo aquilo que eles mesmos sustentam. Nessa circularidade, criam-se as mais diversas anedotas, que afastam a um período pré-social as bases da atual configuração societária. Ao contrário, Wood, na esteira de Marx, parte exatamente do pressuposto dialético de que há uma especificidade histórica no capitalismo16; de que este não existiu sempre e de que não TP

PT

estamos condenados a nele permanecer pela eternidade. Nessa direção lança seu esforços quando da discussão sobre a origem do capitalismo17, sendo este também um dos principais TP

PT

pontos de enfrentamento entre Marx e a economia política tradicional. 15

WOOD, 2001, p. 13.

16

WOOD, 2001.

17

WOOD, 2001.

560

A análise científica do modo de produção capitalista demonstra, pelo contrário, que ele é um modo de produção de caráter peculiar, com uma determinação histórica específica; que ele, como qualquer outro modo de produção determinado, pressupõe certo nível das forças sociais produtivas e de suas formas de desenvolvimento como sua condição histórica: uma condição que é, ela mesma, o resultado e o produto históricos de um processo anterior e do qual parte o novo modo de produção como sua base dada; que as relações de produção correspondentes a esse modo de produção específico, historicamente determinado – relações em que os homens entram em seu processo de vida social, na criação de sua vida social -, têm um caráter específico, histórico e transitório; e que, finalmente, as relações de distribuição são essencialmente idênticas a essas relações de produção, sendo um reverso delas, de modo tal que ambas partilham o mesmo caráter historicamente transitório.18 TP

PT

Esse é apenas um dos trechos – mas, talvez, um dos trechos mais claros – em que está presente na obra de Marx a crítica à naturalização-eternização do capitalismo. A importância de se estabelecer tal demarcação tem-se apresentado importante há pelo menos três séculos e, hoje, diante do suposto fim da história, mostra-se igualmente atual. Contudo, se é verdade que essa constatação é necessária, é verdade que temos aqui apenas um ponto de partida, que permite um olhar mais apurado sobre o sistema ou abre as cortinas para sua análise. O fato de existir uma especificidade histórica no capitalismo nos leva a necessidade de compreender qual é essa especificidade. O predomínio da produção de mercadorias – ou seja da produção para a troca, e não para o uso – constitui um importante traço distintivo. O próprio trabalho aparece como mercadoria, no processo de diferenciação entre capital e trabalho, fundado na apropriação dos meios de produção por uma parcela da sociedade, por uma determinada classe social. O trabalho, aparece subordinado à produção e à reprodução do primeiro, do capital. Nessa relação, viabiliza-se a produção de mais-valia, ou o trabalho não-pago ao produtor direto pelo capitalista, outro pilar desse modo de produção. O quadro em que se inserem esses dois traços é o da contínua autoexpansão do capital. São dois os traços característicos que de antemão distinguem o modo de produção capitalista. Primeiro. Ele produz seus produtos como mercadorias. Produzir mercadorias não o diferencia de outros modos de produção; mas sim que ser mercadoria é o caráter dominante e determinante de seu produto. Isso implica inicialmente que o próprio trabalhador só aparece como vendedor de mercadoria e, daí, como assalariado livre e o trabalho, portanto, em geral, como trabalho assalariado. (...) a relação entre capital e trabalho assalariado determina todo o modo de produção. Os principais agentes desse modo de produção, o capitalista e o trabalhador assalariado, são enquanto tais apenas corporificações, personificações do capital e do trabalho assalariado; (...) A segunda característica que marca especialmente o modo de produção capitalista é a produção da mais-valia como finalidade direta e motivo determinante da produção. O capital produz essencialmente capital, e só o faz à medida que produz mais-valia. (...) vimos como sobre isso se funda um modo de produção peculiar ao período capitalista – uma forma especial do desenvolvimento 18

MARX, 1986, p. 312.

561

das forças sociais produtivas do trabalho, mas como forças do capital autonomizadas diante do trabalhador e, por fim, em oposição direta a seu próprio desenvolvimento, ao desenvolvimento do trabalhador. A produção para o valor e para a mais-valia inclui (...) a tendência sempre operante de reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, isto é, seu valor, abaixo da média social de fato vigente.19 TP

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A extração de mais-valia, o lucro, a reprodução contínua do capital fazem-se, portanto, o próprio fundamento da produção. Ao mesmo tempo, a relação capital-trabalho obedece ao ditame de que, quanto maior a exploração do trabalho, maior o lucro. Isso porque, como mencionamos, a mais-valia consiste no trabalho excedente exercido pelo não-proprietário (excedente em relação ao seu salário, que tende ao mínimo necessário à sua própria subsistência), ou, em outras palavras, a mais-valia é o trabalho não-pago realizado pelo trabalhador, detido pelo proprietário (MARX, 1996). A consequência disso é, então, o posicionamento do desenvolvimento das forças produtivas “em oposição direta” ao desenvolvimento do próprio trabalhador. Não se distingue desse ponto de vista, mas o enriquece, a análise de Wood (2001). Primeiramente, discutindo a origem desse modelo, a autora afasta das discussões sobre os elementos distintivos capitalismo a diferença entre campo e cidade como elemento central. Em seguida, foca nas relações de propriedade, na diferenciação entre produtores e apropriadores, proprietários e trabalhadores, enfim, capital e trabalho: Essa é, portanto, a diferença básica entre todas as sociedades pré-capitalistas e o capitalismo. Ela nada tem a ver com o fato de a produção ser urbana ou rural, e tem tudo a ver com as relações particulares de propriedade entre produtores e apropriadores, seja na indústria, na agricultura. Somente no capitalismo é que o modo de apropriação dominante baseia-se na desapropriação dos produtores diretos legalmente livres, cujo trabalho excedente é desapropriado por meios puramente “econômicos”.20 TP

PT

É importante o que traz Wood com relação às classes no capitalismo e sua divisão essencial entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção, entre produtores e apropriadores. As relações de propriedade, caracterizadas pela propriedade privada, são inerente ao funcionamento sistêmico. O que Wood está a distinguir, também, é a forma através da qual se dá a extração do excedente econômico: não mais por uma explícita e direta coerção jurídicopolítica, mas por uma compulsão econômica ao trabalhador livre, que assumirá a forma jurídica de contrato. Retornaremos a esse ponto com maior ênfase adiante. Vejamos as demais contribuições de Wood, agora em relação aos imperativos de mercado dentro de uma formação capitalista. Essa relação singular entre apropriadores e produtores é mediada, obviamente, pelo “mercado”. (...) Praticamente tudo, numa sociedade capitalista, é mercadoria produzida para o mercado. E, o que é ainda mais fundamental, o capital e o trabalho são profundamente dependentes do mercado para obter as condições 19

MARX, 1986, p. 313.

20

WOOD, 2001, p.77-8.

562

mais elementares de sua reprodução. Assim como os trabalhadores dependem do mercado para vender sua mão-de-obra como mercadoria, os capitalistas dependem dele para comprar a força de trabalho e os meios de produção, bem como para realizar seus lucros, vendendo os produtos ou os serviços produzidos pelos trabalhadores. Essa dependência do mercado confere a este um papel sem precedentes nas sociedades capitalistas, não apenas como um simples mecanismo de troca ou distribuição, mas como o determinante e regulador principal da reprodução social. A emergência do mercado como determinante da reprodução social pressupôs sua penetração na produção da necessidade mais básica da vida: o alimento.21 TP

PT

Fica claro nessa exposição que a autora também percebe a produção de mercadoria (ou seja, voltada à troca e à produção de valor), através da exploração (destaque-se que o termo exploração aqui não assume nenhum sentido apelativo) do trabalho pelo capital, como um sustentáculo essencial do capitalismo. O “mercado”, então, parece surgir como uma “força superior”: é determinante na reprodução social; condiciona o processo produtivo dos elementos básicos à subsistência humana, como os alimentos. Isso se liga à idéia, mais uma vez, de que o essencial no modo de produção capitalista é a reprodução do capital. Ela – e não algum “interesse social”, o interesse do produtor direto ou qualquer outro fator – rege a atividade social econômica. Adiante, Wood traz elementos acerca de quais são esses imperativos de mercado e destaca a necessidade sistêmica de expansão contínua do capital: Esse sistema singular de dependência do mercado acarreta requisitos e compulsões sistêmicos específicos, que não são compartilhados por nenhum outro modo de produção: os imperativos da competição, da acumulação e da maximização do lucro. E esses imperativos, por sua vez, significam que o capitalismo pode e tem que se expandir constantemente, de maneiras e em graus que não se parecem com os de nenhuma outra forma social. Ele pode e tem que acumular constantemente, buscar constantemente novos mercados, impor constantemente seus imperativos a novos territórios e novas esferas da vida, a todos os seres humanos e ao meio ambiente natural.22 TP

PT

Assim, os imperativos do mercado são capazes de condicionar a atividade produtiva à produção de mercadoria e engendram a relação de exploração do trabalho pelo capital, fundada na extração da mais-valia. Faz-se possível, então, cumprir com tais imperativos, reproduzindo capital. De fato, Wood sustenta que a dependência do mercado é o fator crucial no movimento histórico do qual emerge o capitalismo. O mercado deixaria de figurar como oportunidade para figurar como imperativo23. Foi essa dependência profunda do mercado que pressionou os TP

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arrendatários de terras, particularmente no peculiar contexto inglês, a aumentar substancialmente a produtividade. A “origem do capitalismo” estaria, portanto, não na cidade, mas no campo. Quando toca na proletarização da força de trabalho e na transformação do comércio e da indústria 21

WOOD, 2001, p.78.

22

WOOD, 2001, p.78-9.

23

WOOD, 2001, p. 84.

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ingleses, Wood afirma que constituem causa, e não resultado, das imposições oriundas do mercado24. Ou seja, exatamente essas imposições conduziram ao desenvolvimento das relações TP

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de produção e das forças produtivas sob novas formas, tipicamente capitalistas. Das análises de Marx e Wood, podemos perceber que, submetida a pressão de um mercado do qual depende e não pode desligar-se, a produção econômica num quadro capitalista liga-se, de modo global, à produção determinante de mercadorias e a exploração do trabalho pelo capital, com o fim de reproduzir este último. Teremos, assim, a divisão da sociedade em produtores e apropriadores (ou não-proprietários e proprietários), como personificações do capital e do trabalho. Em outro trecho, Marx deixa isso claro de modo sintético: Ademais, restringe-se o conceito de trabalho produtivo. A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de mais valia. O trabalhador não produz para si, mas para o capital. Por isso, não é mais suficiente que êle apenas produza. Êle tem de produzir mais valia. Só é produtivo o trabalhador que produz mais valia para o capitalista, servindo assim à autoexpansão do capital.25 TP

PT

São retomados os elementos da produção de mercadorias, da extração da mais-valia (com bastante ênfase, pois o trecho se dirige a sua análise), a serviço da auto-expansão do capital. Fica claro como esses elementos estão imbricados num modo específico de produção. Já quando Marx trata da acumulação de capital, temos a ligação entre os imperativos do mercado e a figura do capitalista: O capitalista só possui um valor perante a história e o direito histórico à existência, enquanto funciona personificando o capital. Sua própria necessidade transitória, nessas condições, está ligada à necessidade transitória do modo capitalista de produção. Mas, ao personificar o capital, o que o impele não são os valores-deuso de sua fruição e sim o valor-de-troca e sua ampliação. Fanático da expansão do valor, compele impiedosamente a humanidade a produzir por produzir, a desenvolver as forças produtivas sociais e a criar as condições materiais de produção (...). O capitalista é apenas uma das rodas motoras desse mecanismo. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista torna necessária elevação contínua do capital empregado num empreendimento industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista as leis imanentes do modo capitalista de produção como leis coercitivas externas. Compele-o a expandir continuamente seu capital, para conservá-lo, e só pode expandí-lo por meio da acumulação progressiva26. TP

PT

É importante notar que os imperativos do mercado, as leis e os comandos inerentes à produção capitalista, afastam o juízo de valor sobre a postura moral do proprietário, considerado individualmente, como questão central ao entendimento do funcionamento sistêmico da atividade econômico-social. Por mais que a análise a partir desse prisma guarde certo relevo, não é a postura individual que explica as relações de produção e a busca incessante pelo lucro como 24

WOOD, 2001, pp. 102-103.

25

MARX, 1996, p. 584.

26

MARX, 1996, p. 688.

564

núcleo do processo produtivo; ao contrário, o capital compele o indivíduo a assumir o papel que lhe cabe: enquanto proprietário, cabe-lhe acumular, explorando o trabalho; enquanto trabalhador, cabe-lhe vender sua força de trabalho para que obtenha (ou ao menos tente obter) sua subsistência, submetendo-se à exploração do capitalista. Apesar da ausência de estamentos, existem lugares, de classe, a serem ocupados. Nos termos de Marx, conforme já citado aqui, temos “corporificações”, do capital e do trabalho. Como, então, isso repercutiria sobre o quadro social como um todo, no contexto das revoluções burguesas? Que consequências podemos localizar sobre a totalidade social desse modo de produzir? E sobre o poder político? É verdade que, em modos pré-capitalistas de produção, a coação voltada à extração do excedente tinha um cunho marcadamente político. Os tributos ou o trabalho forçado coletivo, por exemplo, tinham um importante papel. Por outro lado, os privilégios de nascimento, institucionalizados, concedidos aos membros dos estamentos superiores – nobreza, clero – consistiam em fator fundamental para a conservação do poder das classes dominantes. Contudo, sob o capitalismo, e isso ganha materialidade com as revoluções burguesas, temos uma redefinição da relação entre o político e o econômico, entre Estado e sociedade civil. Caberá ao Estado, ao invés de assegurar os antigos privilégios, garantir as liberdades individuais; instaura-se a igualdade formal entre os indivíduos; transplanta-se da política para a economia os mecanismos de compulsão para a extração do excedente econômico. Em verdade, a sociedade civil e os elementos econômicos passam a subordinar a esfera do Estado (ou a esfera política em sentido estrito) a seus ditames, gerando um novo arranjo, um acoplamento novo e diferenciado entre o público e o privado. Isso deve conduzir nossa compreensão a uma cuidadosa consideração do econômico e do político, sobretudo no que se refere à sua necessária ligação em um todo concreto e à sua utilidade enquanto categorias, abstração. Vejamos: O moderno “estado de coisas público”, o Estado moderno acabado, não se baseia, como entende a Crítica, na sociedade dos privilégios, mas na sociedade dos privilégios abolidos e dissolvidos, na sociedade burguesa desenvolvida, na qual se deixa os elementos vitais em liberdade, ao contrário do que ocorria na sociedade dos privilégios, onde se encontravam ainda politicamente vinculados. “Nenhuma névoa a encobrir privilégios” se opõe aqui a outra nem ao estado de coisas público. Assim como a livre indústria e o livre comércio suprimem a névoa a encobrir privilégios e, com ela, a luta entre ideologias nebulosas de privilegiados entre si, substituindo-as pelo homem isento de privilégios (...)27 TP

PT

Dessa forma, o que se opera na passagem do Estado Absolutista para o Estado Moderno é o fim do que se tinha como privilégios, condições político-juridicamente garantidas às classes dominantes. Ele será, então, substituído pelo direito. No entanto, o direito tem o mesmo alcance do privilégio. Sob esse ponto de vista, a rigor, o que os difere é, na verdade, a figura do homem com privilégios, que será substituída pela figura do homem com direitos. Ou seja: o que antes se

27

MARX, s/d, p. 98.

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expressava através do privilégio, no plano político, é mantido; mas, agora, se expressará através de direitos-liberdades, no plano econômico ou da sociedade civil. Segundo Marx: Assim, a sociedade burguesa é a guerra de uns contra os outros, somente delimitados entre si por sua individualidade, o movimento geral e desenfreado das potências elementares da vida, livres das amarras dos privilégios. A antítese entre Estado representativo democrático e a sociedade burguesa é o apogeu da antítese clássica entre a comunidade pública e a escravidão. No mundo moderno, cada qual é a um só tempo escravo e membro da comunidade. É precisamente a escravidão da sociedade burguesa, na aparência, a sua maior liberdade. E isto ocorre por ser aparentemente perfeita a independência do indivíduo, que toma o movimento desenfreado dos elementos alienados de sua vida – inteiramente desvinculados dos nexos gerais, quer do homem, por exemplo, o movimento da propriedade, da indústria, da religião, etc. – por sua própria liberdade, quando se trata justamente de sua sujeição e de sua falta de humanidade acabadas. O privilégio é substituído, aqui, pelo direito.28 TP

PT

E, em outro momento: O homem não foi, portanto, libertado da religião; recebeu a liberdade de religião. Não foi libertado da propriedade. Recebeu a liberdade de propriedade. Não foi libertado do egoísmo do ofício, recebeu a liberdade de ofício29. TP

PT

O Estado Liberal moderno é, portanto, não uma coalizão entre todas as classes, não a condensação de um interesse geral, tampouco o árbitro neutro, mas o modelo de organização política conveniente à nova classe dominante (a forma política que assumem seus interesses), que se despe da tarefa de impor os privilégios de nascimento para passar a assegurar as liberdades que interessam à reprodução do capital. Marx expõe nos trechos acima exatamente a sujeição dos indivíduos aos imperativos de mercado, ao “movimento da propriedade”, enquanto uma falsa liberdade, enquanto negação de sua liberdade. A liberdade em questão é a liberdade do capital no sentido, mais uma vez, de sua auto-expansão. Os indivíduos, a ela estão submetidos. O Estado Liberal funda-se na intervenção mínima sobre a economia, na livre iniciativa, na propriedade privada. A passagem do Estado Absolutista para o Estado Moderno, na verdade, significa uma menor interferência do Estado na sociedade civil, vista como o lugar da liberdade. Assim é que a liberdade relativa à propriedade privada, incluída entre as liberdades individuais reivindicadas pelas revoluções liberais, ganha destaque. O Estado não deve interferir na propriedade ou na vida econômica, e isso garantiria uma maior liberdade individual, uma vez que os indivíduos não seriam limitados em sua iniciativa econômica, enfim, em seu direito a desfrutar de suas propriedades da forma como lhes fosse conveniente. É dessa forma que os mecanismos que sobrepõem uma classe às demais não são eliminados. São mantidos, dessa vez, em forma de direitos (e não mais de privilégios), direitos 28

MARX, s/d, p. 98-9.

29

MARX, s/d, pp. 70-1.

566

esses que possuem importante relação, como se vê, com as relações de produção. A forma de direitos pede uma análise sob duas dimensões: primeiro, sob o aspecto da sociedade civil, lança esta à concorrência entre os indivíduos (em termos relativos, já que há sempre um ponto de partida; cite-se, como exemplo histórico, que muitos nobres tornaram-se burgueses na Europa) quanto quem deterá a posição de proprietário ou de classe dominante, já que não se trataria mais de uma questão estamental, juridicamente definida por nascimento; segundo, ao preservar a propriedade privada e ao manter o alcance dos privilégios sob a forma de direitos, está mantida a divisão em classes, sustentada pelo próprio Estado, uma vez que é em seu ordenamento jurídico que estão previstos os novos direitos e as novas liberdades, bem como sua garantia pelo monopólio da violência. Isso quer dizer que, se por um lado, cresce o poder da sociedade civil, este crescimento se dá precisamente sob a batuta do novo modelo de Estado, burguês – mesmo porque se trata de um Estado centralizado. Tal crescimento, desse modo, não se dá exatamente às custas do poder de Estado, apesar de ser econômico o princípio que rege a nova sociedade; dá-se a ele conectado. Isso exige que analisemos o Estado não apenas no que toma para si, no que decide; exige que localizemos o que o Estado, como lugar central da política no capitalismo, não toma para si. O que está sob o controle (assegurado pela violência, em última instância, do próprio Estado) da iniciativa privada. Ou seja, é necessário perceber essa articulação entre o Estado burguês e a sociedade civil como uma interação dinâmica, descompartimentalizada e, como se vê, interseccionada. A perspectiva de análise deve ser, portanto, relacional. Quando falamos sobre o trabalho no capitalismo, a questão torna-se bastante sensível. Se, sob o modo feudal de produzir, o elo jurídico ou tradicional ligava o trabalhador ao proprietário, viabilizando a extração da mais-valia, sob o capitalismo é o próprio movimento da economia que, em vestes contratuais, liga o não-proprietário ao capitalista. Dispensa-se a coação estatal para tanto, e a atividade – ainda forçada, diante das condições materiais – pretensamente funda-se numa escolha. De outro lado, embora os produtores sejam “trabalhadores livres” que não podem ser coagidos por meios políticos (isto é, pelo exercício ou pela ameaça direta da violência) a prestar seus serviços à causa da expansão do capital, ainda assim é necessário que sejam conduzidos de uma maneira ou de outra – isto é, pela compulsão econômica – ao local de trabalho, e ali mantido (por uma questão de imperativo econômico) continuamente – sem o que, mais uma vez, o sistema acabaria perdendo sua viabilidade.30 TP

PT

E, ainda, quanto à relação entre o político e o econômico e as relações de produção: (...) segundo Marx, dentro da estrutura geral do Estado e do sistema jurídico capitalista, a atividade humana é realizada como uma “atividade alheia, imposta”, como um “trabalho forçado”, como uma atividade que está “sob o domínio, a coação e o jugo de outro homem”. Assim, embora o princípio fundamental que 30

MÉSZÁROS, 2004, p. 521.

567

governa a nova sociedade seja econômico (em oposição ao princípio regulador da sociedade feudal, que era essencialmente político) não pode ser divorciado da estrutura política na qual opera. 31 TP

PT

É importante compreender que, por conta da “compulsão econômica”, o trabalho, no contexto da divisão entre proprietários e não-proprietários, é (permanece) um trabalho coagido – apesar de, em seu aspecto formal (e não substancial), consistir em uma relação contratual livre; e que a coação em nenhum momento deixa de comportar a dimensão política, no sentido de que a propriedade privada é assegurada pelo Estado enquanto liberdade individual e direito humano. Em outras palavras: não é a ausência de intervenção do Estado que garante, necessariamente, a liberdade individual. A “anarquia”, o “movimento da propriedade”, é precisamente o que subjuga o indivíduo, o que ataca sua liberdade. Aqui, a não-regulação, o não-controle da dimensão econômica assume precisamente a forma de negação da liberdade. Isso nos permite notar que as esferas política e econômica estão sempre em comunicação. O que se opera, em verdade, na ligação entre essas esferas no contexto do capitalismo, é uma privatização do político. Estes momentos – o momento político e o momento econômico – são redefinidos, separados, numa operação que transfere poderes antes localizados na esfera política à esfera privada, ao âmbito da sociedade civil, especificamente ao lugar da produção. Desse modo, a liberdade política burguesa é sustentada numa noção formal diminuída da política. Para Ellen Wood, (...) a questão é explicar como e em que sentido o capitalismo enfiou uma cunha entre o econômico e o político – como e em que sentido questões essencialmente políticas, como a disposição do poder de controlar a produção e a apropriação, ou a alocação do trabalho e dos recursos sociais, foram afastadas da arena política e deslocadas para uma outra esfera.32 TP

PT

O que Wood quer dizer é que é fundamental investigar exatamente essa cisão. Quer dizer, ainda, que “questões essencialmente políticas”, ou seja, questões que transcendem um âmbito privado, impactando no modo de vida coletivo – BOBBIO33, por exemplo, nos traz um TP

PT

entendimento da esfera política como âmbito no qual são tomadas as deliberações de mais relevante interesse coletivo – foram retiradas do âmbito do Estado e lançadas aos particulares, aos proprietários, ao lugar da produção. Wood segue: O segredo fundamental da produção capitalista revelado por Marx – segredo que a economia política ocultou sistematicamente, até tornar-se incapaz de explicar a acumulação capitalista – refere-se às relações sociais e à disposição do poder que se estabelecem entre os operários e o capitalista para quem vendem sua força de trabalho. Esse segredo tem um corolário: a disposição do poder entre o capitalista e o trabalhador tem como condição a configuração política do conjunto da 31

MÉSZÁROS, 1981, p. 139-40.

32

WOOD, 2003, p. 28.

33

BOBBIO, 2009, p. 68.

568

sociedade – o equilíbrio de forças de classe e os poderes do Estado que tornam possível a expropriação do produtor direto, a manutenção da propriedade privada absoluta para o capitalista, e seu controle sobre a produção e a apropriação.34 TP

PT

Ou seja: é precisamente a conjunção (o acoplamento já mencionado) entre a classe capitalista e o Estado que permite a coação do trabalhador. O Estado delega-lhe poder, à medida que reconhece a propriedade privada. Mas esse Estado intervém, age e assegura coercitivamente, também, os direito de propriedade, caso ele seja ameaçado. Se a análise liberal carrega esta fratura entre a esfera política e a econômica, é preciso, ao contrário, identificar as continuidades, assim como propõe Wood35, precisamente porque tais divisões abstratas não TP

PT

podem ser transplantadas mecanicamente ao mundo real. Nesse sentido, voltemos a analisar o poder que é exercido sobre o não-proprietário: Em princípio, não há necessidade de pressão “extra-econômica” ou de coação explícita para forçar o operário expropriado a abrir mão de sua mais-valia. Embora a força de coação da esfera política seja necessária para manter sua propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade econômica oferece a compulsão imediata que força o trabalhador a transferir sua mais-valia para o capitalista a fim de ter acesso aos meios de produção.36 TP

PT

O que traz Wood vai ao encontro do que explicitávamos, mas o elemento da mais-valia aqui adicionado é fundamental: o trabalhador está obrigado a entregar o produto de seu trabalho ao proprietário. Está coagido a tal, por conta da compulsão econômica. Parece-nos particularmente interessante a relação com modelos anteriores: O trabalhador é “livre”, não está numa relação de dependência ou servidão; a transferência de mais-valia e a apropriação dela por outra pessoa não são condicionadas por nenhuma relação extra-econômica. A perda da mais-valia é uma condição imediata da própria produção. Sob esse aspecto o capitalismo difere das formas pré-capitalistas porque estas se caracterizam por modos extraeconômicos de extração de mais-valia, a coação política, legal ou militar, obrigações ou deveres tradicionais etc., que determinam a transferência de excedentes para um senhor ou para o Estado por meio de serviços prestados, aluguéis, impostos e outros.37 TP

PT

A questão, portanto, é que o capitalismo não precisa de tais meios para coagir o trabalhador: o funcionamento da economia, em seu modo de produzir, já institui a coação, a partir da compulsão econômica. Desta maneira, o não-proprietário é lançado ao lugar da produção, submetendo-se à sua autoridade – como estamos a ver, a autoridade do capitalista. É este o modo de operar sistêmico. Nesse lugar da produção, temos também um lugar político; um lugar que forja suas próprias regras, sua própria estrutura de poder. Wood nos destaca que: 34

WOOD, 2003, p. 28.

35

WOOD, 2003, p. 28.

36

WOOD, 2003, p. 35.

37

WOOD, 2003, p. 35.

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Ademais, a esfera econômica tem em si uma dimensão jurídica e política. Num sentido, a diferenciação da esfera econômica propriamente dita quer dizer apenas que a economia tem suas próprias formas jurídicas e políticas, cujo propósito é puramente “econômico“. Propriedade absoluta, relações contratuais e o aparelho jurídico que as sustenta são condições jurídicas das relações de produção capitalista; e constituem a base de uma nova relação de autoridade, dominação e subjugação entre apropriador e produtor.38 TP

PT

E arremata: (...) de um lado, o Estado “relativamente autônomo” tem o monopólio da força coercitiva; do outro, essa força sustenta o poder “econômico” privado que investe a propriedade capitalista da autoridade de organizar a produção – uma autoridade provavelmente sem precedentes no grau de controle sobre a atividade produtiva e os seres humanos nela engajados.39 TP

PT

O que se expõe é que esta simbiose entre o poder “econômico” e o poder “político”, em verdade, consiste na liberação do proprietário para que exerça sua autoridade, o domínio, a coação sobre o produtor direto e sobre a produção em geral, de modo a, em última análise, reproduzir capital. A própria relação entre liberdade e propriedade privada só pode ser desvendada a partir do momento em que se compreende essa dinâmica, em que o nãoproprietário estará sujeito à coação do proprietário. Não apenas o trabalho lhe é forçado; além disso, o trabalhador não pode, verdadeiramente, escolher a área ou local de trabalho, muito menos determinar suas condições individuais de trabalho. Todas estas determinações emanarão daquele que detém os meios de produção, e não de uma esfera política democrática. Devemos tomar em conta especialmente duas questões, a partir do que desenvolvemos aqui. A primeira: a relação entre o poder econômico e o poder político gera um arranjo próprio entre essas esferas. A principal consequência desse arranjo, em que o Estado se encontra à serviço dos interesses dominantes na sociedade civil e as compulsões do mercado,

é o

“movimento desenfreado das forças materiais”, “da propriedade”, em suma, do próprio capital, no sentido de sua auto-expansão. O Estado acopla-se, funcionalmente, a esse movimento, garantindo-lhes os direitos-liberdades necessárias. A “privatização do político” a isso está ligada, de modo que a reprodução do capital aparece como o mais poderoso imperativo numa formação econômico-social capitalista, inclusive diante da esfera política estatal. Seria possível falar, nesse quadro, em um Estado a serviço da efetivação de direitos dos trabalhadores? A ausência de efetividade dos direitos humanos funda-se na base material, no interesse de uma classe que tem como fundamento a ampliação de seus lucros – não como uma escolha livre, mas como uma imposição do modo de produzir. A ineficácia do Estado em

38

WOOD, 2003, p. 35.

39

WOOD, 2003, p. 36.

570

assegurar os direitos humanos dos trabalhadores é a outra face da eficiência que o Estado apresenta em defender a propriedade privada e os negócios da classe dominante. Como vimos, até os alimentos passam a ser uma mercadoria. O fundamento, então, da atividade econômica não são as necessidades humanas – o que poderia repercutir na efetivação de bens “protegidos” enquanto direitos humanos – mas a reprodução do capital. Esta, sim, é a mola-mestre de toda a organização social, restando às demais questões a harmonização ou o enfrentamento a estas leis econômicas. A segunda questão diz respeito a transformação de privilégios em direitos. Os privilégios consistiam nos mecanismos através dos quais as classes dominantes garantiam seu domínio em formações pré-capitalistas. Como se vê, por exemplo, a eliminação dos privilégios não acarreta em eliminação da propriedade; há, ao invés dos privilégios a ela ligados, o direito de propriedade. Assim, os mecanismos que geram a exploração de classe subsistem, apenas sob outro formato, “impessoal”, diluído em uma sociedade civil na qual todos são abstratamente (juridicamente) tidos como iguais. Se isso é verdade, temos que, menos que tal eliminação dos mecanismos que geram a concentração do poder e a exploração de classe, temos a livre concorrência, a “guerra de todos contra todos” em busca do acesso aos bens que garantem a posição de elite, de classe dominante, antes um monopólio dos homens de “privilégio”, agora acessível, em tese, aos “mais capazes”. Como observado, não há, com o despontar das declarações de direitos humanos, uma completa reviravolta no que diz respeito à democratização do poder, à atividade produtiva, ao acesso aos bens nessas sociedades, mas uma ruptura com o modelo sustentado no binômio feudalismo-absolutismo de modo a emergir o binômio capitalismo-Estado Liberal, que tampouco abole os vários fatores geradores de exploração e desigualdade social; ao contrário, renova-os, sob novos mecanismos, ideias e estratégias.

4. Considerações finais A inefetividade dos direitos humanos não pode ser compreendida sem uma análise histórico-social; sem uma investigação que incida sobre as bases do modo de organizar a sociedade em que os próprios direitos humanos se desenvolvem. Isso implica em levar em conta o papel do Estado como garantidor não dos direitos humanos conquistados pelos trabalhadores, mas dos interesses burgueses. Não são os direitos humanos que regem o atual estado de coisas, mas o poder de classe e os imperativos de mercado. Tais imperativos possuem uma lógica própria, situada: a lógica da produção em função do valor. É essa a lógica que busca constantemente a transformação em mercadoria das mais diversas dimensões da vida humana, subordinando o poder político e assumindo papel dirigente no processo social. 571

A inefetividade dos direitos humanos, assim, só pode ser compreendida a partir do entendimento de que a realização desses direitos têm guardado incompatibilidades com a lógica de auto-expansão do capital. É o que demonstram os ataques a diversos direitos fundamentais conquistados a partir de lutas populares durante os séculos XIX e XX. De modo que, assim, apenas a partir de uma ruptura sistêmica poderiam ser realizadas as necessidades que hoje são tidas, sob uma forma jurídica, como direitos humanos.

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. _______. O futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. 11a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Forense, 1997. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. MARX, Karl. A Questão Judaica. São Paulo: Expressão Popular, 2009. ______. A Questão Judaica. São Paulo: Editora Moraes, s/d. ______. O Capital: crítica da economia política. Vol. II, Livro I. 15ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. ______. O Capital. Vol. III, Livro Terceiro. Coleção “Os Economistas”. 2ª ed. São Paulo: Ed. Nova Cultural, 1986. MÉSZÁROS, István. Marx: A Teoria da alienação. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. WOOD, Ellen M. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. _______. Democracia contra capitalismo. São Paulo, Boitempo, 2003.

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A sociedade pós-moderna e o caráter dos direitos humanos: novas práticas normativas emancipadoras Agnaldo de Sousa Barbosa e Ana Carolina de Morais Colombaroli.................................................................................547 Princípio da força contraditória e sua equação na modernidade: contribuição para efetivar os direitos humanos Alan Esteves.....................................................................................................................................................................590 O adolescente em conflito com a lei sob a perspectiva da justiça juvenil Ana Elvira da Fonseca Lima Ferreira de Carvalho...........................................................................................................607 A efetivação do direito humano à terra e o judiciário brasileiro: considerações sobre o papel das decisões jurídicas na realização da política pública de reforma agrária André Luiz Barreto Azevedo.............................................................................................................................................619 O ensino da disciplina de direitos humanos nos cursos de bacharelado em direito André Luiz Lima de Carvalho e Giuseppe Tosi.................................................................................................................647 A violação do direito humano à educação pelo estado: a teoria da ação comunicacional habermasiana como paradigma de solução Antônio Germano Ramalho e Ana Carolina Gondim de A. Oliveira..................................................................................656 A influência das decisões da Corte Interamericana na definição de políticas públicas no Brasil Emerson Francisco de Assis e Vanuccio Medeiros Pimentel...........................................................................................665 Normativismo sistêmico e tipicidade conglobante mediante uma sociologia do direito penal: análises da nova Lei da Prisão Cautelar e críticas ao garantismo sob um enfoque sociológico Fernando Antonio da Silva Alves......................................................................................................................................682 O direito fundamental da criança e do adolescente à integridade física: paradoxo à realidade do trabalho infanto-juvenil no município de João Pessoa – PB Glauco Ferreira de Souza Ribeiro.....................................................................................................................................697 Poder judiciário, ato infracional e controle social: uma análise sobre as justificativas para a aplicação de medidas de internação e internação provisória através dos acórdãos do STJ e do TJCE Homero Bezerra Ribeiro...................................................................................................................................................715 Perfil da pesquisa empírica no direito: um diagnóstico possível no Programa de Pós-Graduação da UFPE John Heinz e Ticianne Perdigão.......................................................................................................................................733 Criminalizar ou (não criminalizar) a homofobia? Análise dos discursos parlamentares a respeito do PLC 122/2006 Joseval de Jesus Santos..................................................................................................................................................747 Mutilação Genital Feminina, Direitos Humanos e Relativismo Cultural: limites e possibilidades Kaio Cesar Damasceno de Albuquerque e Bruna Gabriela de Oliveira Lima...................................................................760 O sistema de justiça criminal brasileiro como um sistema frouxamente articulado: as disputas institucionais entre Ministério Público e Defensoria Pública Manuela Abath Valença....................................................................................................................................................771 Deslocamentos ou o paradoxo das migrações internacionais: cidadania e direitos humanos pensados no contexto migratório Raquel P. do Amaral Camargo.........................................................................................................................................782 Adolescentes em Conflito com a Lei do Município de Arapiraca: sujeitos de uma Socialização ou Ressocialização?

Tathina Braga.................................................................................................................................................................798 573

A sociedade pós-moderna e o caráter dos direitos humanos: novas práticas normativas emancipadoras Agnaldo de Sousa Barbosa1 TP

PT

2

Ana Carolina de Morais Colombaroli TP

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Resumo

Abstract

Nas últimas décadas – período que pode ser chamado “pós-modernidade” – evidencia-se um poder crescente dos atores sociais e uma emancipação das estruturas tradicionais. O espaço ocupado pelo trabalho assalariado, pela indústria fordista, pela crença incondicional na ciência, pela família nuclear, entre outros se reduz cotidianamente. Os indivíduos apresentam-se cada vez menos controlados pela tradição e pela convenção, uma maior modernização lhes exige mais informação, educação e democratização, e tal processo permite a crítica da realidade e a reflexão sobre si mesmo. As identidades não mais se encontram vinculadas aos conflitos entre capital e trabalho, mas sim, intimamente ligadas ao conflito “emancipação X opressão”. Essas emancipações, sejam de gênero, de raça ou religiosas, são justamente a expressão da pós-modernidade, da política na sociedade brasileira. A sociedade já não suporta um cenário cultural linear, homogeneizante, monocêntrico; as construções trangressoras, plurais e transdisciplinares avançam. A concepção jurídicopositiva e formalista dos direitos fundamentais não são suficientes para a nova sociedade que se forma. É preciso que os direitos humanos sejam encarados como fruto de nossas práticas sociais e relações humanas, ao mesmo tempo em que se busque consolidar novas formas de normatividade, que atendam às necessidades das novas coletividades e de novas sociabilidades.

In recent decades – period that can be called “post modernity” – is evident a growing power of the social actors and an emancipation of the social structures. The space before occupied for the wage labor, the Fordist industry, the unconditional belief in science, the nuclear family and others, reduces every day. The individual is becoming less controlled by the tradition and the convention, the modernization requires them more information, education and democratization, and this process allows a criticism of the reality and a reflection about itself. The identities aren’t bound to the conflicts between capital and work but, closely linked to the conflict “emancipation X oppression”. These emancipations of gender, race and religion are the expression of the post modernity, of the politics in the Brazilian society. The society can’t stand a linear, homogenizing, monocentric cultural view; the transgressive, plural and transdisciplinary constructions go ahead. The legal-positive and formalistic conception of the fundamental rights aren’t sufficient to the new society being formed. It’s necessary to face the human rights being as fruit of our social practices and human relations, at the same time that we seek to consolidate new forms of normativity, that meet the needs of the new collectivities and new sociabilities.

Palavras-Chave: Sociedade Pós-Moderna; Humanos; Identidades; Emancipação.

Keywords: Postmodern Society; Human Rights Being; Identities; Emancipation.

Direitos

1

Bacharel e Mestre em História pela UNESP/Franca. Doutor em Sociologia pela UNESP/Araraquara. Atualmente é Professor Assistente Doutor de Sociologia e Sociologia do Direito na UNESP/Franca. Coordenador do LabDES Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade. [email protected].

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2 Aluna do Curso de Direito na UNESP/Franca. Pesquisadora de Iniciação Científica. Bolsista PIBIC/CNPq 2011/2012. Pesquisadora do LabDES - Laboratório de Estudos Sociais do Desenvolvimento e Sustentabilidade. [email protected]. T

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1. Introdução A partir de meados da década de 1970, em respostas às crises econômicas do período, processaram-se em escala global profundas modificações na dinâmica de acumulação do capital e das formas de organização do trabalho, afetando dramaticamente dimensões fundamentais da vida social. Tais mudanças, que se deram especialmente como reflexo do engendramento de uma dinâmica de “acumulação flexível”3 e do conseguinte abalo das estruturas da “sociedade salarial”4, TP

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se fizeram sentir com maior intensidade no Brasil a partir da segunda metade da década seguinte. No turbilhão destas transformações, o mundo vivenciou a crise do Estado-providência, o avanço do neoliberalismo e uma rápida e assombrosa modernização científico-tecnológica. Ao mesmo tempo, ganharam força os movimentos sociais e de luta pela democracia: seja na luta contra o socialismo autoritário no leste europeu, no enfrentamento das ditaduras latinoamericanas ou no caso do apartheid sul-africano, entre outros. Diante da rapidez dos acontecimentos, “a realidade parece ter tomado definitivamente a dianteira sobre a teoria” – para utilizarmos as palavras do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos5. TP

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Os atores sociais da pós-modernidade são outros. Seu poder cresce concomitante à emancipação das estruturas tradicionais. A indústria fordista, o trabalho assalariado, a crença incondicional na ciência e a família nuclear vão perdendo cada vez mais espaço. A tradição e a convenção exercem menos influência sobre os indivíduos.

Tal dinâmica modernizadora e

emancipatória exige dos indivíduos maior informação, domínio de novos códigos e conteúdos cognitivos e democratização, processos estes que permitem a crítica da realidade e reflexão sobre si e sobre o meio social6. TP

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As lutas materializadas na polarização entre capital e trabalho passaram, gradativamente, a dividir espaço com os conflitos característicos da pós-modernidade, em especial aqueles que ampliaram o enfrentamento entre emancipação e opressão para as reivindicações de gênero, raça, religião e cultura. Na tessitura sócio-política desse novo cenário, três tensões dialéticas são 3

De acordo com Harvey, no contexto do que chama de acumulação flexível (caracterizada pela flexibilização dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo), “novos sistemas de coordenação foram implantados, quer por meio de uma complexa variedade de arranjos de subcontratação (que ligam pequenas firmas a operações de larga escala, com freqüência multinacionais), através da formação de novos conjuntos produtivos em que as economias de aglomeração assumem crescente importância, quer por intermédio do domínio e da integração de pequenos negócios sob a égide de poderosas organizações financeiras ou de marketing (a Benetton, por exemplo, não produz nada diretamente, sendo apenas uma potente máquina de marketing que transmite ordens para um amplo conjunto de produtores independentes).” HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1995. p. 150.

4

“Uma sociedade salarial é uma sociedade na qual a maioria dos sujeitos sociais recebe não somente sua renda, mas também seu estatuto, seu reconhecimento, sua proteção social. A sociedade salarial promoveu, neste sentido, um tipo completamente novo de segurança: uma segurança relacionada ao trabalho, e não somente à propriedade” CASTEL, Robert. “As metamorfoses do trabalho”. In: FIORI, José Luis et al. (Orgs.). Globalização: o fato e o mito. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, p. 150. 5

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 18.

6

BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997.

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identificadas por Boaventura de Sousa Santos na composição da trama da contemporaneidade ocidental7: entre regulação social e emancipação social; entre Estado e sociedade civil; entre TP

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Estado-nação e globalização. Tais conflitos suscitam o questionamento sobre a globalização da regulação e da emancipação social. A sociedade já não sustenta um cenário cultural linear, homogeneizante, monocêntrico; as construções trangressoras, plurais e transdisciplinares não podem ser contidas8. TP

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Diante do avanço neoliberal, dos atuais processos de dominação e exclusão, faz-se necessário repensar a concepção de direitos humanos, questionar sua visão personalista, universalista, abstrata e estatizante. Neste aspecto, concordamos com o argumento de Antônio Carlos Wolkmer, segundo o qual devemos ir além e “buscar, lutar e consolidar uma outra formulação de normatividade, nascida das práticas e relações sociais, expressão mais autêntica das necessidades de novas coletividades e de novas sociabilidades” 9. TP

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Para Wolkmer “o

empenho maior e inconteste neste início do novo milênio é como tomar parte deste cenário de mundialização neoliberal, mas sem deixar de estar consciente e agir no âmbito cultural da diversidade e da legitimidade local”.10 TP

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Nas páginas que seguem empreenderemos uma reflexão acerca dos caminhos e descaminhos da chamada pós-modernidade, considerando a dinâmica da mudança social operada em seu contexto e a modificação dos parâmetros de sociabilidade do homem pósmoderno, buscando relacioná-los com uma concepção prática, multicultural e, sobretudo, efetiva dos direitos humanos.

2. Pós-modernidade: expressões, pulsações e abalos A expressão “pós-modernidade” vem sendo comumente utilizada para definir o contexto histórico representado pelas transformações político-econômico-sociais ocorridas em todo o mundo a partir da década de 1970. Ainda que não seja uma definição livre de críticas, seu uso tem difusão – e aceitação – mais ampla que as tentativas de interpretação presentes nas acepções de “hipermodernidade”11, “modernização reflexiva”12 ou “modernidade líquida”13. Não TP

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nos deteremos aqui no confronto entre as possibilidades de interpretação desse processo 7

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 12.

8

WOLKMER, Antônio Carlos. Apresentação. In: SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clóvis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. p. 7.

9

Ibidem. p. 7.

10

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. p. 113. 11

LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. T

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12

BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997. 13

BAUMAN, Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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histórico contidas em distintas expressões. Grosso modo, as críticas ao termo “pós-modernidade” se pautam pela negação da idéia de ruptura (expressa na dubiedade do termo “pós”) entre as estruturas erigidas pelas transformações das quatro últimas décadas e aquelas do período anterior. Há ainda quem entenda o discurso da pós-modernidade como uma negação dos princípios do projeto iluminista característicos da modernidade, cujo resultado é o irracionalismo e o conservadorismo14. TP

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Nossa análise é permeada pela compreensão da superação das condições históricosociais que demarcaram a vigência do “projeto da modernidade”, consubstanciado na prevalência da ciência e da técnica, no domínio absoluto da burocracia racional-legal do Estado-nação, na hegemonia da grande empresa capitalista e no predomínio da sociedade salarial do trabalho industrial. Todavia, isso não equivale à negação total das visões anteriormente mencionadas. Pelo contrário, consideramos o vigor de suas interpretações acerca das transformações de nossa época fundamentais para o entendimento da profundidade das mudanças em curso nas últimas décadas.

2.1 A globalização econômica como expressão da pós-modernidade: novas pulsações e abalos ontológicos É muito difícil definir precisamente o que é globalização. Muitas das definições referem-se às transformações ocorridas na economia mundial, com a transnacionalização de bens, serviços e do mercado financeiro. No entanto, para os objetivos do presente artigo o mais pertinente é tratar deste fenômeno sob uma ótica social, política e cultural. E, nesse sentido, é importante cuidar para que a globalização não represente simplesmente uma versão da história contada pelos vencedores. Para Octávio Ianni “a globalização está presente na realidade e no pensamento, desafiando um grande número de pessoas em todo o mundo” TP

15

. O sociólogo fala em aldeia PT

global, como expressão da globalidade de idéias, padrões e valores, podendo ser entendida como uma cultura de massas, mercados e bens culturais, com símbolos, linguagens, sinais que determinam formas de relacionamento.16 Já Boaventura de Sousa Santos propõe a seguinte TP

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definição para o termo: “globalização é o processo pelo qual determinada condição ou entidade local estende a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, desenvolve a capacidade de designar como local outra condição social ou entidade rival” TP

17

. A concepção deste sociólogo traz consigo PT

uma série de implicações: aquilo que chamamos de globalização é, na verdade, a globalização 14

HABERMAS, Jürgen. Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

15

IANNI, Octávio. Teorias da globalização. 8. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. ix

16

Ibidem, p. 119

17

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 14.

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bem sucedida de um determinado localismo; a globalização de um determinado padrão implica, necessariamente, na localização e particularização de outros. Outro fenômeno importante diretamente relacionado ao da globalização é a modificação das noções de tempo e espaço – em especial, no que diz respeito à dinâmica de compressão desses elementos. Os fenômenos e informações difundem-se pelo globo com uma velocidade nunca antes imaginada, alterando parâmetros de percepção da realidade social quanto ao andamento e alcance de quaisquer experiências. As fronteiras parecem dissolver-se, novos horizontes se abrem, duração e distâncias se comprimem. Em paralelo com a globalização da economia, surgem as preocupações com o patrimônio comum da humanidade, a natureza e o meio ambiente, que somente têm sentido quando referenciado à noção de totalidade. No entanto, tais temáticas têm estado sob constante ataque dos países hegemônicos. Nesse sentido, de acordo com a crítica aguda de Boaventura de Sousa Santos, “os conflitos, as resistências, as lutas e as coligações em torno do cosmopolitismo e do patrimônio comum da humanidade demonstram que aquilo a que chamamos de globalização é, na verdade, um conjunto de arenas de lutas fronteiriças” TP

18

. As implicações disso para a análise PT

social são evidentes. Conforme ressalta Antony Giddens, A nova agenda da ciência social diz respeito a duas esferas de transformação, diretamente relacionadas [...] Por um lado há a difusão extensiva das instituições modernas, universalizadas por meio dos processos de globalização. Por outro, mas imediatamente relacionados com a primeira, estão os processos de mudança intencional, que podem ser conectados à radicalização da modernidade. Estes são processos de abandono, desincorporação e problematização da tradição19. TP

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E é no universo do trabalho e da produção que o impacto desse reordenamento global fazse sentir de forma pioneira. É inegável a radicalidade das mudanças em processos de trabalho, hábitos de consumo, poderes e práticas estatais, configurações geográficas e geopolíticas. Tais dinâmicas são impulsionadas pelo aprofundamento da globalização econômica, marcada por fusões empresariais, reestruturação produtiva, relocalização industrial, hipercompetitividade e financeirização. Vivencia-se a transição do modelo fordista clássico para o paradigma da acumulação flexível, apoiada num modelo de trabalho igualmente flexível, cujas principais características são a polivalência, a subcontratação e o exercício de atividades part-time. O abalo da sociedade salarial toma sua forma na radical reestruturação do mercado de trabalho, com a imposição de regimes e contratos mais flexíveis, na redução do emprego regular, paralelamente ao aumento do número de trabalhadores temporários, de tempo parcial ou subcontratados. Como

18

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 18. 19

BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 74.

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conseqüência, há o desmantelamento das organizações de classe trabalhadoras, além da transformação dos objetivos e da luta de classes. Em face deste cenário, Anthony Giddens chama a atenção para os “efeitos colateriais” dessas mudanças e caracteriza este momento histórico como um período de “insegurança ontológica”20, representado pela perda da estabilidade dos referenciais econômico-sociais fixos e TP

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sólidos da modernidade. Em sua crítica à negatividade que a emancipação de tais referenciais produz nos indivíduos do nosso tempo, consubstanciando uma idéia de “liberdade como angústia”, Zygmunt Bauman21, retrata com precisão as fraturas psicossociais engendradas por TP

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esse abalo ontológico: “ser abandonado a seus próprios recursos anuncia tormentos mentais e a agonia da indecisão, enquanto a responsabilidade sobre os próprios ombros prenuncia um medo paralisante do risco e do fracasso”. Estão cada vez mais confusas e contraditórias nossas concepções sobre o capitalismo, o Estado, o poder e o direito22. Vivemos um momento de transição e a prospecção do futuro nos TP

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revela um mundo sob os auspícios da incógnita. Devido aos grandes avanços científicotecnológicos, a capacidade de ação do homem pós-moderno é cada vez maior, enquanto a capacidade de previsão é cada vez menor. O futuro está mais próximo, e, ao mesmo tempo, imperscrutável. Conforme nos alerta Ilya Prigogine em sua obra O Fim das Certezas, “estamos numa situação de ‘bifurcação’ em que a menor mudança no sistema pode produzir um desvio de largas proporções” 23. Zygmunt Bauman, da mesma forma, descreve esse período de transição de TP

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modo não menos dramático: Estamos passando de uma era de ‘grupos de referência’ predeterminados a uma outra de ‘comparação universal’, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução individual está endêmica e incuravelmente subdeterminado, não está dado de antemão, e tende a sofrer numerosas e profundas mudanças (grifo nosso)24. U

U

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O conhecimento, por sua vez, passa a ser considerado principal produtiva, modificando completamente a validade das categorias econômicas tradicionais. O trabalho se apropria dos saberes do indivíduo de forma integral, inclusive de suas habilidades cotidianas. A riqueza ora constituída por capital material fixo vai sendo substituída por um capital dito imaterial, também chamado de capital humano, que valoriza a inteligência, o saber e a imaginação do indivíduo25. A TP

PT

produção deixa de ter como característica essencial a centralidade de estoques e meios físicos 20

Ibidem.

21

BAUMAN, Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 27.

22

SANTOS, Boaventura de Sousa.Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 115. 23 24

PRIGOGINE apud SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit. p. 37. BAUMAN, Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 14.

25

GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. Tradução de Celso Azzan Júnior. São Paulo: Annablume, 2005. p. 15-16.

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(matérias-primas, máquinas, manufatura, etc.) e passa a ser hegemonizada por meios imateriais e estoques imaginativos (softwares, conhecimento, C&T, etc.). Em outras palavras, o conhecimento é o insumo primordial do capitalismo pós-industrial, uma vez que a nova dinâmica produtiva e a nova “funcionalidade” dos bens de consumo dependem diretamente de conteúdos cognitivos – e de seu aperfeiçoamento contínuo – para sustentar o processo de acumulação. De outra parte, se a natureza do trabalho fordista/taylorista se distinguia pela expropriação de saberes do indivíduo, produzindo o “gorila domesticado” na acepção de Taylor, o trabalho na pós-modernidade (pós-fordista), pelo contrário, se apropria dos saberes do indivíduo de forma integral. Se apropria, inclusive, das habilidades cotidianas adquiridas no lazer e no entretenimento. Como ressalta André Gorz26 (2005, p. 19), “é seu saber vernacular que a empresa TP

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pós-fordista põe para trabalhar, e explora”. Diante das exigências cognitivas representadas pela nova configuração do mercado de trabalho, faz-se imperativo ao indivíduo adquirir habilidades no processamento de informação, o que exige alto nível de instrução e informação. Eis o pressuposto do fenômeno chamado por Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Back de “modernização reflexiva”: tendo em vista que os pré-requisitos para mais modernização são educação, informação e democratização (no aspecto político-social), tal processo permite – pela qualificação dos atores – a reflexão sobre si mesmo e a crítica da realidade. Considerando que a nova força de trabalho deve possuir cada vez mais um alto nível de instrução e grau cada vez mais elevado de conhecimentos acerca de processos de informação, “estes indivíduos – menos controlados pela tradição e pela convenção – serão cada vez mais livres para estar em oposição heterodoxa às conseqüências distópicas da modernização”27. TP

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A relação entre o moderno e o pós-moderno mostra-se ainda bastante contraditória. Há situações de completa ruptura ao lado de situações de continuidade. No entanto, deve-se precaver para não caracterizar a pós-modernidade como cultura de fragmentação. Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos, a fragmentação maior e mais destrutiva foi-nos legada pela modernidade. A tarefa é agora a de, a partir dela, reconstruir um arquipélago de racionalidades locais, nem mínimas nem máximas, mas tão-só adequadas às necessidades locais, quer existentes, quer potenciais, e na medida em que elas foram democraticamente formuladas pelas comunidades interpretativas28. TP

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26

GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. Tradução de Celso Azzan Júnior. São Paulo: Annablume, 2005. p. 16.

27

BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 138. 28

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 110.

580

2.2 Sociabilidade e identidade pós-moderna O indivíduo pós-moderno mostra-se muito diverso do homem moderno tradicional. Sua relação com o trabalho, com o conhecimento, com a educação, com o mundo e com as outras pessoas. É evidente a recontextualização e reparticularização das identidades e das práticas, o que leva a uma reformulação dos vínculos de nacionalidade, classe, raça, etnia e sexualidade29. TP

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Decididamente, as últimas décadas foram marcadas pelo regresso do indivíduo. Para Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Back esse fenômeno pode ter um sentido positivo se corresponder à emancipação das estruturas rígidas da modernidade tradicional – indústria fordista, trabalho assalariado, crença incondicional na ciência família nuclear, etc. Conforme argumentam, “a modernização plena só acontece quando uma maior individualização também liberta a ação até dessas estruturas sociais (simplesmente) modernas”30. Por outro lado, a análise TP

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acurada de Boaventura de Sousa Santos nos chama a atenção para o paradoxo inerente a esse processo de “individualização”: Contudo, em aparente contradição com isso, o indivíduo parece hoje menos individual do que nunca, a sua vida íntima nunca foi tão pública, a sua vida sexual nunca foi tão codificada, a sua liberdade de expressão nunca foi tão inaudível e tão sujeita a critérios de correção política, a sua liberdade de escolha nunca foi tão derivada das escolhas feitas por outras antes dele 31. TP

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No âmbito do trabalho, sobressai a figura do auto-empreendedor. O indivíduo tornou-se uma ‘pequena empresa’ e tem de ‘produzir a si mesmo’. Deve aprimorar seus conhecimentos continuamente para manter-se no mercado de trabalho, tem metas a cumprir e deve se desdobrar para fazê-lo. Não há mais separação entre o trabalhador, trabalho e produto: todos os aspectos da vida do indivíduo, inclusive suas atividades de lazer, tornam-se dimensão do trabalho imaterial. Em contrapartida, diante das novas exigências mercadológicas, a mão-de-obra teve de se capacitar, atingindo altos níveis de educação e informação, do que decorre o processo de modernização reflexiva, uma reflexão sobre si mesmo e uma crítica a respeito da realidade. Em oposição à modernização simples, a modernização reflexiva “abre uma individualização genuína, abre possibilidades de subjetividade autônoma em relação a seus ambientes naturais, sociais e psíquicos”.32 TP

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O indivíduo mostra-se cada vez menos controlado pelas estruturas sociais tradicionais. Emancipa-se, torna-se um ator social de fato, com um poder crescente nas mãos. O ser humano pós-moderno não pode simplesmente ser enquadrado como membro da classe proletária ou da 29

Ibidem. p. 145.

30

BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 139. 31

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 20-1. 32

BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Op. Cit.

581

classe burguesa. Suas relações sociais são inúmeras e complexas, as circunstâncias em que vive e interage são diferenciadas. Na acepção de Boaventura de Sousa Santos: Somos um arquipélago de subjetividades que se combinam diferentemente sob múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas. Somos de manhã cedo privilegiadamente membros de família, durante o dia de trabalho somos classe, lemos o jornal como indivíduo e assistimos ao jogo de futebol da equipe nacional como nação. Nunca somos uma subjetividade em exclusivo, mas atribuímos a cada uma delas, consoante as condições, o privilégio de organizar a combinação com as demais. À medida que desaparece o coletivismo grupal, desenvolve-se, cada vez mais, o coletivismo da subjetividade.33 TP

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Por isso não é simples falar das relações sociais do final do século XX e início do século XXI. Percebe-se muito claramente o desgaste e as mudanças nas formas tradicionais de representação social, ao mesmo tempo em que surgem novos e expressivos movimentos sociais. O homem e a sociedade pós-moderna estão muito além do mundo do trabalho e do Estado. Na visão de Octávio Ianni No âmbito da sociedade mundial em formação, quando se revelam cada vez mais numerosos e generalizados os sinais da globalização, também multiplicam-se os pastiches, os simulacros e as virtualidades. As mais diversas realidades sociais, em suas expressões econômicas, políticas e culturais, adquirem configurações desconhecidas e imaginadas, não só pelo público em geral, mas também pelos cientistas sociais. Em todas as esferas da vida social, compreendendo evidentemente as empresas transnacionais e as organizações multilateriais, os meios de comunicação de massa e as igrejas, as bolsas de valores e os festivais de música popular, as corridas automobilísticas e as guerras, tudo se tecnifica, organiza-se eletronicamente, adquire as características do espetáculo produzido com base nas redes eletrônicas informáticas automáticas instantâneas universais.34 TP

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Enquanto a produção é difundida pelo globo, fragmentando geográfica e socialmente o processo de trabalho, as classes trabalhadoras são isoladas, transformando o operariado em mera força de trabalho o que, de certa forma, neutraliza e arrefece o ímpeto do movimento operário. A classe média cada vez mais lida com a questão do auto-emprego. É grande o número de trabalhadores que oscilam entre empregos formais, trabalhos como profissionais liberais e gestão de novas pequenas empresas. Reduzem-se as oportunidades de trabalho assalariado formal. As relações sociais passam por um fenômeno à primeira vista incoerente. Estas são cada vez mais desterritorializadas, ultrapassando não só fronteiras nacionais, mas, e principalmente de costumes, nacionalismo, linguagem, ideologia. Segundo Boaventura de Sousa Santos, paradoxalmente, “assiste-se a um desabrochar de nossas identidades regionais e locais

33

SANTOS, Boaventura de Sousa. Op. Cit. p. 107.

34

IANNI, Octávio. Teorias da globalização. 8. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 124.

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alicerçadas numa revalorização do direito às raízes (grifo nosso)”35. Os vínculos de identificação U

U

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social multiplicam-se e sobrepõem-se. No âmbito da representação, os partidos políticos têm apresentado uma reduzida capacidade de representação social. Isso se dá com especial intensidade no Brasil, em razão dos longos períodos de ditadura e inúmeros processos de modificação dos sistemas partidários. Os sindicatos, mais importantes representantes do movimento operário, têm o seu poder limitado pelas modificações econômicas da pós-modernidade. Ao passo que surgem e ganham força os novos movimentos sociais.

2.2.1 A pulsação dos novos movimentos sociais A internacionalização da produção e o conseqüente enfraquecimento dos movimentos operários propiciaram a emergência de novos movimentos sociais, com novos sujeitos e novas práticas de mobilização. Seus interesses não são voltados ao moderno conflito entre capital e trabalho, visam questões fora do mundo da produção e do marco político nacional. A mais valia econômica é apenas mais um dos componentes de dominação. Neste aspecto: A mais valia pode ser sexual, étnica, religiosa, etária, política, cultural; pode ter lugar no hábito (que não no ato) de consumo; pode ter lugar nas relações desiguais entre grupos de pressão, partidos ou movimentos políticos que decidem o armamento e o desarmamento, a guerra e a paz; pode ainda ter lugar nas relações sociais de destruição entre a sociedade e a natureza, ou melhor, entre os recursos ditos ‘humanos’ e os recursos ditos ‘naturais’ da sociedade.36 TP

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Os novos movimentos sociais incluem os movimentos de consumo, feministas, ecológicos, pacifistas, antiracistas, de auto-ajuda e religiosos. Identificam formas de dominação social que ultrapassam os limites das relações de produção, tal qual a guerra, a poluição, a degradação ambiental, o racismo, o machismo. Sua novidade consiste no fato de representarem uma crítica tanto à regulação social capitalista quanto à emancipação social tal qual foi definida pelo marxismo. Advogam um paradigma social singular, que se preocupa mais com a cultura e a qualidade de vida do que com riqueza e bem estar material. Para esses novos movimentos sociais, a prioridade não se encontra no Estado ou no Mercado, mas sim “na força da sociedade como um novo espaço comunitário de efetivação da pluralidade democrática, comprometida com a alteridade e com a diversidade cultural” TP

37

. De PT

35

SANTOS, Boaventura de Sousa. . Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 22. 36

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 260

37

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. p. 114.

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acordo com Boaventura de Sousa Santos, a emancipação por que lutam os novos movimentos sociais não é política, mas antes pessoal, social e cultural. As lutas em que se traduzem pautam-se por formas organizativas (democracia participativa) diferentes das que presidiram as lutas pela cidadania (democracia representativa) [...]. As formas de opressão e de exclusão contra as quais lutam não podem, em geral, ser abolidas com mera concessão de direitos, como é típico da cidadania; exigem uma reconversão global dos processos de socialização e de inclusão social e dos modelos de desenvolvimento, ou exigem transformações concretas imediatas e locais, [...] exigências que, em ambos os casos, extravasam a mera concessão de direitos abstratos e universais.38 TP

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Característica importante é a localidade momentânea e espacial da luta dos novos movimentos sociais. O quotidiano deixa de ser um âmbito menor, descartável e passa a ocupar o palco principal de luta para uma vida melhor, um mundo melhor. Impõe-se “buscar, lutar e consolidar uma outra formulação de normatividade, nascida das práticas e relações sociais, expressão mais autêntica das necessidades de novas coletividades e de novas sociabilidades” 39. TP

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A globalização e os conflitos em espaços sócio-políticos marginais, sobrecarregados e díspares como a América Latina torna urgente o reconhecimento dos novos movimentos sociais como forma autêntica de engendrar práticas legais emancipadoras e construir direitos humanos, assim como perfilhar ações contra-hegemônicas.40 TP

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3. Uma concepção multicultural dos direitos humanos É necessário questionar o suporte jusnaturalista e liberal do sistema de garantias moral, transcendental e linear dos direitos humanos. Em razão da garantia moral, assenta-se a existência de direitos individuais e de propriedade, cuja supremacia é apregoada inconteste, em detrimento de contextos e práticas sociais. A garantia transcendental indica a ênfase a um âmbito indiferente às relações e ingerências humanas. Em relação à garantia liberal e progressista, considera-se a preexistência do bem, construído em um plano ideológico, que considera o mundo como homogêneo. A tradição liberal repercute no pensamento e nas instituições ocidentais, influenciando sobremaneira a concepção de direitos humanos, de forma abstrata, simplista e estreita. Segundo a tese de Boaventura de Sousa Santos41, “enquanto forem concebidos como direitos humanos TP

PT

38

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 261.

39

WOLKMER, Antônio Carlos. Apresentação. In: SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clóvis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010.

40

Idem. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. p. 121.

41

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 18-9.

584

universais, os direitos humanos tenderão a operar como globalismo localizado – uma forma de globalização de cima para baixo. Serão [...] como arma do Ocidente contra o resto do mundo.” Os direitos humanos como o são concebidos, seja em seu sentido amplo (teórico), seja em seu sentido estrito (positivação jurídica), acabam por colaborar para o distanciamento entre a teoria e a prática dos direitos humanos, uma vez que são concebidos sob uma ótica pós-violatória e de modo destacado da realidade em que se inserem. Pretender valores universais seria ignorar outros valores culturais que deveriam ser resguardados. Os direitos humanos não podem ser entendidos unicamente como emanação jurídica, ou estudados por meio da Declaração Universal de Direitos Humanos e pelas Constituições Federais de países do Ocidente. Conforme o filósofo Joaquín Herrera Flores42: TP

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os direitos humanos constituem um produto cultural surgido no âmbito que de denominou Ocidente, sobretudo porque, por um lado, necessitava-se de justificações ideológicas para as expansões coloniais por todo o globo, e, também, porque era necessário enfrentar a globalização das injustiças e opressões que tal expansionismo ia produzindo por toda parte.

Se observamos a história dos direitos humanos, em especial após as guerras mundiais, pode-se concluir que foram manipulados e usados, de forma geral, a serviço dos países capitalistas hegemônicos. Foi adotada uma política de hiper-visibilidade ou de invisibilidade de acordo com os interesses dos Estados dominantes. A própria Declaração Universal de Direitos Humanos foi elaborada sem a participação de grande parte dos países, perfilhando somente os direitos individuais e o direito de autodeterminação, que, no entanto, foi negado aos povos colonizados. Os direitos cívicos e políticos foram colocados em situação de superioridade aos direitos sociais, econômicos e culturais. A divisão dos direitos humanos em gerações mostra-se muito simplista e reduzida e insuficiente. Conforme ressalta Sanchez Rubio43, essa posição sequencial dos direitos humanos TP

PT

defende que há um bloco de direitos básicos, independente dos processos históricos e condições sociais de produção. Os direitos de primeira geração são vistos como originários e mais importantes, como os únicos universais e válidos. Já os de segunda e terceira geração são considerados pseudo-direitos. No imaginário popular, da forma como nos foram apresentados em sua posição conservadora, os direitos humanos estão intrinsecamente ligados ao ordenamento jurídico e são

42

HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Tradução e Revisão de Luciana Caplan et. al. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 16.

43 SÁNCHEZ RUBIO, David. Sobre el concepto de “historización” y una crítica a la visión sobre las (de)-generaciones de derechos humanos. Revista de Derechos Humanos y EstudiosSociales. Sevilha, ano II, n. 4, p. 41-55, jul.-dez. 2010. p. 43.

585

dele dependentes. Na maneira de pensar os direitos humanos é nítida a separação entre o que é dito e o que é feito, entre ser e dever ser. Conforme a lição de David Sanchez Rúbio44 TP

PT

Geralmente, quando se fala em direitos humanos, imediatamente nos ocorre a idéia dos mesmos baseados em normas jurídicas, nas instituições do Estado e nos valores que lhes dão fundamentos (como a liberdade, a igualdade e a solidariedade) e que estão, ou bem fundamentados na condição humana ou bem refletidos em suas produções normativas e institucionais. Direitos humanos são aqueles direitos reconhecidos tanto no âmbito internacional como nacional, pelas constituições, normas fundamentais, cartas magnas, tratados e declarações baseadas em valores. Os direitos humanos são, em verdade, produções sócio-históricas, geradas por atores sociais. É problemático pensá-los como produto de iluminadas reflexões de filósofos como John Locke, Francisco de Vitória, Rousseau, Hobbes, Kant, Bobbio, Ferrajoli e Habermas. O Ocidente se apresenta como titular exclusivo dos direitos humanos, com uma ambição hegemônica, considerando-se a única autoridade capaz de defini-los e defendê-los. Para Wolkmer e Batista45, TP

PT

“la(s) teorías hegemónica(s) no se adecua(n) a la pluralidad cultural del mundo, lo que imposibilita su realización emancipadora y permite su utilización como instrumento de dominación y legitimación del poder”. Para que os direitos humanos possam alcançar efetividade e operar de forma contrahegemônica, devem ser reconceitualizados, encarados como multiculturais. O multiculturalismo é entendido por Boaventura de Sousa Santos como “pré-condição para uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica e de direitos humanos no nosso tempo” 46. TP

PT

O autor enumera cinco premissas para tornar viável tal transformação, através de um diálogo intercultural. A primeira se refere à superação do debate entre universalismo e relativismo cultural, uma vez que ambos conceitos polares são prejudiciais para os direitos humanos emancipatórios. Em segundo lugar, todas as culturas possuem sua concepção de dignidade humana, no entanto, nem todas a concebem em termos de direitos humanos, fazendo-se importante atentar para preocupações semelhantes em diferentes comunidades. A terceira premissa refere-se à incompletude da concepção de dignidade humana de todas as culturas, justamente em razão da pluralidade de costumes. A quarta premissa parte da idéia de “que todas as culturas têm versões diferentes da dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais abertas a 44 SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de ClóvisGorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. p. 13. 45

WOLKMER, Antônio Carlos; BATISTA, Anne Carolinne. Derechos humanos, interculturalidad y educación popular. Revista de Derechos Humanos y EstudiosSociales. Sevilha, ano II, n. 4, p. 129-146, jul.-dez. 2010.

46

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 19.

586

outras culturas do que outras.” A quinta e última premissa refere-se a tendência de todas as culturas a distribuir pessoas e grupos sociais entre dois competitivos de pertença hierárquica: a igualdade e a diferença.47 TP

PT

A aceitação de uma pluralidade de mundos não significa que deva haver uma completa separação ou incomunicabilidade entre eles. Pelo contrário, o diálogo intercultural é essencial, assim como critérios de uma nova legitimação social, para construir uma cultura jurídica antiformalista, anti-individualista e anti-monista, baseada nos valores e poderes da comunidade. Tal diálogo deve incluir a troca de saberes e culturas, de diferentes universos de sentido. Para tanto, devem reconhecer incompletudes mútuas. A instituição de uma cultura político-jurídica mais democrática deve, necessariamente, discorrer sobre formas de produção do conhecimento a partir de uma prática democrática pluralista que permita a expressão do direito à diferença, à identidade coletiva, à autonomia e à igualdade de acesso a direitos 48. TP

PT

Para compreender os direitos humanos na atualidade, mostra-se essencial direcioná-los em termos multiculturais, concebê-los como novas concepções de cidadania, reconhecendo as diferenças e promovendo políticas sociais tendo em vista a redução de desigualdades, inclusão e redistribuição dos recursos.49 TP

PT

Os direitos fundamentais não podem ser tratados como algo abstrato ou dado, não podem ser apenas congelados como norma de máximo status. O confinamento dos direitos humanos ao plano do direito estatal restringe sobremaneira seu potencial democratizador e emancipador. A luta social, a eficácia não jurídica, a cultura, a sensibilidade popular e a eficácia jurídica não estatal são componentes dos direitos humanos relegados a segundo plano. Entretanto, é através deles que se faz possível superar o abismo entre o que se diz e o que se faz a respeito dos direitos fundamentais. Os direitos humanos devem estar mais intimamente relacionados com os processos de luta e consolidação de espaços de liberdade do que com a normatividade. Em razão do que vimos, os direitos humanos entendidos a partir de uma perspectiva emancipadora, e que pretendem contribuir ao incremento dos níveis de humanização, poderiam ser concebidos como o conjunto de práticas sociais, simbólicas, culturais e institucionais que reagem contra os excessos de qualquer tipo de poder que impede os seres humanos de constituírem-se como sujeitos.50 TP

47

PT

Ibidem. p. 21-2

48

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. p. 115. 49

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. p. 124. 50

SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clóvis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. p. 38.

587

Uma nova concepção de direitos humanos deve levar em conta uma participação da comunidade com base em um diálogo intercultural.

4. Conclusão Com todas as mudanças estruturais, políticas, econômicas, sociais e culturais na pósmodernidade, faz-se necessário repensar o poder de ação da comunidade, bem como a clássica concepção de direitos humanos. Os indivíduos têm um maior acesso à informação e educação. Os modos de produção e de trabalho já não são os mesmos, os movimentos operários enfraqueceram-se, ao passo que emergiram novos movimentos sociais, como novos sujeitos e práticas de mobilização, com reivindicações de consumo, feministas, ecológicas, pacifistas, antiracistas, de auto-ajuda ou religiosas. Diante da pluralidade de culturas, de sujeitos e exigências é urgente superar a concepção individualista, positiva e monocultural dos direitos humanos. Deve-se, a partir da idéia de análoga dignidade de culturas, interpretar os direitos humanos a partir de uma visão intercultural, sem qualquer tipo de imposição etnocêntrica ou homogênea. Os direitos fundamentais não podem continuar a serviço de uma política hegemônica e opressora. Conforme observa Boaventura de Sousa Santos, “é precisamente no campo dos direitos humanos que a cultura ocidental tem de aprender com o Sul para que a falsa universalidade atribuída aos direitos humanos no contexto imperial seja convertida, na translocalidade do cosmopolitismo, num diálogo intercultural” 51. TP

PT

Uma concepção multicultural e emancipadora dos direitos humanos, que respeite a condição de iguais e respeite sua condição diferenciada, seja ela cultural, étnica, sexual, familiar ou qualquer outra pode fazer com que o homem pós-moderno seja sujeito não abstrato ou alheio do mundo em que vive.

Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmund. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BECK, Ulrich; GIDDENS, Antony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1997. CASTEL, Robert. “As metamorfoses do trabalho”. In: FIORI, José Luis et al. (Orgs.). Globalização: o fato e o mito. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998, pp. 147-163.

51

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 29.

588

GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. Tradução de Celso Azzan Júnior. São Paulo: Annablume, 2005. HABERMAS, Jürgen. Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1995. HERRERA FLORES, Joaquín. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Tradução e Revisão de Luciana Caplan et. al. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. IANNI, Octávio. Teorias da globalização. 8. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004. SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de ClóvisGorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. SÁNCHEZ RUBIO, David. Sobre el concepto de “historización” y una crítica a la visión sobre las (de)generaciones de derechos humanos. Revista de Derechos Humanos y EstudiosSociales. Sevilha, ano II, n. 4, p. 41-55, jul.-dez. 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 48. jun. 1997. p. 12. WOLKMER, Antônio Carlos; BATISTA, Anne Carolinne. Derechos humanos, interculturalidad y educación popular. Revista de Derechos Humanos y Estudios Sociales. Sevilha, ano II, n. 4, p. 129-146, jul.-dez. 2010. WOLKMER, Antônio Carlos. Apresentação. In: SÁNCHEZ RUBIO, David. Fazendo e desfazendo direitos humanos. Tradução de Clóvis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico, direitos humanos e interculturalidade. Revista Sequência, n. 53, dez. 2006. p. 113-128.

589

Princípio da força contraditória e sua equação na modernidade: contribuição para efetivar os direitos humanos Alan Esteves1 TP

PT

Resumo

Abstract

O objetivo deste trabalho é investigar por que o progresso tecnológico e científico não consegue acompanhar o respeito aos direitos humanos, problema que se materializa nos discursos do público daqueles direitos, no sentido de defesa de “prós de uns” e “prós de outros.” Para tanto, recorre à doutrina excepcional de construção e respeito à Declaração dos Direitos Humanos, Tratados, Constituições sobre eles, a qual convence, mas não consegue converter em práticas mais efetivas. Daí que a efetividade daqueles direitos fica enfraquecida e o princípio da força contraditória é perceptível nesse contexto. As explicações decorrem do fato de que o desenvolvimento tecnológico e científico que a humanidade alcançou na modernidade não consegue fazer-se acompanhar pelo respeito aos direitos humanos de forma mais efetiva, bem como do descompasso entre uma doutrina do convencimento e da conversão, ou da falta do equilíbrio entre a doutrina do legalismo e a do humanismo. Diz-se que a força hegemônica que impulsiona os destinos da evolução humana, entre as quais, os cientistas e sua linguagem, não conseguem converter aqueles mais prejudicados, ou marginalizados, ou classe intermediária, a uma reação. Nesse sentido, cabem críticas aos cientistas, pois eles não encontram no homem o sentido apropriado de justiça para movê-lo a reivindicar a reação. Com efeito, essa equação equilibra-se na polaridade do dizer e fazer dirigida a quem legitimamente detém o poder de reação, mas ela somente acontece se forem encontrados homens com características de um Dom Helder Câmara, Gandhi, Luther King e Nelson Mandela. A mensagem destes foi a sua própria vida na luta por justiça, ou seja, eles ficaram ao lado do homem, das suas necessidades e de sua batalha por vida digna, e impulsionaram outros a fazerem o mesmo.

The purpose of this study is to investigate why the technological and scientific progress can not keep up the respect for human rights, a problem that materializes in the public speeches of those rights, to defend "a few pros" and "the pros other". To this end, uses to the exceptional doctrine of construction and about them Declaration of Human Rights Treaties, Constitutions about them, which convinces, but can not convert into more effective practices. Hence, the effectiveness of those rights is weakened and the principle of contradictory force is perceptible in this context. The explanations arise from the fact that the technological and scientific development that humanity has reached in the modernity can not be accompanied by respect for human rightsmore effectively, as well as the mismatch between a doctrine of conviction and conversion, or lack equilibrium between the doctrine of legalism and humanism. It is said that the hegemonic force that impels the destiny of human evolution, including the scientists and their language, can not convert those most affected, or marginalized, or intermediate class, to a reaction. In this regard, fit critical to scientists as they can not find in a man sense of justice appropriate to move him to claim the reaction. With effect, this equation is balanced in polarity of to say and of to do, addressed to those who legitimately holds the power to react, but it onlyhappens if they are found men with characteristics of a Dom Helder Camara, Gandhi, Luther King and Nelson Mandela. The message of these was their own life to fight for justice, that is, they were beside the man, their needs and their struggle for decent life, and spurred others to do the same.

Palavras-Chave: Princípio; Força; Direitos; Humanos.

Keywords: Principle; Force; Rights; Human.

1

Mestrando em Direito pela UFAL – Universidade Federal de Alagoas, 2010-2012. Trabalho apresentado para o PROCAD. Recife, PE, novembro de 2011.

590

1. Introdução É propósito deste trabalho contribuir para compreensão de um dos temas mais importantes do Direito Internacional: a doutrina de efetividade dos direitos humanos. Para chegar a este intento, a abordagem deve comprovar a existência do princípio da força contraditória que se opera na área social, no discurso dos atores sociais e dos cientistas que estudam, divulgam e apelam para práticas efetivas daqueles direitos. Tal princípio é perceptível em inúmeras doutrinas estrangeiras e nacionais. Basta verificar, por modelo, o grau do progresso científico e tecnológico que não corresponde ao grau de desenvolvimento na área social. No Brasil, por exemplo, existe a questão da saúde pública precária, o problema dos encarcerados, sufocados na sua dignidade no sistema prisional, e da violência descontrolada. A compreensão dos diferentes pontos de partida dos direitos humanos leva a diversos discursos, todos eles contraditórios, dos representantes dos Poderes Públicos, dos atores sociais, inclusive cientistas, das pessoas em geral, que podem teorizar, pregar e apelar para uma maior efetividade daqueles direitos. Tais assertivas são percebidas em várias falas, desde a Administração Pública e sua eterna falta de recursos à reclamação dos cidadãos por gestores melhores; vítimas e encarcerados; do Poder Judiciário e dos teóricos do direito entre o legalismo e o humanismo; dos imigrantes e repatriados e assim por diante. Então, quais os problemas? As reflexões aqui erigidas apontam três deles. Primeiro, diante desses discursos, a doutrina de efetividade dos direitos humanos fica enfraquecida; segundo, os cientistas sociais estão falando para a classe que não faz a reação e os direitos humanos são, em essência, direitos de reação; terceiro, os direitos humanos necessitam de alguém com discurso aglutinador, ou seja, que tenha característica de entender as diferentes roupagens das manifestações pró-direitos de uns e pródireitos de outros e impulsionem a classe certa a fazer a reação. Esse “alguém”, na perspectiva aqui adotada, teria que ter qualidade humana por excelência de um dessas pessoas: Gandhi, Nelson Mandela, Matin Luther King e Dom Helder Câmara. Nesse sentido, a hipótese deste trabalho é a de que uma maior efetividade nos direitos humanos não gira em torno de doutrinas, teorias e apelos para cumprimento de declaração, constituições e a leis instituidoras de direitos humanos, mas da relação dos verbos “convencer” e “converter”. Estes devem englobar uma mensagem que seja a própria vida e, assim, que tragam outras vidas para práticas efetivas e isso será comprovado com um pouco da vida daqueles personagens.

2. A realidade na área social e jurídica Falar da realidade é mostrar os fatos de lugares em que a doutrina de efetividade dos direitos humanos passa longe. Primeiro, a pobreza; segundo, dados do Relatório Nacional de Acompanhamento dos Objetivos do Milênio (ODM), da ONU, de agosto de 2011, apontam que há 591

no Brasil 16 milhões de pessoas que vivem em extrema pobreza, além de que o país abriga resultados médios de desigualdades de gênero, raça e regionais, embora se reconheça os avanços do País para alcançar os objetivos até o ano de 2015.2 TP

PT

Callinicos, citando o filósofo Alemão Thomas Pogge no seu livro “Pobreza Mundial e direitos humanos,” disse que este apurou evidência estatística, para o ano de 1998, de causar náuseas: “de um total de 5, 820 bilhões de seres humanos, 1, 214 bilhão possuíam renda de menos de um dólar norte-americano por dia e 2,8 bilhões viviam com menos de dois dólares por dia, sendo esta a linha de pobreza estabelecida pelo Banco Mundial”.3 A pobreza, por outro lado, TP

PT

está associada a milhões de pessoas que morrem prematuramente, seja por inanição, seja por enfermidades decorrentes. Segundo relato de Franco Filho, com dados sobre informes da ONU acerca do desenvolvimento, a riqueza dos 358 maiores bilionários globais corresponde à renda de 2,3 bilhões dos mais pobres do mundo, ou seja, 45% da população mundial.4 TP

PT

As riquezas são desenvolvidas junto com o progresso científico-tecnológico em ritmo mais acelerado do que a luta pela diminuição da pobreza e da fome. A evidência, por exemplo, aponta que existem e doutrinas e práticas de produção de alimentos no mundo que têm a cada ano um S

S

forte crescimento e, ao mesmo tempo, grande desperdício. Notícia da BBC-Brasil, com base em dados da ONU, a partir de pesquisa de empresa sueca SIK, de 2010 e início de 2011, assegura que 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano, e a quantidade equivale a mais da metade da colheita de grãos no mundo. Foi também informado que o padrão da maioria desperdício nos países desenvolvidos acontece com os produtos já comprados pelos consumidores e nos países em desenvolvimento acontece no processo de produção e transporte.5 TP

PT

Isso posto, tem-se que a gravidade da situação da pobreza no mundo é óbvia, quando se pensa nas suas consequências: sofrimentos físicos, mentais e estruturais de gerações inteiras que se projetam para outras.6 TP

PT

2

AKERMAN, Marco. A Organização das Nações Unidas (ONU) divulga relatório analisando avanços e dificuldades no alcance das metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: “nós podemos acabar com a pobreza em 2015. Cmds2011.org. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2011. TU

UT

3

POGGE, Thomas apud CALLINICOS, Alex. Igualdade e capitalismo. In. BORON, Atílio; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ, Sabrina (orgs.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. Buenos Aires: CLASCO, 2006, p. 253-269; p. 253254.

4

FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Novas tecnologias e uma parte do mundo do trabalho. In. Revista Síntese: trabalhista e previdenciária. V. 23. N. 268, out. 2011. São Paulo: IOB, p-p 55-61, p. 57.

5

BBC BRASIL. Um terço de alimentos é desperdiçado, diz a FAO. Seção: Economia. BBC. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2011. 6

É o caso do “homem-gabiru” cuja vida acontece em lixo dos centros humanos e caracteriza-se pela subnutrição crônica e atinge o máximo de 1,60 metros de altura, conforme citado por Herkenhoff a partir do Informativo da Dívida Externa, editado por um grupo de instituições do movimento popular, entre os quais “Centro de Educação Popular do Instituto Sede Sapientiae. Porto Alegre, RS, nov/dez 2001. HERKENHOFF, João Baptista. Direitos Humanos: uma ideia, muitas vozes. 3. ed. Aparecida/SP: Santuário, 1998, p. 305-306.

592

Outra ocorrência de gravidade é a questão da saúde pública, especialmente no Brasil, como no caso de fornecimento de remédios para os pobres e os atendimentos precários nas redes hospitalares públicas. O olhar sobre essas aberrações da Administração Pública Brasileira são inenarráveis e isso levou a primeira condenação no Brasil na ONU – Organização das Nações Unidas, pelo fato de uma grávida que ter morrido na fila do atendimento justamente porque S

S

ninguém lhe prestou auxílio médico-hospitalar.7 TP

PT

Da mesma forma, o olhar sobre o sistema carcerário no Brasil revela as mazelas indizíveis de como homens e mulheres podem ser tratados com tanto desprezo. Ficam amontoados em presídios infectos, muitos deles doentes e sem assistência correta do Estado. Para se comprovar a situação, basta verificar dados do Relatório de Visitas a Estabelecimentos Prisionais do Estado de Alagoas, realizados por conselheiros habilitados, no período de 25 a 27 de outubro de 2010. É um documento que constou como anexo na Monografia Final de conclusão de Mestrado de Silva Filho na Universidade Federal de Alagoas.8 As informações no aludido documento dão conta de TP

PT

que: (1) há corredores com lixo; (2) não há iluminação adequada; (3) paredes com mofo; (4) banheiros nas celas entupidos e outros graves deficiências estruturais. Do lado jurídico, teóricos, como Krell, ensinam que existe apego ao formalismo no Brasil, onde os práticos ficam presos à operação matemática entre a hipótese da norma e sua consequência jurídica sem atentar para as finalidades sociais por trás das formas.9 Tal teoria TP

PT

explica uma das razões de a Administração, os membros do Judiciário e as próprias pessoas ficarem prisioneiras de um determinismo ou conformismo e pouco se estruturam para uma verdadeira materialidade dos direitos. Lopes concorda: “O primeiro efeito do positivismo jurídico triunfante foi afastar a justiça da especulação jurídica.”10 TP

PT

E falar em justiça é lembrar a doutrina do humanismo. Esta começou propriamente depois da Segunda Guerra Mundial diante dos horrores contra a dignidade humana e centra-se no homem como centro e fim, de que ele é o fim do ordenamento e não pode ser meio ou objeto.11 A TP

PT

teoria foi capitaneada por Britto quando disse: “Consiste num conjunto de princípios que se unificam pelo culto ou referência a esse sujeito universal que é a humanidade inteira”.12 Isso TP

PT

7

“Em caso inédito, o Brasil foi condenado pela ONU na área de saúde por violação aos direitos humanos da mulher grávida. Em questão está o caso da brasileira Alyne Pimentel, que morava na Baixada Fluminense. Em 2002, no sexto mês de gestação, ela deu entrada no hospital público, em situação de alto risco de vida. Lá permaneceu cinco dias sem receber atendimento e morreu”. Itamaraty. Disponível em: . Acesso em: 14 nov. 2011. TU

UT

8

SILVA FILHO, Manoel Bernardino. A saúde nas prisões: uma análise constitucional da (in) efetividade dos direitos sociais atrás das grades. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito). 145 p. Maceió, 2011. Universidade Federal de Alagoas. 9

KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 79-112, p. 81-82.

10

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Sociais: Teoria e prática. São Paulo: Método, 2006, p. 49.

11

MELLO, Marcos Bernardes de. Normas sobre o caráter normativo dos princípios e das normas programática. In.: Revista do Mestrado em Direito. V. 2. N. 3. Maceió: Edufal, 2008, p. 81-82.

12

BRITTO, Carlos Ayres de. Humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 19.

593

significa que se busca para o homem o que lhe pode fazer bem ou feliz, o que no fundo, é o encontro com a justiça no seu sentido subjetivo,13 ou forma de legitimação da dignidade pela TP

humanidade de cada homem.

PT

14 TP

PT

Essas doutrinas acima mencionadas estão em constante interação com as realidades e vão redundar em resultados diferentes nas práticas, na percepção e respeito à efetividade dos direitos

humanos.

Significa,

também,

que

corrida

pelo

crescimento,

conhecimento

e

desenvolvimento é legítima, mas o que não é são as supostas soluções dos problemas serem atacados apenas para resolver contingências, e não de forma estrutural.

3. O princípio da força contraditória na área social e área jurídica decorrente das condutas e teorias de respeito dos direitos humanos O princípio da força contraditória apresenta-se como itinerários de dois sentidos nãocontrários com identificação de um proporcionalmente maior que o outro. Na realidade, encontrase na dualidade dos progressos científicos e tecnológicos em compasso maior do que o desenvolvimento social na distribuição dos direitos. No que diz respeito aos direitos humanos vinculados a condutas humanas dos representantes dos Poderes Legislativo, do Executivo e do Judiciário, além dos cientistas, teóricos, atores sociais e pessoas em geral, apresenta-se como questão linguística entre uma visão e adoção maior da doutrina legalista em correspondência com a humanista. A causa principal acontece em termos de efetividade daqueles direitos, segundo a teoria de Flores, pois: “os problemas culturais estão estritamente interconectados com os problemas políticos e econômicos.”.15 Ou, como disse Santos, de que haveria um paradoxo pedindo TP

PT

explicação, pois, de um lado, há o extraordinário progresso das ciências e das técnicas; de outro lado, há uma referência a rapidez obrigatória dos fatos e todas as vertigens que lhe são inerentes, especialmente a falta de cuidados com as populações que vivem vidas difíceis.16 Bobbio também TP

PT

percebeu essa força quando disse que o problema dos direitos humanos não pode ser pensados sem abstrair dois outros problemas: o excesso de potência de criação de mecanismos para uma guerra exterminadora e o excesso de impotência que condena grandes massas humanas à fome.17 TP

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13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1 de 1969. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 40. 14

BRITTO, op. cit., p. 25.

15

FLORES, Joaquin Herrera. Direitos Humanos, Interculturalidade e racionalidade de resistência. In.: WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Trad. PRONER, Carol. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.359-385, p. 363. 16 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 20. ed. São Paulo: Record, 2011,p. 17-18. 17

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. COUTINHO, Carlos Nelson. 9ª Tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 44.

594

O princípio da força contraditória encontra-se presente no ambiente social e seu fundamento detecta-se na polaridade de causas díspares negativas e positivas, respectivamente, como inseguranças, desigualdades, exclusões sociais de um lado; de outro, criatividades, inovações, produtividades e criação de riquezas. É o paradoxo que Hunt disse que existe pela distância e proximidade que está em ação nos tempos modernos, quando constatou, em nível mundial, de um lado, o ressurgimento da tortura e da limpeza étnica, do emprego do estupro como arma de guerra, da opressão continuada das mulheres, do crescente tráfico sexual de crianças e mulheres e das práticas de escravidão; de outro, o desenvolvimento de capacidades de ler e escrever, de romances, jornais, rádio, televisão e Internet. Isso permite inferir que, apesar de as causas dos direitos humanos gerarem empatia, não são capazes de fazer que os homens reajam.18 TP

PT

Tal princípio está implícito e reconhecido por pesquisadores como Manoel Castells (2003). Este, falando sobre os benefícios da Internet para tentar melhorar a sociedade e estabilizar a economia, disse: “Uma vez que a volatilidade, a insegurança, a desigualdade e a exclusão social andam de mãos dadas com a criatividade, a inovação, a produtividade e a criação de riqueza nesses primeiros passos do mundo baseado na Internet”.19 TP

PT

As desigualdades nas áreas sociais se projetam para outros âmbitos e é perceptível o princípio da força contraditória na área jurídica, tanto teórica, quanto prática. Esta, representada pelos poderes constituídos, por exemplo, objetiva manter ordem, mesmo que passe ao largo sobre demandas graves sobre direitos humanos. Os teóricos, na sua grande maioria, em suas teses, monografias, dissertações passeiam entre o legalismo e o humanismo, convencem a respeito de uma maior efetividade dos direitos humanos, mas não convertem os práticos a uma ação mais contundente. E o pior: os teóricos justificam as ações dos práticos, especialmente do Poder Executivo, com teorias de aplicação de mínimos sociais e da reserva do possível, enquanto esquecem que o direito não pode ter máximo para uns e mínimo para outros e que o possível em termos de práticas justas não pode ter reservas maiores para uns e menores para outros. Nesse compasso, o problema do princípio da força contraditória comparece na área jurídica dos teóricos e práticos pela relação entre convencimento e conversão, ou seja, convencese da legitimidade da doutrina de direitos humanos, mas isso não se converte efetivamente em ações de maior abrangência, ou o ritmo de mudanças é lento. Os direitos humanos têm assento na Declaração dos Direitos Humanos de 1948, tratados, convenções internacionais e nos próprios ordenamentos jurídicos dos países. No fundo querem expressar que o que pensa Athayde, um dos participantes e colaboradores na confecção do texto

18

HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. Trad. EICHENBERG, Rosaura. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 212. 19

CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Trad. BORGES, Maria Luiza X. de A. Rev. VAZ, Paulo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 9.

595

daquela Declaração: “O ser humano, independentemente das leis de sua pátria, é titular de direitos que nascem de sua condição humana e, por isso, deve ter proteção universal”.20 TP

PT

No caso de violações, há de se buscar a norma válida. O caso é que ela é frequentemente encontrada, mas não há como defender a legitimidade do direito de modo amplo, pelo menos, sem convencer um maior número de pessoas a também reconhecer. Bobbio ressalta com propriedade: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político”.21 TP

PT

O princípio da força contraditória quer significar que enquanto se tem desenvolvimento de riquezas em grau elevado, há, por outro lado, ações tímidas de diminuição da pobreza e seu contínuo avanço. Também, quando se tem todo um arcabouço prático e teórico para resolver o problema de saúde, as ações se convertem para resolver problemas pontuais e, assim, continuam permanentes aqueles. Outrossim, a doutrina do legalismo é aquela do possível, dos mínimos sociais, do conformismo e do determinismo que acomoda condutas e não guarda correspondência com o humanismo propriamente dito, de colocar o homem como centro e fim, de entendê-lo em suas necessidades e, no final, convertê-lo no respeito de práticas efetivas em razão da dignidade que lhe é inerente. Nesse sentido, cabem críticas severas aos cientistas sociais, pois suas mensagens não encontram eco nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, nem nos próprios cidadãos em geral, de modo que a doutrina dos direitos humanos resta-se enfraquecida.

4. O princípio da força contraditória e a ideologia da diferença: para fazer a reação A hipótese de Herkenhof é um resumo das assertivas estudadas até aqui, ou seja, de que os direitos humanos têm núcleos comuns, mas são percebidos de forma diferentes nos discursos dos dominantes e dominados, o que faz perceptível as diversas enunciações segundo a classe, cultura, nacionalidade e lugar social.22 Isso significa que há uma tendência de percepção daqueles TP

PT

direitos segundo marcos da condição humana derivados de circunstâncias. Assim, segundo Hunt: “A noção dos direitos humanos trouxe na sua esteira uma sucessão de gêmeos malignos. A reivindicação de direitos universais, iguais e naturais estimulava o crescimento de novas e às vezes fanáticas ideologias da diferença.”23 TP

PT

Eis o acontecimento pela força dos discursos dos atores e cientistas sociais que são convincentes no sentido de construção, da reconstrução e respeito aos direitos humanos, mas são 20

ATHAYDE, Austregésilo. In. Austregésilo de Athayde e Daisaku Ikeda (Org.). In. Diálogo: Direitos Humanos no Século XXI. Trad. NINOMYA, Massato. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 80. 21

BOBBIO. Op. cit., p. 23.

22

HERKENHOFF, João Baptista. Op. cit., p. 16.

23

HUNT. Op. cit., p. 214.

596

pouco ou nada convergentes no que toca a incentivar práticas mais efetivas. Além disso, sobretudo, isso acontece pela pouco ou nada mobilização da classe que poderia fazer a reação e pela aposta equivocada no Poder Judiciário. Discursos sociais nada mais são do que falas com forças de manter, reproduzir, conformar ou mudar realidades. A fala recorrente dos representantes do Estado é a falta de recursos financeiros para implementar medidas mais efetivas dos direitos humanos. É um argumento muito forte, pois acomoda o que é materialmente possível e o que não é. Ele tem tido prevalência sobre quaisquer pontos de vista que digam que se devem administrar melhor os recursos com destinação de verbas específicas para áreas sensíveis como combate à fome, ou, no caso do Brasil, melhorias no sistema de saúde e prisional. E acontece que a Administração atua nas contingências, quando o problema avoluma-se e explodem em outros incontroláveis. Assim, os meios de comunicação repetem: “A Administração sabia desse problema, por que não resolveu antes?” Nesse sentido, o discurso é produzido para manter, reproduzir, ou conformar realidades. Os discursos, não os direitos, apresentam-se como cascatas de ambiguidades sobre como entram em conflito e como devem ser fluidos. Assim, tem-se: o direito do Estado aplicar os recursos na medida do possível e direito dos cidadãos de reclamarem gestões melhores; direito da mulher de escolher e direito do feto viver; direito à vida e direito de morrer com dignidade; direito a uma justiça célere e direito de que a justiça aja conforme os recursos de que dispõe e assim por diante. Os discursos, então, no geral, são para conformar-se com as realidades. Herkenhoff repete dizendo que o núcleo comum nos direitos humanos é uma questão linguística e sempre haverá uma percepção diferenciada sobre eles.24 Isso também acontece, conforme TP

PT

explicou Villey porque: “Cada um dos direitos humanos é a negação de outros direitos humanos, e praticado separadamente é gerador de injustiças.”25 TP

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Flores (2004) apresenta doutrina mais profunda sobre a polêmica dos direitos humanos na modernidade. Diz ele que existem três visões sobre o assunto e todas impõem racionalidades e práticas diferentes: visão abstrata, visão localista e visão complexa. A primeira não tem conteúdo e centra-se na concepção de direito e do valor da identidade, o que impõe racionalidade jurídicoformal e redunda em práticas universalistas; na segunda, predomina o próprio conceito da pessoa com respeito à de outros, vinculada ao particular da cultura e do valor da diferença, o que redunda em racionalidade material ou cultural, com práticas particulares; e, a terceira, a visão complexa, apresenta uma racionalidade de resistência, e, aqui, comparecem práticas intelectuais, especialmente à universalidade das garantias e ao respeito pelo diferente. Flores esclarece ainda que nas duas primeiras a posição do interlocutor é no centro e isso implica automatização; a última, a visão complexa, ocorre na periferia, onde a posição do interlocutor é fazer parte do 24

HERKENHOFF, João Baptista. Op. cit., p. 316.

25

VILLEY, Michel. O direito e os direitos humanos. Trad. GALVÃO, Maria Ermantina de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 8.

597

conjunto das relações internas e externas numa espécie de ligação a tudo e a todos os demais, por isso, essa implica diálogo e convivência, enquanto as duas outras, supõem dominação e violência.26 TP

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Ficam assim explicados os motivos por que os teóricos e práticos têm discursos distintos que prejudicam ou enfraquecem a efetividade dos direitos humanos. Flores acrescenta: “Então, para entender os direitos humanos na atualidade temos que ser conscientes das relações de força que se dão entre os atores sociais existentes e as possibilidades ou obstáculos postos a formas organizativas alternativas.”27 Ilustra-se com a assertiva de que os práticos dos Poderes Executivo, TP

PT

Legislativo e Judiciário possuem discursos diferentes a respeito dos direitos humanos em relação ao que os teóricos pregam e apelam. Tais falas escondem uma pretensa reação. O Poder Legislativo edita as leis valorando os fatos e diz que aqui acabou o seu papel, de modo que a implementação é problema dos outros poderes. Já o Executivo, atua no cumprimento dessas muitas leis, mas preleciona de que tudo tem que ser feito dentro das possibilidades dos seus recursos financeiros. O Poder Judiciário, então, é convocado para uma atuação mais firme no sentido de uma maior efetivação dos direitos, mas são encontrados órgãos, na maioria das vezes, que interpretam de forma formalista ou legalista e justificam o respeito ao princípio da Soberania dos Poderes e o exercício do papel de cada um. Posições do Poder Judiciário podem até incomodar uns aos outros, mas elas vão até um certo limite que não prejudique a Administração Geral do Estado. Pode-se dizer, ainda, que o Poder Executivo considera até vantajoso, por exemplo, o Poder Judiciário atuar pontualmente para atender certas demandas sociais, como fornecimento de remédios a alguém necessitado, do que atuar no sentido macro de resolver o problema de forma geral. Quer dizer: economicamente, é mais viável a primeira opção pela lógica de que a despesa com um será menor do que com muitos. Os teóricos têm um importante papel nesses discursos. Eles incentivam, teorizam e apelam para distribuição dos direitos estabelecidos na Declaração dos Direitos Humanos de 1948, tratados, Constituição e leis, especialmente para que o Poder Judiciário adote uma posição mais firme diante dos outros Poderes. É o que se chamou de jurisdicização da política.28 O problema, TP

PT

então, é de outra ordem, uma vez que tais poderes não são destinados a fazer a reação no que diz respeito a um efetivo cumprimento dos direitos humanos. Não são papéis deles. Basta verificar a história para ter certeza disso. Certo que pode ter um avanço aqui, outro ali em termos de desenvolvimento, mas ainda continua a característica do paradoxo. Para comprovar tal assertiva, ilustrativamente, em termos de cumprimento da Constituição Brasileira, são várias obras com o 26

FLORES, Joaquin Herrera. Direitos Humanos, Interculturalidade e racionalidade de resistência. In.: WOLKMER, Antônio Carlos (org.). Direitos humanos e filosofia jurídica na América Latina. Trad. PRONER, Carol. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 364-367. 27

FLORES, Joaquim Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 172. 28

Krell cita diversos teóricos que apostam no Poder Judiciário com o novo papel como Celso Campilongo, Tércio Sampaio Ferraz Junior, Álvaro L. Valery Mirra. KRELL, Andreas J. Op. cit., p.93-94.

598

título “[...] Em comemoração aos cinco anos de Constituição”, “[...] aos dez anos de Constituição”, “aos 15 anos de Constituição” e “aos 20 anos de Constituição”. Mas, comemorar o quê? As falas dos teóricos não conseguiram convencer os demais Poderes da República a um efetivo respeito aos direitos humanos em termos mais firmes.29 TP

PT

O problema é de linguagem e para quem se deve falar no sentido de unir ou relacionar convencimento e conversão. A relação entre convencer e converter é formulada pela necessidade de vários convencimentos e uma só conversão. Os convencimentos: de que não existem diferentes espécies humanas para que uns sejam tratados de um modo e outros, de outra maneira; de que a doutrina do legalismo não percebe o homem nas suas complexas individualidades, peculiaridades e necessidades; de que uma melhor interpretação das regras de conduta para efetividade dos direitos humanos é construir o melhor do legalismo e o melhor da doutrina do humanismo. E uma conversão: construir nas pessoas o sentido profundo de justiça que se traduzam no cumprimento dos direitos e na observância dos deveres de cada um, enfim, progresso das relações. O discurso, assim, se faz reação para mudar realidades. Com efeito, é o povo que faz a reação, mas deve ser conduzido por elemento ou alguém que possua uma forte carga de qualidade humana e profundo sentido de justiça. Pessoas como Nelson Mandela, Luther King, Dom Helder Câmara e Gandhi. Elas encarnaram o povo que chama o povo a fazer a verdadeira reação. O importante é constatar que a defesa dos direitos humanos, a sua verdadeira efetividade, para anular o princípio da força contraditória, gira em torno de ideias morais contra ideias imorais, especialmente omissões e desrespeitos, e não propriamente de aplicação de Declaração, Constituições e Leis que levam o povo a fazer as reações pela efetividade dos direitos humanos. Propicia o que se chama de mobilização de forças políticas e econômicas para derrotar o inimigo comum: a opressão da dignidade humana.

5. Nelson Mandela, Martin Luther King, Dom Helder Câmara e Gandhi: para anular o princípio da força contraditória no respeito aos direitos humanos Foram estudados os direitos humanos como meios discursivos, considerando que eles se mostram enfraquecidos, pois os seres humanos estão sempre reinseridos no âmbito de reproduzir e manter a vida. Eles necessitam de pessoas que os impulsionem com características que se manifestam como qualidades humanas de um Nelson Mandela, Luther King, Dom Helder Câmara e Gandhi, porque, para convencer e converter em práticas efetivas, é preciso de mais verbos do que esses cidadãos souberam muito bem utilizar: sentir, convencer, agir, exigir e ofender-se. Hunt disse: “A história dos direitos humanos mostra que os direitos são afinal bem mais defendidos pelos sentimentos, convicções, ações de multidões de indivíduos que exigem respostas

29

Se fosse o contrário, então, se os práticos observassem o que os teóricos ensinam, pregam e apelam o Brasil seria outro.

599

correspondentes ao seu senso íntimo de afronta”.30 Eles, certamente, foram homens de TP

PT

personalidade complexa, dotados de sensos políticos e práticos, com características comuns que buscaram, sem descanso, agir de forma justa e fazer com que as pessoas também assim agissem. Portanto, quando essas vozes firmaram a sua posição de alternativas e obrigações de servir à vida, ao amor, à justiça, custasse o que custasse, muitos os seguiram, pois entenderam que aqueles homens conheciam e confiavam que suas aspirações diversas e complexas eram legítimas. Enfim, a mensagem como vida e o progresso de suas relações com os outros são grandes motivadores das multidões para provar uma reação de maior respeito aos direitos humanos. O fato é que aquelas pessoas englobaram multidões e conseguiram fazer algo em respeito efetivo aos direitos humanos. Eles, essencialmente, entenderam a generosa e complacente natureza do homem para: (a) avaliarem que os direitos humanos têm muitos intérpretes e ideologias, por isso, da necessidade de transitar nas várias correntes e aplicá-las no que têm em comum; (b) reconhecerem os momentos históricos, pois estes mudam, então, reforçam as reivindicações, esbanjam fé que ampliam significados dos direitos e de suas práticas; (c) conhecerem os discursos de pretensões, as diversidades, as incompatibilidades em busca de itinerários de iniciativas; (d) reconhecerem que a existência de direitos que se confrontam não pode ser desculpa para concordar ou conservar o que é mal ou ruim, por isso, enunciam tais direitos, ressaltam os fundamentos, respeitam reservas e oposições. Nessas posturas, eles trabalham bem a relação entre convencer e converter para que as mudanças, de fato, ocorram.

5.1 Dom Helder Câmara O relato de depoimentos de quem conviveu com Dom Helder Câmara são impressionantes.31 Ele foi arcebispo de Olinda e Recife em anos difíceis da ditadura no Brasil a TP

PT

partir de abril de 1964 e era considerado interlocutor da Igreja Católica junto aos governos;32 TP

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pequeno, franzino, feio, era conhecido como “arcebispo das favelas”;33 acolheu na sua casa TP

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perseguidos políticos, ou seja, salvava vidas e defendia a liberdade de pessoas injustiçadas, sendo marginalizado pela hierarquia conservadora da Igreja, desprestigiado em ambientes e governo e contatos com políticos, reclamou de prisões arbitrárias e foi entendendo que não poderia mudar as estruturas a partir dos ricos;34vivia uma atenção especial com outras igrejas e TP

35

religiões; TP

PT

teve cuidado de defender a natureza,

PT

TP

36 PT

já dialogava com marxistas desde os anos 6037

30

HUNT. Op. cit., p. 215-216.

31

BARROS, Marcelo. Dom Helder Câmara: profeta para os nossos dias. São Paulo: Paulos, 2011.

32

Idem, ibdem, p. 27-28;

33

Idem, ibdem, p. 28-29.

34

Idem, ibdem, p. 46-48.

35

Idem, p. 72.

TP

PT

600

e encampou movimento pela não violência ativa com posturas de enfrentamento da injustiça e com riscos.38 TP

PT

Por isso, já nos anos 60, Dom Helder Câmara dizia: “Mais dois terços da humanidade passa fome e um terço se aproveita disso” e, para ele, “[...] o pior inimigo da humanidade não era o comunismo; era a injustiça, a miséria injusta de dois terços da humanidade”.39 TP

PT

Dom Helder Câmara lutou por um mundo mais justo e mais humano. Abraçou essa causa e sacrificou-se por ela. Encontrou na solidariedade social e política a razão de ser da humanidade no trabalho pela justiça por meio de sua análise crítica das estruturas do mundo. O importante foi que ele lançou sementes que conduziram a uma ação por outros, como, por exemplo, o surgimento das escolas e cursos de educação para a paz e de altos estudos da Ciência da Paz, além do planejamento de universidades que conectem o saber científico e experiências de comunidades populares a serviço da paz e da justiça.40 TP

PT

5.2 Gandhi No começo do século XX, Gandhi, um “homenzinho de físico miserável,” abalou a vitalidade do imperialismo britânico como alguém vindo das multidões; em comunhão com estas e falando a sua linguagem, fez com elas percebessem a sua triste condição.41 A sua fala sobre a TP

PT

não-violência e amor garantiram à Índia resistir à Inglaterra e, no final, sua independência. Não só. Era um defensor da natureza, pregava o desapego das coisas materiais e insistia no aumento da dimensão espiritual.42 TP

PT

Sofreu discriminações e humilhações, como Dom Helder Câmara, mas soube transformála no respeito pela dignidade como força de domínio de si, que nenhuma coerção prevaleceu sobre ela, o que o tornou invulnerável junto com os outros que também estavam expostos a injustiças.43 É sua essa frase surpreendente: “A história consiste em fazer certificar interrupções TP

PT

no trabalho contínuo da força do amor”.44 TP

PT

36

Idem, p. 75.

37

Idem, ibdem, p. 131.

38

Idem, ibdem, p. 134-138..

39

Dom Helder Câmara apud BARROS. Op. cit., p. 84-85.

40

BARROS, op. cit., p. 209.

41

NEHRU apud Jordis, e a própria JORDIS, Christine. Gandhi. Trad. NEVES, Paulo. Porto Alegre/RS, L&PM, 2007, p.

8. 42

JORDIS. Op. cit., p. 12.

43

JORDIS, op. cit, p. 85.

44

GANDHI apud Jordis. Idem, p. 89.

601

A luta essencial que marcou a trajetória de Gandhi foi conseguir aliviar, não acabar, a extrema pobreza das aldeias da Índia, pois houve uma campanha para pensar no pobre como ser humano, captar a sua realidade e buscar mudanças do estatuto de vida dessa gente.

5.3 Martin Luther King Martin Luther King foi um pacifista negro que lutou por um sonho de que nos Estados Unidos houvesse uma sociedade justa e livre de preconceitos, mais especificamente uma integração racial, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel de 1964. As ameaças, injúrias, climas de morte daquela época, especialmente dirigidas a seu pai, despertaram nele meditações sobre as contradições sociais que geravam tanto ódio, violência e desumanidade.45 TP

PT

A grande percepção dele foi despertar consciências para combater o medo, pois este paralisava os negros e mantinha-os submissos.46 Assim, desde o episódio de Rosa Parks, em 01 TP

PT

de dezembro de 1955, em que se recusou a sair de sua cadeira no ônibus para ceder lugar aos brancos, do boicote do uso dos ônibus por mais de um ano, a prisão de Luther King, o ataque à residência deste, os negros ficaram mais e mais unidos.47 É sua a frase exemplar: “Devemos TP

responder ao ódio com amor”.

PT

TP

48 PT

Como Dom Helder Câmara, como Gandhi, Luther King foi caluniado por seus compatriotas da área política, mas a sua vida, como mensagem, foi à luta pela justiça social e pela nãoviolência. Como líder, a sua contribuição foi levar milhões de negros americanos a saírem do conforto espiritual, do medo, da resignação e fossem as ruas reivindicar a liberdade.49 TP

PT

Em um dos seus últimos sermões, cujo tema era a sua morte, ele, Luther King, diz que não quer um funeral longo e que se alguém fosse fazer discurso, não mencionasse o Prêmio Nobel, nem os outros trezentos ou quatrocentos prêmios que recebeu, mas (1) que sua vida foi a serviço dos outros; (2) tentou amar; (3) tentou ser direito e caminhar ao lado do próximo (4) tentou ajudar os pobres, amar e servir a humanidade e (5) que lutou pela paz, justiça e direito.50 Enfim, Luther TP

PT

King viu os problemas e soube reivindicar soluções para entabular um processo de mudanças através dos meios legais.

45

MARTIN CLARET (Coleção). Luther King: o redentor negro. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 13-14.

46

Idem, p. 14.

47

Idem, p. 15-16.

48

KING apud MARTIN CLARET, op.cit, p. 16.

49

MARTIN CLARET. Op. cit., p. 19.

50

KING apud MARTIN CLARET, p. 20.

602

5.4 Nelson Mandela Nelson Mandela viveu em um regime devastador durante o apartheid na África do Sul, onde ele e seu povo eram privados dos direitos humanos. Foram 27 anos de prisão em uma cela na Robben Island, por ter dedicado sua vida à política, e onde encarnou valores como a coragem, amor à liberdade, tolerância e abertura de espírito,51 à semelhança de Dom Helder, Gandhi e TP

PT

Luther King. Ele assumia grandes riscos, pois estava consciente ou preparado para as consequências difíceis de enfrentamentos contra situações de injustiça e os imperativos de leis ilegítimas. É sua essa frase que molda as sua existência e faz com que multidões o sigam inclusive de outros países: “Estou convencido de que é a educação, mais do que a natureza, o que molda a personalidade, mas meu pai era orgulhoso e rebelde, e tinha um senso obstinado de justiça que percebo em mim”.52 TP

PT

A luta contra o preconceito foi a sua vida como mensagem, quando entrou para a política e não desanimou e quando teve problemas com autoridades e prejudicou sua atividade profissional. Mandela, então, soube falar a língua de compatriotas para chamar a estes a uma reação, que estes reconsiderassem suas posturas de inferioridade frente aos brancos e reivindicassem o direito de contribuir com o progresso. O resultado foi o desencadear ações espetaculares de iniciativas, do sobressalto da dignidade humana, e, assim, os direitos da maioria da população foram reconhecidos.

6. Conclusão O princípio da força contraditória e sua equação na modernidade mostram-se nas disparidades ou não proporcionalidades existentes na vida social e jurídica quando, por exemplo, há muito progresso científico e tecnológico e pouco desenvolvimento social, ou pouca atenção ou cuidado diminuído com problemas ligados a fome, miséria e outros. Por outro lado, no âmbito das condutas humanas comparece como problema de linguagem, mas especificamente, quando há uma ênfase no legalismo e uma atenção menor ao humanismo. Desse modo, há apelos, doutrinas, teorias para que se cumpram Declaração dos Direitos Humanos, tratados, constituições, leis sobre direitos humanos. Embora convençam, não se convertem totalmente em práticas favoráveis. Isso acontece, também, porque busca manter e reproduzir a sociedade, ou seja, convence-se a respeito do que foi escrito, mas se tem pouco em termos de conversão de iniciativas. Os discursos pró-direitos de uns e pró-direitos de outros enfraquece a doutrina dos direitos humanos, quando a medida do legal é maior do que a medida do justo, logo, mantém-se e

51

LANG, Jack. Nelson Mandela: uma lição de vida. Trad. GOLDONI, Rubia Prates. São Bernardo do Campo: Mundo Editorial, 2007, p. 11-13. 52

MANDELA, Nelson, apud LANG, Jack. Op. cit., p. 25.

603

reproduz-se o sistema, com pouco ou nenhum espaço para uma reação mais efetiva. É justamente por isso que o Poder Judiciário não constitui a classe correta para reagir em nome de uma maior efetividade dos direitos humanos, apesar de avançar lentamente aqui ou acolá, mas nada muito significativo. A visão dos direitos humanos tem várias facetas, todas diferentes e com implicações diversas. Colocar-se no centro deles não é saudável para práticas mais efetivas, uma vez que a pessoa vê os direitos humanos a partir de si. Posicionar-se na periferia, ou seja, fora do âmbito egoísta, permite a pessoa ver os direitos humanos de vários modos e plasmar práticas de mudanças da realidade, ou seja, aproximar o ser da realidade e do dever ser normativo. As mudanças somente são possíveis quando o convencimento liga-se a conversão e podem ser impulsionadas por homens portadores do espírito de reação, como Dom Hélder Câmara, Luther King, Gandhi e Nelson Mandela. Estes incorporaram multidões que chamaram outras para o reconhecimento e efetividade dos direitos humanos. Eles aglutinaram outros homens e mudaram muitas realidades. O que chama a atenção na mensagem deles não é propriamente o que dizem, mas a própria vida e o progresso de suas relações com o sentido profundo de justiça. Assim, pode-se dizer que aqueles cidadãos colheram nas suas épocas o que se melhor obteve do legalismo e o que se melhor construiu do humanismo. Eles não deixaram de observar as leis existentes, mas exigiam que o sentido mais forte de justiça estivesse presente. Assim, ao lembrar-se da frase de Gandhi, diz-se que a história dos direitos humanos consiste em fazer certificar interrupções no trabalho de respeito daqueles e fazer sobressaltar a dignidade humana, então, é preciso dizer: há desrespeito com o problema da fome, da saúde pública, dos encarcerados, da violência, daí, para anular o princípio da força contraditória, é equívoco apostar no Poder Judiciário e nos outros Poderes; é preciso trabalhar os verbos “convencer” e “converter”; desenvolver o sentido forte de justiça; construir normas de conduta que extraiam o melhor do legalismo e o melhor do humanismo e encontrar homens com profundo senso de justiça para ajudar a impulsionar a efetividade dos direitos humanos.

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O adolescente em conflito com a lei sob a perspectiva da justiça juvenil Ana Elvira da Fonseca Lima Ferreira de Carvalho1 TP

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Resumo

Abstract

Esta pesquisa objetiva demonstrar que crianças e adolescentes no Brasil, em especial os adolescentes em conflito com a lei são sujeitos da Justiça Juvenil, à luz da Constituição Federal vigente, das leis nacionais e documentos internacionais sobre Direitos Humanos.

This research aims to demonstrate that children and adolescents in Brazil, especially adolescents in conflict with the law, are subject of Juvenile Justice, in light of the current Constitution, national laws and international human rights documents.

Com este intento, faz-se uma análise da evolução do tratamento jurídico conferido à criança e ao adolescente ao longo da história para reafirmar que atualmente inexiste qualquer relação do adolescente em conflito com a lei, no que tange à sua responsabilização por atos infracionais, com o Direito Penal. Interpretação nesse sentido contrariaria não apenas o espírito do Estatuto da Criança e Adolescente como a própria Carta Magna. Ademais, são aduzidos outros argumentos que reforçam a inclusão do adolescente em conflito com a lei num sistema de Justiça Juvenil. Com fulcro em teses de especialistas sobre o tema, de decisões dos tribunais superiores e das normativas nacionais e internacionais, comprova-se a existência de instituições, autoridades e procedimentos específicos e o caráter pedagógico das medidas socioeducativas previstas pela lei estatutária. Ao final resta clara a compreensão de que os princípios basilares da Prioridade Absoluta e da Proteção Integral, ao elegerem a criança e o adolescente, antes objetos de tutela, à qualidade de sujeito de direitos, os excluíram definitivamente de um contexto criminalizador outrora existente.

With this intent is made an analysis of the evolution of the legal treatment given to children and adolescents throughout history to assert that currently does not exist any relationship of adolescents in conflict with the law in regard to his liability for infractions to the Criminal Law. Interpretation in this sense not only contradict the spirit of the Child and Adolescent itself as the Magna Carta. Furthermore, they are put forward other arguments that reinforce the inclusion of adolescents in conflict with the law in a juvenile justice system. With the fulcrum in theses experts on the subject of decisions of higher courts and the national and international regulations, proves the existence of institutions, authorities and procedures and pedagogical nature of educational measures provided for in statutory law. At the end remains the clear understanding that the basic principles of Absolute Priority and Full Protection, by electing children and adolescents, before objects of protection, the quality of the subject of rights excluded definitely a context criminalizing once existed.

Palavras-Chave: Adolescente; Conflito; Lei; Justiça; Juvenil.

1

Especialista em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura de Pernambuco – ESMAPE e advogada. E-mail: [email protected]

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1. Introdução Com o fim de entender a verdadeira existência da Justiça Juvenil em contraponto à suposta existência da Justiça Penal Juvenil, defendida por autores de peso, é mister primeiramente fazer uma breve digressão da história da criança e do adolescente no Brasil, donde se perceberá o caráter de “objetos de tutela” e não de “sujeito de direitos” atribuídos outrora a esta parcela da população nacional, razão pela qual ainda se discute a natureza dessa Justiça.

2. Fases do Tratamento Jurídico De acordo com Paulo Afonso Garrido de Paula2, a evolução do tratamento jurídico TP

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conferido à criança e ao adolescente passou por quatro etapas, a saber: fase da absoluta indiferença, fase da mera imputação criminal, fase tutelar e fase da proteção integral. A fase da absoluta indiferença corresponde à época da colonização do Brasil, em que não havia nenhum diploma legislativo que regesse as relações e tutelasse os direitos atinentes à população infanto juvenil. Portanto, era esta invisível diante de uma cultura “adultocêntrica” herdada dos países europeus. A fase da mera imputação criminal remetia-os ao Código Criminal de 1830 e ao Código Penal de 1890. A primeira legislação previa a inimputabilidade relativa dos menores de 14 anos e na segunda normativa, a inimputabilidade absoluta dos menores de 9 anos. Infere-se daí que, além da fixação de uma idade muito baixa para fins de imputabilidade, crianças e adolescentes eram, equivocadamente, matéria de Direito Penal e não de um Direito especial que prezasse pelas suas especificidades e protegesse os seus direitos. Ainda no Império, foi instituída no Brasil a “Roda dos Expostos” ou “Roda dos Enjeitados”, local em que eram entregues bebês de mães que não podiam assumir a maternidade, por questões sociais (pobreza) ou morais da época (mães solteiras ou cujos filhos eram oriundos de relacionamentos com os senhores de engenho). Tal sistema era administrado pela Igreja através das Santas Casas de Misericórdia, que a pretexto de proteger, escamoteava uma das violações mais sérias à humanidade, o direito à vida com dignidade. A fase tutelar corresponde ao período republicano, em que foi promulgado, em 1927, o primeiro documento legal destinado aos menores de 18 anos de idade. Surgiu assim o Código de Menores, popularmente conhecido como Código Mello Mattos, em alusão ao primeiro juiz de menores da América Latina. Com o Código nasceu também uma nítida distinção entre crianças e menores, como se pode aferir da leitura do seu art. 1º: “ O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinqüente, que tiver menos de 18 annos de idade, será submettido pela

2

PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Direito da criança e do adolescente e tutela jurisdicional diferenciada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.26, 2002.

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autoridade competente às medidas de assistência e protecção contidas neste Código” (grafia original)3. TP

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O Código Mello Mattos fez um recorte socioeconômico, distinguindo criança de menor e dispensando a este último, tratamento excludente e repressor. Falar na marginalização dos pobres numa época em que a democracia ainda estava no afã de emergir lembra uma saudosa memória de infância do advogado e político pernambucano Paulo Cavalcanti, que apesar de pouca idade à época, já sentia o peso das desigualdades sociais, percebendo-se talvez na condição de “criança”, sem olvidar, no entanto, seus colegas “menores”. Pela narrativa apurada e crítica traz-se à baila um trecho de uma de suas memórias de estudante: Cheguei à escola de espírito leve, mas curtido de experiências, deixando para trás, nos mocambos da Ilha do Leite e dos Coelhos, nos mangues do Capibaribe, um bando de moleque, meus colegas de travessuras, que continuariam pela vida afora a catar caranguejos para comer, ajudando os pais nas árduas tarefas do cotidiano, uns sucedendo aos outros – um ciclo de miséria e sujeira – Onde está, por exemplo, Biu, forte chutador de bola nas peladas de ponta de rua, guapo, moreno, falante? – Que é de Sebastião, exímio nadador nas águas da marégrande, do outro lado do Hospital Dom Pedro II? Perdi-os de vista. Se sobreviveram à lama da Ilha do Leite, não terão resistido, talvez o peso dos anos, adultos precoces, aprendizes de velho nas duras lutas da existência.4 TP

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A essa altura, no cenário internacional já haviam despontado os primeiros documentos que cuidavam dos direitos da criança a exemplo da Carta da Liga sobre a Criança de 1924 e da Declaração dos Direitos da Criança de 1959. Tais documentos foram elaborados no âmbito da antecessora Liga das Nações e da ONU, respectivamente. Porém, por se tratarem de meras declarações, não eram dotadas de coercibilidade, urgindo a necessidade de um documento com essa característica, o que ocorreria posteriormente com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. No Brasil, o Código Penal de 1940 determinou a inimputabilidade dos menores de 18 anos e em 1979, ainda sob o regime militar, surgiu um novo Código de Menores. Apesar de passados mais de 50 anos do Código de Menores de 1927, este “novo” de 1979, não trouxe mudanças significativas e manteve a abordagem repressiva e discriminatória, desta vez com a criação do conceito de “menor em situação irregular”. As crianças e adolescentes abandonados ou oriundos de família pobre eram considerados “menores em situação irregular”, diferentemente daqueles que pertenciam a uma família tida como adequada pelos padrões da época.

Na verdade, quem estava em “situação irregular” era o

3

LORENZI, Gisela Werneck. Uma Breve História dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil. Disponível em: http://www.promenino.org.br/Ferramentas/Conteudo/tabid/77. Acesso em: 22 ago. 2011. TU

UT

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PAULO CAVALCANTI apud HUMBERTO MIRANDA. Crianças e Adolescentes: do tempo da assistência à era de direitos. Recife: Lidergraff Gráfica e Editora, p.84, 2010.

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Estado, totalmente negligente no que tange à criação e implementação de políticas públicas de qualidade voltadas a essa população ainda mais vulnerável por estar em fase de desenvolvimento biopsicológico. Em 29 de novembro de 1985, a Assembléia Geral da ONU, através da Resolução 40/33, adotou as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude, conhecidas como Regras de Beijing ou de Pequim, que surgiram com a idéia de distinguir a administração da justiça da infância e juventude da administração da justiça de adultos. No final da década de 80, a população brasileira foi contemplada com a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. A Constituição Cidadã, como é conhecida, e vige até hoje trouxe grandes avanços, tais como a instituição dos direitos e garantias fundamentais e um capítulo destinado exclusivamente à criança e ao adolescente e atualmente, ao jovem, este inserido no pertinente capítulo através da EC 65/2010. A Constituição Federal de 1988 afirmou ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar os direitos da criança e do adolescente, deixando para trás o anacrônico e repressor conceito de “menor em situação irregular” e criou base, de acordo com o princípio da prioridade absoluta já lançado em seu texto, para a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, futura lei específica que trataria do público infanto juvenil de forma digna e prioritária. Com a Constituição Federal de 1988 nasce a denominada “fase da proteção integral”.

Em 13 de julho de 1990, é promulgada a Lei 8.069, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente que trouxe a doutrina da proteção integral em detrimento da fase tutelar que vigeu, puniu e estigmatizou a vida de muitos “menores”. Conforme esclarecido na obra de Paulo Lúcio Nogueira, o senador Gerson Camata bem expôs que, quando da edição da norma geral de proteção da infância e da juventude, optou-se pela denominação Estatuto em vez de Código porque aquele dá ideia de direitos, enquanto este tem sentido de punir (Diário do Congresso Nacional, 26 de maio de 1990).5 TP

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Também, no âmbito internacional dos Direitos Humanos, nasceu em 20 de novembro de 1989 a Convenção sobre os Direitos da Criança através da Resolução 44/25 da Assembléia Geral das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil em 20 de setembro de 1990.

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PAULO LÚCIO NOGUEIRA apud ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado comentado: Lei 8.069/1990 artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p.74, 2010.

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Diante do exposto, e remontando à história e evolução do tratamento jurídico conferido às crianças e adolescentes no Brasil, percebe-se que foram esquecidos pelo “mundo adulto” e posteriormente enquadrados em normativas penais, até serem objetos de tutela de legislações específicas discriminatórias. Esse triste passado talvez justifique a resistência de algumas pessoas, em aceitá-los e/ou enxergá-los como sujeitos de direitos, estando incluídos num verdadeiro sistema de Justiça Juvenil.

3. Outros Argumentos Pró Justiça Juvenil Para afirmar a existência da Justiça Juvenil seria suficiente invocar a prescrição constitucional que isenta de pena os menores de 18 anos, sujeitando-os a uma legislação especial que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, falar em Justiça Penal Juvenil é afirmar que o art.228 da Constituição Federal é inconstitucional. Porém outros argumentos serão aduzidos a fim de ilidir qualquer dúvida a respeito da inclusão dos adolescentes em conflito com a lei numa Justiça Juvenil ( e não Penal Juvenil). O Estatuto da Criança e do Adolescente em cumprimento aos ditames da Constituição Federal de 1988 trouxe em seu bojo capítulos específicos sobre a prática de ato infracional, as respectivas garantias processuais, as medidas socioeducativas, a Justiça da Infância e da Juventude, a apuração de ato infracional atribuído a adolescente, entre outros temas. O supracitado Estatuto também estabelece, como não poderia deixar de ser, a inimputabilidade penal aos menores de 18 anos de idade, reservando para esse público as suas prescrições específicas, levando em consideração sempre os princípios basilares da proteção integral e prioridade absoluta, dos quais decorrem muitos outros. Passa-se também à análise das normativas internacionais, uma vez cediço que o Brasil é um dos países membros e fundadores da Organização das Nações Unidas – ONU e signatário das suas Convenções, Diretrizes, Regras e Tratados. Quando um instrumento internacional desses é ratificado pelo Brasil, ele incorpora o ordenamento jurídico interno com o status de lei ordinária, e quando o conteúdo desse instrumento internacional versar sobre Direitos Humanos e passar pelo processo prescrito no §3º do art.5º (aprovação em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos, por 3/5 dos votos dos respectivos membros) da Constituição Federal, terá ele, ainda, o status de emenda constitucional. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, estabelece que criança é todo o ser humano menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.

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O item 3 do art. 40 da supracitada Convenção afirma que os Estados Partes buscarão promover o estabelecimento de leis, procedimentos, autoridades e instituições específicas para as crianças de quem se alegue ter infringido as leis penais ou que sejam acusadas ou declaradas culpadas de tê-las infringido. Antes mesmo de ratificar a Convenção, o Brasil já tinha promulgado sua legislação específica, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabeleceu todo um procedimento diferenciado para a apuração de ato infracional com a aplicação de medidas socioeducativas, e não de penas como preceitua o Código Penal. Há que se falar ainda das Regras de Beijing, que entenderam a necessidade de haver uma justiça especializada para crianças e adolescentes, vez que estes são pessoas não incompletas, mas em desenvolvimento e por isso muito mais influenciáveis e vulneráveis ao meio social. O item 18.1 das Regras de Beijing estabelece que “ uma ampla variedade de medidas deve estar à disposição da autoridade competente, permitindo a flexibilidade e evitando ao máximo a institucionalização”. Note-se que o termo utilizado foi “medida” e não “pena”, distanciando-a do sistema penal e evidenciando nitidamente a existência de duas “justiças”, a voltada para crianças e adolescentes e a voltada para adultos. Ademais, as Regras excepcionam a institucionalização, tendo em vista o fim maior da medida, que é o de socioeducar e não o de segregar. Por fim, os Princípios Orientadores das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquencia Juvenil, também conhecidos como Diretrizes de Riad foram adotados pela Assembléia Geral da ONU através da Resolução 45/112 de 1990. O seu item 46 estabelece que “a colocação dos jovens em instituições deve ser uma medida de último recurso que deve durar o mínimo necessário, devendo o interesse do jovem ser o fator de consideração essencial”. Mais uma vez fala-se na excepcionalidade das medidas privativas e restritivas da liberdade, dá-se ênfase ao interesse e opinião do jovem no processo de responsabilização e criase base para a implantação da justiça restaurativa, visando a inclusão social do jovem em conflito com a lei através da sua percepção de utilidade na sociedade. Os princípios da Prioridade Absoluta e da Proteção Integral, que decorrem da Constituição Federal, reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos e não mais como meros “recipientes passivos de direitos”, que devem participar ativamente (protagonismo juvenil) de todos os procedimentos que lhes digam respeito. Além disso, estabelece um sistema de responsabilização dos adolescentes que cometem atos infracionais, assegurando-lhes direitos individuais e garantias processuais. Durante o trâmite da ação socioeducativa, o adolescente infrator, que é o representado nessa ação estatal, tem direito ao devido processo legal e às demais garantias processuais do art.111 do Estatuto que decorrem deste princípio matriz. 612

O direito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa não estão circunscritos ao Direito Penal, sendo eles constitucionais previstos no art. 5º LIV e LV respectivamente. A esse respeito assiste razão a Nagib Slaibi Filho6 ao afirmar que “ o princípio TP

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do devido processo legal, formal e material, é imperativo constitucional para qualquer processo, judicial ou administrativo, inclusive aqueles referentes a atos infracionais praticados por menores”. Superada essa fase, passa-se à análise da natureza das medidas socioeducativas. Tais medidas têm caráter de sanção, porém de natureza pedagógica e de inclusão social, e não de sanção penal. Responsabilizar é, portanto exigir uma resposta, não necessariamente penal. Adota-se aqui o entendimento de Paulo Afonso Garrido de Paula7, para quem, medidas TP

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jurídicas são gênero, dos quais são espécies não somente as penas, sanções e interditos, mas também as medidas de proteção e as medidas socioeducativas do Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste diapasão, esclarecedoras e dignas de nota são as palavras do autor supracitado: Um dos mais graves equívocos foi destacar parte do Direito da Criança e do Adolescente, aquela que trata da responsabilização do menor de 18 anos de idade em razão da prática de conduta descrita como crime e contravenção penal, e qualificá-la como Direito Penal Juvenil. No fundo, embora reconheça as qualidades dos seus mais ardorosos defensores, é porque ainda não enxergam além das penas, das sanções e dos interditos. Estão presos às lições de um velho Direito, que o percebia somente como Público ou Privado, Civil ou Penal, e que tinha nas penas, nas sanções e nos interditos as únicas ordens de respostas possíveis, imagináveis e socialmente eficazes no combate ao descumprimento das normas jurídicas8. (grifo nosso) TP

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Sobra razão à advogada Eliana Athayde9, para quem, medidas socioeducativas são: TP

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Técnicas voltadas para a autocrítica e produzem no sujeito infrator a possibilidade de reafirmação dos valores éticos e sociais, tratando-o como alguém que pode se transformar, que é capaz de aprender moralmente e de se modificar, além de fortalecer os vínculos familiares e comunitários, devendo todas as medidas, inclusive a privativa e as restritivas de liberdade – embora pareça contraditório – serem desvestidas das conotações do direito penal.

Dentre o rol taxativo das medidas socioeducativas, a advertência, a obrigação de reparar o dano, a prestação de serviços à comunidade e a liberdade assistida têm nítido caráter educativo e de inclusão social, em que impera a obrigatoriedade da prática de atividades pedagógicas. Poder-

6

SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à Constituição Federal de 1988 – Aspectos Fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, p.234, 1989.

7

Instituto das Nações Unidas para prevenção do delito e tratamento do delinqüente – ILANUD. Justiça, adolescente e ato infracional. São Paulo: ILANUD, p. 22, 2006.

8

Ibidem.

9

Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED. Justiça Juvenil: a visão da ANCED sobre seus conceitos e práticas, em uma perspectiva dos Direitos Humanos. São Paulo: ANCED, p.25, 2007.

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se-ia ainda argumentar a semelhança com o Direito Penal das medidas socioeducativas de semi liberdade e de internação que restringem e privam respectivamente a liberdade do adolescente. A esse respeito deve-se relembrar que toda medida jurídica, seja ela medida socioeducativa ou pena, é dotada de força cogente, portanto é imposta e seu cumprimento obrigatório. Ademais, não obstante, o inegável caráter aflitivo, através da contenção, a semi liberdade e a internação buscam a reflexão do adolescente acerca da inadequação/ilegalidade do ato infracional praticado, na realização de atividades lúdicas, cursos profissionalizantes, grupos de discussões de temas relevantes e atuais, dentre outras. Pensar numa perspectiva penal contrariaria fatalmente o espírito do Estatuto. É relevante lembrar aqui o “Princípio da Incompletude Institucional”, isto é, nenhuma unidade de atendimento (semi liberdade e internação) deve ser completa/total, permitindo assim que o adolescente realize atividades, freqüente escola, cursos e serviços da comunidade, na tentativa de reinseri-lo gradativamente nela e de trabalhar os estigmas e preconceitos que permeiam o imaginário social. Ademais, a internação, medida socioeducativa mais severa, só pode ser aplicada nas hipóteses taxativas do art.122 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Senão veja-se na íntegra a sua redação: Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves; III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.

Em análise ao inciso II do artigo supramencionado, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo pacificamente que a reiteração, para efeitos de aplicação da medida de internação, não se confunde com a reincidência, sendo necessária a prática de, ao menos, três atos anteriores para a aplicação da medida de internação (STJ, HC 186950-SP). Sendo assim, mais uma característica da Justiça Juvenil que a distancia do Direito Penal. A fim de corroborar com a linha de pensamento desenvolvida, faz-se necessário conhecer o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE que é o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medida socioeducativa.

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O SINASE estabelece parâmetros e diretrizes para a execução de medidas socioeducativas, prioriza as medidas em meio aberto (prestação de serviços à comunidade e liberdade assistida) atendendo não apenas a um reclame das normativas nacionais como também das normativas internacionais a respeito de Direitos Humanos de crianças e adolescente e estabelece a municipalização dos programas em meio aberto. O SINASE concebe o Plano Individual de Atendimento, o chamado PIA, que consiste num acordo entre o adolescente e a equipe multidisciplinar que o atende nos programas socioeducativos. No PIA o adolescente assume compromissos durante a execução da medida, ao passo, que a equipe técnica envida esforços no sentido de viabilizar a concretização desse plano. Vale ressaltar que o adolescente é o personagem principal deste encontro e desta tomada de decisões e deve ser estimulado a ser agente ativo da definição de objetivos pra si mesmo, assim como a expor seus interesses, talentos e sonhos10. TP

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Enquanto o PL 134/09 que institui o SINASE ainda tramita perante o Congresso Nacional, o seu documento teórico operacional já está pronto desde 2006 e sendo devidamente observado por alguns entes federados do país. Ainda, há defensores da Justiça Penal Juvenil que afirmam existir semelhança entre medida socioeducativa e medida de segurança, uma vez que ambas são denominadas “medidas” e principalmente pelo fato de ambas se basearem numa idéia de periculosidade. A esse respeito, Flávio Frasseto11 leciona: TP

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... se nesse caso deixamos de aplicar a medida socioeducativa, porque verificamos que ele não tende a infracionar e que as condições pessoais dele não justificam a aplicação da medida socioeducativa, estamos trabalhando neste primeiro momento com uma idéia de periculosidade como justificadora da medida...

No entanto a tese acima expendida não merece prosperar pelo simples fato de que o Código Penal adota o critério bio-psicológico, em que são levadas em consideração a condição psíquica do sujeito no momento da prática do crime, ao passo que o critério adotado pelo Estatuto para a caracterização da criança e do adolescente é o cronológico absoluto. Assim, criança é aquela que conta com 12 anos de idade incompletos e adolescente é aquele que conta com 18 anos de idade incompletos.

10 Ministério Público do Estado de Rondônia. Manual de Orientações para Programa de Atendimento ao Adolescente Privado de Liberdade: Socioeducar, p.20. 11

Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente – ANCED. Justiça Juvenil: a visão da ANCED sobre seus conceitos e práticas, em uma perspectiva dos Direitos Humanos. São Paulo: ANCED, p.18, 2007.

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Assim, o Código Penal prevê dois tipos de inimputabilidade, o por deficiência ou doença mental e o por idade. Aquele que é inimputável por razões mentais fica sujeito ao Código Penal através de suas medidas de segurança. Já o menor de 18 anos que comete ato infracional, inimputável, fica sujeito integralmente a uma legislação especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente, através de suas medidas socioeducativas. Destarte, existe semelhança apenas quanto à denominação (medida), mas jamais do ponto de vista conceitual. De outra banda, o Superior Tribunal de Justiça sumulou entendimento diverso ao defendido nesta pesquisa, através da Súmula 338 que estabelece que a prescrição penal é aplicável às medidas socioeducativas. Não obstante, ousa-se discordar do entendimento supracitado, com base no argumento de Eduardo Alcântara Del-Campo12, primeiro porque as medidas socioeducativas já tem limite etário TP

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para aplicação, isto é, as medidas em meio aberto cessam aos 18 anos e as medidas em meio fechado cessam aos 21 anos, quando então o adolescente será compulsoriamente liberado. Em segundo lugar, porque tendo a medida caráter educativo, é inconcebível cogitar prescrição ou decadência de um dever (o de educar). Apesar disso, em observância ao Princípio da Intervenção Precoce, o processo de apuração de ato infracional atribuído a adolescente deverá ser célere e sendo o caso de reconhecimento de responsabilidade, a medida socioeducativa deve ser de logo aplicada, sob pena de se tornar inócua. Isso porque, a vida do adolescente pode ter mudado entre a época da prática da infração e o momento em que é julgado, não sendo raro o adolescente já está inserido no mercado de trabalho e/ou ter voltado a estudar. O Superior Tribunal de Justiça vem reiteradamente entendendo que a gravidade do ato infracional, por si só, não justifica a determinação nem a manutenção da medida socioeducativa de internação. Já no Direito Penal, a gravidade do ato autoriza, por si só a determinação da pena privativa de liberdade. A esse respeito, o STJ decidiu que “a prática de ato infracional equiparado ao tráfico de T

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entorpecentes não é suficiente, por si só, com fundamento em sua gravidade abstrata, para T

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determinar a imposição de medida socioeducativa de internação” (STJ HC 182986 / SP). Por fim, há de lembrar-se que nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e Juventude adota-se o sistema recursal do Código de Processo Civil, com algumas adaptações. Havendo incompatibilidade, prevalece, pelo princípio da especialidade, a norma estatutária.

4. Conclusão 12

EDUARDO ALCÂNTARA DEL CAMPO apud MUNIR CURY (Coordenador). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. São Paulo: Malheiros, p.539, 2010.

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Diante de todo o exposto, resta cristalina a opção do constituinte originário de que crianças e adolescentes são matéria do Direito da Criança e do Adolescente, consoante as normativas nacionais e internacionais sobre o tema. Se na prática o sistema de responsabilização do adolescente em conflito com a lei tem muita semelhança com o sistema penal do adulto, por estar faltando àquele, caráter pedagógico, servindo apenas para segregar e excluir o adolescente, numa lógica de descarte social, tal fato não autoriza sua inserção numa Justiça Penal Juvenil. Ao contrário, serve de alerta para a necessidade de um controle social mais eficiente no cumprimento da lei e na implementação e fiscalização das políticas públicas destinadas à concretude da justiça social, do que para simplesmente aceitar a ilegalidade e inserir o adolescente num contexto criminalizador.

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A efetivação do direito humano à terra e o judiciário brasileiro: considerações sobre o papel das decisões jurídicas na realização da política pública de reforma agrária André Luiz Barreto Azevedo1 TP

PT

Resumo Pesquisamos a questão da terra em processos judiciais relacionados a conflitos agrários coletivos em Pernambuco para observar a construção do sentido jurídico que vem sendo aplicado ao "direito à terra" e à estrutura fundiária do campo no Brasil. Para isso, exploramos a concepção de "comunicação", "sentido" e "estrutura social" presentes na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann e na análise sociológica de Sergio Sauer acerca da realidade social do campo brasileiro. Ao questionar em que medida as construções de sentido fixadas nos tribunais por decisões jurídicas refletem os discursos sociais emergentes dos movimentos camponeses sobre o acesso à terra e reforma agrária, observamos a dinâmica do direito à terra ao identificar momentos de ampliação (mudança) e de retração (manutenção) da pauta jurídica. Palavras-Chave: Direito à Terra; Reforma Agrária; Direitos Humanos; Decisão Jurídica; Justiça.

1

Estudante da graduação em Direito na Faculdade de Direito do Recife – Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador-bolsista PIBIC/CNPQ sob orientação do Prof. Dr. Artur Stamford da Silva. Militante do NAJUP- Núcleo de Assessoria Jurídica Popular – Direito nas ruas. E-mail: [email protected] TU

UT

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1. Considerações iniciais É notória a necessidade atual de resolução e pacificação de conflitos fundiários do campo, porém, de forma que se promovam os direitos humanos dos povos do campo envolvidos, em claro cumprimento da Constituição Federal. Percebe-se, nesse sentido, que o Poder Judiciário, organização do sistema de justiça e do Direito, possui papel preponderante na garantia de tais direitos, e mesmo na efetivação da política pública de reforma agrária. A medida necessária para a efetivação dos direitos humanos da população camponesa e para que sejam dirimidos os conflitos no campo, não é a aceleração ou o cumprimento em massa de ações possessórias como expresso em alguns julgados estudados na pesquisa a que o presente trabalho é fruto, o que tornaria o Judiciário como um obstáculo a tal pacificação, mas a real efetivação das políticas públicas de reforma agrária através do devido trâmite das ações de desapropriação. Assim, o Poder Judiciário como órgão prestador do serviço público de justiça tem o dever institucional de tal prestação em consonância com o respeito e efetivação dos direitos humanos fundamentais como meio de garantia da cidadania plena. Segundo a Procuradoria-Geral do INCRA, atualmente existem cerca de 220 ações de desapropriação para fins de reforma agrária paralisadas na Justiça Federal há anos. De acordo com a autarquia, se essas ações fossem julgadas a seu favor, cerca de 11 mil famílias sem-terra seriam beneficiadas com assentamentos rurais. No Estado de Pernambuco, muitas áreas reivindicadas pelos movimentos sociais do campo encontram-se nessa situação de não acesso a política pública de acesso a terra e os demais serviços públicos a ela correlacionados. Quanto à urgência e à necessidade de que se promovam os direitos humanos das populações camponesas por meio da efetivação da Reforma Agrária, o Governo Federal brasileiro também tem indicativos neste sentido, o da efetivação de políticas públicas na zona rural como meio de pacificação dos conflitos no campo. Um grande exemplo é o III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), instituído pelo Decreto nº 7.037/2009, o qual em seu Eixo Orientador II, Diretriz 4, Objetivo estratégico I, ação programática “D” dispõe que a implantação da reforma agrária é forma de inclusão social e acesso aos direitos básicos, articulada com as políticas de saúde, educação, meio ambiente e fomento à produção de alimentos; assim como o fortalecimento da reforma agrária é meio de promoção e de garantia do acesso à terra e à moradia (Eixo orientador III, Diretriz 7, objetivo estratégico III, ação programática “A”) e do acesso à alimentação adequada, segundo os padrões da agricultura familiar e camponesa, os quais promovem a geração de renda no campo e o aumento da produção de alimentos agroecológicos para o autoconsumo e para o mercado local (Objetivo estratégico II, ação programática “C”). Sobre a realidade do contexto fundiário do campo no Estado de Pernambuco, pode-se relatar que praticamente não houve novas desapropriações de terra no Estado nos últimos anos, com exceção de algumas áreas pequenas. Por outro lado, cerca de 16.000 famílias continuam vivendo em barracos de lona em 163 acampamentos em todo o estado aguardando que seja feita a 620

reforma agrária (essas famílias só as ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST, contando-se com as de outros movimentos, segundo o próprio INCRA, são mais de 20.000). Essa situação não se justifica uma vez que, segundo dados recentes do próprio INCRA, existem hoje em Pernambuco 887 grandes propriedades improdutivas, ou seja, 76,2% de todas as grandes propriedades do estado, somando 922.016 hectares, o suficiente para assentar todas as famílias acampadas do estado. Portanto, tendo em vista que muitas ações de desapropriação para fins de reforma agrária encontram-se paradas no Judiciário, e que seu deslinde em favor do INCRA poderia reverberar no cumprimento das diretrizes do PNDH III e da Constituição Federal, para efetivação dos direitos da população camponesa, faz-se necessário compreender quais argumentos são utilizados pelos juízes para não pra dar prosseguimento a tais ações, bem como dar cumprimento a medidas liminares de reintegração de posse de forma célere, em desconsideração a situação de necessidade das famílias acampadas. Este trabalho, portanto, fruto de pesquisa sociológica feita, propõe-se a observar que sentidos jurídicos da “posse”, do “direito de propriedade” e da “função social da terra rural”, elementos jurídicos conteúdo do “direito à terra”, vem sendo dado em processos judiciais relacionados a conflitos agrários no estado de Pernambuco e diagnosticar se o Judiciário estadual vem a ser ou não um obstáculo para efetivação da política pública de reforma agrária e para o atendimento aos direitos humanos básicos de milhares de camponeses sem terra, acampados nos rincões improdutivos no nosso estado.

2. Metodologia utilizada na pesquisa socio-jurídica Na realização de levantamento de dados, no nosso caso de decisões jurídicas, empreendeuse a busca de decisões jurídicas nas quais os tribunais – as organizações do sistema Direito2, TP

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compostas por atores sociais “juízes e desembargadores”, que indicam por meio de seleções de sentido que decisões jurídicas são as “certas” em cada caso, logo que sentidos jurídicos devem prosperar, devem recursivamente ser informados em novas decisões – comunicariam discursos sobre o “direito de propriedade”, a “posse” e a “função social da terra rural”. Desse modo, a fim de atender aos objetivos deste trabalho, para se iniciar as sessões de coleta do corpus da pesquisa e filtragem do material que seria útil para realização desta pesquisa, foram feitas reuniões e idas ao escritório em Pernambuco da Organização de direitos humanos Terra de Direitos, a qual trabalha com assessoria jurídica popular a movimentos sociais do campo e de luta pela reforma agrária no estado, a fim de se ter acesso ao material completo dos processos judiciais de alguns casos chamados “emblemáticos” 3 no estado de Pernambuco. TP

2

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LUHMANN, Niklas. El Derecho de la Sociedad. Mexico: Universidad Iberoamericana, 2005, p. 383-4

3

Em conversas com assessor jurídico da Organização Terra de Direitos, foi explicado que a denominação “caso emblemático” é por eles utilizada para melhor separação dos casos trabalhados e organização das atividades, de modo que forma que “emblemático” é quando o caso é de grande repercussão no estado de Pernambuco, ou até nacional, e envolve graves violações aos direitos humanos, além de juridicamente serem oportunidades de se ter reconhecimento

621

Tais decisões jurídicas coletadas compõem os autos de processos judiciais de reintegração de posse. A justificativa metodológica para tal corte temático quanto ao tipo de processo judicial é a de que o objeto de discussão jurídica neste tipo de processo é a existência ou não do exercício da posse pelo autor da ação judicial e a existência ou não de sua perda mediante “esbulho”, o comumente chamado “invasão”. Como se pode perceber, em casos de conflito agrário, tal tipo de ação possessória envolve peculiaridades que permitem a observação detalhada dos diversos discursos jurídicos significando de diferentes formas os institutos da “posse”, do “direito de propriedade” e da “função social da terra”. Ao se mapear em cada caso os discursos/ decisões jurídicas a serem estudados, cada uma das manifestações processuais (dos advogados dos fazendeiros, dos advogados dos trabalhadores rurais - MST, dos membros do ministério público, dos magistrados) tidas no processo, foi possível a observaçãoda construção do sentido jurídico do “direito a terra”, da “posse” e da “propriedade” feita por cada um dessas decisões e por cada um desse atores sociais). Por fim, relate-se que, dentro do objetivo deste estudo de casos exemplares, foram selecionados na sua íntegra 2 (dois) casos, com seu respectivo processo de reintegração de posse, de forma que nestes selecionou-se os discursos jurídicos pertinentes a esta pesquisa. Assim, em cada um dos 2 casos (Fazenda Gerência Local e Usina Estreliana), selecionou-se cerca de 13 discursos/ decisões jurídicas, fruto de pronunciamentos judiciais de diversos atores processuais, os quais foram mapeados e sistematizados em relatórios preliminares os principais aspectos pertinentes ao objetivo do presente trabalho. Já que o corpus coletado nesta pesquisa é de decisões jurídicas presentes em processos de reintegração de posse de casos escolhidos para estudo, o procedimento de análise estrita e de sistematização desses dados foi a leitura das decisões selecionadas, logo a análise qualitativa sociológica das decisões jurídicas, principalmente com atenção nos elementos da comunicação que auxiliaram à identificação de aspectos relacionados ao objeto desta pesquisa, visto que é justamente destes elementos que se pode observar na sua completude que sentido jurídico e social está sendo construído naquela temática tratada pela decisão.Para tal, usou-se algumas ferramentas de análise, as quais se caracterizará logo abaixo.

3. Dos marcos teóricos e instrumentos conceituais usados O primeiro instrumento conceitual que se pode apontar como fundamental à execução da presente pesquisa foi o conceito de “comunicação” conforme trabalhado na Teoria Social de Niklas Luhmann, ao se compreender que esta está na centralidade da reprodução social, segundo o padrão mudança/estabilidade na fixação de sentido, e se compreender a decisão jurídica como a comunicação do sistema social de sentido Direito. nos tribunais de algumas teses jurídicas novas e pertinentes aos direitos humanos. Os casos selecionados para este projeto foram os que continham esta perspectiva no direito humano à terra e tivessem discussões possessórias.

622

De modo sucinto, pode-se afirmar que o conceito de “comunicação”, segundo apresentado por Luhmann, retira a importância teórica do “emissor” e do “receptor” como condicionante das diversas formas de comunicação (supera a metáfora da transmissão), segundo presente nas teorias tradicionais da comunicação, passando a se compreender a comunicação enquanto evento social, projetando-a assim à categoria de “célula social”, isto é, unidade elementar de todo o sistema social, inclusive da sociedade mundial. Na comunicação, dessa maneira, se abrem espaços para o desenvolvimento das individualidades e, ao mesmo tempo, emergem sistemas comunicativos cuja complexidade é tal que não podem ser satisfatoriamente explicados através dos indivíduos participantes do processo comunicativo 4. TP

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Assim, na teoria dos sistemas de sentido de Luhmann se enfatiza a emergência da comunicação. Partindo dos primados da Escola de Palo Alto e das lições de Gregory Bateson, Luhmann5 enfatiza que não há transmissão, mas se produz comunicação por redundância, TP

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consistindo na criação de um excedente comunicativo, a qual mostra que a comunicação gera sua própria memória, que pode ser evocada em diferentes momentos temporais e de modos diversos, resultando em uma diversidade de sentido. Os sistemas de sentido, por sua vez, são sistemas autopoiéticos de comunicações – produzem comunicações e se vão produzindo a si mesmos no operar recursivo de suas comunicações (materialização do conceito de re-entry). Passando a se tratar as características da comunicação, Luhmann traz que o processo comunicativo está disposto na simultaneidade do ato de comunicar e de entender – na compreensão básica deste processo não há extensão de espaço nem de tempo (o que se diz deve ser imediatamente compreendido). Assim, é um processo que surge na mesma síntese de três seleções: a) a seleção de uma informação (o que se comunica é uma seleção pois em cada contexto comunicativo se da uma gama de possibilidades de informações que alter pode querer dar a conhecer a ego); b) a seleção de um ato de comunicar (alter também dispõe de distintas opções para dar a conhecer, para expressar, entre as que deve selecionar uma); c) e a seleção de um entender (ego também deve selecionar, ser capaz de distinguir entre a informação e o ato de comunicar – qualquer que seja a interpretação, também é uma seleção dado que ego dispõe de um conjunto de possíveis modos de entende-la, entre os quais se inclui a incompreensão) 6. TP

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Já que toda comunicação é um processo, seja qual for a modalidade de comunicação (jurídica, artística, cientifica, econômica, etc) tirando-se o foco sobre a ação de transmissão e do emissor, deve-se atentar que o ato de partilhar a comunicação, feita por alter, não é mais do que uma proposta de seleção, uma sugestão de sentido, somente quando se retoma essa sugestão e se processa o estímulo, por ego, é que se gera a comunicação – nenhum dos três componentes

4

MANSILLA, Dario Rodríguez. Comunicaciones de la organización. Santiago: Alfaromeo, 2009, p. 20.

5

LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 295.

6

MANSILLA, 2009, p. 118.

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isoladamente pode constituir a comunicação, esta só se realiza quando essas três sínteses se efetuam. Deve-se atentar também que, superando a sedutora metáfora da transmissão, na qual a informação transmitida é a mesma para o emissor e para o receptor, a identidade de uma informação deve ser pensada paralelamente ao fato de que seu significado é distinto para alter e para ego, destacando-se a presença da terceira seleção, o entender (ato de entender a informação e o ato de comunicar – a fundação da unidade está posta justo à diferença, pois a comunicação é uma operação provida da capacidade de auto-observação) 7. TP

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O entender, nesse sentido, não é nunca somente a duplicação (aceitação/recharço) daquilo que se comunicou, mas também a ocasião para que a autopoiese do sistema social se realize, de modo que o sistema social de comunicação (Sociedade, Direito, Arte, Economia, Política, etc) elabora seu próprio entendimento e sua própria incompreensão e, para tanto, o sistema cria seu próprio processo de observação e autocontrole. Em relação à informação, ao não ser a exteriorização de uma unidade, deve ser compreendida como a seleção de uma diferença que faz com que o sistema mude de estado e, consequentemente, nele se opere outra diferença. Entretanto, como uma seleção em uma escala de possibilidades, a informação só pode acontecer no sistema de comunicação, que, como sistema autopoiético, é encerrado em suas operações, já que cria os elementos mediante os quais ele mesmo se reproduz. A conseqüência dessa premissa é que isso só pode acontecer em relação a um meio (medium) e com as restrições por ele impostas (isto significa que o sistema de comunicação determina não só seus elementos, que são em ultima instância comunicação, como também suas próprias estruturas). Portanto, os horizontes de seleção já estão predefinidos, de forma que a informação precisa ser efetuada em um contexto de expectativas, para depois obter uma seleção sobre essa margem de possibilidades. O que não pode ser comunicado não pode influenciar o sistema – somente a comunicação pode influenciar a comunicação – em outras palavras, a comunicação bifurca a realidade, cria duas versões de mundo, a do sim e a do não, obrigando, assim, à tomada de decisão 8. TP

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Partindo de que a função da comunicação reside justamente em tornar provável o altamente improvável (o não em sim), a autopoiese do sistema de comunicação denominado Sociedade, na formação da sociedade moderna, há como processo evolutivo de grande significado para a comunicação o desenvolvimento dos “meios simbolicamente generalizados”, símbolos que proporcionam à comunicação a possibilidade de ser aceita9. Estes coordenam seleções que, TP

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certamente, não seriam relacionáveis entre si, e se apresentam como uma quantidade de elementos acoplados de maneira ampla: trata-se de seleções de informação, de atos de comunicar e de atos

7

LUHMANN, 2009, p. 297.

8

LUHMANN, 2009, p. 301.

9

LUHMANN, Niklas. La Sociedad de la Sociedad. Mexico: Universidad Iberoamericana, 2007, p. 249.

624

de entender 10. Eles atingem um acoplamento estrito, unicamente através da forma que é específica TP

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ao respectivo meio: por exemplo, enquanto leis, teorias, preços, etc. Pode-se ainda falar que todo sistema de sentido deve poder distinguir minimamente entre estrutura e operação. Tanto uma como outra mantém sua autonomia em relação à outra, porém devem se conectar de modo tal que os eventos comunicativos produzidos possam confirmar (ou refutar) as estruturas estabilizadas. Isso é que faz com que a comunicação seja contingente: dado ao caráter dinâmico da autopoiese da comunicação e a relativa estabilidade das estruturas, não é possível derivar diretamente as operações comunicativas das estruturas 11. TP

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Desse modo, as estruturas, segundo Luhmann, só podem atuar na limitação estrutural do possível (da contingência nas operações do sistema), porem não indicam qual é a seleção que deve realizar-se na comunicação – oferecem apenas um traço de variabilidade, mas a seletividade se julga finalmente nas operações 12. Conforme se desenvolverá abaixo, é ai onde se produz os limites TP

PT

da decisão jurídica, os limites do que se está disposto a aceitar, bem como a tolerância sistêmica a decisões de conteúdo ainda individualmente indeterminado. Frise-se que o entendimento de tais caracterizações conceituais foi de fundamental importância para o desenvolvimento da presente pesquisa, uma vez que, conforme já enfatizado, o seu objeto de estudo e observação foi a construção do sentido por meio de decisões jurídicas em processos judiciais e, assim, a descrição do comportamento do Judiciário ao ser irritado com determinados temas comunicativos. Já que se parte da premissa teórica de que as decisões são comunicações do sistema Direito, logo a sua unidade operativa, para o devido cumprir do objetivo deste projeto não se poderia, assim, furtar-se à análise das estruturas de sentido do sistema Direito quanto à temática da questão agrária e os conflitos coletivos a ela relacionados. Desse modo, vem a ser mister o entendimento dessas estruturas sistêmicas como limites às decisões jurídicas e ao que pode, em certo momento temporal do sistema, ser recursivamente replicado a partir das irritações comunicativas feitas em processos judiciais – vir a integrar o sentido consolidado na sentença, por exemplo, e constituir-se parte do corpo de jurisprudência. Explique-se: partindo-se de que em um processo judicial de reintegração de posse há a presença de atores processuais como os advogados do MST, os advogados do fazendeiro, os membros do ministério público agrário e os procuradores do INCRA, todos esses trazendo ao processo argumentos jurídicos que refletem os sentidos que carregam sobre o “direito à terra”, pode-se afirmar que há, dessa forma, a irritação do sistema Direito através de seu centro organizativo, o Tribunal, sobre estes diferentes sentidos.

10

LUHMANN, 2009, p. 311.

11

MASCAREÑO, Aldo. Problemas de legitimación en la sociedad mundial. In: Revista da Faculdade de Direito da UFG, v. 33, 2009, disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/revfd/article/view/9855, p. 11. TU

12

UT

LUHMANN, 2007, p. 145.

625

Tais informações, consequentemente, podem vir a ser replicadas recursivamente e se fixar autopoieticamente em posteriores comunicações, à medida que forem selecionadas ou não como relevantes na decisão jurídica do órgão julgador (sentença ou acórdão), que tem status de decisão terminativa, tem o atributo da conclusibilidade. Tal seleção ou não das informações para integrar a continuidade da autopoiese da comunicação jurídica (ser aceita ou recharçada) depende, contingencialmente como dito acima, da estrutura de sentido, da memória do sistema, logo do momento temporal e objetual em que se encontra o sistema social, assim como da situação das integrações sociais e sistêmicas do mesmo. É a partir desta premissa que se observou os limites do sistema Direito, nos casos estudados como exemplares, na aceitação, logo o nível de abertura deste, aos argumentos tidos como propostas de sentido jurídico sobre o “direito de propriedade”, a “posse” e a “função social da terra rural”. Feito a exposição de tais fundamentos conceituais, expor-se-á agora os aspectos da “comunicação” dos quais se partiu para a análise qualitativa de cada decisão jurídica e os elementos da comunicação presentes nesta. Dentro do padrão conceitual médium/forma, a teoria da sociedade de Luhmann parte do padrão sistema(social)/entorno. Ao se dizer que a emergência de um sistema se dá com a complexificação de suas estruturas de sentido e a manutenção autopoiética da identidade de suas operações, deve-se considera que, segundo as premissas sociológicas do referido autor, toda estrutura tem uma função, de modo que a função da constituição de um sistema é a redução da complexidade de seu meio, agora seu entorno – tem-se aqui, no modo de emergência dos sistemas sociais de sentido, a importância conceitual da diferença, enquanto seleção, da seletividade com que o sistema se relaciona com o entorno e com suas próprias relações e elementos internos e da possibilidade de coexistência entre o atual e o potencial 13. TP

PT

Ao se dizer que uma dos requisitos de emergência de um sistema social é a capacidade de atuar contingencialmente, por “contingência” deve se entender a disponibilidade sobre as alternativas de seleção de sentido, sobre os possíveis estados sistêmicos, ao mesmo tempo em que há a obrigação de escolha, de seleção. Tal mecanismo descrito implica no estabelecimento de limites e de critérios de seletividade – um sistema emerge e continua funcionando, reproduzindo-se em cada operação, na definição dos limites com respeito ao entorno. No caso dos sistemas sociais, como já externalizado acima, estes limites são de sentido, de modo que se pode afirmar que os sistemas sociais são constituídos de sentido e se encontram constituídos pelo sentido. Segundo Luhmann, é o “sentido” a estratégia de seleção entre as possibilidades que oferece a contingencia, bem como é a estratégia de seleção com que os

13

MANSILLA, Dario Rodríguez. Invitación a la sociología de Niklas Luhmann. In: LUHMANN, 2005, p. 29.

626

sistemas sociais enfrentam a complexidade do entorno – é o modo com que os sistemas sociais processam a complexidade (por meio de uma complexidade estruturada) 14. TP

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Ainda segundo Luhmann, caso não dispuséssemos do sentido, estaríamos condenados a tomar decisões incoerentes entre si, porque cada vez seria uma seleção desligada tanto das que a antecederam como das que seguiriam depois, o que mostraria a falta de uma estratégia de seleção que faria possível a continuidade das seleções. Isto é possível pela abertura à negação: o sentido emprega a negação para selecionar, porem ao fazê-lo não se perde as alternativas negadas, mas ficam disponíveis a possíveis futuras seleções. Assim, como unidade operativa que distingue e assinala, o sentido é uma forma que se contém a si mesma, ou seja, é a distinção entre distinguir e assinalar, posto que uma forma é uma distinção que volta a reaparecer em si mesma como distinguido 15. Isso explica o mecanismo do “re-entry”, pelo qual permite que as alternativas negadas TP

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em uma decisão voltem a ser selecionadas em próximas decisões (fixações de sentido jurídico, por exemplo), o que se pode considerar como o paradoxo da decisão jurídica. Dado que o sentido é a forma de processamento da complexidade, da abertura de alternativas, as três dimensões básicas da complexidade são também as três dimensões do sentido: a) real ou objetual (dentro/fora); b) social (alter/ego); e c) temporal (passado/futuro). Assim, cada uma dessas dimensões surge necessariamente de uma diferenciação, ou seja, as dimensões do sentido se valem de uma duplicação 16. TP

PT

Para fins deste trabalho, foca-se a dimensão social do sentido, que se refere às pessoas e aos sistemas sociais. Atinge-se a sociabilidade, quando se parte do pressuposto que um é observador e os outros são observadores do que aquele observa, de modo que nunca se está no mundo de maneira frontal e plana, mas em toda dimensão do sentido está inserida uma referência social, o que leva a concluir que cada sistema social é portador de uma reduplicação particular de observação: ego/alter. Os conceitos de alter/ego, destaque-se, não designam aqui papeis, pessoas, ou sistemas, mas horizontes de sentido. Conforme já dito, para a realização do objetivo desta pesquisa, foi feito a observação de como tais decisões jurídicas, enquanto comunicações, se situam na Sociedade e no Direito, tomados como sistemas sociais, e a identificação dos elementos destas comunicações, de modo que se possa analisar os sentidos jurídicos construídos por elas. Assim, passa-se agora a pontuar cada um dos elementos, cada um dos aspectos observados em cada decisão jurídica analisada. Ao se tomar a decisão jurídica como um evento comunicativo dentro do processo judicial, logo como uma proposta de sentido sobre o tema abordado, primeiramente se focou em analisar as seleções de informações trazidas nesta sobre tal tema: sentido que prevalece; fontes anunciadas e citações expressas; citações de outros discursos e manifestações processuais do processo; e 14

LUHMANN, 2007, p. 28.

15

LUHMANN, 2007, p. 38.

16

LUHMANN, 2009, p. 244.

627

considerações sobre os outros atores processuais. Já relacionando tais resultados com a análise do processo como um todo, observaram-se outros elementos da comunicação: as relações interdiscursivas entre as decisões; as fontes anunciadas de informação ao longo das manifestações processuais; os atores processuais e sua representabilidade social presentes no processo; e contexto e a visão ideológica presente nos discursos de cada ator processual. Quanto às seleções de informação trazidas em cada decisão jurídica, o principal aspecto analisado foi que sentido jurídico se proporia a se fixar no caso quanto a “posse”, o “direito de propriedade” e a “função social da terra rural”, mapeando-se assim os argumentos jurídicos mais ressaltados para se “defender” tal proposta de sentido. Na analise mais geral do processo, posteriormente, se relacionou cada uma dessas propostas de sentido trazidas em cada decisão jurídica, cada manifestação do processo, com o aspecto de que ator processual (advogados dos fazendeiros, advogados do MST, por exemplo) a trouxe aos autos do processo, investigando-se assim a dimensão social daquela proposta de sentido, bem como o contexto e a visão ideológica presente naquele discurso. Pode-se ainda dizer que, no tocante a observação e a descrição das citações de outros discursos do processo, ao se falar que se fecha o círculo de um evento comunicativo, emergindo propriamente uma comunicação jurídica, têm-se presente uma seleção de intertextualidade, visto que se faz referencia ou não a outros discursos a depender do reforço que estes podem dar aos argumentos traçados, selecionando-se, por meio da observação das comunicações anteriores, as informações trazidas naqueles como relevantes ou não-relevantes. Caracteriza-se propriamente, na tomada de decisão jurídica, o consolidar de uma proposta de sentido ao selecioná-la para integrar recursivamente a continuidade da autopoiese da comunicação jurídica. Desse modo, tais relações de intertextualidade ou recursividade da comunicação jurídica também serão também analisadas no plano do processo judicial como um todo, a fim de se descrever as “vozes” presentes em cada decisão e como as propostas de sentido jurídico do “direito à terra” de cada ator processual se relacionam até que uma delas se consolide na decisão jurídica final (terminativa), que é a sentença ou o acórdão. É importante, por fim, frisar que, a partir da sua natureza processual, há diferenças entre as decisões jurídicas. Se pela perspectiva teórica luhmanniana toda comunicação jurídica vem a ser uma decisão - visto que esta ocupa a posição de elemento básico do sistema Direito e fundante para suas autopoiesis, construindo a realidade com sentido jurídico a partir do o código básico recht/ unrecht, vindo a ser a observação das comunicações jurídicas anteriormente feitas, serve como “conhecimento” do direito, logo uma operação que gera uma forma – forma de dois lados: o decidido (alternativa selecionada) e as alternativas em potencial (unmarked space) TP

17 PT

- na perspectiva da

ciência do direito processual, pode-se dizer que são estabelecidas diferenças entre as decisões, a partir do papel que ela vem a desempenhar dentro do processo judicial, levando a se atentar à 17

LUHMANN, 2005, p. 369.

628

importância do aspecto da seleção do ato de comunicar, a forma do dar-a-conhecer de cada decisão. Assim, deve-se entender a diferença de natureza jurídica entre as manifestações judiciais materializadas em petições feitas pelos advogados e membros do ministério público e as manifestações judiciais feitas pelos órgãos julgadores materializadas em sentenças judiciais e acórdãos. Enquanto que as primeiras têm uma natureza de trazerem argumentos como propostas de sentido jurídico para serem observadas, apreciadas e consolidadas nas sentenças e acórdãos na defesa de interesses e direitos (advogados e ministério público como custo legis), as manifestações dos órgãos julgadores (juízes e turmas dos tribunais) tem a natureza de serem decisões terminativas, recobertas, com o atributo da “conclusibilidade”. Ao se pronunciarem sobre as comunicações jurídicas anteriores e suas propostas de sentido jurídico dos temas abordados no processo, a partir de observações e de seleções de relevância ou não-relevância, dizendo que sentido deve prevalecer naquele momento temporal, as sentenças e os acórdãos são decisões que põem fim ao processo judicial, havendo a resolução do objeto litigioso do procedimento, tendo a aptidão para ficar acobertada pela coisa julgada18. Faz-se tal destaque em TP

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vistas da relevância e centralidade dessas decisões proferidas pelos órgãos julgadores na realização deste projeto (visto que é nelas que se consolidam em cada processo o sentido jurídico sobre o “direito à terra”), e sua importância para as conclusões e resultados a que se chegou, os quais serão discutidos no próximo item.

4. Da construção dos sentidos jurídicos de posse, propriedade e função social da terra rural em decisões jurídicas Como dito antes, o foco deste trabalho é diagnosticar a construção dos sentidos social e jurídico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra - MST e do Judiciário no tocante ao “direito à terra”, bem como verificar em que perspectivas este é concebido pelos diferentes grupos sociais e organizações do Sistema Direito. Para tal, observou-se processos judiciais, desde sua petição inicial até a decisão terminativa, a construção do sentido jurídico da “posse”, do “direito de propriedade” e da “função social da terra rural” trazidos por cada um dos atores processuais/ sociais que participam dos processos de reintegração de posse, frutos de conflitos coletivos fundiários no campo. A metodologia para a realização da observação de decisões jurídicas neste tema, como visto, foi a de escolha de casos exemplares no estado de Pernambuco, de modo que, com o estudo desses casos é que se pôde chegar aos dados fáticos que levaram às conclusões deste artigo. Para a exposição dos resultados obtidos durante a presente pesquisa sociológica, iremos aqui realizá-la

18

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria do precedente, decisão judicial e coisa julgada. Vol. 2. Salvador: Editora JusPodium, 2009, p. 343.

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por partes, primeiro trazendo os resultados em cada caso estudado, bem como a discussão dos mesmos, e depois se exporá os resultados mais gerais e as reflexões deles decorrentes. Antes de entrar-se no detalhamento de cada caso estudado, entende-se ser importante trazerem-se algumas considerações de ordem preliminar, no tocante a natureza jurídico-processual das ações de reintegração de posse. Ao longo da realização desta pesquisa, na fase dos estudos de bibliografia relacionada, nesse caso de Direito Agrário, constatou-se uma reclamação quase geral de todos os autores sobre a impertinência do processo de reintegração de posse, e até das ações possessórias como um todo, como reguladas no Processo Civil vigente no Brasil, e a realidade social no campo brasileiro de conflitos fundiários. O quadro apontado, em geral, foi de limitação estrutural desse instrumento processual na resolução de tais conflitos. A crítica feita às ações possessórias pelo seu caráter unilateralmente privatista e de tutela patrimonial, segundo Sérgio Cunha 19, refletida no seu rito sumário, pode ser estendida ao Processo TP

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Civil como um todo conforme hoje este está disposto no ordenamento jurídico brasileiro. Em geral, o reclame é de que não há no Processo Civil vigente mecanismos suficientes de redução ou atenuação da desigualdade real das partes, muito menos há tratamento jurídico eficiente para litígios que envolvam uma dimensão coletiva do conflito. Assim, em vários litígios, principalmente nas ações possessórias, que é o caso dos processos de reintegração, o processo civil dá um tratamento individual e privatista a conflitos que são de dimensão coletiva, que não envolvam apenas direitos individuais disponíveis, mas direitos coletivos e difusos, de grupos sociais indeterminados ou indetermináveis. Nas ações possessórias não é diferente: a uma situação de conflito fundiário agrário, que envolve a tutela jurídica de direitos de natureza coletiva e difusa, é dado o tratamento jurídico próprio da tutela de direito privado e individual, o que resulta, pois, na proteção imediata do direito de propriedade privada em detrimento e violação aos direitos humanos coletivos e difusos da coletividade de trabalhadores rurais, submetidos a situações de despejo forçado e violento, com a concessão de medidas liminares inaudita altera partes, em vistas da previsão legal do rito especial e sumário das ações possessórias. Feita tais considerações preliminares sobre o atual estado de impertinência e limitação estrutural das ações de reintegração de posse para a devida resolução dos conflitos agrários no Brasil, passa-se à exposição dos resultados obtidos em cada caso exemplar estudado.

4.1 Caso estudado 1: Fazenda Gerência Local Sucintamente, pode-se afirmar que este conflito envolve a ocupação de um imóvel rural em 2006 por cerca de 50 famílias de trabalhadores rurais sem-terra, por se tratar de terra improdutiva, que, portanto, não cumpre sua função social. Somente em dezembro de 2008 o INCRA concluiu a 19

CUNHA, Sérgio Sérvulo da. A nova proteção possessória. In: STROZAKE, Juvelino (Org.) A questão agrária e a justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 251.

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vistoria técnica, que classificou o imóvel como grande propriedade improdutiva. Atualmente o procedimento administrativo de desapropriação não foi concluído, visto que, mesmo com a publicação do Decreto Presidencial de desapropriação para reforma agrária em outubro de 2010, encontra-se hoje na etapa de realização de vistorias para liquidação do quantum da indenização e posterior emissão das TDA’s, para só depois ser possível o ajuizamento da desapropriação judicial e imissão na posse das famílias já cadastradas no programa federal de reforma agrária. Hoje, a ação de reintegração de posse, processo que foi estudado nesta pesquisa, mesmo com notória decretação pelo Poder Público Federal de a área ser improdutiva e de interesse social para reforma agrária, está com decisão definitiva transitada em julgado, de modo que o mandado de reintegração pode ser a qualquer momento emitido e a ordem de despejo seja cumprida, o que restaria, segundo informação contida nos autos da ação possessória em estudo, a violação dos direitos humanos básicos das mais de 50 famílias que vem produzindo, dentre outras culturas, uva, melancia, tomate e melão, e, nos últimos anos, transformando uma terra abandonada e improdutiva, numa verdadeira produção de cidadania e dignidade. Importante ainda trazer que o presente processo traz como atores processuais: advogados dos fazendeiros, advogados do MST, Ministério Público (Promotor Agrário, Promotor Local e Procurador de Justiça) e Órgãos Julgadores TJPE (primeira instância e segunda instância); já como atores sociais pode-se apontar: Fazendeiro, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Ministério Público e Judiciário estadual. Exposto algumas informações básicas sobre o caso em concreto e relatando-se que o presente caso em estudo apresenta três decisões de mérito das quais partirão as análises e reflexões aqui traçadas, primeiro iremos nos debruçar sobre a análise da sentença, segundo o método de observação acima descrito: ao tomá-la como evento comunicativo jurídico com atributo de conclusibilidade, observou-se que sentido jurídico ela informa prevalecer para o caso, que fontes foram expressamente anunciadas, que citações de outros discursos do processo foram feitas e que considerações sobre os outros atores processuais traçouse. Inicialmente analisando a seleção de informação trazida na sentença sobre que sentido jurídico da “posse”, do “direito de propriedade” e da “função social da terra rural”, a partir da observação de que argumentos anteriormente informados pelos outros atores processuais são ressaltados e destacados, podemos apresentar alguns resultados a que se chegou. Dentro do espaço material de apenas uma folha, na sentença o órgão julgador de primeira instância, confirmando os termos já sugeridos no pronunciamento do Promotor Local (Discurso n. 6) faz a seguinte consideração: as ações de reintegração e manutenção de posse são utilizadas quando o possuidor se sentir esbulhado e turbado na posse, caso em que será reintegrado no primeiro e manutenido no segundo. Para que se configure uma dessas espécies de ações, é indispensável que sejam comprovadas a posse, a turbação ou o esbulho praticado pelo réu, a data da turbação ou do esbulho, a perda total ou parcial da posse. (...) inequívoco o esbulho possessório praticado pelos demandados, nos termos dos arts. 285 e 319 do CPC. De outra parte os autores 631

demonstraram através dos documentos acostados que os imóveis em questão foram adquiridos mediante Escritura Pública no Cartório de Notas desta comarca. (Discurso n. 7 – Sentença – Fl. 171; sem destaques no original)

Entende-se que o sentido jurídico de “posse” trazido no texto transcrito mostra uma compreensão do fenômeno jurídico da posse vinculado a proteção do direito de propriedade, visto que a prova de tal situação no processo é feita pelos autores e aceita pelo juiz por documento comprovador do comercio jurídico e transmissão da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel rural. Dessa forma, tal concepção informada é muito diversa das concepções contemporâneas de ligação do fenômeno da posse sobre imóveis rurais com o cumprimento da função social da terra rural segundo os requisitos constitucionais do art. 186 da Constituição Federal. Atente-se, pois, que a Constituição Federal, lastreada suas normas nos princípios da prevalência dos direitos humanos e da razão de estado no combate à miséria, nem ao menos é citada na decisão em estudo, diferente do Código de Processo Civil, o qual apresenta, principalmente na matéria das ações possessórias, as limitações estruturais já acima apresentadas na resolução de conflitos de natureza coletiva. Ao tratar o caso em tela como uma mera invasão a um bem jurídico patrimonial privado, entende-se também que firma-se um sentido jurídico individualista e patrimonialista da “posse” e do “direito de propriedade”, em desconsideração à dimensão social e coletiva desses fenômenos jurídicos, de necessidade de atendimento aos direitos humanos das centenas de famílias camponesas, porem com atenção a necessidade de manter a (suposta) regular produtividade econômica do imóvel rural (fala-se em suposta porque em relação à mesma área há laudo pericial do INCRA informando que o imóvel é grande propriedade improdutiva. Destaque-se ainda que o sentido jurídico da “posse” e do “direito de propriedade” trazido na sentença são muito mais alinhado às teorias clássicas dos direitos reais (das coisas) do que as que falam da necessidade de observância ao cumprimento da função social nas ações possessórias justamente pelas fontes anunciadas e citações expressas na decisão. Não há qualquer referencia a textos de doutrina jurídica ou de precedentes judiciais e jurisprudenciais, apenas cita-se textos normativos do Código Processual Civil, o que leva a concluir uma possível não compreensão do caráter coletivo do conflito social observado pelo Direito neste caso: um conflito fundiário agrário que envolve uma coletividade de famílias camponesas reclamando a efetivação do seu direito de acesso à terra rural. Sobre as citações de informações trazidas em outros discursos do processo em análise, fechando-se o ciclo comunicacional com o informar recursivo do entender dessas, é pertinente destacar a ênfase dada aos argumentos e aos sentidos jurídicos propostos pelos advogados do fazendeiro em suas manifestações processuais. Partindo da idéia de que a recursividade da comunicação ocorre com a seleção de relevância das informações antes propostas, ou das 632

seleções de intertextualidade expressas, é claro o destaque dado aos argumentos trazidos pelos demandantes (Discurso n. 1 e 4) de que o direito individual de propriedade estava sendo violado o que legitimaria o uso do instrumento processual da ação possessória e realização de um despejo das famílias “invasoras”, em desconsideração, selecionando assim como irrelevante, os argumentos trazidos pela Promotoria Agrária (Discurso n. 3), ao esta informar da necessidade de se atender a função social da terra para haver a tutela possessória, bem como a necessidade de observância do atendimento dos direitos humanos básicos das famílias de camponeses (direito à terra como meio de acesso ao trabalho, à moradia, à educação, à saúde, etc). É uma materialização disso, ao relatar as fases processuais anteriores, o destaque dado com 1 parágrafo só com o conteúdo da petição inicial dos autores, em comparação a uma rápida referência às manifestações da Promotoria Agrária, não se apresentando os argumentos trazido por estas. Comparando a sentença (Discurso n. 7) e a decisão liminar (Discurso n. 2) que concedeu no inicio do processo a reintegração prévia de posse, logo após a petição inicial dos autores, ambas são decisões jurídicas do órgão julgador de primeiro grau, é notório que em pouco o conteúdo trazido na sentença muda em relação àquela (não há qualquer consideração sobre a situação de necessidade das famílias acampadas), mesmo após ter-se havido no processo o pronunciamento da Promotoria Agrária. Apenas para reforçar ainda mais o aqui observado, analisando-se as qualificações dadas na sentença aos atores processuais e sociais que se manifestaram no processo é clara a distinção estabelecida segundo os termos de relevância dada acima expostos: os autores e os advogados dos fazendeiros são nomeados pelos nome apresentado; já os réus, a coletividade de trabalhadores rurais acampados no imóvel e ligados ao MST, são nomeados como “invasores do MST” e “esbulhadores”, esta denominação própria de quem prática o crime de esbulho possessório. Desse modo, pode-se constatar que na sentença do processo estudado (Discurso n. 7) o órgão julgador fixou sentido jurídico da “posse” e do “direito de propriedade” segundo como foi proposto pelos advogados dos fazendeiros, fixando-se o sentido da “função social da terra” como algo que em nada diz respeito a tais casos de conflito agrário e processos de reintegração possessória. Antes de passar-se para a análise das outras decisões de mérito do processo em estudo, cabe-nos fazer alguns esclarecimentos sobre o mesmo: por motivos não sabidos, não houve na primeira fase deste processo (até a sentença), pronunciamento dos advogados do MST, de modo que eles apenas se apresentaram ao processo na fase de recursos, ao interpor uma Apelação (Discurso n.8) para revogar a sentença acima referida, assim como fez a Promotoria Agrária (Discurso n. 9), levando o mesmo a apreciação e julgamento no órgão julgador de segundo grau, o Tribunal de Justiça (TJPE). Nas análises dos acórdãos (decisões de mérito e definitivas de órgãos julgadores de segunda instância – Tribunais) dos recursos de apelação (Discurso n.12) e embargos (Discurso n. 14), por questões metodológicas, iremos realizá-las juntas, visto que se observou que processualmente eles exercem o mesmo papel e inclusive apresentam os mesmos temos quanto ao 633

mérito: o acórdão de julgamento do recurso de embargos tem a função de esclarecimentos sobre alguns pontos entendidos pelo embargante como obscuros ou sem clareza, mas não há qualquer inovação quanto ao sentido jurídico fixado pelo órgão julgador, confirmando e esclarecendo o já informado no acórdão de julgamento do recurso de apelação. Quanto a estes, observou-se que confirmam os sentidos jurídicos já comunicados sentença: o de que a “posse” tem seu conteúdo jurídico vinculado ao “direito de propriedade”, aquela é a condição de fato para utilização econômica da propriedade, de modo que a tutela deste se dá pelas ações possessórias e que a prova do fenômeno da posse é possível por documento público que demonstra formalmente a presença do direito de propriedade, segundo a teórica clássica de Rudolf Ihering, trazida nas manifestações dos advogados dos fazendeiros, principalmente nas contrarazões do recurso de apelação (Discurso n. 10). Da-se assim a fixação de sentido jurídico da “posse” e “direito de propriedade” segundo a perspectiva patrimonial e individualista acima já vista. Tem-se ai, ainda, a desconsideração expressa (não mais implícita como houve na sentença) do elemento “função social” para a caracterização da posse de imóveis rurais, de modo que esta vem a ser um fenômeno jurídico civil e privado, não tendo que ver em nada com o contexto social e a estrutura fundiária no campo do país. Logo, o atendimento à função social não viria a ser mais um requisito a ser apreciado na concessão da medida de reintegração de posse, assim como a função social da terra em nada diz respeito no conceito jurídico do direito de propriedade e a caracterização de sua existência. Estes são os termos usados: Quanto às alegações contidas em ambos os recursos de apelação referentes à questão da improdutividade da terra, entendo que, alem de não ter ficado evidente que o latifúndio não atendia a fim social tal situação deve ser objeto de investigação pelo Poder Público, (...) não cabendo portanto a legitimação de invasões por grupos de movimento social. (Discurso n. 12 – Acórdão do recurso de Apelação – fls. 293-6) Revela-se evidente o esbulho quando da comprovada invasão pelo grupo do MST. No tocante à alegação referente aos direitos fundamentais do embargante, a Constituição Federal, bem como a legislação complementar, asseguram a observância a tais direitos, garantindo a desapropriação legal de imóvel rural para fins de reforma agrária. Cabe ao Pode Público julgar se aterra atende ou não fim social não pode a Justiça amparar invasões desordenadas de grupos sociais a propriedade privadas sob argumento de que a terra é improdutiva. (Discurso n. 14 – Acórdão do recurso de Embargos – fl. 322)

Tais sentidos jurídicos fixados nos acórdãos do recurso de apelação e de embargos, principalmente no primeiro, são reforçados e fundamentados com a citação e referência a outros textos jurídicos. Nestas, usa-se de precedentes jurisprudenciais (jurisprudência do TJMG e TJRS) e de citações de normas presentes em artigos do Código Processual Civil – em relação a estas só reforça o dito acima de selecionar-se um sentido de ação possessória segundo a concepção clássica do processo civil e suas limitações estruturais de tratamento jurídico - bem como com 634

comentários de argumento de ordem social, conforme transcrito, ao afirmar expressamente que no atendimento dos direitos humanos das famílias o Judiciário não teria responsabilidade nessa matéria, apenas o Poder Público (como se o Judiciário e o sistema de justiça não fossem órgãos do Poder Público!). Destaque-se que, tanto nos trechos acima transcritos como nos precedentes jurisprudenciais citados nos acórdãos, ao referir-se ao que foi chamado pelos advogados do MST e pelo Promotor agrário de “ocupações de terra” como “invasão”, tem-se um indício discursivo que ainda mais reforça os sentidos jurídicos, principalmente quanto ao “direito de propriedade”, acima descritos, visto que exterioriza uma concepção privada e individual da propriedade, não relacionada com o atendimento da função social, elemento que a submete ao interesse público e coletivo. Afinal, entende-se, segundo a teoria contemporânea do direito agrário

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, que só se pode invadir algo que PT

exista um dono, sobre o qual haja domínio, incida o direito de propriedade, entretanto, caso se atente aos requisitos da função social da terra, não há direito de propriedade sobre um imóvel rural se ele for improdutivo, sendo um nada jurídico (res nulium), estando este abandonado e sem dono, sendo, assim, passível de ser ocupado por terceiros, principalmente se estes dão-lhe destinação social ao suprirem suas necessidades básicas de alimentação e moradia com o trabalho neste. No tocante a citação de outros discursos já presentes no processo, observou-se que em ambas as decisões (acórdão da apelação e dos embargos) são feitas referências indiretas a argumentações presentes nos discursos dos advogados do MST e o Promotor Agrário e dos advogados dos fazendeiros. Entretanto, como visto acima, em relação aos primeiros a referência intertextual feita é claramente para o rechaço, enquanto que em relação aos dos advogados dos proprietários, para a aceitação, levando a uma consolidação da proposta de informação de sentido jurídico antes apresentada. Pertinente falar que a proposta de informação rechaçada - porem entendida, o que mostra que houve comunicação, apenas não houve aceitação – está presente nas manifestações processuais das razões dos recursos de apelação dos advogados do MST (Discurso n. 8) e da Promotoria Agrária (Discurso n. 9), ambos em muitos pontos trazendo o já comunicado na Promoção Ministerial (Discurso n. 3) da primeira fase, tematizando a necessidade de entender a posse em atendimento aos requisitos da função social da terra rural. Informam ainda sobre a especificidade da posse agrária, ao ser qualificada pela função social e de ter que atender ao bemestar social e coletivo, de modo que a prova da posse não deve se dar pelo título de propriedade, mas por documentos que provem o uso sustentável do imóvel rural. Abordam também que a ocupação pacífica de imóveis rurais abandonados vem a ser um exercício do direito de cidadania pelas famílias camponesas, segundo a sistemática constitucional, assim como que a decisão deve atentar ao conflito social a que o processo está relacionado e às necessidades concretas dos

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TORRES, Marcos Alcino de Azevedo, A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 384

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envolvidos neste. Em contraponto a teoria clássica do direito privado, cita-se como informativo da doutrina jurídica autores como Edson Fachin, Orlando Gomes e Marcello Varella. É nestes termos que tais atores processuais propõem no processo em estudo a construção do sentido jurídico do “direito à terra”. Já quanto à proposta de sentido comunicada pelos advogados dos fazendeiros, aceita pelos órgãos do Judiciário estadual, ela está presente tanto nas contra-razões dos recursos de apelação (Discurso n. 10) como no anterior pronunciamento de réplica à promoção ministerial (Discurso n. 4). Em geral, os argumentos jurídicos trazidos nestas foram os aceitos e consolidados nas decisões com atributo de conclusibilidade dos órgãos julgadores da Justiça, construindo no caso em estudo o sentido jurídico da “posse” segundo a perspectiva clássica presente na Teoria de Ihering, ao vinculála como exteriorização fática do direito individual de propriedade, estando vinculada e presumida por este. Já quanto ao sentido jurídico do “direito de propriedade” há tal consolidação também ao construí-la segundo uma idéia de liberdade de exploração do imóvel rural pelo dono, não devendo em nada submeter-se ao interesse público e coletivo, podendo dispor deste como bem queira. Em tais discursos dos advogados dos fazendeiros, ainda se reforça tais concepções ainda expostas ao caracterizarem as “invasões” de terra como esbulho (crime) e que os “invasores” são “senhores da desordem, da morte, de saques e tudo quanto é de ilícito que possa existir” (Discurso n. 4 – fl. 239). Por fim, analisando-se o processo em estudo e constatando-se que os sentidos jurídicos consolidados foram os comunicados pelos advogados dos fazendeiros, pode-se, segundo a ideia de dimensão social do sentido, concluir que, ao selecionar-se como relevantes os argumentos por estes trazidos como juridicamente relevantes em vez dos apresentados pelos demais atores judiciais, o Judiciário estadual neste caso decide e consolida também a ideologia presente no discurso dos advogados dos fazendeiros, de clara defesa da propriedade privada como direito pleno e ilimitado, em despeito das violações de direitos humanos havidas contra as famílias camponesas e da realização da política pública de reforma agrária.

4.2 Caso estudado 2: Engenho Pereira Grande/ Usina Estreliana A Usina Estreliana teve a falência decretada em 1998. Em agosto de 2002, o INCRA realizou a vistoria técnica nos Engenhos Pereira Grande e João Gomes. Com base nas informações obtidas a autarquia emitiu laudo técnico, constatando a tratar-se de latifúndio improdutivo. Desse modo, em novembro de 2003, é publicado pela Presidência da República o Decreto declarando que as terras do Engenho João Gomes, possuindo 1.249 hectares, são de interesse social para os fins de Reforma Agrária, ajuizando o INCRA, em seguida, a ação de desapropriação (Nº 001463478.2005.4.05.8300). Como forma de atrasar o devido caminhar deste processo de desapropriação a defesa da Usina ingressos com inúmeras ações e recursos protelatórios, resultando hoje em situação de suspensão da desapropriação para reforma agrária, desde 2006. Obtida a suspensão visada a 636

defesa da Usina ajuizou ação re reintegração de posse (Nº 5173-48.2006.4.05.8300), no juízo federal, para desocupação do Engenho, medida que foi concedida em liminar pelo juiz federal, o qual aconteceu em forte e violenta operação policial, deixando as 110 famílias desalojadas e sem moradia, esperando o desfecho do imbróglio judicial em torno da desapropriação que se arrasta até hoje. Visto que o foco de estudo deste caso na presente pesquisa é o processo de reintegração de posse, relata-se que nesta ação possessória estão presentes como atores processuais e sociais os advogados da Usina, os advogados do MST, a Procuradoria do INCRA o Ministério Público Federal e o Judiciário Federal, segundo a idéia acima vista de dimensão social do sentido. Expliquese que, como relatado acima, o presente processo ainda não está findo, visto que após a sentença do Juízo da sétima vara federal, que será logo analisada, foi interposto recurso de apelação pelos advogados do MST, transferindo o julgamento deste para a Primeira Turma do TRF 5ª Região, aguardando julgamento até hoje. Assim, mesmo havendo apenas uma decisão de mérito no processo, iremos observar as relações de intertextualidade e recursividade da comunicação jurídica a partir da sentença, da decisão liminar e do parecer do MPF. Uma observação que se faz é como o procedimento da reintegração de posse segundo hoje disposto no processo civil tende a proteção do direito de propriedade e a se adequar apenas à composição de conflitos individuais: a presença da possibilidade da concessão de medida liminar inaudita altera parte (sem ouvir os demandados) logo no inicio do processo é uma mostra disso. Em lugar disso e evitar-se a possibilidade de despejos forcados, os quais por si só já são uma violação aos direitos humanos dos demandados, segundo um trato coletivo do conflito, um instrumento a ser usado dever-se-ia ser a realização de mediação do conflito, com fim de não perpetrar-se novas violações de direitos. Assim como no caso acima estudados, neste a concessão da liminar de reintegração também foi concedida em poucos dias após o ingresso com a ação pelos proprietários (aqui, em apenas 2 dias) – característica estrutural do procedimento de reintegração como proteção imediata da propriedade. Primeiro, observando-se a construção de sentido jurídico presente na sentença (Discurso n. 8, fls. 291-3), proferida pelo órgão julgador federal de primeira instância, é possível afirmar que não difere muito do analisado do caso estudado no item anterior, o que já dá indícios de um perfil ideológico conservador e protetor da propriedade privada, em matéria de conflitos agrários, por parte do Judiciário, pelo menos no estado de Pernambuco: é notório na fundamentação da decisão um trato formal sobre a caracterização do exercício da posse. Assim, tal órgão julgador em sua decisão jurídica informa que deve prevalecer no processo judicial o sentido jurídico da posse segundo a teoria clássica de Ihering, enquanto expressão fática do direito de propriedade, de forma que a tutela possessória para ser concedida à Usina bastaria que esta atendesse os requisitos tradicionais do Código de Processo Civil, não vindo a ser o cumprimento da função social da terra rural mais um requisito a ser observado. 637

Não considerando para a tomada de decisão e a construção de sentido a situação concreta das famílias de camponeses acampados na área, pelo contrário, criminalizando tal prática de exercício da cidadania e reclame de efetivação de direitos humanos ao caracterizá-la expressamente como “invasão” e “esbulho possessório’, o órgão julgado federal cita como fontes de direito a serem anunciadas apenas textos normativos do Código de Processo Civil e do Código Civil brasileiro, reforçando o resultado exposto acima, visto que apenas enuncia o entendimento da posse sem atenção aos efeitos sociais da decisão, de mera proteção do direito de propriedade privada, condicionantes públicas e sociais desse direito. É importante se destacar que, também neste caso, na parte de mérito da sentença recursivamente referencia-se os argumentos manifestados apenas pelos advogados da Usina, indicando a seleção como não-relevante das propostas de sentido construídas pelos advogados do MST e pela Procuradoria do INCRA. Afirma-se isso a partir da intertextualidade presente na sentença: os fundamentos usados para a tomada de decisão, acima expostos, são os mesmos presentes nos argumentos das petições da defesa da Usina – confrontem-se os trechos abaixo a título de exemplo: O presente feito não visa discutir o mérito daquelas [da desapropriação e do cumprimento da função social], mas resolver a lide estabelecida entre a proprietária das terras e os invasores causadores do esbulho possessório. (Discurso n. 8 – Sentença – fls. 291-3) Mas a imediata reintegração liminar da autora na posse no Engenho não é imposta apenas por estes fatos. Absolutamente. Isso porque os réus, verdadeiros vândalos, desordeiros, criminoso até, estão a destruir indiscriminadamente toda a cana plantada pela autora, causando prejuízos a autora, que só fazem crescer a cada momento. (Discurso n. 1 – Petição inicial – fls. 03-10) Os integrantes do MST instalaram-se e montaram suas tendas de lonas plásticas e permaneceram no imóvel esbulhando-o, destruindo plantações e as benfeitorias ali existentes, num ato criminoso de agressão tal que de forma alguma pode ser tratado com condescendência do Poder Judiciário. (Discurso n. 5 – Réplica às contestações – fls. 193-204)

Os sentidos jurídicos de “posse” e de “propriedade” manifestos pelos advogados da Usina também estão presentes explicitamente de forma destacada e preponderante na decisão liminar (Discurso n. 2, fls. 84-6), ao neste o juízo decisório já firmar que na prova da posse o documento que comprova a titularidade do domínio do imóvel rural já é suficiente, não tendo que se falar em demonstração do cumprimento da função social, e que o ato de ocupação das famílias camponesas sem terra seria ato de invasão, ao supostamente privar de modo violento o proprietário do imóvel de seu domínio, não importa se abandonado. Observe-se que nesta decisão liminar as fontes de direito anunciadas foram apenas os textos normativos do CPC (referindo aos requisitos tradicionais das ações possessórias) e um precedente jurisprudencial do TRF 1ª Região, da mesma forma que, apesar de já haver pronunciamento da Procuradoria do INCRA no processo, não há qualquer

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citação expressa dos argumentos deduzidos por esta, somente os comunicados pela defesa da Usina. Como dito, há também clara relação de intertextualidade entre a decisão liminar e sentença, visto que praticamente todos os argumentos de mérito de uma são repetidos em outra, de forma a se acolher as propostas de sentido jurídico comunicadas pela defesa da Usina, feitas na petição inicial e na réplica à contestação. Após proferida a sentença, os advogados do MST e a Procuradoria do INCRA interpuseram recursos de apelação, sucedido pelas contra-razões dos advogados da Usina. Tendo em vista que tais recursos ainda não foram julgados, não houve decisão definitiva do órgão julgador de segunda instância (neste caso, a primeira turma do TRF 5ª Região) sobre as comunicações jurídicas do processo, observar-se-á aqui o parecer de caráter opinativo feito pelo Ministério Público Federal, pronunciando-se sobre as mesmas. Observou-se ainda que os sentidos jurídicos comunicados nos recursos de apelação dos advogados do MST (Discurso n. 9, fls. 296-329) e do INCRA (Discurso n. 11, fls. 349-364) são retomadas recursivas dos já enunciados em suas manifestações processuais anteriores: na contestação dos advogados do MST (Discurso n. 03, fls. 147-172), na contestação (Discurso n. 4, fls. 173-184) e nos memoriais (Discurso n. 6, fls. 286-9) da Procuradoria do INCRA. Desse modo, para fins metodológicos desta exposição, descrever-se-á tais propostas de sentido jurídico de forma conjunta sobre todas essas manifestações. Sucintamente, observou-se que tais atores processuais, na perspectiva de defesa da efetivação da política pública de reforma agrária e realização do Estado Democrático de Direito ancorado na tutela dos direitos humanos, em suas manifestações ao longo do processo comunicaram propostas de sentido jurídico da “posse” na idéia de, enquanto fenômeno jurídico autônomo, se atentar as peculiaridades da posse agrária, ao ser ela qualificada pelo exercício da função social da terra rural – condicionamento do seu exercício ao uso social e coletivo. É perceptível também a proposta de sentido jurídico do “direito de propriedade” segundo o primado dos interesses públicos, não se aderindo a perspectiva de ele ser um direito privado e ilimitado. Nestas manifestações jurídicas, principalmente nas dos advogados do MST, comunica-se também a necessidade de na tomada de decisão e concessão da tutela possessória atentar-se para a realidade social do conflito agrário: a situação concreta de vida das famílias camponesas acampadas e seu estado de necessidade baseado em graves violações de direitos humanos, bem como a possibilidade de novas violações com a ocorrência de novo despejo forçado. Daí, alega-se a necessidade em primazia de tutelar-se juridicamente os direitos humanos fundamentais até então não atendidos de uma coletividade de camponeses, sendo estes possíveis pelo acesso à terra, em face dos interesses patrimoniais privados de uma Usina, grupo empresarial econômico. É notório também nestas a informação de referências de diversas fontes de direito como jurisprudência dos Tribunais Superiores e Regionais e textos de doutrina jurídica de diversos autores contemporâneos.

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Também neste caso em estudo, tem-se clara desconsideração das propostas de sentido jurídico comunicadas pela defesa do MST e pelos órgãos estatais que se manifestem também de modo próximo (INCRA ou Promotoria Agrária) pelos órgãos estatais do sistema de justiça. Como dito acima, o papel processual do Ministério Público Federal – MPF neste processo judicial de reintegração de posse é apenas opinativo, oferecendo parecer comunicando ao órgão julgador que proposta de sentido jurídico presente no processo ele entende que deve ser consolidada na decisão jurídica de mérito, que julgará os recursos de apelação. Analisando-se as citações expressas informadas no Parecer do MPF (Discurso n. 13, fls. 379-386) de outros discursos presentes no processo judicial em estudo, observa-se apenas a referência ao recurso de apelação da Procuradoria do INCRA, de forma meramente expositiva; à sentença, resgatando-se e analisando-se os fundamentos e sentidos fixados nesta, principalmente quanto ao reconhecimento da existência da “invasão”; e às contra-razões da defesa da Usina, retomando no mérito, com inclusive alegações de relevância jurídica dos argumentos e sentidos comunicados por esta. Nota-se, assim, a ausência de qualquer referência à manifestação e aos sentidos jurídicos construídos pela defesa do MST, o que nos leva a concluir que neste caso não houve sequer o entender para se rechaçar (selecionar enquanto não-relevante) das propostas de informação desta, não houve desse modo efetivamente comunicação, em clara exclusão jurídica da defesa daquele movimento social. A observação acima descrita apenas reforça a análise de que há neste discurso do MPF a informação ao órgão julgador de que se entende que deve prevalecer o sentido jurídico comunicado pela defesa da Usina, ao argumentar-se pela apreciação formal do exercício da posse no caso e pela não apreciação da realidade social em que se contextualiza o conflito fundiário, confirmando que devem prosperar os sentidos já comunicados na sentença. Para tal, faz-se referência a textos da doutrina tradicional do direito civil (Pontes de Miranda, Clovis Bevilaqua e Moreira Alves), ressaltando seu entendimento do fenômeno da posse ainda segundo o revogado Código Civil de 1916, de caráter eminentemente privatista e patrimonial, e a três precedentes jurisprudenciais dos TRF 1ª e 2ª Região. A fim de ilustrar o dito, transcreve-se: A leitura dos autos leva à conclusão de que os elementos do MST invadiram o imóvel. (...) Pontes de Miranda destacou que a eficácia da posse como instrumento jurídico de promoção ou garantia da paz pública. (...) A posse é um direito de natureza especial, uma manifestação de um direito real. (...) Por mais justas que sejam as razões sociais que envolvam o interesse na posse da terra, não se pode permitir que se venha substituir a atuação do Judiciário, invadindo-se terra em detrimento dos interesses e do direito do legitimo proprietário. (Discurso n. 13 – Parecer MPF – fls. 395-400)

Confrontando-se as informações de sentido comunicadas no referido Parecer com as presentes na sentença e nas manifestações dos advogados as Usina, é notório o acolhimento na integra destas, selecionando-se assim também neste caso como não-relevante as propostas de 640

sentido jurídico comunicadas de conteúdo diverso. Desse modo, chega-se ao resultado de que neste processo em estudo também, até o momento atual, prevaleceu e consolidou-se o sentido jurídico da “posse” segundo a perspectiva clássica patrimonial e individualista, vinculando-a ao direito de propriedade, e que os requisitos para a tutela possessória são apenas aqueles presentes no CPC, em desconsideração ao preceito constitucional da função social da terra rural. Sobre o sentido jurídico do “direito de propriedade”, consolida-se também o entendimento deste enquanto propriedade privada, nos moldes já expressos no caso anterior. Por fim, quanto ao sentido jurídico da “função social da terra rural” tem-se que as pessoas jurídicas particulares, principalmente os grupos econômicos não tem qualquer responsabilidade sobre o acesso ou as violações a direitos humanos, sociais e econômicos, principalmente das coletividades do campo. Comenta-se, por fim, o estado em que se encontra o andamento do processo judicial estudado: como dito, os recursos de apelação dos advogados do MST e da Procuradoria do INCRA estão aguardando julgamento da Primeira Turma do TRF 5ª Região desde março de 2010, sem haver desde então qualquer movimentação do trâmite do processo, enquanto que perdura a situação alegada por aqueles de grave violação dos direitos humanos das famílias de camponeses sem terra. Tal caso só vem a corroborar com a postura contraditória já observada do Judiciário em processos que envolvem conflitos fundiários – nas concessões de liminar de reintegração para despejar sumariamente as famílias acampadas constata-se a celeridade na tomada de decisão, enquanto que há grande morosidade nos julgamentos que não exijam mais a tutela do direito de propriedade com urgência (como relatado acima, neste caso, as famílias já foram despejadas na época da concessão liminar, no inicio do processo). Diante da análise dos casos acima estudados, chega-se pois ao resultado de que o Judiciário no estado de Pernambuco, em matéria de conflitos agrários, tem entendimento majoritariamente firmado de que “fazer justiça” nesses casos significa proteger o direito individual de propriedade em face de tutelar os direitos, muitas vezes não atendidos pelas políticas públicas estatais, das coletividades de camponeses sem terra, condenando-os muitas vezes a situações de despejo forçado. Desse forma, chega-se também ao resultado de que há barreiras na seletividade da comunicação destes nos processos judiciais em que são demandados, sendo assim suas vozes não “escutadas” e os sentidos jurídicos construídos em sua defesa não são consolidados nas decisões jurídicas, nem sequer “irritam” o Sistema do Direito.

5. Discussão geral dos resultados A partir dos resultados acima descritos, é possível realizar-se alguns comentários de ordem sociológica geral. Assim, inicialmente se exporá alguns comentários sobre a relação do Sistema Direito e os outros sistemas sociais na Sociedade mundial moderna. A observação e descrição dos sentidos jurídicos construídos nos processos judiciais estudados apenas reforçam as teses já enunciadas sobre a suposta autonomia do Sistema Direito e 641

das suas construções de sentido. Segundo analisa Marcelo Neves

21 TP

, no caso do Direito, a possível PT

presença de mecanismos de desdiferenciação funcional das diversas esferas sociais e da exclusão abrangente e primária no âmbito da reprodução da sociedade não permite a imunização do sistema jurídico perante desigualdades juridicamente, a principio, irrelevantes e consequentemente não se afirma estruturalmente a força normativa do principio constitucional da igualdade. Desse modo, não é suficiente a textualização em dispositivos constitucionais para que algo tão cheio de pressupostos transforme-se em norma jurídica. Se a diferença “inclusão/exclusão” afasta sistematicamente a validade do código jurídico “recht/unrecht”, o principio da igualdade tornase ilusão textual, de modo que a presença sistemática de bloqueios da autonomia do Direito, sistema orientado pelo código “recht/unrecht”, por outras diferenças sistêmicas, como “ter/não-ter”, por exemplo, faz com que a norma da igualdade perca o seu significado funcional, pois é bloqueada no exercício de sua função estrutural de garantir a autonomia operativa do sistema jurídico. Tal quadro é tranquilamente observável e constatável a partir dos resultados a que se chegou nesta pesquisa, senão vejamos. A previsão de interpretação das normas jurídicas que dispõem sobre a temática das relações fundiárias no campo segundo o principio constitucional da função social da terra rural (art. 186 CF) e suas regras regulamentadoras é flagrantemente afastada e invalidada nas decisões jurídicas estudadas nos processos de conflito possessório. Tais bloqueios de aplicação dessa previsão normativa, que constroem sentidos jurídicos diversos e conflitantes com a ordem constitucional, estão diretamente relacionados com construções de sentido social vinculados a perspectivas semânticas e ideológicas desdiferenciadoras e atentatórias à autonomia de funcionamento dos sistemas sociais. Se na Sociedade mundial hodierna, que é descrita como multicêntrica ao haver a plenitude da diferenciação dos sistemas sociais nela, há seu desenvolvimento e reprodução comunicativa primariamente com base nas expectativas cognitivas (economia, ciência, técnica), ainda segundo Marcelo Neves TP

22

, ela pode ser caracterizada por um “primado social da economia”. Não se trataria PT

de um primado “onticamente essencial” nem, pelo menos a principio, a perda da autonomia dos outros sistemas sociais, apenas nos entornos dos diversos sistemas sociais parciais da Sociedade moderna a economia (associada à técnica e à dimensão da ciência a esta vinculada) constitui o mais relevante fator, a ser observado primariamente. Considera-se ainda que se no plano estrutural há o primado da economia, no nível da semântica os meios de comunicação de massa assume o primado na sociedade mundial, ao reproduzir-se tal sistema na base da diferença “informação/nãoinformação”, atuando seletivamente em face das diversas possíveis autodescrições da Sociedade. Dessa feita, pode-se afirmar que a economia, no plano estrutural do sistema social, está equiparada com o mais forte código binário entre um “sim” e um “não”, a saber, a diferença “ter” e “não-ter”. O referido autor ainda afirma que nas situações em que há enormes desigualdades e 21

NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 78.

22

Ibdem., p. 28.

642

ampla exclusão relativamente ao sistema econômico, esse primado pode levar a experiências de desdiferenciação economicamente condicionada no âmbito da sociedade mundial, o que é observável na realidade social e jurídica estudada neste projeto: a estrutura social de desigualdade na distribuição da propriedade da terra no campo brasileiro apenas recursivamente reforça e é reforçada pelos sentidos sociais e jurídicos a ela ligados, o que se pode chamar de “discurso proprietário no Direito”, a qual se explica por razões econômicas e “de mercado”, o que gera tal reforço da economia perante os demais sistemas sociais. Tal percepção ainda é descrita de modo muito feliz pelo autor Marcel Neves

23 TP

, ainda que o PT

objetivo de sua obra seja outro. Ao descrever as assimetrias contemporâneas das formas de direito em relação aos diversos âmbitos funcionais do sistema jurídico, ele destaca que há formas de direito que mediante acoplamentos estruturais fortemente consolidados com outras esferas parciais da sociedade tornam-se dominantes, como é o caso da “propriedade privada”, que serve como acoplamento estrutural entre Direito e Economia, constituindo forma de direito forte, se não a mais forte, na Sociedade mundial. Ele ainda descreve que tal forma de direito afirma-se expansivamente contra as formas de direito do meio ambiente (concernente à relação pessoa-natureza) e dos direitos humanos (da inclusão da pessoa nos sistemas sociais), as quais permanecem no plano operativo, ou, quando se estendem ao nível estrutural, são muito fracos. Desse modo, em um quadro contemporâneo de novos desenvolvimentos da Sociedade mundial em que as formas do Direito estruturalmente acopladas à Economia, determinadas funcionalmente, apresentam-se cada vez mais fortes que as formas do direito político e social do Estado constitucional, os direitos humanos e o direito ambiental, dirigidos à inclusão, constituem formas secundárias de direito na Sociedade mundial. No tocante em especifico às formas jurídicas dos direitos humanos, estas permanecem ainda muito frágeis – na medida em que seu acoplamento com os discursos morais da inclusão da pessoa ou da exclusão do homem é bloqueado pelos discursos do mercado de modo regular e sistemático, elas continuam a pertencer a um das formas de direito predominantemente simbólicas no plano da Sociedade moderna. Assim, é possível observar e compreender como a construção de sentido no Direito, principalmente das formas jurídicas acopladas ao funcionamento da Economia e suas formas estruturais, como a propriedade privada da terra rural, é muito mais influenciada (arrisca-se até dizer que tal influencia chega a ser fortemente estrutural) pelos sentidos sociais relacionados às comunicações econômicas e dos valores simbólicos do mercado, em detrimento das propostas de sentido pautadas na inclusão social e sistêmica das pessoas (que objetiva apenas a preservação da autonomia dos sistemas sociais), conforme foi flagrantemente notório nos resultados a que se chegou nesta pesquisa. O perigo, entretanto, de tal forma de reprodução da comunicação social na Sociedade mundial é o surgimento de fenômenos de desintegração social, o qual se refere à dependência e 23

NEVES, 2009, p. 284-6.

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acesso das pessoas e grupos sociais aos sistemas sociais. Assim, segundo Luhmann

24 TP

, ao o PT

binômio “inclusão/exclusão” referir-se as possibilidades de integração social – esta entendida na teoria sistêmica como “chance de consideração social das pessoas” - só existe inclusão se for possível a exclusão, de modo que, na Sociedade mundial, não participar de um sistema social parcial que tem o primado social como a Economia exclui faticamente a pessoa dos outros sistemas parciais. Ainda sobre tal fenômeno, Dario Rodrigues afirma que nesta situação se gera a tendência de reduzir as pessoas excluídas a uma existência puramente corporal, sem ter acesso aos sistemas funcionais da Sociedade, havendo uma preocupação do Estado, por exemplo, muito mais com sua corporalidade que com sua subjetividade ou com suas oportunidades de inclusão (cite-se, acesso a direitos) 25. TP

PT

Nesse efeito geral e conseqüente da quebra da integração sistêmica (desdiferenciação funcional) à integração social, na esfera da exclusão se desfaz a relevância comunicacional da pessoa, transformada em mero corpo, de modo que os “excluídos” não são considerados pessoas as quais orientar a comunicação, nenhum deles é um alter cujo ato de entender constitua a terceira seleção necessária para que produza comunicação – isso só reforça a tese do referido autor de o código “inclusão/exclusão” poder ser considerado um metacódigo social. Tal realidade social é observável no horizonte particular visibilizado por esta pesquisa: nos processos estudados tais fenômenos de exclusão/ inclusão eram notórios a medida que o pronunciamento judicial estava ligado à defesa do grupos social das famílias camponesas ou dos grupos econômicos do agronegócio. Desse modo, pode-se dizer que, diante da centralidade do direito de propriedade no sistema do Direito e na construção de sentido das normas jurídicas, fenômeno comprovado com a discussão acima feita e os dados expostos, a irritação do Judiciário com discursos e sentidos que vão de encontro a tal perspectiva, principalmente se ligados a “pessoas” (grupos sociais) já anteriormente selecionados como “excluídos”, são, no presente, tidos como meras irritações do sistema, não completando o ciclo da recursividade comunicacional, não vindo a ser propriamente comunicação jurídica. Em outras palavras, pode-se dizer que o Judiciário não “escuta” as “vozes” dos movimentos sociais do campo e suas defesas, invisibilizando-os e não lhes promovendo justiça, ao contrário dos “superintegrados” ao sistema jurídico, coincidentemente os que facilmente acessam as comunicações econômicas. Como um ciclo de implicações complexamente integradas, tal fenômeno de negação, de “não-comunicação” dos considerados “excluídos”, ao negar-lhes a sua possibilidade (também um direito humano) de informar a negação de direitos humanos, básicos a sua existência, apenas só vem a reforçar o quadro anterior e futuro de desdiferenciação sistêmica e superintegração social de 24

LUHMANN, 2007, p. 493.

25

MANSILLA, Dario Rodirguez. Los limites del Estado en la Sociedad Mundial: de la Política al Derecho. In: NEVES, Marcelo (Org.). Transnacionalidade do Direito: novas perspectivas dos conflitos entre ordens jurídicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 40.

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“incluídos”, visto que os “direitos humanos” são funcionalmente ferramentas de manutenção de uma ordem diferenciada de comunicação, respondendo às exigências sociais de autonomia das diversas esferas de comunicação e de discursos 26. A negação da efetividade dos direitos humanos - no caso TP

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específico da realidade agrária, do direito à terra como meio de acesso a direitos sociais, econômicos e culturais (trabalho, educação, saúde, alimentação adequada, etc) – é, portanto, a negação da diferenciação e a repressão da autonomia sistêmica e discursiva por um código concretamente mais forte em um contexto social determinado, hoje os meios simbólicos de Economia, rejeitando também a autonomia do Direito.

6. Conclusões Assim como já discutido e exposto acima, é possível dizer que a partir desta pesquisa e levantamento realizado, neste trabalho chegou-se a resultados que nos permitiram traçar as seguintes conclusões: 1- O sentido jurídico da “posse” vem sendo construído pelos Tribunais vinculado ao direito de propriedade, não a concebendo como instituto autônomo, mas sob perspectiva patrimonialista e individual, dentro do paradigma do Direito Privado liberal-burguês; 2- O sentido jurídico do “direito de propriedade” vem sendo construído pelas decisões jurídicas do sistema de justiça, principalmente no Judiciário estadual e federal de Pernambuco, enquanto direito individual pleno e sem qualquer relação com os interesses coletivos e públicos ou a ordem social, assim sem ter que observar os requisitos da função social, visto que sua tutela jurídica deve se fundar na livre iniciativa e (re)produção econômica de capital; 3- Na tomada de decisão jurídica nos processos de reintegração de posse, em face de atos de protesto de movimentos campesinos, afasta-se a caracterização na lide do conflito a necessidade de caracterização da função social da terra rural, de forma que os pretendentes de tal demanda judicial não precisam provar o seu cumprimento, bastando mostrar o domínio sobre as terras; 4- Trato individual e patrimonial dos conflitos fundiários do campo, afastando-se nos processos judiciais qualquer carga coletiva que haja nestes ou mesmo a dimensão social na qual eles se situam; 5- Já que se adota uma visão individual e privada dos conflitos fundiários, nas ações possessórias a ele relacionadas adota-se o rito processual padrão presente Código de Processo Civil brasileiro, próprio para resolução de conflitos individuais de direito e situado no paradigma da centralidade do direito privado, não adotando assim os instrumentos do processo coletivo e resolução de conflitos coletivos, como a mediação;

26

Ibdem., p. 45.

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6- Ao nesses conflitos sociais se caracterizar também um conflito entre o direito de propriedade privada de uma pessoa e o atendimento dos direitos humanos básicos de uma coletividade de camponeses sem-terra, vem se adotando nas decisões jurídicas do Judiciário em Pernambuco a opção de tutelar o primeiro em detrimento, negação e grave violação do segundo; 7- Alem de na tomada de decisão jurídica se desconsiderar a situação concreta de estado de necessidade e negação de direitos das famílias de camponeses sem-terra, condenando-as a situações de despejos forçados e novas violações de direitos humanos, há também a não consideração dos argumentos de defesa comunicados no processo judicial pelos advogados do MST, como se eles nem sequer “irritassem” o sistema Direito, em claro quadro de desintegração social e exclusão da comunicação.

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U

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O ensino da disciplina de direitos humanos nos cursos de bacharelado em direito André Luiz Lima de Carvalho1 TP

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Giuseppe Tosi TP

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Resumo

Abstract

OBJETO: A freqüência da oferta da disciplina de Direitos Humanos nos cursos de Bacharelado em Direito. OBJETIVOS: Avaliar de forma crítica a oferta da disciplina de Direitos Humanos numa amostragem dos cursos de Direito ofertados em IES Brasileiras. METODOLOGIA: foi um estudo realizado através do levantamento de dados (matrizes curriculares dos cursos de Direito) em sites de IES Brasileiras. O dados coletados foram expressos na forma de gráficos e tabelas por meio do Microsoft Excel 2010, os resultados obtidos foram comentados de forma crítica em relação a trabalhos científicos acerca do tema proposto. Como resultados, o presente trabalho obteve uma coleta de 100 (cem) matrizes curriculares. A amostra por ter sido coletada de forma aleatória foi caracterizada no que diz respeito a localização geográfica das IES e também da natureza das mesmas. As regiões de predominância na amostra foram a sudeste e nordeste, ambas com 35%, seguidas pela região sul com 12%, norte com 11% e centro-este com 7%. Os resultados estão coerentes com a distribuição do curso de direito no país. Quanto à natureza das IES pesquisadas, existiu predominância de IES privadas, fato que corrobora com a expansão do ensino superior brasileiro ter sido ação do crescimento de instituições desse tipo. No que concerne ao aspecto específico da oferta da disciplina de Direitos Humanos, em primeira instância verificou-se o percentual das IES que ofertavam a disciplina, independente se de forma obrigatória ou eletiva. Cerca de 52% ofertava a disciplina, assim, o percentual entre IES com oferta ou não apresentou-se diferente sem significância estatística, aumentar o tamanho da amostra talvez mostre uma realidade diferente da neste estudo encontrada. Quanto a nomenclatura, existe uma diferenciação, porém o nome Direitos humanos predomina. A carga horária é bem variada, no entanto as IES que destinam 80h ou mais estão em minoria. A partir dos resultados apresentados pode-se concluir que novos estudos sobre o tema com maior amostragem precisam ser realizados e que os resultados precisam ser divulgados para sensibilizar os agentes que participam da elaboração dos projetos político pedagógicos dos cursos de bacharelado em direito no que concerne e a priorizar a oferta da disciplina com carga horária adequada e de forma obrigatória. Somente desta forma teremos a garantia que os conhecimentos sobre direitos humanos vão ser tratados pelos novos bacharéis em Direito.

PURPOSE: The frequency of the supply of the discipline of Human Rights in the courses of Bachelor of Laws. OBJECTIVES: To evaluate critically the offer of the discipline of Human Rights in a sampling of courses IES offered in Brazilian law. METHODOLOGY: It will be a study through the analysis of data (curricular courses in Law) in Brazilian IES sites. The data were expressed as graphs and tables using Microsoft Excel 2010, the results were commented on critically about scientific discipline of Human Rights. As a result, this study was a collection of one hundred (100) curricular. The sample having been collected at random were characterized with respect to geographic location of the IES and the nature thereof. The regions of the sample were predominantly to the southeast and northeast, both with 35%, followed by the south with 12%, 11% northeast and center with 7%. The results are consistent with the distribution of law school in the country. The nature of the HEIs surveyed, there was a predominance of private institutions, a fact which confirms the expansion of higher education in Brazil has been the action of the growth of such institutions. Regarding the specific issue of providing the discipline of Human Rights in the first instance there was the percentage of HEIs that offer the discipline, regardless of whether on a mandatory or elective. About 52% offered the course, so the percentage of IEs to bid or not was different was not statistically significant, increase the sample size may show a different reality of this study found. As the nomenclature, there are differences, but the name of human rights prevails. The workload is varied, however HEIs designed to 80h or more are in the minority. From the results presented one can conclude that further studies on the topic with larger sample needs to be done and the results need to be disclosed to sensitize players participating in the elaboration of political projects of teaching bachelor degree in law and in respect prioritize the provision of proper discipline with time and as required. Only in this way we guarantee that the knowledge on human rights will be handled by the new law graduates.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Direito; Ensino.

Keywords: Human Rights; Law; Education. T

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Acadêmico de Direito do Centro Universitário de João Pessoa - UNIPE, integrante do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Email – [email protected] 2

Doutorado em Dottorato di Ricerca in Filosofia pelo Universitá degli Studi di Padova, Itália. Professor Associado II da Universidade Federal da Paraíba , Brasil. Email - [email protected] TU

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1. Apresentação

O exercício do direito é uma prática inerente na sociedade, porém com o desenvolvimento, o ensino formal do mesmo foi desenvolvido, favorecendo assim o crescimento global. A necessidade de termos uma sociedade que consiga apesar das diversidades e contrastes, uma sobrevivência pacífica pode ser obtida pela observância de princípios básicos de respeito aos direitos humanos. Neste contexto, com a organização dos cursos de bacharelado em direito, entende-se como necessidade mínima que tais profissionais tenham seu agir imbuídos pelos respeito aos direitos humanos e para tanto todos os cursos necessitariam ofertar conteúdos sobre o tema. Tal fato encontra amparo legal nas diretrizes curriculares para os cursos de bacharelado. Na observância prática verifica-se que nem todos os profissionais do direito têm consciência da importância do exercício contínuo em reger suas ações pautando as mesmas na observância dos direitos humanos. Tal fato decorre de lacunas no processo formativo? Existe adesão das IES para o ensino formal dos Direitos humanos? O objeto do presente estudo foi justamente averiguar a freqüência da oferta da disciplina de Direitos Humanos nos cursos de Bacharelado em Direito, objetivando-se avaliar de forma crítica a oferta da disciplina de Direitos Humanos numa amostragem dos cursos de Direito ofertados em IES Brasileiras.

2. Oferta da disciplina de direitos humanos por parte dos cursos de bacharelado em direito: uma revisão da bibliografia 2.1 História do Direito O Direito é uma prática social experimentada quotidianamente por todos, de diversas formas. A vida cotidiana acontece em espaços diferentes, estruturados a partir de lógicas próprias e organizadas em função da existência de diversas formas de poder social. Tal poder manifesta-se através de formas sofisticadas, códigos e linguagens próprios, sendo que a estrutura social se organiza, em boa parte, em torno deste, seja através da dominação, seja através da resistência a ela3. TP

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Onde quer que tenham criado unidades de organização social, os homens tem procurado evitar o caos, estabelecido em seu lugar uma forma qualquer de ordem em que se possa viver. Tal anseio por padrões de ordem não representa um traço arbitrário ou dispensável, pelo contrário, dele está profundamente impregnada toda matéria de que se compõem a natureza e da qual faz parte a própria vida humana. A sociedade em geral, dependendo da coexistência e da cooperação de muitos indivíduos e de grupos diversos, tem ainda maior necessidade de organização e de “normas”.4 TP

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

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BODENHEIMER, Edgard. Ciência do direito: filosofia e metodologia jurídicas. Rio de Janeiro: Forense, 1966. T

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Desta forma tornou-se necessário organizar a prática do direito. Para tanto, vários estudiosos ao longo da cronologia da humanidade foram sistematizando definições e conceitos desembocando na constituição formal do ensino do direito que até hoje coexiste. O conjunto de ciências que tem por objeto a realidade histórica e social foi designado pelo nome de ciências humanas ou ciências noológicas (“Geisteswissenschaft”). Com efeito, todas as denominações propostas padecem do mesmo vício: elas são muito estreitas em relação ao objeto que pretendem exprimir, o motivo pelo qual se separa as ciências humanas das ciências da natureza e de fazer delas um todo a parte brotam das profundezas da consciência que o homem tem de si mesmo, o sentimento de que sua vontade é soberana, que ele é responsável por seus atos, que ele pode submeter tudo ao seu pensamento, e pode resistir a tudo, desde que se entrincheire na fortaleza de sua pessoa e que essas faculdades o coloquem a parte do resto da natureza5. TP

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As primeiras faculdades de Direito surgidas no Brasil foram institucionalizadas pela aprovação do projeto de 31 de Agosto de 1826 – convertido em lei em 11 de Agosto de 1827. A idéia de instalar no país institutos de educação superior em Direito nasceu primordialmente da lógica que marcou a independência do Brasil junto a Portugal, em 1822, de autonomia nacional, de construção de uma identidade como tal, e de formar aqui uma “intelligentsia” própria. Em busca de nova lei e consciência, pretendia-se formar uma elite intelectual independente das escolas portuguesas e francesas. Os primeiros cursos, iniciados em 1828, atendiam as necessidades dos alunos e docentes, porém o prestígio buscado por ambos não era o academicismo, mas sim as simbólicas possibilidades políticas futuras do bacharelismo. Outro problema insurgente logo no princípio das atividades acadêmicas no Brasil foi o alto índice de desrespeito dos alunos, falta de habilidade autoritária dos mestres e outros agravantes oriundos do pouco costume ao estudo e reflexão entre os clientes. De forma geral, podemos dizer que a escola de São Paulo tendia de forma mais ampla ao modelo liberal da política, enquanto a de Pernambuco – que em 1854, transferiu-se de Olinda para Recife – era adepta ao perfil doutrinador, analisando de forma mais sócio-racial e neodarwinista o Direito6. TP

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2.2 Aspectos Históricos sobre os Direitos Humanos no Brasil e no Mundo É impossível não reconhecer como uma das características marcantes da nossa época a existência de um grande movimento teórico e prático pela promoção dos direitos humanos, que não se limita às declarações das Nações Unidas e dos outros organismos internacionais, mas que repercute nas disposições constitucionais de grande parte dos Estados, constituindo assim, pela primeira vez na historia da humanidade, um conjunto de princípios norteadores do direito 5

W.Dielthey, Introd. `L`étude des Sciences Humaines, Paris, Presses Universitaires de France, 1942, cap.2.

6

NASPOLINI, Rodrigo. As Primeiras Faculdades De Direito: São Paulo e Recife. Portal Jurídico Investidura, Florianópolis/SC, 20 Mai. 2008. Disponível em: www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/historia-do-direito/5. Acesso em: 13 Nov. 2011. TU

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internacional que alguns juristas definem como “código universal dos direitos humanos”, “direito pan-umano” ou “super-constituição” mundial, distinta e superior ao Direito Internacional7. TP

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Em antropologia, um dos fatores que definem o nível de civilização de um povo é a sua capacidade coletiva de seguir regras. A ordem social esta intimamente ligada a ordem moral, ou ordem normativa, que indica o sistema de valores e normas que governam o comportamento social em um grupo. Normas e valores são preocupações dos sociólogos desde Auguste Comte. O pesquisador R. C. Angell (1958), por exemplo, diz que a ordem moral é o modo pelo qual o dever é organizado, note-se que o autor fala em dever, e não em direito. A síntese do pensamento desse pesquisador é que os grupos são organizados primeiramente de acordo com as tarefas, com os deveres, ou seja com o aspecto utilitário que cada integrante representa para o grupo8. TP

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Na constituição da doutrina dos direitos do homem, assim como nos a conhecemos hoje, podemos identificar a confluência de várias correntes de pensamento e de ação, entre as quais as principais são o liberalismo, o socialismo e o cristianismo social. Estas doutrinas surgiram nos séculos XVII e XVIII, no período de ascensão da burguesia que estava reivindicando uma maior liberdade de ação e de representação política frente à nobreza e ao clero. Elas forneciam uma justificativa ideológica consistente aos movimentos revolucionários que levariam progressivamente à dissolução do mundo feudal e à constituição do mundo moderno. O jusnaturalismo moderno, sobretudo através dos iluministas, teve uma importante influência sobre as grande revoluções liberais do séculos XVII e XVIII. Os documentos históricos para os direitos humanos são: A Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1668, a declaração dos direitos (Bill of Rights) do Estado da Virgínia de 1777, (que foi a base da declaração da Independência dos Estados Unidos de América), a declaração dos direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa de 1789 que foi o “atestado de óbito” do Ancien Régime e abriu caminho para a proclamação da República9. TP

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2.3 A relação entre o ensino do Direito e os Direitos humanos: porque ofertar tal conteúdo? Neste contexto, extremamente vivo e plural de discussão e busca, algumas questões podem ser identificadas como ocupando uma posição central nos debates, sendo expressão de matrizes teóricas e político-sociais diferenciadas. Entre elas podemos citar a problemática da igualdade e dos direitos humanos, em um mundo marcado por uma globalização neoliberal

7

TOSI, Giussepe. Direitos Humanos, Direitos “Humanizantes”. Portal Instituto Norberto Bobbio, São Paulo/SP, mar. 2010. Disponível em: http://norbertobobbio.wordpress.com/2010/03/14/direitos-humanos-direitos- humanizantesgiuseppe-tosi/. Acesso em: 13 nov. 2011 TU

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8

CASTILHO, Ricardo. Direitos Humanos: processo histórico, direitos fundamentais: constitucionalismo contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.

9

TOSI, Giossepe. Direitos Humanos e Ocidente: uma história de emancipação e opressão. Portal DHNET rede Direitos Humanos e Cultura, Natal/RN. Disponivel em: http://www.dhnet.org.br/dados/livros/edh/br/pbunesco/i_01_anotacoes.html#_ftn1. Acesso em: 13 de nov. 2011 TU

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excludente, e as questões da diferença e do multiculturalismo, em tempos de uma mundialização com pretensões monoculturais10. TP

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Diante dessa problemática, acredito, como o sociólogo Boaventura Sousa Santos (2006, p. P

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441-442), professor da Universidade de Coimbra, que é necessária uma ressignificação dos

direitos humanos na contemporaneidade. Sua tese é de que: [...] enquanto forem concebidos como direitos humanos universais em abstrato, os Direitos Humanos tenderão a operar como um localismo globalizado, e portanto como uma forma de globalização hegemônica. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo insurgente, como globalização contra hegemônica, os Direitos Humanos têm de ser reconceitualizados como interculturais11. TP

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A relação entre o ensino formal do direito e a necessidade de difusão no meio dos conceitos pertinentes aos Direitos Humanos é desta forma algo extremamente necessário, tal fato é legitimado pelas Diretrizes curriculares para os cursos de Direito, 2004. Uma vez que o referido documento trata dos conteúdos curriculares que devem ser ministrados, conforme citação a seguir: I – Eixo de Formação Fundamental, que tem por objetivo integrar o estudante no campo do Direito, estabelecendo as relações do Direito com outras áreas do saber, abrangendo, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, estudos que envolvam conteúdos essenciais sobre filosofia, sociologia, economia, ciência política, psicologia, antropologia e ética ; II – Eixo de Formação Profissional, abrangendo, além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação do Direito, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a evolução da ciência do direito e sua aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações internacionais, incluindo-se, dentre outros condizentes com o projeto pedagógico, conteúdos essenciais sobre introdução ao direito, direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito penal, direito civil, direito empresarial, direito do trabalho, direito internacional e direito processual; e III – Eixo de Formação Prática, que objetiva a integração entre a prática e os conteúdos teóricos desenvolvidos nos demais eixos, especialmente nas atividades relacionadas com o estágio curricular supervisionado, as atividades complementares e trabalho de curso, quando exigido, na forma do regulamento emitido pela instituição de ensino12. TP

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Diante do exposto, os cursos de graduação em Direito tem por obrigatoriedade inerente nortear suas disciplinas com a temática dos direitos humanos sem a necessidade de oferta formal da matéria.

10

Vera Maria Ferrão Candau. Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 37 jan./abr. 2008, Direitos humanos, educação e interculturalidade.

11

SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. 12

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Diretrizes curriculares para o curso de Direito. Resolução CNE/CES nº 09 de 2004.

651

3. Metodologia 3.1 Tipo do estudo O estudo foi do tipo experimental descritivo, utilizando levantamento de dados concretos, com abordagem quantitativa e qualitativa dos achados.

3.2 Local do estudo O trabalho foi desenvolvido na Cidade de João Pessoa, Paraíba utilizando a INTERNET e bibliografia do acervo dos autores bem como de Bibliotecas públicas e privadas do estado.

3.3 Tipo de amostra Amostra randomizada formada por matrizes curriculares dos cursos de bacharelado em Direito cujo critério único de inclusão foi a oferta real do curso.

3.4 Etapas do trabalho 3.4.1 Coleta dos dados Na primeira etapa foram coletadas 100 (cem) matrizes curriculares de diversos cursos de Bacharelado em direito, artigos sobre o assunto em estudo foram também separados, bem como livros que possuíssem capítulos sobre a temática do trabalho.

3.4.2 Análise dos dados Os dados foram analisados de forma quantitativa por meio de tabulação dos achados em variáveis específicas com respectivas estratificações: caracterização da amostra (localização geográfica, natureza), oferta da disciplina de direitos humanos (tipo, carga horária, periodização). Análise qualitativa foi também realizada uma vez que os achados quantitativos foram interpretados com auxílio da literatura e comentários subjetivos ficarão evidenciados durante a apresentação dos resultados.

3.4.3 Expressão dos dados O dados coletados serão expressados na forma de gráficos e tabelas por meio do Microsoft Excel 2007, os resultados obtidos foram comentados de forma critica em relação a trabalhos científicos da disciplina Direitos Humanos.

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4. Resultados/Discussão 4.1 Caracterização da Amostra A busca catalogou 100 (cem) matrizes curriculares de cursos de Bacharelado em Direito. Como primeiro resultado realizou-se a caracterização da amostra, uma vez que a mesma, foi coletada de forma randomizada tornou-se relevante desenhar as suas principais características. Conforme apurado a distribuição geográfica está demonstrada no gráfico 1. Diante do resultado verificou-se a presença de representação de todas as regiões brasileiras, com predominância da região Sudeste e Nordeste. Gráfico 1– Distribuição geográfica das IES que constituíram o grupo de pesquisa sobre oferta da disciplina sobre a temática DIREITOS HUMANOS

Fonte: Próprios autores, 2011

No que tange a natureza das IES pesquisadas, foi também averiguado o desenho da amostra. Aconteceu uma predominância de IES privadas, resultado que corrobora com XXX (Buscar referência sobre expansão do ensino superior ser via IES particulares), que coloca uma franca expansão do ensino superior brasileiro pela rede particular. O gráfico 2 demonstra os resultados quanto a natureza das IES representadas no presente estudo. Gráfico 2 – Natureza da IES

Fonte: Próprios autores, 2011.

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4.2 Expressão dos dados relacionados diretamente a oferta da disciplina de Direitos Humanos Visando expressar os dados relacionados diretamente a oferta da disciplina de Direitos Humanos, o primeiro foco do presente trabalho foi averiguar dentro da amostra quantas IES ofertam a disciplina de Direitos humanos. O Gráfico 3 demonstra que houve predominância da oferta apesar de uma diferença em termos percentuais de apenas 4%. O fato desperta nos autores o desejo de ampliar o número da amostra para averiguar de fato se existe um desenho predominante ou não no que diz respeito à oferta da disciplina em questão. Gráfico 3 – Distribuição nas IES pesquisadas sobre a oferta ou não de Disciplinas sobre a temática Direitos Humanos

Fonte: Próprios autores, 2011

Dentro das 52 (cinquenta e duas) IES que ofertam a disciplina foi averiguado pela pesquisa que existe uma diversidade em relação à nomenclatura da disciplina, tal fato pode refletir as diferenças regionais bem como as correntes ideológicas do grupo responsável pela elaboração de cada Projeto Político Pedagógico. As diferentes nomenclaturas encontradas foram expressas por meio do gráfico 3. Gráfico 3 – Distribuição das Diversas Nomenclaturas das Disciplinas sobre a temática Direitos Humanos

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Fonte: Próprios Autores, 2011.

5. Considerações finais A partir dos resultados apresentados pode-se concluir que novos estudos sobre o tema com maior amostragem precisam ser realizados e que os resultados precisam ser divulgados para sensibilizar os agentes que participam da elaboração dos projetos político pedagógicos dos cursos de bacharelado em direito no que concerne e a priorizar a oferta da disciplina com carga horária adequada e de forma obrigatória. Desta forma teremos a garantia que os conhecimentos sobre direitos humanos vão ser tratados pelos novos bacharéis em Direito.

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A violação do direito humano à educação pelo estado: a teoria da ação comunicacional habermasiana como paradigma de solução Antônio Germano Ramalho1 TP

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2

Ana Carolina Gondim de A. Oliveira TP

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Resumo

Abstract

A Constituição Federal (1988) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) prescrevem que o Estado tem a função de gerir e garantir o atendimento aos serviços essenciais de educação, no entanto, descumpre o seu papel constitucional e age com violência ao não efetivar a aplicação dos recursos previstos para este desidrato. Este artigo tem como objetivo geral apontar a violência institucional como uma das maiores transgressões a conquista dos direitos humanos, dentre eles o direito a educação; investigar suas possíveis causas a partir do não cumprimento da aplicação dos recursos públicos previstos em orçamentos no sistema educacional público, comprovando a ineficiência do Estado a partir da prática de atos de desrespeito ao cidadão, que se transformam em obstáculo ao desenvolvimento e a cidadania, porquanto, conquistas sociais garantidas pelo direito, e, nesta perspectiva, propõe a aplicação da teoria da ação comunicativa habermasiana como alternativa de mudança. Neste contexto será observado o fator de emancipação política da pessoa humana pela educação a partir do processo do agir comunicacional para a efetivação dos direitos humanos, para tanto, a metodologia utilizada na confecção da pesquisa será a hermenêutica habermasiana, através de revisão bibliográfica em pesquisa qualitativa.

The Federal Constitution (1988) and the Law of Guidelines and Bases of National Education (1996) prescribe that the state has the function to manage and ensure compliance to the essential services of education, however, violates their constitutional role and act Violence does not effect the application of resources for this dehydrates. This article aims to point out the general institutional violence as a conquest of greater transgressions of human rights, including the right to education, to investigate possible causes of non-compliance from the use of public resources provided for in budgets in the public school system, proving the inefficiency of the state from the practice of acts of disrespect to the citizens, who become an obstacle to development and citizenship, because, right guaranteed by the social conquests, and from this perspective, we propose the application of Habermas' theory of communicative action as an alternative of change. In this context it will be observed the factor of political emancipation of the human person from the education process of the communication act for the realization of human rights, for both the methodology used in making the research is hermeneutics Habermas, through literature review in qualitative research.

Palavras-Chave: Direito à institucional; Ação comunicativa.

Keywords: Right to education; Institutional violence; Communicative action.

educação;

Violência

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Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutorando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador na área de Direito Público e Direito Educacional. [email protected]. TU

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2

Especialista em Direito pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ) e mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal da Paraíba no Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB). Pesquisadora na área de Teoria e História do Direito, Gênero e Biodireito. [email protected] TU

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1. Introdução Nos últimos vinte e três anos de promulgação da Constituição Federal (1988) são inegáveis as conquistas sociais e econômicas, notadamente na área da educação, em função de diversos programas sociais que resultam de políticas públicas implantadas pelo Governo, mesmo que ainda se tenha muito que fazer. Apesar de todas as conquistas é notória a incompletude dessas ações. E tal incompletude sofre diversas influências, através de ocorrências que se registram no âmbito do Poder Público e que nesta perspectiva aparece como a fonte inicial produtora de omissões, deixando de observar os limites da condição de instituição e de autoridade que pratica atividades discricionárias3, ocorrências TP

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que se alastram em todos os entes administrativos, desde o poder central até o poder local, sem que a sociedade exerça controle nas práticas que se caracterizam em abuso de poder4 revelando a TP

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ineficiência da máquina administrativa pública. As omissões contra as políticas educacionais são atos de violência atuando no reverso dos objetivos das Políticas Públicas planejadas e transformadas em direito educacional, que, no entanto, não assistem como deveriam à sociedade brasileira, atingindo mais diretamente as crianças e os adolescentes. Tal situação configura o descumprimento da legislação constitucional da educação e ainda aos elementares princípios da Administração Pública, conforme reza o art. 37 da Constituição Federal Brasileira (1988), tais como a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. A educação se insere como um dos mais importantes temas nos processos de socialização, não através da transmissão de conhecimento quantitativo ao educando, mas à medida que consegue criar “[...] nele (educando) um estado interior e profundo, uma espécie de polaridade de espírito que o oriente em um sentido definido, não apenas durante a infância, mas por toda vida”, de acordo com os argumentos de Morin (2010, p.47). Apesar desta perspectiva defendida por Morin (2010) o que se registra em pleno século XXI, principalmente no interior do Brasil, são situações alarmantes ao se constatar que agentes políticos, pessoas que recebem a confiança do eleitor para representá-lo, na ação legislativa ou nas funções

3

No âmbito da Administração Pública discricionariedade não significa arbitrariedade. A compreensão tem que se pautar a partir do vocábulo que significa “faculdade” ou “arbítrio” como subjetividade da compreensão de liberdade, amparada pela oportunidade de escolha que é oferecida ao agente público e, que nesta condição, se obriga a fazer uma escolha, no entanto, sem deixar de observar fatores que legitimarão sua ação: conveniência e oportunidade como princípios básicos do agir discricionário. Regniér (1997, p. 28) sintetiza esta teoria: “[...] discricionariedade – considerados aqueles limites – encerra compreensão em torno da possibilidade de escolha conferida ao agente administrativo de agir ou não agir numa determinada direção, consultando para isso a oportunidade e a conveniência da medida”.

4

A razão do poder que se amolda ao consentimento da doutrina em favor da Administração Pública é a que reconhece este instituição como meio de realização dos interesses coletivos. Desta maneira, a Administração Pública para cumprir suas finalidades exerce uma supremacia sobre as pessoas que se tornam seus administrados. Isto não significa dizer que a Administração Pública atuará de forma absoluta, pois, a partir de qualquer ato praticado que não preencha os requisitos principiológicos, tanto os princípios do Direito quanto os princípios normativos constantes na Constituição Federal, pode ser caracterizado como “abuso de poder” e assim se enquadrar nas situações previstas na Lei nº 4.898/65.

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executivas, ainda se postam como o principal entrave para a execução das políticas públicas criadas para o setor educacional, notadamente no âmbito dos entes estaduais e municipais. No Nordeste, por exemplo, se localizam as áreas tidas como “currais eleitorais”, cujo histórico do povo ali fixado é de violência no que se refere à dignidade da pessoa humana, desprovidos de todos os tipos de serviços públicos obrigatórios, tais como a educação, a saúde, a segurança, o lazer, a moradia e o emprego. Em se tratando de educação – quando é ofertada – a carência da qualidade dos processos de ensino-aprendizagem não permite a concretização de sonhos dos seus atores pelos motivos mais variados possíveis. É notória e devidamente discutida nos meios acadêmicos pelos estudiosos das ciências políticas, do direito, da administração e da gestão pública a omissão do Poder Público em relação à prestação de serviços de qualidade - essenciais ao bem estar e a felicidade do povo brasileiro – que em sua maioria não dispõe de renda que lhe permita contratar alguns dos serviços prestados por instituições particulares, a exemplo de educação e saúde. A violação a estes direitos, na maioria das vezes se inicia através da má gestão acompanhada de casos de corrupção, que flagrantemente, configuram desrespeito aos direitos humanos da cidadã e do cidadão brasileiro, que apesar de assegurados formalmente, não alcançam eficácia plena se configurando mais um tipo de violência simbólica, com efeito nefastos à cidadania brasileira.

2. Os dez anos da Lei de Diretrizes Básicas da Educação Brasileira: desvios de recursos destinados a educação a partir da própria Administração Pública A Lei de diretrizes e Bases da Educação, sem dúvida, foi importante para o avanço do tema no país, todavia, após os dez anos de sua existência é notório que, mesmo reconhecendo questões pontuais de crescimento na prestação do serviço da educação pelo Estado, ainda não é possível afirmar que a educação é prioridade através de ações positivas e das políticas públicas. Um dos meios mais grave de sonegação do direito à educação de qualidade e voltada para a efetivação da cidadania, para o desenvolvimento social e para a consolidação dos direitos humanos se trata do desvio de recursos financeiros destinados ao financiamento das políticas públicas da educação e que em razão dessas práticas não conseguem beneficiar o principal alvo – o cidadão. As peças de planejamento e os atos regulatórios dos Planos Plurianuais de Educação transformados em lei são completamente desprezados pelas autoridades, que na condição de agentes políticos ou agentes públicos, deveriam se postar como garantidores da segurança e da certeza da implantação e execução eficiente das políticas em favor da educação, mesmo porque no exercício das funções públicas as autoridades têm a prerrogativa do uso do poder/dever, tendo essa prerrogativa à indicação de que algo deve ser feito e não algo poderá ser feito. O termo é imperativo para o gestor.

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Uma frase sintetiza o papel do Estado brasileiro quanto ao dever de promover e prover o sistema educacional. “Se uma nação opta por oferecer educação escolar pública e gratuita para sua população, cumpre que ela proponha a forma de financiá-la”. Monlevade (2008, p. 246). A Constituição Federal (1988) garante o direito ao ensino público e gratuito e prescreve como obrigação do Estado criar as condições de oferta da educação, notadamente do ensino fundamental pelo período mínimo de oito anos, progressivamente, garante gratuitamente o ensino médio e a educação superior, como também a educação infantil (creche e pré-escola). O financiamento de todos os programas está pormenorizadamente apresentando a partir do capitulo III da Constituição Federal (1988), do art. 205 ao art. 214, combinando com os dispositivos do art. 60 de suas Disposições Transitórias. Além da CF/1988, o financiamento das atividades públicas de educação da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios está regulamentado pela Lei nº 9.394/96, diretrizes e bases da educação nacional. De acordo com o art. 212, caput, da CF/88, pelo menos 18% (dezoito por cento) da receita resultante dos impostos da União deveria ser utilizada na melhoria do desenvolvimento da educação, enquanto que nos Estados, Distrito Federal e nos Municípios o montante deverá ser de 25% (vinte e cinco por cento), no mínimo, dos impostos. Além de verbas adicionais em favor do ensino fundamental público tais como o “salário-educação”, a contribuição social das empresas à razão de 2,5% (dois e meio por cento) da folha de pagamento de seus empregados. Desta forma, a Educação nacional tem assegurado legalmente os recursos para seu financiamento através dos entes federados, competentes e obrigados concomitantemente, a implantação das políticas públicas através dos recursos financeiros arrecadados provenientes de um conjunto de tributos - impostos, taxas e contribuições, mas que em muitas ocasiões não são suficientes, tão somente, para garantir a efetivação do direito á educação de qualidade, conforme assevera Monlevade (2008, p. 251): “Os recursos públicos são, portanto, insuficientes não só para atender à demanda potencial como para prover de um mínimo de qualidade a educação dos atualmente matriculados”. Esse quadro se agrava quando os recursos são mal gerenciados, quando não é objeto de corrupção e desvio. O histórico de abuso de poder como violência engendrada pelo Estado quando se trata de investimento em educação registra passagens lamentáveis ao longo desses últimos cem anos. Torna-se como causa primeira de todas as demais já registradas, que, em cadeia produz uma série de dispositivos com efeitos destruidores que reduzem, na fonte de distribuição, os valores destinados a educação nacional, cuja engenharia da ilegalidade se inicia nos gabinetes das autoridades nacionais e se repete no âmbito dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios ao reduzir os recursos financeiros e como conseqüência, a qualidade da educação brasileira. Tal prática finda por transformar programas e políticas públicas em meio de enriquecimento ilícito através de desvios de recursos públicos, tal como ocorreu com do Fundef como aponta

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detalhadamente Monlevade (2008), que em suas ponderações faz referência a aspecto grave em relação à postura do Estado, em suas esferas administrativas, frente ao que estipula a lei. [...] governos estaduais e municipais têm tido o péssimo hábito de burlar o reto uso dos recursos de MDE, seja por meio de expedientes de maquiagem contábil, seja por intermédio de desvios descarados, aproveitando-se da falta de controle social das receitas públicas. [...] Mas na maioria dos municípios, antes de 1977, havia uma verdadeira “farra” com os recursos da educação: todas as despesas com material de expediente da Prefeitura eram debitadas na conta de MDE, bem como os gastos com combustíveis e outros tipos de itens que podiam ser confundidos com as ações da educação. (MONLEVADE, 2008, p. 253).

Levando-se em consideração que a fonte de arrecadação dos impostos é a sociedade, que financia as funções públicas, de pronto é de se reconhecer que, se por ventura, o cidadão tiver direitos mitigados, por quaisquer razões, pode e deve exigir das autoridades públicas satisfações pelo descumprimento dessas obrigações, que são protegidas constitucionalmente como direitos e garantias fundamentais. Além da proteção legal, diante o ordenamento nacional, o direito à educação deve ser encarado como obrigação moral dos gestores perante os administrados, porquanto direito humano consagrado através de Convenções Internacionais e da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) que consagra em seu preâmbulo o ensino e a educação como meio para a promoção dos direitos e das liberdades humanas. As críticas de Monlevade (2008) reforçam o que se discute nos meios políticos e acadêmicos no que tange a procura por soluções que sejam ao menos razoáveis, para fazer com que o Estado funcione na conformidade dos seus objetivos constitucionais na formação de sociedade livre, justa e solidária, onde as pessoas gozem de igualdade efetiva com o exercício pleno de direitos individuais, políticos e sociais. Todavia, nem tudo está perdido. Caminhos podem ser construídos para encontrar formas de inibir o desvio de recursos destinados ao financiamento da educação. Em Estados e Municípios se observam avanços que proporcionam maior segurança na arrecadação, nos depósitos e na aplicação de valores com fidelidade aos programas a que eles se destinam, a exemplo do que destaca Monlevade (2008), tais como: i) reorganização da distribuição dos recursos pela União; ii) gestão democrática de verbas com o objetivo de pôr fim ao autoritarismo, ao clientelismo e as formas de desvios de recursos; iii) definição das despesas de MDE detalhados pela primeira vez nos artigos 70 e 71 da LDB; iv) prioridade do ensino público e; v) qualificação do ensino, principalmente após dados levantados nas últimas duas décadas em virtude de pesquisas e dos censos escolares ao constatarem desempenho crítico de alunos nos diversos níveis de ensino, principalmente em se tratando de alunos de escolas públicas. Um fato histórico comprova todo o descaso para com a educação que inviabiliza dentre outras coisas o exercício pleno da cidadania brasileira5. No ano de 2001 quando da aprovação do TP

PT

5

Entretanto, é mister reconhecer que as modificações sofridas pela LDB principalmente pela redação que foi dada ao art. 206 da Constituição Federal (Este artigo foi modificado por força da Emenda Constitucional nº 53 de 19.12.06) e conseqüentemente a alteração do art. 60 da ADCT.

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Plano Nacional de Educação, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso vetou um dos mais importantes artigos que fixou a meta de financiamento público para a educação brasileira em 7% do PIB, a ser alcançada em quatro anos. Este fato é apenas um exemplo de tantos já presenciados pelo povo brasileiro que se mantém inerte a toda essa situação comprovando o ciclo vicioso que se historicamente vive a cidadania brasileira, sem educação não há exercício pleno da cidadania, e sem cidadania plena não há reação do povo frente a violência e ao desrespeito aos direitos humanos. Nesta passagem histórica, o Findeb seria um caminho para a inclusão social, através da educação, de milhares de brasileiras e de brasileiros através do acesso aos bancos escolares com a valorização do ensino público, também através da valorização da qualificação do profissional docente, principalmente na educação básica e a implantação de piso salarial. Promessas que não foram cumpridas em sua íntegra.

3. A educação e o olhar habermasiana: ação comunicativa e o consenso A educação tem significativo papel nas diferentes formas do mundo da vida exercendo influência nas relações sociais. A educação brasileira no modelo atual possui duplo papel de atuação, a partir de pressupostos que são: i) a formação intelectual e valorativa das pessoas, que proporciona a emancipação do sujeito como cidadão participativo e co-participe da comunidade política que está inserido e no mesmo patamar; ii) a educação exerce a função de instrução técnica, situando-se na perspectiva de instruir o sujeito para que este se apodere dos conhecimentos e atenda as necessidades do mercado de trabalho. Todavia, nas últimas décadas a educação sofreu profunda alteração em seus princípios e foi invadida em conceitos pelo sistema capitalista e a partir daí a racionalidade que cultuou a educação do passado como uma educação que buscou identificar as diferentes formas do mundo, no protótipo atual substitui a racionalidade do mundo da vida pela racionalidade sistêmica. A educação passa a ser usada como instrumento de formação de uma sociedade industrial e consumista. Diante de tal situação é perceptível a necessidade de mudanças urgentes, que são necessárias para permitir que a sociedade dialogue com as autoridades eleitas por si, e que tem a responsabilidade de governar em nome da sociedade e criar as políticas públicas para atender as necessidades dos serviços públicos imprescindíveis, entre eles a educação, e, a partir desse ponto criar os programas que são vinculados aos orçamentos disponíveis, fazê-los executar e assim atender a demanda mínina dos cidadãos. A possibilidade do diálogo é a perspectiva principal da teoria habermasiana do agir comunicativo (TAC). O direito possui dois aspectos fundamentais de validade que tem ampla conexão com o agir comunicativo habermasiano: i) é instrumento de validade de uso de coerção pelo Estado e; ii) conjunto de regras gerais que apontam para a obrigação do respeito às leis fundadas.

661

Habermas (1977) destaca que a validade do direito ocorre na proporção em que a sociedade o aceita. Ao mesmo tempo, a sua forma só terá legitimidade na proporção em que a sociedade reconheça o discurso promovido no âmbito do legislativo traduzindo em regra jurídica nova as pretensões sociais como fonte de justiça. É o que se compreende na afirmação do sociólogo alemão: [...] o direito funciona com uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora, se rompa. Mensagens normativas só conseguem circular em toda a amplidão da sociedade através da linguagem do direito; sem a tradução para o código do direito, que é complexo, porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema, estes não encontrariam eco nos universais de ação [...]. (HABERMAS, 1977, p. 82).

Portanto, defender a importância do respeito à soberania do povo que é principio da democracia e elemento de validade na construção ou no processo de normatização. Como destaca Habermas (1977, p. 82) “[...] é o processo que deve orientar a produção do próprio médium do direito”. Compreende-se assim que o discurso será da mesma forma principio da democracia se constituindo como ponto inicial que fará coexistir o sistema circular do processo da formação da lei e a produção do direito legitimado. Desta maneira, pode-se afirmar categoricamente que para Habermas há desafios educacionais da contemporaneidade e por este caminho desfila a questão do fortalecimento da comunicação das pessoas, com especial atenção para que não haja distorção ou ruído nesta comunicação. A partir da interpretação de Sousa (2010) sobre o pensamento habermasiano é possível ir à busca de caminhos para o enfrentamento desses desafios: Esta realidade no compreender habermasiano é o espaço transcendental de superação da filosofia da subjetividade para o espaço intersubjetivo fundante da práxis educativa enquanto interação social em que os sujeitos da educação se predispõem à compreensão pela mediação da linguagem presente no ato de falar. (cf. Habermas, 1968:12). A linguagem fundada na hegemonia do mundo da vida constituído por três elementos estruturais: a cultura, a sociedade e a personalidade (Habermas, 1999:196). A linguagem fundada na hegemonia do mundo da vida possibilita revelar-se o traço fundamental das interações comunicativas, expressas por intermédio dos saberes das pessoas agentes do processo superante da racionalidade instrumental moderna como razão intersubjetiva de significante e significados. (SOUSA, 2010, p. 41).

Habermas chama a realidade histórica de “mundo da vida” e que no seu contexto representa o criador do horizonte dos atos de entendimento, como se fosse pano de fundo. Neste sentido, compreende-se o “mundo da vida” como o local transcendental, ambiente de encontro entre falante e ouvinte, lugar das pretensões de validade que serve como área para solucionar desentendimentos através do que Habermas nomina de “consenso”. Portanto, há relação de absoluta conectividade entre a educação e a teoria da ação comunicativa destacando em Sousa (2010) uma nova visão de mundo para transformar a educação:

662

Uma racionalidade fundada no principio da cooperação deverá ter como conseqüências o equacionamento das principais crises vividas pela humanidade e a conformação de outra presença humana no mundo, que além de garantir a sobrevivência da espécie, irá estabelecer a hegemonia de uma nova visão do universo. É pois, na busca de uma nova visão de mundo que haver-se-á topicidade da utopia da nova racionalidade na qual Habermas instaura a tória da ação comunicativa – espaço para o plasmar da educação como, utopicamente se aponta, ainda neste momento epocal [...]. (Op. cit., p. 50).

Habermas simplesmente pede atenção ao mundo para o fato de que as crises vividas pela humanidade, por ela própria devem ser combatidas a partir de um processo cooperativo que permita o estabelecimento de outras formas de ser ver o mundo da vida e o papel fundamental do ser humano e sua sobrevivência. A Educação é possivelmente o instrumento de maior força colaborativa neste processo.

4. Considerações finais Infelizmente, não é tão simples solucionar os problemas que tangenciam a efetivação do direito à educação. Inicialmente, falta espírito público por parte das pessoas que, exercentes do poder, desrespeitam os verdadeiros mandatários desse poder, o povo, e não cumprem o que está prescrito na Constituição, em desrespeito a vários princípios jurídicos, tais como o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da legalidade como agentes públicos, bem como em desrespeito aos direitos humanos. O descumprimento das políticas públicas educacionais a partir dos desvios de recursos por ato do próprio poder público se constitui como um dos piores instrumentos de violência contra o direito à educação através da ineficiência na execução dos programas oficiais de incentivo e planejamento educacionais. O descumprimento de política pública educacional atenta diretamente contra a dignidade da sociedade brasileira, ainda em processo de alfabetização e com altos índices de exclusão social. Portanto constata-se a Administração Pública ineficiente diante um povo que ainda sofre pela falta do serviço essencial de educação nos níveis iniciais da vida, apesar de possuir um rol de direitos e garantias sociais assegurados através da Constituição Federal, de normas infraconstitucionais e de Convenções Internacionais. Entretanto, a má gestão da educação não está localizada apenas na má administração ou na má gestão do Estado. A crise é universal e exige olhar amplo e focado exatamente sobre a razão humana como possibilidade de reconstrução e superação de todas as limitações que reduzem a emancipação da pessoa humana pela educação. Não se pode deixar vencer a idéia de que o potencial emancipatório reside na comunicação. E ocorrendo desta maneira têm-se o fortalecimento da educação. Há uma educação distinta em educação voltada para a formação moral e intelectual da pessoa e aquela voltada a emancipação pela formação técnica que tem como pressupostos o atendimento as necessidades de mercado. Fala mais alto o interesse capital. Despreza-se a 663

educação voltada para a formação moral e intelectual do cidadão. Prevalece a racionalidade do mundo sistêmico. Neste ambiente se faz impar a presença da educação comunicativa através de um processo pedagógico que fortaleça as relações pelo entendimento e pelo consenso, a partir do momento que o poder público considere o povo como um interlocutor, que é detentor de direitos, sendo um dos mais importantes o direito a falar e ser ouvido em suas reivindicações, pois em muitas ocasiões, mesmo em Estados Democráticos de Direito, o cidadão não possui condições de se fazer ouvir em suas propostas e reivindicações. Interessa aos que estão no poder o desconhecimento das pessoas quanto ao processo de controlar as atividades administrativas dos gestores, apesar de que o Estado tem o poder/dever de criar e executar as políticas públicas voltadas a tornarem as pessoas dignas no processo de civilidade e cidadania. Esse é um rápido ensaio do que defende Habermas em relação à educação e a teoria da ação comunicativa.

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664

A influência das decisões da Corte Interamericana na definição de políticas públicas no Brasil Emerson Francisco de Assis1 TP

PT

2

Vanuccio Medeiros Pimentel TP

PT

Resumo

Abstract

O objetivo geral do presente trabalho é analisar a influência das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no processo de definição de políticas públicas pelo Estado brasileiro. Considerando que as sentenças da referida Corte vão além de determinar reparação direta às vítimas, impondo uma agenda geral de ações sugeridas ao Estado réu, que redundam desde a elaboração de legislação específica, a exemplo da Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006) até a adoção de políticas públicas mais concretas como a criação de órgãos públicos a exemplo das secretarias especiais de proteção aos direitos das mulheres e idosos. O trabalho possui um enfoque interdisciplinar, haja vista que mescla discussões relativas aos Direitos Humanos, Direito Internacional Público, Ciência Política e Sociologia do Direito, na medida em que também analisa a eficácia das decisões da Corte de San José. A metodologia utilizada em nossa pesquisa se baseia na análise das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos e referencial teórico das disciplinas indicadas.

The main claim of this paper is to analyze the influence of decisions of the Inter-American Court of Human Rights in the process of shaping public policy in Brazil. Considering that the judgments of this Court in determine compensation to direct victims, and imposing a general agenda suggesting actions to the state, which result in the formulation of specific legislation, such as “Maria da Penha Law”, (Law No. 11,340/2006) and the adoption of more specific policies such as special departments and public agencies to protect the rights of women and the elderly. This paper has an interdisciplinary approach, transiting through Human Rights, Public International Law, Political Science and Sociology of Law claiming to analyze the effectiveness of decisions of the Court of San Jose. The methodology in this paper is based on the judgments of the Court and theoretical framework provided by such disciplines quoted above.

Palavras-Chave: Políticas Públicas; Eficácia Sentenças Internacionais; Corte Interamericanas Direitos Humanos; Jurisdição Internacional.

Keywords: Public Policy; Effectiveness of Internationals Sentences; Inter-American Court of Human Rights; International Jurisdiction.

de de

1

Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Faculdade da Associação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES) e da Faculdade Raimundo Marinho, email: [email protected].

2

Mestre e Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor da Faculdade da Associação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES), email: [email protected].

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1. Introdução O objetivo geral deste trabalho é analisar a influência das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no processo de definição de políticas públicas pelo Estado brasileiro. Portanto, nossa problemática é discutir até que ponto esta Corte Internacional possui capacidade para determinar ou influenciar a agenda de políticas públicas implementadas pelo Brasil. Para tanto, abordamos desde a origem e formação do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, seus principais órgãos, a participação brasileira e principalmente analisando todas as sentenças de mérito e medidas provisórias aplicadas em face de nosso país. A metodologia utilizada se baseia na análise das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como dito, e na discussão de referencial teórico das disciplinas de Direitos Humanos, Direito Internacional Público e Ciência Política, eis que a pesquisa possui uma caráter interdisciplinar. Este artigo foi realizado a partir do Grupo de Pesquisa: “O Sistema Regional de Proteção aos Direitos Humanos: A Atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, do curso de Direito e Relações Internacionais da Faculdade ASCES de Caruaru-PE.

2. Origens e Formação do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos A origem histórica do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos foi a proclamação da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1948, durante a 9ª Conferência Interamericana, ocorrida na cidade de Bogotá, Colômbia, ocasião em que também foi celebrada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Tecnicamente, a referida declaração não é um tratado, mas uma resolução que serviu de base normativa para as principais convenções do referido sistema, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), mais conhecida como “Pacto de San José da Costa Rica” (MAZZUOLI, 2007). Do ponto de vista político, dois contextos marcaram o surgimento e principalmente a instalação efetiva do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos: o período das ditaduras latino-americanas durante a Guerra Fria e transição democrática havida na década de 80 nos principais países da região como Argentina, Brasil, Uruguai e Chile (PIOVESAN, 2007). Assim, a mencionada Convenção Americana sobre Direitos Humanos, principal instrumento jurídico do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, foi assinada em 1969, mas só entrou em vigor em 1978, quando o 11.º instrumento de sua ratificação foi depositado, haja vista que durante os anos 70 do século passado, boa parte dos países da América Latina encontrava-se em regimes de exceção (PIOVESAN, 2007). Isso sem esquecer, que mesmo países democráticos que não atravessaram esta fase de ditaduras como os Estados 666

Unidos (que apenas assinou) e o Canadá, não ratificaram a Convenção até o presente momento, o que, aliás, só foi realizado pelo Brasil no ano de 1992, consoante ressalta Mazzuoli (2007). Conforme dados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, dos Estados membros da OEA, 25 aderiram ou ratificaram a Convenção Americana submetendo-se a sua jurisdição, quer sejam: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Trinidad e Tobago, Suriname, Uruguai e Venezuela. Entretanto, Trinidad e Tobago denunciou o Pacto de San José em 1998, através de comunicação dirigida ao Secretário Geral da OEA (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). O referido Pacto é divido em duas partes, sendo que na primeira está elencado um rol de direitos civis e políticos muito parecidos com o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), notadamente o direito à vida, à liberdade, livre expressão da consciência e expressão, dentre outros. Na segunda parte, o tratado estabelece os meios para se alcançar à proteção dos direitos em questão. Originalmente, a Convenção Americana não especificou qualquer direito social, econômico ou cultural. Para garantia de tais direitos, a Assembleia Geral da OEA adotou em 1988, o Protocolo de San Salvador, que entrou em vigor em 1999, após alcançar 11 ratificações dos Estados associados a tal entidade (MAZZUOLI, 2007). Além dos tratados indicados, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto dos seguintes instrumentos jurídicos: Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990); Convenção Americana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994); Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1995); Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999), conforme lembra Mazzuoli (1997). Para implementação e monitoramento de todos estes tratados e das violações não apuradas aos direitos humanos desrespeitados nos Estados partes, o Pacto de San José criou um aparato formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2007), a serem detalhadas no próximo tópico.

3. Órgãos do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos O primeiro a ser analisado será a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Segundo Piovesan (2007), a Comissão é órgão anterior à Convenção Americana e possui maior abrangência, pois atinge todos os Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), em relação aos direitos consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de (1948).

667

A Comissão é composta por 7 membros, com alta autoridade moral e notável saber em direitos humanos, podendo ser nacionais de qualquer Estado integrante da OEA; são eleitos pela Assembleia Geral da referida organização internacional para um período de 4 anos, sendo permitida a reeleição somente para um mandato consecutivo (PIOVESAN, 2007). A principal função da Comissão Interamericana de Direitos Humanos é observar e proteger os direitos humanos no âmbito do continente americano. Competindo a este órgão, fazer recomendações aos governos dos Estados partes, preparar estudos e relatórios, solicitar informações aos governos e submeter relatório anual à Assembleia Geral da OEA, no tocante a observância dos direitos humanos na América (PIOVESAN, 2007). Em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos, a Comissão possui competência para examinar as comunicações encaminhadas por indivíduo ou grupos de indivíduos, bem como entidade não governamental que contenham denúncia de violação a direito nela consagrada nos Estados partes do Pacto de San José (PIOVESAN, 2007). Ao receber tais comunicações, ou melhor, petições, a Comissão Interamericana inicialmente analisará sua admissibilidade nos termos do art. 46 da Convenção Americana, considerando se houve, por exemplo, prévio esgotamento dos recursos internos, salvo injustificada demora processual, ou ainda no caso do direito interno não respeitar o princípio do devido processo legal (PIOVESAN, 2007). Caso entenda a admissibilidade da petição ou denúncia, a Comissão solicitará informações ao governo denunciado, tendo as recebido ou haja transcorrido o prazo sem resposta, a Comissão ainda avaliará se há motivos plausíveis para o seu prosseguimento, na hipótese de não existirem, a Comissão arquivará o expediente. Entretanto, se decidir pela plausibilidade da denúncia, com o devido conhecimento das partes, a Comissão realizará um exame acurado do assunto, e, se necessário, uma investigação detalhada dos fatos (PIOVESAN, 2007). Examinada a matéria, a Comissão tentará uma solução amistosa entre as partes, quer seja: o(s) denunciante(s) e o Estado. Havendo conciliação, a Comissão elaborará um informe que será levado aos peticionários e ao Estado, sendo posteriormente publicado pela Secretaria da OEA, contendo uma breve exposição dos fatos e da solução adotada. Não sendo alcançada uma solução amistosa, a Comissão redigirá um relatório, apresentando fatos, conclusões pertinentes e recomendações pertinentes ao Estado “réu”. Transcorrido o prazo de 3 meses sem que haja solução do caso, a Comissão poderá encaminhá-lo à Corte Interamericana de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2007). Assim como a Comissão, a Corte é composta por sete membros, denominados “juízes”, pois possuem poder jurisdicional. São eleitos a título pessoal pelos Estados parte do Pacto de San José da Costa Rica, para mandato de 6 anos, sendo permitida uma reeleição (MELLO, 2004),

668

dentre “[...] juristas de la más alta autoridad moral y reconocida competencia en materia de T

derechos humanos [...]”3, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). TP

PT

Conforme já especificado, a Convenção Americana de Direitos Humanos só entrou em vigor em 1978, ao alcançar o mínimo exigido de Estados aderentes. A Corte, por sua vez, só realizou sua primeira reunião em junho de 1979, na cidade de Washington DC, Estados Unidos, após a eleição dos juízes durante a VII Sessão Extraordinária da Assembléia Geral da OEA, ocorrida em maio do mesmo ano, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). A Assembleia da OEA já havia em 1978, aprovado recomendação para oferecimento formal ao Governo da Costa Rica para que a sede da Corte se estabelecida neste país, entretanto, esta decisão precisou ser ratificada pelos Estados partes da Convenção e por isso, a instalação formal só foi realizada na cidade de San José da Costa Rica, no dia 3 de setembro de 1979. A Costa Rica e a Corte somente celebraram “convênio de sede” em 1981, estabelecendo assim o regime de imunidades e privilégios do referido tribunal, dos juízes, funcionários e das pessoas que intervenham nos processos, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). Os juízes não necessitam viver na Costa Rica, a Comissão Permanente ali instalada é formada pelo presidente, vice-presidente e um terceiro juiz. Os dois primeiros são eleitos por dois anos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos pode deliberar contando com o quorum de 5 juízes, (MELLO, 2004). Possuem legitimidade para ingressar com ação na Corte; os Estados partes e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Pessoas particulares, também não podem ser partes diretamente em ações na Corte, sendo representadas pelo Estado ou pela Comissão. Vale salientar que um Estado não aceita a sua jurisdição simplesmente por ratificar a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, necessitando de outro ato para tanto. O Brasil, por exemplo, embora tenha ratificado o Pacto de San José em 1992, conforme mencionado anteriormente, só aceitou a jurisdição da Corte em 1998, (MELLO, 2004). Assim, foi somente através do Decreto Legislativo n.º 89, de dezembro de 1998, que o Congresso Nacional aprovou a solicitação para reconhecimento expresso da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em cumprimento das disposições do art. 62, § 1.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, (COMPARATO, 2008). Além da jurisdição contenciosa, a Corte também realiza jurisdição consultiva por meio de pareceres solicitados pelos Estados ou órgãos da OEA. Não cabe recurso das sentenças da Corte, que possuem natureza definitiva e inapelável. As línguas de trabalho do tribunal são o 3

“[...] juristas da mais alta autoridade moral e reconhecida competência em matéria de direitos humanos [...]”, (tradução livre). T

T

669

inglês e o espanhol, (MELLO, 2004). No plano consultivo, qualquer membro da OEA possui legitimidade para ingressar com ações na Corte, ao contrário do âmbito contencioso, perante o qual, conforme dito no parágrafo anterior, a jurisdição fica restrita aos Estados que reconhecem expressamente a jurisdição do tribunal, (PIOVESAN, 2009). Em casos de urgência e maior gravidade, seguindo o exemplo do processo cautelar no direito interno, a Corte pode adotar as medidas provisórias que achar pertinentes, conforme disposição do Art. 63, § 1.º da Convenção Americana de Direitos Humanos, (COMPARATO, 2008). No tocante ao processo perante a Corte, a petição inicial da ação é protocolada na Secretaria da Corte (na cidade de San José, Costa Rica), no referido documento deve estar indicado os fatos, partes envolvidas, a violação aos direitos humanos ocorrida, provas, testemunhas, peritos e os fundamentos jurídicos do pedido. Sendo a ação proposta pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, deverá acompanhar o relatório elaborado preliminarmente pela mesma, (MAZZUOLI, 2007). Após a propositura da ação, o Presidente da Corte, analisará de modo preliminar a demanda, verificando o cumprimento dos requisitos necessários a sua propositura. Em seguida, será citado o Estado réu, bem como a Comissão, quando esta não for a autora da ação, funcionará como custus legis. A parte ré possui 2 meses para apresentar exceções preliminares e prazo improrrogável de 4 meses para a contestação. O Estado brasileiro em demanda será representado pela Advocacia-Geral da União, com assessoramento do Ministério das Relações Exteriores, (MAZZUOLI, 2007). O Presidente da Corte fixará data para eventuais audiências, se necessário. Posteriormente a fase probatória, a Corte passará a deliberação, por meio da sentença de mérito, são seus requisitos: nome do Presidente, demais juízes que a tenham proferido e Secretário Adjunto; identificação das partes e seus representantes; relação dos atos do procedimento; relato dos fatos e conclusões das partes; fundamentos jurídicos; resultado da votação dos juízes, decisão sobre o caso e determinação das reparações e custas. A notificação das sentenças é feita pela Secretaria da Corte, (MAZZUOLI, 2007). Em sua decisão, a Corte poderá determinar que o Estado condenado adote medidas que se façam necessárias para restauração do direito violado, bem como ainda condenar o Estado a pagar uma justa compensação financeira às vítimas, (PIOVESAN, 2009). No caso brasileiro, as sentenças valem como título executivo judicial no âmbito interno, não necessitando de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça, haja vista a submissão brasileira à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, (MAZZUOLI, 2007). O art. 68 da Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece que os Estados partes devem cumprir as decisões da Corte, cabendo a mesma informar a Assembleia Geral da OEA, os casos de Estados que não tenham cumprido suas sentenças. Entretanto, como observa Mazzuoli (2007), o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ainda carece de um meio 670

eficiente para fiscalizar o respeito às decisões da Corte de San José, ficando ainda, muito a mercê da boa fé e boa vontade dos seus Estados partes.

4. O Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos Conforme já dito, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direito de Humanos em 1992 e somente aceitou a jurisdição da Corte em 1998. Apesar disto, a primeira sentença a condenar o país só foi prolatada 8 anos após, em 2006. Até o presente momento, o Brasil foi objeto de 5 sentenças da Corte Interamericana de Direitos, todas visando sua condenação por violações aos Direitos Humanos, destas, apenas em um caso houve arquivamento por falta de provas, os demais, assim, implicando em condenação do Estado Brasileiro. Por ordem cronológica, são estes os processos contenciosos tendo o Brasil como parte ré: 1) Caso Ximenes Lopes (2006); 2) Caso Nogueira de Carvalho e outro (2006); 3) Caso Escher e outros (2009); 4) Caso Garibaldi (2009); 5) Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) (2010), (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). Além dos processos contenciosos, temos mais 5 casos de medidas provisórias, ou seja, uma espécie de ação cautelar na qual a Corte determina adoção de certas medidas de caráter preventivo aplicadas em face do Brasil: 1) Caso da Prisão de Urso Branco (2002); 2) Caso das Crianças e Adolescentes do Complexo Tatuapé da FEBEM (2005); 3) Caso da Penitenciária “Dr. Sebastião Martins Vieira” de Araraquara-SP (2006); 4 Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) (2009); 5) Caso da Unidade de Internação Socioeducativa de Cariacica-ES (2011), (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). O primeiro caso contencioso de condenação do Estado Brasileiro perante a Corte Interamericana de Direito Humanos, o citado “caso Damião Ximenes Lopes”, foi interposto através da Comissão Americana de Direitos Humanos em 2004, sendo, conforme mencionado, objeto de sentença datada de 2006. A condenação foi devido à morte do citado senhor em 1999, devido a maus tratos sofridos durante o período que esteve como paciente psiquiátrico na Clínica de Repouso Guararapes no Município de Sobral, Estado do Ceará, casa de saúde conveniada ao SUS (Sistema Único de Saúde), (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). A Corte decidiu que o Estado violou os direitos à vida e integridade pessoal da vítima violando a Convenção Americana de Direitos Humanos, determinando ao Estado brasileiro: 1) Punir os responsáveis pelos atos; 2) Publicar suas sentenças no Diário Oficial da União; 3) Desenvolver um programa de capacitação e formação para os profissionais que atuam em saúde mental; 4) Indenizar pecuniariamente os familiares do Sr. Damião Lopes; 5) Pagamento de custas e despesas processuais, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011).

671

O segundo caso, por sua vez, denominado “Nogueira de Carvalho”, também foi interposto pela Comissão junto à Corte, porém, em 2005. Sendo ajuizado devido à suposta falta de diligência da justiça brasileira diante do assassinato do advogado Francisco Gilson Nogueira de Carvalho, ocorrido em 1996 na cidade de Macaíba, Estado do Rio Grande do Norte, crime este que teria sido cometido por um grupo de extermínio formado por policiais e servidores públicos, denunciados pelo referido advogado. No ano de 2006, a Corte resolveu arquivar o expediente, haja vista que não ficou comprovada a responsabilidade do Estado na questão, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). O caso Escher, terceiro a ser analisado, foi submetido a Corte em 2007, igualmente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A demanda se refere à interceptação telefônica ilegal realizada em 1999 pela Polícia Militar do Estado do Paraná, junto a membros da Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda (COANA) e da Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais (ADECON). O Tribunal decidiu por unanimidade que foram violados pelo Estado, o direito à privacidade, a honra e a liberdade de associação, dispostos, respectivamente no Art. 11 e 16 do Pacto de San José da Costa Rica. Foram aplicadas as seguintes medidas: 1) Indenização pecuniária as vítimas, a título de dano imaterial (moral); 2) Publicação da Sentença no Diário Oficial da União, em jornal de grande circulação nacional e de circulação local no Estado do Paraná; 3) Investigar devidamente os fatos que implicaram no caso; 4) Pagamento de custas e gastos processuais, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). No tocante ao Caso Garibaldi, quarto processo, este foi levado pela Comissão à Corte em 2007, decorrente da responsabilização do Estado brasileiro por não investigar devidamente e punir os responsáveis pelo assassinado do Sr. Sétimo Garibaldi, ocorrido em 1998, durante uma operação extrajudicial de despejo de trabalhadores rurais sem-terra, no Município de Querência do Norte, Estado do Paraná. A Corte, dois anos depois de recebida a denúncia da Comissão, reconheceu a responsabilidade do Brasil por não ter investigado o caso dentro de um prazo razoável, violando a Convenção Americana e determinou que houvesse: 1) Publicação da sentença no Diário Oficial da União, em jornal de grande circulação nacional e local no Paraná; 2) Identificação, julgamento e sanção dentro de um prazo razoável, dos assassinos do Sr. Garibaldi; 3) Pagamento de indenização aos seus familiares por dano material e imaterial (moral); 4) Pagamento de custas e demais gastos do processo, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). O último processo em que houve condenação no Brasil pela Corte Interamericana de Direito Humanos foi o Caso Gomes Lund, também chamado Caso da “Guerrilha do Araguaia”, que foi submetido pela Comissão em 2009, sendo emitida a respectiva sentença no ano seguinte. A demanda se referiu a responsabilidade da República Federativa do Brasil pela detenção arbitrária, tortura e “desaparecimento forçado” de cerca de 70 pessoas entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses, como resultado das operações do Exército Brasileiro entre 1972 e 1975 672

para erradicar a “Guerrilha do Araguaia”, ocorrida na região da bacia do rio de mesmo nome, no contexto da ditadura militar brasileira, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). Primeiramente, a sentença declarou por unanimidade que as disposições da Lei de Anistia Brasileira (Lei n.º 6.683/1979) impedem a investigação e sancionamento de graves violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar no Brasil e carece de efeito jurídico por contrariar as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo país. Além

disso,

a

sentença

reconheceu

a

responsabilidade

do

Estado

pelos

referidos

desaparecimentos, que viola os direitos à vida, integridade e liberdade pessoal, bem como liberdade de expressão e pensamento, consagrados na citada Convenção, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). A Corte determinou ainda que o Estado brasileiro deveria: 1) Investigar criminalmente perante a justiça comum e responsabilizar os responsáveis pelos fatos; 2) Realizar esforços para localização das vítimas e entrega dos seus restos mortais para os respectivos familiares; 3) Proporcionar tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico às vítimas; 4) Publicação da sentença em órgão oficial; 5) Realizar ato público para reconhecimento internacional de suas responsabilidades no referido caso; 6) Continuar com ações de capacitação para militares em direitos humanos, implantando um programa obrigatório de formação nesta área para todos os níveis das Forças Armadas; 7) Adotar medidas necessária para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas; 8) Continuar os trabalhos de busca e identificação dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia; 9) Pagamento de indenização às vitimas por danos materiais e imateriais (morais), além das custas e despesas processuais; 8) Convocar por meio de publicação nacional e local os familiares para que apresentem as provas necessárias dentro do prazo de 24 meses a identificação das vítimas, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). Em relação às medidas provisórias solicitadas em face do Brasil, a primeira, como dito anteriormente, foi referente à Casa de Detenção José Mário Alves, conhecida como “Cadeia Urso Branco”, localizada na cidade de Porto Velho, Estado de Rondônia. Em 2002, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos solicitou a tutela cautelar da Corte visando impedir a contínua morte de internos na mencionada prisão, haja vista as dezenas mortes verificadas (cerca de 37) entre os detentos, especialmente aqueles em maior regime de seguridade, cujos crimes são considerados “imorais” pelos demais internos, a exemplo da prática de estupro. A Corte impôs as seguintes medidas ao Estado brasileiro: 1) Adotar as medidas necessárias para garantia da vida e integridade pessoal de todas as pessoas reclusas na Prisão indicada; 2) Investigar os fatos e punir os seus responsáveis; 3) Informar periodicamente a Corte sobre as medidas adotadas e a situação daquela casa de detenção, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). 673

Em 2005, por sua vez, a Comissão requereu a Corte medidas provisórias para proteger a vida e integridade pessoal das crianças e adolescentes residentes no Complexo Tatuapé da FEBEM (Fundação para o Bem-Estar do Menor de São Paulo). O pedido foi justificado no fato de que os meses anteriores ao requerimento houve inúmeros casos de torturas, brigas, ameaças e amotinamento entre os internos de tal órgão, sem que as autoridades competentes adotassem as medidas cabíveis para controle da situação. A Corte determinou: 1) Que o Estado adotasse imediatamente as medidas necessárias para proteger a vida e integridade pessoal das crianças e adolescentes internos da FEBEM, Unidade Tatuapé, São Paulo-SP; 2) Oitiva das partes (representantes do Estado, Comissão e beneficiários das medidas) para esclarecimentos dos fatos, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). No ano seguinte, 2006, a Comissão solicitou aplicação de medidas provisórias, também visando proteger a “vida e integridade pessoal”, mas agora em favor dos reclusos da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira, localizada no Município de Araraquara, Estado de São Paulo. Após inúmeras revoltas internas, os pavilhões da prisão foram destruídos, obrigando a transferência de todos os presos para o Centro de Detenção Provisória da Penitenciária, que tendo capacidade para 160 detentos, passou a abrigar 1600. Para justificativa do seu pedido, a Comissão alegou as precárias condições desta unidade prisional, onde, por exemplo, somente 13 sanitários são disponíveis para o montante citado de reclusos; os presos se revezam para dormir no chão de cimento a uma temperatura que pode chegar a 10 ºC e a eletricidade foi cortada para evitar o carregamento de celulares clandestinos, etc., (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). Em vista de tais problemas, a Corte impôs ao Brasil: 1) Adotar imediatamente as medidas necessárias para proteger a vida e a integridade pessoal dos presos da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira; 2) Proporcionar assistência médica, alimentos, vestimentas e produtos de higiene pessoas suficientes aos reclusos; 3) Reduzir a superlotação da Penitenciária e separar os presos em diferentes categorias, conforme as normas internacionais e permitir visitas dos seus familiares; 4) Remeter à Corte dados atualizados sobre todos os detentos do mencionado presídio, com dados de ingresso, eventual translado e data de futura libertação; 5) Investigar e punir os responsáveis pelos fatos; 6) Que o Estado informasse em 10 dias sobre as medidas adotadas, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). Antes do julgamento final do Caso Gomes Lund, “Guerrilha do Araguaia”, o Centro por Justiça e Direito Internacional, o Grupo Tortura Nunca Mais e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, requereu em 2009 a aplicação de medidas provisórias visando suspender a execução da Resolução n.º 567 do Ministério da Defesa, que objetiva criar um Grupo de Trabalho para localização dos restos mortais dos guerrilheiros desaparecidos no Araguaia. O objetivo das entidades indicadas era barrar a participar de militares no mencionado grupo, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). 674

A Corte acabou negando o pedido, alegando que não havia no caso requisitos de extrema gravidade, urgência e perigo de danos irreparáveis que justificassem a adoção das medidas provisórias, nos termos do art. 63, § 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). O requerimento foi feito diretamente pelos representantes das vítimas nos termos do art. 27, § 3º do Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos que permite, nos casos contenciosos, que estes peticionem diretamente as medidas provisórias, sem passar previamente pela Comissão. Em fins de 2010, a Comissão solicitou novamente a aplicação de medidas provisórias em face do Estado Brasileiro por violações aos direitos humanos de crianças e adolescentes internadas na Unidade de Internação Socioeducativa do Município de Cariacica, Estado do Espírito Santo. Mais uma vez, o pedido foi motivado pela falta de estrutura, torturas, agressões e motins que ali ocorreram. Em 2011 a Corte determinou a República Federativa do Brasil: 1) Adotar de forma imediata as medidas necessárias para assegurar o direito à vida e a integridade pessoal dos internos; 2) Realizar gestões para que as medidas indicadas sejam aplicadas com a participação dos beneficiários; 3) Informar a Corte a cada 2 meses sobre o cumprimento das medidas, (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2011). O Caso Maria da Penha é um dos mais emblemáticos enfrentados pelo Brasil no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Em 1983, na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, Maria da Penha sofreu duas tentativas de homicídio por parte de seu então marido. Como resultado das agressões, ela ficou paraplégica aos 38 anos de idade, (PIOVESAN, 2009). Esse caso não foi enumerado entre as sentenças ou medidas provisórias emitidas pela Corte, pois acabou sendo resolvido entre o Estado Brasileiro e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pelo fato do Brasil acatar as recomendações proferidas, não houve assim, necessidade do seu encaminhamento para o referido tribunal. Em 2001, 18 anos após a violência sofrida por Maria da Penha, a Comissão, por não possuir poder jurisdicional, recomendou ao Brasil que: 1) Conclusão rápida do processo penal envolvendo o agressor; 2) Investigar as irregularidades e atrasos deste processo penal; 3) Indenizar pecuniariamente a vítima; 4) Capacitar os funcionários da justiça no âmbito dos direitos humanos. Com base nesta decisão e, sobretudo, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, (Convenção de Belém do Pará - 1995) em 2006 foi adotada a Lei n.º 11.340, conhecida como “Lei Maria da Penha”, que de forma inédita no Brasil, criou mecanismos efetivos para coibir a violência doméstica contra a mulher, (PIOVESAN, 2009). No próximo tópico analisaremos as políticas públicas determinadas à República Federativa do Brasil pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, aqui expostas.

675

5. A Influência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na Definição de Políticas Públicas no Brasil Analisando as decisões da Corte Interamericanas relatadas no tópico passado, fica claro que, de uma forma geral, o mencionado tribunal vai além de determinar a reparação direta às vítimas ou punição dos responsáveis, normalmente é determinado que o Estado brasileiro adote medidas de natureza mais amplas, que implicam na adoção de certas políticas públicas. No Caso Damião Ximenes Lopes (2006), por exemplo, a Corte, entre outras coisas, determinou que o Brasil desenvolvesse um programa de capacitação e formação para os profissionais que atuam em saúde mental no país, ou seja, uma providência de âmbito muito maior que a reparação aos familiares da vítima ou punição dos responsáveis pelo seu falecimento. Já em relação ao Caso Gomes Lund (2010), referente à Guerrilha do Araguaia, as medidas impostas ao Estado brasileiro, além das reparações diretas às vítimas e seus familiares foram muito extensas, quer sejam: realizar um ato público de alcance internacional, reconhecendo sua responsabilidade pelo desaparecimento e morte dos opositores a ditadura militar no Araguaia; continuar promovendo capacitações em direitos humanos para militares de todos os âmbitos das Forças Armadas e mesmo uma medida que alcança o Poder Legislativo: adotar as providências necessárias tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas. Mesmo no tocante as medidas provisórias, que geralmente dizem respeito a questões muito específicas é possível visualizar algumas diretrizes gerais impostas ao Brasil. Afinal, dos 5 casos apreciados pela Corte, 4 foram relativos a unidades de detenção, sejam presídios, cadeias ou unidades de internamento para crianças e adolescentes, em todas as situações, é determinado que o Brasil adote as medidas necessárias para garantia da vida e integridade pessoal dos detentos. Inclusive no Caso da Penitenciária Dr. Sebastião Martins Silveira de Araraquara-SP (2006), a Corte decidiu que o Estado brasileiro reduzisse a sua superlotação, separando os presos por categoria, além de proporcionar assistência médica, alimentos, vestimentas e produtos de higiene suficientes aos reclusos. Porém, não podemos esquecer que além da Corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também possui capacidade para influenciar a definição de políticas públicas e o mencionado Caso Maria da Penha é um bom exemplo disto. A Comissão sugeriu, como já dito anteriormente, pois não possui o poder jurisdicional de “determinações” que detém a Corte como tribunal, que o Brasil promovesse a capacitação de servidores da justiça no âmbito dos Direitos Humanos e o Estado foi além disso: elaborou a Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006) para coibir a violência contra a mulher e foram criadas vários órgãos a nível federal, estadual ou municipal para proteção dos direitos femininos, como a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, criada pelo Governo Lula em seu primeiro dia de gestão em 2003, (SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA MULHERES, 2011).

676

Aliás, decisões no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos também fomentaram uma lei sobre violência doméstica no Chile e a reforma do Código Civil da Guatemala, (PIOVESAN, 2009). Sob o prisma da Ciência Política, a discussão sobre o papel de instituições supranacionais na emulação de políticas públicas em nível nacional passa, em primeiro plano, pela relevância do processo de globalização e o nível de interação internacional em todas as áreas da política. O debate sobre a globalização, nem de longe, encontra muito consenso dentro das Ciências Sociais, e talvez, seja no campo da Política Internacional que tais dissensos se tornam mais abrasivos. Segundo Vieira (2001), nas relações internacionais, dois enfoques polarizam o debate sobre globalização: os transformacionistas e os céticos. Os primeiros argumentam que o processo de globalização representa um grave perigo ao Estado-nação, pois os Estados perdem o controle das fronteiras nacionais além de implicar numa diminuição da sua capacidade de autonomia e soberania, elementos essenciais na ordem de Vestfália. Os céticos, por sua vez, argumentam que a globalização é uma nova ordem mundial menos estadocêntrica, mas que não representa algo inédito já que a internacionalização da economia não é um processo novo, e sim, plurissecular. Vieira (2001) afirma que a globalização é um resultado de aceleradas mudanças que vêm ocorrendo nas últimas décadas e as principais seriam: 1) Tecnológicas: telecomunicações, informática, microeletrônica etc.; 2) Políticas: decisões governamentais de ajuste estrutural visando à liberalização e à desregulamentação do mercado; 3) Geopolíticas: fim do comunismo; 4) Microeconômicas: acirramento da competição em escala mundial; 5) Macroeconômicas: aumento no numero de novos países industrializados; 6) Ideológicas: hegemonia neoliberal. Assim, tão relevante quanto os aspectos econômicos da globalização são as conseqüências políticas desse novo cenário internacional. No campo das políticas públicas, o debate sobre o papel de instituições internacionais na formulação da agenda de políticas passa pelo conceito de difusão de políticas. Uma das abordagens mais recentes é a de transferência de políticas (Policy Transfer) que se caracteriza pela “[...] adoção de políticas por um diferente número de nações, e subseqüentes adaptações dentro de nações individuais, ilustra: a prevalência da transferência de políticas; o papel particular que indivíduos e instituições têm nesse processo.” (DOLOWITZ; MARSH, 2000, p. 06) Dolowitz e Marsh (2000) propõem um modelo de análise a partir de uma ampla estrutura conceitual baseada em duas questões básicas: 1) A distinção entre transferência voluntária e transferência coerciva; 2) A relação entre Transferência de políticas (policy transfer) e falha política (policy failure).

677

Para responder a primeira questão relativa à diferença entre transferência voluntária e coerciva, os autores construíram um modelo que apresenta como pode acontecer a transferência de políticas, o esquema ficou conhecido como: “O Modelo Dolowitz e Marsh”. O modelo tenta explicar como os fenômenos de transferência de políticas ocorrem dentro do espectro de possibilidades que vai desde a transferência voluntária até a transferência coercitiva. A idéia é de a transferência de políticas não é um fenômeno de tudo ou nada, mas sim um processo de vários níveis. Desse modo, o modelo permite identificar processos que se situam entre os pontos apresentados no modelo, combinando características voluntárias e coercitivas. Configurado dessa maneira, o modelo tem como principal qualidade ser um “[...] dispositivo heurístico que nos permite pensar mais sistematicamente sobre os processos envolvidos.” (DOLOWITZ; MARSH, 2000, p. 14).

Figura 1 - Do desenho de lição à Transferência coerciva Transferência obrigada (transferência resultante de tratados de obrigações)

‘Lesson-drawing’ (racionalidade perfeita)

Transferência coercitiva (imposição direta)

‘Lesson-drawing’ (racionalidade limitada)

Condicionalidade

Voluntariamente mas motivado por uma necessidade percebida (tal como desejo de aceitação internacional)

A transferência de políticas é concebida como um conceito amplo que envolve diversas formas de transferências com distintos atores envolvidos. Agentes Eleitos, Burocratas, Servidores civis, Instituições, Ideologias, atitudes, Valores culturais, Consultores, Think Tanks, Corporações Transnacionais e Instituições Supranacionais podem ser atores chave na transferência de políticas. Dessa maneira, Instituições supranacionais, como Cortes Internacionais, são atores que geram transferência de políticas de uma jurisdição a outra. Assim, os casos analisados neste trabalho podem se enquadrar como transferências obrigadas (por tratados e acordos 678

internacionais), e principalmente como transferências limitadas pela necessidade de aceitação internacional, os casos mencionados são exemplos de como uma instituição supranacional interfere na agenda de políticas públicas no Brasil. Neste sentido, o Estado brasileiro tem cumprido algumas das recomendações feitas pela Comissão e principalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A capacitação de pessoal das Forças Armadas e policias militares estaduais em direitos humanos tem sido realizado amplamente e estão elencados entre as propostas gerais de ações governamentais desde o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH II): “Estimular o aperfeiçoamento dos critérios para seleção e capacitação de policiais e implantar, nas Academias de polícia, programas de educação e formação em direitos humanos, em parceria com entidades não-governamentais.”, (SECRETARIA DE ESTADO DE DIREITOS HUMANOS, 2011). Entretanto, no tocante a criação da “Comissão da Verdade” pelo Governo Federal, visando à apuração das violações aos direitos humanos havidas durante o regime militar, principalmente no tocante ao Caso “Guerrilha do Araguaia”, aqui discutido, a ex-professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Anita Leocádia Prestes, filha do líder comunista Luis Carlos Prestes, afirmou em recente entrevista que: Posso perceber que [A Comissão da Verdade] vai ser para inglês ver. Foi instituída por pressão do setor de direitos humanos da OEA. A comissão está cheia de restrições. É uma tarefa impossível de ser executada por 7 pessoas em apenas dois anos. (AVENTURAS NA HISTÓRIA, 2011, p. 09).

A instalação da Comissão da Verdade seria uma hipótese de política pública determinada por transferência limitada pela aceitação internacional, feita, consoante a análise da Profa. Anita Prestes, para atender às pressões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, dispondo de pouco tempo e recursos para realizar sua tarefa, daí a expressão utilizada: “[...] vai ser para inglês ver”, lembrando de que no século XIX, o governo brasileiro havia abolido legalmente o tráfico de escravos devido às gestões britânicas, mas não adotou medidas concretas e efetivas neste sentido. Embora o cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos seja decorrente da Convenção Americana de Direito Humanos, ou seja, existe uma obrigação firmada em tratado internacional, já discutimos aqui que a Corte possui poucos mecanismos para garantia direta de suas decisões, isto significa que a adoção de políticas públicas consoante as sentenças e medidas provisórias impostas pela Corte decorrem mais da necessidade do Estado Brasileiro ser visto internacionalmente como um “respeitador dos direitos humanos”, que da capacidade da Corte determinar coercitivamente políticas públicas específicas. A rejeição da revisão da Lei de Anistia (Lei n.º 6.683/1979) pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n.º 153 interposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por sete votos a dois (STF, 2010), é um 679

exemplo da capacidade limitada da Corte Interamericana de Direitos Humanos para determinar políticas públicas do Estado brasileiro. Ou seja, no mesmo ano que a sentença do Caso “Gomes Lund” declarou que a lei brasileira de anistia seria incompatível com a participação do Brasil no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o mais alto tribunal do país confirma expressamente a vigência e constitucionalidade da referida lei. Além disso, devemos considerar que o número de ações em face do Estado brasileiro é muito pequeno, diante das inúmeras violações não apuradas aos direitos humanos havidas em nosso país. Isso demonstra que além das limitações de eficácia, o Sistema Interamericano de Direito Humanos, possui sérias limitações de alcance.

6. Considerações finais O ingresso do Brasil no Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi um importante passo na consolidação do Estado Democrático de Direito no país, além de sua inserção na ordem internacional. As sentenças e as medidas provisórias aplicadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos são capazes de influenciar certas políticas públicas que estejam na agenda política do Estado brasileiro, constituindo assim, predominantemente, aquilo que a Ciência Política denomina de transferência limitada de políticas públicas. Assim, as decisões da Corte não são capazes de “determinar” completamente as políticas públicas adotadas pelo Brasil. Isto acontece em grande medida, pela própria ausência de mecanismos coercitivos eficazes, assim o mencionado Tribunal não consegue realizar uma plena transferência obrigatória de políticas públicas ao Estado brasileiro.

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U

VIEIRA, L. Os Argonautas da Cidadania: A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.

681

Normativismo sistêmico e tipicidade conglobante mediante uma sociologia do direito penal: análises da nova Lei da Prisão Cautelar e críticas ao garantismo sob um enfoque sociológico Fernando Antonio da Silva Alves1 TP

PT

Resumo Este estudo tem por objeto as relações entre normas e condutas sociais tidas normativamente como delituosas, analisando a recente reforma do Código de Processo Penal brasileiro, com alterações no instituto da prisão cautelar, promovidas através da Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. O objetivo é analisar os efeitos jurídicos produzidos pela citada lei, elaborada sob os pressupostos do garantismo penal, para, mediante uma crítica à proposta garantista, propiciar uma introdução à teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, com postulados do normativismo sistêmico, através de uma metodologia baseada no código lícito X ilícito, para diferenciar o sistema jurídico dos demais sistemas sociais, verificando, assim, até que ponto a proposta garantista no direito penal não consegue sair do padrão normativo de um sistema operativamente fechado, baseado no direito oficial estatal. Para isso, o emprego da teoria da tipicidade conglobante torna-se útil ao estudo, no sentido de observar se, mediante situações fáticas que ensejem ou não a aplicação de medidas cautelares, conforme a forma preconizada pelas alterações normativas produzidas pela Lei 12.403 nas normas processuais penais, os julgadores efetivamente contribuem ou não para a manutenção de um Estado Democrático de Direito, constatando se determinadas condutas típicas realmente adéquam-se aos padrões de tipicidade fixados globalmente por todo o ordenamento jurídico, como um sistema comunicativamente aberto; ou se, conforme uma mera tipicidade legal, as conquistas do garantismo, com o surgimento de uma nova lei processual sobre a prisão cautelar, apenas se limitam à manutenção de um modelo punitivo excludente, sem que isso implique em acoplamentos estruturais efetivos do sistema do direito com os demais sistemas sociais. Por fim, busca-se construir uma teoria da tipicidade voltada muito mais para uma antinormatividade, baseada na anormalidade de conduta, do que numa tipicidade confundida apenas com simples ilegalidade, pautada numa correspondência formal entre fato e norma. Palavras-Chave: Direito penal; normativismo sistêmico; tipicidade conglobante; garantismo; teoria sociológica.

1

Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Mestre em Ciências Sociais pela PUC/SP. Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade Mauricio de Nassau - Campus Natal/RN.

682

1. Introdução Este artigo não tem a pretensão de fundir teorias, mas sim a de contextualizar as mais proeminentes correntes de pensamento e conceitos teóricos desenvolvidos durante a evolução histórica da ciência penal, especialmente nos últimos anos. O direito brasileiro não permaneceu imune ante essas influências doutrinárias e, hoje, numerosos integrantes da comunidade jurídica debatem a aplicabilidade das normas penais, conforme determinados esquemas teóricos, que vislumbram a sociedade dentro de aspectos mais punitivos ou menos punitivos. No âmbito da tipicidade, quase todas as teorias do tipo penal convergem para um ponto em comum: definir uma conduta como sendo algo que possa ser chamado de crime ou fato punível2. Das diversas correntes teóricas que se desenvolveram a pouco mais de cem anos, TP

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desde a as teorias de matriz naturalista, passando pelo normativismo neokantiano até a doutrina finalista, buscou-se uma teoria do crime onde pudesse ser definido o horizonte de fatos humanos onde prevalecesse a aplicabilidade de normas penais. As repercussões da definição de crime no decorrer da história da política criminal não passaram despercebidas nos movimentos de criminalização e descriminalização de condutas, além da aplicação de medidas prisionais que muitas vezes tinham por escopo muito mais definir e neutralizar os indivíduos e grupos sociais perigosos, do que auferir propriamente a responsabilidade pela autoria de uma conduta tida como ilícita, daí que correntes teóricas como o garantismo penal passaram a ser desenvolvidas na perspectiva de coibir abusos dessa política criminal, face sua influência pelas ideologias penais que concebiam a pena como mecanismo de vingança e expiação até surgir às modernas teorias da prevenção, assentadas originariamente num utilitarismo que identificava um universo de destinatários da norma que poderia ser visto como maioria não desviada ou como minoria desviada.3 TP

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Pretende-se neste breve estudo, analisar-se um dos enfoques da teoria do crime, a partir de algumas teorias vigentes acerca da conduta desviada, a fim de se apurar quais são os seus reflexos para a política criminal, mormente na formação de normas jurídico-processuais, como aquelas que disciplinam a prisão cautelar, verificando até que ponto esquemas teóricos formulados por autores como Jakobs, acerca da prevenção geral e da manutenção de um sistema penal punitivo, a fim de restabelecer a vigência da norma, pode ou não ir de encontro a teorias que partem do pressuposto inicial de identificar se dadas condutas podem ser ou não definidas como delitos, tais como a teoria da tipicidade conglobante. A partir da colisão ou não de esquemas teóricos distintos, fincados ideologicamente em campos diametralmente opostos, mas vinculados pela matriz teórico-comum do finalismo, será possível observar até que ponto o normativismo sistêmico e a tipicidade conglobante podem ser interpretados criticamente pelo 2

DIAS, JOEL DE FIGUEIREDO. Direito penal-parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal; Coimbra Editora, 2007.

3

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 262.

683

operador jurídico nacional, no momento da necessidade de aplicação de dispositivos legais recentemente em vigor, tais como a Lei nº 12.403, que trata, dentre outros assuntos, da aplicação da chamada medida processual de prisão cautelar, no curso do processo penal, e da necessidade ou não dessa medida, conforme determinadas condutas sejam tidas como ilícitos penais, ou a manifestação da violação de expectativas sociais normativamente previstas.

2. A tipicidade conglobante: aspectos críticos Inicialmente, uma teoria do direito penal é antes de tudo uma teoria do tipo, e não uma teoria do crime. Deixa-se para a criminologia a tarefa de sustentar todo um edifício teórico que se concentre nos fatores de gênese e desenvolvimento da criminalidade, do estudo do criminoso ou da crítica do sistema criminal, enquanto que ao direito penal compete um estudo da formação da norma jurídica, através da qual serão observadas as condutas humanas. Isso já é de conhecimento corrente entre os estudiosos do direito penal, através do advento da tipicidade formal clássica, baseada no velho modelo positivista de subsunção do fato á norma, cujos postulados são por demais conhecidos e difundidos em salas de aula para os estudantes de Direito, no meio acadêmico-universitário. Entretanto, o que ganha relevo num contexto social, abrindo-se o direito penal para aspectos sociológicos da conduta humana e do próprio direito, é de como uma definição material de crime se torna uma definição jurídico-formal através da teoria da tipicidade conglobante. Antes de se iniciar propriamente uma discussão acerca dessa relevante teoria, torna-se necessário inicialmente verificar a elucidativa relação que Zaffaroni e Pierangeli descobrem entre interesse, bem e norma.4Quando o interesse se transforma em bem jurídico, a partir do momento em que se TP

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torna relevante para a norma, o legislador parte do ente social e chega até o tipo penal, no momento em que prescreve uma norma penal para tutelar aquele interesse que a norma considerou juridicamente relevante. A lei penal é resultante dessa construção entre o bem jurídico, a norma e o tipo, sendo que ao final será o tipo penal que ficará descrito na lei, enquanto que a norma e o bem jurídico serão elementos distintos, porém conhecidos através do tipo descrito na lei, e a partir de onde o legislador ajustará o rol de condutas presentes na sua observação, verificando que, toda conduta que seja descrita no âmbito do tipo, será tida, por conseguinte, como conduta contrária à norma, tendo em vista que em sua gênese, o tipo penal foi criado para proteger um interesse tutelado pela norma, assim chamado de bem jurídico. Mas o que ocorre no meio desse iter e que pode redimensionar o que entendemos por conduta delituosa? Zaffaroni constata que a antinormatividade de uma conduta não pode ser comprovada apenas pelo fato desta conduta ser típica.5A tipicidade legal é apenas uma etapa de TP

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4

ZAFFARONI, Eugênio Raul. PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 455.

5

ZAFFARONI, Op.cit. p.456.

684

um juízo de desvalor sobre a conduta, onde a etapa subseqüente será a verificação de sua antinormatividade. Existe um segundo momento de atribuição de tipicidade, quando no juízo sobre a conduta verifica-se o alcance proibitivo da norma; ou seja, aquilo que é efetivamente proibido pela norma e o que é permitido, acerca das considerações que a norma faz sobre bens e interesses que terão ou não sua relevância jurídica. É aqui que os princípios iniciais da teoria da tipicidade conglobante aproximam-se de outras teorias, como o normativismo sistêmico, através de conceitos teóricos baseados na distinção entre riscos permitidos e proibidos pela norma, que darão origem ao conceito de imputação objetiva. Quando Zaffaroni e Pierangeli dizem que a tipicidade penal não se reduz à tipicidade 6

legal, estão a dizer que a fórmula legal não abarca todas as possibilidades de proibição previstas TP

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pela norma, e assim determinadas condutas podem ser tidas como inicialmente típicas, mas, posteriormente não o serão. É importante aqui, sob pena de deixar por demais confuso o leitor, estabelecer o conceito explorado por autores como Jakobs, a partir da teoria de Luhmann, de expectativa normativa, a fim de que o estudo possa ser avançado no tocante à demonstração das contribuições das teorias sociológicas para teorias jurídico-penais como a tipicidade conglobante. Comportamentos sociais podem ser estudados no âmbito da sociologia enquanto estruturas ou sistemas. Quando reunidos sob a forma de estruturas, esses comportamentos podem ser vistos enquanto expectativas, construídas no decorrer de relações entre os indivíduos e grupos componentes dessa estrutura, onde por sucessivos processos de seletividade, fundamse expectativas acerca da conduta do outro, para a manutenção da própria estrutura social e o estabelecimento de mínimas regras de convivência, e de onde se extraem os interesses que virão a ser tutelados por normas jurídicas. Entretanto, um conceito fulcral encontrado na teoria de Luhmann, e que por vezes poderia passar despercebido, é o de desapontamento.7Nas estruturas sociais fundadas em expectativas TP

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de comportamento, pode ocorrer violações dessas expectativas, e a forma do grupo social lidar com isso é que irá sustentar toda a lógica fundante de uma intervenção jurídica, segundo os moldes teóricos sugeridos por Luhmann. Diferentemente das expectativas cognitivas, surgidas espontaneamente na vida social, adaptadas aos desapontamentos conforme eles vão surgindo, nas expectativas normativas, não há apenas uma não assimilação de desapontamentos, como há sua antecipação, na função que possuem as normas de estabilização das expectativas em termos contrafáticos.8 TP

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Assim, é tarefa das normas estabelecerem uma vigência irrevogável de expectativas que estejam a salvo da frustração ou do desapontamento, mediante a definição daquelas expectativas que levam a condutas permitidas e outras proibidas. Serão as condutas proibidas àquelas que 6

Ibid. p.549.

7

LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 55.

8

LUHMANN, Op. cit. p. 57.

685

violam expectativas e geram um desapontamento que tem que ser coibido pela norma. É nesse âmbito de normatividade entre expectativas que necessitam de estabilizam para que não sejam frustradas que se dá o trajeto da tipicidade. A tipicidade conglobante surge de um âmbito de normatividade em que nem todas as condutas descritas como violações de expectativas serão, efetivamente, fonte de desapontamento; daí que a tipicidade acabará por se desdobrar em dois momentos, como assinalaram acima, Zaffaroni e Pierangelli. Retornando, portanto, ao conceito principal (o de tipicidade conglobante), após os esclarecimentos acerca do âmbito social de expectativas onde irá ser fundada a tipicidade, resta saber até que ponto tal construção teórica será relevante para uma política criminal avessa ao punitivismo em nossa sociedade, e até que ponto a tipicidade servirá apenas como pretexto para medidas punitivas criminalizantes ou efetivamente sancionatórias. Entendido o dever jurídico enquanto uma expectativa normativa consubstanciada no âmbito da normatividade e não da antijuridicidade, isso leva a sérias implicações no tocante a quais condutas a norma penal definirá como típicas e sujeitas a uma sanção. Zaffaroni e Pierangeli tentam demonstrar que antijuridicidade não se confunde com atipicidade, no tocante ao cumprimento de um dever jurídico.9 Esses autores citam o exemplo do artigo 23, II do Código TP

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Penal Brasileiro, acerca do “estrito cumprimento do dever legal”, que, segundo eles, é visto por alguns intérpretes da lei penal como causa de justificação, quando na verdade se trata de conduta atípica. Assim, um policial que detém um suspeito na rua e o leva para uma delegacia, não comete a conduta típica do seqüestro, constrangimento ilegal ou cárcere privado; assim como, o cirurgião que tem que abrir as vísceras do paciente em um procedimento cirúrgico, não está cometendo delito de lesão corporal. Mas, enquanto a determinadas ações de integrantes de movimentos sociais? Podemos aplicar a tipicidade conglobante? No caso da desobediência civil, e em manifestações como a ocupação de prédios, espaços públicos ou propriedade privada, tão somente para exercício do direito de resistência por meio do protesto, cabe indagar se o âmbito de uma tipicidade conglobada exclui delitos como a invasão de domicílio. Sabe-se que a definição de bem jurídico é fundamental para a teoria da tipicidade conglobante (algo que não é relevante para o normativismo sistêmico, como se verá adiante). Entretanto, para esta teoria, a afetação do bem jurídico por meio de uma lesão ou perigo, deve levar em conta que a velha distinção entre perigo concreto e perigo abstrato não subsiste diante da tipicidade, uma vez que, para que uma conduta seja efetivamente punível, deve haver a prova efetiva do perigo produzido ao bem jurídico, através da realização de uma conduta que, por estar sendo realizada, já representa um perigo.10 TP

9

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ZAFFARONI, Manual de direito penal brasileiro, p. 552.

10

ZAFFARONI, Op. cit., p.561.

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E a quem interessa a proliferação de perigos? A existência do conceito de perigo na normatividade penal diz respeito muito mais à aplicação de medidas processuais como o aprisionamento, do que com uma definição de maior relevância para o direito material, uma vez que o que irá interessar a norma penal será ter havido ou não uma efetiva afetação de bens jurídicos, na violação de expectativas normativas, para que se torne aplicável uma norma penal. O perigo concebido como uma situação social de constante ameaça, onde bens jurídicos como a vida e a liberdade estariam constantemente ameaçados por conta da criminalidade, enseja tendências preocupantes no âmbito da política criminal, levando a sociedade a uma espécie de totalitarismo da defesa diante do perigo,11gerando efeitos colaterais na política criminal tais como TP

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processos de criminalização a partir de uma expansão punitiva do sistema penal, além de uma onda de aprisionamentos, baseados em tipos penais abertos, tais como a periculosidade, o que configura um direito penal do autor. Nesse contexto é que o emprego de um juízo de tipicidade que leve em conta aspectos mais profundos da conduta, acerca da violação ou não de bens jurídicos, que é o que irá interessar ao âmbito da norma que tutela um determinado bem, esbarra no imediatismo de uma política criminal voltada para modelos penais que enfatizam a segurança diante dos perigos, mais do que o efetiva verificação de afetações ou não de bens jurídicos. No momento em que a proteção da norma se torna mais importante do que a proteção de bens jurídicos, é que um modelo totalitário de aparato penal pode surgir, num contexto em que a própria sociedade renuncia a parte de sua liberdade em prol de uma suposta segurança diante dos perigos iminentes produzidos pela criminalidade, desenvolvida nas últimas décadas do século passado, mormente na primeira década do século XXI. Os discursos populistas de “Guerra às Drogas” ou “Guerra ao Terror” passam a ocupar os meios midiáticos de comunicação e influenciam a política criminal, assentada em teorias penais que julgam, no âmbito da normatividade, uma série de condutas que, contrariamente ao que dispõe a tipicidade conglobante, são invertidas na sua consideração como fatos puníveis, uma vez que, ao se punir a simples preparação, como ocorre no caso das leis sobre crime organizado ou organizações criminosas, está se dando lugar a uma tipicidade meramente formal e não conglobante. É o que poderá ser visto adiante, no decorrer deste escrito.

3. O Normativismo Sistêmico e a política criminal do século XXI Toda teoria penal é, em si, normativista, porque tomam como ponto de partida a norma e não a realidade social. Não obstante as influências da criminologia crítica e da sociologia criminal moderna, o problema do fato punível ainda é um problema de norma, mais do que o fato socialmente considerado, mas algumas teorias penais tendem a render uma espécie de tributo à

11

BECK, Ulrich, Sociedade de risco. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 97.

687

norma mais acentuado do que outras correntes teóricas das ciências criminais. É o caso do normativismo sistêmico, corrente de pensamento que tem como principal representante o jurista alemão Günther Jakobs, que ganhou bastante destaque nos últimos anos, sobretudo no marco de uma política criminal voltada para discursos de segurança, notadamente nos primórdios do século XXI. Além de se ater ao conceito de prevenção geral, o normativismo de Jakobs pode se dividir em duas grandes teorias: a imputação objetiva e o Direito Penal do Inimigo; sendo que a imputação objetiva terá um maior destaque neste texto, levando-se em conta sua possível relação com outras teorias penais, como a tipicidade conglobante. Ambas as teorias penais, tanto a tipicidade conglobante como a imputação objetiva, partem de um ponto em comum referente à discrição de situações permitidas e proibidas. A diferença está em até que ponto uma das teorias está vinculada aos termos de uma política criminal voltada para o punitivismo e até que ponto outra se apega à tradição sócio-liberal, de viés abolicionista. O normativismo de Jakobs, vinculado à teoria dos sistemas de Luhmann, não se trata de uma única teoria, mas sim de vários recortes teóricos, originados na teoria sociológica e que empregados no direito penal, acabam por revelar uma série de conceitos, tais como a prevenção geral positiva, e a imputação objetiva, úteis para configurar o que alguns autores chamam de tipicidade objetiva (onde também poderia ser reunida a tipicidade conglobante). O normativismo de Jakobs, em síntese, reveste-se da abordagem funcionalista, própria das ciências sociais, para analisar a conduta ilícita como a violação de um papel social.12Se o TP

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sistema do direito resume-se a um conjunto de expectativas normativas que tem a função de estabilizar comportamentos, consolidando o exercício de um papel social, então qualquer frustração dessas expectativas implicará numa reação que terá como supedâneo a necessidade de confiabilidade na norma; pois esta simbolizaria, no pensamento de Jakobs, a confiança que os indivíduos de uma sociedade têm na sua própria capacidade de manutenção social. A prevenção geral positiva surge como uma decorrência dessa sociedade que necessita manter estabilizadas suas expectativas, surgindo a sanção não como uma mera intimidação, mas sim como uma conseqüência da norma que é a possibilidade de reforçar a consciência jurídica de uma comunidade, recuperando sua adesão à norma.13O juízo de tipicidade, é, portanto, um juízo sobre TP

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a adequação ou não de uma conduta a um papel social, e se um determinado comportamento não aflige a norma que simboliza a manutenção de uma expectativa; que é, ao final, a manutenção do próprio sistema social.

12

Segundo Jakobs, as expectativas sociais são dirigidas a um determinado papel que é exercido pelos indivíduos no curso de suas relações sociais, tornando cada comportamento socialmente relevante. JAKOBS, Günther. A imputação objetiva no direito penal. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010, p.20. 13

SÁNCHEZ, Jesus Maria Silva. Aproximação ao direito penal contemporâneo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, p. 357.

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Uma das grandes questões é observar até que ponto a tipicidade objetiva do normativismo sistêmico pode se tornar conglobante, utilizando dos mesmos artifícios teóricos utilizados por Jakobs. Sabe-se que, por sua teoria, o que interessa para a configuração da tipicidade e atribuição de sanção a uma conduta que corresponda a um risco não permitido; pois a exclusão da tipicidade e não de uma causa de justificação encontra-se em um comportamento plenamente aceito como normal.14Ora, a tipicidade conglobante atua da mesma forma, considerando que TP

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estão fora do âmbito da tipicidade condutas que afastam a tipicidade, como o exercício de um dever jurídico ou comportamentos que, apesar de aparentemente parecerem típicos, são geralmente tolerados pela sociedade. Nesse sentido, dentre os defensores da expansão punitiva a partir de criminalização de condutas, permanece o questionamento se determinadas condutas realmente merecem ser consideradas como típicas, se, são tão socialmente toleradas que uma criminalização seria no mínimo inócua ou completamente supérflua. No que tange aos costumes e hábitos sexuais, por exemplo, não faria mais sentido tipificar a sedução, outrora prevista na norma contida no art. 217 do Código Penal e revogada pela Lei nº 11.106, de 2005, levando em conta a posição social da mulher e as conquistas políticas de gênero a partir de movimentos sociais como o feminismo no século XX, assim como, em função desses movimentos, tipifica-se, hoje, o assédio sexual, previsto atualmente no artigo 216-A, daquele diploma legal, considerando a maior participação da mulher no mercado de trabalho e as discriminações de gênero, ainda existentes, dentro de organizações profissionais hierarquizadas. O problema de Jakobs, para os seus críticos, é que, ao defender a função social do direito penal, tendo a pena como uma resposta à violação da norma, este estaria, na verdade, promovendo a expansão punitiva, propondo respostas penais para problemas sociais, quando, na verdade, ao invés do sistema penal, poderiam ser colocadas instituições jurídicas diversas, encarregadas de promover uma estabilização social, mais do que as normas penais, conforme a crítica de Baratta.15A tipicidade conglobante no pensamento de Jakobs resume-se a verificar se no TP

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âmbito da normatividade existem condutas socialmente toleradas e outras não, e em relação a essas últimas prevaleceria a atipicidade, mais do que causas de justificação, uma vez que, para serem condutas justificadas, estas teriam que ter sido anteriormente típicas. O problema da tipicidade conglobante introduzida no normativismo sistêmico é que a formação de uma dimensão nova e ulterior de normatividade, distinta da tipicidade simples, não impede a expansão punitiva, uma vez que autores como Jakobs continuam a ver como solução para os problemas sociais a aplicação de leis penais, quando na verdade, estas deveriam ser reduzidas em prol de uma intervenção penal mínima, graças ao rol de condutas atípicas, mas superficialmente típicas, que poderiam ser verificadas a partir de uma tipicidade conglobante. Em síntese, através da teoria de Jakobs, o expansionismo penal prosseguiria, sem que outros horizontes da normatividade

14

JAKOBS, A imputação objetiva no direito penal, p. 39.

15

PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Um novo sistema do direito penal. Barueri: Manole, 2003, p. 11.

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pudessem ser concebidos, sem que as opções normativas passassem por soluções de caráter não penal. Jakobs afasta-se de preocupações garantistas, o que não acontece com seu colega Roxin, em função da preocupação que o primeiro tem tão somente com as necessidades do sistema jurídico16, não se preocupando com os interesses que se encontram no entorno social, que TP

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acabam por serem tutelados pelo direito através de normas jurídicas. Como o direito penal não se destina a tutelar bens jurídicos, mas sim a cuidar do bom funcionamento do sistema jurídico, na sua missão de estabilização de comportamentos, conforme a teoria defendida por Jakobs observa-se que no lugar da ressocialização deveria figurar a prevenção positiva, através de uma prevenção especial, uma vez que para o citado teórico alemão a confiabilidade da norma a partir do restabelecimento de sua vigência através da sanção, também interessaria ao infrator. A prevenção especial nada mais seria do que um desdobramento da prevenção geral, no que tange à função estabilizadora que é conferida à norma penal pela teoria de Jakobs. As medidas punitivas, tão limitadas pelo garantismo, teriam seu fundamento na necessidade de correção do delinquente, como um dos efeitos de uma doutrina de correção que via a pena como tratamento, tão típicas das doutrinas do Estado liberal que se desenvolveu no começo da era moderna.17 TP

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O que torna polêmica, entretanto, a teoria de Jakobs é quando este se refere ao bem jurídico, e daí formula sua crítica a esse conceito, dizendo que não é precípua função do direito penal a proteção de bens jurídicos, levando em conta que tais bens não possuem uma proteção absoluta da sociedade, tendo em vista que esta mesma sociedade admite o sacrifício desses bens em prol do contato social, uma vez que toda interação humana implica uma margem de risco socialmente tolerado.18Se no exercício de papéis sociais, os indivíduos contraem riscos para TP

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manterem seus relacionamentos, o âmbito da tipicidade será aquele dos riscos que não são socialmente tolerados e que a partir disso engendram o mecanismo da tipicidade. Ocorre que nos moldes de uma sociedade de risco, havida em nossos dias, alarmada pelos imediatismos da insegurança, da cultura do medo e dos discursos de alarma social, tais situações de intolerância sobre os riscos da sociabilidade, acabam por se tornarem maiores ou se agigantarem, diante de uma crescente expansão punitiva e uma gradativa criminalização de comportamentos. A questão fulcral é que, ao não se afastar da doutrina dominante que vê como finalidade última do direito a paz social, Jakobs acaba por fornecer munição aos argumentos de uma política criminal baseada nos discursos de lei e ordem, uma vez que compete a aplicação da sanção penal como forma de se estabelecer a confiança no sistema. Na obtenção de paz, os indivíduos de uma sociedade admitiriam o sacrifício de bens jurídicos como a liberdade, tendo em vista o

16

GOMES, Luiz Flávio. Teoria constitucionalista do delito e imputação objetiva. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 80. 17

FERRAJOLI, Derecho y razón, p. 264.

18

PEÑARANDA, Op. cit., p.39.

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advento de situações socialmente intoleráveis, como a desconfiança e os medos em relação a outro, que poderia ser visto como um produtor de riscos não permitidos ou até mesmo como um inimigo. A dinâmica do aprisionamento em nossa sociedade assume um rumo preocupante, cabendo a necessidade de o legislador elencar os casos em que a prisão é possível. Como é sabido, além de ser uma conseqüência de uma sentença penal condenatória, a prisão com a efetiva privação da liberdade também ocorre no decorrer do processo, na forma de medida cautelar, sendo aplicada a norma processual sob os mesmos pressupostos de defesa da vigência da norma e da tipicidade conforme a verificação de riscos socialmente tolerados ou não, nos moldes da tipicidade conglobante. É nesses termos que irá se desenvolver a legislação penal processual em nosso país, especialmente com a publicação da Lei nº 12.403.

4. A nova lei da prisão cautelar e o enfoque garantista, contraposto a uma abordagem normativista-sistêmica A Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, que alterou vários artigos do Código de Processo Penal brasileiro em vigor (notadamente no que diz respeito à prisão e a adoção de outras medidas processuais de natureza cautelar), ganhou considerável destaque no meio jurídico e ampla divulgação na mídia, principalmente por apresentar alternativas à velha dicotomia prisão X liberdade provisória. Entretanto, é possível verificar que das teorias acima estudadas, em vários aspectos elas podem ser aplicadas à realidade da prisão cautelar no Brasil, não obstante encontrar-se presente de forma quase predominante, o enfoque garantista. Em primeiro lugar, o princípio constitucional da presunção da inocência não esbarra no normativismo que permeia a doutrina das prisões cautelares, uma vez que um criticável poder geral de cautela, apesar de comum no processo civil, demonstrou ser problemático no processo penal, tendo em vista que apesar da Lei nº 12.403 ter estabelecido um modelo polimorfo de medidas cautelares, diversas da prisão, a prisão ainda é possível conforme o livre-arbítrio e discricionariedade do juiz.19Ao juiz, ainda compete, seguindo-se a prevenção geral positiva, a TP

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tarefa de garantir a estabilização de comportamentos como função das expectativas normativas, mantendo-as em evidência a partir da reafirmação da vigência da norma outrora violada, em sua confirmação contrafática. Assim, todas as vezes que o réu, no processo penal, incorrer em quaisquer das situações que ensejarem as medidas alternativas à prisão, na atual redação do artigo 319 do Código de Processo Penal, há nove possibilidades de reafirmação da vigência da norma, por meio de medidas cautelares que vão do comparecimento periódico a juízo, até a monitoração eletrônica.

19

LOPES JUNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 11.

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Ao prever hipóteses de medidas substitutivas da prisão cautelar, o legislador indicou quais as condutas típicas que podem ser encontradas pela tipicidade conglobante, no momento em que o critério da autoridade judicial para a decretação da prisão cautelar será dado por exclusão, quando não for cabível a substituição da prisão por outra medida cautelar, conforme dispõe o artigo 282, § 6º do CPP, alterado pela recente Lei nº 12.403. Aqui, no momento em que condutas facilmente tipificáveis pela tipicidade tradicional, tornam-se típicas pelo critério da normatividade, que em muito transpõe os meros limites descritos pela lei, pode-se falar de aplicabilidade da norma em relação a um fato punível, a partir de uma norma de direito adjetivo que visa materializar no decorrer do processo a norma de direito material, com a efetiva decretação da sanção punitiva na sentença. Não se deixa de perceber que, no que tange à prisão em flagrante, uma vez que uma conduta não estiver proibida pela norma, mesmo que sua adequação esteja nos termos do tipo legal, no momento da lavratura do auto de prisão pela autoridade policial, esta prisão será considerada ilegal pela autoridade judicial e não será convertida em prisão preventiva, conforme a nova redação do artigo 310, incisos I e II do CPP, exatamente por não se encontrar a conduta no âmbito de uma antinormatividade. A antinormatividade da conduta, conforme a teoria da tipicidade conglobante, deverá estar evidenciada seja na realização da prisão em flagrante, seja da decretação de uma prisão preventiva. Aqui não se trata da singela proteção de um bem jurídico, como a liberdade do réu frente a sua presunção de inocência diante de limites impostos à intervenção do Estado no decorrer do processo contra acusados em processos criminais, mas sim de uma confirmação da norma por meio da prevenção positiva, onde os casos elencados de decretação da prisão cautelar, conforme os requisitos dos artigos 312 e 313 do CPP servem apenas para reafirmar a vigência da norma processual como meio de realização da norma material que, ao final, deverá realizar sua função precípua de estabilização social; ou seja, deverá atribuir uma sanção (pena) a alguém. A aplicação da medida cautelar de prisão, prevista nos citados artigos do diploma processual penal, já nos moldes da Lei nº 12.403, coaduna-se com a pretensão de Jakobs de aplicar a medida de aprisionamento como forma de restabelecer a confiança social na vigência do sistema. Prisão cautelar e prevenção positiva caminham, portanto, a passos juntos, no momento em que a tipicidade referente a uma conduta investigada por meio do processo, com vistas a definir a autoria e a materialidade de um suposto delito, refere-se a riscos socialmente suportáveis ou não, e que serão objeto de apreciação do legislador, em primeiro lugar, quanto à norma penal abstrata, e do juiz criminal no contexto de aplicação da norma penal ao caso concreto. Se, no direito material, a tipicidade passa por detectar riscos não socialmente permitidos ou proibidos, no processo penal esses riscos transmutam-se em situações onde é permitida ou não a decretação da prisão cautelar, sendo que o risco dirige-se agora ao processo, e não a uma relação social conflituosa, anteriormente desenvolvida e que se tornou a gênese de um delito.

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Não obstante apresentar contornos nitidamente normativistas, seguindo um corte funcionalista que reproduz com facilidade os conceitos adotados por Jakobs, observa-se que as novas regras processuais quanto à adoção de medidas cautelares para situações que prescindem da prisão processual ou que lhe dão fundamento, muitas vezes parecem estar associadas a discursos garantistas, como se a nova lei processual surgisse em nosso horizonte normativo como uma resposta à herança positiva e a tradicional contribuição da doutrina finalista para o direito penal brasileiro. Entretanto, a rotulação de ser a Lei nº 12.403 uma lei “garantista” merece aqui alguns reparos. É bem verdade que, como se amolda a um modelo normativo de direito pautado pelo respeito à estrita legalidade, racionalizado numa intervenção penal mínima e marcado pela subjugação do poder do Estado às garantias dos cidadãos,20a nova redação do Código Processo TP

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Penal, alterada pela Lei nº 12.403, ao lidar com a prisão processual, além de uma série de outras medidas substitutivas à prisão, parece seguir uma tendência nacional dos últimos anos de aproximar cada vez mais o direito penal e o direito processual brasileiro das teses do garantismo penal. Tal aproximação com essa corrente teórica parece evidente. Entretanto, não menos visível é a manutenção do paradigma liberal-clássico do direito penal tradicional, de manter no ordenamento jurídico a figura da prisão cautelar como um mal necessário, uma cruel necessidade, tendo em vista os vagos argumentos de garantia da ordem pública e econômica, como ainda dispõe o artigo 312 do CPP. Se for o caso de se falar de finalidade da norma na proteção de bens jurídicos, então a norma processual também teria essa finalidade no momento em que os bens jurídicos que estão em jogo são, além do regular e bom andamento do processo na efetivação da justiça estatal, seria a chamada “credibilidade das instituições”.21Caso a teoria de Jakobs fosse TP

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uma teoria que tratasse de instituições, talvez os argumentos em defesa da prisão cautelar poderiam ser mais fundamentados, o que não ocorre, tendo em vista que a prevenção geral positiva ou a imputação objetiva são teorias que defendem a sanção punitiva como fim de proteção da norma e não de proteção de instituições, sejam elas pertencentes a um poder liberalburguês ou decorrentes de um Estado social, resultante da conciliação entre interesses de classe. Apesar de se tratar de uma teoria que lida precisamente com bens jurídicos, o que lhe confere a essência, o garantismo de Ferrajoli não se distancia por completo do normativismo de Jakobs, como bem já pôde ser percebido neste estudo, quando se observa a vigência da Lei nº 12.403 e as alterações produzidas na legislação processual penal em vigor, em relação ao regime da prisão cautelar. Ao se autorreferenciar como um modelo de legalidade, dentro do Estado de direito e da democracia, o garantismo enquanto teoria de um governo per leges ou sub lege22 é, TP

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no aspecto penal, uma teoria genuinamente normativista, sendo que seu normativismo adquire 20

FERRAJOLI, Derecho y razón, p. 852.

21

Aury Lopes Jr. analisa o quão falacioso é o argumento de “garantia da ordem pública”, baseado numa suposta credibilidade das instituições; uma vez que o problema da prisão passa longe de ser um problema das instituições, num regime democrático, pois não são tão frágeis as instituições a ponto de se fragilizarem por conta de um delito. LOPES JUNIOR, Op. cit. p. 89. 22

FERRAJOLI, Op., cit. p. 856.

693

ares mais militantes, de crítica da política e da intervenção do Estado, do que uma abordagem meramente funcional como se percebe na teoria de Jakobs, em que o Estado se encontra situado no ordenamento jurídico como um simples garantidor de paz social. Mas é na forma de atuação do Estado e não quanto a sua finalidade que o normativismo sistêmico e o garantismo poderão se diferenciar, ao menos no ponto em que ingressa a tipicidade conglobante. Em um esquema normativo, a função da intervenção estatal, em termos de uma política criminal, diz respeito à manutenção de um edifício normativo, na criação de uma cultura de respeito às normas, onde o cumprimento da norma através de sua reafirmação pela sanção garantirá a paz social que também é desiderato dos garantistas, no que tange a uma intervenção estatal eficaz na defesa das normas, porém mínima, e dirigida sempre à manutenção de bens jurídicos, tidos como direitos fundamentais. O novo regime processual da prisão cautelar, surgido num Estado de direito, entendido não somente num aspecto legal strictu sensu, no que diz respeito a um Estado regulado por leis, mas sim de um regime político-estatal assentado numa base constitucional, onde o princípio da legalidade emerge como principal vetor do sistema político revela que os pressupostos garantistas não estão longe da moldura normativa correlata à teoria dos sistemas. A crítica ao normativismo sistêmico como teoria conservadora, a serviço do autoritarismo da expansão punitiva deve ser relativizada conforme os propósitos que estão por trás da política criminal adotada em sistemas jurídicos como o brasileiro, principalmente na virada do último século e chegada do novo milênio. Se for verdade que as reflexões teóricas de Jakobs podem estar a serviço do punitivismo, também não é leviano dizer que as grandes contribuições do garantismo, na concretização do Estado democrático de direito na sociedade moderna, nos últimos anos, parece agora ter dado sinais de esgotamento, devido à manutenção de discursos punitivos de lei e ordem, a iminência de formas de criminalidade consentâneas com o contemporâneo processo de globalização e a emergência de modelos penais baseados na segurança em detrimento de liberdades. O que importa na interpretação dos novos dispositivos processuais, assim como outros que venham a proliferar na extensa senda de textos normativos jurídico-penais, é de que forma as teorias penais podem influenciar no advento e desenvolvimento de uma política criminal voltada mais para os interesses da criminalização do que para a de resolução de conflitos que, inevitavelmente, acabam por requerer soluções penais. Tanto um processo de criminalização quanto a defesa de um direito penal mínimo caminham na corrente de uma normatividade que não deixa de ser observada toda vez que uma determinada sociedade alega que o sistema penal deve existir para proteger pessoas ou seus interesses, e nesse interregno, a manutenção de um Estado democrático é fundamental para que, aí sim, o sistema jurídico não se perca no autoritarismo de discursos populistas que só levam em conta a irracionalidade da punição, sem ter em consideração a contraparte das necessidades do sistema social. É necessário salientar que nem sempre os remédios penais são os mais autorizados a curar a litigiosidade social, mais do que outros dispositivos previstos num mesmo sistema do direito. 694

5. Conclusão Tarefa das mais difíceis talvez seja a de realizar uma síntese dialética das principais teorias que hoje recrudescem os debates existentes, acerca da viabilidade da aplicação das leis penais. Tanto no direito material quanto no direito processual, os estudiosos das ciências criminais debruçam-se sobre as contingências de uma realidade social complexa, onde a juridificação da vida às vezes cobra elevados preços, em virtude da iminência de sanções penais para problemas sociais. Em todas as teorias estudadas, buscou-se identificar até que ponto a reflexão crítica sobre seu alcance e pressupostos não superaria as rotulações que, por muitas vezes, comprometem o debate acadêmico, cristalizando opiniões antes mesmo que todos os meandros e dimensões de uma determinada contribuição científica possam ser investigados. A política criminal adotada nos últimos anos por nações de modernidade tardia como o Brasil, foi, por muitas vezes, vinculada a meras fórmulas mecanicistas de subsunção de fatos a normas, num velho modelo de tipicidade que hoje não encontra mais respaldo jurídico face os avanços das ciências criminais no decorrer do último século. Hoje, impera a necessidade de se rediscutir a aplicação da lei penal e da lei processual penal no Brasil, a partir da crítica ao ordenamento jurídico existente, através das recentes teorias penais, desenvolvidas no último quarto do século passado, mormente teorias como a prevenção geral positiva e a tipicidade conglobante. Acredita-se que, além dos maniqueísmos de classe, de considerar que determinada teoria penal sirva tão somente para satisfazer os interesses de uma classe ou grupo social dominante, a contribuição teórica das teorias normativistas possa superar os limites da mera abordagem funcionalista, para chegar a uma providencial análise descritiva da realidade social, por meio de um desvelamento dos mecanismos que fazem com que o sistema jurídico funcione como eficaz fonte de resolução de conflitos, sem que tais conflitos redundem, necessariamente, na obtenção de uma suposta paz social por meio do castigo. Afinal, a punição é apenas uma, e uma das mais reduzidas facetas do ordenamento jurídico de nossa sociedade.

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O direito fundamental da criança e do adolescente à integridade física: paradoxo à realidade do trabalho infanto-juvenil no município de João Pessoa – PB Glauco Ferreira de Souza Ribeiro1 TP

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Resumo

Abstract

A exploração de crianças e adolescentes como força de trabalho é um problema complexo. Torna-se objeto de atenção da sociedade, que se depara com menores exercendo ocupações insalubres e perigosas frente à legislação de proteção integral prevista no direito brasileiro. A coexistência entre a exploração da infância e adolescência e os textos legislativos cria um antagonismo, fomentado por múltiplos aspectos. O objetivo do estudo consistiu em analisar como é assegurado aos jovens o direito fundamental à integridade física, traçando um paralelo teórico e prático entre a garantia normatizada e a realidade do trabalho infanto-juvenil. A metodologia foi qualificada em dois aspectos: primeiro, quanto aos fins, foi explicativa, investigando os fatores que originam a problemática e a ação das políticas públicas criadas para enfrentá-la. Segundo, quanto aos meios, foi bibliográfica, pelo aprofundamento na revisão da literatura, que delineou uma breve trajetória do trabalho infanto-juvenil e sua contextualização nas mudanças culturais e econômicas vivenciadas pela sociedade, e de campo, com a coleta de dados junto a menores trabalhadores no município de João Pessoa – PB. A análise da legislação revelou que o Estado brasileiro possui um ordenamento jurídico avançado na proteção da integridade física da criança e do adolescente, mas dissonante da realidade de pobreza e exclusão experimentada pelos pequenos trabalhadores, assentada, sobretudo, no desemprego e na desigualdade social. São direitos que não alcançam às camadas populacionais menos favorecidas. Para que a norma se torne eficaz, deve-se conjugar esforços: a lei não garante sua efetivação sem uma integração entre a sociedade e os mecanismos estatais que têm a missão de erradicar o trabalho infanto-juvenil.

The exploitation of children and adolescents as the workforce is a complex problem. Becomes the object of attention of the population that faces young people performing dangerous and unhealthy occupations in relation to full legal protection under Brazilian law. The coexistence between the exploitation of children and adolescents and the legal texts creates an antagonism, fostered by many aspects. The objective of this study was to examine how young people are assured basic right to physical integrity, drawing a parallel between the theoretical and practical guarantee standardized and the reality of child labor. The methodology was qualified in two respects: first, as to the purposes, was explained by investigating the factors that cause the problem and the action of public policies designed to face it. Second, as to the means, it was literature by extending the literature review, which outlined a brief history of child labor and its context in the cultural and economic changes experienced by society, and field, by collecting data from child workers in the city of Joao Pessoa - PB. The analysis of the legislation revealed that the Brazilian state has an advanced legal system in protecting the physical integrity of children and adolescents, but the discordant of reality of poverty and exclusion experienced by child workers, based mainly in unemployment and social inequality. These rights do not reach the disadvantaged sections of the population. For the standard becomes effective, we must work together: the law does not guarantee its effectiveness without integration between society and state mechanisms that have the mission to eradicate child labor.

Palavras-Chave: Criança e Adolescente; Exploração; Legislação.

Keywords: Child and Adolescent; Exploration; Legislation.

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Bacharel em Direito - Universidade Estadual da Paraíba; Mestre em Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba; Docente na Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA) de Campina Grande/PB. E-mail: [email protected].

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1. Introdução O presente estudo, intitulado “O direito fundamental da criança e do adolescente à integridade física: paradoxo à realidade do trabalho infanto-juvenil no município de João Pessoa – PB”, tem como objetivo central analisar como vem sendo assegurado à criança e ao adolescente na sociedade brasileira o direito fundamental à integridade física, traçando um paralelo teórico e prático entre a garantia normatizada e a realidade da exploração de crianças e adolescentes como força de trabalho em atividades laborais no município de João Pessoa – PB. Dois foram os principais aspectos que nortearam a escolha desse objeto de pesquisa. Primeiro, o fato de o trabalho infanto-juvenil constituir-se em problemática densamente complexa, entrelaçada por fatores diversos que ratificam e alimentam sua existência. Questão social atrelada a valores históricos e culturais, converte-se numa das mais delicadas situações de vulnerabilidade social, óbice à realização da dignidade humana e à materialização dos direitos humanos. Paradoxalmente, sua contextualização histórica é de uma atualidade absolutamente perceptível. A sociedade testemunha em seu cotidiano, nas próprias ruas, exemplos de exploração de crianças e adolescentes nas mais variadas formas de trabalho, o que torna o trabalho infanto-juvenil um dos grandes desafios postos à contemporaneidade. Este fenômeno vem sendo gestado em modelos de desenvolvimento que tem como característica a alta concentração de rendas e riquezas, traço permanente na seara do capitalismo de desigualdade social e absoluta falta de proporção na propriedade de recursos, que exclui expressiva parcela da população dos mais elementares bens e serviços. O segundo aspecto refere-se à importância do desenvolvimento de um trabalho investigativo acerca de uma questão social de alta relevância, onde é possível a integração entre o universo jurídico e uma análise da realidade social vivenciada por crianças e adolescentes convertidos em trabalhadores, muitas vezes alijados dos mecanismos legislativos e sociais de amparo no município de João Pessoa, base concreta para a construção de um pensamento jurídico e social crítico que transcenda as paredes acadêmicas e dos tribunais: a proposta da pesquisa edifica-se na verificação in loco da concretização da norma constitucional, bem como da legislação ordinária, que tem como foco principal a proteção da criança e do adolescente por sua condição especial de ser humano em desenvolvimento.

2. Referencial teórico 2.1 O trabalho infanto-juvenil: uma breve trajetória no tempo Falar sobre a infância e a adolescência consiste em delinear também um perfil cronológico da história da humanidade, que visualizou a criança, o ser em desenvolvimento, de maneira extremamente diversa ao longo dos séculos. Desenhar o perfil de formação da identidade da

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criança e do adolescente, com os caracteres hoje observados, significa também navegar pelos vários momentos sociais, políticos e econômicos vivenciados pelo homem. No Império Romano a vida da criança dependia totalmente do desejo do pai. Igualmente a todas as relações sociais do mundo de Roma, o poder do pater familias era absoluto. Não existia maioridade legal nem idade de maioridade, não havia menores, e sim impúberes, que não mais o seriam quando o pai ou o tutor considerasse que estavam na idade de tomar as vestes de homem e cortar o primeiro bigode. Por sua vez, as mulheres romanas eram totalmente subordinadas ao chefe da família, o pai. Eram educadas em casa, pelas mães, sempre tendo como objetivo de aprendizagem os afazeres domésticos e femininos. Distintamente da Antiguidade, a sociedade medieval não carrega consigo a noção e a consciência das particularidades da infância. O ingresso pleno na vida adulta era percebido no instante em que a criança tinha condições de sobreviver sem os cuidados da mãe ou ama, quando não se distinguia mais dos adultos. Nessa mesma época, eclode a preocupação com um novo figurante social que se faz presente e perceptível numa Europa devastada e mergulhada nos pequenos mundos dos feudos: a criança abandonada, sem família. A atenção ao destino destas crianças foi institucionalizada, notadamente com a participação do clero que, buscando erradicar o infanticídio dos tempos de Roma, acolheu a infância desvalida. As igrejas e os mosteiros forjavam as pequenas oblatas, futuros seguidores da carreira sacerdotal. Forjavam porque a missão religiosa não era acatada por um ato de vontade: os encargos religiosos eram aceitos como uma forma de sobrevivência. A gradativa conscientização das peculiaridades da infância e da adolescência, ultrapassa a época medieval e torna-se mais evidente e pulsante na transição entre os séculos XVII e XVIII, períodos em que estas fases da vida passam a ser definidas como tempos de ingenuidade e fragilidade do ser humano. Precisamente no século XVII, as perspectivas transitam para o campo da moral, sob forte influência de um movimento promovido pela Igreja e pelo Estado, onde a educação ganha terreno: traduz-se em instrumento disciplinador que surge para colocar a criança no seu devido lugar, em comparação direta ao procedimento de higienização dos espaços realizado com os loucos, as prostitutas e os pobres. Por sua vez, momento crucial nos destinos da infância e da adolescência, a Revolução Industrial2 emerge como o grande fenômeno social, político e econômico experimentado pela TP

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humanidade em meados de século XVIII, alterando substancialmente as relações sociais com a semeadura de terreno propício à formação de um novo sistema de produção, modificação das metodologias de trabalho e de acumulação de riqueza. Multiplicou-se enormemente a riqueza e o poderio econômico da emergente classe burguesia, desestruturando-se o modo tradicional de vida

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A Revolução Industrial se consolida no século XVIII na Inglaterra, país pioneiro na mecanização dos sistemas de produção. T

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da população, com a geração de sentimento de instabilidade e aprofundamento dramático das desigualdades sociais3. TP

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A associação disciplina e infância marcará substancialmente as novas percepções sobre a criança e o adolescente que se formaram durante a Revolução Industrial, tornando fértil o campo da construção do perverso e delicado binômio trabalho infanto-juvenil e controle social. Nessa perspectiva, se insere a análise da produção de um sujeito através de mecanismos de poder, ou seja, a sujeição da criança e do adolescente ao trabalho como forma de controle disciplinar. O estigma da docilidade, o inculcar responsabilidades e a ocupação do tempo mantem distante da delinqüência e marginalização a infância e adolescência pobre. Este entendimento, acorde com as transformações no modo de produção ocorridas durante a Revolução Industrial, fomentou o livre trabalho infantil quanto às estratégias de busca de controle social da juventude. Nesta fase de nascimento do capitalismo, é possível observar em plena materialidade o conceito de alienação, um dos elementos fundamentais da teoria marxista. Marx demonstra que a industrialização, a propriedade privada e o assalariamento separavam o trabalhador dos meios de produção – ferramentas, matéria-prima, terra e máquina - que se tornavam propriedade privada do capitalista, alienando também o trabalhador do fruto do seu trabalho, compondo a chamada base da alienação econômica sob a égide do capital4. TP

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Conseqüência direta desse fenômeno, a supressão das necessidades básicas de subsistência do trabalhador, bem como de sua reprodução enquanto espécie passa a depender e relacionar-se visceralmente à venda da força de trabalho, transformada socialmente em mercadoria, ao detentor dos meios de produção. Percebe-se com contornos claros a amplificação das desigualdades sociais, que dividem o contexto social, em linhas gerais, em duas classes distintas: os proprietários e os não-proprietários dos meios de produção. O desequilíbrio capitalista pode ser sintetizado com clareza na desigualdade da posse dos meios de vida e no acesso aos bens e serviços disponíveis, formando uma rede de condições e espaços diferenciados socialmente5. TP

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A mecanização trouxe uma nítida deterioração das condições de trabalho e intensificação do ritmo de produção. Recorreu-se também ao acréscimo da utilização da força da família operária, sobretudo das mulheres e crianças. A utilização desse contingente passou a ser difundida em larga escala e exercida em condições perigosas, insalubres e danosas ao desenvolvimento, pois era pensada pelos fabricantes como estratégias para reduzir os gastos com força de trabalho adulta: a terça parte ou a metade do salário do operário adulto era pago às crianças e adolescentes. 3

DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997.

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SANTOS, João Diógenes Ferreira dos. Trabalho infanto – juvenil e a violação do corpo. Campina Grande, 1998. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba. 138 p.

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Fica denotado aqui que a Revolução Industrial também foi época de grave fissura nos paradigmas traçados para os direitos humanos no século XVIII. Os valores a tutelar agora eram outros, centrados na esfera econômica e social, já que no turbilhão de modificações pelo qual passou a sociedade no período, piorou dramaticamente as condições de vida dos trabalhadores. De forma alguma, os ditames do liberalismo poderiam conduzir à harmonia e a estabilidade social. A ordem política configurada, consubstanciada na liberdade e na igualdade perante a lei, distava da realidade de desigualdade patrimonial entre as classes. A liberdade levada às últimas conseqüências tornou-se argumento basilar para a ofensiva da burguesia de exercício da livre iniciativa e expansão do capital. Estes foram os caracteres fundamentais do Estado moderno, que somente com a luta de classes passou, ao longo dos anos, a adquirir novos contornos, com influência mais efetiva dos movimentos sociais, do sindicalismo e primazia do bem-estar social. Nesse contexto, no plano internacional, o direito do trabalhador ganhava espaço nas discussões humanísticas, e tinha como uma de suas preocupações centrais o enfrentamento à exploração do trabalho infantil. Em 1919 foi criada a OIT - Organização Internacional do Trabalho, que, no mesmo ano de sua criação, expediu a Convenção n° 5, que proibia o trabalho de menores de 14 anos em estabelecimentos industriais. Todavia, o advento da Crise de 1929, marcaria substancialmente a alteração na condução das políticas econômicas em nível mundial. Momento máximo das crises sistêmicas do capitalismo no século XX, percebeu-se que as políticas econômicas essencialmente liberais já não eram adequadas a permitir o pleno desenvolvimento do processo econômico. Para conter as enormes taxas de desemprego e os problemas sociais, foi necessária forte intervenção estatal que alterou paradigmas da política econômica em vários dos países envolvidos. O Estado se torna então agente da promoção social, garantidor do bem-estar e proteção da população, assegurando ainda a prestação de serviços públicos: os indivíduos têm tutelados direitos básicos, consubstanciados no acesso a educação em todos os níveis, a assistência médica e social gratuita, dentre outros inseridos no contexto de políticas sociais. Visualizada em linhas gerais a lógica da sociedade capitalista, depreende-se, sem dificuldades, que a dinâmica do mercado de trabalho sob a égide do capital não guarda qualquer preocupação com o complexo fenômeno social do trabalho infanto-juvenil. Nesse sentido, a questão desponta o século XXI problema social grave, que expõe e submete a infância e a juventude a condições degradantes e a riscos que podem deixar seqüelas sérias e por diversas vezes irreversíveis ao seu desenvolvimento físico, psíquico e moral. Contextualizando a realidade brasileira, que se amolda aos caracteres históricos até aqui apresentados, depreende-se que a segregação social, edificada sobre o falseamento de uma igualdade inexistente, haja vista a manutenção categórica de uma imensa rede de privilégios que

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nem os avanços legislativos experimentados pelo país foram capazes de superar, atravanca a materialização de iniciativas eficazes de combate ao trabalho infanto-juvenil. Observa-se no Brasil uma figuração que corresponde a uma sociedade em que direitos não fazem parte das regras que organizam a vida social. É uma figuração que corresponde ao modo como as relações sociais se estruturam sem outra medida além do poder dos interesses privados, de tal modo que o problema do justo e do injusto não se coloca e nem tem como se colocar, pois a vontade privada e a defesa de privilégios é tomada como a medida de todas as coisas. A pobreza, a desigualdade e a exclusão social, ao longo da análise, emergirão com feições de inimigo invencível da criança e do adolescente brasileiro pobre e marginalizado. As normas de tutela são dignas de mérito pelo respeito objetivo à condição peculiar dessa parcela de pessoas em desenvolvimento, mas infelizmente parecem não adaptar-se à realidade social brasileira, onde predominantemente se ratifica um processo triste de privação do atendimento a necessidades básicas da maior parte da população.

2.2 Os direitos fundamentais da criança e do adolescente: aspectos jurídicos e sociais O principal marco da evolução da concepção contemporânea de direitos humanos foi a aprovação, pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Concebida em pleno ápice do trauma pós-guerra, a Declaração Universal dos Direitos do Homem recontextualizou os valores da Revolução Francesa, reconhecendo-os fundamentais. Nesse sentido, o artigo 1º do referido documento parece bastante claro ao afirmar a igualdade e a liberdade entre os homens. Mais que transformar em valores jurídicos de âmbito universal os fundamentos políticos da Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem se edificou integralmente sobre o entendimento de que a liberdade, a justiça e a paz do mundo, metas de todos os povos, só se farão possíveis com o reconhecimento da dignidade de todos os seres humanos. Obviamente, os princípios e valores consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem nortearam e fundamentaram os tratados internacionais e as normas constitucionais e infraconstitucionais dos Estados membros da ONU. Nessa seara, emerge a Doutrina de Proteção Integral da Infância, consubstanciada na observação de que à criança e ao adolescente é necessário conceder proteção especial, pelas características próprias dessas fases tão peculiares do desenvolvimento humano. A doutrina da proteção integral torna-se a base configuradora de todo um novo conjunto de princípios e normas jurídicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, que traz em sua essência a garantia do pleno desenvolvimento humano, reconhecendo a partilha de responsabilidades entre três instituições essenciais na trama das relações sociais: a família, a sociedade e o Estado. 702

Tal pressuposto não somente inspirou a Constituição Federal de 19886, como foi TP

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sintetizado com extrema eloqüência e clareza em seu artigo 227, impondo à família, à sociedade e ao Estado o dever de garantia à criança e ao adolescente, de direitos fundamentais, essenciais à materialização de sua formação: à vida, à saúde, à alimentação, à educação, dentre outros. Na verdade, este artigo detalhou os direitos imprescindíveis e as violações inaceitáveis à dignidade da pessoa humana, e tornou-se base de sustentação dos principais dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n° 8.069/907, que assegura aos infantes todos os direitos TP

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fundamentais inerentes à pessoa humana, além de proteção integral, visando facultar-lhes o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade. O Estatuto, preservando, na íntegra, a linha de raciocínio lógico e filosófico dos documentos internacionais, afirma a condição jurídica da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e lhes assegura a condição política de prioridade absoluta. Reconhece sua condição psicossocial de pessoa humana em processo de desenvolvimento, o que tem como reflexo lógico a imposição do dever ao Estado, à família e à sociedade de assegurar-lhes acesso a todos os bens da vida considerados fundamentais ao seu bem estar presente e futuro e de destinar-lhes proteção integral, mantendo-os à salvo de toda e qualquer negligência, discriminação, violência, crueldade, opressão e exploração. No âmbito internacional, a Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tratou da Idade Mínima para Admissão a Emprego - promulgada em 1973 e aprovada pelo Congresso Nacional Brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 179, de 14/12/1999 estabeleceu a idade mínima para admissão a emprego e trabalho aos quinze anos e a proibição de admissão, aos menores de dezoito anos, a emprego ou trabalho, que por sua natureza ou circunstâncias em que for executado, possa prejudicar a saúde, a segurança e a moral do jovem. Contudo, um olhar raso sobre a realidade brasileira, mostra que essa sistemática legal não é observada. O Brasil é um país com um alto índice de desemprego adulto, apresentando dados alarmantes em relação ao trabalho precoce, este uma das mais contundentes violações a doutrina da proteção integral do menor - as crianças e adolescentes que deveriam estar se dedicando ao estudo, ao lazer, a arte e a cultura, primando assim por sua dignidade, na verdade, estão sendo exploradas nas mais variadas formas de trabalho, substituindo etapas indispensáveis ao seu desenvolvimento. São sujeitos de direitos lançados à exclusão social e coagidos a nela permanecer diante das necessidades da família, da omissão do Estado e da sociedade. Sabe-se que a lei existe, é justa, mas na prática não é cumprida.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. 19. ed., Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.

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BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.

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Essa conjuntura, na maior parte, associada à própria necessidade das famílias, contribuiu para concretizar o processo brusco de exploração do trabalho de crianças e adolescentes. Conseqüentemente, a pobreza e a marginalização passam a justificar, sob o manto da ignorância, o trabalho infanto-juvenil como uma solução aceitável para a superação da miséria e do depauperamento das famílias. Em verdade, esse quadro sempre contribuiu para que a sociedade resistisse em compreender que o trabalho precoce é nocivo e sua perpetuação vitima todo um contingente da futura força produtiva do país, que chegará ao mercado de trabalho despreparada, desqualificada e, provavelmente, semi-alfabetizada, estando obrigatoriamente condenada ao subemprego, aos baixos salários e ao ciclo ininterrupto da pobreza e exploração. Entretanto, deve-se destacar a mobilidade das instituições nos últimos tempos para o enfrentamento da violência do trabalho infanto-juvenil. Cabe afirmar que, mesmo timidamente, o processo de naturalização do trabalho precoce vem sendo rompido. Gradativamente, a sociedade conscientiza-se, em maior ou menor grau, que o trabalho afasta a criança da escola, dificulta seu aprendizado e prejudica seu desenvolvimento; que crianças que vivem uma infância de trabalho, insegurança e exploração, certamente não se tornarão adultos sadios e responsáveis, uma vez que o trabalho só é positivo quando acontece a partir da idade mínima, combinado com lazer, segurança e educação; que, enfim, para quebrar o ciclo vicioso, é preciso naturalizar não o trabalho infanto-juvenil, mas a educação.

3. Aspectos metodológicos Na concepção da metodologia do estudo, partiu-se do aprofundamento bibliográfico sobre o tema de forma a delinear uma breve trajetória do problema e suas características. Inicialmente, traçou-se um breve histórico das percepções sociais da criança e do adolescente enquanto indivíduos, contextualizando-se nesse universo os primeiros aspectos da utilização e exploração desse contingente como força produtiva, destacado o seu ápice na Revolução Industrial, intrínseco o mecanismo de controle social da pobreza por meio do trabalho. Propomos também a análise dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, abordando os principais aspectos jurídicos e sociais das normas elaboradas com vistas à proteção desse grupo peculiar de pessoas. Depois de uma breve passagem pelos direitos fundamentais do homem, parte-se para a particularização do tratamento da questão da criança e do adolescente, chegando à Constituição Federal de 1988 e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, máxime da consagração da proteção especial conferida à infância e juventude. Balizando esta premissa, procuramos trazer a questão à atualidade econômica e social, discorrendo acerca das políticas públicas, inserida aí a universalização, assim como, paradoxalmente, as restrições de atendimento destes mecanismos para erradicação da pobreza e do trabalho infanto-juvenil. No que concerne à metodologia, o estudo tem no município de João Pessoa seu recorte espacial, onde foi realizado um trabalho de campo que contemplou dois aspectos principais: a) 704

quanto aos fins, a pesquisa buscou ser explicativa, tentando esclarecer os fatores que originam a exploração física de crianças e adolescentes como força de trabalho, as características do núcleo familiar do qual provêm, a natureza e o aspecto das atividades laborais, as características do universo em que se realizam, bem como a forma e a eficácia das políticas públicas adotadas pelo Estado para erradicar o trabalho infanto-juvenil; b) quanto aos meios, uma revisão bibliográfica norteou a investigação, composta a partir de leituras e análises sobre o cenário que provoca a produção dessa forma irregular de inserção no mercado de trabalho. A pesquisa teve também sua base empírica com a coleta de dados por meio de entrevistas padronizadas com crianças e adolescentes trabalhadores no município de João Pessoa – PB, universo de análise composto por um público total de 15 (quinze) sujeitos, com faixa etária entre 8 e 15 anos de idade, todos do sexo masculino, onde se buscou a diversificação na percepção das realidades distintas vivenciadas pelos menores trabalhadores.

4. Análise de resultados O trabalho de campo foi alicerçado traçando objetivos específicos, que serviram como parâmetros de investigação orientativos e tentaram analisar as principais questões e conjunturas sócio-econômicas estruturais que norteiam a problemática do trabalho infanto-juvenil, bem como identificar as principais ocupações dos jovens nas ruas e feiras-livres do município de João Pessoa-PB, e, por último, analisar o desenvolvimento e a eficácia das políticas públicas implementadas pelo Poder Público para erradicação do trabalho infanto-juvenil. Tais informações tinham como propósito fornecer subsídios para elaboração de reflexões acerca da realidade do trabalho infanto-juvenil no município de João Pessoa-PB, possibilitando a constatação in loco do contraponto entre o caráter geral e abstrato da norma e o árduo cotidiano da infância e adolescência penalizadas pela pobreza e exclusão social. A pesquisa contou com a coleta de dados por meio de entrevistas padronizadas em roteiros estruturados com crianças e adolescentes trabalhadores no município de João Pessoa – PB. Pareceu adequado o recorte espacial de dois universos distintos de estudo: as feiras-livres dos bairros de Oitizeiro e Grotão e os semáforos de ruas dos bairros de Tambaú e Manaíra. A realização da investigação em espaços urbanos tão diferentes permitiu a visualização de realidades convergentes pela existência flagrante do trabalho precoce, mas dissonantes nas várias formas em que esta problemática se materializa, circunstância que denuncia a presença do trabalho infanto-juvenil de maneira vasta e diversificada no âmbito do município de João PessoaPB. O bairro de Oitizeiro localiza-se numa área mais afastada do centro da cidade, região periférica do município de João Pessoa-PB, formado por uma população com poder aquisitivo extremamente variado. Tem grande movimentação comercial e tráfego intenso de veículos e pedestres. A feira-livre, que leva o mesmo nome do bairro, não tem parâmetros mínimos de 705

higiene que um homem médio possa considerar satisfatórios. Por sua vez, o bairro do Grotão, também de perfil mais popular, localiza-se em área igualmente afastada do centro da cidade. Tem área residencial formada por conjuntos habitacionais de construção precária. É bastante populoso e com problemas sociais agudos, a exemplo da violência e, predominantemente, é composto por residentes carentes e de baixa renda. A feira-livre, que também leva o mesmo nome do bairro, tem alguns pontos de negócios, onde são comercializados principalmente alimentos e especiarias. Já os semáforos dos bairros de Tambaú e Manaíra estão situados em espaços com excelente infra-estrutura urbana, grande fluxo turístico e inúmeros equipamentos de lazer e entretenimento. Contraditoriamente, circundam este espaço favelas e comunidades carentes de baixa renda, de onde provem, em sua quase totalidade, as crianças e adolescentes que transformam os semáforos das ruas em local de trabalho, haja vista a grande movimentação social, que oferece oportunidades de ganhos expressivos em atividades como tomada de conta de automóveis ou, como são popularmente denominados, de flanelinhas, lavagem de automóveis, limpeza de vidros, mendicância e malabares. Trabalhou-se com jovens situados na faixa etária entre 8 e 15 anos de idade, todos do sexo masculino, distribuídos indistintamente entre os dois ambientes do universo de estudo citado. Na seleção dos sujeitos não foi definido previamente qual o sexo das crianças e adolescentes que seriam entrevistados. Observado o fato de que a abordagem era aleatória e espontânea, procurou-se entrevistar os jovens que estavam no espaço das ruas, feiras-livres ou semáforos na ocasião, de modo indeterminado, considerando na seleção a capacidade de compreensão e discernimento do indivíduo acerca do conteúdo da entrevista. Constatou-se que os sujeitos provem de famílias numerosas. O levantamento desta informação foi importante pela relação direta entre a quantidade de integrantes do núcleo familiar e a distribuição dos recursos de subsistência. Ao longo da revisão literária e por meio da pesquisa de campo, percebe-se que as limitações ou mesmo a ausência de condições financeiras do núcleo familiar para atendimento de necessidades fundamentais configura-se como um dos fatores principais de estímulo a precocidade no trabalho entre os sujeitos. Nesse contexto, observa-se o quanto é gritante a questão do desemprego, e como ela vem afetando diretamente as famílias. A dificuldade de obtenção do emprego no mercado formal e, consequentemente, amparo pelo mecanismo de seguridade social ou ainda a falta de oportunidade ou recursos para “aventurar” o mercado informal faz com que os chefes de família, na busca pela subsistência, encaminhem todo núcleo familiar para o mundo do trabalho. Envereda nessa análise uma larga escala de fatores que sedimentam, ao longo da modernização das sociedades capitalistas, a pauperização e o enriquecimento, evidentemente, o delineamento da desigualdade social, destacada e visceral, sobretudo na realidade dos países subdesenvolvidos frente aos países do centro do capitalismo. Na especificação dessa teia de encontros e desencontros na destituição econômica do núcleo familiar, Telles (2001, p. 99) enriquece com propriedade a colocação aqui posta: 706

[...] Por outro lado, sabemos que a teia de desigualdades plasmada no mercado afeta diferencialmente homens e mulheres, adultos, jovens e crianças, numa lógica em que a privação dos direitos se articula com estigmas de sexo e idade [...] que sedimentam diferenças em discriminações diversas. Sabemos também que são inúmeras as clivagens de qualificação e salário, produzidas por um processo de trabalho que diferencia e hierarquiza a força de trabalho, sob critérios no mais das vezes arbitrários e regidos por uma razão disciplinadora.

As ocupações desempenhadas pelos sujeitos são absolutamente simplórias e por isso mesmo representam com fidelidade a absorção de mão-de-obra na informalidade da economia, que acaba por materializar-se como terreno fértil à utilização do contingente de pequenos trabalhadores. Meninos e meninas barateiam o seu produto, depreciando o valor do seu trabalho e do trabalho dos adultos. Sem fiscalização ou intervenção institucional imediata, facilmente nossos sujeitos ingressam e permanecem ocupados nos espaços urbanos estudados. As atividades são desenvolvidas sem a menor proteção social, submetendo crianças e adolescentes a condições insalubres e perigosas, distantes dos parâmetros considerados satisfatórios pela legislação. É exatamente nestas circunstâncias que o trabalho infanto-juvenil se faz presente de maneira flagrante, alimentando-se das facilidades de acesso, da naturalização por parte da sociedade e da liberdade própria dos ambientes. Verifica-se que embora possam ser situados numa zona frágil de vulnerabilidade à exploração, pela pobreza e carência endêmica de suas famílias, os sujeitos não abandonaram as atividades escolares para desempenho de seus “ofícios”. A maioria deles, 14 dos 15, mesmo trabalhando, continua estudando, numa rotina de trabalho que lhes confere uma defasagem escolar de 1 até 4 anos e interfere diretamente na sua aprendizagem. Sobre a importância dos estudos e da educação, foram detectados discursos convergentes, apontando-os como mecanismo de melhoria de vida e vetor de superação da situação atual, por meio de uma boa colocação no mercado de trabalho. - Estudar é importante pra conseguir emprego, pra melhorar de vida. (J.C.F.S, 12 anos) - Eu acho estudar importante porque eu quero ser alguém na vida quando eu crescer. (J.A.S, 11 anos) - Porque estudando eu posso viver melhor, porque quem não trabalha vai catar lixo. (T.N.S, 8 anos) - Eu acho que estudar é importante porque ai eu consigo uma situação melhor no futuro. (A.R, 14 anos)

Observa-se que os estudos e a educação são extremamente importantes para esses jovens e exercem um papel fundamental em suas vidas, visto que proporcionam conhecimento e aprendizagem e lhes darão, sob sua ótica, a oportunidade de conseguir um emprego, de melhorar a vida, garantindo que, num futuro não tão distante, não se tornem catadores de lixo, como ressaltou a fala de um dos sujeitos. Aspecto fundamental, a percepção da criança e do adolescente quanto à função da escolaridade e da aprendizagem educacional em suas vidas 707

traduz a inquietude dos jovens em relação à realidade que vivenciam. Na análise das falas, é possível categorizar semanticamente a unidade do discurso em torno da reflexão “melhorar de vida”, comprovando a ânsia dos pequenos trabalhadores na superação dos fatores que parecem aprisioná-los àquela situação. Apesar de terem se declarado estudantes, a totalidade dos jovens entrevistados se dedica em horários vários do dia ou da noite, ao exercício de alguma atividade para assegurar seu sustento. Todos os dias estão nas ruas ou nas feiras-livres. A situação de buscar o sustento ao invés de estar à volta com os estudos é agravada ainda mais quando a ocupação, além de penosa, é realizada em condições insalubres, num quadro de desgastes físicos e psíquicos: extensas horas sem se alimentar, exposição a todo tipo de violência (física, sexual, etc.), ao tempo, entre outras. Dos levantamentos, obteve-se que 7 dos 15 entrevistados realizam o carregamento de frete em feiras-livres, que consiste no transporte para o cliente de objetos e produtos comprados naquele ambiente. Em carrinhos de mão, eles vão acompanhando o freguês no percurso entre as bancas de venda de mercadorias até os automóveis ou pontos de ônibus utilizados pelos compradores. Chama a atenção o peso transportado pelos jovens, perceptível no volume da carga conduzida, geralmente, em muito suplantando o peso corporal do pequeno trabalhador. Deve-se destacar que dentro da informalidade própria da atividade, não há critério específico para pagamento da prestação do serviço pelo “cliente”. A retribuição poderá ser somente de alguns centavos ou pouco mais que isso, de acordo com a sua generosidade. Servem como pagamento ainda produtos alimentícios adquiridos durante as compras ou qualquer outra forma de “agrado”. A contestação do sujeito é incipiente, visto que não há qualquer formalidade, legalidade ou amparo na execução da atividade. Na seqüência, constatou-se que 3 dos 15 entrevistados trabalham nas feiras-livres com a venda de produtos diversos, a exemplo de hortaliças, legumes, raízes, produtos de limpeza doméstica, entre outros. Esta atividade é realizada de maneira ambulante, via de regra nos corredores, vielas e ruas onde, em geral, abordam o suposto comprador e oferecem o produto, transportado-o nas próprias mãos, como também em caixas ou em carrinhos de mão. Circulam indistintamente, anônimos, sofríveis, mergulhados em sua própria realidade de exposição ao sol e a chuva, à insalubridade e, notoriamente, a condições sanitárias questionáveis, sugados fisicamente pelos quilômetros de caminhada que acabam realizando todos os dias nas idas e vindas de oferta de seus produtos. Dos que fizeram parte do grupo de entrevistados nos espaços das ruas, 5 exercem a prática dos malabares, a limpeza de vidros e a guarda de carros nas ruas e semáforos dos bairros de Tambaú e Manaíra. Tal como os jovens das feiras-livres estes também estão submetidos a toda uma gama de precarização: agora eles não estão em um ambiente específico, com um foco

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comercial direcionado. Muito pelo contrário, estão sujeitos não somente às intempéries climáticas, mas ao risco de acidentes de trânsito quando da abordagem de veículos. Quanto aos horários em que se dão estas atividades, foi verificada diversidade de informações quanto ao início e o término da jornada dos entrevistados. Tornou-se inviável precisar intervalos distintos para consideração da carga horária a que os jovens estão submetidos. Perceberam-se particularidades que marcavam de forma diferenciada os ambientes da pesquisa: os jovens que trabalham nas feiras-livres começam sua jornada, geralmente, no horário de preparação e funcionamento das mesmas, por volta das 4h da manhã e seguem no seu ofício até o término desta, por volta das 18h, salvo pouquíssimas exceções, onde o menor trabalha em somente um período. Já os menores que praticam atividades nos semáforos têm hábitos noturnos, começando a atividade no final da tarde ou início da noite, por volta de 17h - 18h, lá permanecendo até o final da noite, quando o movimento começa a cair. - Eu chego aqui umas 06h da manhã e fico até umas 08h da noite, é cansativo demais (A.R.V, 13 anos) - Eu venho pra cá de manhã e de noite (R.O, 13 anos) - Eu venho pra cá umas 05h30 da manhã, ai paro pro almoço e fico até umas 20h30 (J.S, 14 anos)

Não há na contemporaneidade, exceto em condições de trabalho análogas a de escravo, que é crime tipificado no Código Penal Brasileiro, a aceitação de uma carga de trabalho oscilante entre 8h e 14h diárias, como a vivenciada pelos sujeitos. Se o esgotamento físico é critério para fixação da carga horária de trabalho de um adulto em 8h diárias, como teto máximo, não se pode conceber que crianças e adolescentes exerçam tal suplício físico, indiscriminadamente. As falas são claras quanto ao sofrimento físico enfrentado pelos jovens, que começam sua jornada no início da manhã e a suportam por horas adiante sem qualquer critério específico de intervalo de descanso ou mesmo de interrupção do trabalho pelo esgotamento. A Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a Consolidação das Leis do Trabalho dispensam tratamento específico acerca da exposição da infância e da juventude ao trabalho precoce. Essa conjuntura de inserção ilegal no mercado de trabalho torna-se ainda mais perversa quando se visualiza o despertar de uma criança, na madrugada, para deslocar-se às ruas em busca do seu sustento e de sua família, conforme constatação do trabalho de campo. Nesse sentido, não menos chocante, é vê-lo submetido a todo tipo de infortúnio em um semáforo ou esquina qualquer de uma cidade grande, muitas vezes acordado e em atividade até alta madrugada, atrelado, não raramente, ao aliciamento das drogas e da prostituição. O que o contato com os jovens sinaliza é o lançamento destes sujeitos ao ostracismo do mercado precarizado de trabalho: coagidos pela penúria, transformados em vetores produtivos, não importa em que tipo de atividade, visando, seja de que forma for, a superação do contexto de 709

reprodução de exclusão em que estão inseridos. Mas o que algumas falas revelaram foi que têm sido muitas vezes os próprios pais e responsáveis os algozes que, atendidos por políticas públicas de fomento, erradicação da pobreza ou do trabalho precoce, insistem na utilização de seus pequenos como fonte de renda. 11 dos 15 entrevistados informaram que ajudam com o dinheiro que obtêm no exercício de suas ocupações nas despesas domésticas, colaboração traduzida na aquisição de alimentação ou simplesmente na entrega do ganho aos pais, que dão a destinação que julgam adequada. - Eu dou o dinheiro a minha mãe pra comprar comida e compro coisa pra mim, compro comida, coisa pra mim usar em casa. (M.M.V.S, 14 anos) - Eu entrego o dinheiro pro meu pai e pra minha madrasta, às vezes eu compro comida. (T.N.S, 8 anos) - Eu dou pra minha mãe, guardo uma parte e ajudo em casa. (A.R.V., 13 anos).

Ao levantar a situação familiar dos jovens entrevistados, constatou-se que os pais e responsáveis de 13 dos 15 entrevistados tem algum tipo de ocupação ou fonte de geração de renda, seja formal ou informal. Apenas 2 sujeitos tem seus pais ou responsáveis desempregados. Tal informação buscava especular o retorno econômico do trabalho dos pais e responsáveis pelas famílias e sua inserção ou não no mercado formal ou informal de trabalho. Dentre o leque de atividades dos pais, foram citados pelos entrevistados atividades como pedreiro, ajudante de pedreiro, feirante, empregada doméstica, mecânico e servente de limpeza. Ato contínuo, dentre os 15 sujeitos, 8 tinham suas famílias assistidas por alguma política pública de assistência social, seja ela voltada ao combate à pobreza ou à erradicação do trabalho infanto-juvenil. Os entrevistados que responderam afirmativamente à questão foram unânimes em afirmar que suas famílias eram atendidas pelos programas Bolsa Família e pelo Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI. Por sua vez, 7 dos 15 entrevistados não recebem, juntamente com suas famílias, o amparo de qualquer política pública. Assim, pode-se traçar como desenho do universo desses jovens trabalhadores do meio urbano, que eles provem de famílias cujos chefes, em sua maioria, tem algum tipo de ocupação e que este grupo, majoritariamente, também é assistido por políticas públicas de assistência social. Diante disso, é delicado afirmar a motivação imediata que norteia o incentivo ou a permissividade dos responsáveis pelas famílias no ingresso precoce de suas crianças e adolescentes nesse universo de atividades precarizadas. É possível suscitar que o orçamento doméstico mensal não consegue atender as despesas da família, ainda que com a assistência de políticas públicas e complementação advinda destas. Por outro lado, é necessário considerar aspectos relevantes que, mesmo perniciosos, podem figurar a realidade: os pais ou responsáveis podem simplesmente explorar a mão-de-obra das crianças e adolescentes ou ainda, em outro extremo, o trabalhar, mesmo em idade inadequada, não é mais que um ato de vontade desses jovens, ansiosos por obtenção de meios para ajudar a 710

família pauperizada em que vivem ou pela possibilidade que o ganho traz na aquisição de objetos pessoais. Ante o exposto, faz-se mister reafirmar que há um desvirtuamento dos objetivos das políticas públicas aqui mencionadas, materializado nos pais e responsáveis que mantem suas crianças e responsáveis em ocupações laborais diversas, haja vista a violação de condicionantes para concessão e manutenção dessas formas de assistência social, como se pode observar em suas diretrizes. Por conseguinte, ainda que de maneira superficial, foi de suma importância observar a não materialização dos objetivos das políticas públicas no caso concreto estudado. Depreende-se que a par da implementação das iniciativas governamentais para combate a pobreza e erradicação do trabalho infanto-juvenil, sendo o PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Programa Bolsa Família as principais referências, o trabalho infanto-juvenil subsiste e se transfigura nas mais variadas formas, inserido, inclusive, em todo um contexto normativo de proteção à integridade física da criança e do adolescente. Tais políticas não conseguiram eliminar o problema e parecem não atuar de maneira muito precisa quanto a sua prevenção, visto que os quantitativos de crianças e adolescentes ocupados em atividades laborais diversas ainda é bastante alto, como estudos outros tem demonstrado. Nesse sentido, percebe-se que muitas das famílias dos sujeitos participantes do estudo são atendidas por essas políticas públicas e mais que isso, os adultos que as integram tem alguma ocupação para geração de renda, seja no âmbito formal ou informal. Por isso mesmo, a erradicação do trabalho infanto-juvenil dista de ser somente uma questão social agravada por conjunturas econômicas: em sua essência é uma problemática de direitos humanos, que deve ser analisada e enfrentada em todas as suas vertentes. A intervenção do Estado é fundamental e pode ser aprimorada com o aperfeiçoamento e melhoria na execução e fiscalização das políticas públicas, presumidas adequações que tornem plena a realização de seus objetivos. O trabalho precoce, antes de tudo, é um óbice à formação da cidadania e a qualidade de vida das futuras gerações. Sofre suas conseqüências toda a sociedade, que acaba assistindo, de maneira passiva, a deterioração da vida e a solidificação dessa forma de violência.

5. Considerações finais A análise do trabalho infanto-juvenil perpassa aspectos distintos, que englobam fatores convergentes, essenciais à compreensão de uma problemática extremamente complexa, que está arraigada no cotidiano de uma sociedade que adentrou o século XXI numa verdadeira transfiguração sócio-econômica, mas carregando em suas entranhas questões atreladas à desigualdade social. Nesse contexto, a utilização de crianças e adolescentes no desempenho de atividades laborais confunde-se com a própria história da humanidade, que visualizou o pequeno ser em desenvolvimento de maneira diversa ao longo dos tempos. Procurou-se percorrer essa 711

trajetória sem cair na obviedade. Ao lidar com uma questão social amplamente debatida e tratada nas mais variadas formas de comunicação, enfrentava-se o risco iminente de repetir e depurar apenas a realidade notável no seio da sociedade, que sem paradigmas convive e, não raramente, aceita a deplorável realidade de precarização das condições de vida de crianças e adolescentes. Paralelamente à análise do percurso histórico do trabalho infanto-juvenil, o estudo direcionou-se à evolução legislativa e ao reconhecimento das particularidades da criança e do adolescente enquanto ser humano em desenvolvimento, necessariamente resguardado por um aparato normativo específico e protetivo, que garanta a sobrevivência e o crescimento em condições dignas. Verificou-se que o legislador brasileiro criou um dos conjuntos normativos mais avançados do mundo no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência, numa contextualização densamente entrelaçada aos paradigmas de Direitos Humanos propagados na Declaração Universal de 1948 e que se materializaram de maneira mais objetiva notadamente na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Inserida em todas as nuances do estudo, a questão legislativa acompanhou a construção de todo o trabalho, sendo o pano de fundo das investigações. Permitiu a propositura da compreensão da realidade objetiva e flagrante do trabalho infanto-juvenil sob a égide da legalidade e, simultaneamente, do desrespeito a esta, numa convivência paradoxal e curiosa, dotada de referenciais de pobreza, miséria e exclusão que se prolongam numa sociedade que se fez moderna, rompeu com algumas relações de submissão e poder de classes, mas não conseguiu eliminar chagas que atravessaram todo um contexto de avanços sociais e econômicos. Parece existir, quando observada a história, um percurso inverso entre o avanço tecnológico e cientifico, experimentado pela humanidade, e o caráter do labor no universo da criança e do adolescente, ou seja, à medida que a sociedade progride e aperfeiçoa modos de vida e produção, em vários aspectos melhorando radicalmente de qualidade de vida, a utilização de contingente infanto-juvenil em atividades produtivas intensifica-se e desvirtua-se, almejando a satisfação do sistema econômico de produção. Nesse sentido, traçar o perfil do trabalho precoce passa pela percepção de questões sócioeconômicas vivas e pulsantes, que se refletem na vivência diária dos sujeitos que estão ocupados nas feiras-livres ou nas ruas e semáforos em busca de dinheiro para ajudar na subsistência e adquirir objetos pessoais para satisfazer necessidades próprias à idade. Nos universos estudados, percebe-se um vasto leque de ocupações desempenhadas pelas crianças e adolescentes, que partiam desde a venda de produtos e iam até a prática de malabarismos. Por sua vez, é também o aparato normativo que obriga o Poder Público à criação de mecanismos de respeito e manutenção do bem-estar social da criança e do adolescente, garantindo as condições mínimas de crescimento e desenvolvimento físico, psíquico e social. Destacamos o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e o Bolsa Família. Evidenciado o mérito dos seus objetivos, sinaliza-se que sua efetividade está condicionada a outros fatores, a 712

exemplo da fiscalização na execução de suas propostas e do aperfeiçoamento de seu funcionamento às modificações e particularidades da realidade dos jovens trabalhadores. Complementarmente, faz-se relevante a conscientização da sociedade dos malefícios e transtornos que o trabalho precoce pode trazer à criança e ao adolescente na sua formação física e social, uma vez que o pequeno trabalhador certamente esbarrará na péssima qualificação profissional e estará sujeito às dificuldades que assistiu oprimir os pais ou responsáveis adultos, perpetuando o ciclo que provavelmente se arrastará por longos anos. É fato que a maioria das famílias dos entrevistados está vinculada a alguma atividade de geração de renda, seja ela formal ou informal e mesmo atendidas por políticas públicas continuam permitindo ou incentivando o trabalho dos jovens. Aglutinam-se duas perspectivas de compreensão: os rendimentos aferidos não são suficientes ao atendimento das necessidades, mesmo com a complementação de renda das políticas públicas e os jovens são coagidos por sua realidade a permanecer na sua ocupação para obter algum tipo de rendimento, embora este não seja o desejo real daqueles responsáveis pela família oprimida e mergulhada na pobreza e miséria. Ou então, há um certo comodismo dos pais e responsáveis em virtude dos ganhos obtidos pelos jovens no exercício do trabalho, que também pode ser observado quando aqueles se acomodam em não buscar alternativas de geração de renda para supressão das necessidades básicas de subsistência, o que materializaria, de maneira explícita a exploração da criança e do adolescente pela própria família. Os pais e responsáveis não teriam pudores, sob esta ótica, em submeter e transformar sua prole numa legião de pequenos trabalhadores. Por sua vez, é essencial considerar que os chefes de família se tornaram responsáveis por uma prole muitas vezes em situações de gravidez precoce, desemprego e violência urbana. Não obstante, geraram núcleos familiares monoparentais ou completos, se for assim considerada a família composta por pai e mãe, mas economicamente instáveis ou simplesmente excluídos do mercado de trabalho, num imenso contexto de privações sociais e econômicas, destituído de valores educacionais. Os próprios pais e responsáveis já são, muitas vezes, o retrato fiel dos resultados do trabalho precoce. Fica palpável que a violação do direito à integridade física é também conseqüência da falta de condições básicas da família para criar sua prole, num processo ininterrupto que parece reproduzir-se de geração a geração. Vê-se que a participação estatal no orçamento doméstico com a concessão de auxílios financeiros para combate à pobreza e supressão da colaboração das crianças e adolescentes nas despesas do lar não consegue impedir que os sujeitos trabalhem ou faz com que eles abandonem suas atividades. O ciclo demonstra-se ininterrupto e o trabalho infanto-juvenil subsiste como gravíssima questão social, fissura nos paradigmas de direitos humanos sedimentados na ordem jurídica brasileira. É perceptível que não foi tratado aqui um mero desrespeito à legislação ou uma realidade já fadada à colocação de ícone da pobreza e desigualdade social ou mecanismo de controle 713

social e adestramento da infância e adolescência pauperizada e marginalizada. Embora se constitua como dever da sociedade e do Estado, a erradicação do trabalho infanto-juvenil esbarra em óbices poderosos, afetos diretamente à naturalização do labor precoce como instrumento disciplinador, dignificante e salutar. Antes de se falar em miséria e exclusão social, deve-se ressaltar que o trabalho infanto-juvenil é uma grande peça na engrenagem do ambiente de destituição de direitos dentro da desigualdade social. A diferenciação entre a criança pobre e a rica não se limita ao aspecto sócio-econômico: é uma desagregação de valores e referenciais tão profunda e enraizada que confere à realidade precária aspectos de normalidade e aceitação, num quadro de reprodução de exclusão que atinge indistintamente toda a família. Na concepção do paralelo teórico e prático entre a garantia normatizada e a realidade da exploração de crianças e adolescentes como força de trabalho nos espaços estudados não se percebe respaldo fundamentado para críticas à legislação brasileira de proteção à criança e ao adolescente: seu caráter de guarda, zelo e respeito às peculiaridades da infância e juventude são notórios, óbvios e sua inadequação frente à realidade social não se refere ao seu conteúdo, mas a sua distância de uma sociedade norteada pela desigualdade, pela exclusão e pelos privilégios no jogo de interesses políticos que permeia as relações, até mesmo no tocante a políticas públicas. São direitos concedidos que não se efetivam às camadas sociais que fervem em torno do eixo central da concentração de renda, da desestruturação produtiva, da coesão do ciclo excludente social, que não é rompido por aqueles que detêm a riqueza, nem pode ser atravessado por aqueles que estão a sua margem. Embora seja dever considerar o avanço social norteado pelo enfrentamento da desigualdade por meio da intervenção estatal, a coexistência entre o trabalho infanto-juvenil e a proteção à integridade física assegurada à criança e ao adolescente sustentase não pela ausência de uma boa legislação e sim de uma legislação que se efetive.

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. 19. ed., Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002. BRASIL. Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1997. DUPAS, Gilberto. Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1999. SANTOS, João Diógenes Ferreira dos. Trabalho infanto – juvenil e a violação do corpo. Campina Grande, 1998. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba. 138 p. TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. 1. ed. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2001. 168p.

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Poder judiciário, ato infracional e controle social: uma análise sobre as justificativas para a aplicação de medidas de internação e internação provisória através dos acórdãos do STJ e do TJCE Homero Bezerra Ribeiro1 TP

Resumo Esta pesquisa tem como objeto a atuação dos Poder Judiciário nos procedimentos relativos à apuração e julgamento de atos infracionais cometidos por adolescentes, especialmente no que se refere às justificativas para a concessão das medidas socioeducativas de internação e internação provisória, ambas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. Neste sentido, a pesquisa tem como objetivo central a análise das motivações determinantes para a concessão das medidas de internação e internação provisória dos Juízes que atuam na área infanto-juvenil através dos acórdãos emitidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), verificando se as justificativas encontradas no discurso judicial coadunam-se com os princípios do respeito à proteção integral infanto-juvenil ou apresentam distorções responsáveis por selecionar e repreender determinados indivíduos. Deste modo, esta pesquisa procura compreender como o Judiciário vem se comportando nos últimos anos com a adoção, no plano legal, de mecanismos de proteção e efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, ou seja, busca responder se o discurso implementado pelos Magistrados está dentro de um paradigma de respeito ao adolescente, entendendo este como sujeito de direitos, ou está voltado para a contenção e exclusão social de determinados indivíduos simbólica e materialmente predispostos. O trabalho tem como marco teórico as teorias materialistas da criminologia, que analisa o processo de criminalização efetuado pelas instituições de controle social, como o Poder Judiciário, através das relações histórico-materiais dentro de um determinado contexto. A metodologia compreende a análise qualitativa dos acórdãos do TJCE e do STJ que versam sobre a aplicação da medida de internação e internação provisória entre os anos de 2005 a 2010, buscando, além identificar as terminologias utilizadas para justificar a necessidade das medidas, qual a reposta dada pelo acórdão ao caso analisado. A pesquisa encontra-se parcialmente concluída, pois ainda resta a análise dos acórdãos do STJ em matéria de apuração do ato infracional. Neste sentido, este trabalho aponta conclusões parciais de algumas das análises realizadas sobre os acórdãos do TJCE que versavam sobre internação entre os anos de 2005 e 2010. Palavras-Chave: Poder judiciário; Ato infracional; Internação; Controle social; Criminologia crítica.

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Abstract This research has as its object the performance of judiciary procedures relating to investigation and prosecution of illegal acts committed by adolescents, especially with regard to the justification for the granting of educational measures of detention and provisional detention, both under the Law of Child and Adolescents. In this sense, the study aims to analyze the central motive for granting the measures of internment and detention of judges that work with children and youth through the judgments issued by the Superior Tribunal de Justiça (STJ) and the Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), making sure that the legal justifications found in the speech are consistent with the principles of respect for the integral protection of children and adolescents or have distortions responsible for selecting certain individuals and rebuke. Thus, this research seeks to understand how the judiciary has been behaving in recent years with the adoption, on the legal, mechanisms of protection and enforcement of the rights of children and adolescents, or seeks to answer whether the speech is implemented by the Magistrates in a paradigm of respect for the adolescent, understanding this as a subject of rights, or is focused on containment and exclusion of certain predisposed individuals symbolically and materially. The work is theoretical materialist theories of criminology, which analyzes the criminalization process performed by the institutions of social control, such as the judiciary, through the historical and material relations within a given context. The methodology includes a qualitative analysis of the TJCE and the STJ that deal with the application of the measure of detention and provisional detention between the years 2005 to 2010, searching, and identify the terminology used to justify the need for measures, which replaced given by the ruling to the case analyzed. The research is partially complete, it remains to analyze the judgments of the STJ on determination of the offense. Thus, this study highlights some partial conclusions of the analysis performed on the TJCE were about detention rulings in the years 2005 and 2010. T

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Keywords: Judiciary. Infraction. Detention. Social control. Critical criminology.

Mestrando em Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. E-mail: [email protected]

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1. Introdução Este trabalho, como relatório parcial da pesquisa sobre as justificativas de internação e internação provisória de adolescentes acusados de cometer ato infracional através dos acórdãos emitidos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), tem como objetivo analisar, com base nas teorias materialistas da criminologia, o discurso efetuado pelo Poder Judiciário, mais especificamente, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), no momento de decidir sobre a aplicação da medida socioeducativa de internação para adolescentes acusados de cometer algum ato infracional. Neste sentido, busca-se analisar quais são os motivos determinantes que fundamentam a decisão judicial em matéria de execução da medida mais severa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Antes de tudo, é necessário entender como a criminologia materialista, ou criminologia crítica, como alguns autores expõem, analisa o fenômeno criminal e suas interlocuções com o controle social efetuado pelo Poder Judiciário, este entendido como uma das agências2, ou TP

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melhor, como uma das instituições responsáveis pela seletividade sociopenal. Neste sentido, cumpre desde já afirmar o caráter ideológico das decisões emanadas pelos juízes na esfera de apuração do ato infracional, tendo como pano de fundo a seleção de determinados indivíduos estigmatizados ao longo da história. Partindo das considerações sobre o Poder Judiciário e a criminologia crítica, adentra-se nas considerações sobre a legislação infanto-juvenil, principalmente no tocante ao princípio da proteção integral abarcado pelo Estatuto, bem como de suas garantias básicas, e sua diferenciação com a legislação antiga que tutelava a infância e a adolescência (Código de Menores de 79). Aponta-se também para a reflexão sobre a aplicabilidade prática destas garantias nas decisões judiciais pós-Estatuto, bem como urge para a necessidade de modificação de alguns paradigmas incorporados dentro da práxis jurisprudencial, que tem servido muito mais para o controle social de determinados indivíduos do que para efetivação de direitos infanto-juvenis. Por fim, demonstra-se o resultado parcial desta pesquisa através da análise qualitativa de algumas decisões em matéria de aplicação de medidas socioeducativas de internação do TJCE durante os anos de 2005 a 2010, refletindo qual o real sentido efetuado pelo o discurso do judiciário, se o de segregação, ou de proteção infanto-juvenil.

2. A criminologia crítica Este tópico tem como objetivo principal traçar as características essenciais da criminologia crítica, ou materialista, abordando como alguns de seus principais autores entendem o fenômeno

2

Agências aqui está no sentido das instituições responsáveis por realizar o poder persecutório e punitivo do Estado, como a polícia, o Ministério Público e o Judiciário. Sobre o tema ler: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Alejandro Alagia; Alejandro Slokar. Op. Cit. p. 412.

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criminal. Por fim, aponta-se para a reflexão sobre os aspectos funcionais do Poder Judiciário como uma das instituições responsáveis pelo controle social de determinados sujeitos considerados indesejados à ordem social.

2.1 Princípios Fundantes da Criminologia Crítica A criminologia crítica destoa completamente do chamado paradigma tradicional da criminologia, ou como relata Baratta3, das escolas clássica e positivista da criminologia. Enquanto TP

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estas duas escolas consideram o delito como a violação dos bens indispensáveis ao convívio social e que os criminosos são igualmente perseguidos e punidos pelo sistema penal, a criminologia crítica irá numa direção contrária, apontando a seleção, e não a universalidade, como característica essencial controle sociopenal. Nesse sentido, a definição do crime e do criminoso não são frutos da ideia universal, mas sim resultado de disputas socioeconômicas dentro de um determinado momento histórico. Esta ruptura gnosiológica traz à criminologia uma nova forma de analisar o fenômeno criminal, retirando-o de um contexto idealista ligado à ruptura dos bens essenciais, aos anseios individuais do criminoso, passando a refletir que os comportamentos (e os indivíduos) indesejados passam por um longo processo de seleção e estigmatização realizado por determinadas instituições (ou agências) de controle social. Passa-se, portanto, a analisar a reação social a comportamentos tido por desviantes, sendo o objeto desta nova escola não o crime em si, como fruto do comportamento anormal do delinquente, mas sim o controle social realizado pelas agências de criação, persecução e apuração do delito. Os criminólogos críticos passam a conceber o controle social, ou controle sociopenal, através de um processo de criminalização4, onde determinados indivíduos serão estigmatizados TP

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desde o momento de escolha dos bens a serem protegidos pela legislação penal, perpassando pelos momentos de apuração, persecução e julgamento da ação, e finalizando na execução da pena. Durante esse processo não ocorre a universalidade apregoada pelas teorias criminológicas tradicionais, mas sim a construção parcial da criminalidade através da seleção de bens favoráveis às relações de produção e reprodução das desigualdades sociais e a estigmatização de indivíduos com comportamentos contrários ao modo de produção dominante5. “A criminologia TP

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crítica historia a realidade do comportamento desviante e põe em evidencia sua relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais, com o desenvolvimento das relações de produção e distribuição”6. TP

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Sobre o assunto ler: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002. p. 40. 4

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do Controle da Violência à Violência do Controle Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 218.

5

BARATTA, Alessandro. Op. cit. p. 165.

6

Idem. Ibid. p. 176.

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A criminologia retoma, através do método materialista, “a análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originam, na sociedade capitalista, os fenômenos do desvio”7. Desta TP

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forma, as relações legais não podem estar fundadas no “espírito geral humano”, ou no “consenso social”. Elas, ao contrário, são originárias de transformações materiais na sociedade dentro da história, ou seja, originam-se das condições objetivo-estruturais da vida8. Os fatores criminais, TP

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para as teorias críticas, não são explicados pelos determinismos de ordem biológica, psicológica ou social, ou no idealismo do consenso, mas são predominantemente condicionados pela realidade material, como defendem Taylor, Walton e Young: Agora, nossa posição é que, não somente esses processos são de natureza totalmente social, mas, também, que eles são predominantemente condicionados pela realidade material. Rompendo com explicações individuais (isto é, com explicações genéticas, psicológicas ou similares) dentro de uma das explicações sociais projetou-se, perante nós, a economia política como determinante primário do modelo social9. TP

PT

Não há, desta forma, como interpretar realidade fora do nexo funcional que existe entre a seletividade do aparelho punitivo com as manutenções de desigualdade econômico-social existentes numa sociedade capitalista10, bem como as relações que este desempenha ao logo de TP

PT

sua história na gestão diferenciada da criminalidade11. TP

PT

Para as criminologias tradicionais, o poder punitivo também persegue, de forma ideal, todos os indivíduos igualmente, a partir do momento em que ocorre a ruptura dos bens essenciais à preservação da coletividade. No entanto, ao que se percebe, nas relações materiais de produção

e

reprodução

das

desigualdades,

somente

determinados

indivíduos

com

comportamentos desviantes a essas relações são selecionados. A importância deste tipo de método material para uma análise criminológica reside justamente na retirada do espírito humano do plano das ideias e dos valores metafísicos para um plano real12, onde as relações humanas, bem como as instituições penais, são influenciadas por TP

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fatores socioeconômicos, a depender de cada momento histórico.

7

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 217

8

TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock. Criminologia Crítica na Inglaterra Retrospecto e Perspectiva. In: TAYLOR, Ian; WALTON, Paul; YOUNG, Jock (Org.). Criminologia Crítica. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980. p. 60.

T

T

9 T

T

Idem. Ibid. p. 20.

10

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 218-219.

11

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 240-241.

12

“Eis por que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que, partindo de si mesmo se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se movimenta por si mesmo; ao passo que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto é, para o pensamento, apenas a maneira de se apropriar do concreto, de o reproduzir na forma de concreto pensado; porém, não é este de modo nenhum o processo de gênese do concreto em si”. KARL, Marx, Introdução à Contribuição para a Crítica à Economia Política. Moscovo: Edições Progresso Lisboa, 1982. p. 13.

718

Aniyar de Castro demonstra que, ao proclamar um profundo grau de cientificidade e neutralidade, a ciência criminológica convencional oculta uma função implícita, que é a de dar suporte ao controle social formalizado. “Portanto, a criminologia convencional também é uma forma de controle social”13. Neste sentido, uma das grandes contribuições da criminologia crítica TP

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sobre o fenômeno criminal é justamente a análise materialista sobre o controle social, bem como a atuação deste no processo de criminalização de determinados sujeitos ou grupos sociais ao longo de um período histórico.

2.2 A Seletividade Qualitativa: A Definição de Estigmas O controle sociopenal torna-se, a partir da criminologia crítica, o objeto das novas ciências criminológicas. É através dele que são definidas quais pessoas receberão o status de criminosas e quais comportamentos serão apontados como desviantes. A instância do controle social apresenta-se de vários modos nas relações sociais, seja de maneira informal (através da escola, da família, da mídia etc.), ou institucionalizada (através da polícia, do ministério público, etc.), sendo que esta última, quando relacionada aos mecanismos de produção, aplicação e execução das normas do direito penal, é chamada de justiça criminal (ou penal). Nesse contexto, verifica-se um problema relacionado à capacidade operacional reduzida dos aparelhos de persecução penal, que somente conseguem responder por uma parcela ínfima dos comportamentos delituosos cometidos na sociedade. Existe uma imensa quantidade de comportamentos criminosos que não serão apurados pelo aparelho punitivo do Estado: a chamada cifra negra. Essa ínfima capacidade persecutória das agências é chamada de seletividade quantitativa14. TP

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Não obstante, Vera Andrade irá definir o sistema penal como um sistema binário, dividido entre a programação normativa dos bens e valores a serem tutelados e a operacionalização da tutela desses bens realizada pelos aparelhos de persecução e de execução penal15. Há, portanto, TP

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um dever-ser instituído como um programa que deve ser cumprido por agências diferentes daquelas que o formulam16. Não pode esquecer que este dever-ser, apresenta, na sua TP

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constituição e na sua aplicação, relações de produção e reprodução da realidade material17 que TP

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indicam, majoritariamente, quais bens devem ser tutelados e quais indivíduos devem ser perseguidos.

13

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Reação Social. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p. 53.

14

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 263. BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 26. 15

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 283/285.

16

Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; Alejandro Alagia; Alejandro Slokar. Direito Penal Brasileiro. p. 43.

17

Idem. Ibid. p. 64.

719

A eficácia invertida do sistema penal consiste na dicotomia entre a sua função real e a sua função aparente: ao mesmo tempo em que o sistema penal, aparentemente, combate o crime de forma universal, ele seleciona os delitos ligados em grande parte aos comportamentos das classes mais desfavorecidas. Assim define Vera Andrade: A eficácia invertida do sistema penal é consistente no fato de que a função latente e real deste é construção seletiva da criminalidade e, neste processo, a reprodução material e ideológica, das desigualdades e diferenças sociais (de classe, gênero, raça) e não o combate da criminalidade, com a proteção de bens jurídicos universais e geração de segurança pública e jurídica18. TP

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A dogmática, seja na parte da apuração do ato infracional e da aplicação das medidas socioeducativas, seja no Direito Penal, não pode ser encarada como uma ciência neutra, que se realiza através da concatenação lógica dos princípios previstos na norma, mas sim uma instância funcional interna do sistema penal19. Assim sua aplicação, interpretação e concretização, TP

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dependem, sobretudo, das relações simbólicas e materiais existentes num determinado contexto, que influenciam a atuação – operacionalização – do sistema de justiça criminal. Alguns tipos de normas, como as responsáveis pela internação provisória de adolescentes previstas no Estatuto (antes da sentença definitiva)20, por exemplo, dependem de valorações por parte dos sujeitos TP

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atuantes do sistema de justiça criminal e não apenas de fórmulas vagas despolitizadas. Outras disposições vagas e imprecisas do ECA, que dependem também auxílio subsidiário da legislação penal, apenas encobrem um amplo poder discricionário dos juízes, responsáveis pelo controle punitivo. Nesse sentido também é declaração de Nilo Batista, que, numa crítica aos fins proclamados pelo Direito Penal – através de fórmulas vagas e imprecisas – analisa a importância do exame das reais funções históricas, econômicas e sociais, para compreensão dos verdadeiros fins da legislação criminal e do Estado21. Assim, relata o renomado penalista: “(...) que significarão TP

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"interesses do corpo social" numa sociedade dividida em classes, na qual os interesses de uma classe são estrutural e logicamente antagônicos aos da outra?”22. TP

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Além das relações materiais, que influenciam consideravelmente a atividade do sistema criminal, as representações presentes no imaginário coletivo em determinado contexto também se relacionam com seletividade empregada pelos órgãos de justiça. As lutas simbólicas são tão

18 T

T

19

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 31-32. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 230.

20

Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias. Parágrafo único. A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida. 21

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 22-23

22

Idem. Ibid. p. 21.

720

importantes quanto às lutas econômicas, como assinala Vera Malaguti23. Para a autora: “Este TP

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campo simbólico que ordena o mundo natural e social, através de alegorias da estrutura real de relações sociais, aliado à percepção de sua função ideológica e política24”. Os discursos baseados TP

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em fórmulas neutras também escondem uma eficácia simbólica através da representação cotidiana de estereótipos criminais. Não se precisa ir muito longe para perceber a eficácia desta função no dia-a-dia, através da representação neutra dos criminosos convencionais, mascarando a realidade25. TP

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A este tipo de seletividade, em que somente determinados indivíduos são rotulados ao longo da atividade desempenhada pelo sistema criminal, se dá a denominação de qualitativa, pela escolha baseada em determinados estereótipos – qualidades – que indivíduos frequentemente são rotulados como criminosos26. Em boa parte dos casos estes estereótipos estão ligados à TP

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falhas anormais de condutas, como o temperamento, o desajuste familiar, a vida levada ao crime, dentre outros. Tais atributos irão consideravelmente influenciar a atividade dos magistrados, principalmente na seara infanto-juvenil, onde os discursos mais garantistas e menos repressivos são muito sensíveis27, tendo em vista a mudança completa de paradigmas em menos de 20 anos. TP

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A seletividade qualitativa irá encontrar na atividade persecutória do Estado, mais precisamente, no Poder Judiciário, um dos seus pontos de guarida mais importantes. Neste sentido, ao mesmo tempo em que os magistrados agem discursivamente favorecendo à segurança coletiva, à justiça, ou melhor, tendo como ideia a atuação pela defesa social, efetivamente estão sustentando as relações desiguais, isolando determinados indivíduos através de caraterísticas – estigmas – que devem ser suprimidas do bom convívio social. A justiça na seara infracional ao longo do período histórico sempre permitiu mais avanços autoritários por partes dos magistrados, representando uma problemática ainda mais seletiva em se tratando do controle social. Neste sentido Baratta vai refletir que a “justiça juvenil sempre foi a mais sensível de todo o sistema punitivo”28. Seria, portanto, um subsistema do sistema punitivo TP

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onde as contradições entre o discurso aparente e as reais motivações atingem seu apogeu29. TP

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23

BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 63.

24

Idem. Ibid. p. 62.

25

“temos que nos remeter ao front simbólico da violência, para darmos conta da riqueza desses discursos e para não cairmos nas armadilhas. As práticas discursivas são produtoras de ordenamentos e divisões. A compreensão desses processos de representação permite desembaraçar-se das etiquetas que mascaram a realidade”. Idem. Ibid. p. 63. 26

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Op. Cit. p. 266-267. PRANDO, Camila Cardoso de Mello; PRANDO, Felipe Cardoso de Melo. Criminalização da Exclusão Social: Análise a Partir da Repressão aos Trabalhadores Rurais Semterra no Estado do Paraná. In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)Aprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva. Vol. 2. Florianópolis: Fundação Boiteux. p.161

27

BARATA, Alessandro. Prefácio da Obra: Difíceis Ganhos Fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 25.

28

Idem. Ibid.

29

Idem. Ibid.

721

No entanto, apesar da sensibilidade histórica em relação à justiça juvenil, houve um importante avanço a partir das garantias individuais e coletivas expressas pelo Estatuto desde 1990, trazendo novos elementos que indubitavelmente diminuíram a intervenção arbitrária dos magistrados na seleção dos indivíduos. Compreende-se, pois, que o ECA foi um importante instrumento de contenção das arbitrariedades, principalmente do Poder Judiciário, em relação a determinados adolescentes estereotipados. Neste sentido, o próximo tópico procura compreender quais os avanços da nova legislação (ECA) em relação à antiga (Código de Menores) no tocante ao procedimento de apuração do ato infracional, bem como procurará compreender quais os pontos considerados mais sensíveis ao ranço autoritário e repressivo dos juízes e que são utilizados discursivamente como forma de seleção sobre determinados adolescentes.

3. Justiça juvenil: os avanços e pontos sensíveis do estatuto da criança e do adolescente A justiça juvenil começa a tomar passos de consolidação no Brasil a partir da década de 20. Foi durante este período que a preocupação sobre a situação infanto-juvenil no Brasil começa a ser tratada como problema do Estado e não apenas individual por parte da família. Antes, salvo raras exceções, não havia regras específicas que tutelavam ou que abrigavam direitos das crianças e dos adolescentes. Do ponto de vista do discurso oficial era necessário zelar pelos interesses infanto-juvenis, garantindo assim o melhor interesse para esta população, evitando-o que ela adentrasse numa situação tida por irregular. Surge então o famoso Código de Menores de 1927, também chamado de Código de Mello Mattos, em homenagem ao Juiz criador da chamada na época justiça de menores: Mello Mattos. Em suas prescrições principais havia a necessidade de tutela sobre crianças e adolescentes em situação irregular, caso em que o Magistrado deveria atuar para tentar reverter esta situação “no melhor interesse do menor”. O Art. 1º do Código de Melo Mattos deixava bem claro qual o tipo de menor que a lei buscava prescrever: “O menor, de um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas nesse Código”. Ou seja, para ser objeto das medidas de assistência e proteção previstas no estatuto, era necessário que a criança ou o adolescente estivesse em situação de abandono ou de delinquência. Do ponto de vista do discurso real, a preocupação estava relacionada à quantidade de crianças e adolescentes vadios e abandonados. Era necessário que o Estado brasileiro, em franco crescimento econômico pelo início do processo de industrialização tardia, formasse mão-de-obra necessária para o mercado de trabalho. Daí porque a necessidade de criação de uma justiça especializada para “tratar” as crianças e os adolescentes em situação irregular. Era necessário,

722

aos que não se submetiam ao trabalho submisso (na maioria das vezes precário e degradante), a disciplina corretiva das internações. Para os menores abandonados, restaria a apreensão e o depósito em local conveniente. Os vadios poderiam ser repreendidos, ou internados, se reincidentes na vadiagem, para serem tratados (submissos). Já os delinquentes poderiam passar por vários tipos de tratamento, a depender de sua idade e de seu grau de perversão: O menor de 14 anos não se submeteria a processo penal específico e a autoridade poderia ou coloca-lo num asilo, se pervertido ou em perigo de perversão, ou deixa-lo junto com a família ou tutor, se não tivesse nenhuma perversão; entre 14 e 18 anos, o adolescente se submeteria a um processo penal específico, podendo ser aplicado desde o recolhimento numa escola de reforma, perpassando pela própria internação na escola reformatória, até uma internação em estabelecimento específico, sendo que, neste último caso, somente para adolescentes de 16 a 18 anos a quem foi imputado crimes graves e com alto grau de perversão moral. O auto grau de subjetivismo atribuído ao juiz, bem como a influência lombrosiana no texto do Código, foi responsável pela seletividade de adolescentes estigmatizados pertencentes a determinadas classes sociais. A legislação, juntamente com o discurso da época, estava mais guinada ao comportamento e a personalidade do adolescente, bem como seu respaldo familiar, do que ao próprio fato praticado por ele. Na esteira do Código de 27, o de 1979 foi um aperfeiçoamento daquilo que se veio a chamar de doutrina da situação irregular, revogando a antiga legislação. O Art. 2º do Código de Menores de 1979 irá categorizar em quais situações pode um menor ser encontrado em situação irregular que, de certa forma, irá complementar a legislação revogada: carência, exposição aos maus costumes, abandono, delinquência30. TP

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Nesse sentido aponta Wilson Liberati: O Código revogado não passava de um Código Penal do “menor”, disfarçado em sistema tutelar; suas medidas não passavam de verdadeiras sanções, ou seja, penas, disfarçadas em medidas de proteção. Não relacionavam nenhum direito, a não ser aquele sobre a assistência religiosa; não trazia nenhuma medida de apoio à família; tratava da situação irregular da criança e do jovem, que, na realidade, eram seres privados de seus direitos31. TP

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30

Art. 2º: “Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal”.

31

LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 13.

723

A doutrina da situação irregular etiquetava determinadas crianças e adolescentes que deveriam ser objeto de tutela específica por parte do Estado, na maioria das vezes no sentido de isolamento e repressão. Era necessário isolar, seja para tratar, seja para apenas neutralizar, estes determinados indivíduos indesejados à manutenção da ordem. Nesse sentido também são as palavras da psicóloga cearense Ângela Pinheiro: Ora, considerar integrantes de um segmento populacional em situação irregular significa contrapô-los aos demais, que, por oposição, encontram-se em situação regular. Trata-se de uma classificação discriminatória. E à Lei cabe, portanto, “regularizar” aqueles ditos em situação irregular. Cabe à Lei, por meio do Juiz de Menores, normatizar a vida daqueles considerados em situação irregular32. TP

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A doutrina da situação irregular classificava preconceituosamente quais indivíduos deveriam ser normalizados (regularizados) ao prudente arbítrio dos magistrados, que poderiam se valer não somente das medidas presentes no Código, mas também de outras através de seu juízo discricionário33. Nota-se, portanto, quase um absoluto poder do Judiciário sobre crianças e TP

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adolescentes julgadas (estigmatizadas) como irregulares. É possível verificar nessa construção a enorme capacidade de tutela dos juízes sobre os adolescentes, pois não necessitava que o adolescente cometesse algum ato tido por criminoso para que recaísse sobre ele algum procedimento tutelar. Nessa seara, o magistrado apenas se valeria no suposto interesse do menor ou na sua situação irregular para retirá-lo do convívio social. Além disso, não havia sido consagrado o direito à defesa plena, não sendo obrigatória a defesa técnica, feita por um defensor habilitado, tampouco o direito de ser ouvido e ter suas considerações levadas em conta. Para finalizar, cumpre refletir sobre o posicionamento de Alessandro Baratta, ao afirmar que a justiça juvenil, até a década de 80, era pior do que a dos adultos: Isto se torna ainda mais evidente quando nos damos conta não só da realidade efetiva do sistema, mas também da relação entre as normas e a realidade. O funcionamento seletivo, segregador, desumanizante do sistema era ainda mais pronunciado na justiça para menores que na dos adultos, e sua legislação não indicava um modelo melhor de realidade, sendo, digamos assim, uma má fotografia34. TP

PT

32

PINHEIRO, Ângela Alencar Araripe. Criança e Adolescente no Brasil: porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: UFC, 2006. p. 70.

33

Art. 8º: “A autoridade judiciária, além das medidas especiais previstas nesta Lei, poderá, através de portaria ou provimento, determinar outras de ordem geral, que, ao seu prudente arbítrio, se demonstrarem necessárias à assistência, proteção e vigilância ao menor, respondendo por abuso ou desvio de poder”. 34

BARATTA, Alessandro. Op cit. p. 26

724

3.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente e os “Pontos Sensíveis” O Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em 1990, foi um marco importante por apresentar uma serie direitos e garantias não previstos nas antigas legislações especiais. O conjunto destes direitos e garantias deu origem à doutrina da proteção integral, onde crianças e adolescentes foram encarados, a nível legal, como sujeitos de direitos, e não apenas como objeto de tutela específica por parte do Estado. Garantias que limitavam o arbítrio judicial como a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal foram incorporadas ao Estatuto, oferecendo uma maior proteção a crianças e adolescentes contra as investidas autoritárias do poder judiciário. O rompimento com um passado deveras autoritário e o nascimento de uma Constituição de cunho mais garantista, reconhecendo inúmeros direitos para grupos anteriormente excluídos pelas legislações, como os povos indígenas, foi importante para a efervescência do debate sobre uma nova legislação para a área infanto-juvenil que retirasse o passado arraigado pela doutrina da situação irregular. Além disto, a Constituição de 1988 previu, em seu art. 227, a proteção integral para crianças e adolescentes, afirmando, como dever do Estado, da família e da sociedade (sem hierarquia) assegurar, com absoluta prioridade, para crianças e adolescentes, “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A proteção integral também apregoa a universalidade de direitos para todas as crianças e adolescentes, bem como o respeito à condição peculiar de desenvolvimento, já que a infância e a adolescência são fases únicas vivenciadas por aquela pessoa e, por isto, merecem proteção especial por parte do Estado, sem, contudo, desrespeitar as próprias garantias limitantes do agir estatal. Com relação à limitação do agir Estatal, o ECA afirmou que os menores de 18 anos são inimputáveis (assim como descreve o Código Penal e a Constituição), sendo que crianças e adolescentes que praticarem atos infracionais (condutas descritas como crime ou contravenção penal) serão responsabilizadas tendo com base as prescrições trazidas pelo Estatuto. Para crianças, serão aplicadas as medidas de proteção previstas no art. 101. Já para os adolescentes, serão, via de regra35, aplicadas medidas socioeducativas, previstas no art. 112: advertência, TP

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obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. O ECA possibilitou, pelo menos no plano ideal, a derrocada da doutrina da situação irregular e de suas condicionantes ligadas à estigmatização de uma parcela da infância e adolescência indesejada pelo Estado. As antigas internações tendo com base a suposta situação irregular foram cedendo lugar ao devido processo legal e às medidas socioeducativas. A 35

Podem ser aplicadas medidas de proteção também. Vide art. 112, VII, do ECA.

725

possibilidade de alguém sofrer uma medida socioeducativa de internação nos atualmente conhecidos como “Centros Educacionais” foi somente relegada aos adolescentes que praticam ato infracional mediante violência ou grave ameaça a pessoa, ou por prática reiterada de vários atos infracionais graves, ou por descumprimento injustificado de outra medida socioeducativa anteriormente exposta. No plano real, ainda prevalece o olhar seletivo por parte dos magistrados que atuam na seara infanto-juvenil. Não são poucos os casos de juízes que ainda utilizam das justificativas antes presentes na doutrina da situação irregular para segregar aqueles comportamentos tidos por indesejáveis à ordem, como o desajustamento familiar, a vida entregue à criminalidade, o uso de drogas ou mesmo o desajuste social. As questões pessoais do suposto autor de algum ato infelizmente ainda são consideradas preponderantes em relação ao ato praticado pelo adolescente para a aplicação das medidas socioeducativas. O isolamento continua sendo ainda a medida preferível da Justiça Juvenil, mesmo após novas garantias e novas medidas que supostamente trariam para a medida de internação o caráter de excepcionalidade. O mais interessante, e o mais fácil, continua sendo o afastamento do adolescente da sociedade para o seu próprio bem, ou melhor, para tratá-lo pedagogicamente. Segundo o Ministério da Justiça, em relação aos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado (internação, semiliberdade e internação provisória), o número saltou de pouco mais de 4 mil em 1996 para quase 17 mil no final de 2009, registrando um crescimento de mais de 425% em 13 anos36. Nesta seara, o Estado do Ceará apresenta-se como TP

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um dos primeiros lugares no número de internados – 6º lugar – sendo que viu sua população adolescente cumprindo a medida de internação quase dobrar entre 2002 e 200937. TP

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Com base nestes dados, aponta uma pesquisa encampada na Universidade Federal da Bahia sobre a atuação do Poder Judiciário nas decisões sobre internação de adolescentes acusados de cometer ato infracional que a cultura da internação ainda é muito presente no imaginário do judiciário brasileiro. Vejamos: A cultura de inclinação ao encarceramento juvenil se revela posicionamento recorrente na jurisprudência brasileira, fundamentada (não na lei, mas) numa suposta periculosidade atribuída aos antecedentes dos adolescentes, à falta de respaldo familiar, ao desajuste social, ao uso/abuso de drogas, no que se reconhece na medida de internação uma forma de segregação e uma estratégia de ressocialização, ou ainda, a coloca em meio ao discurso do “benefício” ou da “correção” atribuído como justificativa à aplicação de medida de internação: “isolar para tratar”38. TP

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36

Dados disponíveis em: http://www.sedh.gov.br/. Data do acesso: 20 de nov. de 2011.

37

De 389 adolescentes em 2002, para 615 no final de 2009

38

MINAHIM, Maria Auxiliadora (coord.). Responsabilidade e Garantias ao Adolescente Autor de Ato Infracional: uma Proposta de Revisão do ECA em seus 18 Anos de Vigência. Universidade Federal da Bahia. 2010. p. 24.

726

A pesquisa supramencionada também alude quanto à fundamentação com base numa suposta periculosidade do adolescente, que passa a ser presumida e decorrente do status social de condições de caráter pessoal: A construção da idéia de periculosidade dos adolescentes é bastante freqüente nos argumentos de justificação da internação. Há uma efetiva criação da periculosidade social dos adolescentes, que passa a ser legalmente presumida e decorrente de condições pessoais ou de status social como “comportamento tendente à delinqüência”, reincidência e até mesmo pertinência a determinados grupos de amigos39. TP

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Neste sentido, é importante buscar refletir sobre alguns pontos sensíveis do Estatuto no tocante à questão da aplicação das medidas socioeducativas. Ora, o caráter pedagógico é sempre bem vindo e salutar em qualquer medida a ser aplicada tendo como fundamento o ECA, no entanto, esta não pode ser a tônica (e nas medidas em meio aberto também) para a justificativa de uma medida. Alexandre da Rosa, neste sentido, aponta que a afirmação do discurso de tratamento através da pedagogicidade das medidas socioeducativas pode representar, em vez de um aspecto interessante, uma arbitrariedade do Estado para com o adolescente40. TP

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Além disto, a falta de previsão de balizas mínimas para aplicação das medidas, como tempo mínimo e máximo de permanência numa medida a depender do ato infracional praticado, restrição ainda maior dos casos em que devem ser aplicadas as medidas de internação e semiliberdade, bem como a necessidade de participação efetiva na defesa, seja na fase prédenúncia (oitiva informal como Ministério Público) e durante o desenrolar do processo, são deveras salutares. Neste sentido, após as críticas e reflexões sobre o ECA e a presença quase que permanente da doutrina da situação irregular, incumbe agora fazer uma reflexão qualitativa sobre alguns acórdãos encampados pelo TJCE durante os anos de 2005 a 2010, como resultado parcial das análises efetuadas por esta pesquisa até agora. Cumpre também reiterar que a pesquisa tem como objetivo a análise dos acórdãos, além do TJCE, do STJ, realizando, assim, uma ligação entre as decisões efetivadas no em todo o cenário nacional com, mais especificadamente, as decisões do Tribunal cearense, abarcando compreender como o judiciário brasileiro, em especial, o cearense, coaduna-se ou não com as hipóteses levantadas. É cediço também ressaltar que boa parte do controle social é efetuada pelos chamados Juízes monocráticos, por estarem mais próximos serem suscetível a uma maior pressão por vingança das camadas sociais, e poucos casos, mesmo que arbitrários, geram algum tipo de recurso para os Tribunais, que acabam recebendo pouca parcela de decisões da seara infantojuvenil. Um dos motivos para esta situação reside na precariedade da defesa, na maioria das 39

Idem. Ibid. p. 25.

40

ROSA, Alexandre Morais da. Aplicando o ECA: Felicidade e perversão sem limites. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 14, n. 58, jan-fev de 2006. p. 18-19.

727

vezes realizada por Defensor Público, haja vista as condições e a quantidade de casos que os Defensores Públicos devem atuar.

4. Apontamentos parciais: seleções de algumas decisões do TJCE sobre medidas de internação Abaixo, encontra-se a análise parcial de algumas decisões do TJCE referentes à aplicação da medida socioeducativa de internação para adolescentes acusados de cometer algum tipo de ato infracional. As análises e reflexões apontadas neste artigo não tem o condão de encerrar todas as questões presentes na pesquisa, bem como apenas representam um esboço inicial daquilo que se pretende fazer no desenrolar da pesquisa integral. O Acórdão abaixo emitido pela 1ª Câmara Cível do TJCE em setembro de 2010 confirma a sentença de 1º grau que aplicou a medida de internação a dois adolescentes pela conduta análoga à tipificada no art. 12 da lei 10.826/03 (Porte Ilegal de Arma de Fogo de Uso Permitido). Apesar de necessariamente a prática de um ato infracional deste tipo não implicar uma medida de internação, o Tribunal alega que pode ser verificado, diante dos autos, que o adolescente pertencia já a um contexto de violência e criminalidade, compondo uma temível gangue da cidade e praticando reiteradamente atos infracionais de natureza grave. Vejamos: (...) Em seus depoimentos prestados perante a autoridade judicial, os apelados foram unânimes em confirmar a posse da arma suso mencionada e o interesse em utilizá-la para suprimir a vida do indivíduo alcunhado por (...) que, segundo o informado, pertenceria a gangue rival à dos recorrentes. (...). A partir do quanto fixado nos autos, sobretudo dos depoimentos prestados pelos apelantes, distingue-se, de forma lídima, que os apelantes já se inserem num contexto social de criminalidade e de violência, pertencendo a temida gangue desta capital e praticando reiteradamente atos infracionais de natureza grave41. TP

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Nota-se, neste caso, que o contexto social desajustado dos adolescentes influenciou muito mais a imposição da medida do que o próprio ato praticado. Aliás, a conduta tipificada no art. 12 da Lei supracitada dificilmente levaria o infrator adulto à prisão, visto que a pena aplicada seria de 1 a 3 anos de detenção, possivelmente, seria convertida em uma medida restritiva de direitos. Assim, independentemente da averiguação dos outros atos, o teor preconceituoso de vida social de criminalidade e violência confessada pelos adolescentes por si só já serve de justificação da medida de internação. O desvalor do indivíduo sobrepõe-se, neste caso, ao desvalor do resultado. Além disto, nota-se o conteúdo seletivo deste acórdão também no adjetivo “temida gangue”, que, independentemente de averiguação por parte do Estado ou de individualização e culpabilização da conduta, cultua o medo e o risco social através de uma periculosidade iminente. Assim, justifica-se a medida através do subjetivismo do magistrado invocado pelo perigo de 41

CEARÁ. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. 1ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 4089345201080600000. Relator: Francisco Sales Neto. Data da Decisão :29/09/2010.

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pertencer a algum grupo tido por delinquente. Aliás, a conceituação de gangue não está bem delimitada, sendo invocada para causar impacto e medo para a população, assim como crime organizado, narcotráfico, dentre outros termos42. TP

PT

Neste outro acórdão temos mais outra questão recorrente quanto à característica pessoal do sujeito – propensão criminosa – como uma das justificativas para a aplicação da medida socioeducativa de internação. Além disto, tal fato se deu através das próprias declarações do adolescente e não através de persecução Estatal (Ministério Público, Polícia). Além disto, recorre ainda como justificativa o caráter pedagógico da medida, no sentido de restaurar o adolescente de sua má índole. Vejamos: (...) Dando, as declarações do representado, conta de que o mesmo é costumeiro praticante de atos infracionais subtrativos do patrimônio alheio, elas revelam propensão criminosa que requer medida a restaurar, de pessoa em formação, sua má índole; IV - Tal como as demais medidas sócioeducativas, a internação também é de caráter pedagógico, aplicável a quem comete infrações com violência ou grave ameaça à pessoa43. TP

PT

Como foi dito no tópico passado, o caráter pedagógico é importante e essencial em cada medida socioeducativa, a partir da demanda de cada adolescente. Não se pode, entretanto, justificar a aplicação de uma medida em detrimento da outra afirmando o caráter pedagógico dela, no sentido de tratar o adolescente. Ora, o discurso de tratamento pode, em vez de possibilitar características mais democráticas para a medida, apresentar um conteúdo autoritário ainda maior, a depender do comportamento individual do adolescente, e não do próprio ato que o mesmo possa vir a ter praticado. Lembra-se de que o discurso de tratamento, tendo como base o melhor interesse do menor ou a própria proteção do adolescente, já foi responsável por incursões deveras arbitrárias na justiça juvenil ao longo do tempo. Nota-se que, portanto, o discurso de isolamento para tratamento – requalificação ou reeducação – do adolescente que apresenta comportamentos indesejados contém muito mais um conteúdo segregador de determinados indivíduos indesejados do que realmente a afirmação da pedagogicidade da medida de internação. Ora, é de se ressaltar que todas as medidas socioeducativas tem o condão repressor, de forma qualitativamente diferenciada dos adultos, isto é verdade, mas não deixa de ter na sua essência esta característica. Se as medidas não forem encaradas também sob esta vertente, elas podem ser aplicadas sob a característica de um beneplácito concedido ao adolescente para que ele não volte mais a vida entregue à 42

KARAM, Maria Lúcia. Revisitando a Sociologia das Drogas. In: In: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)Aprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva. Vol. 1. Florianópolis: Fundação Boiteux. p. 134-135. 43

CEARÁ. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. 5ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 3842256201080600000. Relator: Francisco Gurgel Holanda. Data da Decisão: 21/09/2010.

729

criminalidade. Todas as medidas, de uma forma, representam uma responsabilização repressiva ao adolescente pelo ato infracional efetuado e, por isto, ensejam princípios e garantias Constitucionais que limitem o arbítrio Estatal, como a lesividade, a ofensividade, a ampla defesa, o devido processo legal, dentre outros. Vejamos outro acórdão que versa sobre a necessidade da medida de internação para proteção do próprio adolescente: Entendo que as medidas elencadas no Estatuto da Criança e do Adolescente não contêm o condão repressor, mas buscam compatibilizar o sancionamento à conduta indesejada com a proteção aos interesses da pessoa com a personalidade ainda em formação. 6. Porém, o ato infracional cometido pelo apelante é grave, pois foi praticado mediante grave violência44. TP

PT

Neste caso, a decisão do Tribunal cearense afasta a aplicação da medida de internação para uma menos gravosa, alegando que o respaldo familiar, a periculosidade do agente não servem, isoladamente, para aplicação. Assim, afasta-se a decisão do Juiz monocrático que aplicou a medida através das características pessoais e os comportamentos indesejados do adolescente, posicionando-se provavelmente no sentido de proteger o adolescente de seus próprios atos. Ora, verifica-se também neste caso a medida de internação com forma de controle social dos comportamentos indesejados, perigosos ou suspeitos. Vale ainda uma crítica à decisão criminal no sentido de afastar as condutas pessoais, como também o respaldo familiar do adolescente como subsídio para a fundamentação de uma medida mais gravosa, independente do ato infracional praticado. O que deve ser analisado para a aplicação de uma medida é a gravidade da medida em si, tendo como base os parâmetros permitidos pelo ECA e pela Constituição, e não requisitos subjetivos, que podem levar a decisões arbitrárias, como respaldo familiar ou vida entregue à criminalidade. (...) A medida extrema de internação só está autorizada nas hipóteses previstas taxativamente nos incisos do art. 122 do Estatuto da Criança e do Adolescente, pois a segregação de menor é, efetivamente, medida de exceção, devendo ser aplicada ou mantida somente quando evidenciada sua necessidade - em observância ao próprio espírito do ECA, o qual visa à reintegração do jovem à sociedade. 3. Embora o adolescente tenha praticado ato infracional equiparado ao delito de furto, as circunstâncias fáticas afastam a alegada gravidade da prática. 4. Como é cediço, a gravidade genérica da conduta imputada ao jovem, seu deficiente respaldo familiar, bem como a sua alegada periculosidade, não servem, isoladamente, de fundamentação idônea para o estabelecimento da medida mais gravosa45. TP

PT

Por fim, pelas limitações do próprio artigo, analisa-se um último acórdão do TJCE em que ao adolescente é aplicada a medida de internação, por, dentre outros motivos, se mostrar 44

CEARÁ. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. 5ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 1101750200780600000. Relator: Francisco Suenon Bastos Mota. Data da Decisão: 24/06/2010. 45

CEARÁ. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. 1ª Câmara Cível. Habeas Corpus nº 2726183200980600000. Relator: Fernando Luiz Ximenes Rocha. Data da Decisão: 22/02/2010.

730

insensível às medidas que lhe foram impostas anteriormente, além do descontrole familiar. Ora, a reiteração de atos infracionais graves pode ser considerada como requisito de aplicação da medida, como o próprio Estatuto já predispõe, no entanto, não se pode colocar condições pessoais, bem como caracteres deveras subjetivos, como a insensibilidade para o cumprimento das medidas, para que se aplique uma medida mais gravosa. Como defende Alexandre da Rosa, as medidas socioeducativas não tem o condão de reformar ninguém, bem como não se pode utilizar como justificativa o discurso de tratamento do adolescente, pois assim estaria entrando numa seara arbitrária46. TP

PT

Nos termos do artigo 122, II, do ECA, aplica-se a medida de internação por reiteração no cometimento de outras infrações graves. O adolescente, na espécie, reitera no cometimento de infrações graves. Apresenta condições pessoais desfavoráveis, sem controle da família, insensível às medidas que lhe foram impostas anteriormente, em franca escalada infracional47. TP

PT

5. Considerações finais Através da reflexão dos acórdãos analisados, as conclusões parciais desta pesquisa apontam que o discurso de proteção do adolescente para o seu próprio bem, através da afirmação dos aspectos pedagógicos da medida, da necessidade de tratamento, bem como da utilização de requisitos subjetivos ligados às características comportamentais do indivíduo ensejam muito mais o isolamento de determinados indivíduos indesejados sob determinados estereótipos sociais. O discurso judicial, portanto, está mais relacionado à seleção de determinados sujeitos com características semelhantes (desajustamento familiar, vida entregue à prática de delitos, contexto social) para isolá-los do suposto bom convívio social. Confirma-se, portanto o paradigma seletivo apontado pela criminologia crítica ao discurso judicial, também responsável pelo controle social. O Poder Judiciário, pelas decisões ora analisadas, através de um discurso aparentemente neutro e universal estaria, no entanto, fortalecendo inequivocamente o desvalor da personalidade de determinados adolescentes indesejados que, diante disto, responderiam por medidas mais gravosas, como a internação. Finaliza-se também refletindo sobre os aspectos sensíveis do Estatuto no tocante ao procedimento de apuração do ato infracional e a necessidade de afirmação de balizas mínimas para aplicação de medidas socioeducativas que retirem cada vez mais o subjetivismo arbitrário dos juízes da seara infanto-juvenil e que possam garantir mais direitos aos adolescentes acusados de cometer algum ato infracional.

46

ROSA, Alexandre da. Op. Cit. p. 19.

47

CEARÁ. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. 4ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 1280655200580600000. Relator: Lincoln Tavares Dantas. Data da Decisão: 14/02/2007.

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732

Perfil da pesquisa empírica no direito: um diagnóstico possível no Programa de Pós-Graduação da UFPE John Heinz1 TP

PT

2

Ticianne Perdigão TP

PT

Resumo

Abstract

Trata-se de uma análise sobre o perfil estético e conteudístico da pesquisa no Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, a partir das dissertações e teses apresentadas pelo seu corpo discente. Tal análise ocorre com o objetivo de diagnosticar a relação entre as pesquisas que ocorrem de fato no referido Programa e as problemáticas gerais da pesquisa empírica em Direito relacionadas por Alexandre Veronese (2007), e obter parâmetros para medir a inserção da pesquisa empírica dentro daquela pósgraduação. A metodologia utilizada foi a análise documental através de um conjunto de parâmetros definidos, elencados no corpo da pesquisa. O corpus da pesquisa consistiu nas teses e dissertações produzidas nos últimos dez anos (2001-2010) pelos discentes do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, disponíveis para consulta na Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Jurídicas – UFPE. Ainda como limite ao corpus, estabelecemos uma distinção temática, limitando a trabalhos que versem sobre os temas da "comunicação" e da "internet", por constituírem estes os objetos de pesquisa dos autores deste artigo. O resultado apresentado foi uma adequação estética geral às normas vigentes. No aspecto conteudístico, identificamos uma limitação da abrangência de fontes de consulta disponíveis, resumida à consulta a fontes bibliográficas escritas prioritariamente no idioma português. Foi identificado baixo percentual de utilização dos idiomas inglês, espanhol e francês, e utilização das demais línguas com percentual próximo a zero, além da utilização próxima a zero de outras fontes de pesquisa que a bibliográfica.

This paper deals with an analysis of the aesthetic and the content profile of research in the Programa de Pós-Graduação em Direito at the Universidade Federal de Pernambuco, observing dissertations and theses submitted by the students. This analysis is aimed at diagnosing the relationship between the research actually developed in the program and the general problems of empirical research in law described by Alexandre Veronese (2007). We also try to obtain parameters for measuring the incorporation of empirical research into those postgraduation works. The methodology used was the analysis of these works through a set of defined parameters, listed in the body of this paper. The corpus consisted of research theses and dissertations produced over the last ten years (20012010) by students of the Programa de PósGraduação em Direito at the Universidade Federal de Pernambuco, available for consultation in the Library Sector Center for Legal Studies – Biblioteca do CCJ/UFPE. We establish a thematic distinction for the corpus, limiting the research to works that deals with the themes of "communication" and "internet", objects which constitute the research main theme of the writers of this paper. As result, we noted a general aesthetic suitability pattern. About the content, we identified a limitation of the scope of information available to sources written in Portuguese. We also identified a low percentage of use of English, Spanish and French languages as sources of content, and the use of other languages with a percentage near to zero, and near zero using other sources of research instead the literature review.

Palavras-Chave: Sociologia Jurídica; Pesquisa empírica; Pesquisa e Direito; Direito e comunicação.

Keywords: Sociology of Law; Empirical Research and Law; Law and communication.

Research;

1

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Correio eletrônico: [email protected]. TU

UT

2

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Correio eletrônico: [email protected]. TU

UT

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1. Introdução Este trabalho trata-se de uma análise breve sobre o perfil da pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. Tal análise ocorre com o intuito de diagnosticar a relação entre as pesquisas que ocorrem de fato no referido Programa e as problemáticas gerais da pesquisa empírica em Direito relacionadas no artigo de Alexandre Veronese (2007), "O problema da pesquisa empírica e sua baixa integração na área de direito: uma perspectiva brasileira da avaliação dos cursos de pós-graduação do Rio de Janeiro". Procederemos então a uma análise do panorama geral enfrentado pela institucionalização da pesquisa empírica no âmbito do conhecimento jurídico, bem como relacionaremos em termos gerais essas problemáticas às perspectivas da formação do conhecimento em outras ciências. A seguir, apresentaremos um modelo possível de pesquisa empírica, que além da função pedagógica e exemplificativa, nos informa sobre o perfil da pesquisa desenvolvida no PPGD/UFPE. Ao fim, tentaremos traçar um perfil geral da pesquisa em direito desenvolvida no PPGD/UFPE, a partir das relações estabelecidas nos tópicos anteriores.

2. A pesquisa empírica no direito: problemas e limites Os problemas e limites colocados aqui o são a partir da perspectiva de VERONESE (2007). Esta perspectiva traça suas fronteiras a partir da comparação entre possibilidades de pesquisa dentro do direito que vão desde a compreensão normativista até a análise social e/ou econômica (VERONESE, 2007, p. 6.017-6019) e a sua colocação dentro dos currículos da educação jurídica, especialmente nos programas de pós-graduação, pela sua função central de formação de conhecimento e de docentes3 (VERONESE, 2007, p. 6014)4. O objetivo do autor é P

P

P

P

identificar o ciclo que impede ou limita o estabelecimento da pesquisa empírica como modalidade de pesquisa difundida e viável dentro da ciência do direito, mesmo se comparada com outras ciências sociais. Nas suas palavras, "a pesquisa empírica é sub-representada em sua oferta" (VERONESE, 2007, p. 6.014) dentro do direito. Assim é que o autor elenca quatro modalidades de análise dentro do direito5, de acordo P

P

com a sua maior ou menor proximidade do que seria um "perfil empírico" (VERONESE, 2007, p.

3

Sobre a diferença entre a formação de graduados e de pós-graduados, OLIVEIRA: "o aluno da graduação é um jurista em formação em busca de um diploma de bacharel, enquanto o da pós-graduação já é um jurista formado que está ali para produzir uma dissertação ou uma tese - isto é, um trabalho acadêmico" (OLIVEIRA, 2002, p. 11, citado por OLIVEIRA, 2004, p. 2). 4

O autor também procede a uma distinção preliminar entre a pesquisa do que poderíamos chamar de cientista do direito e a pesquisa do profissional do direito (VERONESE, 2007, p. 6.014-6.015). Entretanto, não consideramos esta distinção necessária para os propósitos deste trabalho em termos mais extensos que o desta citação. Sobre o assunto, também ADEODATO: "O advogado que estuda para melhor fundamentar sua argumentação no processo faz pesquisa, sem dúvida. Especificamente, contudo, o trabalho de pesquisa [científica] é mais ambicioso, apresentando-se de forma sistemática, com pretensões de racionalidade e aplicação generalizada" (1999, p. 4). 5

"Pode-se entender a pesquisa jurídica relacionada ao entendimento de quatro momentos das relações sociais" (VERONESE, 2007, p. 6.017).

734

6.019). Por "perfil empírico", podemos entender "o estudo teorizado de dados controlados" (VERONESE, 2007, p. 6.019). Listemos as quatro modalidades de análise, seguidas de sua caracterização: - Compreensão normativista: compreensão dos fatos sócio-jurídicos tendo a ideia de uma norma jurídica como ponto de partida, "oferece uma leitura onde as normas são reificadas, sem que haja uma investigação sobre sua origem ou sua relação com a vida social" (VERONESE, 2007, p. 6.017); - Compreensão dogmática: derivada da primeira, investida a organização das normas em relação a outras normas. Nesta compreensão, "deve ser definido o que, em termos abstratos, pode ser considerado como norma jurídica para que possam ser definidas quais as normas jurídicas vigentes" (VERONESE, 2007, p. 6.018); - Compreensão hermenêutica: é a compreensão das interpretações dentro do universo de aplicação do direito, a dissertação sobre possibilidades de "construção e/ou análise de teorizações interpretativas aplicáveis" (VERONESE, 2007, p. 6.018); - Compreensão social e/ou econômica do direito: diz respeito aos efeitos sociais do direito, tomando forma de disciplina social propriamente dita. "A pergunta central é como a normatividade é apropriada socialmente" (VERONESE, 2007, p. 6.019). A partir dessas distinções, é possível agrupar os diversos trabalhos produzidos dentro da academia jurídica segundo a gradação de mais ou menos empíricos, já que, em tese, seguindo a escala em direção à compreensão social e/ou econômica, cresce a necessidade de coleta de dados da realidade social e de conhecimentos e dados de outras disciplinas6. Classificando os P

P

trabalhos nesta escala, VERONESE passa à exploração dos problemas referentes à viabilidade da pesquisa empírica dentro do direito. Para tanto, elenca algumas hipóteses que isoladamente não explicam o fenômeno mas, em conjunto, podem traçar caminhos para entendê-lo7. Vamos a P

P

elas: 1) a falta de formação teórica dos mestrandos e doutorandos; 2) a relação excessivamente instrumental com os conteúdos relativos aos métodos de pesquisa; 3) a falta de verbas para projetos de pesquisa no direito;

6

JUNQUEIRA, no seu conceito equivalente de "pesquisa sociológica": "uma pesquisa 'que trabalha não um direito definido juridicamente, mas redefinido pelas ciências sociais, através de pressupostos teóricos e epistemológicos destas'" (JUNQUEIRA citado por OLIVEIRA, 2004, p. 3).

7

OLIVEIRA explora, de forma magistral, outros problemas dos trabalhos científicos no direito que impedem maior difusão da pesquisa empírica. Se não o faz analisando a estrutura organizacional da pesquisa jurídica em geral como VERONESE, opta pelo caminho de caracterizá-los em suas feições mais repetidas, ou nas justificativas mais presentes quando se refuta uma pesquisa empírica ou "sociológica" em proveito de uma pesquisa "jurídica", para usar termos do próprio OLIVEIRA (OLIVEIRA, 2004): "manualismo" e "reverencialismo" (p. 6-7), falta de tempo (p. 8-9), a "impureza" metodológica (p. 9 e ss.).

735

4) a falta de abertura dos estudos jurídicos, e da própria área jurídica, para influxos de outras áreas do conhecimento. As hipóteses (1) e (2) podem ser classificadas como problemas epistemológicos; já as hipóteses (3) e (4) estariam na categoria de dificuldades de ordem institucional (VERONESE, 2007, p. 6.015). Para efeitos deste trabalho, discorreremos a respeito dos problemas epistemológicos da pesquisa empírica (1 e 2), tendo em vista que seria necessário uma coleta de dados muito mais ampla para que as hipóteses (3) e (4) fossem trabalhadas a contento, como por exemplo, entrevistas com os responsáveis pela direção de programas de pós-graduação ou com profissionais jurídicos de vários campos, tanto práticos quanto teóricos, o que foge aos nossos objetivos e aos requisitos monográficos da disciplina Pesquisa e Direito. Essa discussão virá ao final do nosso trabalho. No ponto a seguir, tentaremos construir uma pesquisa empírica possível, tendo como mote as produções científicas do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, para enfim voltarmos à questão dos problemas da pesquisa empírica.

3. Uma pesquisa empírica possível 3.1 Introdução Trata-se de uma pesquisa sobre o perfil estético e conteudístico das dissertações e teses produzidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco. O objetivo é avaliar o quanto estes documentos científicos estão condizentes com as normas estilísticas e estéticas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), entidade responsável por normatizar esteticamente os trabalhos acadêmicos e científicos. Ainda, tentaremos fazer breves considerações sobre a pesquisa desenvolvida nestes trabalhos a partir da análise das referências bibliográficas. Para tanto, o método utilizado foi o da análise documental através de um conjunto de parâmetros definidos. Estes parâmetros estão elencados no corpo desta pesquisa. O corpus de pesquisa consistiu nas teses e dissertações produzidas nos últimos dez anos (2001-2010) pelos discentes do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco, disponíveis para consulta na Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Jurídicas – UFPE. Ainda como limite ao corpus, estabelecemos uma distinção quanto ao tema, limitando-nos a trabalhos que versem sobre os temas da comunicação e da internet, por constituírem estes os objetos de pesquisa dos autores deste artigo. O resultado apresentado foi uma adequação estética geral às normas vigentes, embora no aspecto conteudístico encontrado a partir da análise das referências ao final dos textos, tenhamos identificado uma limitação da abrangência de fontes de consulta disponíveis, geralmente resumidas à consulta a fontes bibliográficas, em especial livros e artigos, escritas prioritariamente no idioma português, com

736

baixo percentual de utilização dos idiomas inglês, espanhol e francês, e utilização das demais línguas com percentual próximo a zero.

3.2 Análise do Resumo De acordo com a Norma ABNT/NBR-6028, resumo é a apresentação concisa dos pontos relevantes de um documento e deve conter: objetivo; método; resultados; conclusões do documento e palavras-chave. Na construção da Tabela 1 acrescentamos, ainda, a delimitação do tema, visto que a mesma norma expõe: A primeira frase [do resumo] deve ser significativa, explicando o tema principal do documento. A seguir, deve-se indicar a informação sobre a categoria do tratamento (memória, estudo de caso, análise de situação, etc.) (ABNT, 2003, p. 1).

TABELA 1: ANÁLISE QUANTO AO CONTEÚDO DO RESUMO Objeto Delimitado

Problematização/ Objetivo

Metodologia

Conclusão

Palavras-chave

Trabalho 1

Sim

Sim

Não

Não

Sim

Trabalho 2

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Trabalho 3

Sim

Sim

Não

Não

Sim

Trabalho 4

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Trabalho 5

Sim

Sim

Não

Sim

Sim

Trabalho 6

Sim

Sim

Não

Não

Sim

Trabalho 7

Sim

Sim

Não

Não

Sim

Trabalho 8

Sim

Sim

Sim

Não

Sim

Trabalho 9

Sim

Sim

Não

Não

Sim

Trabalho 10

Sim

Sim

Não

Não

Sim

Apesar de todas as teses e dissertações apresentarem o tema (objeto delimitado) no corpo do conteúdo, apenas 02 trabalhos (T1 e T4) iniciam o resumo o explicando conforme recomenda a referida norma e, mesmo assim, nenhum deles aduz a categoria do tratamento. Percebemos na análise da Tabela 1 a presença dos itens Problematização/Objetivo e Palavras-chave em todos os trabalhos. Discorreremos, então, sobre os dados que trouxeram diferenciação do padrão de exigência da Norma ABNT/NBR-6028 (Metodologia e Conclusão), com o fito de tentar analisar suas razões.

737

3.2.1 Metodologia (Métodos) Em somente um dos resumos (T8) pode-se encontrar uma exposição metodológica propriamente dita, que vá além de brevíssimas considerações sobre o método, considerações essas presentes apenas nos trabalhos marcados com “Sim” na Tabela 1, item Metodologia. Ao analisar a Tabela 1, é notória a da ausência da descrição de qual metodologia fora empregada. Certo de que a consecução de um trabalho passa naturalmente por ferramentas de investigação científica, os resumos deixam a desejar neste quesito, se atendo, na maior parte do texto do resumo, somente à problematização do tema. Portanto, seria inviável analisar a metodologia dos trabalhos a partir dos seus resumos, dada a baixa adesão à iniciativa de incluir este item. Dessa forma, ao invés de falar sobre metodologia, falaremos sobre método. Analisando os textos dos resumos selecionados, 03 (T1, T2 e T4) dos 10 resumos trouxeram informações sobre os referenciais teóricos adotados ao invés da descrição de qual metodologia fora utilizada. Outros 06 trabalhos (T3, T5, T6, T7, T9 e T10) simplesmente não mencionaram o método. O trabalho T8 fala apenas da sua metodologia (revisão bibliográfica e análise de legislação e jurisprudência, sem mais nenhuma especificação). Os trabalhos T3, T4, T5, T8 e T10, apesar de não fazerem menção alguma no resumo, trazem no corpo do texto a explicitação da metodologia utilizada (pesquisa bibliográfica). Tal fato faz-nos notar que ou os autores não possuem uma noção clara do que seria metodologia ou não sabiam que a metodologia empregada deve ser mencionada no Resumo. Há de se relevar também o fato das mudanças normativas, que pode eximir de aplicação da obrigatoriedade de alguns itens trabalhos mais antigos (mais próximos do parâmetro temporal inicial, o ano de 2001). Atualmente, a utilização de um método científico como um único roteiro de investigação é considerado restritivo pelas inúmeras possibilidades que uma pesquisa pode alcançar. BARTHES traz a noção da seleção de um corpus como um caminho metodológico para o pesquisador. “Outra definição de corpus é uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo analista, com (inevitável) arbitrariedade, e com a qual ele irá trabalhar” (BARTHES, 1967, citado por BAUER & GASKELL, 2004, p. 44). Ou seja, a construção do corpus é uma escolha pessoal do pesquisador e deve ser justificada por este na pesquisa. Em seguida, após recorte arbitrário, é que se deve utilizar os métodos para alcançar os objetivos da pesquisa. De fato, a tabela demonstra um desapego ao método já recorrente nas áreas acadêmicas que envolvem ciências humanas e sociais. MATURANA & VARELA (2001) subvertem um pouco essa visão conservadora do método científico baseado no empirismo objetivo ao redimensionar a relação sujeito – objeto fundamentando seus argumentos, sobretudo, na linguagem. Tendo como ponto de partida que todas as reflexões ocorrem na linguagem, ou seja, que a linguagem parte do homem e que estes são submetidos a esta, é impossível obter um objeto fixo e absoluto, porque a própria linguagem não o é. A ponderação seria o caminho indicado: 738

Mais uma vez temos que caminha sobre o fio da navalha, evitando os extremos representacional (ou objetivista) e solipsista (ou idealista). Nessa trilha mediana encontramos a regularidade do mundo que experimentamos a cada momento, mas sem nenhum ponto de referência independente de nós mesmos que nos garanta a estabilidade absoluta que gostaríamos de atribuir as nossas decisões. (MATURANA & VARELA, 2001, p. 163)

Em pesquisas teóricas, como as analisadas, a escolha dos corpora e as constantes reflexões sobre os aspectos e as nuances que cercam o tema escolhido constitui na forma em que as teses e dissertações são produzidas. Tal produção, desprovida em sua maioria de amostras, números ou dados objetivos torna o conteúdo ainda mais subjetivo. O fio da navalha, nestes casos, é ainda mais fino.

3.2.2 Conclusões A natureza dos trabalhos analisados – todos situados no espectro entre compreensões normativistas, dogmáticas ou hermenêuticas – também os afastam de conclusões simples, diretas e objetivas. As teses e dissertações possuem, dentre as suas principais finalidades, revisitar conceitos e teorias, injetando novos debates, aprofundando reflexões ou fornecendo um panorama geral sobre algum tema específico. Diante disto, suas análises finais não são definitivas ou até mesmo irrefutáveis, mas engrandecem, sobremaneira, o tema em debate. Tais aspectos dificultam a abordagem de uma conclusão concisa suficiente para ser exposta no resumo. Mesmo os trabalhos que expõem algum tipo de conclusão em seus resumos (T2, T4 e T5), o fazem durante a problematização do tema, muitas vezes sem deixar claro ao leitor se trata de problematização ou de conclusão.

3.2.3 Demais regras de apresentação Todos os resumos foram compostos somente por um parágrafo e apresentaram concisão e frases afirmativas conforme orienta a item 3.3 da Norma ABNT/NBR-60288. Ademais, o uso do P

P

9

verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular e o uso das palavras chaves também foram TP

PT

respeitados. As regras pertinentes ao uso de palavras-chaves são: 2.1. Palavra representativa do conteúdo preferentemente, em vocabulário controlado.

do

documento,

escolhida,

[...] 3.3.1. As palavras chaves devem figurar logo abaixo do resumo, antecedidas da expressão palavras-chave:, separadas entre si por ponto e finalizadas por ponto.

8

“3.3 O resumo deve ser comporto de uma sequência de frases concisas, afirmativas e não de enumeração de tópicos. Recomenda-se o uso de parágrafo único”. (ABNT, 2003, p.2)

9

“3.3.2 Deve-se usar o verbo na voz ativa e na terceira pessoa do singular”. (ABNT, 2003, p.2).

739

Ademais, a extensão do resumo foi limitada em até no máximo 500 palavras, conforme a recomendação normativa10. P

P

3.3 Regras de estética As regras de estética foram analisadas tendo como baliza principalmente as Normas da ABNT/NBR 14724, de 2005. Esta norma especifica os princípios gerais de elaboração de trabalhos acadêmicos para serem submetidos a bancas. Mesmo com a atualização das regras em 2011, todos os trabalhos cumprem com as normas elencadas, apesar de terem sido escritos em período anterior (2001-2010), o que demonstra uma grande preocupação e rigor na estética do trabalho apresentados.

3.4 Análise das referências Passamos agora à análise conteudística, feita a partir do material de referência trazido ao final dos trabalhos analisados.

3.4.1 Análise do material bibliográfico A Tabela 2 foi elaborada utilizando as principais referências encontradas nos trabalhos acadêmicos analisados. Os parâmetros foram retirados da Norma ABNT/NBR 6023 – Informação e documentação – Referências - Elaboração. Apesar dos inúmeros tipos de referências elencados na referida norma, a tabela limitou-se apenas a quatro opções. Justifica-se pela grande repetição dos mesmos referenciais e pela inocorrência de tipos de referências diversas das que estão listadas na tabela a seguir. Como boa parte das referências são bibliográficas, fez-se necessário elaborar tabela diversa que possibilitasse uma análise mais profunda (vide Tabela 3). Acrescenta-se, ainda, que a ABNT/NBR 6023 coloca como Documento Jurídico as “legislações, jurisprudências (decisões judiciais) e doutrina (interpretação dos textos legais)” (ABNT, 2002, p.8). No entanto, para sistematizar melhor a análise, consideramos somente como documento jurídico as legislações e jurisprudências, deixando a doutrina para o componente bibliográfico.

10

“3.3.5 Quanto a sua extensão os resumos devem ter: a) de 150 a 500 palavras os de trabalhos acadêmicos (teses,

dissertações e outros) e relatórios técnico-científicos”. (ABNT, 2003, p.2)

740

TABELA 2: ANÁLISE DAS REFERÊNCIAS Bibliográfica

Documento Jurídico

Entrevista

Outros

Total de referências

Trabalho 1

42

0

0

0

42

Trabalho 2

103

24

1

0

128

Trabalho 3

149

4

0

0

153

Trabalho 4

89

3

0

0

92

Trabalho 5

64

0

0

0

64

Trabalho 6

235

28

0

23

286

Trabalho 7

100

0

0

0

100

Trabalho 8

44

2

0

0

46

Trabalho 9

33

1

0

0

34

Trabalho 10

130

17

3

2

152

Totais

989

79

4

25

1097

Faz-se notar, em análise da Tabela 2, que a utilização das fontes para a elaboração do trabalho é reduzida somente a análises de “bibliografia” e “documentos jurídicos”. Mesmo a modalidade “entrevista”, mais usual nas ciências sociais, não encontrou expressividade na tabela. O Gráfico 1 a seguir pode dar um panorama visual melhor. GRÁFICO 1 - ANÁLISE DAS REFERÊNCIAS

Apesar de todos os trabalhos estarem ligados a área de comunicação social, tal aspecto não alterou o uso de fontes já tradicionais de pesquisa. Importante frisar que T4 teve como tema a 741

análise de um programa de televisão local e, ainda assim, não citou nas referências como “imagens em movimento” conforme recomenda a norma da ABNT. O trabalho T4 analisa 05 programas de TV, mas não os cita nem no desenvolvimento do trabalho nem nos referenciais bibliográficos.

3.4.2 Análise das referências quanto à bibliografia. Dada a ampla utilização de referências exclusivamente bibliográficas nos trabalhos analisados, fez-se necessária a construção de mais uma sistemática de análise, desta vez com subparâmetros referentes ao material bibliográfico. Assim, temos a Tabela 3. TABELA 3: ANÁLISE DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Livros

Artigos Científicos

Teses/ Dissertações

Matérias/ Artigos de Opinião Jornais/ Revistas

Trabalho 1

24

13

0

2

3

42

Trabalho 2

52

20

0

28

3

103

Trabalho 3

76

59

4

4

6

149

Trabalho 4

38

37

2

10

2

89

Trabalho 5

46

3

0

15

0

64

Trabalho 6

146

54

8

17

10

235

Trabalho 7

65

35

0

0

0

100

Trabalho 8

23

19

0

1

1

44

Trabalho 9

21

11

1

0

0

33

Trabalho 10

61

48

0

21

0

130

Totais

552

299

15

98

25

989

Outros

Total de referências bibliográficas

Na análise de quais materiais bibliográficos foram utilizados para embasar as pesquisas jurídicas, os artigos científicos ganharam um grande destaque. O tema da comunicação social é pouco trabalhado em livros. Diante disso, os artigos são o caminho natural para buscar mais informações sobre o tema. Outra justificativa possível é que tais artigos são mais atualizados, portanto, acompanham mais as alterações jurídicas concernentes ao tema e seus principais debates. Já o pouco uso de teses e dissertações na pesquisa demonstra a desatenção dos discentes formados no PPGD/UFPE à própria produção acadêmica do programa.

742

GRÁFICO 2: ANÁLISE DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

As citações de matérias, reportagens, artigos de opinião em jornais e revistas também obtiveram destaque, mesmo porque boa parte dos objetos de estudo dos trabalhos foram retirados da própria mídia. A coluna “outros” é composta em sua maioria por resumos de anais de congressos, apresentações de GT’s etc.

3.4.3 Análise do uso de idiomas em referências O domínio de língua estrangeira consiste em pré-requisito para a entrada nos Cursos de Mestrado e Doutorado da UFPE. O uso de qualquer língua alienígena amplia sobremaneira a pesquisa científica. O direito à comunicação social, inclusive, possui muitas centros de pesquisas que publicam em inglês. Para dimensionar a intimidade dos discentes com outros idiomas, relacionamos o total de indicações bibliográficas às suas quantidades nos variados idiomas, nos moldes da Tabela 4. TABELA 4: ANÁLISE DAS REFERÊNCIAS – IDIOMAS Português

Inglês

Francês

Espanhol

Total de referências

Trabalho 1

41

1

0

0

42

Trabalho 2

61

33

8

1

103

Trabalho 3

139

4

0

6

149

Trabalho 4

52

31

0

6

89

Trabalho 5

64

0

0

0

64

Trabalho 6

203

17

6

9

235

Trabalho 7

86

8

2

3

100*

Trabalho 8

24

14

4

2

44

Trabalho 9

26

5

0

2

33

Trabalho 10

121

2

0

7

130

Totais

818

115

20

36

989

*Nota: O trabalho T7 traz 01 (uma) referência em italiano.

743

De acordo com o gráfico a seguir, com exceção dos trabalhos T2, T3, T4 e T9, a utilização de fontes em idioma estrangeiro gira em torno de 10% do total de fontes consultadas. GRÁFICO 3: ANÁLISE DAS REFERÊNCIAS – IDIOMAS

4. Considerações finais: a pesquisa em direito através de uma pesquisa empírica possível. Aproveitamos aqui o trabalho da Disciplina Pesquisa e Direito como mote para a exploração de um problema um pouco mais amplo: a problemática da viabilidade da pesquisa empírica no direito. Como frisamos no início do texto, para além dos problemas estruturais, existem na academia brasileira problemas crônicos no sentido do desenvolvimento e da seriedade mesma da ciência e do direito enquanto ciência. O desinteresse por questões caras ao método científico, como metodologia, consulta a fontes não usuais, pesquisa com dados ou rigor no desenvolvimento das análises, passam incólumes pelos crivos dos cientistas do direito, e mesmo por aqueles com longos anos de estrada. Afinal, para que teses e dissertações sejam aprovadas, doutores tem o dever de avaliar os trabalhos nos seus pormenores, o que, como a pesquisa preliminar do corpo desta monografia atesta, nem sempre acontece. Ao mesmo tempo, algumas iniciativas no campo da pesquisa empírica não exigem esforços hercúleos nem no campo estrutural nem no campo epistemológico. O modelo possível que tentamos construir aqui consiste num modelo simples, sem necessidades de grandes investimentos, nem de conhecimentos alienígenas ao mínimo comum das academias ao redor do mundo. No entanto, apresenta-se bastante revelador, e sim, se enquadra no que podemos chamar de científico. Não pretendemos de forma alguma defender que a pesquisa empírica deve tomar o centro das atenções dentro dos trabalhos acadêmicos. As outras modalidades de pesquisa, normativista, 744

dogmática e hermenêutica, tem e continuarão tendo sua importância. O que chama a atenção, no entanto, é a posição gritantemente minoritária da pesquisa empírica e da intimidade mesmo com uma pesquisa científica, quando sua posição deveria gozar de valorização no mínimo digna. O próprio VERONESE admite que uma alternativa para a valorização da pesquisa empírica não seria uma inversão do monismo hoje favorável aos trabalhos preponderantemente dogmáticos, transformando a pesquisa empírica em modalidade dominante. Pelo contrário, "o ponto central para o avanço [...] está adstrito à intersecção da pesquisa empírica com a descrição dos sistemas jurídicos vigentes, com a perspectiva de renovar o campo da produção doutrinária" (VERONESE, 2007, p. 6.019-6.020). Os problemas da pesquisa são enfrentados também por outros ramos do conhecimento. Mesmos as chamadas ciências duras encontram seus problemas epistemológicos, pra ficarmos no âmbito principal de discussão desta monografia11. No entanto, o imobilismo e o solipsismo TP

PT

científico não estão em melhores condições de acrescentar ao debate, ou mesmo de prolongar sua vida útil. Talvez um maior diálogo entre o “pesquisador advogado” e o “pesquisador cientista” possa dar um pouco de equilíbrio ao conhecimento produzido pelo direito e pelas disciplinas às quais este se conecta.

Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR10520: Informação e documentação – Citações em documentos – Apresentação. Rio de Janeiro, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR14724: Informação e documentação – Trabalhos Acadêmicos – Apresentação. Rio de Janeiro, 2005. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR6028: Informação e documentação – Resumo – Apresentação. Rio de Janeiro, 2003. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR6023: Informação e documentação – Referência - Elaboração. Rio de Janeiro, 2002. ADEODATO, João Maurício. (1999) Bases para uma Metodologia da Pesquisa em Direito. In: Revista CEJ, Brasília, Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, nº 7, abril de 1999. Disponível em . Acesso em 04 jul 2011. BAUER, Martin e GASKELL, George. (2004) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes. MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. As bases biológicas da compreensão Humana. Tr. Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Atenas, 2001.

11

Ver, entre outros, OMNÉS, Roland. (1996) Filosofia da ciência contemporânea. São Paulo: UNESP. BATESON, Gregory. (2006) Una unidad sagrada. Barcelona: Gedisa.

745

OLIVEIRA, Luciano. (2002) Que (e para quê) sociologia? Reflexões a respeito de algumas idéias de Eliane Junqueira sobre o ensino da Sociologia do Direito (ou seria sociologia jurídica?) no Brasil. In: JUNQUEIRA, Eliane Botelho e OLIVEIRA, Luciano (Orgs.). Ou isto ou aquilo – A sociologia jurídica nas faculdades de direito. Rio de Janeiro: IDES/Letra Capital. OLIVEIRA, Luciano. (2004) Não fale do Código de Hamurábi! – a pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em direito. In: _______. Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro:

Letra

Legal.

Disponível

em

. Acesso em 04 jul 2011. VERONESE, Alexandre. (2007) O problema da pesquisa empírica e sua baixa integração na área de direito: uma perspectiva brasileira na avaliação dos cursos de pós-graduação do Rio de Janeiro. In: Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI, Belo Horizonte. Florianópolis: Fundação Boiteux, p. 6011-6030.

746

Criminalizar ou (não criminalizar) a homofobia? Análise dos discursos parlamentares a respeito do PLC 122/2006 Joseval de Jesus Santos1 TP

PT

Resumo

Abstract

Ao longo dos anos, a comunidade GLBTT vem engendrando no Brasil um movimento social que tem por objetivo estender todos os direitos individuais e coletivos aos homossexuais. O movimento, que na década de 1980 era pautado apenas na luta contra o vírus do HIV, passou a lutar contra as diversas formas de discriminação sofridas pela comunidade Gay, incluindo na sua pauta desde a aprovação de Leis até a inserção dos Gays no mercado de trabalho. Nessa perspectiva, esta é uma pesquisa em andamento que tem como objetivo analisar o projeto de Lei 122/06, cuja finalidade é criminalizar a homofobia no Brasil. Especificamente, busca-se com este estudo, analisar as diferentes maneiras as quais se posicionam aqueles que pretendem dar uma resposta à violência sofrida pela comunidade GLBTT, em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero no Brasil, tomando como objeto de estudo os discursos legislativos. Para tanto, será feita uma busca na internet dos discursos proferidos pelos parlamentares federais a respeito do PL 122/06, procedendo-se, em seguida, uma análise dessas falas. Assim, não é intenção da pesquisa se posicionar contra ou a favor da criminalização da homofobia, mas sim promover uma reflexão maior a respeito dessa questão, como forma de maturar as decisões a serem tomadas adiante.

Discrimination against homosexuals in Brazil has persisted since the colonial period, based on the Inquisition, whose epicenter is the Catholic Church. Over the years this type of discrimination continued to prevail in Brazilian society, being, therefore a justification for the groups that hold power have being denied a series of basic rights to the community GLBTT. On this track, over the years, the GLBTT community has engendering a social movement that aims to extend all individual and collective rights to the gay community. The movement, which in the 1980’s was guided only to fight the HIV virus, has to fight against various forms of discrimination faced by the gay community, including on its agenda since the adoption of laws to insertion in the labor market. From this perspective, this is an ongoing study that aims to analyze the bill 122/06, whose purpose is to criminalize homophobia in Brazil. Specifically, the goal of this study was to analyze the different ways in which those who wish to position themselves to respond to the violence suffered by GLBTT community, because of their sexual orientation and gender identity in Brazil, taking as an object of study, the legislative speeches. To do get its goal, it first looks at the site of the Chamber of Deputies, the minutes with the speeches of its members in legislative sessions in which the Bill 122/06 was discussed, proceeding, then an analysis of these lines. This way, the research does not intend to stand for or against the criminalization of homophobia, but rather to promote further reflection on this issue as a way to mature decisions to be taken forward.

Palavras-Chave: Direito; Homossexualidade; Homofobia; Movimentos Sociais.

Keywords: Law; Homosexuality; Homophobia; Social Movement.

1

Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Graduado em Geografia pela UEFS Email: [email protected].

747

1. Introdução A discriminação em relação aos homossexuais no Brasil persiste desde o período colonial, tendo como base a santa inquisição, cujo epicentro é a Igreja Católica. No decorrer dos anos esse tipo de discriminação continuou a prevalecer na sociedade brasileira, sendo, portanto, uma justificativa para que os grupos do poder negassem uma série de direitos básicos à comunidade GLBTT. Milhares de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais são agredidos no Brasil em função da sua identidade de gênero ou da sua orientação sexual. Nesse ínterim, ao longo dos anos, a comunidade GLBTT vem engendrando, no Brasil, um movimento social que tem por objetivo estender todos os direitos individuais e coletivos aos homossexuais. De início, esse movimento se caracterizou pela luta contra a AIDS, especialmente na década de 1980, quando essa doença, que era denominada como “peste gay”, atingia um número significativo de homossexuais. Assim, o movimento direcionou-se no sentido de diminuir a incidência do vírus da AIDS entre os homossexuais. Nas décadas de 1990 e 2000, a luta pela garantia de direitos dos Gays ganhou novos contornos. Influenciado pela promulgação da Constituição Federal de 1988, o combate a AIDS deixou de ser o foco principal do movimento Homossexual, e novos direitos foram incorporados à agenda política do movimento. Assim, o movimento passou lutar contra as diversas formas de discriminação sofrida pela comunidade Gay. Nesse contexto, vários projetos de leis que visam garantir a isonomia entre homossexuais e heterossexuais passaram a tramitar nas esferas federal, estadual e municipal. Dentre eles, é possível destacar o projeto de Lei nº 1.151/95 que trata da união entre pessoas do mesmo sexo e que vem se arrastando por anos no poder legislativo, e o projeto de Lei 5003/2001, que mais tarde veio se tornar o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006, que propõe a criminalização da homofobia. Ocorre que durante a tramitação dos diversos projetos de leis, e mais especificamente o T

PLC 122/2006, surgem discursos contraditórios que vão de encontro à trajetória política do deputado(a) ou senador(a) que o profere, pois na maioria das vezes tais discursos apontam em direção ao acirramento das medidas penais, como no caso da redução da maioridade penal e do aumento do rol das condutas que devem ser consideradas como criminosas e, no entanto, quando o tema é a

criminalização da homofobia, as falas se mostram totalmente avessas ao

fortalecimento do sistema penal. Assim, foi partindo dessas reflexões que se levantaram as questões que nortearam a pesquisa. Em primeiro lugar, questionam-se quais são os discursos daqueles que se posicionam contra ou a favor da criminalização das condutas discriminatórias contra Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais no Brasil. E identificando esses discursos, há de se entender, ainda, quais as problemáticas que estão implícitas em cada um dessas falas. 748

Sendo assim, o objetivo dessa pesquisa é analisar as diferentes maneiras as quais se posicionam aqueles que pretendem dar uma resposta à violência sofrida pela comunidade GLBTT, em razão da sua orientação sexual e da sua identidade de gênero, utilizando-se como material empírico os discursos parlamentares a respeito do PLC 122/2006. Logo, não é intenção da pesquisa se posicionar contra ou a favor da criminalização da homofobia, mas promover uma reflexão maior a respeito dessa questão, como forma de maturar as decisões a serem tomadas adiante. Uma discussão com essas características é importante, pois apesar de toda visibilidade que o movimento GLBTT tem ganhado na sociedade atual, ainda é muito incipiente, dentro da ciência do Direito, a realização de pesquisas que tenham como objeto de estudo a comunidade GLBTT, o que denota a necessidade de concretização de mais investigações que possam contribuir teoricamente para o entendimento dessa questão. Ainda, do ponto de vista jurídico, é importante travar essa discussão já que a norma jurídica é o objeto de estudo do Direito, e sendo assim, busca-se a partir dessa pesquisa, entender o processo legislativo ainda na sua gênese, ou seja, no momento de sua discussão. Vale ainda ressaltar que, a comunidade GLBTT faz parte de um movimento social que luta pela garantia de direitos humanos básicos, ou seja, esse trabalho pode dar uma contribuição valiosa ao mesmo, pois poderá influenciar nos rumos que a luta desse movimento social pode tomar, bem como poderá ajudar a sociedade a compreendê-lo melhor. É importante salientar que no decorrer deste trabalho de pesquisa, optou-se pelo uso de diversas denominações para os indivíduos pertencentes ao universo GLBTT, não só pela grande variedade de “identidades” contidas neste grupo social, como também pela diversidade léxica encontrada no estudo acadêmico de tal objeto, contemplando a sua diversidade. Enfim, a pesquisa foi dividida em três fases distintas. Inicialmente realizou-se uma revisão de literatura com vistas a catalogar as produções literárias relacionadas ao tema, bem como, entender o processo de criminalização das condutas pela racionalidade penal moderna, extraindo suas principais características. Em seguida, foi feita uma busca na internet dos discursos professados pelos parlamentares nas sessões plenárias em que foi discutida a criminalização da homofobia no Brasil. Por fim, fez-se uma análise desses discursos, fazendo uma relação destes com as características da racionalidade penal moderna.

2. A racionalidade penal moderna e criminalização das condutas Levando-se em conta que esta pesquisa tem como objetivo discutir a criminalização de uma conduta ainda na sua origem, faz-se necessário entender teoricamente como se dá esse processo. Nesse sentido, este tópico tem o intuito de fazer uma discussão teórica do conceito de racionalidade penal moderna, bem como, entender teoricamente como se dá o processo de 749

criminalização das condutas pelo sistema penal, conceitos chave em torno dos quais giram esse estudo. A racionalidade penal moderna é um sistema de pensamento que começou a se formar no século XVIII e que perdura até os dias atuais. De acordo com Pires, esse sistema de idéias está ligado a um conjunto de práticas jurídicas institucionais que se designa como justiça penal, constituído por uma rede de sentidos com unidade própria no plano do saber e que liga estreitamente fatos e valores, o que lhe confere um aspecto normativo2. TP

PT

Entende-se, desse modo, que a partir de meados do século XVIII as formas de funcionamento do sistema penal passaram a orientar a maneira como as coisas passaram ser vistas. Assim, não só as instituições estatais passaram a atuar conforme a lógica da racionalidade penal moderna, mas também as demais instituições da sociedade, a exemplo dos movimentos sociais, a igreja, a escola, a mídia, entre outras. Todas essas instituições passaram a guiar suas ações conforme a lógica da racionalidade penal moderna. Assim sendo, a racionalidade penal moderna possui um conjunto de características que passaram a ser incorporadas pela sociedade, norteando, assim, a forma como deve ser encarado o crime. Conforme Pires, uma dessas características é a relação necessária entre a pena aflitiva e o valor do bem agredido, ou seja, quanto mais valioso é o bem violado, mais severa deve ser a pena aflitiva aplicada. Para toda sociedade, o crime deve ser tratado com uma pena, como se esta fosse capaz de recompor um dano causado3. Com a lógica de pensamento da racionalidade penal TP

PT

moderna, a norma jurídica penal passa a ser vista como um todo inseparável, onde o crime passa a ser definido pela pena, que por sua vez, passa a ser vista como o principal meio de defesa. É importante ressaltar, também, que, de acordo com a lógica da racionalidade penal moderna, a punição passou a ser vista como uma necessidade, o que reflete no pensamento de que o direito de punir que era uma faculdade, passasse a ser visto como uma obrigação. De acordo com Pires, isso cria um paradoxo entre Direito Penal e Direitos Humanos. “A pena aflitiva é freqüentemente valorizada como uma maneira de defender e afirmar Direitos Humanos4.” TP

PT

Ora, a racionalidade penal moderna se manifesta a partir do sistema penal que nada mais é que o conjunto de instituições responsáveis pela manutenção de uma suposta ordem. Andrade destaca que o sistema penal é compreendido pela polícia, o poder legislativo, o ministério público, o poder judiciário e o sistema prisional5. Todas essas instituições obedecem a uma lógica de TP

PT

2

PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. In. Novos Estudos, CEBRAP, nº 68, março de 2004

3

IDEM.

4

IDEM.

5

ANDRADE, Vera Regina Pereira. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In. Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2003.

750

pensamento própria da racionalidade penal moderna, o que por sua vez reflete no processo de criminalização das condutas. Assim, o sistema de controle penal age obedecendo a uma série de princípios característicos da lógica de pensamento da racionalidade penal moderna. Conforme Andrade, essa ideologia construída pelo discurso oficial desde princípios do século XVIII, pode ser anunciada analiticamente através de princípios como, oposição entre bem e mal, culpabilidade, legitimidade do Estado, legalidade, igualdade, interesse social e delito natural e prevenção6. TP

PT

De acordo com Andrade no processo de criminalização o sistema penal age em três níveis diferentes. O primeiro nível se refere à definição legal de crime pelo poder legislativo. É nesse nível que ocorre a criminalização primária, em que se define através da lei o que vai ser considerado como crime e a este se atribuindo uma pena. O segundo nível, o da criminalização secundária, está relacionado à seleção das pessoas que serão etiquetadas pela polícia, justiça e pelo Ministério público, como criminosas. O terceiro nível, o da criminalização terciária, se refere às pessoas que serão estigmatizadas, com a prisão, como criminosos7. TP

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Nessa perspectiva, no processo de criminalização, ou seja, no momento de escolher a conduta que será tida como crime e de eleger os indivíduos que serão criminalizados e estigmatizados, o sistema penal declara uma série de funções. Desse modo, O sistema penal, constituído pelos aparelhos policial, ministerial, judicial e prisional aparece como um sistema que protege bens jurídicos gerais e combate a criminalidade (o “mal”) em defesa da sociedade (o “bem”) através da prevenção geral (intimidação dos infratores potenciais) e especial (ressocialização dos condenados) e, portanto, como um sistema operacionalizado nos limites da legalidade, da igualdade jurídica e dos demais princípios garantidores e, portanto, como uma promessa de segurança jurídica para os criminalizados8. TP

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No entanto, o conjunto de promessas anunciadas pelo sistema penal na realidade prática não são executados, pois, de fato, possuem apenas uma função ideológica. Nesse sentido, é importante destacar que as funções declaradas apresentam uma eficácia meramente simbólica, pois não podem ser cumpridas pelo sistema penal. Sendo assim, [...] Ele cumpre, latentemente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos indivíduos e da sociedade e contribuem para reproduzir as relações desiguais de propriedade e poder.9 TP

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Ora, o sistema penal exerce, na realidade, funções opostas às que ele declara pelo seu discurso oficial. Ou seja, em vez de recair de forma igualitária sobre todos os indivíduos, como 6

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propõe, o sistema penal age seletivamente, utilizando-se de critérios como gênero, raça, classe social. Isso ocorre tanto no sentido de criminalizar uma conduta, bem como, no momento de deixar de considerar uma conduta como criminosa. Outro ponto que merece destaque é que a pena, por exemplo, em vez de servir como um elemento de ressocialização, torna-se um fator criminógeno que acaba por tornar o indivíduo reincidente. Assim, "a prisão não pode “reduzir” precisamente porque sua função real é “fabricar” a criminalidade e condicionar a reincidência “10. TP

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Enfim, essa discussão permitiu entender que a racionalidade penal moderna é um sistema de idéias incorporadas pelo sistema penal que exerce influência sobre a percepção da sociedade a respeito do crime e seus desdobramentos. O sistema penal, por sua, vez é formado pelo conjunto de instituições estatais responsáveis pela repressão ao crime, que atua no processo de criminalização, escolhendo condutas e indivíduos sobre quem deve recair sua força. Ele traz consigo uma série de promessas que jamais poderá cumprir, pois na verdade o que ele busca é a perpetuação das formas de dominação.

3. Homossexualidade, discriminação e luta por direitos O preconceito em relação aos homossexuais no Brasil tem origem no período colonial, apoiando-se no discurso religioso da Igreja Católica. No decorrer dos anos esse tipo de discriminação cristalizou-se no comportamento da sociedade brasileira, sendo, portanto, uma justificativa para que os grupos do poder negassem uma série de direitos básicos à comunidade GLBTT. Conforme o Grupo Gay da Bahia (GGB), foram documentados 260 assassinatos de gays, T

travestis e lésbicas no Brasil no ano de 2010, 62 a mais que em 2009 (198 mortes), um aumento 113% nos últimos cinco anos (122 em 2007). Dentre os mortos, 140 gays (54%), 110 travestis (42%) e 10 lésbicas (4%)11. TP

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T

Nesse contexto, nas últimas décadas, a comunidade GLBTT vem engendrando um movimento social que tem por objetivo estender todos os direitos individuais e coletivos aos homossexuais. De início esse movimento se caracterizou pela luta contra a AIDS, onde na década de 1980, essa doença que era denominada como “peste gay”, atingia um número significativo de homossexuais. Assim, o movimento direcionou-se sentido de diminuir a incidência do vírus da AIDS entre os homossexuais. A partir da promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988, o movimento GLBTT foi adquirindo novos arranjos. Conforme Carrara (2010), a Carta de 1988 deve ser considerada, marco fundamental a partir do qual a sexualidade e a reprodução se instituem como campo legítimo de exercício de direitos no Brasil. Nesse sentido, nas décadas de 1990 e 2000, o combate

10

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GRUPO GAY DA BAHIA. Epidemia do ódio: 260 homossexuais foram assassinados no Brasil em 2010. Disponível em: http://www.ggb.org.br. Acesso em: 10 jul 2011. TU

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a AIDS deixou de ser o foco principal do movimento Homossexual, e novos direitos foram incorporados à agenda política do movimento. Atualmente, segundo a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), as linhas prioritárias da agenda política do movimento BGLTT no Brasil incluem: o direito ao reconhecimento legal das uniões homoafetivas, o monitoramento da implementação das decisões da I Conferência Nacional LGBTT; o monitoramento do Programa Brasil Sem Homofobia; a criminalização da homofobia, o reconhecimento de Orientação Sexual e Identidade de Gênero como Direitos Humanos no âmbito do Mercosul; Advocacy no Legislativo, no Executivo e no Judiciário; a capacitação de lideranças lésbicas em direitos humanos e advocacy; a promoção de oportunidades de trabalho e previdência para travestis; a capacitação em projetos culturais GLBTT, entre outras12. TP

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Conforme Carrara, tal agenda tem sido promovida através de uma rede complexa e múltipla de relações, em que alguns atores sociais (ONGs, agências governamentais, partidos políticos, parlamentares, juízes, juristas, centros de pesquisa universitários, atores do mercado, agências de fomento, organizações religiosas e profissionais etc.) atuam conscientemente no sentido de apoiá-la, enquanto outros lutam para negá-la ou desqualificá-la13. É possível ainda TP

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destacar as paradas Gays realizadas em todo Brasil que chamam a atenção para a problemática vivenciada pela comunidade homossexual. Ao longo desses anos, muitos direitos foram conquistados pelo movimento GLBTT no Brasil. No âmbito do Poder Executivo é possível citar o programa Nacional de Direitos Humanos que propõe um conjunto de medidas voltadas à garantia dos direitos individuais e da população GLBTT, bem como o Programa Brasil Sem Homofobia, que visa combater a violência e a discriminação contra os membros da comunidade GLBTT, bem como, promover a cidadania homossexual. Na esfera do judiciário, a comunidade GLBTT foi contemplada, nos últimos dias, com uma decisão do STF que atribui à união homoafetiva o status de família, o que repercute diretamente sobre os direitos dos Gays que convivem afetivamente numa condição marital. No entanto, apesar dos avanços no âmbito Executivo e do Judiciário, no terreno do Legislativo as conquistas ainda são muito incipientes. O caso mais emblemático é o projeto de Lei o projeto de Lei nº 1.151/95 que trata da união entre pessoas do mesmo sexo e que vem se arrastando desde 1995 no Congresso Nacional. Sendo assim, O impasse do Congresso no que diz respeito à Lei de parceria civil, em discussão desde 1995, fez com que, nos últimos anos, os esforços ativistas se voltassem estrategicamente para a criminalização da homofobia, ou seja, para a tentativa de 12

A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT. Disponível em: http://www.abglt.org.br/port/index.php. Acesso em: 10 jul 2011. TU

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CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Disponível em: http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art08_carrara.pdf. Acesso em: 10 jul 2011. TU

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alteração do Código Penal no sentido de também transformar em delito atos de discriminação baseados na “orientação sexual e identidade de gênero14. TP

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Assim é que, impulsionado pelo movimento GLBTT, começou a tramitar no Congresso Nacional, no ano de 2001, o do projeto de Lei 5003/2001, de autoria da Deputada Iara Bernardi, que mais tarde veio se tornar o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006, cujo objetivo é criminalizar a homofobia. O referido projeto de lei indica uma mudança significativa nos rumos do movimento GLBTT na luta pela afirmação de direitos.

4. Entendendo o processo legislativo e o PLC 122/06 O processo legislativo está disciplinado na Constituição Federal e constitui o conjunto de procedimentos necessários para a elaboração de uma espécie normativa.

De acordo com o art.

59 da CF/88 o processo legislativo envolverá a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. A primeira fase do processo legislativo é a iniciativa. Nesse momento, alguns atores elencados no artigo 61 da Constituição Federal poderão dar início à criação de uma espécie normativa. De acordo com o referido dispositivo, são legitimados para propor a criação de uma lei qualquer Deputado Federal ou Senador da República, a Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado ou do Congresso Nacional, o Presidente da República, o Supremo Tribunal Federal, os Tribunais Superiores, o Procurador Geral da República e os cidadãos. Na segunda fase do processo legislativo, tem-se a conjugação de vontades, tanto do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo. Na Câmara dos Deputados ou no Senado Federal, o projeto de lei é apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça, e depois é enviado para o plenário da casa para discussão e votação. Se for aprovado na casa iniciadora, ele seguirá para a casa revisora, passando também pelas comissões. Depois de aprovado nas duas casas legislativas, o projeto de lei é encaminhado para apreciação do chefe do Poder Executivo. Assim, em contato com o projeto de lei, o Presidente da República, no caso de concordância, sancionará tal documento e providenciará a sua promulgação e publicação. No caso de discordância, o Presidente da República poderá vetar o projeto de lei total ou parcialmente. O veto poderá ser rejeitado através de uma sessão conjunta da Câmara e do Senado dentro de 30 dias. O projeto de Lei 5003/2001, que mais tarde veio a se tornar o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006, que visa a criminalizar a homofobia, é uma proposta realizada pela deputada Iara Bernardi do (PT-SP). Inicialmente, não tinha a finalidade de alterar a Lei Federal nº 7.716 de 5 de 14

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janeiro de 1989, que prevê penalidades para crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Durante a tramitação do PL 5003/2001, outros projetos foram incorporados ao mesmo por terem conteúdo análogo. No ano de 2005, o então Deputado Luciano Zica (PT - SP), relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, fez algumas alterações ao projeto original do PL 5003. A versão que saiu da CCJ da Câmara e foi acatada em Plenário previa várias situações que se caracterizariam como homofóbicas, a exemplo da dispensa de empregados por motivo de sexo, orientação sexual e identidade de gênero, a proibição de ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou estabelecimento público ou privado, aberto ao público, a recusa ou prejuízo a alguém, em sistema de seleção educacional, recrutamento ou promoção funcional ou profissional, entre outras. Após aprovação na Câmara dos deputados, o PL 5003/2001 foi enviado para o Senado Federal e recebeu uma nova numeração, passando a ser designado "Projeto de Lei da Câmara 122 de 2006. No Senado, o então PLC 122/2006 já tramitou nas Comissões de Assuntos Sociais (CAS) e está na Comissão de Direitos Humanos (CDH). Antes de ir à Plenário, o projeto será encaminhado para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC). A relatora do projeto no senado, a senadora Marta Suplicy, apresentou uma prévia do seu parecer em maio de 2011, que não chegou a ser lido e nem votado em virtude das discussões que giram em torno dele. O Senador Magno Malta (PR - ES) apresentou um requerimento, que foi aprovado na CDH do Senado, solicitando a realização de audiências públicas para debater o PLC 122 de 2006. A data da audiência não foi marcada e há a possibilidade de que, caso haja um acordo sobre o projeto, não chegue a ser realizada. Os Senadores Marcelo Crivella (PRB - RJ), Demóstenes Torres (DEM - GO) e Marta Suplicy se reuniram para deliberar um novo texto ao PLC 122/2006 que agrade tanto setores do movimento LGBTT, quanto os religiosos. A discussão gira em torno de uma proposta feita pelo senador Marcelo Crivella. O novo texto deverá ser discutido pelas partes interessadas e ainda será apresentado na Comissão de Direitos Humanos do Senado para ser votada. Em virtude de todas as alterações feitas pelos parlamentares da bancada evangélica, o PLC 122/2006 foi perdendo sua essência, o que tem gerado grande insatisfação por parte da comunidade GLBTT.

5. Criminalização da homofobia: uma análise dos diferentes discursos Lopes conceitua a Homofobia como sendo uma raiva extrema ou reação temerosa contra homossexuais, que supostamente se baseia na crença de que a homossexualidade corromperia uma ordem moral e sexual naturalizada, promovendo a decadência legal, política e ética de uma

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sociedade15. Tal reação é exteriorizada através de uma variedade de ações que vão desde as TP

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formas de violência simbólica, psicológica, estrutural e institucional até mesmo a violência física. Assim, é partindo desse entendimento que esse item se propõe analisar e discutir a variedade de discursos parlamentares no que refere à criminalização ou não da homofobia. Em virtude da pluralidade de posicionamentos no que toca à questão em debate, optou-se por selecionar trechos dos discursos proferidos por dois parlamentares que expressam com maior veemência a oposição de idéias dos grupos interessados em dar uma resposta ao tema. Nesse sentido, em primeiro lugar é relevante ressaltar um trecho do Parecer da Comissão de Assuntos Sociais do Senado sobre o PLC 122/06: Há muitas formas e meios de promover a morte social, sendo a discriminação a principal entre elas. Daí o mérito dos instrumentos para coibi-la e sua relevância num sistema jurídico referenciado nos Direitos Humanos e nas liberdades públicas. Esta Relatoria entende que o PLC nº 122, de 2006, tem pleno mérito na adequada definição de sujeitos e condutas criminosas, em face da inegável necessidade de recursos penais para coibir a discriminação homofóbica no território nacional e em função de garantir a universalidade do direito à igualdade e à diversidade entre os cidadãos e cidadãs. 16 TP

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Observam-se nesse discurso alguns elementos presentes na lógica de pensamento da racionalidade penal moderna. De acordo com o parecer, penalização das condutas homofóbicas seria capaz de diminuir a discriminação e o preconceito, ou seja, há um apego à idéia da pena como um fator educativo, capaz de construir e modificar posturas sociais. Mas, no entanto, como foi discutido em outro momento do trabalho, a pena em vez de funcionar como um elemento ressocializador e diminuidor do número do cometimento de delitos, acaba tendo um efeito contrário, pois torna o indivíduo ainda pior do ele que era, quando entrou na prisão. Sendo assim, esse discurso pauta-se na idéia de prevenção geral e especial já descrito por Andrade17. Ou seja, ao invocar a necessidade de recursos penais para coibir a discriminação TP

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homofóbica, o parecer deixa implícito que pena acarretará a intimidação dos infratores potenciais, bem como, proporcionará a ressocialização dos condenados. Isso, na verdade, é uma falácia, pois como visto, essa é uma promessa que o sistema penal não consegue de fato cumprir, e que faz parte apenas de um conjunto de funções simbólicas declaradas pelo Direito Penal, que não possuem efetividade prática.

15 LOPES, S. Pontes Crimes de ódio e repressão penal da homofobia no Brasil: riscos para uma integração social agonística a partir da tensão entre conflitualidade, violência punitiva e democracia. Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. Brasília, 2008. 16

Parecer da Comissão de Assuntos Sociais do senado sobre o Projeto de Lei da Câmara n.º 122, de 2006, sob relatoria da senadora Fátima Cleide. Disponível em: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/67401.pdf. Acesso em 10 jul 2011. TU

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ANDRADE, Vera Regina Pereira. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In. Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2003.

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O segundo discurso escolhido foi pronunciado pelo Deputado Federal Robson Rodovalho, líder da Igreja Evangélica Sara Nossa Terra, o qual afirma que o PL 122/2006 tira o direito de expressão de quem é contrário à opção homossexual e cria uma categoria de pessoas acima das demais. E segue: 18

Achamos que o problema da discriminação não atinge só os homossexuais, mas também os negros, as mulheres, até mesmo nós, evangélicos. O projeto de lei dá poderes ditatoriais a uma minoria. Se um funcionário for dispensado de uma empresa, por exemplo, pode alegar homofobia e o dono da empresa vai ser preso. TP

PT

Nesse discurso, é possível destacar alguns elementos que coadunam com o que é proposto pela racionalidade penal moderna. Cita-se como exemplo, o princípio da igualdade, que afirma que todos devem ser tratados de forma igualitária, sem distinção de qualquer espécie. No entanto, as mulheres foram contempladas com a Lei 11.340/06 intitulada Lei Maria da Penha que se propõe a coibir a violência contra a mulher, e os negros também foram contemplados com alguns dispositivos constitucionais (Art. 5º, XLII) e legais (Art. 140, § 3º do Código Penal) que visa eliminar a prática do racismo no Brasil, mas os Gays ainda não dispõem de nenhuma lei que vise coibir atos atentatórios à sua integridade física e moral. Nesse sentido, o discurso do referido Deputado Federal, orientado por sua crença religiosa, em vez de oferecer um tratamento igualitário, como promete o discurso penal oficial, acaba por legitimar o tratamento desigual entre diferentes grupos sociais. Nessa lógica de raciocínio, se os negros e as mulheres, por serem grupos sociais vulneráveis, merecem uma proteção legal e até constitucional por parte do Estado, e nem por isso são tidos como categorias de pessoas acima das demais, justo seria que a mesma prerrogativa fosse estendida à população GLBTT, por se tratar de um grupo vulnerável, que diariamente tem seus direitos violados por crimes cuja motivação é a homofobia.

6. Conclusão Apesar desse estudo encontrar-se ainda numa fase inicial, visto que o objetivo é transformá-lo numa monografia de conclusão do curso de Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana, com a sua realização foi possível construir conhecimentos importantes a respeito do movimento GLBTT e da criminalização da homofobia no Brasil por meio do PLC 122/06.

18 Notícia extraída da “Folha Online”, sob o título “Evangélicos invadem Congresso contra projeto que criminaliza homofobia” Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u416125.shtml Acesso em 10 jul 2011.

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O estudo permitiu compreender que o sistema penal, obedecendo a lógica de pensar da racionalidade penal moderna, não atinge os fins a que se propõe, servindo de certa forma para perpetuar as desigualdades entre os diferentes grupos sociais, em especial a população GLBTT. Espera-se, no entanto, que essa constatação não sirva para justificar a política da não proteção, como tem feito alguns parlamentares que se utilizam das teorias da Criminologia Crítica para negar proteção às categorias de indivíduos que estão socialmente mais vulneráveis, a exemplo da comunidade GLBTT. Assim, a expectativa é que essas reflexões sirvam para o aperfeiçoamento do sistema penal, no sentido de oferecer realmente proteção ao indivíduo contra as diversas formas de violência. No que se refere ao processo legislativo, observou-se que apesar da Constituição Federal afirmar que o Brasil é um Estado laico, ainda se faz bastante presente no momento de discussão de uma Lei o discurso religioso carregado de preconceitos. O PLC 122/2006 é um exemplo claro em que o discurso religioso se sobrepõe à defesa de Direitos humanos básicos como a vida, a liberdade, a integridade física e a disposição do próprio corpo. Foi possível também constatar que, apesar da discriminação e das dificuldades encontradas, o movimento GLBTT tem se mostrado peça uma fundamental na conquista de direitos individuais e coletivos para a população inserida nesta diversa categoria social. Percebeuse, também, que se trata um movimento social que a cada dia vem ganhando mais força no cenário nacional, em virtude da legitimidade das causas que procura defender. Enfim, o estudo permitiu constatar que a questão da criminalização da homofobia no Brasil é mais complexa do que aparenta ser. Compreendeu-se que esse tema envolve um jogo de forças políticas que se expressam através de discursos contra ou a favor de tornar crime as condutas homofóbicas, cujo entendimento mais acurado demanda a realização de estudos mais aprofundados.

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Mutilação Genital Feminina, Direitos Humanos e Relativismo Cultural: limites e possibilidades Kaio Cesar Damasceno de Albuquerque1 TP

PT

2

Bruna Gabriela de Oliveira Lima TP

PT

Resumo

Abstract

A mutilação genital feminina é uma prática arraigada, há séculos, na sociedade e consiste na extirpação parcial ou total da genitália. Tal prática representa uma ofensa aos Direitos Humanos por afrontar o princípio da dignidade da pessoa humana. Diante desse cenário, indaga-se: sendo a cultura a lente com as quais vemos o mundo, não seriam os Direitos Humanos uma forma de desrespeito às culturas tradicionais? O presente trabalho tem por escopo analisar, de modo plural e crítico, o fenômeno da mutilação genital feminina sob o enfoque dos direitos humanos – segundo a concepção cunhada por Boaventura de Sousa Santos, ou seja, uma leitura multicultural deste fenômeno. Para tal, a partir de uma investigação exploratória, que utilizará o método dialético, buscar-se-á contribuir para a discussão da universalização dos direitos humanos apontando seus limites e possibilidades. Como técnica de interpretação de realidade, utilizou-se o estudo de caso, tendo em vista que permite explorar aspectos mais subjetivos da problemática, assim, como material de análise, utilizou-se o caso da senegalesa Khady Koita e, em se tratando da análise de dados secundários, esta será empreendida como toda e qualquer análise posterior de um conjunto de dados primários que apresente novas interpretações e/ou conclusões diferentes da apresentada inicialmente. A presente investigação coloca em discussão a linha tênue que delimita o âmbito de intervenção dos direitos humanos numa sociedade democrática de direito. Destarte, observa-se que na colisão de direitos não se pode relativizar tal prática por considerar uma afronta às culturas tradicionais – uma vez que o que está em discussão é um direito indisponível. Assim, cabe à imposição da noção ocidental dos Direitos Humanos às nações praticantes da mutilação genital feminina, como ocorre atualmente, desde que haja empatia entre as diferentes sociedades e que tal este processo se dê sobre a égide da alteridade.

The female genital mutilation is a practice rooted for centuries in society and is the partial or total removal of the genitalia. This practice represents an affront to human rights through its defiance of the principle of human dignity. Given this scenario, we look into: the culture is the lens with which we view the world, Human Rights would not be a form of disrespect for traditional cultures? The scope of this paper is to analyze, so plural and critical, the phenomenon of female genital mutilation from the standpoint of human rights - according to the concept coined by Boaventura de Sousa Santos, ie, a multicultural reading of this phenomenon. To do this, from an exploratory research, which will use the dialectical method, it is hoped will contribute to the discussion of universal human rights pointing out its limits and possibilities. As a technique of interpretation of reality, we used the case study, taking into account that lets you explore more subjective aspects of the problem, as well as material analysis, we used the case of Senegalese Khady Koita and in the case of the analysis secondary data, this will be taken as any subsequent analysis of a set of primary data to provide new interpretations and / or conclusions different from the one presented initially. This research calls into question the fine line that delimits the scope of intervention of human rights law in democratic society. Thus, it is observed that in the collision of rights can not relativize this practice by considering an affront to traditional cultures - since what is at issue is an inalienable right. Thus, it is the imposition of Western notions of human rights to nations practitioners of female genital mutilation, as currently occurs, provided that there is empathy between different societies and that this process will take just under the aegis of alterity.

Palavras-Chave: Direitos Mutilação Genital Feminina.

Keywords: Human Rights, Multiculturalism, Female Genital Mutilation.

Humanos;

Multiculturalismo;

1

Estudante de Direito da Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq/PIBIC/Fundaj. E-mail: [email protected].

T

T

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2

Estudante de Direito da Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. E-,mail: [email protected]. T

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1. Introdução Fenômeno mundialmente difundido, sobretudo nas sociedades de matriz africana, a mutilação genital feminina compreende todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total da genitália da mulher ou outras lesões ao órgão genital feminino por razões culturais e/ou outras razões que não sejam terapêuticas3. TP

PT

Tal prática se constitui numa manifestação ritual – trata-se de um rito de passagem – radicada na tradição e no contexto sócio-cultural de muitas populações, sob o fundamento de que as mutiladas são consideradas mais dignas e merecedoras de um casamento e marido honrados, sob o esteio de que as “purificadas” serão fiéis ao seu marido e, assim, o sistema patriarcal4 se TP

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reproduz a ponto de garantir o domínio sobre a sexualidade feminina no âmbito dessas comunidades. No entanto, tal prática representa uma afronta aos direitos humanos, compreendido este em sua acepção universal. Trata-se de uma ofensa ao direito a não sofrer discriminações, ao direito a vida, ao direito a saúde, ao direito a não sofrer tortura ou tratamento desumano, cruel ou degradante, viola os preceitos definidos na convenção sobre os direitos das crianças, dentre outros. Paralelo a isto – tendo em vista o caráter cultural que este fenômeno apresenta – a concepção de direito humanos, assim como estamos habituados a utilizá-la, parece demonstrar, igualmente, um desrespeito às culturas tradicionais, de sorte que temos os direitos humanos com pretensões universais, mas sem legitimidade universal, ou melhor, sem que haja legitimidade local, aos direitos que se pressupõem universais. Segundo Flávia Piovesan5, os direitos humanos possuem, claramente, pretensões TP

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universais, daí a adoção de expressões como “todas as pessoas”. Contudo, o ponto central das discussões sobre os direitos humanos está, exatamente, no seu alcance: podem eles ser universais ou são culturalmente relativos? Segundo a supracitada, ainda que a prerrogativa de exercer a própria cultura seja um direito fundamental, nenhuma concessão é feita às peculiaridades culturais quando houver risco de violação a direitos humanos fundamentais, em outras palavras, não caberão exceções quando, em razão do exercício das culturas tradicionais, houver risco de violação ao princípio basilar dos direitos humanos, que é a dignidade da pessoa humana.

3

Organização Mundial da Saúde (WHO), Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e Fundo das Nações Unidas para a população (UNFPA), 1997.

4

Sistema de dominação masculina na sociedade, de abrangência universal, que possui caracteres históricos sujeito as condições específicas em cada tempo e lugar.

5

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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Paola Degani6, A declaração conjunta de 1996, subscrita pela Unfpa, OMS e Unicef, é TP

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exemplificativa neste respeito quando diz: “A comunidade internacional não pode permanecer inerte frente a tanta violência em nome de uma distorcida visão do multiculturalismo. A cultura não é estática, mas está em constante evolução e a população deve mudar seus hábitos e seus comportamentos frente ao perigo e a inutilidade de certas práticas tradicionais, sem que isto signifique renunciar a identidade da própria cultura”. Como se vê, tanto a literatura especializada, quanto os instrumentos normativos que versam sobre os direitos humanos trazem uma concepção ocidental do fenômeno. Dessa maneira, o problema da universalização dos direitos humanos desloca-se para o plano da legitimidade das normas, assim como todo o direito positivo, tendo em vista que a criação de uma lei não dá a ela o lastro legitimador necessário para o seu reconhecimento como válida pela sociedade. Logo, só se pode lograr a legitimidade quando há harmonia entre as expectativas normativas e o que foi positivado, caso contrário, às leis se tornariam obsoletas. Em virtude disto, os relativistas defendem que a noção de direito está, intrinsecamente, relacionada ao sistema político, econômico, social, cultural e moral de cada sociedade. Com efeito, sociedades diferentes possuem concepções diferentes acerca dos direitos fundamentais, que estão relacionadas às circunstâncias históricas e culturais de cada sociedade. Desse modo, o pluralismo cultural impede a formação de uma moral universal7. TP

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Ora, se por um lado há a defesa da imposição, através da força, da concepção universal dos direitos humanos, por outro prisma, a posição adotada pelos relativistas, igualmente, demonstra pretensões extremistas. Entretanto, no debate sobre os direitos humanos não cabe um meio termo – ou se relativiza, ou será tratado à luz dos direitos humanos assim como o concebemos. A nosso ver, na disputa entre a dignidade da pessoa humana e o direito a vivenciar as tradições culturais, cabe à imposição ocidental dos direitos humanos. Neste sentido, resta-nos discutir a forma de “imposição”, ou melhor, a forma de “intervenção” nesses contextos, de sorte que a mudança não se opere de fora para dentro, mas sim de dentro para fora, através de uma perspectiva horizontal dos direitos humanos.

2. Relativizar é preciso? A lógica etnocêntrica dos Direitos Humanos A questão da legitimidade dos direitos humanos perpassa a discussão sobre o respeito às culturas tradicionais, principalmente em se tratando da excisão que, como visto, trata-se de prática

6

DEGANI, Paola. Mutilazioni dei Genitali Femminili i Diritti Umani. In: AIDOS; ADUSU; CULTURE APERTE. Mutilazioni dei Genitali Femminili e Diritti Umani nelle Comunità Migranti: Raporto di Ricerca nelle Regioni Veneto e Fruili Venezia Giulia. Itália, 2009. (Relatório de Pesquisa) 7

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010

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enraizada na tradição de determinadas civilizações e no contexto sociocultural de determinadas populações. Ruth Benedict8 defendeu em uma de suas obras que a cultura é como uma lente TP

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através da qual o homem vê o mundo. Assim, disserta a autora, homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas. Não obstante a isto, o fato de homens de culturas diferentes veem o mundo através de sua cultura específica, conduz o observador a considerar a sua percepção de mundo como a mais correta. Eis a lógica do etnocentrismo, que consiste em isolar uma característica da própria cultura e elevá-la à condição de definidora da natureza humana9. TP

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Partindo deste pressuposto, a prática da mutilação genital feminina é uma forma de, simbolicamente, as sociedades praticantes reafirmarem sua própria identidade. Assim, conclui o antropólogo José Carlos Rodrigues: Toda ordem tende a ser “desordem” ou “simplicidade” aos olhos dos portadores de uma ordem diferente10. TP

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Entretanto, como dito anteriormente, a cultura não é algo estático, mas está em constante mutação, principalmente na sociedade mundial – como a concebemos atualmente –, a ponto de se admitir que o fenômeno da globalização seja um importante instrumento para por em discussão a própria cultura, quando da possibilidade de compará-la com outras lentes, com uma nova forma de enxergar o mundo. O que se pretende aqui não é propor uma inversão de papéis, ou um etnocentrismo invertido, o que se quer destacar é a capacidade de se estabelecer um diálogo e, a partir daí, poder pensar, criticamente, a sua condição no cenário mundial. Na realidade, cada um considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. A atitude de relativização, portanto, é o esforço para compreender a significação dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do “outro” – ainda que as coisas sejam aquilo que a nossa linguagem e nossos pontos de vista fazem delas, que sejam aquilo que nossa cultura nos condiciona a ver. Embora os direitos humanos assegurem o respeito às culturas tradicionais, não se pode admitir que o relativismo obstasse a formação de uma moral universal. Ora, o próprio conceito de cultura permite conceber quais são as características universais da sociedade mundial – falar, comer, reproduzir – bem com se pode perceber que todas as sociedades trazem, na sua essência, critérios definidores acerca da morte, da vida, da dignidade da pessoa humana etc. mesmo que diferentes lentes condicionem percepções diferenciadas acerca dos temas supracitados.

8

Apud LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

9

RODRIGUES, José Carlos. Antropologia e Comunicação: princípios radicais. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.

10

Op. Cit.

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Colocar as diferentes culturas em contato, para que estabeleçam um diálogo multicultural, portanto, é o primeiro passo para se estabelecer a legitimidade de certas normas dos direitos humanos. No que diz respeito ao objeto de análise, por exemplo, percebe-se que, paulatinamente, as sociedades praticantes têm dado margem a inserção de diferentes formas de conceber o ritual, inclusive já sendo questionável, dentre as sociedades praticantes da excisão, a sua legitimidade e este questionamento não é recente. Na África já existe legislação formal proibindo a mutilação genital feminina, mais precisamente no Sudão. A primeira Lei, promulgada em 1946, prevê a prisão de até cinco anos e/ou multa. No Egito há muitas referências a excisão em suas legislações, muito embora a única coisa realmente traçada foi uma resolução do Ministro da Saúde, de 1959, recomendando a cliterodectomia parcial, para aqueles que desejam se submeter a esta operação, realizada, apenas, por médicos. Em 1988 na Somália foi criada uma comissão para abolir as circuncisões femininas. Em setembro de 1982, o presidente Arap Moi tomou medidas para proibir a prática no Quênia, após relato de morte de quatorze crianças após a excisão. Ademais, declarações oficiais contra a mutilação genital feminina foram feitas pelo capitão Thomas Sankara e Diouf Abdou, chefes de Estado da Bukina Faso e Senegal, respectivamente11. TP

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Observa-se, portanto, uma gradativa mudança de mentalidades no sentido de adotar medidas que vão de encontro à manutenção destas práticas – diga-se de passagem, nefastas –, que atentam contra a dignidade da mulher. A problemática, no entanto, não começa a se desenvolver, apenas, no contato com o “outro”. O problema da mutilação genital feminina é antigo e tem se reproduzido até os dias atuais através de rituais hediondos que, sequer, possuem legitimidade local, posto que não há um consenso entre as sociedades praticantes.

3. Mutilada: um estudo de caso Clamo a toda a minha família socorro, vovô, pai e mãe, todos, eu preciso soltar as palavras, berrar o meu protesto diante dessa injustiça. Com os olhos fechados, não quero ver, não posso ver o que esta mulher está mutilando. O sangue esguichou no rosto dela. É uma dor inexplicável, que não se parece com nenhuma outra. Como se me amarrassem as tripas. Como se houvesse um martelo no interior da minha cabeça. Em poucos minutos, não sinto mais a dor num lugar preciso, mas em todo o corpo, de repente habitado por um rato esfaimado, ou um exército de formigas. [...] eu pensei que ia morrer, que já estava morta. Não sentia mais realmente meu corpo, apenas aquela pavorosa crispação de todos os nervos dentro de mim e minha cabeça que ia explodir. Durante uns bons cinco minutos, essa mulher cortou, aparou, puxou e recomeçou para ter certeza de que retirara mesmo tudo, e eu escuto, como uma ladainha longínqua: — Acalme-se, está quase acabando, você é uma menina corajosa... Acalme-se... Não se mexa! Quanto mais você se mexer, mais vai doer... 12 TP

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11

DORKENOO, Efua. Cutting the rose: Female genital mutilation. Minority Rights Publications, Harry Ransom Humanities Research Center, 1996. 12

KOITA, Khady. Mutilada. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

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Dor, medo, tratamento desumano e cruel, esses são algumas das variadas possibilidades de se definir o ritual descrito por Khady Koita em sua autobiografia intitulada Mutilada. A parte transcrita apresenta toda a crueldade e bruteza do rito de passagem pelo qual esta mulher – no momento do ocorrido, uma criança – fora submetida, sem seu consentimento, em nome da perpetuação de uma cultura, aos olhos de um ocidental, nefasta e sombria. Khady inicia a narrativa falando de sua infância, educação, relacionamentos familiares e, principalmente, sobre a sua alegria de viver. Alegria esta que será interrompida pela cerimônia do Salindé13, como é conhecida a mutilação genital feminina pelas populações da África Negra, mais TP

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precisamente, pela sociedade Senegalense. No Senegal, igualmente a outras partes do mundo, como um animal que é levado para o abate, as meninas são levadas ao Salindé, sem saber o porquê de tal prática, sem terem, sequer, a oportunidade de escolher pela realização, ou não da excisão. Segundo Khady Koita: Nesse tempo, as tradições do vilarejo ainda eram opressivas e, para nossas mães e nossas avós, aquilo tinha que ser feito e ponto final. Elas próprias não se faziam perguntas, considerando que vivíamos agora na cidade, por exemplo, ou tendo em vista o que se passava nas outras casas, como nas dos wolofes. Na minha rua, éramos apenas duas famílias a praticar a salindé: a que viera de Casamance, os mandingues, e a nossa, os soninké. Um pouco mais distante, havia também os toucouleur e os bambara, que perpetuavam a mesma tradição. Mas era uma prática que permanecia secreta, da qual não se falava, sobretudo com os wolofes. Coisas que não deviam ser faladas. Nossos pais pretendiam nos casar mais tarde com primos da mesma família. Era preciso que fôssemos verdadeiras mulheres soninké, tradicionais. Ninguém pensava que um dia haveria casamentos mistos, entre etnias diferentes.

Fato curioso é que a história relatada se passou em meados do século passado. Logo, verifica-se que, desde aquela época, a mutilação genital feminina já era vista como um ato brutal e rechaçada por considerável parte da sociedade Senegalesa. Como explicita a autora em outra passagem: Um dia, uma mulher wolof do bairro veio à nossa casa. Ela fazia viagens ao Mali e conhecia bem o tema. Nesse dia, duas priminhas acabavam de ser cortadas. E eu escutei essa mulher falar bem alto: — Ah! Mas vocês, os soninké, continuam fazendo as suas barbaridades...? Não acordaram, continuam selvagens! Esse ato é uma selvageria!

Neste contexto, cabe destacar um aspecto importante para a mudança de mentalidade da mulher da casta dos Wolof, que é o contato com outras culturas. A própria Khady ressalta que se trata de uma senhora que fazia viagens ao Mali e conhecia bem o assunto. Assim, mais uma vez, se pode visualizar que o diálogo multicultural, o contato com o “outro”, é imprescindível para o despertar das novas mentalidades, sem que isto signifique o esvaziamento das culturas tradicionais. 13

Salindé é a denominação dada pelos praticantes da Mutilação Genital Feminina, no Senegal, ao ritual da excisão.

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Ora, deixaria a mulher da casta dos Wolof de ser uma Senegalesa por não compactuar com o Salindé? O natural, de fato, chega a se desnaturalizar, mas sem que isto signifique perder a sua essência e o movimento precisa ser recíproco, o Eu e o Outro devem beber, bilateralmente da cultura alheia, assim se evitaria a supressão de uma determinada forma de ver o mundo, em detrimento de outra tida como a “mais correta”. O que se pretende, com isso, é afirmar que a mudança deve ocorrer no plano horizontal e não vertical, como se subordinados fossem aqueles praticantes da excisão, em detrimento de uma visão ocidental de ver o mundo. O interessante, quando se discute sobre tradições, como a mutilação genital feminina, é que a cultura nos embebeda nos fazendo parte dela a ponto de naturalizamos e exteriorizamos os processos culturais pelos quais nós passamos. Khady Koita explica que, com o tempo, ela passou a comungar da mesma prática brutal a que tivera sido acometida. Nesta época, já casada com um primo mais velho e morando na França, ela afirma ter praticado a excisão com suas três primeiras filhas, ante a falta de conhecimento que, até então, não tivera. No entanto, o contato com o “outro” ainda não fora suficiente para despertar nesta senegalesa o pensamento crítico acerca da mutilação genital feminina. Nas palavras da autora, A revelação desta barbaridade verdadeiramente me saltou aos olhos quando uma menina maliana morreu, na França, de complicações da excisão. Era 1982, ela se chamava Bobo Traoré. Durante muito tempo, eu tinha "aceitado" a mutilação, a ponto de minhas três primeiras filhas terem sido vítimas. Tinha até mesmo "esquecido" dela, perdida em meio aos meus problemas pessoais. Mas a morte daquela criança pequena, em Paris, que ocupou as mídias com toda razão, me despertou, assim como despertou a sociedade francesa da época e muitos africanos [grifo nosso].

A consciência acerca do diferente, portanto, não fora suficiente para operar as mudanças na mentalidade de Khady. O reconhecimento de que a mutilação genital feminina constitui uma prática nefasta só se deu após o fato relatado. A partir daí Khady passou a procurar informações sobre o assunto, a buscar respostas para as perguntas que desde que fora mutilada tivera formulado e não havia encontrado respostas. Na França, O debate nacional estava lançado, um primeiro programa de televisão nos incitava a discutir a questão, notadamente diante do advogado dos pais da criança. Há os partidários da exceção cultural, africanos ofendidos em cujas tradições a França ousa tocar. Alguns advogados, prontos a defender o indefensável, qualificavam as mulheres africanas de pobres ignorantes, cuja responsabilidade não poderia ser invocada. Elas não são nem pobres nem ignorantes, mesmo que não tenham freqüentado os bancos escolares, mas submissas e abusadas pelo sistema, isto sim! É a verdade que lhes falta [grifo nosso].

Com isto, pode-se chegar, mais uma vez, ao cerne da questão. A legitimidade desta prática, há tempos, tem sido posta em discussão, mesmo entre as sociedades praticantes. O choque cultural, entre esses dois mundos, portanto, não tende a se traduzir como uma imposição ocidental em desrespeito as culturas tradicionais. O problema da legitimidade desta prática seria, 766

cedo ou tarde, posto em discussão. O que falta às mulheres, e aqui concordamos com a autora, é a consciência de sua posição no contexto social. A partir deste momento, seria natural que as mutiladas lutassem para modificar o status quo, e, consequentemente, buscar modificar a mentalidade daqueles que praticam a excisão, o que ocorreu com Khady Koita.

4. Multiculturalismo e Direitos Humanos um Debate Possível? Em insigne trabalho acerca do tema, Boaventura de Souza Santos propõe uma nova concepção dos direitos humanos. Em princípio, o autor analisa que os direitos humanos, em sua acepção universal, tende a ser compreendido como uma forma de globalização de cima para baixo, um choque de civilizações. Nesse sentido, assevera o ilustre professor que, para a existência da legitimidade local, encontra-se atrelada a necessidade de reconceitualização dos direitos humanos, a partir da promoção de um debate multicultural. O multiculturalismo, portanto, seria pré-condição para a formação de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local14. TP

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Para tanto, o supracitado elenca cinco premissas que poderão conduzir a formação de um diálogo multicultural, a saber: 1. A superação do debate sobre universalismo e relativismo cultural; 2. Identificar as preocupações isomórficas entre diferentes culturas; 3. Aumentar a consciência de incompletude cultural até o seu máximo possível; 4. Re3conhecer que todas as culturas possuem versões diferentes de dignidade humana, algumas mais amplas do que outras, algumas com o círculo de reciprocidade mais largo do que outras, restando definir qual delas propõe um círculo de reciprocidade mais amplo; 5. Reconhecer que nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais. Assim, conclui o autor, essas são as premissas sobre dignidade humana que podem conduzir, eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos humanos. Os direitos humanos são as cláusulas mínimas para que o homem viva em sociedade com dignidade. Assim sendo, a busca por uma fundamentação, seja ela ética ou não, dos direitos humanos perpassa a história da humanidade, a princípio sob a perspectiva dos jusnaturalistas, cuja concepção acerca dos direitos humanos advinha dos direitos naturais – posto que os direitos naturais são a expressão da natureza humana presente em todos os membros da família humana (comum e universal), não uma concessão graciosa do direito positivo –, até a concepção culturalista que defende a existência de um fundamento ético dos direitos humanos consagrados ao longo da história, surgindo, assim, uma consciência moral universal15. TP

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14

SANTOS, Boaventura da Souza. Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

15

SIQUEIRA JR. Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos Humanos e Cidadania. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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Em virtude disto é que acreditamos, assim como o mestre de Coimbra, ser possível o debate entre multiculturalismo e direitos humanos, sendo imprescindível para tal feito, a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural. Apesar de termos ciência de que a globalização envolve conflitos e, portanto, vencedores e vencidos16. O debate multicultural, TP

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portanto, possibilitaria ultrapassar esta noção, de maneira que não houvessem vencedores, nem vencidos, mas facilitadores da paz mundial, operários da construção de uma sociedade mundial, nas palavras de Boaventura de Souza Santos, transformar a conceituação e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projeto cosmopolita. A hermenêutica diatópica17, proposta pelo supracitado, corrobora neste processo TP

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introduzindo na discussão uma visão pluralista do discurso sobre os direitos humanos, baseada na alteridade, pois, a apropriação e a absorção da novas formas de compreender a realidade não pode ser obtida através da canibalização cultural18. TP

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Chamo a atenção, ainda para o fato de que: As realidades, teorias e denominações dos direitos humanos apresentam um ponto em comum: a dignidade da pessoa humana. A concepção dos direitos humanos surge da conjugação do jusnaturalismo e do culturalismo, tendo como fundamento nuclear a dignidade da pessoa humana. [...] A vida humana é o axioma básico de qualquer sociedade. Sempre existiu uma sanção para a violação da vida humana. A dignidade da pessoa humana é o pressupoosto axiológico para todos os outros bens e direitos19. TP

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Assim, reconhecendo que todas as culturas possuem noções acerca da dignidade da pessoa humana, no caso em tela, é preciso por em discussão as incompletudes de sua própria cultura para dar início a uma revolução nas mentalidades dos praticantes da excisão. A atividade proposta não se resume aos praticantes, pelo contrário, o movimento, para ter sucesso, deve se pautar numa via de mão dupla, o Eu e o Outro devem por discussão a sua lente, a sua forma de enxergar o mundo, buscando respostas as suas incompletudes. Enquanto isto não ocorrer, continuaremos a ter os direitos humanos com pretensões universais, mas sem legitimidade local.

16

SANTOS, Boaventura da Souza. Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

17

A hermenêutica diatópica baseia-se na idéia de que os topoi de uma determinada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto à própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível no interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. SANTOS, Boaventura da Souza. Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

18

Op. Cit.

19

SIQUEIRA JR. Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos Humanos e Cidadania. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Pg. 43 – 45.

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5. Considerações Finais Alteridade, eis a palavra que, porventura, vem a definir o debate sobre a mutilação genital feminina hodiernamente. Diante do exposto, pode-se constatar que um fenômeno tão cruel não pode ser relativizado, sob o argumento de que seria uma afronta as culturas tradicionais – posto que entra em conflito com um direito indisponível e inerente a natureza humana, que é a dignidade da pessoa humana. Entretanto, a própria alteridade traz, consigo, a atitude de relativização em respeito ao outro. A maior dificuldade, no desenvolvimento deste trabalho, foi tentar, ainda que nos pareça impossível, situar-se num prisma de análise que possibilitasse um meio termo entre o dentro e o fora para que, a princípio, não utilizássemos lentes obscurecidas que pudessem comprometer a análise. Ledo engano. Segundo Fachin: A alteridade abrolha a partir da ética da tolerância que deve ser mirada como elemento integrante do núcleo substancial que conforma a idéia de cultura. Cultura e Tolerância devem caminhar juntas em face de limitações e diversidades culturais. No plano intrínseco de determinado sistema, a tolerância deve ponderar, por um lado, as tradicções culturais e, por outro, a autonomia individual de submeter-se àquelas. Já extrinsecamente, a tolerância é o pressuposto para que o diálogo intercultural não se transfigure em dominação do padrão cultural hegemônico. Faz-se mister olhar para o diferente e com ele conviver20. TP

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Resta-nos considerar que a alteridade deve ser auferida mediante a forma como será feita a intervenção nessas áreas de conflito. A dinâmica da intervenção não pode se pautar numa relação de força, que submeta uma lógica a outra e continue a cultivar a perpetuação da cultura do mais forte. A possível superação do problema da mutilação genital feminina reside na afirmação dos direitos humanos efetuada pelos próprios praticantes, a partir do contato com o outro, mediante a possibilidade de ensejar um debate plural sobre o assunto, no qual a perspectiva do “diferente” venha a ser posta em evidência como uma nova forma de compreender a realidade. É preciso esclarecimento, para posterior sensibilização e conscientização das famílias praticantes. A formação de uma moral universal sobre o assunto é tema complexo, mas possível de se materializar. Gradativamente, a mutilação genital feminina vem sendo rechaçada pelas sociedades praticantes, em detrimento de uma nova forma de conceber o mundo. Num contramovimento, a pequenos passos, a sociedade tem se estruturado para dizer não a esta prática que, há séculos, tem obstado o direito a sexualidade, o direito a dignidade da pessoa humana, o direito a ser mulher, destes sujeitos.

20 FACHIN, Melina Girardi. Versos e Anversos dos Fundamentos Contemporâneos dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais: na localidade do nós à universalidade do outro. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, 2008. (Dissertação de Mestrado) Pg. 172.

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Nosso dever é dizer não, fim a todas as formas de violência e de mutilação. É inaceitável deixar mutilar meninas em nome de tradições ou de culturas, quaisquer que elas sejam. Cada mulher africana tem agora este dever. A cada uma seu caminho. Ninguém tem o direito de esconder a verdade sobre o sexo das mulheres africanas. Ele não é nem diabólico nem impuro. Desde a noite dos tempos, é ele que dá a vida. (Khady Koita)

Referências bibliográficas DEGANI, Paola. Mutilazioni dei Genitali Femminili i Diritti Umani. In: AIDOS; ADUSU; CULTURE APERTE. Mutilazioni dei Genitali Femminili e Diritti Umani nelle Comunità Migranti: Raporto di Ricerca nelle Regioni Veneto e Fruili Venezia Giulia. Itália, 2009. (Relatório de Pesquisa) DORKENOO, Efua. Cutting the rose: Female genital mutilation. Minority Rights Publications, Harry Ransom Humanities Research Center, 1996. FACHIN, Melina Girardi. Versos e Anversos dos Fundamentos Contemporâneos dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais: na localidade do nós à universalidade do outro. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, 2008. (Dissertação de Mestrado) KOITA, Khady. Mutilada. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. RODRIGUES, José Carlos. Antropologia e Comunicação: princípios radicais. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989. SANTOS, Boaventura da Souza. Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. In: BALDI, César Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. SIQUEIRA JR. Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos Humanos e Cidadania. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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O sistema de justiça criminal brasileiro como um sistema frouxamente articulado: as disputas institucionais entre Ministério Público e Defensoria Pública Manuela Abath Valença1 TP

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Resumo

Abstract

O Ministério Público e a Defensoria Pública compõem, junto às polícias, o poder judiciário e o sistema penitenciário, o sistema de justiça criminal. As diferentes atuações dessas instâncias estão articuladas pelas regras do direito brasileiro, que prevê uma divisão de tarefas e uma coordenação entre as funções dessas instâncias. Longe de diagnosticar uma atuação racional e organizada, entretanto, os estudos sobre o sistema de justiça criminal brasileiro apontam-no como um espaço de frouxa articulação, evidenciada, de um lado, pelas disputas entre as instituições e, por outro, por um alto descumprimento das normas legais2. O conceito de sistema frouxamente articulado é tributado a Karl Weick3, que parte da ideia inicial de que há um equívoco em entender uma organização como um espaço de elementos fortemente interligados por planos e programas voltados ao alcance de objetivos e em não atentar para os processos não racionais que se desencadeiam em qualquer organização. Neste trabalho, procuramos enfrentar, a partir desse referencial teórico, as disputas existentes entre Ministério Público e Defensoria Pública e os reflexos dessa frouxa articulação para a política criminal. A disputa por legitimação no campo jurídico entre essas organizações, evidência de frouxa articulação, prejudicaria a adoção de uma estratégia nacional de segurança pública, que integrasse a justiça criminal? Para responder a essas questões, realizaremos uma revisão da bibliografia já publicada sobre a baixa articulação entre as organizações que compõem o a justiça penal e analisaremos episódios de conflito entre Ministério Público e Defensoria Pública.

The criminal justice system is composed in Brazil by the prosecutor, the public defender make, the police, the judicial power and the prison system. The different performances of these instances are linked by the rules of Brazilian law, which provides for a division of tasks and coordination between the functions of these instances. Far to diagnose a rational and organized activities, however, studies on the Brazilian criminal justice system suggest it as a loosely coupled system, evidenced on the one hand by the disputes between the institutions and, second, by a high failure of legal norms. The concept of loosely coupled systems is first articulated by Karl Weick, who parts of the initial idea that there is a mistake to understand an organization as a space of strongly interconnected elements for plans and programs aimed at achieving goals and not paying attention to the non-rational processes that trigger in any organization. In this work, we try to understand the disputes between prosecutors and public defender and the consequences of this loose linkage to criminal policy. The fight for legitimacy in the legal field between these organizations, evidence of loose linkage would impair the adoption of a national strategy for public safety, which integrates criminal justice? To answer these questions, we will conduct a review of the literature published about loosely coupled systems and analyze episodes of conflict between prosecutors and public defenders.

Palavras-Chave: Sistema de Justiça Criminal; Sistemas Frouxamente Articulados; Ministério Público; Defensoria Pública; Política Criminal.

Keywords: Criminal Justice System; Loosely Coupled Systems; Prosecutors; Public Defenders; Criminal Policy.

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1

Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Violência, Criminalidade e Políticas Públicas de Segurança e integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia, [email protected]. TU

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SAPORI, Luís Flávio. A justiça criminal brasileira como um sistema frouxamente articulado. SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006 3

WEICK, KARL E. Educational organizations as loosely coupled systems. In: Administrative Science Quarterly, vol. 1, n. 1, mar, p 1-19, 1976.

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1. Introdução Este trabalho possui o objetivo de tentar entender as disputas hoje protagonizadas entre as organizações Ministério Público e Defensoria Pública a partir de um referencial teórico da sociologia das organizações. Parte-se da premissa de que essas duas organizações estão em disputa na seara jurídica e de que isso pode ser explicado nos termos de estudos organizacionais neoinstitucionais que entendem os sistemas organizacionais como ambientes frouxamente articulados. Ressalte-se que outros aportes teóricos poderiam nos ajudar a compreender essas disputas, a exemplo da teoria bourdieuniana de campo, mas que, aqui, a escolha pelo referencial da sociologia das organizações se deu em função de ser o mesmo arcabouço teórico desenvolvido na dissertação da autora. Assim, tentaremos compreender a disputa em exame a partir de um paradigma neoinstitucional desenvolvido a partir da década de 70, notadamente nos Estados Unidos, e que teve recepção no Brasil em diversos estudos da sociologia criminal contemporânea. A pesquisa se deteve a uma análise documental de textos e documentos que evidenciam a disputa entre MP e DP e, ao mesmo tempo, consistiu em uma revisão bibliográfica do aporte teórico adotado.

2. O sistema de justiça criminal brasileiro como sistema frouxamente articulado O conceito de sistema frouxamente articulado ou “loosely coupled system” se tornou mais conhecido entre os autores brasileiros a partir de um estudo sobre as organizações educacionais de Karl E. Weick, publicado em 1976. Neste trabalho, Weick parte da ideia inicial de que há um erro na maneira como o conceito de organização é tratado. Entendê-lo como um espaço de elementos fortemente interligados por planos e programas voltados ao alcance do objetivo da organização é não atentar para os processos não racionais que se desencadeiam em qualquer organização. O autor inicia o texto com uma frase que incorpora a ideia que será desenvolvida: “ao contrário da imagem prevalecente de que os elementos em organizações estão articulados através de densas e fortes ligações...”4 TP

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Segundo Orton e Weick, é preciso pensar as organizações como espaços de ao mesmo tempo de racionalidade e de indeterminação5. Uma visão mais complexa das organizações passa TP

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a se delinear e estas não mais passam a ser vistas como “um conjunto de engrenagens e de

4

WEICK, KARL E. Educational organizations as loosely coupled systems. Administrative Science Quarterly, vol. 1, n. 1, mar, 1976, p. 1.

5

ORTON, Douglas ; WEICK, Karl E. Loosely coupled systems: a reconceptualization. The academy of management review, vol. 15, n. 2, abr, 1990, p. 203-223, p. 216.

772

mecanismos organizados e postos em movimento unicamente pela racionalidade”6, mas como um TP

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espaço de trocas e conflitos, onde se ajustam racionalidades múltiplas. Frouxa articulação é um conceito que dialoga essa concepção de organização. Enquanto o termo articulação (coupled) aponta para uma variável inexorável das organizações, de que haverá sempre algum grau de articulação, a palavra frouxa (loosely) indica a existência da indeterminação, de menor grau de interdependência entre os elementos do sistema. O próprio termo loosely coupled system assume, então, a dificuldade de olhar para uma organização e tentar perceber nela a coexistência de elementos que estão fortemente articulados e de elementos que estão fracamente articulados. Segundo assinalam Orton e Weick, “frouxa articulação, por exemplo, é um produto de anos de esforço dos teóricos das organizações para combinar os contraditórios conceitos de conexão e autonomia” 7. TP

PT

A leitura que esses autores fazem das organizações é, portanto, a que percebe que seus elementos (agentes, programas, papéis, normas, tecnologia etc) não se articulam fortemente, como apregoa os seus programas formais, por exemplo. Weick situa dois tipos de mecanismos que seriam responsáveis pela articulação entre os elementos de um sistema: o núcleo técnico e as relações de autoridade. No primeiro grupo poderíamos situar a existência de tarefas comuns, papéis a serem desempenhados e a tecnologia do sistema, que integrariam os seus elementos na busca de um mesmo fim. As relações de autoridade promoveriam, por outro lado, a coordenação entre os agentes e as tarefas, a hierarquia entre os agentes e instâncias, responsabilidade, recompensas e sanções aos que atuam em contraposição aos interesses da organização8. TP

PT

Porém, ao olhar de perto o funcionamento de certas organizações – no caso do autor, as organizações educacionais – Weick identifica situações que apontam antes para certa improvisação entre agentes e programas, do que para um sistema racionalmente programado e operado. Essa desarticulação é, entre outros momentos,

observada quando: a) há muitos

recursos e pouca demanda ao sistema, b) diversos meios são capazes de produzir o mesmo fim, c) redes em que a influência entre as instâncias é pequena, d) há falta de coordenação e de regulação, e) os planejamentos que levam em conta a interdependência entre os elementos, f) a inspeção das atividades é feita com baixa frequência, h) há descentralização, i) atuações autistas e deslocadas de um senso comum por parte dos membros da organização e j) a estrutura das organizações não condizem necessariamente com as suas atividades9. TP

PT

6

FRIEDBERG, Erhard. Organização. BOUDON, Raymond (org.). Tratado de sociologia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.385. 7

ORTON, Douglas ; WEICK, Karl E., Op cit, p. 216.

8

WEICK, KARL E. Op cit, p. 4.

9

Ibdem, p. 5

773

Para uma outra linha dos estudos sobre organizações frouxamente articuladas, esta já com um caráter mais macro-sociológico e francamente influenciada pelas teorias do conflito, a pretensa racionalidade das organizações não passaria de um mecanismo de legitimação das mesmas. Neste sentido, Meyer e Rowan (1977, p. 343) identificam um sistema frouxamente articulado como aquele em que: os elementos estruturais são fracamente articulados entre si e entre seus deveres, as regras são frequentemente violadas, as decisões são pouco implementadas e, quando implementadas, geram consequências imprevisíveis, as tecnologias são de eficiência duvidosa e a avaliação e inspeção dos sistemas são subvertidas, gerando, assim, pouca coordenação. Para eles, a manutenção da ideia de que aquela organização funciona conforme os padrões estabelecidos nas normas e segundo um programa fixado previamente teria o condão de dar a elas uma legitimidade que as tornam vivas, digamos assim. Os estudiosos dos sistemas frouxamente articulados se inserem, como se observa, em um movimento de verdadeira remodelação dos tradicionais estudos organizacionais e das teorias institucionalistas. “Sem perder de vista o tipo ideal weberiano, uma série de autores projeta uma concepção mais heterodoxa da burocracia, que não se limita às suas características estruturais básicas, quais sejam, formalidade, impessoalidade, rotinização e especialização”10 e inauguram TP

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um paradigma que passou a ser conhecido como novo institucionalismo, o qual não possui uma única configuração, mas que, na sociologia, procurou, de um modo geral, aproximar as abordagens institucionais às culturalistas. O surgimento das burocracias racionais corresponde a uma demanda tipicamente moderna, de uma sociedade mais complexa. A prevalência dessa administração burocrática na modernidade se deve ao processo de racionalização e desencantamento pelo qual passou boa parte das sociedades ocidentais no século XVIII. O desenvolvimento científico, o domínio da natureza e a especialização técnica afastaram o homem da crença nas explicações mágicas sobre a natureza, desencantaram-no e deixaram como alternativa a crença na razão. A racionalização emerge assim ao único padrão correto de descrição do mundo e de formação das instituições políticas e sociais. Como vai destacar o próprio Weber: “A burocracia é ocasionada mais pela ampliação subjetiva e qualitativa e pelo desdobramento interno no âmbito das tarefas administrativas do que pelo seu aumento extensivo e quantitativo”11. TP

PT

As teorias institucionais estiveram apegadas a essas formulações de uma racionalidade instrumental no interior das burocracias e o que a perspectiva neoinstitucional traz é uma 10

SAPORI, Flávio Luís. A justiça criminal brasileira como um sistema frouxamente articulado. SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006, p. 765. 11

WEBER, Max. Burocracia. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1963, p. 246.

774

reviravolta na interpretação do modus operandi das organizações, enxergando as práticas culturais que nelas se reproduzem. Desse modo, toda organização e todo sistema são espaços de formalidades e informalidades, onde se operam racionalidades múltiplas. Como dito acima, alguns sociólogos do crime atuais no Brasil vêm adotando o referencial dos sistemas frouxamente articulados para explicar parte do funcionamento do sistema de justiça criminal brasileiro. Neste sentido, destaque-se a obra de Flávio Sapori, sociólogo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo Sapori, “a frouxa articulação na justiça criminal pode se expressar nos níveis de conflito e disjunção existentes nas relações entre as organizações do network”12e “no hiato TP

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existente entre as regras legais e sua implementação prática pela polícia, tribunais e prisões”13. TP

PT

Sobre o primeiro ponto, o autor considera que a presença de forte nível de disputa entre as polícias civil e militar, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o poder judiciário evidencia uma situação em que as organizações estão agindo com lógicas distintas e, até mesmo, conflitantes, de modo que, apenas hipoteticamente se poderia falar em um sistema de justiça criminal, com um programa a ser executado. As disputas existentes entre as polícias civil e militar parecem um fenômeno bastante visível quando se fala em conflitos institucionais no seio do sistema de justiça criminal e a ele Sapori se refere em seu trabalho. Porém, é interessante notar que, nos últimos cinco anos, os conflitos entre Defensoria Pública e Ministério Público se tornaram mais evidentes e em função das relevantes atribuições dessas duas instituições – que atuam não apenas na área criminal - é possível afirmar que esse conflito não se restringe ao âmbito da justiça criminal brasileira, mas que possui importante reflexo sobre ele.

3. As disputas entre Ministério Público e Defensoria Pública Os Ministérios Públicos e as Defensorias Públicas compõem, junto às polícias, o poder judiciário e o sistema penitenciário, o sistema de justiça criminal. Chamamo-lo de sistema, pois as diferentes atuações dessas instâncias estão articuladas pelas regras do direito brasileiro, que prevê uma divisão de tarefas e, ao mesmo tempo, uma coordenação entre as funções de cada uma dessas instâncias. Sapori pontua que é possível qualificar o arranjo institucional da segurança pública como compondo um complexo sistema organizacional e legal que, por sua vez divide-se em

12

SAPORI, Flávio Luís, Op cit, p. 769.

13

Ibdem, p. 773.

775

subsistemas com características próprias e singulares, mas que estão articulados, a princípio, por uma divisão de trabalho e complementaridade de funções14 TP

PT

A regulação normativa das instâncias integradoras do sistema de justiça criminal não garante, no entanto, que elas atuem de forma harmonizada. Ao contrário, os estudos dirigidos ao SJC brasileiro apontam-no como um espaço de frouxa articulação, evidenciada, de um lado, pelas disputas entre as instituições e, por outro, por um alto descumprimento das normas legais, conforme adiantei acima. Esse baixo grau de articulação é também atribuído aos diferenciados processos de construção institucional em um contexto de disputas – materiais e simbólicas – que colocam frequentemente em oposição as polícias civil e militar, o Ministério Público, o judiciário e, por que não, as defensorias públicas15. TP

PT

Destarte, a adoção cerimonial de normas formais, a prevalência de normas e relações informais e a frouxa articulação entre as instituições do sistema de justiça criminal são aspectos que vêm sendo apontados como centrais na justiça criminal brasileira. Como aplicar estas conclusões à explicação da atual disputa entre MP e DP? Entendamos primeiro o lugar de cada uma dessas organizações no sistema de justiça criminal. O Ministério Público passou por modificações profundas com a redemocratização e a promulgação da Constituição da República de 1988, ganhando contornos institucionais novos. Politicamente deixou de estar ligado ao poder executivo e funcionalmente, deixou de fazer a consultoria e representação do Estado, passando a desempenhar o papel de defensor da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis16. Como titular TP

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da ação penal, o Ministério Público estaria agindo, ao mesmo tempo, em nome da ordem jurídica e dos direitos da sociedade. A doutrina processual penal não o identifica, pois, como parte do processo penal, no sentido apenas técnico, formal, pois o seu objetivo não é o de “ir contra o imputado, senão pedir a atuação da pretensão em relação a ele, devendo agir no interesse da verdade e da justiça”17. O TP

PT

Ministério Público é então entendido – no processo penal - como um órgão da administração judiciária, “porque participante directa da intencionalidade da realização do direito, com a sua submissão única aos aludidos fins de verdade e da justiça”18. TP

14

PT

Ibdem, p. 763.

15

RATTON, José Luiz et al. Refletindo sobre o inquérito policial na cidade do Recife: uma pesquisa empírica. MISSE, Michel (org). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: NECVU/IFCS/UFRJ; BOOKLINK, 2010, p. 294. 16

RIBEIRO, Diaulas Costa. Ministério Público: dimensão constitucional e repercussão no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 64.

17

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 30 ed, v. 2, 2008, p. 362.

18

DIAS, Jorge de Figueiredo [1974]. Direito processual penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 367-368.

776

A Defensoria Pública foi desenhada, no texto constitucional, como função essencial à justiça com incumbência de prestar orientação jurídica e defender os necessitados. Porém, modificações ocorridas após 1988 trouxeram novas prerrogativas à organização, tornando-a potencialmente mais forte no cenário político, o que, de certo, é também fonte de conflitos, sobretudo com o Ministério Público. Para parte da doutrina, o defensor também não figura como parte, mas apenas como “representante do imputado”19. Indo além da ideia de representante, Figueiredo Dias identifica o TP

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defensor também como membro da administração da justiça e não como representante apenas do acusado. Isso porque, segundo o autor português, o processo penal não tem partes, cabendo inclusive ao próprio Ministério Público “velar pela proteção dos direitos processuais do arguido”20. TP

PT

Os contornos formais que ganham as instituições são fundamentais para compreendê-las, mas superar o olhar estritamente normativo é também de grande valia para os estudos jurídicosociológicos. O fato de ser o Ministério Público o legitimado para a proposição da ação penal o leva, invariavelmente, ao lugar de acusador no processo (ainda que ele esteja plenamente livre para, quando for o caso, pedir absolvição). Por outro lado, encarrega-se o defensor público – ou o advogado – do lugar da defesa. Como ressalta o próprio Dias, “a função de defesa aparta-se tanto da actividade judicial como da do MP (podendo nesta medida surgir o defensor, facticamente, como ‘opositor’ daquelas entidades)”21. TP

PT

Assim, claro está que mesmo nos níveis micro vivenciados nos processos criminais, os organizações em exame estão em conflito, em lados opostos, o que, inclusive, fez-nos concluir, em outro momento, que atual crescimento da Defensoria Pública pode representar um ganho importante nas discussões sobre novos paradigmas político-criminais e que o acirramento das tensões entre ela e o Ministério Público apenas asseguram a importância de uma participação das duas organizações nos debates em torno do sistema punitivo. Porém, tentemos ainda compreender o problema, dando-lhe um aspecto mais material.

4. Um breve diagnóstico do problema Como afirmado acima, a Defensoria Pública passou por modificações em seu desenho institucional nos últimos anos, ganhando novas prerrogativas. Talvez a primeira mais relevante delas tenha sido a lei 11.448 de 2007. Tal dispositivo legal inseriu nas competências da defensoria pública a legitimidade para a propositura de ação 19

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op cit., p. 503.

20

DIAS, Jorge de Figueiredo. Op cit. p. 468.

21

Ibdem. p. 472

777

civil pública. O texto constitucional não o fazia, atribuindo por outro lado ao MP expressamente a competência para tanto no artigo 129, inciso III. Entretanto, no parágrafo primeiro do mesmo artigo há a seguinte previsão: “a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo disposto nesta constituição e na lei”. Não obstante, as mudanças trazidas pela lei 11.448 foram objeto de duras críticas por diversas entidades representativas dos membros do Ministério Público, ensejando, inclusive, a propositura da ação direta de inconstitucionalidade 3943 por parte da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, contando ainda como amicus curiae a Associação Nacional dos Procuradores da República, a Associação dos Defensores Públicos da União e o Insituto Brasileiro de Advocacia Pública. O argumento central da referida ação é o de que a Defensoria não deveria atuar em ações com o objetivo de assegurar direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos em razão de ser ela uma organização criada para fazer a assessoria jurídica dos necessitados na forma da lei. Portanto, como o seu “cliente” preferencial seriam as pessoas com baixa renda, não faria sentido se falar em ações que beneficiassem difusamente pessoas que nem sempre podem ser individualizadas e, portanto, que não podem ter sua pobreza comprovada no processo22. O TP

PT

Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou a respeito. Outra grande modificação sofrida pela Defensoria Pública se deu com a edição da Lei Complementar 132 de 2009, que organiza a defensoria pública da União, do Distrito Federal e dá diretrizes gerais para a organização das defensorias estaduais e que alterou diversos artigos da LC 80 de 1994. A própria previsão da defensoria pública como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados23 TP

PT

denota o caráter novo que se pretende dar a instituição. Contra essas novas previsões, membros do Ministério Publico Federal em Pernambuco encaminharam ao Procurador-Geral da República representação para propositura de ação direta de Inconstitucionalidade contra as Resoluções nº 32/2009 e 13/2006 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União, bem como a interpretação conforme a Constituição de dispositivos da Lei Complementar nº 132/2009, que alterou a Lei Complementar 80/94. Segundo os procuradores representantes, esses dispositivos estariam indo de encontro à Constituição 22

O inteiro teor da petição inicial pode ser acessado em < http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=181113&tipo=TP&descricao=ADI%2F3943> TU

UT

23

Lei Complementar 80 de 1994, art. 1°.

778

Federal, quando esta previa como prerrogativa da defensoria pública tão-somente a assessoria jurídica dos necessitados24. TP

PT

Ainda no campo do crescimento institucional da defensoria pública, destaque-se as modificações introduzidas na Lei de Execuções Penais pela lei 12.313 de 2010, tornado esta organização também órgão da execução penal. Curiosamente, também nesta ocasião, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul encaminhou um estudo em junho de 2011 a CONAMP, arguindo a inconstitucionalidade parcial do artigo 81-A, daquela lei que dispõe "a Defensoria Pública velará pela regular execução da pena e da medida de segurança, oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva". Segundo o estudo, cabe ao Ministério Público a defesa dos interesses coletivos. Como se observa, o crescimento da Defensoria Pública causa espécie ao Ministério Público, que se manifesta enquanto organização em diversas ocasiões em que novas prerrogativas são concedidas àquela instituição. Não me proponho neste trabalho entender exatamente a razão disto – embora tais incômodos possam ser explicados, mais uma vez em termos bourdieunianos, como disputa por capital jurídico25-, mas cumpre salientar que tais TP

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disputas evidenciam a frouxa articulação do sistema de justiça criminal. Que consequências tais disputas trazem em termos de formação de política criminal ou de política pública de segurança?

5. Conclusão: é possível falar em sistema de justiça criminal? As disputas evidenciadas nos episódios acima citados nos fazem pensar até que pontos é possível se falar em um sistema de justiça criminal. Entendendo um sistema enquanto um conjunto de organizações onde se opera uma divisão de tarefas para a consecução de uma finalidade, é praticamente impossível vislumbrar a ideia de um sistema de justiça criminal. O que se evidencia são organizações em disputa e uma enorme dificuldade de se pensar um programa integrado. Um dos aspectos de sistemas frouxamente articulados é, justamente, a dificuldade de se pensar a execução de programas comuns, no caso, de um programa de segurança pública. A pergunta que fica, por outro lado, é: é necessário e possível pensar um programa de segurança pública que integrasse as diversas agências que compõem esse sistema?

24

Neste sentido, ver: http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/docs_institucional/arquivos-hospedados/Coord-Boletim_22-6882.pdf TU

UT

25

A noção de capital jurídico em Bourdieu remete à de capital simbólico. Segundo o sociólogo francês, “o capital simbólico é qualquer propriedade (qualquer espécie de capital, físico, econômico, cultural social) desde que ela seja percebida pelos agentes sociais, cujas categorias de percepção sejam tais que eles estejam aptos a conhecê-la (percebê-la), de reconhecê-la, de atribuir a ela valor”. BOURDIEU, Pierre. Esprits d´État: génese et structure du champ bureaucratique. Actes de la recherche en sciences social, vol. 96-97, p. 49-62, mar 1993. Disponível em < http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1993_num_96_1_3040>. Acesso em 23 jun 2011, p. 55. TU

UT

779

O exemplo do Sistema de Justiça Criminal pode ajudar a esclarecer essa pergunta. É certo que as organizações que compõem esse sistema (polícias, Ministério Público, Defensoria Pública e Poder Judiciário) possuem papéis específicos e até mesmo antagônicos – quando se considera o lugar da defesa e da acusação - no processo penal, por exemplo. Ao mesmo tempo, zela-se pela necessária independência dessas agências, a fim de se evitar um processo penal de cunho inquisitório, com forte concentração dos atos sobre uma mesma pessoa ou organização. Entretanto, postula-se uma autonomia que significa ausência de subordinação, o que não deveria inviabilizar a formação de programas de segurança pública ou estratégias de segurança pública que contemplem a participação e adesão de todos os atores que compõem o sistema de justiça criminal. Tentemos passar para um exemplo que torna um pouco mais claro o problema enfrentado: o Brasil enfrenta hoje uma série crise de seu sistema de justiça penal. Ainda que não invoquemos as necessárias conclusões advindas de estudos da criminologia crítica, que descortinam o esse sistema como um espaço de seletividade e graves violações de direitos humanos, é possível mesmo pensar em críticas anteriores e menos profundas que apontam para o ululante: nossas prisões estão abarrotadas. Uma solução bem imediata para esse problema seria pensar um uso racional – e aqui não estamos fazendo a defesa de uma racionalização do uso da prisão, pois que isso se mostra praticamente impossível, mas estamos tentando apenas compor o exemplo – da prisão, com redução do uso das prisões provisórias e aumento do uso de penas alternativas. Como integrar a polícia, o judiciário, o MP e a DP neste projeto? É possível? É desejável? A edição recente da lei 12.403 de 2011 torna o exemplo mais palpável. Ela introduz novas medidas cautelares alternativas à prisão preventiva. Estariam todas essas organizações em harmonia com o projeto de, ao menos em tese, justifica a edição daquela lei? São essas e outras perguntas que nos fazem pensar até que ponto a frouxa articulação do sistema de justiça criminal brasileiro pode trazer benefícios – manter a independência entre as organizações – e malefícios – tornar praticamente impossível a adoção de um programa comum. Certo é que, as discussões sobre política criminal e estratégias nacionais de segurança pública devem ser levadas a cabo por todas essas organizações, tendo em vista que a própria disputa entre elas pode levar a um amadurecimento de propostas.

Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. Esprits d´État: génese et structure du champ bureaucratique. Actes de la recherche en sciences

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<

Acesso

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781

Deslocamentos ou o paradoxo das migrações internacionais: cidadania e direitos humanos pensados no contexto migratório Raquel P. do Amaral Camargo1 TP

PT

Resumo

Abstract

O presente artigo tem por objetivo refletir acerca do problema da ausência de cidadania para os imigrantes internacionais. Em um primeiro momento, nos valeremos de autores que pensam os deslocamentos internacionais a partir do marco regulatório dos Estados nacionais, tais como, Dominique Schnapper e Abdelmalek Sayad, para fazer uma caracterização da imigração; nesta primeira parte, priorizaremos o problema da ausência de proteção de cidadã para os indivíduos que se deslocam de um Estado a outro; em um segundo momento será analisada a concepção moderna de cidadania e a relação entre a construção desta e a afirmação dos direitos humanos; por fim, verificaremos em que medida a cidadania moderna é suficiente para responder as novas demandas surgidas com aumento do trânsito de pessoas pelo mundo. Ainda na última parte do artigo, daremos ênfase à dimensão política da cidadania posto que esta seja a que mais enseja problemas quando transposta para a situação dos imigrantes estrangeiros.

This article intends to analyze the problem around the lack of citizenship faced by some international immigrants. Firstly, in order to characterize these immigrations, we will study authors such as Dominique Schnapper and Abdelmalek Sayad, who consider the international displacements from a regulatory mark in the National States’ point of view; in this first part, we will prioritize the problem around the lack of citizenship to the individuals displaced from one State to another; secondly, the modern concept of citizenship and the relation between its construction and the affirmation of human rights will be analyzed; finally, we will verify if the modern citizenship is enough to respond and to provide for the new demands brought up with the growth of displacements around the world. Still in the last part of the article, we will emphasize the political dimentions of citizenship, given that it is the major problem faced by immigrants.

Palavras-Chave: Imigração Direitos Humanos.

Keywords: International Immigration; Citizenship; Human Rights

1

Internacional;

Cidadania;

Mestranda em direitos humanos na Universidade Federal da Paraíba- UFPB; [email protected]

782

1. Introdução O fenômeno que se convencionou chamar de globalização traz consigo uma série de condições que possibilitam a aceleração dos fluxos migratórios, tais como, a diminuição das distâncias, a maior interação entre pessoas de diferentes partes do globo, a formação de complexas redes de informação mundial, a facilidade de envio de remessas de dinheiro por parte dos trabalhadores imigrantes para suas famílias e a diminuição dos custos de transportes. Por outro lado, estes efeitos também produzem contradições, pois ao passo que facilitam o deslocamento também tornam o processo migratório cada vez mais difícil e complexo, devido à imposição de barreiras étnicas, culturais, sexuais, raciais, jurídicas e políticas. Numa época em que os deslocamentos se tornaram uma realidade a cada dia mais presente, pensar o problema da ausência de cidadania para os imigrantes configura um desafio. Ao cruzar as fronteiras dos Estados nacionais, as pessoas que imigram deixam pata trás a cidadania nacional e passam a residir em uma sociedade na qual se apresentam como estrangeiros. O conflito se dá em termos de nomenclatura (lá cidadão, aqui estrangeiro), mas também implica numa mudança de status social. Ao passo que o emigrante é um cidadão nacional no seu país de origem, no qual tem os seus direitos previstos, como imigrante ele se encontra numa situação completamente oposta. Não é um nacional, terá que se adequar a um conjunto de leis que, provavelmente, não conhecerá muito bem, e precisará se adaptar a outras normas e valores culturais. A essa situação de vulnerabilidade soma-se o fato de que a cidadania, status que permite o acesso aos direitos, está fortemente vinculada à nacionalidade, é um derivado desta. Atualmente, muitos Estados receptores de imigrantes possuem legislações que protegem os direitos civis e sociais dos estrangeiros, ainda que estes não sejam considerados cidadãos. Porém, a dimensão política da cidadania continua sendo problemática e de difícil acesso para os imigrantes. O presente artigo versará exatamente sobre as possibilidades de garantir uma proteção cidadã para as pessoas que imigram, incluindo nesta a dimensão política da cidadania, que garante o pertencimento a um determinado Estado. Por fim, ainda que se fale bastante em novos modelos de imigração, que não cumprem o itinerário habitual de saída, entrada e integração no país de acolhida, como, por exemplo, as migrações transnacionais, pensar a imigração inserida em um marco nacional ainda é importante. Como lembra Savidan2, não é o transnacionalismo que traduz o essencial da realidade das TP

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imigrações internacionais. Boa parte dos fluxos migratórios contemporâneos tem intenções laborais e o trabalho ainda é regulado no âmbito de um Estado nacional. Nesse sentido, falar das

2

SAVIDAN, Patrick. Le multiculturalisme. Que sais-je? Paris, PUF, 2009.

783

novas possibilidades e novas concepções de cidadania transnacional é importante, porém, de igual importância é pontuar os termos do debate sobre a ausência de cidadania para os imigrantes estrangeiros. É com este propósito que se produz este artigo.

2. Breve caracterização da imigração internacional Em 2009, o PNUD3 (Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento) publicou o TP

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Relatório Mundial para o Desenvolvimento Humano dedicado a questão das migrações, cujo título era: “Superando Barreiras: mobilidades e desenvolvimento humanos”. Em 2010 uma relatora4 da ONU publicou um relatório especial acerca do direito à moradia adequada cuja TP

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migração era o tema central. Longe de serem fatos isolados, estes relatórios fazem parte de uma tendência maior entre os órgãos intergovernamentais, qual seja a de discutir as conseqüências advindas dos fluxos migratórios internacionais.5 TP

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As mudanças provocadas pelo fenômeno que se convencionou chamar de globalização, ou mundialização, tornaram os deslocamentos uma realidade habitual. Cada vez mais as pessoas cruzam fronteiras e se movimentam para fora do Estado num processo desvinculado da cidadania nacional. A principal característica da migração internacional, que a distingue da migração interna e de outros tipos de migração, é que ela implica numa “mudança do indivíduo entre duas entidades, entre dois sistemas políticos diferentes” 6. TP

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Em termos gerais, a migração se define pela mobilidade. Migrar é se deslocar de um lugar a outro7. Catherine Quiminal8alerta que não se deve confundir o imigrante9 com o estrangeiro. Um TP

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imigrante que consegue obter a nacionalidade brasileira, por exemplo, deixa de ser um estrangeiro e passa a ser um nacional. Ou seja, é possível ser ao mesmo tempo imigrante e nacional. De modo inverso, como no exemplo dado por Philippe de Witte10, pessoas que nascem TP

3

PT

Informe sobre Desarrollo Humano. Superando barreras: Movilidad y desarrollo humanos. 2009.

4

ROLNIK, Raquel. Rapport du Rapporteur spécial des Nations Unies sur le droit à un logement convenable en tant qu’élément du droit à un niveau de vie suffisant. ONU, 2010.

5

Vide, a esse respeito: PÉCOUD, Antoine. Le scénario “migrations sans frontières” in Liberté de Circulation un droit quelles politiques? Paris, 2009. 6

REIS, Rossana Rocha. Políticas de nacionalidade e políticas de imigração na França.

Rev. Bras. Ci. Soc. Vol.14 n.39, São Paulo: Fev. 1999, p.150. 7

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.

8

QUIMINAL, Catherine in HIRATA, Helena e LABORIE, Françoise et alli. Dictionnaire critique du féminisme. Paris: PUF, 2000, p.124. 9

O uso do vocábulo “migração” enfatiza o deslocamento em si. Já o uso do vocábulo “imigração” pressupõe a existência de um deslocamento, mas coloca a ênfase na entrada de um indivíduo em determinado Estado.

10

WITTE, Philippe de. Immigration et integration, l’état des saviors, Paris, La Découverte, 1999, p.8.

784

em território francês, mas conservam a nacionalidade dos pais, não são nacionais, são estrangeiros. Logo, também é possível ser estrangeiro sem nunca ter imigrado. Resumidamente, a migração é um fenômeno social que se configura como tal através do deslocamento, enquanto ser estrangeiro ou ser nacional diz respeito ao referencial jurídico de pertencimento a um Estado. No entanto, a migração é o meio mais comum de se tornar estrangeiro. No mundo moderno, são as fronteiras políticas e jurídicas de um Estado que servem de parâmetro para definir quem são os nacionais e quem são os estrangeiros. Aqueles que saem do Estado ao qual pertencem, cruzam as fronteiras e adentram em outro Estado, tornam-se estrangeiros. Nesse sentido, pode-se dizer que os migrantes são estrangeiros em potencial, o que enseja a comum relação feita entre o fenômeno migratório e a condição de estrangeiro, ainda que juridicamente seja possível existir um sem o outro, isto é, existir o estrangeiro sem que exista o migrante e vice-versa. Ainda, para Sayad11, entre a ordem da migração e a ordem nacional existe TP

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uma relação intrínseca, pois, no fundo, o resultado da migração é a presença de não nacionais no seio de uma ordem nacional. Por isso mesmo, é impossível separar a migração da dicotomia nacional e não-nacional. Uma importante observação a ser feita acerca das migrações internacionais diz respeito ao próprio significado da palavra migrante. Com efeito, o migrante – aquele que se desloca – é composto por duas faces, que aparecem como dois lados de uma mesma moeda. São complementares e não se pode pensar uma sem a outra. São elas, a face do emigrante e a face do imigrante. Como lembra Sayad12, a emigração é o duplo da imigração, o seu início, o seu outro TP

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lado. Pensar a imigração, na realidade, nada mais é que pensar um pólo do fenômeno da migração, cuja origem é a emigração. O que para a sociedade de acolhida é um imigrante, para o país de origem é um emigrante. O fenômeno que é denominado por uma sociedade de emigração, para outra sociedade se chama imigração. Saber sobre o imigrante é saber sobre aquele que chega, e abstrair que ele um dia saiu e deixou para trás uma língua, uma terra, familiares e um modo de ver o mundo: “Esta é outra versão do etnocentrismo; só se conhece o que se tem interesse em conhecer”13. TP

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De modo inverso, estudar a emigração é entender os motivos que levam alguém a deixar o seu país de origem e se aventurar em busca do desconhecido. É isso que faz, por exemplo, Sidney da Silva14, antropólogo que se dedica, dentre outras coisas, ao estudo da presença TP

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11

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998, p.266.

12

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998, p.18.

13

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998, p.16.

14

SILVA, Sidney Antonio da. Faces da Latinidade Hispano-Americano em São Paulo.Campinas, Núcleo de Estudos da População/Unicamp, 2008.

785

boliviana em São Paulo, buscando compreender as razões pelas quais estas pessoas saem de seus lugares de origem. Dessa forma, o migrante carrega consigo uma realidade conflituosa: é ao mesmo tempo aquele que sai e aquele que chega, aquele do qual tudo se sabe e ao mesmo tempo tudo se ignora. Como lembra Tatiana Waldman15, este conflito se dá no nível da denominação (aqui TP

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imigrante e lá emigrante), mas também implica uma mudança de status social. Ao passo que o emigrante é um cidadão nacional no seu país de origem, no qual tem os seus direitos previstos, como imigrante ele se encontra numa situação completamente oposta. Não é um nacional, terá que se adequar a um conjunto de leis que, provavelmente, não conhecerá muito bem, e precisará se adaptar a outras normas e valores culturais.

3. O problema da ausência de cidadania para os imigrantes internacionais Atualmente, consiste um desafio pensar as possibilidades de proteção cidadã para os indivíduos que migram16. TP

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A cidadania, para ser completa, deve possuir, no mínimo, uma dimensão civil, uma dimensão social e uma dimensão política. De acordo com Avritzer17, em relação à dimensão civil e TP

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social da cidadania, já é possível falar em tipos de cidadania que assumem elementos transnacionais e cujo horizonte de realização é palpável: a cidadania legal transnacional, que corresponde ao reconhecimento de direitos civis para pessoas sem cidadania e a cidadania social transnacional, que corresponde à proteção, no plano internacional, dos direitos sociais e das condições mínimas para o trabalho. A dimensão política da cidadania, entretanto, ainda está fortemente vinculada ao marco nacional. Uma explicação para isso, dentre tantas outras possíveis, reside no fato de que o reconhecimento de direitos civis e sociais está pautado pelo princípio do indivíduo, segundo o qual, homens e mulheres, enquanto seres humanos, possuem direitos fundamentais. Já o reconhecimento dos direitos políticos se fundamenta no princípio da cidadania, que pressupõe o pertencimento a uma comunidade política.18 Assim, os imigrantes que, enquanto estrangeiros, não TP

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pertencem (ou até podem pertencer de fato, mas não de direito) ao Estado no qual residem, estão excluídos do acesso aos direitos políticos. Inúmeros fatores poderiam ser enumerados com vistas a exprimir a importância de possuir direitos políticos para garantia de uma cidadania plena, ou, a contrário senso, para comprovar que a

15

WALDMAN, Tatiana. O acesso à saúde e a imigração: um estudo de caso das imigrantes bolivianas na cidade de São Paulo. São Paulo, 2010, p.4. Disponível em: http://www.sistemasmart.com.br/andhep2010/trabalhosite/trabalhossite.asp?codigo=18Acesso em: 22. 05. 2011. TU

UT

16

AVRITZER, Leonardo. Padrão de cidadania mundial. Revista Lua Nova, nº 55-56, 2002.

17

AVRITZER, Leonardo. Padrão de cidadania mundial. Revista Lua Nova, nº 55-56, 2002, pp. 55 e 56.

18

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000.

786

ausência de direitos políticos para os imigrantes constitui um problema. Neste artigo, dois aspectos foram escolhidos para ser pensados: a exclusão do campo da igualdade e a restrição de direitos. A exclusão do campo da igualdade, que decorre da ausência de cidadania, se relaciona com a compreensão da cidadania como princípio fundador da ordem política moderna. Lembra Dominique Schnnaper que a cidadania tem um sentido jurídico (cuja privação implica na restrição de direitos, como será visto adiante), mas também é compreendida como o princípio da legitimidade política. O cidadão não é apenas aquele que possui direitos, ele é também o detentor de parte da soberania. É o corpo de cidadãos que escolhe os governantes, portanto, é nele que reside a fonte do poder. A cidadania como princípio foi afirmada com a Revolução Francesa e usada para legitimar a proclamação de uma nova ordem política. Ao passo que antes o Rei era a fonte de todo poder, doravante a nação passa a ser o fundamento legítimo do poder. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão19, de 1791, proclama em seu artigo 3º que “O princípio de toda a TP

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soberania reside essencialmente na Nação”. Constituídos em nação, para usar as palavras de Schnnaper20, “os homens deixam de ser indivíduos concretos, caracterizados por suas origens TP

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históricas, suas crenças e suas práticas religiosas, seus pertencimentos sociais. Eles se tornam cidadãos iguais”. Há, portanto, ao lado da afirmação da cidadania moderna, um princípio de transcendência dos particularismos que rege as relações em sociedade. Enquanto no espaço privado os indivíduos são regidos por aquilo que os distinguem, suas particularidades, no espaço público predomina a universalidade do cidadão. Nota-se, assim, que a separação entre o público e o privado é o que funda a cidadania, pois é a partir dela que se processa a oposição entre o homem público e o homem privado. Essa idéia de igualdade que rege as relações públicas, ainda de acordo com Schnnaper21, é uma herança da Grécia antiga. Segundo esta autora, os gregos, com TP

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a invenção da polis, pensaram o “político” como domínio autônomo da vida coletiva. Na polis, independente das diferenças que os separavam, os homens eram iguais enquanto cidadãos. Apesar da idéia de igualdade que rege o espaço público encontrar suas origens nos antigos gregos, não se pode enxergar a cidadania moderna como uma continuação da cidadania grega. Definitivamente, o cidadão moderno não é mais o cidadão grego.22 Pelo menos três fatores TP

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são decisivos para pensar a separação existente entre a cidadania moderna e a cidadania grega. Primeiramente, a cidadania não é mais algo dado, construído de uma vez por todas, ao contrário, é uma história, que toma forma a partir das instituições de cada sociedade. Em segundo 19

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudosde-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf TU

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20

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.30.

21

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.14.

22

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.27.

787

lugar, a cidadania grega era uma categoria excludente, limitada por uma concepção que, atualmente, pode ser chamada de étnica, pois era concedida a partir da filiação. Os estrangeiros, os metecos, as mulheres e os escravos estavam excluídos dessa categoria. Por fim, uma diferença fundamental era que a sociedade grega estava fundada no princípio do bem comum, ou seja, o todo vinha antes da parte, ao passo que uma característica central da modernidade é a afirmação do princípio do indivíduo, isto é, a parte precede o todo. A fundação do corpo político moderno, portanto, utiliza da categoria cidadania para expressar a igualdade no campo do político, uma herança dos antigos gregos, mas também transforma essa noção e introduz uma ruptura fundamental, pois, doravante, a soberania repousa nos indivíduos enquanto parte do corpo de cidadãos. Ainda, a cidadania como princípio fundador da ordem política moderna também cumpria a função de garantir o “lien social”23. Em outras palavras, era a cidadania a medida do viver em TP

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comum. Nas sociedades modernas (e democráticas) vive-se junto não por partilhar uma religião ou uma crença, mas por ser cidadão de uma mesma comunidade política. É nesse sentido que, o estrangeiro, sendo excluído da cidadania, não participa dessa idéia de igualdade que rege o espaço público, que equaliza as pessoas enquanto cidadãs. Como inicialmente mencionado, a cidadania possui também um sentido jurídico. Com efeito, ela costuma ser primeiramente pensada como uma categoria jurídica do que do que como o princípio que funda a modernidade política e organiza a idéia de igualdade. Em seu sentido jurídico, a cidadania é um status a partir do qual os direitos são incorporados. Assim, o cidadão, longe de ser um indivíduo concreto, é um sujeito de direitos. A idéia moderna de cidadania como um “status” deve muito à conferência realizada por Marshall24, no final dos anos 40, intitulada TP

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“Cidadania, classe social e status”, que será abordada no próximo tópico. A partir desta breve exposição das duas noções de cidadania – como princípio fundador da modernidade política e como status que permite o acesso aos direitos – fica claro quais são as conseqüências da perda ou ausência da cidadania que acompanha o processo migratório. Por um lado a exclusão do campo da igualdade e por outro a falta de acesso aos direitos mais fundamentais.

4. Noção de cidadania moderna Ateremo-nos, neste tópico, à concepção moderna de cidadania, isto é, a cidadania compreendida sob os paradigmas da modernidade25. Não queremos, com isso, afirmar que não TP

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existiram manifestações pré-modernas de cidadania, muito pelo contrário, já que a origem desta 23

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, pp.14-32.

24

MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967. T

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25

Entende-se, por modernidade, o longo processo de secularização do mundo. Nas conhecidas palavras de Weber (2004), o desencantamento do mundo: quando as explicações transcendentes foram substituídas pela razão.

788

remonta à antiguidade greco-latina. Apenas a cidadania operava numa lógica diferente que não mais nos serve para pensar fenômenos tipicamente modernos, tais como a imigração internacional. O conceito de cidadania moderna deve muito ao conhecido ensaio de T. H. Marshall, intitulado “Cidadania e classe social”. Este foi realizado como parte de um conjunto de conferências dedicadas ao economista Alfred Marshall, publicado em sua versão completa na década de 50. A importância dos estudos de T. H. Marshall para pensar a cidadania moderna reflete no volume atual de citações e discussões a respeito da obra deste autor. De sorte que, pode-se dizer que o referido ensaio acabou por se tornar paradigmático e funciona como um ponto de partida para compreensão da cidadania moderna e sua história. T. H. Marshall toma como ponto de partida para escrever o seu ensaio (Cidadania e classe social) o artigo escrito por Alfred Marshall, intitulado “O futuro das classes trabalhadoras”. De acordo com este, seria possível obter certa igualdade na sociedade quando houvesse o progresso da classe operária. Partindo desta hipótese elaborada por Alfred Marshall, T. H. Marshall se propõe a repensar a relação entre essa igualdade, que, segundo ele, foi aperfeiçoada pelo status de cidadania, e as desigualdades decorrentes da existência de classes sociais26. TP

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Pode-se concluir, portanto, que um dos principais objetivos de Marshall em seu conhecido ensaio é avaliar o impacto produzido pela afirmação da cidadania na Inglaterra no que concerne às desigualdades de classes sociais. Marshall começa por descrever a evolução da cidadania. O sociólogo inglês divide o conceito de cidadania em três dimensões, ou elementos, que correspondem a sua afirmação histórica na Inglaterra. Sinteticamente, nas palavras do autor, (...) é possível, sem destorcer os fatos históricos, atribuir o período de formação da vida de cada um [elemento da cidadania]27 a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX. Estes períodos, é evidente, devem ser tratados com uma elasticidade razoável, e há algum entrelaçamento, especialmente entre os dois últimos28. TP

TP

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Marshall faz, portanto, uma divisão cronológica e lógica da evolução da cidadania. Cronologicamente, tem-se: direitos civis no século XVIII; direitos políticos no século XIX e direitos sociais no século XX. A lógica desse modelo se justifica pelo fato de terem sido os direitos civis de

26

BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y classe social, cuarenta años después in MARSHALL, T. H e BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y clase social. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires, Editorial Losada, 2004, p.89. 27

Colchetes introduzidos pela autora.

28

MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967, p.66. T

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liberdade que permitiram que os ingleses reivindicassem os direitos políticos29, assim como, foi o TP

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reconhecimento dos direitos políticos do proletariado que possibilitou a luta por direitos sociais. Como sublinha Bottomore, Marshall vê os êxitos dos direitos sociais como “derivados da obtenção de direitos políticos por parte da classe trabalhadora e outros grupos subordinados30”. Ou, como TP

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resume José Murilo de Carvalho31, a participação dos operários ingleses nas eleições fortaleceu o TP

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Partido dos Trabalhadores, que foi responsável pela implementação de boa parte dos direitos sociais. Essa divisão, todavia, padece de algumas críticas. Para além do fato, evidente por si, de ser uma divisão simplista – inclusive, o próprio Marshall faz questão de imprimir certa elasticidade aos séculos nos quais se consolidam os direitos – ela também não pode ser vista como um modelo universalmente válido, pois não se aplica indistintamente a todos os países. Como exemplo de países aos quais não se aplica este modelo, Tom Bottomore cita os Estados do leste Europeu que padeceram com a imposição de regimes stalinistas, nos quais, muitas vezes, existiam direitos sociais, mas não direitos civis e políticos. Se referindo aos países da Europa oriental, Bottomore32 afirma que, “a ampliação real dos direitos sociais (...) se viu TP

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acompanhada de uma grave restrição aos direitos civis e políticos, tendo seu ponto culminante na ditadura de Stalin (...)”. Da mesma forma, esse modelo inglês também não se aplica ao Brasil, que deu uma ênfase maior aos direitos sociais em relação aos demais. Ao contrário do que aconteceu na Inglaterra, no Brasil a dimensão social da cidadania precedeu as outras dimensões33. TP

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O modelo pensado por Marshall, porém, a despeito de ter sido elaborado tendo em vista uma situação particular, tem o mérito de ter definido a cidadania como um status. Em outras palavras, para além de traçar a evolução histórica da cidadania na Inglaterra, Marshall elabora aquela que é tida como a concepção mais influente do conceito de cidadania moderna. Senão, vejamos. Para Marshall, a cidadania é concebida em termos de um status universal de direitos atribuídos:

29

CARVALHO, José Murilo. Nação imaginária: memória, mitos e heróis in A crise do Estado-nação. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p.11.

30

BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y classe social, cuarenta años después in MARSHALL, T. H e BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y clase social. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires, Editorial Losada, 2004, p.93. 31

CARVALHO, José Murilo. Nação imaginária: memória, mitos e heróis in A crise do Estado-nação. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p.11.

32

BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y classe social, cuarenta años después in MARSHALL, T. H e BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y clase social. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires, Editorial Losada, 2004.p.101. 33

CARVALHO, José Murilo. Nação imaginária: memória, mitos e heróis in A crise do Estado-nação. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003, p.12.

790

A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida34. TP

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Da afirmação da cidadania como um “status de direitos adquiridos”, infere-se que a cidadania é uma “categoria sintética descritiva”35, isto é, não há uma definição prévia do seu TP

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conteúdo. Em outras palavras, ela é um status, e todos que o possuem são iguais em direitos e deveres, mas não há uma determinação de quais são esses direitos e deveres, que dependerá da evolução de cada sociedade. Dessa constatação decorre uma segunda observação: o alargamento da cidadania advém justamente da incorporação dos direitos que irão compor esse status. Assim, o acesso a direitos se dará sempre pela via da cidadania36. É dessa forma que, explica Marshall37, na modernidade, o TP

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“status diferencial”, vigente no feudalismo e associado à classe, função e família, “foi substituído pelo único status uniforme de cidadania que ofereceu o fundamento da igualdade”. A definição de cidadania como status que permite a aquisição de direitos consiste a essência da cidadania moderna, entendida como um percurso histórico de ampliação de direitos. Outra contribuição fundamental dada por Marshall ao conceito moderno de cidadania diz respeito à inclusão, neste conceito, da dimensão social. A importância que Marshall atribui aos direitos sociais como parte da cidadania tem que ver com o propósito principal de seu ensaio – pensar a relação entre cidadania e diminuição das desigualdades sociais – e com o contexto histórico e político de consolidação do Estado de bem estar social na Inglaterra do pós-Guerra. De acordo com Bottomore38 e com o próprio Marshall39, era possível observar na Inglaterra do final da TP

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década de 40 e início da década de 50 um movimento notável de ampliação e priorização dos direitos sociais. Foram criados serviços nacionais de saúde e educação, combatidas as políticas de educação privilegiada para uns poucos e incentivadas as medidas para a manutenção do emprego pleno. Ainda, como lembra Bottomore, esse movimento de introdução de direitos sociais que visavam combater as desigualdades sociais foi identificado por muitos autores, inclusive pelo próprio Marshall40, como uma marcha em direção ao socialismo. Era o “espírito da época” na TP

34

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MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967, p.76. T

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35

LAVALLE, Adrián Gurza. Cidadania, igualdade e diferença. Revista Lua Nova, nº 59, 2003.

36

LAVALLE, Adrián Gurza. Cidadania, igualdade e diferença. Revista Lua Nova, nº 59, 2003, pp. 77 e 78.

37

MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967, p.80. T

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38

BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y classe social, cuarenta años después in MARSHALL, T. H e BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y clase social. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires, Editorial Losada, 2004.p.93. 39

MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967, p.87-103. T

40

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MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967, p.88. T

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791

Inglaterra do final dos anos 40 e aparecia como uma tendência irresistível que muito influenciou no modo como Marshall apresentou a cidadania41. Isso fica muito claro na seguinte passagem TP

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42

retirada do ensaio de Marshall , TP

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O objetivo dos direitos sociais constitui ainda a redução das diferenças de classe, mas adquiriu um novo sentido. Não é mais a mera tentativa de eliminar o ônus evidente que representa a pobreza nos níveis mais baixos da sociedade. Assumiu o aspecto de ação modificando o padrão total da desigualdade social. Já não se contenta mais em elevar o nível do piso do porão do edifício social, deixando a superestrutura como se encontrava antes. Começou a remodelar o edifício inteiro e poderia até acabar transformando um arranha-céu num bangalô.

As contribuições de Marshall para construção do moderno conceito de cidadania são inegáveis. Hoje, porém, uma série de novas questões vem sendo suscitada sobre a cidadania. Atualmente, mais problemática que a dimensão social é a dimensão política da cidadania, sobretudo se considerarmos as novas demandas cidadãs, como no caso dos imigrantes. Com efeito, não é difícil justificar os direitos dos imigrantes de terem acesso as redes de proteção social (saúde, educação, segurança, trabalho etc.) do país em que residem. Isso pode, inclusive, ser verificado no Brasil. Já a dimensão política da cidadania, aquela que se relaciona com o pertencimento ao Estado e ao acesso aos direitos políticos, quando transposta para as novas reivindicações de cidadania por parte dos imigrantes, não é tão facilmente justificável.

5. Cidadania para os imigrantes internacionais: quais possibilidades? Como afirmamos acima, o acesso aos direitos civis e sociais por parte dos imigrantes não enseja hoje grandes problemas para ser justificado e fundamentado, em que pese a efetivação de tais direitos ainda deixe a desejar. Com efeito, o direito de todas as pessoas de gozarem dos direitos civis e políticos é justificado com base no princípio do indivíduo, segundo o qual homens e mulheres, enquanto seres humanos, possuem direitos fundamentais: A legislação que afirma a igualdade de direitos civis, econômicos e sociais repousa com efeito sobre a idéia fundamental e universal que, para além dos direitos dos cidadãos nascidos de sua participação a uma organização política particular, existem direitos do homem enquanto homem.43 TP

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Como bem observa Dominique Schnapper44, na maioria dos Estados contemporâneos, aos TP

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estrangeiros regularizados são reconhecidos os mesmos direitos civis, econômicos e sociais que aos nacionais. É o caso do Brasil. Os migrantes latino-americanos, cuja situação foi regularizada

41

BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y classe social, cuarenta años después in MARSHALL, T. H e BOTTOMORE, Tom. Ciudadanía y clase social. Trad. Antonio Bonanno. Buenos Aires, Editorial Losada, 2004.p.94. 42

MARSHALL, T.H. Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar. Editores, 1967, p.88. T

43

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.152.

44

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.151.

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792

pelo Acordo de Livre Residência Mercosul45, têm garantidos, pelo Estado brasileiro, a igualdade TP

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de direito civis46 e o acesso à direitos sociais47. TP

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A maioria dos constitucionalistas brasileiros, a exemplo de André Ramos Tavares48, TP

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também considera que o reconhecimento dos direitos fundamentais dos estrangeiros que se encontram no interior de um Estado, deriva não do pertencimento a este Estado, mas do dever assumido por ele assumido, como membro da comunidade internacional, de garantir e proteger os direitos humanos fundamentais que são devidos aos indivíduos pelos simples fato deles serem humanos. Já os direitos políticos dependem do princípio da cidadania, ou seja, pressupõem a existência do pertencimento a uma comunidade política. E, como lembra Butler49, apesar da TP

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existência de sérias discussões acerca do enfraquecimento do Estado-nação, a base do pertencimento continua sendo nacional. Exatamente por isso a cidadania aparece vinculada a nacionalidade: “Pressuposto básico do cidadão é o de que seja nacional do respectivo Estado”50. TP

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No Brasil, em regra, a cidadania se vincula a nacionalidade e é definida a partir do exercício de direitos políticos. Como afirma André Ramos Tavares, o cidadão é o nacional que reúne as condições necessárias para exercer os direitos políticos TP

51

. Os imigrantes, enquanto não PT

nacionais, isto é, enquanto estrangeiros, vivem uma situação ambígua, pois saem do Estado no qual eram reconhecidos enquanto cidadãos e tinham os seus direitos previstos, para adentrarem em um Estado onde não possuem a nacionalidade e, portanto, não são considerados cidadãos52. TP

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A dimensão política da cidadania é de fundamental importância. É através dela que se manifesta a vocação universal da cidadania. Os direitos políticos se traduzem, essencialmente, no direito de votar e ser votado. O voto pode ser definido como a concretização do direito ao sufrágio, que é o direito de participar do processo eleitoral53. Nas democracias modernas, a eleição é o TP

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45

Recente acordo firmado em 2009 denominado Acordo de Livre Residência MERCOSUL (Decreto n° 6.964/2009) e MERCOSUL, Chile e Bolívia (Decreto n° 6.975/2009). 46

O Acordo de Livre Residência MERCOSUL e MERCOSUL, Chile e Bolívia garante aos migrantes igualdade de direitos civis.

47 Alguns direitos sociais, no Brasil, são universalmente garantidos. O principal deles é o direito à saúde, assegurado pela Constituição Federal como direito de todos. De acordo com o art. 196 da Constituição Federal brasileira: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” 48

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva, 2010. p.297.

49

BUTLER, Judith; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Quién le canta al Estado-Nación? Paidós, Buenos Aires, 2009.

50

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva, 2010. p.784.

51

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva, 2010. p.784.

52

WALDMAN, Tatiana. O acesso à saúde e a imigração: um estudo de caso das imigrantes bolivianas na cidade de São Paulo. São Paulo, 2010. Disponível em: http://www.sistemasmart.com.br/andhep2010/trabalhosite/trabalhossite.asp?codigo=18 Acesso em: 22. 05. 2011. TU

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53

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo, Saraiva, 2010, p.807.

793

momento em que o cidadão, através do voto, escolhe os seus representantes que atuarão diretamente na organização da vida política. O voto, como lembra Schnapper54, “também é o símbolo do novo sagrado, aquele da TP

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sociedade política ela mesma, que assegura os laços sociais e o destino da coletividade”. Expressa a existência de um espaço político abstrato, no qual, diferentemente de toda experiência social real, os cidadãos são iguais uns aos outros. Essa igualdade se manifesta na fórmula: “um homem, uma voz, um voto”. Nesse sentido, votar é um ato que demonstra o pertencimento a uma comunidade de cidadãos regida pelo princípio da igualdade. O potencial universal da cidadania aparece exatamente na ampliação do direito ao voto. Ao passo que esse direito vai sendo reconhecido às parcelas da população antes dele excluídas, a cidadania vai se tornando potencialmente acessível à todos. Sabe-se que a história da cidadania moderna é a história de uma lenta aquisição da cidadania por parte dos diferentes grupos que dela estavam excluídos. Para Dominique Schnapper55, mesmo tendo sido um longo caminho e um lento processo, essa sucessão de TP

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reconhecimento progressivo da cidadania política mostra que o cidadão não é um indivíduo concreto, portanto, em princípio, qualquer pessoa pode se tornar um cidadão. Em outras palavras, ainda que o direito de votar não tenha sido inicialmente reconhecido para todos, ele comportava um potencial universal. É daí que se infere a vocação universal e integradora da cidadania. Isso significa, por fim, que, a princípio, a cidadania pode estar aberta a todas as pessoas. Para isso, basta eliminar as diversas formas de discriminação ainda existentes. Pode-se, contudo, enxergar por trás deste princípio de integração através da cidadania um princípio de exclusão dos não cidadãos. Como ressalta Schnapper56, “toda organização, TP

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política ou não, por definição, inclui uns e exclui outros”. O Estado moderno é fundado no princípio de inclusão dos cidadãos, e, consequentemente, exclusão de todos aqueles que não preenchem os requisitos para se tornar um cidadão. É nesse sentido que Sayad57 lembra que a exclusão que TP

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se encontra na base na nacionalidade é necessária para existência da própria nacionalidade, assim como a exclusão de determinado grupo da ordem política é necessária para existência da ordem política. Ainda assim, Schnapper defende que uma sociedade fundada no princípio da cidadania é mais aberta aos estrangeiros que outras formas de organização, como por exemplo, as sociedades teocráticas. Estas excluem determinados indivíduos por definição58. Já nos Estados TP

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54

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.141.

55

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.148.

56

SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.147.

57

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998, p.14.

58

Os rabinos, por exemplo, dificultam a admissão de pessoas na tradição religiosa judaica. Mas, mesmo não sendo aceitas pelos tribunais de rabinos, elas têm a possibilidade de fazer parte do Estado de Israel a partir da aquisição da cidadania. Vide: SCHNAPPER, Dominique. Qu’est-ce que la citoyenneté? Galimard, 2000, p.148

794

nacionais, há sempre a possibilidade de um estrangeiro se tornar nacional através da naturalização. Não implica em dizer, porém, que essa potencial abertura da cidadania exista de fato. E, quando existe, como no exemplo do Brasil, nem sempre propicia uma verdadeira igualdade, pois os naturalizados não gozam da mesma proteção que os natos e ainda sofrem com a restrição de alguns direitos. É a dependência que tem a cidadania política da nacionalidade que enseja as maiores dificuldades para se pensar uma cidadania plena para os imigrantes que não conseguem, ou não querem, se naturalizar. E não ter a cidadania política implica em não pertencer de direito ao Estado no qual se reside. As palavras de Hannah Arendt capturam a insegurança que essa situação provoca:59 TP

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Se um ser humano perde o seu status político, deve, de acordo com as implicações dos direitos inatos e inalienáveis do homem, enquadrar-se exatamente na situação que a declaração desses direitos gerais previa. Na realidade, o que acontece é o oposto. Parece que o homem que nada mais é que um homem perde todas as qualidades que possibilitam aos outros tratá-lo como semelhante.

Como então pensar a situação dos migrantes que residem em um Estado no qual não são cidadãos? Ou, como interroga Sayad60, como existir sem existir politicamente? “Como existir TP

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numa ordem sociopolítica que se chama nação – mesmo esta existência menor, acidental, não essencial, raquítica, mesquinha, mutilada que nós concedemos aos imigrantes – sem existir politicamente?”. Para Sayad, existir politicamente é existir como um cidadão numa ordem nacional. Ou, dito de outra forma, se o Estado nacional é formado por cidadãos, alguém que não goza desse status está excluído da existência política. Sendo o cidadão assim denominado porque pertence a uma comunidade nacional, Sayad61 questiona ainda, “de que serve a TP

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reivindicação da cidadania quando não se tem a nacionalidade?”

6. Considerações finais Apresentamos neste trabalho a migração internacional como fenômeno contemporâneo que vem se desenvolvendo e se generalizando em um mundo cada vez mais globalizado e interconectado. Os efeitos da globalização nos fluxos imigratórios são contraditórios. Ao passo que ela incentiva os deslocamentos devido a inúmeros fatores, como a diminuição das distâncias e a criação de meios de transportes com preços mais acessíveis, ela também estimula o surgimento de barreiras. Da mesma maneira, ao passo que os crescentes deslocamentos de

59

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

60

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998, p.13.

61

SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo, Edusp, 1998, p.17.

795

pessoas desafiam a soberania dos Estados, também provocam o enrijecimento das fronteiras e das políticas migratórias. Estes conflitos também são verificados na própria figura do migrante, que é obrigado a conviver com o status de emigrante, aquele que deixa o seu país de origem, e de imigrante, um desconhecido que adentra em um Estado ao qual não pertence. Estes deslocamentos são realizados fora de uma esfera de proteção cidadã, pois a cidadania ainda se apresenta fortemente vinculada ao pertencimento nacional. Nesse sentido, colocamos como um desafio pensar as possibilidades de estender a cidadania completa, em sua dimensão civil, social e política, aos imigrantes internacionais. Concluímos que as dimensões civil e social da cidadania ensejam menos problemas, no que concerne a justificativa para a sua ampliação, do que a dimensão política. Esta, por se apresentar como um derivado na nacionalidade, ainda encontra dificuldades para ser reconhecida para os imigrantes não nacionais. Buscamos, por fim, mostrar a importância advinda da cidadania política e a necessidade de repensá-la para torná-la mais acessível e mais compatível com as novas reivindicações advindas das pessoas que se encontram na situação de imigrantes estrangeiros. Com efeito, essas reflexões estão embasadas em autores que, a exemplo de Schnnaper, Sayad e Arendt, acreditam na importância e na autonomia do domínio político. Contudo, outras elaborações podem ser feitas no que concerne ao problema da ausência de cidadania para os migrantes. As reflexões sobre o multiculturalismo, a cidadania multicultural e os direitos transnacionais, por um lado, e as novas concepções de cidadania formuladas a partir da experiência da comunidade européia, por outro lado, contestam os estreitos laços que vinculam a cidadania à nacionalidade e permitem repensar as possibilidades de proteção cidadã para os imigrantes. Neste trabalho, porém, o objetivo foi problematizar a ausência da cidadania para os imigrantes a partir de concepções teóricas que não ultrapassam o marco nacional e, portanto, não recorrem ao multiculturalismo e a soluções transnacionais. Acredita-se que repensar os termos deste debate é de extrema importância, porém pontuá-los também o é. Foi com intuito de esclarecer e de colocar as premissas para um debate mais prolongado que se desenvolveu este artigo.

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Adolescentes em Conflito com a Lei do Município de Arapiraca: sujeitos de uma Socialização ou Ressocialização?

Tathina Braga1 TP

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Resumo

Abstract

O presente trabalho busca trazer à baila a situação dos adolescentes em conflito com a lei frente à ressocialização objetivada pelas medidas socioeducativas, no município de Arapiraca-AL. Foi utilizada como base teórica a Teoria das Representações Sociais, a qual permitiu verificar de que forma se efetiva a ressocialização através da percepção dos próprios sujeitos das medidas socioeducativas. Para esta pesquisa, de base qualitativa, utilizou-se, a princípio, uma análise bibliográfica de estudos anteriores a respeito do tema, através de livros e periódicos. Para a efetivação da pesquisa de campo foi realizado grupo focal em dois encontros, na Delegacia do Adolescente Infrator. A criminologia crítica moderna faz importante observação a partir da teoria da (res)socialização, esta afirma que tais indivíduos sequer possuem uma “inscrição” nas instituições sociais, devendo-se falar na verdade em uma necessidade de socialização dos mesmos (SALES,2009). A partir de tal olhar, posterior a analise dos resultados, onde se utilizou a análise por categoria temática, pode-se constatar que os adolescentes inseridos nas medidas socioeducativas em questão sequer foram socializados, ou em alguns casos esta é precária, tornando inviável pensar simplesmente na submissão dos sujeitos aos instrumentos jurídicos coercitivos, ou seja, precisase pensar na efetivação dos direitos fundamentais desses adolescentes, uma vez que crianças e adolescentes são regidos por um sistema jurídico que afirma serem estes sujeitos não só de deveres, mas direitos também.

The present study attempts to bring up the situation of adolescents in conflict with the law and the rehabilitation as an objective of the medidas socioeducativas in Arapiraca-AL town. Was used as a theoric basis the social representations Theory, which made possible verify how achieves the rehabilitation through the perception of the subjects of the medidas socioeducativas. For this research, a qualitative basis, it was used at first, a literature review of previous studies on the subject through books and periodicals. For the realization of the research was conducted in a focus in two group meetings, at the Delegacia do Adolescente Infrator. The modern critical criminology makes an important observation from the theory of (re) socialization, it says that such individuals do not even have a "registration" in social institutions, and actually we should talk about a necessity for socialization of them (SALES,2009). From such point of view, after analyzing the results, which we used the analysis by subject category, one can see that the Adolescents in medidas socioeducativas in were not even socialized, or in some cases this is precariously, making it impractical to think just in the submission of the subjects by the legal instruments of coercion, in other words, we need to think about the enforcement of fundamental rights of adolescents, since adolescents are governed by a legal system that says these guys are not only obligations but also rights.

Palavras-Chave: Adolescentes.

Ressocialização;

Socialização;

T

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Keywords: Rehabilitation; socialization; Adolescents. T

T

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1

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente cursa Direito na Universidade Estadual de Alagoas. [email protected].

798

1. Introdução O presente artigo expõe estudo acerca das representações sociais de adolescentes em conflito com a lei em um município alagoano. Este estudo foi realizado para a produção de trabalho de conclusão de curso de Psicologia. Na presente produção científica objetivou-se trazer os resultados da pesquisa com um foco em sociologia e direitos humanos, uma vez que são áreas convergentes ao tema em estudo, pois são inegáveis os aspectos sociológicos intrínsecos no processo de criminalização, bem como na dita ressocialização. Tal temática está também inserida a aspectos dos direitos humanos, já que no processo de ressocialização estes possuem um papel fundamental. O tema aqui trazido se mostra complexo por ser assunto que tem início no Brasil no século XX, quando o “menor infrator” passou a ser categoria jurídica, somado a isto, verifica-se também ser assunto polêmico para a sociedade contemporânea, uma vez que por clamor social o adolescente em conflito com a lei é marginalizado, ignorando que o mesmo seja categoria do Estatuto da Criança e do Adolescente, é visto como verdadeiro vilão social. Em contrapartida a um preconceito estabelecido historicamente na sociedade, o ECA inova com a nova doutrina da Proteção Integral. Desta forma, o paradigma legal atual, que rege a situação de adolescentes e crianças, brinda a estas categorias com uma gama de garantias e direitos nunca antes vislumbrados no sistema jurídico brasileiro, configurando-se até mesmo como modelo internacional pelo avanço de seu arcabouço legal. Cabe indagar de que forma este conteúdo teórico-jurídico se dá no plano prático, se há a efetivação plena de tais prerrogativas no sistema jurídico brasileiro. O presente trabalho surge a partir de tal questionamento, acreditando-se que a melhor maneira de verificar a execução das medidas socioeducativas em um município do agreste alagoano é através dos principais sujeitos envolvidos neste paradigma. A partir das representações sociais de adolescentes em conflito com a lei, bem como através de uma análise documental prévia, constatar-se-á os resultados trazidos com as práticas nas medidas socioeducativas. Inicialmente será apresentado um estudo bibliográfico realizado para melhor compreensão da categoria em análise: o adolescente em conflito com a lei, como surgiu tal categoria, bem como os preconceitos construídos contra estes pela sociedade poderão ser compreendidos a partir da análise bibliográfica acerca da história dos documentos legais aceca destes. Posteriormente os adolescentes em conflito com a lei são trazidos como sujeitos de direitos em um novo panorama legal. Como terceira etapa este artigo apresenta a teoria utilizada para este estudo : Teoria das Representações Sociais, que é apresentada junto a metodologia utilizada na pesquisa. Tal teoria propicia a explicação de diferentes fenômenos sociais que se apresentam no discurso público, o 799

qual envolve articulação das dimensões da cognição, emoção, semantização e apropriação de mundo ligadas ao cotidiano do sujeito, neste caso o adolescente em conflito com a lei. Em sequência há a descrição da pesquisa e apresentação dos resultados da pesquisa, onde foi realizada uma análise das falas dos adolescentes a partir de uma divisão por categorias temáticas: socialização, ressocialização no plano da realidade e no plano imaginário, justiça e medidas socioeducativas. Ao fim deste trabalho são apresentadas as considerações finais.

2. Adolescente em conflito com a lei: construção de um inimigo social a partir do Código de Menores A sociedade ao pensar a violência hoje vincula simplesmente ao crime o criminoso e o sentimento de insegurança, excluindo-se as relações que são promotoras da violência. Os paradigmas modernos ainda creem na ideia lombrosiana2 do criminoso nato, rotulando categorias TP

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identitária como “criminosos em potencial” (XAVIER, 2008). A ideia de desrespeito a lei é atribuída a uma categoria específica: justamente aquela que não possui inscrição efetivada como sujeito de direitos nos serviços públicos, aquele que está à margem da sociedade. Esses sujeitos são rotineiramente taxados com denominações estigmatizantes como delinquentes, pivetes, trombadinhas. Porém, olvida-se o que eles realmente são: adolescentes (VOLPI, 2005). A questão exposta vai além de um problema linguístico, observa-se que a imprecisão quanto a denominação, a não atribuição identitária, demonstra um descaso da sociedade perante a esta categoria, que se configura como um inimigo social para grande parte da população (VOLPI, 2005). Os adolescentes que cometem infração são considerados socialmente como uma categoria a ser banida do convívio social, como forma de proteger e limpar a sociedade. Neste contexto a população fica exposta a um amontoado de informações, que nem sempre são verídicas e a mídia contribui neste processo com seus programas sensacionalistas, transformando a violência em um espetáculo, estigmatizando categorias, criminalizando a pobreza (XAVIER, 2008). A ciência possui importante papel neste processo de estigmatização e enquadramento, pois tem a função de confirmar para a sociedade tal processo de criminalização. Desde o século passado a ciência diante de tal demanda social surge como ratificadora, enquadrando adolescentes a uma categoria identitária através de sua classe social ou comportamento.

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2 T

Cesare Lombroso pertenceu a Escola Positiva de criminologia do século IXX.

800

O Código de Menores, de 1927, utilizou o pensamento científico como fonte de efetivação de suas normas, onde a ciência afirmava que a rua seria “a grande escola do mal”, onde estaria os menores, a infância perigosa, a que já delinquiu e por outro lado haveria também a infância em perigo, que seria o pobre convivendo com esses elementos criminosos. Ressaltando, desta forma a criminalização do espaço público e a virtuosidade do espaço privado (COIMBRA, 2001). O Código pretérito, retratando bem o contexto de sua época, em atendimento a uma sociedade burguesa, trouxe um sistema de normas repressivas destinadas eminentemente, aos considerados “trombadinhas”, ou seja, aquele que não se enquadra ao papel de produção e qualificação profissional pelo qual o adolescente e o infante devem passar para posteriormente se inserir nas redes do mercado. O termo “menor” se destinava essencialmente a este determinado seguimento: o pobre. Pois neste período havia uma preocupação eminente com a infância perigosa, para a sociedade uma ameaça constante (COIMBRA, 2001). O referido código menorista contribuiu para a formação do preconceito em relação aos adolescentes infratores (e não “menores”), uma vez que não havia diferenciação entre “menor” desvalido e “menor” delinquente. Desta forma, buscava-se tratar um delinquente e não atender um adolescente que transgrediu a norma. No panorama jurídico atual há uma distinção entre infrator ocasional e delinquente habitual: Foucault (1996, apud VOLPI, 2005), usa a denominação infrator para se referir àquele que infringiu às normas estabelecidas, enquanto delinquente pela condição a que o sistema submete o indivíduo, estigmatizando-o e controlando-o formal ou informalmente, inclusive após ter cumprido sua pena. (p. 15)

O problema do comportamento desviante se dá como um produto da construção social. Neste panorama fazem parte: o sujeito que comete a ação desviante, a norma que sanciona, a reação social e o controle social. A ação cometida ganha significado por parte do indivíduo e do senso comum que a percebe, fazendo com que o sujeito interiorize um conceito de si como desviante, em consonância com a expectativa social (JOST, 2006). Neste sentido a sociedade despreza as razões da prática infracional e constroem suas explicações para justificar as ações, bem como tratam com descrédito as políticas públicas preventivas, somente se preocupando com a sanção a ser imposta. Ao analisar historicamente, pode-se concluir que tal discriminação social é reflexo de um código passado, instituído com base em um discurso científico, se torna, então, uma tarefa complexa desconstituir tal construção história que data cerca de 100 anos. No primeiro Código de Menores, que foi promulgado em 1927, conhecido como código Mello Mattos, havia duas categorias específicas tratadas como correlatas: menores abandonados e os delinquentes, sendo os primeiros considerados como aqueles que não tinham habitação certa e os pais ou tutor não tinham capacidade de cumprir seus deveres para com o filho, eram tidos como vadios, mendigos e libertinos e os deliquentes eram aqueles que cometiam alguma 801

infração, porém entre as duas categorias não havia uma distinção quanto ao tratamento dispensado a estes, uma vez que ambos estavam sujeitos, por exemplo, a serem internados em asilo ou orfanato (SHECAIRA, 2008). Percebe-se que o código anterior estava destinado a uma classe social específica, àqueles que estavam à margem da sociedade, funcionando o panorama legal destinado a criança e ao adolescente como normas sancionadoras, com o intuito de apenas retirar esta camada da população do convívio social. O Código de Menores não se destinava a todas as crianças e adolescentes, veio apenas disciplinar a situação daqueles considerados em situação irregular. Podendo-se interpretar que esses em situação irregular estivessem à margem da categoria adolescente ou criança.

3. Estatuto da Criança e do Adolescente: novo paradigma e o tratamento do adolescente em conflito com a lei no mesmo A partir da Constituição Cidadã de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente e Convenção Internacional da Criança e do Adolescente, surge uma nova situação no panorama jurídico brasileiro: Doutrina de Proteção Integral, por entender que Estado e sociedade são obrigados a propiciar a todas as crianças e adolescentes o respeito a seus direitos fundamentais. Diante deste novo panorama legal, a criança e o adolescente são sujeitos de direitos, pessoas em desenvolvimento e destinatários de proteção integral. A condição de pessoa em desenvolvimento dá ao Estado e à família a missão de proteger e garantir a efetivação do conjunto de direitos. Tal condição é fundamento a que a garantia de novos direitos se incorporam ao patrimônio das crianças e adolescentes. Neste sentido, a Constituição de 1988, em mudança ao antigo paradigma, suprime a discricionariedade que tinha a justiça em disciplinar regras com relação a esses sujeitos, havendo uma simplificação de procedimentos, restringindo-se o poder do juiz de emitir normas à regulamentação de permanência de crianças em locais de diversão, desacompanhadas (PORTO, 1999). Dever-se-á sempre atentar ao Princípio do Melhor Interesse do Adolescente, não importa em que condições este esteja. Desta forma, devem os pais, Estado e sociedade, nos grupos e instituições responsáveis promover a proteção integral destes sujeitos. Porém, não se deve entender que por necessitarem de máxima proteção também não sejam passíveis de uma responsabilização, ocorre que esta tem limites, uma vez que são pessoas em desenvolvimento (NOGUEIRA NETO, 1999). Diante de um fato delitivo a sociedade clama por justiça, como se esta dispusesse de uma fórmula mágica para proteger os cidadãos. De fato, a segurança pública é um direito de todo cidadão, porém não se pode ferir a garantia de proteção daqueles que ainda se encontram em situação de desenvolvimento moral, físico e psíquico, independente da situação em que se 802

encontram. Por isso, esses adolescentes irão sim ser responsabilizados por seus atos, tendo-se as medidas socioeducativas como resposta penal restritiva de direitos, porém estas devem ser reduzidas ao mínimo e garantir a aplicabilidade de pressupostos pedagógicos (SHECAIRA, 2006). O adolescente que comete ato infracional não se submete ao Código Penal Brasileiro, e sim segue os procedimentos previstos no ECA, uma vez que é categoria deste pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Desta forma, o adolescente é considerado inimputável para código penal brasileiro, ou seja, incapaz de responder conforme as regras previstas no código por sua conduta delituosa (SHECAIRA, 2006). Os adolescentes em conflito com a lei correspondem a uma categoria específica, mas antes disso, quanto categoria sociológica, não se distingue de grande parte da população brasileira, posto que são submetidos a uma gama de violação de seus direitos fundamentais. Neste sentido, este sujeito necessita de ações preventivas e inclusivas (SPOSATO, 2004). A convenção Internacional sobre Diretos da Criança passou a reger o tema de forma que os Estados asseguraram, no: Art. 40 Que não se alegue que nenhuma criança tenha infringido as leis penais, nem se acuse ou declare culpada nenhuma criança de ter infringido essas leis, por atos ou omissões que não eram proibidos pela legislação nacional ou pelo direito internacional no momento em que foram cometidos. P

Tendo em vista os dispositivos legais no panorama internacional, no que diz respeito a criança e o adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente passa a adotar a nomenclatura ato infracional em substituição a crime ou contravenção, e a descreve como: “Art. 103. Considerase ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.” Percebe-se, então, que há resquícios do Direito Penal nas regras de interpretação do ECA (SHECAIRA, 2008). As medidas socioeducativas têm como principal objetivo afastar dos adolescentes uma rotulação e romper com a Doutrina de Situação Irregular, utilizando-se de critério bio-psicológicos para definir a que faixa etária se aplicam as medidas. Através deste novo paradigma há uma supressão da antiga conotação dada a esta categoria: “menores”. Os quais eram os filhos da pobreza, carentes e infratores (PORTO, 1999). As medidas socioeducativas não representam simplesmente um sistema repressivopunitivo, mas deve atender a princípios pedagógicos. Pois tendo em vista o intuito da ressocialização, devem ser resguardados direitos fundamentais destes, para que possam ser reinseridos na sociedade (DEL-CAMPO & OLIVEIRA, 2005). Caso seja apurado mediante o devido processo legal que o adolescente é responsável pelo ato, então será aplicada uma das medidas socioeducativas previstas pelo ECA: Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: 803

I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

As medidas socioeducativas apresentadas devem ser aplicadas conforme características da infração, circunstâncias sociofamiliar e disponibilidade de programas e serviços em nível municipal, regional e estadual. As mesmas devem prezar por aspectos educativos, como previsto no princípio da proteção integral, e acesso à formação e informação. Na aplicação de tais medidas deverá envolver a família e comunidade, possibilitando ao adolescente a execução de atividades sociais e junto a essas esferas (VOLPI, 2005). Em se tratando da execução das medidas consiste em um conjunto de ações sistemáticas, continuadas e descentralizadas, visando o retorno ao convívio familiar e comunitário e inclusão social dos adolescentes. Para tal feito é necessário uma integralização operacional de governos estaduais e municipais (SPOSATO, 2004) A medida de internação deverá ser executada em unidades descentralizadas, conforme a demanda de cada região, correspondendo a uma Vara Especializada Regional da Infância e Juventude. Em se tratando da medida de semiliberdade, o Estado é responsável pela organização de casas nos municípios. Já referente à medida de liberdade assistida o governo estadual dará apoio técnico e financeiro para a execução desta medida no município, ocorrendo da mesma forma com a medida de prestação de serviço à comunidade (SPOSATO, 2004) Os preceitos estatutários são inovadores e garantistas, porém é preocupante que as diretrizes estabelecidas não consigam refletir as intenções de tal parâmetro legal, bem como interpretação escusas levem o adolescente a um estado de exclusão ainda maior. Caso contrário estar-se-á garantindo a existência dos futuros frequentadores do sistema prisional brasileiro (ROCHA, 2006). Faz-se necessário, portanto, criar mecanismos de aplicação das medidas socioeducativas, onde seja de fato efetivado um programa pedagógico, primando pela ressocialização dos mesmos.

4. Conhecendo os adolescentes em conflito com a lei de um município do agreste alagoano Este trabalho tem como pressuposto metodológico a pesquisa de base qualitativa. A qual, segundo Minayo (2002), responde a questões particulares, que não podem ser quantificadas, bem como em casos em que se necessita compreender valores culturais e representações de determinado grupo sobre temas específicos, que é o caso deste trabalho.

804

A Teoria das Representações Sociais, a qual é abarcada na pesquisa tem como prerrogativa que o conhecimento é um conjunto coletivamente compartilhado de crenças, imagens, metáforas e símbolos em um grupo, comunidade, sociedade ou cultura. Entende-se representações sociais como um conteúdo mental estruturado o qual possui como conteúdo fenômenos sociais relevantes, que tomam forma de imagens ou metáforas, os quais são conscientemente compartilhados com outros membros de um grupo social (WAGNER, 2001). É incongruente pensar representações sociais e não ligar diretamente a um grupo ou comunidade, pois a representação social, segundo Wagner (2001), só é possível ocorrer em grupos e sociedades onde há um discurso, compartilhado ou divergente. Para ocorrer tal interação é necessário que o grupo não tenha construções ideológicas rígidas, como grupos éticos ortodoxos e tradicionais. A coleta de dados se deu em um grupo específico: os adolescentes que cometeram ato infracional em um município do Agreste alagoano. A pesquisa consiste em compreender as representações sociais que esses sujeitos produzem acerca das medidas socioeducativas. Podese pressupor que os indivíduos se sentem pertencentes ao grupo, tendo em vista que convivem em uma mesma realidade e a partir dela constituíram algum conhecimento. Pretendeu-se realizar com o grupo, valorizando a abordagem qualitativa, discussões embasadas no contexto no qual os indivíduos convivem. Tal instrumento metodológico tem como objetivo conhecer as opiniões, relevância e valores dos membros do grupo. Para que tal anseio fosse alcançado, fez-se necessário a presença de um facilitador, tornando o grupo focal. Deve-se ressaltar que tal fato não implica em uma indução na pesquisa para as próprias relevâncias do pesquisador, mas uma forma de os participantes do grupo trazerem algo sobre uma temática (MINAYO, 1998). O grupo focal, quanto estratégia metodológica, embasado na teoria das representações sociais, permite, segundo Banchs (2005), conhecer conteúdos discursivos em torno dos quais se estruturam as representações de um objeto, como também estudar processos sociais de construção das representações. A abordagem da análise realizada a partir dos dados coletados no grupo é a análise do conteúdo. Após possuir os dados, estes foram revistos e selecionados. Esta pesquisa a análise por categoria temática como base para o processo analítico dos dados, porém, a forma como se dará tal processo classificatório está diretamente ligado ao caráter do material colhido. Infere-se, assim, que não só o processo de categorização, mas todo o processo metodológico necessita de uma base sistemática para melhor nortear o pesquisador, porém, os aspectos metodológicos da pesquisa dependem muito mais das condições da coleta de dados em si, bem como das informações colhidas.

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4.1 Compreendendo as representações sociais dos Adolescentes Os sujeitos que participam da pesquisa são adolescentes em conflito com a lei que se encontram na Delegacia do Adolescente Infrator de um município do agreste alagoano. Apesar do objetivo da pesquisa ser compreender como adolescentes em conflito com a lei representam socialmente as medidas socioeducativas de um município do agreste alagoano, sabe-se que estes ainda não foram, através de uma sentença, destinados a uma medida socioeducativa. Não foi possível realizar a pesquisa com adolescentes que por sentença estão inseridos em uma medida socioeducativa, visto que o município, mais especificamente o Centro de Referência Especializado em Assistência Social da região, o qual é responsável pela aplicabilidade da medida de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço à Comunidade, não autorizou a realização desta pesquisa no espaço. Desta forma, viu-se a Delegacia do Adolescente Infrator de um município do agreste alagoano como meio possível de realização da pesquisa, pois em uma prévia coleta de dados, constatou-se a existência de adolescentes que já cumpriram medida socioeducativa no local. Foram realizados dois encontros com um grupo composto por cinco a oito adolescentes, a depender de quantos meninos estiverem no local. Os encontros aconteceram em uma única semana, pois eles não devem permanecer por muito tempo na delegacia. Para viabilizar a análise na pesquisa, realizou-se, inicialmente uma coleta documental, onde se buscou dados acerca da execução das medidas socioeducativas no estado de Alagoas, para melhor compreender a estruturação destas no estado. Posteriormente, buscou-se identificar em uma delegacia do adolescente infrator de um município do agreste alagoano os possíveis sujeitos da pesquisa. A partir deste levantamento foi possível verificar a infração cometida, classe social, filiação e idade dos adolescentes. E em seguida houve um contato com as mães desses adolescentes na delegacia, as quais foram levar alimentação e artigos de necessidade pessoal aos mesmos. Neste momento foi explicada a pesquisa a elas, ao mesmo tempo em que estas autorizaram a realização da coleta de dados com seus filhos, após de assinatura do Termo Consentimento Livre e Esclarecimento. Em um último momento foram realizados dois encontros para coleta de dados, onde se utilizou o grupo focal como instrumento. Este processo ocorreu na delegacia, mais especificamente, no pátio, na presença da autoridade policial e dos demais adolescentes. Percebeu-se a presença dos colegas dentre os fatores negativos na coleta de dados, visto que houve interrupções por parte destes no grupo, ao mesmo tempo em que os sujeitos da pesquisa em alguns momentos não interagiam, por terem a atenção centrada nos colegas fora do grupo. Porém em análise dos dados coletados, constatou-se não ter havido prejuízos que inviabilizasse a pesquisa.

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Na fase de coleta documental da pesquisa foi possível verificar que no estado de Alagoas a medida de internação é realizada apenas em Maceió na Unidade de Internação Masculina do complexo Humberto Mendes – UIM, que comporta atualmente 50 jovens e adolescentes em conflito com a Lei. A pesquisa tem como objetivo abranger apenas um município do agreste alagoano, uma vez que devido a política de municipalização do ECA, acreditou-se encontrar a execução de todas as medidas no referido município, o que não aconteceu. Os adolescentes que se encontram na Delegacia ainda aguardam julgamento, uma vez que o ECA disciplina que em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça: “Art. 108. A internação, antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias.” Porém, se faz necessário atentar para a seguinte previsão do Estatuto : § 2º Sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos e com instalações apropriadas, não podendo ultrapassar o prazo máximo de cinco dias, sob pena de responsabilidade.

A partir de tal pressuposto, compreende-se que o adolescente, mesmo em internação por ato em flagrante, ou seja, antes da sentença, deverá ficar em instalações apropriadas, que entende o Estatuto serem estas estabelecimento educacional, onde devem ser aplicadas obrigatoriamente atividades pedagógicas, havendo separação por idade, compleição física e gravidade da infração (BRASIL, 1999). Foi constatado em fase anterior a realização dos grupos, que todos os adolescentes que se encontravam na delegacia, permaneciam já há mais de dez dias, infringindo, assim, a previsão do panorama legal. Fere ainda o princípio estatutário do respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. A permanência desses adolescentes por tal período na delegacia decorreu pela impossibilidade de transferência dos adolescentes a Unidade de Internação em Maceió, devido à greve em que neste período a Polícia Civil do estado de Alagoas se encontrava. Admitiram os agentes policiais ser inapropriado a repartição policial para permanência dos adolescentes durante aquele período, porém, compreendeu-se os mesmos como inaptos para mudança de tal realidade. É necessário ressaltar que as instalações da Delegacia do Adolescente Infrator de um município do agreste alagoano estão longe de se enquadrar ao requisito de estabelecimento educacional, uma vez que não são realizadas atividades pedagógicas com os mesmos, ou se quer há qualquer alusão a algo ressocializador. O local em que se encontram os adolescentes é, diferente do que rege o Estatuto, um estabelecimento nos moldes de prisão. A coleta de dados foi realizada em um grupo focal com cinco adolescentes do sexo masculino, os quais possuem entre quinze e dezessete anos, durando a permanência destes 807

entre 12 a 38 dias na delegacia do Adolescente Infrator em um município do agreste alagoano. Todos os adolescentes que encontravam-se na delegacia pertencem a classe média baixa. Após a transcrição dos dados coletados e com base na teoria das representações sociais, foi possível construir quatro categorias e uma subcategoria que se apresenta a seguir: Socialização, Ressocialização no plano da realidade, Ressocialização no plano ideal e Justiça, sendo subcategoria desta última as medidas socioeducativas.

4.1.1 Socialização No processo de socialização os indivíduos são direcionados a padrões sociais, os quais são referência para o indivíduo. É a partir da inserção dos sujeitos aos grupos sociais primários, como a família, escola e igreja que irão desenvolver seus primeiros processos de subjetivação e serem integrados a sociedade. Admitindo estar a adolescência intrincada na socialização primária, onde ainda criam-se e são estabelecidos laços na escola e família, em uma primeira ordem. Ozella (2003), neste contexto traz importante observação ao afirmar que a adolescência é constituída socialmente a partir de necessidades sociais e econômicas dos grupos, sendo suas características constituídas em um processo. Durante a realização da pesquisa em campo com o grupo focal, com os cinco meninos na delegacia, surgiu o tema acerca da vivência dos adolescentes anterior a prática de ato infracional. Compreendendo ser tal vivência, a partir da compreensão de socialização, parte do processo de socialização dos adolescentes. Percebeu-se que para alguns deles a própria socialização não havia sido efetivada em sua totalidade, tendo em vista que dois deles não possuíam matrícula escolar, um deles já havia evadido a cerca de um ano; o outro aos 17 anos só havia chegado até a 2ª série do fundamental (equivalente ao 3º ano do ensino fundamental atualmente), e segundo ele não sabe escrever. Apenas um dentre os cinco meninos estava em nível escolar adequado a idade, anterior a infração. A respeito da evasão escolar um deles afirma que foi expulso da escola porque “bagunçava”, “batia nos meninos”, quando questionado a respeito respondeu que era “só pra tá na gang do mal”. Os grupos sociais aos quais se inserem o adolescente é aquele no qual é aceito, onde há um sentimento de pertencimento. Para Levisky (2001) o grupo representa para o adolescente o apoio que necessitam para a experiência social de ser, o desafio para crescimento psicológico e emancipação da influência familiar.

Compreende-se também ser a escola um

importante aliado neste processo de busca de identidade, como construção do ser social no mundo. Neste sentido, é necessário perceber de que forma as políticas educacionais estão sendo empregadas, ou mesmo a postura pedagógica, uma vez que a expulsão deste adolescente foi uma medida para a resolução de um grupo considerado problema.

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Ao analisar os diversos meios e relações sociais, os quais os adolescentes haviam se inserido antes de ingressarem à delegacia, percebe-se que os processos de socialização desses adolescentes são semelhantes, corroborando a tese da criminologia crítica, que afirma que a clientela do sistema penal foi sempre a dos “des” dessocializados, desintegrados (XAVIER, 2008). Quando surgiu no grupo a temática sobre motivação para o ato infracional, um membro, referindo-se ao ato infracional como erro, afirmou: “Esse erro? Por causa do dinheiro, eu gosto muito de dinheiro. Trabalhava, mas eu deixei, trabalhar pra família num presta não” (C.H. 17 anos) Portanto, percebe-se que houve uma inclusão destes adolescentes em meios sociais, houve uma oferta de emprego, porém há de se questionar tal inserção. Sawaia (1999) conceitua esta como uma inclusão perversa, onde há um caráter ilusório da inclusão, todos estão incluídos no circuito das atividades econômicas, porém nem sempre de um modo decente ou digno. O sujeito se insere economicamente, mas na esfera social e política apresenta-se ausente. A díade trabalho/remuneração a partir da família é precária, pois alguns dos pais estão desempregados ou não recebem mais que um salário, enquanto os adolescentes estão inseridos no mercado de trabalho, partindo da concepção de aprendizes, mesmo que alguns deles se sintam satisfeitos com o emprego que eles e/ou seus pais têm, não é o suficiente muitas vezes para o suprimento de necessidades básicas. Tal assertiva se ratifica quando se verifica que quatro dos adolescentes participantes do grupo cometeram ato infracional contra patrimônio. Sawaia (1999) observa que há uma contraditoriedade daquele que é perversamente incluído, pois este, por vezes, não se percebe como excluído. Pois inclui-se no campo econômico, mesmo que de forma deficitária, e exclui-se no campo político e dos direitos. Ao analisar os aspectos aqui trazidos é notória a necessidade de efetivação de políticas públicas que possibilitem o processo de socialização para tais adolescentes, que o Estado não se lembre de medidas de inclusão apenas quando o adolescente comete um ato infracional, ou seja, quando se torna elemento de perigo para a sociedade. Percebe-se que as medidas socioeducativas se tornam instrumentos coercitivos de controle social, direcionando-se ao pobre, estigmatizadoras, tendo em vista que foi constatado na coleta de dados que havia 15 adolescentes na delegacia do adolescente infrator e todos pertencentes a uma classe econômica desfavorecida.

4.1.2 Ressocialização no plano da realidade A respeito da ressocialização, os adolescentes não sabiam de que se tratava o assunto, como é possível perceber na seguinte fala: “Resso...? o que? Sei não....” (C.H., 17 anos). Enquanto todos os outros seguiram com o mesmo posicionamento.

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A violência também esteve presente no relato dos adolescentes, sendo o castigo instrumento de “reabilitação” para eles. A respeito do assunto reclamou um dos meninos: “Botar o cara preso pra levar bolo na mão, apanhando. O cara num faz nada e leva bolo.” (E.A., 16 anos), outro complementa: “É... dá tapa... E ai as policia quando pega o cara, óia me botaram num tonel de água que eu quase morro sufocado, polícia da peste” e continuou “O cara pede pra pegar agua eles num pegam...Num toma banho, nem nada...Os poliça quer tirar lomba, os poliça...” (C.H., 17 anos). Como já mencionado o estatuto preconiza que tratamento dispensado aos adolescentes deve seguir princípios pedagógicos, garantir que haja um processo de (res) socialização. Porém o que se constata nas falas é exatamente o contrário, um tratamento que se quer é digno a um adulto, menos ainda para uma pessoa em condição peculiar de desenvolvimento, afrontando preceitos dos direitos humanos e dignidade da pessoa humana, como postula a Carta Magna em seu artigo 5º, inciso III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante." Na adolescência o pertencimento a um grupo, as relações de amizade e aceitação diante da sociedade são fatores de extrema importância, aspectos que contribuem em sua socialização. A respeito do tema, os adolescentes, que já cumpriram liberdade assistida anteriormente, compartilharam de que forma eram recepcionados pelos grupos: “É, só os meus amigos falavam comigo, alguns se afastaram. Quem é que vai andar com um cara que tem fama de ladrão?” Percebe-se mais uma vez que os meios coercitivos da justiça estigmatizam o adolescente, não surtindo efeito o novo paradigma trazido pelo estatuto. Os outros meninos do grupo, a respeito do tema, afirmaram que não possuíam amigos, um deles mencionou a mãe como único vínculo de amizade. As regulamentações do Estatuto primam pela inserção ou reinserção do adolescente aos meios sociais, para tal é necessário a utilização de instrumentos, que necessitam distanciar-se da imagem de prisão, quando a medida for de internamento, ou estigmatização. O princípio pedagógico das medidas socioeducativas tem por objetivo reinserir/inserir o adolescente nos meios sociais, por isso possui um caráter ressocializador, que busca segundo Volpi (2005) inserir o indivíduo em um projeto educacional, principalmente na formação para cidadania, outro ponto importante é o espaço pedagógico que deve ser ofertado para que o adolescente reflita sobre os motivos que o levaram a praticar a infração. Na afirmação de E.A., 16 anos, ao mencionar aprendizagem, compreendeu-se esta no sentido de castigo disciplinar, que pode ser ratificado na seguinte fala: “Porque eu vou aprender, né? O tempo que eu passei preso... porque fiz coisa errada, fui usar droga... que que a droga faz...” (E.A. , 16 anos)

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Os princípios que embasam as medidas socioeducativas, mais especificamente o internamento, se desvirtuam em sua aplicabilidade, fazendo com que os adolescentes possuam uma vivência contrária daquilo que deveria ser justiça ou ressocialização, porém a partir da próxima categoria foi possível perceber que os indivíduos têm a noção do que deveria ser ressocialização.

4.1.3 Ressocialização no plano ideal A categoria temática trazida surgiu a partir das impressões dos adolescentes acerca do que seria ressocialização para eles, e não efetivamente o que ocorre na realidade, tendo em vista que idealizam, falam sobre planos, mas se contradizem em outras falas quando expõe a realidade que lhes espera. Quando o tema ressocialização foi trazido ao grupo focal um dos adolescentes afirmou: “Oxe daqui eu vou voltar trabalhar e estudar de novo.” E em sequência surgiram falas semelhantes, todas a respeito de um olhar positivo para o futuro: “Eu vou.( escola)” (J.R., 15 anos) “Eu vou pra escola e pro trabalho...” (F.H., 16 anos). Percebe-se que a escola e trabalho são ainda fatores que eles atribuem uma significação positiva, como algo que trará consequências boas ou mesmo de inserção social. É a partir da seguinte afirmação que é possível constatar que há uma noção sobre o sentido real das medidas socioeducativas: “É melhor botar todo mundo pra estudar... e arrumar um trabalho....” (E. A.), 16 anos, referindo-se ao fato de estar “preso”. Ao trazer tal pensamento o adolescente vai ao encontro aos preceitos estatutários, que mesmo na medida de internação, que é a sanção mais aflitiva, última ratio, a educação e todos os outros direitos fundamentais devem ser garantidos aos adolescentes, não devendo a internação ou qualquer outra medida socioeducativa ter caráter de pena. Em todas as falas os adolescentes trazem a educação como fator primordial: “Eu aprendi. Estudar e trabalhar e se afastar dos amigos que num quer nada com a vida.” (J.H., 16 anos), enquanto outro disse: “Eu quero estudar e trabalhar e só...”, que foi complementado pelo colega: “Arranjar um emprego melhor”. Ao analisar as afirmações trazidas pelos jovens, percebe-se, então, a necessidade de restabelecer os laços sociais, ou mesmo de encontrar uma perspectiva de vida diferente. Porém também é necessário analisar que a escola pode não ser necessariamente uma escolha do adolescente, mas um modelo social instituído como forma de inclusão. Os adolescentes relatam que os outros adolescentes com os quais dividem cela são ladrões, que cultivar a amizade deles é ganhar status de “pessoa errada. É possível perceber que os adolescentes não se veem como pessoas em conflito com a lei. “Eu sou inocente, eu tô aqui por causa dos outros. Ó ele ali.” (C.H., 17 anos). Quando questionados sobre ser justo estarem 811

presos todos afirmaram que não, porém em se tratando dos outros adolescentes também na delegacia responderam ser justa a “prisão” para eles, uma vez que são “criminosos”. Desta forma, percebe-se que há uma reprodução da exclusão produzida na sociedade pelos próprios adolescentes em conflito com a lei, negando, por sua vez, o pertencimento à categoria “adolescente infrator” ou “adolescente em conflito com a lei”, podendo-se compreender de tal comportamento como uma tentativa de se inserir no em uma classe social não marginalizada. A categoria temática aqui trazida, versando sobre um ideal de ressocialização, mostra que os preceitos estatutários não são deficientes, pois vislumbram as necessidades que os adolescentes trouxeram em suas falas. O ideal de ressocialização para esses adolescentes não é irreal no plano normativo, no entanto passar a teoria a ser uma realidade prática parece ser ainda algo utópico e distante frente aos estigmas sociais e as práticas de punição e clausura na qual esses jovens são submetidos.

4.1.4 Justiça e Medida Socioeducativa “Eu gosto de assistir esses negócio, os poliça lá no morro trocando tiro.” (C.H., 17 anos). Foi a opinião de um adolescente a respeito do que seria justiça. A compreensão aqui relatada reflete a vivência que tem o adolescente com relação ao tema, bem como expõe a ideia de justiça que tem como referência. Tal significação dada pode ser mais bem compreendida a partir do seguinte relato: “E ai as polícia quando pega o cara, Óia... Me botaram num tonel de água que eu quase morro sufocado, polícia da peste.”(C.H., 17 anos). Alteridade é um dos caracteres de justiça, se referindo sobre aquilo que é do semelhante. Neste panorama, Calil (2003) afirma que a delinquência se apresenta ao adolescente como espaço de conquista de identidade social, podendo ser a única possibilidade de alteridade, onde o menino é apenas mais um entre os que vivem em condições econômicas/sociais indignas, relacionando-se diretamente com a violência, que ganha significado de poder. O que fica claro na afirmação de C.H, pois se sente como justiceiro ao afirmar que ele faz justiça com as próprias mãos. Ao estabelecer relação com o outro lança mão da violência para resgatar sua potência, criando a possibilidade de retomar o poder sobre sua vida, a partir daí se constrói como sujeito. Porém ao se encontrar inserido em uma delegacia, por exemplo, o poder que o adolescente frente à infração é desconstruído a partir da relação repressora do distrito policial. Ainda sobre o tema justiça, outro adolescente relaciona esta com medida socioeducativa em: “A psicóloga chamava eu direto pra ir pra lá assinar...” (E.A., 16 anos), se referindo a medida Liberdade Assistida, que para o adolescente esta consistia apenas em uma assinatura. Quando perguntado no grupo “o que é uma medida socioeducativa”, responderam que não sabia do que se tratava, após explicação sobre a mesma através de exemplos de medidas socioeducativas, um dos adolescentes respondeu: “Ah! Já tive numas oito dessa”(C.H., 17 anos). Ao relatar de que se 812

tratava a medida socioeducativa, percebeu-se que compreendia a mesma somente como um momento em que assinava o seu nome, como já havia relatado E.A. A Liberdade Assistida como instrumento (res) socializador, neste contexto, não foi efetivada, nem mesmo os pressupostos do Estatuto foram integralmente aplicados. Percebe-se, portanto, a necessidade de uma reestruturação na execução da medida socioeducativa. Sobre tal insucesso da execução das medidas, Volpi (2005) ratifica tal dado afirmando que atualmente há uma dicotomia entre produção teórica com relação ao adolescente e o atendimento dispensado, uma vez que as mudanças, em grande parte, ocorreram apenas no plano legal. Há uma não identificação entre os meninos que estão na Delegacia, ou seja, não se percebem como adolescentes em conflito com a lei, há uma negação ao pertencimento à tal categoria, como forma de tentar se se sentir incluso socialmente, enxergando a justiça como vilã por ser injusto castiga-los por não se sentirem culpados pela infração. De fato não há justiça, no panorama formal, adolescentes estão presos em uma cela de delegacia, cumprindo indiretamente internação, uma vez que ainda não foram judicialmente adequados a uma medida socioeducativa. O adolescente que afirma ser justo para os outros e não para ele a prisão, afirmando não ter roubado, não mente, este está inserido indevidamente no espaço dito socioeducador, onde deveria estar em uma instituição de reabilitação de dependência química, mas encontra-se na delegacia, mais uma vez, fruto da desestrutura do estado onde se realizou a pesquisa e do estigma dos drogaditos compreendidos como infratores. Outros também enxergam justiça, como castigadora, repressora e retributiva “É ir preso e pronto.” (J.R., 15 anos), o outro complementa: “Julgar a pessoa” (F.H., 14 anos). O caráter das afirmações remete ao entendimento de justiça como um castigo, como afirma Foucault (2008), que dá a certeza de que será punido, trazendo a ideia da prevenção, pois tal certeza impediria o cometimento de infrações. Nos relatos trazidos não havia qualquer menção ao caráter ressocializador das medidas socioeducativas vislumbrado pelo ECA, e justiça é em pouca medida trazida como algo positivo, estando esta sempre associada ao caráter penal. Tais ideias refletem as vivências dos adolescentes, uma vez que é de forma negativa e estigmatizadora que se apresenta o sentido de justiça para eles. A medida socioeducativa de internação, diante do que foi visto na pesquisa em campo, perdeu o seu sentido ressocializador ou pedagógico, tornando-se, em oposto, uma grande vilã, potencializando a delinqüência dos jovens, ganhando caráter apenas mantenedor, afastando os adolescentes da sociedade, estigmatizando-os, através de um tratamento agressor, repressor. O Estatuto da Criança e do Adolescente no plano real, desta forma, é rebaixado ao nível do antigo Código de Menores, que preconizava adolescentes em conflitos com a lei como menores que deveriam ser apartados socialmente. 813

5. Considerações finais A construção histórica social do adolescente em conflito com a lei mostra que esta foi uma categoria discriminada e consequentemente apartada socialmente. Durante anos esses sujeitos foram vítimas de um código menorista que criava mecanismos para ocultar os indivíduos tidos como trombadinhas, a partir da negação de direitos a estes e a criação de um sistema repressor, que se propunha a tratar tais pessoas como lixo social. Com o advento de um novo panorama legal na esfera internacional e nacional, surge o Estatuto da Criança e do Adolescente, que se acreditava, ou ainda acredita-se, ser um instrumento jurídico que possibilitaria garantir direitos e deveres de todas as crianças e adolescentes. Porém, o que se vê é que ainda, como reflexo do código pretérito, são determinadas crianças e adolescentes como não merecedoras ao pertencimento de tal categoria, visto que o tratamento que é dispensado a estas não converge com o que preceitua ECA. Diante da análise dos dados trazida aqui, é notória a quebra dos preceitos estatutários diante de análise acerca da pesquisa, principalmente ao verificar que o Estado não dispensa de estruturas necessárias para o que prega o estatuto, pode-se inclusive ir além e enxergar as deficiências da prática em todos os níveis de atendimento à criança e ao adolescente, mesmo os que não cometeram ato infracional. O agravante percebido na pesquisa foi o fato de os adolescentes ali encontrados, supostamente3 inseridos em uma medida socioeducativa, apesar de o ECA preconizar a T

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necessidade de atividades pedagógicas e principalmente efetivação de matrícula escolar, nenhum deles encontravam-se em tal situação. A execução de programas, bem como demais mecanismos que promovam a efetivação do ECA carece da plena estruturação estatal, mas também não se pode olvidar que a participação da sociedade é fundamental. Portanto, necessita-se de uma mudança de concepções e despir-se da antiga imagem trazida pelo código de menores acerca do adolescente em conflito com a lei. A solução não é mais aquela desde então, que era a apartação social de tais sujeitos. Conceber o adolescente em conflito com a lei como sujeito de direitos que necessita dos instrumentos estatais para se inserir socialmente não é só conceder a este indivíduo uma oportunidade para alcançar uma mudança de vida, que é como os próprios adolescentes da pesquisa enxergam o dever ser de justiça, mas também garantir a sociedade a formação de sujeitos capazes de fomentar o futuro do próprio país.

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Pois cumpriam medida de internamento antes da sentença judicial por estarem, desta forma compreende-se que estão em medida de internamento flagrante de infração.

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Hermenêutica constitucional e diálogo entre Cortes: uma análise dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos como elemento de interpretação no STF Adriane Sanctis de Brito e Guilherme Forma Klafke.........................................................................................................817 Derrotabilidade Jurídica e Ativismo Judicial na construção dos Direitos Humanos pelo STF: uma análise do julgamento do reconhecimento da união estável nas relações homoafetivas Juliano Aparecido Rinck e Sônia Yakabi..........................................................................................................................831 Princípio da proporcionalidade e Tópica Jurídica: as raízes do mau uso do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro Raphael Henrique Lins Tiburtino dos Santos....................................................................................................................846 O STF e o discurso sobre o aborto de anencefalia: entre crime e direito humano da mulher Thaís Guedes Alcoforado de Moraes e Artur Stamford da Silva......................................................................................863 ADPF 153: estudo de caso do acórdão na perspectiva da teoria da argumentação e da necessidade de efetivação dos direitos humanos no caso concreto Vinícius Reis Barbosa.......................................................................................................................................................876

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Hermenêutica constitucional e diálogo entre Cortes: uma análise dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos como elemento de interpretação no STF Adriane Sanctis de Brito1 T

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Guilherme Forma Klafke T

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Resumo

Abstract

Como o STF dialoga com a Corte Interamericana de Direitos Humanos quando esse diálogo acontece? Com base em referenciais teóricos de “diálogo entre Cortes” e de “pluralismo constitucional”, esse artigo traz uma das possibilidades de resposta a essa pergunta. Analisa-se a jurisprudência da Suprema Corte brasileira a partir do exame de uma seleção de votos que contêm alguma menção a decisões da Corte IDH. Para isso, é enfocada a fundamentação dos votos, tanto sob o prisma formal (forma assumida pela citação) quanto sob o prisma substancial (inserção da referência na fundamentação). Pelos resultados obtidos, percebese que há uma grande influência do comportamento individual de cada ministro para que esse diálogo seja estabelecido e que, quando a relação entre o STF e os julgados da Corte IDH existiu, ele foi geralmente superficial, feito indiretamente, por meio de outras citações e se voltou claramente para a interpretação do direito internacional. Substancialmente, é feita uma clara distinção entre planos normativos nacional e internacional, e os ministros não pareceram perceber os precedentes do sistema regional como ferramentas para interpretar o ordenamento nacional. Por fim reforça-se a necessidade de mudança da cultura jurisprudencial brasileira para que se enxergue o sistema interamericano de direitos humanos e suas decisões, a fim de fomentar o diálogo entre cortes.

How does the Brazilian Supreme Court (Supremo Tribunal Federal – STF) "speak" with the InterAmerican Court of Human Rights (IACourtHR) when this dialogue takes place? Based on the theoretical “dialogue between courts” and the “constitutional pluralism”, this article offers a possible answer to that question. It analyses cases before the Court, examining written opinions that contain any mention of the IACourtHR decisions. It, therefore, focus on the grounds offered for the decision in opinions, both through a formal (form taken by the reference to IACourtHR decisions) and a material approach (inclusion of the reference among the arguments).The results indicate that there is a great influence of each justice's personal behavior in whether or not that dialogue is established and that, when it did occur, the dialogue was generally superficial and indirectly made through second-hand quotations, clearly aiming for interpretation of the international law. Substancially, it is made a clear distinction between the international and the national legal orders, and the judges did not seem to comprehend cases from regional human rights system as means for interpreting national law. Finally, we corroborate the necessity of a review on how the Brazilian judicial tradition of courts sees the Inter-American human rights system and its decisions, in order to encourage the dialog between the courts.

Palavras-Chave: Supremo Tribunal Federal; Corte Interamericana de Direitos Humanos; diálogo entre Cortes; Pluralismo constitucional; Hermenêutica constitucional.

Keywords: Supremo Tribunal Federal, Inter-American Court of Human Rights; Dialog between courts; constitutional pluralism; Constitutional hermeneutics.

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Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo . Email: [email protected]. TU

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Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo . Email: [email protected]. TU

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1. Introdução A origem deste artigo tem relação direta com a ideia que pretendemos desenvolver3. Como T

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amigos com linhas de pesquisa distintas, uma em Direito Internacional, o outro em Direito Constitucional, percebemos uma angústia em comum: como a ordem interna e a ordem internacional podem dialogar entre si? Essa talvez seja uma das perguntas mais importantes do constitucionalismo contemporâneo e um dos maiores problemas para uma maior implementação do direito internacional. Optamos por começar com pouco. Porém, como procuraremos demonstrar, essa pequena contribuição já é capaz de lançar um olhar renovado sobre o assunto, discutindo dados empíricos e não apenas opiniões e teorias.4 Nesse sentido, voltamo-nos para o Supremo Tribunal Federal T

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(STF) e sua jurisprudência, questionando-nos sobre a forma como ele, representando o ordenamento interno, dialoga com um dos vários possíveis atores do direito internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Este artigo não tem como objetivo verificar se esse diálogo realmente existe, mas identificar como os ministros efetivamente recorreram aos julgados do sistema interamericano em seus votos. Como será tratado adiante, a questão sobre se as decisões proferidos em nível internacional vinculam ou não os tribunais nacionais pode ser colocada à parte de outra, que pressupõe uma relação construída de forma livre e multilateral.5 Perguntamos, então, como o STF T

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faz o diálogo com os precedentes da Corte IDH, quando esse diálogo acontece. Em última instância, o que procuramos é a forma como a jurisdição nacional se comporta nas situações em que parece haver um “diálogo constitucional” entre as Cortes. Enfocamos o STF em todas as suas personae (constitucional, recursal e ordinária)6, T

analisando

desde

casos

de

extradição

e

recursos

extraordinários

até

arguições

T

de

descumprimento de preceito fundamental. Abrangemos o Tribunal sem restrições de ordem temporal nem institucional, ou seja, é o Supremo em todo o seu período de existência, com todos os seus ministros, em julgamentos monocráticos, de turma ou de plenário. Entendemos que a expressão “fazer diálogo” pode significar algo mais amplo, tanto de formas discursivas como não discursivas de interação entre os diversos atores. Contudo, para os limites deste trabalho, buscamos apenas aquele diálogo observado nos discursos apreendidos 3

Agradecemos especialmente ao Professor Luiz Magno Bastos Jr., da UNIVALI, que fez comentários e trocou informações que poderão ser muito úteis para o futuro da pesquisa. 4

Como bem frisou Artur Stamford da Silva em sua palestra Pesquisa, direito e discurso, no II Encontro PROCAD, “debater opiniões, e não dados, é confundir ciência com religião”.

5 SILVA, Virgílio Afonso da. Integração e diálogo constitucional na América do Sul. In BOGDANDY, Armin von, PIOVESAN, Flávia e ANTONIAZZI, Mariela Morales (orgs.). Direitos humanos, democracia e integração jurídica na América do Sul. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 519, 2010. 6

A distinção entre três facetas do STF foi realizada pela FGV-Rio, em seu Relatório sobre os números de processos na Suprema Corte Brasileira. Cf. FALCÃO, Joaquim, CERDEIRA, Pablo de Camargo e ARGUELHES, Diego Werneck. I Relatório Supremo em Números: o múltiplo Supremo. Disponível em: http://www.supremoemnumeros.com.br/wpcontent/uploads/2011/05/I-Relat%C3%B3rio-Supremo-em-N%C3%BAmeros.pdf. Acesso em: 29 nov. 2011. TU

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dos textos correspondentes aos votos dos ministros. Mais precisamente, foram nosso objeto citações de precedentes da Corte IDH em sua fundamentação, mesmo que a menção esteja contida em uma passagem doutrinária citada. Além disso, não foi feita diferença entre referências a decisões definitivas ou cautelares da Corte Interamericana. Também não foram excluídas citações entre casos contenciosos nem entre opiniões consultivas. Embasamos a metodologia do trabalho principalmente na análise da jurisprudência, à luz de alguns referenciais teóricos. Selecionamos julgados do STF nos quais houve menção a algum precedente da Corte IDH, examinando os votos em que foi feita a referência.7 Com uma leitura T

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preliminar identificamos as decisões que interessavam ao artigo e os votos que seriam analisados.8 A ferramenta de busca apresenta algumas limitações que devem ser ressaltadas, T

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como, por exemplo, a ausência de casos, especialmente os mais antigos. Contudo, as conclusões continuam válidas para o universo examinado. Por fim, a pesquisa deverá ser desenvolvida em duas etapas: na primeira, verificaremos o modo como foi citado o precedente do sistema interamericano, sob o aspecto formal (a forma da menção) e sob o aspecto substancial (o papel da menção no voto); na segunda, compararemos a compreensão apresentada pelos ministros do STF em seus pronunciamentos com o que a Corte IDH efetivamente decidiu nos casos referidos, a fim de discutir o grau de aproveitamento das decisões. Apenas os resultados da primeira etapa serão apresentados neste artigo. Esperamos que, futuramente, as duas partes possam ser mostradas em conjunto, com conclusões interessantes sobre a praxis de nossa Suprema Corte.

2. Diálogo de Cortes e interpretação constitucional Quando se busca analisar a integração entre direito nacional e internacional pode-se, primeiro, partir para uma observação da compliance, algo como cumprimento das obrigações internacionais pelos Estados.9 Nesse sentido, por uma perspectiva interna, costumam-se evocar T

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as noções de hierarquia dos tratados no âmbito constitucional ou a discussão se decisões de cortes internacionais vinculam ou não vinculam.10 T

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7

Os acórdãos e as decisões monocráticas foram obtidos por meio de pesquisa realizada em 02.07.2011 no site da Corte brasileira (www.stf.jus.br), na seção “Jurisprudência > Pesquisa”, com os seguintes parâmetros de busca: «“Corte Interamericana”» e «Corte Interamericana de Direitos Humanos» (parâmetro do Tesauro). Ao todo, a busca retornou 10 acórdãos, 80 decisões monocráticas, 2 decisões da presidência e 9 informativos - os últimos foram descartados por não trazerem a íntegra do voto. Após atualização em 14.11.2011, com acréscimo de mais 3 julgados, chegamos a um universo final que contou com 19 votos em 17 ações. TU

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Como universo de julgados, temos: (i) acórdãos: HC 109544 MC (voto do Min. Celso de Mello), HC 106171 (voto do Min. Celso de Mello), HC 105348 (participação do Min. Celso de Mello em debate), ADPF 153 (votos dos Mins. Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello), Ext 1126 (voto do Min. Celso de Mello), RE 511961 (voto do Min. Gilmar Mendes), ADPF 130 (voto do Min. Celso de Mello), Pet 3388 (voto do Min. Menezes Direito), ADPF 144 (voto do Min. Celso de Mello); (ii) decisões monocráticas: HC 110237 MC, HC 110274 MC, RE 634224, AC 2763 MC, AC 2695 MC, HC 106171 MC, RMS 24213, Ext 954. 9

Para uma análise do sistema interamericano nesse sentido, cf. BUERGENTHAL, Thomas. Implementation of the Judgments of the Court. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos en el Umbral del Siglo XXI, 2a. ed. São José: Corte Interamericana de Derechos Humanos, pp. 185-191, 2003.

10

SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 516.

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Entretanto, para além dessa integração que se pode chamar institucional-legal, é possível enfocar – como será feito aqui – uma integração de caráter discursivo que independe de vinculação ou hierarquias.11 Num possível diálogo constitucional dentro desse conceito de T

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integração poderiam ocorrer tanto empréstimos constitucionais - equivalentes a transplantes legais – ou migrações de ideias constitucionais. Estas, relacionadas a uma dinâmica livre e multilateral, é o que nos interessa neste trabalho. As migrações de ideias podem ocorrer horizontalmente – entre ordens jurídicas nacionais – , verticalmente – entre ordem nacional e internacional – e, ainda, entre ordens nacionais por meio de uma instância supranacional.12 Por sua natureza, tal integração discursiva, de ideias e de T

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argumentação, pode ser ligada com os novos fenômenos que modificam o direito. Este, antes vinculado intimamente à noção de soberania, é objeto de alterações uma vez que esta noção sofre relativizações.13 E o Estado deixa de ter monopólio da produção e aplicação do direito na T

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medida em que novos atores surgem ou têm novos papéis nessa construção. Nesse ensejo, há quem diga ter-se criado uma comunidade global de cortes, que dialogam entre si no sentido de criar, numa construção consciente, não só um conjunto de interações, mas um locus de valores e entendimentos normativos comuns14. A existência de um “diálogo T

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constitucional transnacional”, então, significa que as cortes nacionais e supranacionais trocam experiências, teorias, princípios de aplicação do direito e até mesmo interpretações de dispositivos jurídicos. A partir do momento em que se reconhecem como iguais, surgem para elas tanto a possibilidade do uso de novos fundamentos jurídicos para embasar suas decisões, como o ônus argumentativo de levar em consideração mesmo opiniões adversas de outros tribunais. Nesse contexto, a interpretação constitucional não pode ser mais entendida como leitura dos dispositivos da Constituição sem consideração do contexto que a circunda. Os avanços na hermenêutica e na teoria constitucionais demonstraram que os juízes não poderiam interpretá-la sem levar em conta os fatos e a sociedade que ela busca ordenar. Assim, por exemplo, são as ideias de Konrad Hesse, para quem a Constituição possui uma força normativa que depende também das condições fáticas que lhe subjazem, o que deve influenciar desde seu conteúdo até sua interpretação.15 O processo interpretativo passa a ser, então, um processo de concretização T

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das normas fundamentais ou de interação entre o programa da norma (interpretação do texto) e o domínio da norma (contexto de fatos selecionados).16 T

11

SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 517.

12

SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., pp. 518-519.

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13

Para uma explicação da mudança de paradigma pelo ponto de vista do pluralismo jurídico, cf. MAGNO JR., Luis Magno e LOIS, Caballero. Pluralismo constitucional e espaços transnacionais. In SILVA, Artur Stamford da (org.). O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011. 14

SLAUGHTER, Anne-Marie. A Global Community of Courts. Harvard International Law Journal, v. 44, n. 01, pp. 191219, winter 2003.

15

Cf. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, pp. 15-22, 1991.

16

Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 1212-1213, 2008.

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Da mesma forma, o reforço da ordem jurídica internacional foi um importante fator para relativizar a ideia de que a exegese constitucional deve rechaçar qualquer contribuição de outros ordenamentos, nacionais ou supranacionais. A difusão de tratados de direitos humanos, em especial, desempenha papel de destaque nesse novo cenário, como bem acentuado por Mattias Kumm, em tradução livre: Eles funcionam para guiar e restringir o desenvolvimento da prática constitucional doméstica. Além de ter desempenhado um importante papel no delineamento das constituições nacionais nas últimas décadas, tratados de direitos humanos também desempenham um papel central no contexto de interpretação das disposições nacionais. Eles são referidos como uma autoridade persuasiva. Há uma boa razão para tanto. Tratados internacionais de direitos humanos estabelecem um ponto comum de referência negociado por um grande número de Estados transpondo culturas. Dada a pluralidade de atores envolvidos em tal processo, há vantagens epistêmicas em se comprometer com direitos humanos internacionais ao se interpretarem disposições constitucionais nacionais. Tal comprometimento tende a ajudar a desenvolver a prática constitucional doméstica, ao despertar a consciência para as limitações cognitivas relacionadas ao paroquialismo nacional. Ao mesmo tempo, tal comprometimento com o direito internacional de direitos humanos ajuda geralmente a fortalecer a cultura internacional de direitos humanos.17/18 T

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Portanto, direito comparado e direito internacional aparecem como elementos relevantes na interpretação do Texto Fundamental. Nos dizeres de Virgílio Afonso da Silva: Embora o conceito clássico de constituição seja algo intimamente ligado ao Estado nacional, isso não implica que, contemporaneamente, a interpretação constitucional também tenha que se limitar às fronteiras de casa país. O constitucionalismo - e a interpretação constitucional - não são apenas questões estritamente nacionais porque os problemas são internacionalmente comuns, e muitas vezes as realidades e as experiências jurídicas também o são. Nesse sentido, é possível afirmar que mesmo que não houvesse no mundo nenhum órgão (ou tribunal) supranacional, a integração, por meio do livre fluxo de idéias, poderia ser riquíssima e intensa.19 T

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Assim, os parâmetros de controle da interpretação constitucional, tais como trazidos pela teoria da argumentação, também devem ser compatíveis com uma realidade mais pluralista.

17

Cf. KUMM, Mattias. Constitutional Democracy Encounters Internacional Law: terms of engagement. New York University Public Law and Legal Theory Working Papers, Paper 47, pp. 24-25, 2006. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=952023. Acesso em: 13 nov. 2011. TU

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18

Ainda segundo o autor alemão, “Tratados de direitos humanos podem ser relevantes para a interpretação doméstica de direitos constitucionais de uma forma fraca e de uma forma forte” (cf. op. cit., p. 26 e ss.). No primeiro caso, eles fornecem referenciais decisórios para um comprometimento deliberativo, incorporando novos argumentos para o discurso exposto, de forma a confirmar o julgamento ou de despertar a atenção para o problema. Isso pode ser verificado claramente no julgamento pelo STF da Ext 1126, no qual o Min. Celso de Mello chamou a atenção dos outros ministros para a nulidade absoluta que pode ser gerada no processo, em caso de desrespeito ao art. 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares (assistência consular ao estrangeiro preso fora de seu país). Na forma forte, os tratados devem ser levados em consideração na interpretação do direito nacional, seja porque a própria Constituição determina isso, seja porque existe uma presunção de que o direito nacional não pode ser interpretado de modo conflitante com o internacional. Vejam-se, por exemplo, o art. 16.2 da Constituição Portuguesa, o art. 5º da Constituição Chilena, o art. 93 da Constituição Colombiana e o art. 75.22 da Constituição Argentina.

19

Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 530.

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Juridicidade, universalidade e recurso a princípios são alguns desses parâmetros.20 Se a T

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argumentação deve ser jurídica, com fundamentos normativos a embasarem o raciocínio, a legislação internacional também deve ser um elemento de interpretação. Se ela deve ser universal, os precedentes e as decisões de Cortes internacionais também devem ser levados em conta pelo juiz nacional, sob pena de casos semelhantes serem tratados de forma desigual. Se ela deve recorrer a princípios, também deve buscar a forma como a comunidade internacional os interpreta. Nesse sentido, ganha relevo o uso de precedentes na justificação da decisão tomada. Como explica Michele Taruffo, em tradução livre, “a atual prática do uso dos precedentes é um pouco diferente, já que os precedentes são comumente utilizados em todos os lugares como importantes pontos de referência na justificação das decisões judiciais e, como se pode especular, no processo de decisão também”.21 Acreditamos, como Virgílio Afonso da Silva, que os T

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precedentes das Cortes internacionais possuem um valor argumentativo que exige do intérprete da Constituição a discussão sobre a regra de decisão anteriormente estabelecida, mesmo que ela não seja vinculante.22 Por isso, é importante a análise que será desenvolvida no tópico seguinte, T

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de modo a que se conheça como o STF incorpora precedentes do sistema interamericano em seus pronunciamentos.

3. O uso dos julgados da Corte IDH nos votos dos ministros Rememorando a pergunta central deste artigo, perguntávamos como o STF faz o diálogo com a Corte IDH quando ele acontece. Empreendemos o estudo dos votos enfocando dois aspectos: primeiro, a forma de citação; segundo, a inserção do julgado da Corte IDH na argumentação do ministro. A seguir, apresentamos e discutimos os principais resultados.

3.1 Números de votos Em primeiro lugar, identificamos 19 votos nos quais houve citação de julgados da Corte do sistema regional. Do universo total, muitos são apenas reproduções de pronunciamentos anteriores, transpostos para novos casos, ou menções a julgamentos já realizados, por exemplo, por meio da citação da ementa do acórdão elaborado. Isso redunda numa inflação dos números, visto que o mesmo voto pode ser considerado mais de uma vez, embora em ações diferentes. Embora a ressalva deva ser feita, tomamos a quantidade original de votos para embasar nossas conclusões. 20

Cf. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, pp. 332-333, 2009.

21

Cf. TARUFFO, Michele. Institutional Factors Influencing Precedents. In MACCORMICK, Neil e SUMMERS, Robert S. (orgs.). Interpreting Precedents: a comparative study. Ashgate/Dartmouth: Vermont/Hants, p. 458, 1997. 22

Cf. Op. cit., p. 521.

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O exame apenas dos julgamentos colegiados (Turmas e Pleno) demonstra que poucos ministros participantes da sessão apresentam um julgado da Corte IDH em sua fundamentação. De fato, em apenas um dos nove acórdãos é possível verificar, no mesmo julgamento, mais de um voto no qual essa menção é realizada: no caso da Lei de Anistia (3 votos, dos Ministros Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello). Cabe ressaltar que não parece relevante a possível objeção de que isso decorre da dinâmica de trabalhos do STF, no sentido de que muitas vezes os ministros dão apenas a decisão sem proferir voto, visto que na maioria dos casos a quase totalidade do colegiado se manifestou. Ainda sobre os números, cabe uma última observação. O Min. Celso de Mello responde por ampla maioria dos votos, tendo proferido 13 deles (65%), espraiados por praticamente todos os temas analisados23, tanto em decisões monocráticas, como em colegiadas, fosse ele o Ministro T

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Relator do caso ou não. Outras citações foram pontualmente feitas por outros ministros, em uma quantidade claramente inferior.24 T

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Esses números não permitem, é evidente, a afirmação de que não existe diálogo entre o STF e a Corte IDH, salvo se esses 19 votos, apresentados para sete temas, forem considerados uma quantidade tão pequena que corroborem essa ideia. De nossa parte, preferimos não extrair conclusões que os dados não indiquem de forma direta. Contudo, é possível asseverar com grande grau de precisão que há uma discrepância muito grande entre o modo de agir dos ministros. Enquanto um é responsável por 65% dos votos analisados, os outros 35% se dividem por cinco ministros. A ausência de referências, na maioria das vezes, então, seria explicável pela falta de uma composição da Corte que atentasse para a jurisprudência do sistema regional de proteção dos direitos humanos. Basta, para tanto, e apenas num esforço de argumentação superficial, verificar que se o padrão de comportamento do Min. Celso de Mello fosse replicado para todos os ministros, teríamos não mais 19 votos contendo alguma citação da jurisprudência da Corte IDH, mas cerca de 143 pronunciamentos, número 7,5 vezes maior. Uma maior integração discursiva entre o STF e a Corte IDH, então, passaria por um tribunal nacional que fosse formado por juízes abertos aos casos do sistema regional e, principalmente, às interpretações feitas pela Corte Interamericana. Isso poderia ser obtido independentemente da mudança na composição. Bastaria uma mudança comportamental, como a verificada com o próprio Ministro Celso de Mello, que não tinha essa conduta antes de 2008.25 T

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23

Ao todo, os casos envolvendo citações de julgados da Corte IDH englobam sete temas, a saber: (i) anistia; (ii) direito dos povos indígenas às suas terras; (iii) assistência consular; (iv) direito de resposta; (v) competência da Justiça Militar; (vi) presunção de inocência; (vii) obrigatoriedade do diploma de jornalismo para exercício da profissão. 24

A diferença nos números é muito expressiva. Enquanto o Min. Celso de Mello cita algum caso da Corte IDH em 13 votos, os Ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Menezes Direito utilizam julgados do sistema regional em apenas um voto cada. O Min. Gilmar Mendes menciona a jurisprudência da Corte Interamericana em dois votos, mas em um deles a citação consiste numa mera reprodução de ementa lavrada pelo Min. Celso de Mello, na qual o último ministro faz a referência. Outros não chegaram a citar qualquer decisão regional.

25

Ressalte-se, por oportuno, que a análise se concentra no uso de precedentes internacionais, não na menção aos documentos internacionais, pesquisa que poderia chegar a resultados diversos.

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3.2 Comportamento temporal do STF Uma segunda observação pode ser feita em relação ao comportamento do STF no tempo. Embora nem todas as decisões monocráticas e todos os acórdãos, especialmente os mais antigos, constem no banco de dados de pesquisa do site do tribunal, nossa busca indicou a decisão individual do Min. Joaquim Barbosa, na Ext 954, de 17.05.2005, como a menção mais remota a um caso da Corte IDH (Opinião Consultiva 16, de 1º.10.1999). A maior quantidade de decisões só ocorreu nos anos 2009, 2010 e 2011. Essa informação é bastante relevante se inserida num contexto de integração discursiva, haja vista que não é necessária a vinculação a um precedente supranacional para que ele seja citado. Em outras palavras, se a Corte IDH começou a sua atividade em 1979, desde a década de 1980 os juízes brasileiros já poderiam buscar interpretações e entendimentos consolidados no âmbito do sistema regional de proteção dos direitos humanos, seja para interpretar o direito internacional, seja para interpretar o próprio ordenamento interno. Nesse sentido, podemos até mesmo afirmar que houve um processo gradual de reforço do ônus argumentativo dos juízes brasileiros quando deparados com um tema sobre o qual a Corte Interamericana já havia se pronunciado. Isso porque o Brasil incorporou, em 1992, a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos ao ordenamento interno26 e reconheceu, em 1998, a T

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jurisdição obrigatória da Corte IDH, em vigor internamente desde 200227. Por fim, em 2004, foi T

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editada a Emenda Constitucional n. 45, que inseriu um novo parágrafo ao art. 5º da Constituição, reconhecendo o valor constitucional dos tratados de direitos humanos aprovados de acordo com o mesmo rito das emendas constitucionais, embora não tenha, tal como a Constituição argentina, feito referência expressa ao Pacto de San José da Costa Rica. A novidade trazida pela emenda teve como efeito reflexo a mudança da jurisprudência do próprio STF acerca do status dos tratados internacionais de direitos humanos não aprovados pelo rito especial, afirmando-se a sua supralegalidade, como nos casos sobre prisão de depositário infiel.28 T

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Assim, mesmo que não se assuma o caráter vinculante dos julgados do sistema regional, como fazemos para facilitar a explicação, verifica-se que gradualmente essas decisões foram se revestindo de maior importância para o ordenamento interno. Primeiro, porque o Pacto de San José da Costa Rica passou a integrar a ordem jurídica brasileira e, sendo a Corte IDH sua principal intérprete, suas decisões constituem fundamental vetor hermenêutico para os juízes que forem aplicá-lo. Segundo, porque os próprios tratados de direitos humanos podem chegar a ter valor constitucional − assumindo-se, novamente para facilitar, a posição restritiva que não admitia 26

Decreto Presidencial n. 678, de 11 de novembro de 1992.

27

Decreto Presidencial n. 4.463, de 8 de novembro de 2002.

28

Sobre o histórico de reforço e de incorporação dos mecanismos de proteção regionais ao ordenamento brasileiro, veja-se o artigo de André de Carvalho Ramos, Supremo Tribunal Federal brasileiro e o controle de convencionalidade: levando a sério os tratados de direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, v. 104, pp. 241-249, jan./dez., 2009.

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tal status anteriormente −, o que indica que também devem ser tidos como elementos de interpretação das próprias cláusulas constitucionais. Temporalmente, no entanto, já se verificou que muito tardiamente o STF recorreu aos julgados da Corte IDH. Uma possível hipótese que pode ser corroborada tanto pela virada da jurisprudência do tribunal sobre o valor dos tratados de direitos humanos (casos de prisão de depositário infiel), quanto pela citação de um precedente do sistema regional pela primeira vez apenas em 2005, é a de que grande parte dessa alteração comportamental se deve ao novo art. 5º, § 3º, da Constituição, inserido pela EC 45/04. Destarte, parece-nos que também as modificações legislativas podem ser relevantes fatores de estímulo para um Supremo Tribunal mais aberto ao diálogo com a Corte Interamericana, o que nos levaria a valorizar também as reformas do ordenamento brasileiro que procurassem fomentar essa relação.

3.3 Demonstração do acesso às informações Uma terceira questão relevante diz respeito à forma como as citações são apresentadas e ao modo como os ministros demonstram acessar as informações sobre os casos julgados pela Corte IDH. Nesse sentido, o que talvez mais se destaque na análise dos 19 votos estudados é justamente a superficialidade do diálogo entre o STF e a Corte IDH. Isso decorre tanto do grande número de citações chamadas por nós de apud, porque em passagem de outro texto − este sim referido pelo ministro −, quanto pela pouca profundidade na comparação entre o precedente e o caso sob judice. No primeiro caso, verificamos que citações diretas (entre aspas) das decisões da Corte Interamericana ocorreram em 8 votos, enquanto citações apud ocorreram em 7 pronunciamentos, seja por alusão à ementa de um julgado que continha essa menção, seja por alusão a alguma passagem doutrinária na qual o autor original fez referência à jurisprudência regional. Soma-se a essa situação a falta de comentários por autores especializados no sistema interamericano (doutrina de referência), haja vista que em apenas um voto houve apoio na leitura feita por alguém mais voltado para a jurisprudência da Corte IDH.29 T

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No tocante à pouca profundidade da comparação, foi possível verificá-la tanto por uma análise qualitativa dos votos quanto pelos trechos mencionados das decisões supranacionais. Por um lado, é possível encontrar indicadores de uma leitura mais profunda, tais como a menção a votos em separado ou a apresentação da petição inicial do caso julgado pela Corte IDH.30 Porém, T

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até mesmo pela quantidade de votos “apud”, em geral os ministros não fazem um aprofundamento 29

Trata-se do RE 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 17.06.2009, no qual o Ministro Relator cita o informe anual da Comissão Interamericana feito pela relatora especial da OEA para a liberdade de expressão. 30

Na Ext 1126, o Min. Celso de Mello cita as palavras do Juiz Augusto A. Cançado Trindade ao proferir seu voto concorrente na Opinião Consultiva n. 16/1999. O mesmo Ministro, em seus votos sobre direito de resposta, como na ADPF 130, menciona a opinião separada do Juiz Rodolfo E. Piza Escalante. Por fim, o Min. Gilmar Mendes cita diretamente trechos da petição inicial do Governo da Costa Rica na Opinião Consultiva 05/1985 ao julgar o RE 511.961.

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das circunstâncias do caso, das razões da Corte e do que pode ser aplicado ou não no julgamento. Um exemplo que elucida essa realidade pode ser verificado nos votos do Min. Celso de Mello sobre a competência da Justiça Militar para julgar infratores civis que falsificaram carteira militar. No HC 109.544 MC, reprodução de outros habeas corpus anteriores, o Ministro afirma: De outro lado, cabe registrar importantíssima decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 22/11/2005, no julgamento do ‘Caso Palamara Iribarne vs. Chile’, em que se determinou, à República do Chile, dentre outras providencias, que ajustasse, em prazo razoável, o seu ordenamento interno aos padrões internacionais sobre jurisdição penal militar, de forma tal que, se se considerasse necessária a existência (ou subsistência) de uma jurisdição penal militar, fosse esta limitada, unicamente, ao conhecimento de delitos funcionais cometidos por militares em serviço ativo (grifos nossos). U

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Apenas três parágrafos antes dessa explicação, o Ministro ressalta que: Não se pode deixar de acentuar, bem por isso, o caráter anômalo da submissão de civis, notadamente em tempo de paz, à jurisdição dos Tribunais e órgãos integrantes da Justiça Militar da União, por suposta prática de crime militar, especialmente se se tiver em consideração que tal situação - porque revestida de excepcionalidade – só se legitima se e quando configuradas, quanto a réus civis, as hipóteses delineadas em sede legal e cujo reconhecimento tem merecido, do Supremo Tribunal Federal, estrita interpretação. U

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Verifica-se, portanto, que a única utilidade da decisão da Corte IDH para a argumentação do Ministro é, como ele mesmo contextualiza, de Direito Comparado, sem qualquer aprofundamento, apenas para que se constate um movimento internacional pela restrição das atribuições da Justiça Militar em relação a civis. Pelas partes da decisão regional escolhidas para integrar a fundamentação do voto, é notável um conflito entre as posições da jurisdição nacional e da jurisdição internacional. A ausência de uma diferenciação entre os julgados é, assim, relevante. Em conclusão, é possível afirmar, com algumas exceções, que, de um lado, muitos dos precedentes da Corte IDH apresentados estavam em passagens doutrinárias que os ministros transcreveram em seus votos. Questionamos o motivo pelo qual o julgador, tendo selecionado um trecho no qual existe essa citação, não foi buscá-la para verificar se seria ou não o caso de utilizála em sua decisão. Isso porque, se o autor da obra referida utilizou o julgado internacional como recurso para argumentar sobre seu ponto de vista, com muito mais razão poderia o ministro recorrer a ele para conferir mais solidez à sua argumentação. De outro lado, há um baixo grau de comparação entre o caso citado e o caso em julgamento. Seria importante que os pronunciamentos fossem acompanhados das descrições dos fatos ou, pelo menos, que os ministros apresentassem as semelhanças e diferenças nas razões determinantes, principalmente quando fossem afastar a aplicação do Direito Internacional na interpretação do ordenamento interno. Essa é uma prática comum nos países de common law, 826

nos quais se procura examinar a compatibilidade entre o precedente e a causa a ser resolvida. Dessa forma, seria possível evitar conflitos de fundamentação, como os mencionados anteriormente. Ademais, a utilização do entendimento regional poderia contar com muito mais auxílio de autores internacionais ou, se nacionais, de especialistas na jurisprudência da Corte IDH.

3.4 Inserção do julgado na argumentação Por fim, nossas últimas considerações dizem respeito à inserção do precedente da Corte IDH na fundamentação dos votos. Nesse sentido, foi possível verificar tanto uma nítida distinção de planos jurídicos (interno e externo) como a falta de migração de ideias, tal como explicada anteriormente. Em relação ao primeiro aspecto, identificamos uma clara tendência dos ministros do STF em usar julgados do sistema interamericano para interpretar o direito regional e internacional. Isso porque as decisões aparecem predominantemente como elementos de interpretação de artigos da Convenção Interamericana ou de algum outro tratado internacional, tal como a Convenção de Viena sobre Relações Consulares31. Em números, em 6 oportunidades foram utilizadas como T

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Direito Comparado; em 4 serviram para interpretar um instituto (sem vinculação a algum sistema); em 8 serviram para interpretar legislação internacional; e em uma única ocasião serviu tanto para a leitura do ordenamento internacional como para reforço da interpretação dada à própria Constituição. Esse último voto, que poderia ser a exceção em meio aos outros, deve ser relativizado. Trata-se do julgamento no RE 511.961, sobre obrigatoriedade do diploma de jornalismo para o exercício da profissão. Na verdade, o Min. Gilmar Mendes ressalta que existem duas linhas de exame do problema: uma à luz do art. 5º, XIII (liberdade de profissão), IV e IX (liberdade de expressão), da Constituição Federal; outra à luz dos arts. 13 e 29 do Pacto de San José da Costa Rica (liberdade de expressão). O precedente é utilizado na fundamentação da segunda linha, o que demonstra a tendência de separação de planos, mesmo que o direito (liberdade de expressão) seja o mesmo e, portanto, a interpretação do ordenamento nacional seja reforçada pela leitura da ordem internacional. Assim, os pronunciamentos da Corte IDH que não foram aproveitados como Direito Comparado serviram para a interpretação de alguns temas, à luz da Convenção Interamericana − respeito à Convenção e anistia (art. 1.1), diploma de jornalismo e liberdade de expressão (art. 13), direito de resposta e liberdade de imprensa (art. 14). Por duas vezes serviram para delinear a garantia da assistência consular ao estrangeiro preso no país (art. 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares). Também foram aproveitados para interpretar determinadas

31

Veja-se o voto do Min. Celso de Mello no julgamento da Ext 1126, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 22.10.2009.

827

garantias, como a presunção de inocência e o direito à propriedade pelos povos indígenas, ambas também presentes no Pacto de San José − respectivamente, arts. 8.2 e 21. No tocante à ausência de migração de ideias, teorias e experiências constitucionais do nível supranacional para o nível nacional, essa integração discursiva fica bastante prejudicada pela cisão entre os dois planos. Nesse sentido, o que é internacional permanece no plano externo e o que é nacional permanece no plano interno, sem que os ministros incorporem os entendimentos da Corte IDH na sua própria interpretação dos direitos e das garantias constitucionais. Duas possíveis exceções seriam o voto do Min. Menezes Direito na Pet 3338 (caso Raposa Serra-do-Sol) e do Min. Celso de Mello na Ext 1126 (voto sobre assistência consular). No primeiro, as ponderações da Corte Interamericana auxiliam na ideia de que os povos indígenas teriam direito a ficar em suas terras, numa clara migração em relação à definição dos limites do direito à propriedade e da própria proteção das populações indígenas, tal como delineada no caso Awas Tingni v. Nicarágua, de 2001. Vale a pena transcrever a passagem em que o caso é citado: Veja-se recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Awas Tingni que aplicou sanções à Nicarágua por entender que houve violação do direito de propriedade dos indígenas sobre suas terras, bem como ao seu bemestar e integridade cultural. Isso revela que a comunidade internacional não medirá esforços para tentar aplicar aos Estados-Membros suas posições quanto a esses direitos. Pouco importa que no caso brasileiro a propriedade das terras indígenas seja da União (art. 21, XI, CR/88). E assim é porque, segundo a decisão, o art. 21 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Direito à Propriedade Privada, que garanta a ‘toda pessoa o uso e gozo de seus bens’), que pode ser subordinado pela lei ao interesse social, deve ser interpretado como abrangente dos direitos dos índios às suas terras, na forma de sua ocupação tradicional e seu enfoque coletivo (grifos nossos). U

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No segundo caso, o Ministro Celso de Mello usa o precedente da Corte para construir o sentido da expressão without delay na garantia de assistência consular ao estrangeiro preso fora de seu país. Segundo o Ministro: Vale destacar, neste ponto, tal como assinalado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua resposta dada em sede de consulta (Opinião Consultiva n° 16/1999), que a cláusula ‘without delay’ (‘sem demora’) inscrita no Artigo 36, 1, (b), da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, deve ser interpretada no sentido de que a notificação consular há de ser efetivada no exato momento em que se realizar a prisão do súdito estrangeiro, ‘e, em qualquer caso, antes que o mesmo preste a sua primeira declaração perante a autoridade competente’.

Os dois casos demonstram como os posicionamentos da Corte IDH podem contribuir para a interpretação tanto da legislação internacional incorporada ao ordenamento brasileiro como para a interpretação da própria Constituição. Esse potencial, no entanto, é subutilizado, em grande parte por conta de todos os problemas que foram apontados anteriormente, mas também por

828

causa da associação necessária que os ministros parecem fazer entre pronunciamentos da Corte regional e interpretação do plano internacional.

4. Conclusões Com base na análise pura da jurisprudência do STF procuramos trazer dados e conclusões inovadoras para o debate sobre o “diálogo entre Cortes” e a integração discursiva entre nossa Suprema Corte e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. A partir disso, pudemos diagnosticar problemas e dificuldades, discutindo-os e cogitando-lhes possíveis soluções. Parece-nos evidente que o diálogo acontece de modo mais profundo quando os ministros possuem um comportamento que o favorece. Essa constatação nos dá a esperança de que cada vez mais os membros do STF (do presente e do futuro) verão a Corte IDH como um ator de relevo para a interpretação dos dispositivos nacionais e internacionais. Basta, para tanto, uma mudança de conduta que valorize mais os precedentes − não vinculantes, frise-se − da Corte Interamericana na fundamentação. Possíveis estímulos para isso podem vir dos bancos das faculdades, dos noticiários e até mesmo de editais de concursos públicos. Não basta, porém, que o diálogo exista se ele não for feito com qualidade. Por isso, é fundamental que os julgadores tenham conhecimento dos casos com os quais estão lidando. Torna-se importante não apenas uma formação acadêmica que valorize o sistema regional de proteção dos direitos humanos como também a utilização de obras de referência que comentem os precedentes. Não basta tratar o caso en passant, como se ele não oferecesse nenhum ônus argumentativo. Lembremos, por exemplo, o entendimento do Tribunal Constitucional alemão no caso Gorgülü, em que ficou assentado que “desconsiderar as decisões da Corte Européia de Direitos Humanos não seria compatível com a proteção dos direitos humanos e com o princípio do Estado de Direito”.32 T

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É necessário considerar as decisões da Corte IDH e, mais do que isso, é preciso tratá-las com seriedade. Evidentemente, há dificuldades oferecidas pela própria cultura da Civil Law, desacostumada com a análise de precedentes. Contudo, deve-se fazer um esforço para tratar dos casos à luz de suas circunstâncias, evitando não apenas leituras e aplicações equivocadas de entendimentos internacionais, como também possíveis problemas futuros entre as jurisdições. Destacamos finalmente que durante a apresentação deste artigo, os professores Luiz Magno Bastos Jr. (UNIVALI) e Andreas Krell (UFAL) fizeram algumas perguntas: de onde viria o desdém do STF em relação à jurisprudência do sistema regional? Qual a visão do STF sobre a Corte IDH? Em que medida o diálogo poderia ser positivo? Qual a influência da atuação dos

32

Cf. SILVA, Virgílio Afonso da. Op. cit., p. 521.

829

autores, por meio de suas petições, sobre a citação ou não de um precedente da Corte IDH? Esses questionamentos só confirmam nossa vontade de seguir adiante nessa linha de pesquisa, visto que estas poucas páginas não são capazes de respondê-las. De qualquer forma, iniciar uma relação de diálogo entre o Direito Internacional e o Direito Constitucional nacional é dar o pontapé para a formação de uma cultura de juristas interdisciplinares, capazes de transcender as barreiras confinantes das disciplinas e de enxergarem uma comunicação entre planos que só aparentemente parecem distintos.

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U

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830

Derrotabilidade Jurídica e Ativismo Judicial na construção dos Direitos Humanos pelo STF: uma análise do julgamento do reconhecimento da união estável nas relações homoafetivas Juliano Aparecido Rinck1 T

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2

Sônia Yakabi T

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Resumo A presente pesquisa tem como objeto de estudo, através do método dialético, a derrotabilidade jurídica e sua relação com ativismo judicial na construção dos direitos humanos pelo Supremo Tribunal Federal, dentro do dilema da segurança jurídica do sistema jurídico brasileiro, ao desempenhar o papel de Corte Constitucional no julgamento reconhecimento da união estável na relação homoafetiva. Palavras-Chave: Direitos Humanos; Derrotabilidade Jurídica; Ativismo Judicial; Supremo Tribunal Federal; União Homoafetival.

1

Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP. Professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos e nucleador do Núcleo de Direito Público da Universidade Nove de Julho - UNINOVE/SP. Email: [email protected]

2

Bacharelanda do Curso de Direito da Universidade Nove de Julho- UNINOVE/SP. Email: [email protected]

831

1. Introdução

Devido ao dinamismo social, nem sempre o direito normatizado pelo aparato estatal encontra condizente com a realidade social, assim, gerando lacunas normativas em determinadas hipóteses não contempladas com o amparo legal. Tal, dicotomia entre a norma e a realidade pode ser gerada por diversas causas, que não consiste nosso objeto de estudo, seja pela morosidade do legislativo, por articulações de grupos que impeçam uma normatização da nova situação social entre outras, mas esta lacuna normativa pode gerar a exclusão de direitos de um grupo marginalizado pela sociedade, como: mulheres, negros, idosos e homossexuais. O grande dilema decorrente do desacordo entre norma e realidade consiste em quem deve preencher a lacuna normativa existente? O poder legislativo que tradicionalmente detém o monopólio de normatizar as relações sociais ou o poder judiciário, que modernamente, dentro de uma visão do neoconstitucionalismo3, deve atuar com legislador positivo no sentido de concretizar T

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direitos, principalmente, os direitos fundamentais Uma das questões que a atuação do Poder Legislativo em reconhecer novos direitos as vezes é morosa, lenta e , até mesmo, deficiente, como por exemplo no caso em estudo o reconhecimento da união estável as relações homoafetiva. Desde1995 tramita no Congresso Nacional o Projeto de lei 1151, de autoria da deputada federal na época Marta Suplicy, para regulamentação da união homoafetiva, entretanto, devido à morosidade do órgão legislativo pessoas que se encontravam em tal situação ficam a mercê da benevolência do poder judiciário, em decisões isoladas, para terem seus direitos amparados pelo Estado. Diante desta situação, o presente artigo busca demonstrar a nova postura do Poder Judiciário, dentro de um Estado Democrático de Direito, na efetivação dos direitos humanos, ao analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal ao reconhecer a existência de uma nova modalidade de família, não contemplada pelo aparato normativo, através da aplicação do método hermenêutico sistemático e da ponderação dos princípios constitucionais, assim, derrota a norma constitucional de família tradicionalmente adotada, estabelecendo uma nova norma.

2. Derrotabilidade Para uma maior compreensão do sentido da derrotabilidade4 no âmbito do sistema T

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5

interpretativo, partimos da preposição dada por Raz a respeito da Teoria da Razão para Ação, T

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3

Sobre neoconstitucionalismo ver: BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: um triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/14577035/NEOCONSTITUCIONALISMO-E-CONSTITUCIONALIZACAO-DO-DIREITO-LUISROBERTO-BARROSO. Acessado em 10/05/2011 TU

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4

O conceito de derrotabilidade surge na obra de Herbet Hart em seu artigo The Ascription of Responsibility and Rights quando reconhece a existências de pressupostos que mesmo estando reunidas todas as condições para aplicabilidade da norma esta pode ser derrotada, não sendo aplicada. “When the students has leardned that in English law there are positive conditions required for the existence of a valid contract, he has still to learn what can defeat a claim that there is a valid contract, even though all these conditions are satisfied. The students has still to learn what can follow on the words ‘unles’, which should accompany the stated of theses conditions”

832

complementada6 por Alexy7 ao afirmar que as regras e os princípios8 são considerados como T

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razões às normas e, portanto, também são, mediatamente, razões à ação. Assim, a derrotabilidade da norma jurídica9 é uma conseqüência da interação entre regras e princípios. T

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Como expressa Juan Carlos Bayón Mohíno: Dado que não possível prever de antemão aqueles casos genéricos nos quais um princípio prevalecerá em detrimento de outro e que qualquer regra está sujeita à exceções implícitas por razões de princípio (o que nos levaria, de certo modo, a um outro equilíbrio entre princípios); toda norma jurídica terá um princípio ou uma regra de exceções implícitas, que não são passíveis de identificação genérica com antecedência. (tradução nossa)10 T

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No campo da Teoria do Direito11 é possível analisar três sentidos diferentes de T

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derrotabilidade da norma, de acordo com posicionamento de Ángeles Ródenas12: o primeiro diz T

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respeito à derrotabilidade da prescrição normativa, quando a aplicabilidade do preceito contido na norma é derrotável no caso concreto; o segundo, a refere-se à derrotabilidade da normativa, 5

RAZ, Joseph. Razón práctica y normas. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991. p.87: na Teoria da Razão para Ação, o autor caracteriza as normas jurídicas como razões, predeterminadas por regras do sistema, para a ação; RÓDENAS, Ángeles. En la penumbra: indeterminación, derrotabilidad y aplicación judicial de normas. Doxa. México: Alicante, 2001. p.70: este autor elucida que essa formulação possui dois significados: "que a regra constitui para o uma de juiz um argumento de primeira ordem para levar a cabo a ação exigida [...] e que a regra também é uma razão excludente imprescindível para o resultado, sem a qual levaria a uma deliberação independente por parte do juiz em seus argumentos em pró e contra para levar a cabo a ação." – tradução nossa. (que la regla constituye para el juez uma razón de primer orden para realizar la acción exigida[...] y, que la regla es también una razón excluyente para prescindir del resultado al que llevaría una deliberación independiente por parte del juez sobre los argumentos en pro y en contra de realizar la acción.); DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico. São Paulo: Método, 2006. p.134-136: observa-se que Raz é considerado um dos principais representantes do “Positivismo Jurídico Exclusivo - PJE” e, sobre esse assunto, Dimoulis disserta com propriedade na obra em referência. 6

Apud DIMOULIS, Dimitri. op. cit. p.140: o autor explica que a fusão dessas duas teorias ocorre, pois Raz estabelece que “se um problema jurídico não pode ser respondido mediante padrões que derivam de fontes legais, então não há resposta jurídica. Nesse caso, o direito não é posto. Decidindo sobre tais problemas os tribunais devem necessariamente adentrar em um novo espaço (jurídico) e sua decisão faz evoluir o direito.” Frisa, ainda que, o “PJE tende a admitir grande liberdade de decisão do aplicador, já que, em caso de dúvida interpretativa, de lacuna ou de norma de baixa densidade normativa, ele decidirá exercendo um poder próprio.[...] Raz reconhece que, em tais casos, o juiz costuma recorrer a considerações morais, mas não considera que isso possa ser exigido e muito menos pensa que é possível indicar, como mios teóricos, qual decisão é melhor.” - grifo nosso. 7

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentais. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. p.102.

8

Ibidem. p.86-87: para este autor, a diferença entre regras e princípios é qualitativa. Sendo os princípios normas que possam ser executadas em diferentes níveis, cujas medidas de seu cumprimento não depende somente das possibilidades reais, mas também das jurídicas, ele denomina os princípios como mandatos de otimização. Já as regras representam determinações no âmbito fático e juridicamente possível, ou seja, se uma regra é considerada válida então ela deve ser obedecida. 9

Cf. RÓDENAS, Ángeles. op. cit. p.63-83; 2001; BAYÓN MOHÍNO, Juan Carlos. op. cit. p. 87-117; RODRÍGUEZ, Jorge Luis, La derrotabilidad de las normas jurídicas. Isonomía. México, 1997. p.149-167; RODRÍGUEZ, Jorge Luis; SUGAR, G. Las trampas de la derrotabilidad: Niveles de análisis de la indeterminación del Derecho. Doxa. México: Alicante, 1998. p.403-420. 10

BAYÓN MOHÍNO, Juan Carlos. op. cit. p.92: “dado que no é posible precisar de antemano en que casos genéricos prevalecerá un principio sobre otros y que cualquier regla está sujeta a excepciones implícitas por razones de principio( lo que nos reconduciría de un modo u otro a un balance entre principios), toda norma jurídica, ya sea un principio o una regla excepciones implícitas que no es posible identificar genéricamente por anticipado.” 11

No estudo da Teoria do Direito, atribuem a Hart como o precursor, em seu artigo de 1948, intitulado “The Ascription of Responsibility and Rights”, da transposição da concepção de defeasibility, direito de propriedade, para as reflexões sobre a indeterminação semântica dos conceitos jurídicos. Contemporaneamente, a revigoração da idéia da derrotabilidade ocorre com as divergências acerca da distinção entre regra e principio como fundamentos da razão para ação.

12

RÓDENAS, Ángeles. Op.cit. p.75.

833

quando os compromissos entre as razões que sobejam a formulação da norma estão mal construídos ou são superados13; e o terceiro, a denominada derrotabilidade radical da norma14, T

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se dá quando, decorrido o processo de identificação do Direito, chega-se ao resultado não somente baseado nos critérios jurídicos, mas nos extra-jurídicos.15 T

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Diante dos vários aspectos16 amparam o conceito de derrotabilidade, as principais T

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possibilidades que se destacam para a ocorrência do fenômeno, são elas: a) Alteração do contexto social da norma entre o momento de aplicação da norma e da elaboração; b) Introdução de exceções antes não contempladas pela norma; c) A estrutura aberta da linguagem dos enunciados de natureza polissêmica normativo previsto; d) A impossibilidade do legislador prevê as hipóteses – exceções implícitas; e) Reconhecimento de normas morais pelo órgão jurisdicional que reputam como injusta a solução normativa descrita do sistema; f) Para se determinar a qualificação normativa de certa conduta ao caso concreto é necessário descrever a situação concreta. Diferentes descrições podem determinar diferentes qualificações normativas;

13

É possível elucidar os dois primeiros sensos de derrotabilidade com o exemplo fornecido por Ródenas: Suponha-se que em uma biblioteca pública exista uma norma que estabeleça a proibição do uso de aparelhos que emitam sons no interior de seu recinto. Será que os agentes da segurança da biblioteca devem proibir a entrada dos funcionários da limpeza que trabalham antes da abertura ao público? A justificação da regra consiste em não perturbar os usuários daquele local (razão 1). O uso de aparelhos sonoros pelos funcionários da limpeza, antes da abertura ao público, não interfere na tranqüilidade dos usuários; logo, o caso dos funcionários está fora do alcance da norma e, assim, a norma é derrota, pois sua justificação não produz efeito para o caso em si. Numa segunda hipótese, suponha-se que durante o expediente os funcionários da biblioteca utilizam um aparelho sonoro para avisar aos usuários para evacuar o local, pois estaria havendo um incêndio no prédio. Será que a norma também se aplica a esse caso? Certamente que não, visto que a norma (razão 1) prevalece apenas sobre o desejo de outros usuários da biblioteca de utilizarem aparelhos sonoros (razão 2), mas não prevalecendo sobre o valor da vida humana (razão 3). Assim, a norma é derrotada dentro do segundo sentido, pois apesar de sua validade, o caso consiste em uma exceção não prevista previamente por ela, que possui um caráter aberto. Nessas duas hipóteses, como bem ensina Ròdenas, o dispositivo normativo incorpora certas circunstâncias não previstas anteriormente - como os funcionários da limpeza e os da biblioteca – em que a prescrição não se aplica. Entende-se que nesses dois casos a derrotabilidade ocorre num esquema lógico raziniano da razão para a ação, isto é, a razão da norma em estudo consiste em não perturbar os usuários da biblioteca, sendo a ação da proibição dos usuários de utilizarem aparelhos sonoros na biblioteca permitida; em ambos os casos a ação resultante no caso concreto não reflete a razão da norma-original, pois o raciocínio lógico foi derrotado por exceções da norma-original. No entanto, é importante observar que nessas duas hipóteses tem-se uma indeterminação interna do sistema normativo, que ocorre no cerne do processo de interpretação da norma no caso concreto. 14

Terminologia criada por Juan Carlos Bayon Mohino.

15

No terceiro senso existe uma discordância quanto à fundamentação da norma. A derrotabilidade se dá no sistema lógico de Alexy, pois as divergências recaem sobre os princípios que fundamentam a norma, que expressa à razão para a ação. Ao se analisar sobre o prisma dos filósofos comunitaristas, por exemplo, a previsão constitucional que determina a laicidade do Estado francês, os questionamentos recairiam sobre o Principio da Neutralidade do Estado, como forma de ocupação da vida pública vazia, correlacionado à concepção francesa de laicidade, haja vista tal preceito expressar, segundo essa corrente filosófica, a perspectiva de uma determinada tradição cultural dominante – o liberalismo europeu ocidental – sobre as demais. Desse modo, o caráter neutro é ilusório, não proporcionado uma possível interação da diversidade cultural. Nesse caso, a derrotabilidade se dá por meio de uma crítica externa à legitimidade de aceitação da norma e não por uma indeterminação interna do sistema, visto que o texto constitucional é valido dentro dos parâmetros estabelecido pela legislação. 16

Aspectos destacados por Jorge Luis Rodriguez e Germán Sucar . Op cit. 1998.

834

g) Não há como considerar uma descrição como verdadeira ou concreta; h) As informações da realidade são sempre incompletas; i) As exceções da realidade também encontram apoio em uma disposição do sistema. Como veremos na analise dos votos proferidos pelos do Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a aplicação do regime da união estável às relações homoafetivas, os critérios descritos acima foram observados por eles, como por exemplo: a polissemia da norma, a alteração da realidade social, entre outras. Assim, derrotando a Corte a norma do Código Civil, bem como, o conceito de família do art. 223 da Constituição Federal, ao reconhecer a existência de uma lacuna normativa, devendo ser preenchida pelo Tribunal para resguardar a nova modalidade de família: a família homoafetiva.

3. Ativismo Judicial O termo ativismo judicial (judicial activism) foi empregado pela primeira vez em 1947, nos EUA, pelo historiador e político do partido democrática Arthur Schlesinger Jr em uma artigo publicado na Revista Fortune. Ele utilizou o termo na época para indicar as formas de atuação da Suprema Corte, sendo elas: a primeira defendia uma postura mais progressista da Corte ao desenvolver um papel importante na efetivação de políticas para concretização de direitos com base na concepção política dos juízes, sendo denominada de ativismo judicial; já a segunda postura, adotava uma linha mais conservadora ao sustentar que as políticas públicas deveriam ficar aos cuidados dos poderes eleitos democraticamente, adotava, assim, uma postura de contenção judicial. Apesar de cunhar o termo Schalesinger não conceituou claramente nem, estabeleceu critérios para determinação de quando se tem uma postura ativista ou não.17 T

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Posteriormente, o termo foi empregado por jurista Edward McWhinney, em 1958, ao refletir sobre os conflitos ideológicos e jurídicos da Suprema Corte em decisões que envolvem questões T

políticas sensíveis, criticando os juízes ativistas por não serem politicamente preparados e legitimados pelo principio democrático para traduzir os desejos da comunidade nesses assuntos.18 T

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Apesar do intenso debate sobre o ativismo judicial na doutrina americana refletindo na doutrina nacional desde 200019, o termo ativismo ainda apresenta muita vagueza na sua T

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conceituação, como bem observa Dimoulis: O interessado pelo ativismo constata facilmente a falta de delimitação do termo. Ora, a clareza da definição é pré-requisito de análise dessa prática judicial, especialmente para verificar a pertinência das críticas sobre o ativismo. Como se posicionar perante o ativismo se não se sabe quais magistrados e decisões são ativistas? Enquanto persiste a confusão sobre o termo, prevalecem definições 17

KMIEC, Keenan. The origin and current meanings of "judicial activism". California Law Review, v. 92, 2004, p. 1446-1448.

18

Ibidem .p. 1452.

19

Destacando a recente obra de Elival da Silva Ramos e Dimitri Dimoulis.

835

emocionais-políticas que usam o ativismo como termo pejorativo para desqualificar decisões ou tribunais contrárias a certas posições políticas, em particular rejeitando as posturas progressistas dos tribunais. Tais definições não promovem o debate sobre a legitimidade da atuação do Judiciário no controle de constitucionalidade.20 T

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Dimoulis, analisando o conceito de ativismos sem utilizar o termo de maneira emocional divide em duas vertentes: uma de cunho quantitativo, que adota o conceito analisando os números de decisões do Poder Judiciário invadem a esfera dos outros poderes, assim afetando a separação e a harmonia entre eles21; já outra de natureza qualitativa, que se preocupa com os T

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critérios de atuação ou não dos juizes, porem falta clareza nos critérios a serem analisados22. T

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“Isso se deve à dificuldade de distinguir entre ativismo qualitativo e atuação inconstitucional-ilegal do julgador. Aquele que atua além dos limites constitucionalmente estabelecidos contraria a Constituição e abandona o papel de seu guardião. Em tais casos, quem se refere ao ativismo usa um eufemismo para a violação do direito”.23 T

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No presente trabalho, adota se um conceito preliminar de ativismo como sendo a atividade jurisdicional que para concretizar um direito, ultrapassa as barreiras predeterminadas de sua esfera de atuação pelo constituinte e adentrando em áreas de outros poderes, como do Poder Legislativo, assim, atuando como verdadeiro legislador positivo, ao tomar decisões dentro do controle de constitucionalidade concentrado. Postura essa, defendida pelos ministros do Supremo Tribunal Federal ao julgar o reconhecimento da união estável as relações homoafetivas.

4. O Supremo Tribunal Federal e o reconhecimento da União homoafetiva 4.1 As ações propostas A Procuradoria-Geral da República (PGR) propôs a ADI 4277 que solicitava aplicação do método hermenêutico da interpretação conforme a Constituição Federal ao artigo 1.723 do Código Civil, assim, se reconhecendo também a união entre pessoas do mesmo sexo, desde que cumprido os requisitos legais. Para PGR o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar pela norma infraconstitucional viola vários princípios constitucionais, como: os princípios da dignidade humana ( art. 1º, III da CF/88); da igualdade (art. 5º, caput, da CF/88); da vedação T

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DIMOULIS, Dimitri. LUNARDI. Soraya. Ativismo e autocontenção judicial no controle de constitucionalidade. Disponivel in: http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/ativismo%20soltas.pdf. Acessado em 12/05/2011.p 2 TU

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Observa o autor o descuidado desta corrente “Ainda que se estabeleça um quadro comparativo no tempo e entre países, mostrando uma atividade particularmente intensa em certo período ou país, isso não permite concluir algo sobre o “ativismo”, pois o grande número de declarações de inconstitucionalidade não significa que um tribunal seja ativista. Sua atividade intensa pode ser conseqüência da atuação sistemática do legislador em desrespeito à Constituição ou da amplitude das competências judiciais em certo ordenamento. Não se pode chamar de “ativista” um médico que atende muitos pacientes durante uma epidemia!”. Ibidem p.4

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Ibidem. p.3-4

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Ibidem. p.4.

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de discriminação odiosa (art. 3º, V, da CF/88); da liberdade (artigo 5º, caput) e da proteção à T

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segurança jurídica (artigo 5º, caput), todos da Constituição Federal (CF). T

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No mesmo sentido, argumentou o Governador do Rio de Janeiro ao considerar a omissão do Legislativo Federal sobre o assunto, ajuizando a ADPF 132. Alega, também, que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais da Constituição como igualdade, liberdade (do qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana. O Supremo realizou o julgamento conjunto de ambas as ações propostas.

4.2 As posições dos Ministros do Supremo Tribunal Federal24 T

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Foi relator de ambas as ações o Ministro relator Ayres Britto, que lembrou em seu voto que existe uma “diferença fundamental” entre o dispositivo do art. 1.723 do Código Civil e o parágrafo 3º do artigo 226 da CF, apesar do primeiro ser quase uma cópia literal do segundo, pois, “enquanto a CF nos fornece elementos para eliminar uma interpretação reducionista, o Código Civil não nos dá elementos, ele sozinho, isoladamente, para isolar dele uma interpretação reducionista”. Ressalvando ainda, que “o texto em si do artigo 1.723 é plurissignificativo, comporta mais de uma interpretação”, portanto afirmou que “por comportar mais de uma interpretação, sendo que, uma delas se põe em rota de colisão com a Constituição, estou dando uma interpretação conforme, postulada em ambas as ações”. Para Ayres Britto nenhum dos dispositivos da Constituição Federal que tratam da família está presente a vedação de sua formação a partir de uma relação homoafetiva, uma vez que, a constituinte de 1988 superou a antiga visão de família apenas constituída a partir do casamento, prevista na Constituição anterior de 1967, passando a constituir a partir do afeto que envolve as pessoas. Sustentou ainda, com veemência, que o artigo 3º, inciso IV, da CF proíbe qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual: “O sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”, assim, na visão do ministro qualquer forma de depreciação da união estável homoafetiva confronta claramente, deste modo, com o principio da não discriminação do IV do artigo 3º da CF.. Observou, também, que a Constituição Federal “age com intencional silêncio quanto ao sexo” ao tratar da proteção da entidade família, por respeitando a privacidade e a preferência sexual das pessoas. “A Constituição não obrigou nem proibiu o uso da sexualidade. Assim, é um direito subjetivo da pessoa humana, se perfilha ao lado das clássicas liberdades individuais”, já que, “a preferência sexual é um autêntico bem da humanidade”, que na visão do ministro tanto 24

Todos os trechos dos votos citados estão disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635 TU

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como o heterossexual se realiza pela relação heterossexual, como o homossexual tem o direito de ser feliz relacionando-se com pessoa do mesmo sexo, na relação homoafetiva. Deste modo, aplicou a interpretação conforme a norma do artigo 1723 do Código Civil deve assim eliminando “qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como ‘entidade familiar’, entendida esta como sinônimo perfeito de ‘família’”. O ministro Luiz Fux, acompanhou o ministro relator, pronunciou a favor da equiparação da união homoafetiva à união estável prevista no artigo 1.723 do Código Civil, chegando afirmar que: “Quase que a Constituição como um todo conspira em favor a essa equalização da união homoafetiva à união estável”. Em seu voto Fux utilizou-se de inúmeros princípios constitucionais, como dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, para assegurar que a Constituição também garante aos casais homossexuais os mesmo direitos que os casais heterossexuais. Destacando que “A Constituição Federal, quando consagrou a união estável, positivamente não quis excluir a união homoafetiva”. Na visão do ministro o principio da igualdade perante a lei, do caput do art. 5º, já garante a proteção aos casais homossexuais que formar, perante a lei, uma família de seus direitos enquanto instituição familiar, assim, contrariando os que defendem que somente através de uma mutação formal, ou seja, uma emenda a constituição tal relação estaria protegida. Argumentou o ministro que o principio da dignidade da pessoa humana consiste em um dos elementos que compõem o conceito de família, portanto, só tendo validade se este for respeitado, assim concluindo: “Se esse é o conceito, se essa é a percepção hodierna, a união homoafetiva enquadra-se no conceito de família.” A nosso ver, o ministro ainda trabalhou um elemento externo a norma ao afirmar que a Corte não estaria reescrevendo a história das minorias, já que a união homoafetiva é um fato da vida, uma realidade social. Mencionando diversas normas já existentes que reconhecem a relação, como: a norma que permite que parceiros de casais homossexuais figurem como dependentes em declaração de imposto de renda. Concluindo seu voto, defendeu a postura ativista do Supremo ao considera o julgamento como um “momento de travessia” que o legislador não fez, mas que a Corte se mostrou disposto a fazer. “Daremos a esse segmento de nobres brasileiros, mais do que um projeto de vida, um projeto de felicidade”. Terceiro voto a ser proferido foi da ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, também no sentido favorável ao reconhecimento da família homoafetiva. Iniciou seu voto ressaltando o papel do STF na defesa e concretização de direitos fundamentais e dentre eles o de vedar qualquer forma preconceituosa de discriminação. 838

Como nos votos anteriores, também fundamentou na questão principiológica e não na regra pura para incluir a família homoafetiva no amparo constitucional do art 226 da CF/88 , assim argumentou:“a largueza dos princípios constitucionais determina que a interpretação a ser aproveitada, quanto aos direitos fundamentais, impede uma interpretação que leve a tais óbices e exclusões”. Destacou ainda sobre a tutela do principio da não descriminação, do ar.t 3º. IV da CF/88, que “aqueles que fazem sua opção pela união homoafetiva não podem ser desigualados em sua cidadania. Ninguém pode ser tido como cidadão de segunda classe, como ser humano” por que adotou o padrão diferente da maioria. Assim, defendeu a autônima da vontade das partes de cada individuo, desde que não conflitante com de outros, pois, em sua visão “o direito existe para a vida , não a vida para o direito”. Baseando sempre seu voto pelo principio da dignidade da pessoa humana, a ministras, concluiu estendendo o significado do principio do pluralismo político expresso do art 1º. IV da CF/88 também as relações sociais, o que chama de pluralismo social, assim devendo o Estado respeitar as escolhas dos indivíduos em constituir uma família independentes das opções sexuais. “As escolhas pessoais livres e legítimas, segundo o sistema jurídico vigente, são plurais na sociedade e, assim, terão de ser entendidas como válidas.”. Finalizou a ministra, que “o que é indigno leva ao sofrimento socialmente imposto. E sofrimento que o Estado abriga é antidemocrático. E a nossa é uma Constituição democrática”. O quarto ministro a se manifestar foi o ministro Ricardo Lewandowski. Iniciou seu voto fazendo um resgate histórico da redação do parágrafo 3º do art. 226 da Constituição durante a Constituinte, mas observou que o conceito de famílias abrangidas pelo dispositivo foi ampliado além do casamento, visão tradicional, sustentando que a união homoafetiva estável no tempo e pública é hoje uma realidade. Argumentando em seu favor, demonstrou as informações do último senso realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apurou a existência de 60 mil casais em união homoafetiva no Brasil. Observou sobre a postura do Poder Judiciário diante do caso, afirmando que não poderia mais adotar a visão defendida pelos pensadores liberais do século XVIII, mera bouche de la loi, admitindo uma certa criatividade pelos juízes diante das lacunas existente no ordenamento, através de uma interpretação sistemática pautadas nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da preservação da intimidade e da nãodiscricionariedade por orientação sexual. Assim, como não existe previsão constitucional para essa nova modalidade de entidade familiar, para seu reconhecimento, na visão do Ministro, caberia aplicar a técnica de interpretação que chamou de “técnica de integração analógica”, ou seja, baseado nos ensinamentos do constitucionalista português José Gomes Canotilho, enquadrar essa nova relação na legislação mais próxima, até que ela seja definitivamente regulada pelo Poder Legislativo. Isso deve a 839

existência de um vácuo normativo entre a realidade superveniente e a norma, mantendo, assim, as pessoas que vivem em relação homoafetiva na clandestinidade legal, o que seria inadmissível na visão do Ministro. O ministro Joaquim Barbosa foi o quinto ministro a se pronunciar, seguindo a mesma linha que os antecessores, também julgou o reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo, tendo como fundamentos não o parágrafo 3º do art. 226 da Constituição Federal, mas sim nos princípios constitucionais e a nova realidade social em que vivemos. Observou que “estamos diante de uma situação que demonstra claramente o descompasso entre o mundo dos fatos e o universo do direito”, neste sentido ressaltou que se trata de uma hipótese em que “o direito não foi capaz de acompanhar as profundas e estruturais mudanças sociais não apenas entre nós, brasileiros, mas em escala global”. O ministro Joaquim Barbosa, no mesmo sentido que a Ministra Carmem Lúcia, pautado no principio da não discriminação, do art 3º, IV da CF/88, destacou que Constituição Federal pretende extinguir ou, pelo menos, diminuir a desigualdade fundada no preconceito ao “estabelece, de forma cristalina, o objetivo de promover a justiça social e a igualdade de tratamento entre os cidadãos”. Para o ministro o texto constitucional não menciona e nem proíbe o reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas, observou ainda que os direitos fundamentais expresso na Constituição são apenas de forma exemplificativa podendo, por força do parágrafo 2º do art. 5º da CF/88, outros direitos serem amparados pela Carta. Salientou, também, que não reconhecimento dos direitos das pessoas que mantêm relações homoafetivas geraria para ministro uma violação de um dos pilares básicos de sustentação do Estado Democrático: o principio da dignidade da pessoa humana. Concluiu seu voto, acompanhando o ministro relator, que o reconhecimento da união estável para as pessoas que vivem em relação homoafetiva não se dá pela aplicação da regra do parágrafo 3º do art. 226 da Constituição Federal, mas pela primazia dos princípios constitucionais (dignidade da pessoa humana, igualdade e da não discriminação) em consonância com a realidade atual. Assim, derrotando a norma pelos princípios e elementos externos a ela para reconhecimentos de novos direitos. Afirmando que se tratava de um típico caso de proteção de direitos fundamentais o ministro Gilmar Mendes foi o sexto voto também favorável ao amparo constitucional aos casais de homossexuais que vivem em união estável. No mesmo sentido que os demais ministros, pautado pelos princípios constitucionais, Gilmar Mendes destacou que a ideia de opção sexual está contemplada na ideia de exercício de liberdade e do direito de cada indivíduo de autodesenvolver sua personalidade. Ele acrescentou que a falta de um modelo institucional que proteja casais homossexuais estimula a discriminação. 840

“Talvez contribua até mesmo para as práticas violentas que de vez enquando temos tido notícias em relação a essas pessoas, práticas lamentáveis, mas que ocorrem.” Defendeu o ministro que é necessária um atuação da Corte diante do que chamou de “limbo jurídico”, ou seja, uma lacuna legal, resultado do silêncio do Poder Legislativo diante da matéria, assim, cabe a Corte garantir ao cidadão o amparo de legal de seus direitos fundamentais, entretanto, ressalvou que: “Pretender regular isso é exacerbar demais nossa vocação de legisladores positivos, com sério risco de descarrilarmos, produzindo lacunas”. Frisou Gilmar Mendes que uma interpretação literal da Constituição não deixa nenhuma dúvida que o texto fala de união estável entre homem e mulher (parágrafo 3º do artigo 226), como já regatado anteriormente por Lewandowski. Mas concordando com o ministro relator que “o fato de a Constituição proteger a união estável entre homem e mulher não significa uma negativa de proteção à união civil estável entre pessoas do mesmo sexo”. Diante da lacuna legal, o ministro reafirmou que “há outros direitos de perfil fundamental que justificam a criação de um modelo idêntico ou semelhante àquele da união estável para essas relações (homoafetivas) existentes”. A ministra Ellen Gracie foi o sétimo voto a favor da união homoafetiva, acompanhando integramente o ministro relator. Em uma manifestação sucinta a ministra referiu-se ao conceito de família destacando a importância dos preenchimentos dos requisitos de “durabilidade da relação, a não-clandestinidade e a continuidade, além da ausência de impedimento”, e não a orientação sexual das pessoas envolvidas. Enfatizou que o reconhecimentos de direitos as pessoas em relação homoafetiva é um paradigma do direito hodierno no mundo, destacando os países da Europa ocidental, Espanha, Portugal, Canadá, argentina e África do Sul, devendo assim o ordenamento jurídico brasileiro acompanhar as mudanças sociais sofridas, buscando a garantia de uma “ igualdade plena” entre os indivíduos, vencendo assim as “barreiras” do preconceito social, afinal nas palavras da ministra: “uma sociedade decente é uma sociedade que não humilha seus integrantes”. Assim, concluiu a ministra que o ato do Supremo em reconhecer da união estável entre pessoas do mesmo sexo “restitui [aos homossexuais] o respeito que merecem, reconhece seus direitos, restaura a sua dignidade, afirma a sua identidade e restaura a sua liberdade”. Oitavo ministro a proferir seu voto também no sentido de dar a interpretação conforme ao dispositivo normativo do Código Civil a favor da constitucionalidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo foi o ministro Marco Aurélio que destacou a evolução do conceito de família, anteriormente ligado ao elo casamento e casais heterossexuais para o moderno atrelado ao laço afetivo que une as pessoas na relação, como já realizado por outros ministros anteriormente; além de, ressalvar que não existe, na Constituição Federal, vedação à aplicação do regime da união estável a essas uniões.

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Observou o ministro que a partir da Constituição de 1988 houve um processo de “constitucionalização do direito”, existindo, assim,“ uma evolução doutrinária relativa a teoria das normas jurídicas, nas quais se ampliou a compreensão da função e do papel dos princípios no ordenamento jurídico”, sendo destacado no caso em tela os princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF/88);o princípio do desenvolvimento do bem comum e da não discriminação ( ambos art. 3º II e III da CF/88) e os princípios da igualdade e da liberdade ( ambos do caput do art. 5º), que possibilitam o reconhecimento da união homoafetiva como união estável, dentro da regra do art. 226, parágrafo 3º da CF/88. O ministro reconheceu a delicada relação existente entre o direito e a moral apesar de terem critérios distintos, entretanto, as concepções morais não podem determinar o tratamento dispensado pelo Estado aos direitos fundamentais.p Para ele “as garantias de liberdade religiosa e do Estado laico impedem que concepções morais religiosas guiem o tratamento estatal dispensado a direitos fundamentais, tais como o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à autodeterminação, à privacidade e o direito à liberdade de orientação sexual.”. Ainda sobre a função do Estado na efetivação de direitos independente de preceitos morais, destacou, o ministro, o papel estatal na concretização do principio da dignidade da pessoa humana: O Estado existe para auxiliar os indivíduos na realização dos respectivos projetos pessoais de vida, que traduzem o livre e pleno desenvolvimento da personalidade. O Supremo já assentou, numerosas vezes, a cobertura que a dignidade oferece às prestações de cunho material, reconhecendo obrigações públicas em matéria de medicamento e creche, mas não pode olvidar a dimensão existencial do princípio da dignidade da pessoa humana, pois uma vida digna não se resume à integridade física e à suficiência financeira. A dignidade da vida requer a possibilidade de concretização de metas e projetos. Daí se falar em dano existencial quando o Estado manieta o cidadão nesse aspecto. Vale dizer: ao Estado é vedado obstar que os indivíduos busquem a própria felicidade, a não ser em caso de violação ao direito de outrem, o que não ocorre na espécie. Certamente, o projeto de vida daqueles que têm atração pelo mesmo sexo resultaria prejudicado com a impossibilidade absoluta de formar família. Exigirlhes a mudança na orientação sexual para que estejam aptos a alcançar tal situação jurídica demonstra menosprezo à dignidade. Esbarra ainda no óbice constitucional ao preconceito em razão da orientação sexual.

O ministro finalizou seu voto após fazer menção ao publicista Celso Antonio Bandeira de Melo “ violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma” afirmando que extrai do núcleo da dignidade da pessoa humana a obrigação” da Corte reconhecer a união homoafetiva a aplicação do regime da união estável. O Ministro Celso de Mello foi o nono a votar, também acompanhou o ministro relator, e afirmou ser “um ponto de partida para novas conquistas” da comunidade homossexual no Brasil, ao ter o reconhecimento da instituição do regime da união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidades familiares, prevista no art. 226 da Constituição Federal. 842

Em um resgate histórico, recordou em seu votos as perseguições sofridas por homossexuais desde o início da história brasileira, para concluir que “é arbitrário e inaceitável qualquer estatuto que puna, exclua, discrimine ou fomente a intolerância, estimule o desrespeito e a desigualdade e as pessoas em razão de sua orientação sexual”. Também, defendeu com veemência o ministro que ninguém pode ser privado de seus direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual. Todos têm o direito de receber proteção das leis, frisou. Ele se referiu ao direito personalíssimo do cidadão à orientação sexual, e à legitimidade ético-jurídica do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, para dizer que enquanto a lei não tratar do tema, os juízes não podem fechar os olhos a essa realidade. Para o ministro, tanto a união heterossexual quanto a homossexual são entidades familiares, por sustentarem sua existência nos vínculos de solidariedade, amor e de projetos de vida em comum, portanto, ambas merecem integral amparo do Estado, caso contrario estaria sendo violado o princípio da não descriminação, previsto do art 3ºIV da Constituição Federal. Defendeu o ministro uma postura ativista do Poder Judiciário, rebatendo as criticas a ela, diante na inoperância da atuação do Poder legislativo, assim, devendo a Corte proteger essa relação e garantido os direitos fundamentais dos envolvidos, com base nos princípios constitucionais, até que o Poder Legislativo o faça. Sendo justamente, a falta de norma especifica tutelando a relação que ocasionou o fomento do Poder Judiciário em garantir o livre exercício da liberdade e igualdade, como garante dos direitos fundamentais às pessoas em relação homoafetiva. Assim,segundo ministro,“não pode o estado conviver com o estabelecimento de diferenças entre cidadãos com base em sua sexualidade”. O decano do STF também defendeu a não interpretação literal do parágrafo 3º do art. 226, bem como na norma infraconstitucional, devendo ambas ser interpretadas com base nos princípios constitucionais, dentre eles, destacou o que chamou de direito à busca da felicidade, “que decorre, por implicitude, do núcleo de que se irradia o princípio da dignidade da pessoa humana, assume papel de extremo relevo no processo de afirmação, gozo e expansão dos direitos fundamentais, qualificando-se, em função de sua própria teleologia, como fator de neutralização de práticas ou de omissões lesivas cuja ocorrência possa comprometer, afetar ou, até mesmo, esterilizar direitos e franquias individuais.” Finalizou o ministro afirmando que a decisão tomada pela Corte no julgamento das duas ações consiste um passo significativo contra essa discriminação, no sentido de viabilizar, como uma política de Estado, a consolidação de uma ordem jurídica inclusiva e a observância do postulado fundamental do sistema normativo brasileiro: o da dignidade da pessoa humana. O último ministro a se pronunciar foi o presidente do Supremo Tribunal Federal que em voto breve reconheceu a existência de uma lacuna normativa em relação à união entre pessoas 843

do mesmo sexo e a necessidade da Corte em preencher este hiato entre a norma e a realidade, apesar de ressalvar que seria impossível o Tribunal examinar exaustivamente todas as hipóteses e seus desdobramentos de sua decisão. Portanto, convoca o Poder legislativo a regulamentar a situação, sendo o parâmetro constitucional a decisão do Supremo. Assim, como os que sucederam, o ministro Cezar Peluzo defendeu que a descrição normativa do art. 226, §3º da Constituição Federal não exclui outras modalidades de entidade familiar, por não ser tratar de numerus clausus, deste modo, permitindo reconhecimento através de princípios constitucionais, tais como: dignidade da pessoa humana, igualdade, não descriminação, liberdade, entre outros, o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.

5. Considerações Finais Os críticos a derrotabilidade e ao ativismo judicial sustentam sua argumentação do principio da representação democrática e da eletividade, ao afirma que o Poder judiciário não possui legitimidade para normatizar possíveis divergências entre a norma existente e a realidade social, assim, cabendo, ao Poder legislativo, tradicionalmente, a opção em normatizar ou não as novas situações sociais. Se tal postura está correta, a decisão do Supremo Tribunal Federal em reconhecer à união estável a relação homoafetiva por entender a Corte que o conceito de família, por mais que o constituinte estabeleceu claramente ser uma relação entre homem e mulher, seria totalmente descabida e inconstitucional. Assim, os homossexuais, grupo tradicionalmente marginalizado pela sociedade conservadora brasileira, só poderiam ter seus direitos reconhecidos quando o Congresso Nacional aprova se o projeto de lei 1151, de 1995, até então ficaram excluídos de terem direitos reconhecidos ou pior a mercê da benevolência do poder judiciário, em decisões particulares, para terem seus direitos amparados pelo Estado. O Supremo Tribunal Federal inovou ao decidir sobre a aplicação ou não do regime jurídico da união estável às relações homoafetivas ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de descumprimento de preceito Fundamental (ADPF) 132 ambas questionando sobre aplicabilidade do art. 1723 do Código Civil as uniões homoafetivas e a possível violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da isonomia, da liberdade e da proteção da segurança jurídica da Constituição brasileira de 1988. Ao reconhecer a existência de uma lacuna normativa diante do novo contexto social que vivemos e empregar o método hermenêutico sistemático para preenche - lá, através dos princípios constitucionais a atuação do supremo derrotou o conceito de família da Constituição, bem como instituto da união estável, como tradicionalmente aplicado, A Corte abandona a arcaica postura de ser uma mera aplicadora da norma por silogismo jurídico, atuando apenas como legislador negativos, adotando uma postura ativista ao remodelar o 844

conceito de instituição familiar para abarcar a família homoafetiva, assim, derrotou a prescrição normativa constitucional, atuando como legislador positivos, frente a morosidade do Poder legislativo em amparar os homossexuais e seus direitos. Outra postura que não adotada pelo Supremo Tribunal Federal poderia gerar uma maior exclusão social, o que não condiz com os princípios estruturantes de um Estado Democrático de Direito, pois não podemos ficar a mercê de um legislativo moro, como no caso discutido, influenciado por preceitos morais.

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Ativismo e autocontenção judicial no controle de http://www.editorajuspodivm.com.br/i/f/ativismo%20soltas.pdf. U

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STF: ADPF: 132. Relator: Min Ayres Britto. Julgamento em: 05/05/2011. Publicada no DJ n.º 198. Divulg. 13.10.2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Acessado em: 18/05/2011 U

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Princípio da proporcionalidade e Tópica Jurídica: as raízes do mau uso do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro Raphael Henrique Lins Tiburtino dos Santos1 T

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Resumo

Abstract

O princípio da proporcionalidade figura como um dos principais princípios hermenêuticos de efetivação dos direitos fundamentais. No Brasil, contudo, o referido princípio vem sendo utilizado de maneira, por assim dizer, inadequada. Tomando como marco teórico a tópica jurídica de Theodor Viehweg e a distinção entre o “pensar por sistemas” e o “pensar por problemas”, pretendemos demonstrar que o mau uso do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro decorre de causas mais profundas que as corriqueiramente apontadas. Defendemos que esse mau uso é fruto de uma incompatibilidade entre o modo de pensar (ainda dominante) dos juristas brasileiros, acomodados a pensarem por meio de sistemas (pensamento dogmático), e o demandado pelo princípio da proporcionalidade, em especial o subprincípio da proporcionalidade em “sentido estrito”, o qual exige a colocação do problema no cerne do debate (pensamento aporético). Em outras palavras, os aplicadores do direito permanecem convictos de que não participam de sua criação, de modo que seu trabalho resumir-se-ia a uma mera adequação entre o caso concreto e um sistema lógico – ordenamento jurídico – aprioristicamente fabricado e fornecido pelo legislador. Por outro lado, o princípio da proporcionalidade requer uma atitude antes de criação que de adequação. Nesse sentido, faz-se necessário que, diante do conflito juridicamente relevante, haja uma ponderação tópico-argumentativa com vistas a propor uma solução condizente com as demandas específicas do caso concreto.

The principle of proportionality is one of the main hermeneutic principles which helps making the fundamental rights effective. In Brazil, however, the principle has been used in an inappropriate way. Taking the juridical topics of Theodor Viehweg and the distinction between the “thinking through systems” and the “thinking through problems” as our theoretical framework, we intend to demonstrate that the inadequate use of the principle of proportionality in the Brazilian Law derives from deeper causes than the ones usually suggested. We defend that this inadequate use results from an incompatibility between the way of thinking (still dominant) of the Brazilian jurists, who are accustomed to thinking through systems (dogmatic thought), and the way of thinking demanded by the principle of proportionality, especially the proportionality “stricto sensu”, which requests the focus on the problem (aporetic thought). In other words, the ones responsible for applying the law remain convinced they do not participate in its creation, so that their work would be summarized as a mere accommodation between the concrete case and a logical system – legal system – aprioristically made and provided by the legislator. On the other hand, the principle of proportionality requires more a creative than an accommodation attitude. Seen in these terms, it is necessary that, when facing the legally relevant conflict, an argumentative-topical pondering be done in order to propose a suitable solution for the specific demands of the concrete case.

Palavras-Chave: Aporética.

1

Proporcionalidade;

Tópica

Jurídica;

Keywords: Proportionality; Juridical Topics; Aporetic.

Estudante de graduação em Direito na Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Email: [email protected]

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1. Introdução: os limites (retóricos) de nossa tese Muito relutamos antes de enunciarmos estas primeiras palavras. Que primeiras impressões desejamos despertar no leitor? De que forma introduzir nossa tese? Um pano de fundo histórico? Talvez caísse bem. Talvez. Pareceu-nos, todavia, imprescindível expormos, antes de tudo, nossos pressupostos filosóficos. Principalmente porque a postura, a perspectiva que defendemos ecoa quase que como voz isolada, especialmente no “universo” jurídico. Perspectiva retórica. Aparecemos, por assim dizer, como a ovelha negra do rebanho. Um retórico em meio a uma multidão de ontologistas. A palavra “retórica” traz consigo uma série de preconceitos. Desde Platão, os retóricos são vistos com certa cautela. Eufemismo. Enganar, iludir, ludibriar, estes parecem compor o ofício retórico. João Maurício Adeodato fala de “um equívoco bem difundido, não apenas entre o vulgo, mas também no meio filosófico, qual seja, o de que retórica é exclusivamente ornamento e estratégia para influir na opinião dos incautos”2. Essa ideia, contudo, configura apenas uma T

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redução metonímica. Confusão entre gênero e espécie. Nesse sentido, a expressão é ambígua: três são as acepções que merecem destaque. Melhor diríamos: existem três níveis retóricos. Falase, assim, em uma retórica material, além de uma estratégica e outra analítica3. Apenas a primeira T

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nos interessa. Por retórica material, digamos logo, devemos entender uma concepção, uma visão de mundo. A retórica material é, por assim dizer, o que chamamos de realidade. Não considerada como um dado a priori, ensimesmado, ontológico. Pelo contrário. A única realidade a qual temos acesso é artificial, no sentido de produzida, criada mesmo pela linguagem. Não existem “fatos puros”. Tampouco verdades objetivas, racionalmente cogentes a todo e qualquer ser humano. Tudo que “conhecemos” não passam de relatos intersubjetivos, comunicacionais. Aquilo que corriqueiramente rotulamos de “verdades” nada mais são que consensos, acordos linguísticos, relatos pontualmente vencedores, e, por isso mesmo, voláteis, situacionais, mutáveis. O que realmente interessa é a crença (ou não) nesses relatos. Daí João Maurício Adeodato falar que: Nesse sentido da retórica material, não há diferença entre os quasares e os buracos negros, de um lado, e os anjos e demônios medievais e contemporâneos, de outro. O ser humano hoje vive e crê em carros, árvores e arranhacéus; da “realidade” medieval (com fiéis descendentes hoje), além de animais e pessoas, fazem parte do mundo bruxas e predições. É por isso que um juiz contemporâneo não aceitaria na lide argumentos baseados em viagens no tempo e cidadãos na Europa medieval não compreenderiam histórias sobre viagens em foguetes e aviões. O importante é a crença no relato, e essas relações comunicativas fazem a retórica material.4 (grifo nosso) T

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2

ADEODATO, João Maurício. Retórica como metódica para o estudo do direito. Revista Sequência, nº 56, p. 58, jun. 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2011. 3 Cf. Ibidem. 4 Ibidem, p. 71.

847

Assim, importante ressaltarmos que da linguagem nada escapa. Nem mesmo este artigo! É, diríamos, a inevitabilidade da retórica material, entendida como “dado ôntico” da sociabilidade humana5. Conceitos, definições, inferências, comparações, enfim, todo e qualquer enunciado aqui T

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por nós proferido pode, ou melhor, deve ser compreendido, também, como (mero) relato. Isso porque, a despeito de nossa tentativa de avaloratividade, não aspiramos aos mesmos desejos de explicações totalizadoras, omnicompreensivas. Pelo contrário. As conclusões aqui obtidas são, necessariamente, parciais, provisórias, conjeturais, em uma palavra: heurísticas6. T

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Pois bem. Estamos em tempo de explicitar a extensão, os limites de nosso estudo. Isso porque, digamos logo, este possui objetivos bastante precisos, específicos, diríamos até taxativos. Deixaremos, portanto, por diversas vezes, de imiscuir-nos em questões constantes na doutrina brasileira, muitas delas polêmicas. Não que as desprezemos. De forma alguma. Tais temas apenas fogem de nossas pretensões. Estão, por assim dizer, além de nossa alçada. Claro que, inevitavelmente, há sempre o risco de, justamente por essa especificidade, sermos acusados de adotar uma posição cômoda, confortável, esquivando-nos dos problemas, alguns diriam, mais importantes. Talvez seja o caso. Vago, porém, é um rótulo que, de plano, rejeitamos. Destarte, o objeto deste estudo é, basicamente, o princípio da proporcionalidade. Melhor diríamos: o mau uso do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro. O objetivo, por sua vez, demonstrar que essa má utilização decorre da forma como os juristas pátrios pensam a atividade jurídica. Percebe-se, portanto, que não se trata de, por meio de uma análise jurisprudencial, apontar que a proporcionalidade é utilizada de modo equivocado no Brasil. Tal assertiva é tomada como ponto de partida, pressuposto de nossa análise. Partindo dos diversos estudos que argumentam no sentido dessa subutilização do multirreferido princípio7, damos um T

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passo além. Tomamos a indagação: qual seria a razão dessa aplicação inapropriada? É o que, tomando de empréstimo a tópica jurídica e sua distinção entre pensamento sistemático e aporético, comprometemo-nos a responder. Assim, por motivos didáticos, dividiremos o artigo em três partes. Primeiramente, situaremos o princípio da proporcionalidade dentro do neoconstitucionalismo, analisando, posteriormente, seu conceito e, especialmente, sua estrutura. Em segundo lugar, faremos um breve – e, por isso mesmo, superficial – apanhado acerca da tópica jurídica e da distinção entre o pensar aporético e o pensar sistemático. Por fim, com base nas duas partes anteriores, alicerces teóricos, defenderemos que o princípio da proporcionalidade se mostra incompatível com o modelo de abordagem ainda dominante no direito brasileiro. Para falarmos em termos mais técnicos, o pensamento sistemático, que predomina entre os juristas brasileiros, resta 5

Ibidem, p. 70. Para uma definição de heurística, Cf. ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, p. 248-250, 2009. Também, Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros Editores, p. 68, 2011. 7 Apenas a título de exemplo, Cf. SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. 6

848

insatisfatório à aplicação funcional do princípio da proporcionalidade, o qual exige um pensamento problemático, aporético, tópico.

2. O neoconstitucionalismo como background teórico do princípio da proporcionalidade A expressão neoconstitucionalismo é hodiernamente corrente. Parece-nos, inclusive, custoso apontar jurista contemporâneo o qual não tenha dispensado algumas palavras, mesmo que superficiais, acerca do tema. Palavras essas, aliás, nem sempre convergentes, muitas das quais patrocinando causas diametralmente opostas. Dentre as incontáveis divergências, contudo, uma bandeira parece tremular pacífica: a de que o neoconstitucionalismo é fenômeno que opera uma guinada significativa no modo como a Constituição é, ou melhor, deve ser normativamente compreendida. Poderíamos, sem muito esforço, afirmar ser o neoconstitucionalismo um acontecimento único, sem antecedentes históricos, o qual ganhou força substancial no pós Segunda Guerra, especialmente nos países ditos de cultura ocidental. Não nos interessam, contudo, perquirições históricas. Quando, onde ou como surgiu o neconstitucionalismo são indagações em relação às quais silenciamos. “Fato” é que o multirreferido fenômeno é uma realidade atual na dogmática jurídica, merecendo, por isso, uma análise teórica, alguns (mais otimistas) diriam científica. É o relato-vencedor. Rendemo-nos a ele. Pois bem. Sob o plano teórico, o jurista brasileiro Luís Roberto Barroso põe em destaque três principais mudanças decorrentes dessa nova realidade8. Primeiramente, o reconhecimento, T

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por parte da doutrina e da jurisprudência, do que Konrad Hesse denominou de princípio da força normativa da Constituição. Esta deixa de ser vista, compreendida como mera carta de diretrizes políticas, desprovida de normatividade, de coercitividade, passando a vincular diretamente os seus destinatários. Ganham vulto, nesse contexto, os chamados princípios jurídicos, dentre os quais estão compreendidos boa parte dos direitos fundamentais. Não há que se por em dúvida a aplicabilidade direta e imediata dos referidos direitos, de modo que, se violados, ensejam a aplicação da respectiva sanção jurídica. Em segundo lugar, ao lado da força normativa, ganha voga a supremacia da Constituição e, por consequência, a expansão da jurisdição constitucional. A Constituição passa a ostentar posição hierárquica privilegiada no ordenamento jurídico, devendo seu conteúdo ser respeitado por toda e qualquer norma infraconstitucional, sob pena de invalidade. Ora, inócua seria tal superioridade hierárquica se não existissem mecanismos de controle, mecanismos que assegurassem a compatibilidade, o respeito das demais normas do ordenamento frente à

8

BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, p. 3-12, mar./abr./mai. 2007. Disponível em: . Acesso em 30 nov. 2011.

849

Constituição. Surge, portanto, a necessidade inafastável de instrumentos de controle da constitucionalidade das normas jurídicas, o qual passa a ser exercido, majoritariamente, por tribunais constitucionais. Fala-se, assim, em uma expansão da jurisdição constitucional: alargamse os poderes daqueles indivíduos responsáveis pela guarda, defesa, proteção da Carta Magna. Há, a fortiori, uma (super)valorização do papel exercido pelo decididor, intérprete/aplicador dos textos normativos positivados a nível constitucional. Por fim, o jurista carioca fala do desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Devido às especificidades das normas constitucionais – citamos, a título de exemplo, o caráter principiológico de boa parte dessas normas -, os tradicionais cânones hermenêuticos restam insuficientes a sua concretização. Assim, a doutrina e a jurisprudência passaram a desenvolver novos métodos, próprios, específicos à interpretação constitucional. O princípio da proporcionalidade figura, justamente, como um desses novos métodos interpretativos típicos do neoconstitucionalismo. Qualquer tentativa de aproximação teórica deve, necessariamente, levar em consideração tal afirmativa. Diríamos, em outros termos, que o neoconstitucionalismo se apresenta como pano de fundo, background teórico, implicando um sem número de novos paradigmas que, se desprezados, podem gerar – e geram -

a

desfuncionalidade de certas ferramentas retóricas de fundamentação jurídica, como é o caso do princípio da proporcionalidade.

3. A definição do dever de proporcionalidade O princípio da proporcionalidade, já dissemos, é uma espécie de método hermenêutico. Ferramenta utilizada durante a interpretação normativa. Fornece, portanto, uma série de diretrizes, constrangendo o decididor a pautar suas condutas de determinado modo. Em outras palavras, a proporcionalidade exige que o intérprete aja, em relação ao seu objeto, de uma (e não de outra) maneira. De forma bastante suscinta, poderíamos definir a proporcionalidade como um mecanismo de controle da discricionariedade estatal, o qual deve ser utilizado quando, diante de uma medida estatal concreta, dois (ou mais) direitos fundamentais, erigidos sob a forma de princípios, entram em choque. A definição, contudo, é por demais simplista. Restringindo-nos a ela, corremos o risco de despertar a insatisfação do leitor. Assim, sentimo-nos obrigados a explicar de forma mais detalhada o conceito do princípio da proporcionalidade. A fim de facilitar a compreensão, tomaremos, como exemplo ilustrativo, um precedente paradigmático do Supremo Tribunal Federal, considerado nosso leading case em matéria de proporcionalidade: a ADIn 855-2. No precedente em questão, uma lei estadual do Paraná (10.248/93) exigia que, no momento da venda de botijões de gás, estes fossem pesados na presença do comprador. 850

Diferenças entre o efetivo peso dos botijões e o cobrado, assim como eventuais sobras de gás no botijão devolvido, deveriam ser abatidos do preço. A medida, alegava-se, visava a proteção do consumidor. Eis seu fim, sua finalidade. Sentindo-se lesada, a Confederação Nacional do Comércio impetrou uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, pedindo pela invalidação da lei. Dentre outros argumentos, foi levantada a hipótese de desproporcionalidade da medida. É possível vermos, aqui, um típico caso de conflito entre princípios. Explicamos. Princípios podem ser definidos como: (...) normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.9 T

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Pois bem. A Constituição Federal brasileira dispõe, em seu artigo 170, que a ordem econômica deve observar, dentre outros, os princípios da livre concorrência (inciso IV) e da defesa do consumidor (inciso V). Tais dispositivos, tais textos, quando interpretados, dão ensejo à construção de duas normas de direitos fundamentais estruturadas sob a forma de princípios jurídicos. Ora, estando ambas positivadas a nível constitucional, ou seja, tendo ambos os direitos fundamentais sido considerados, pelo constituinte originário, igualmente dignos da máxima tutela jurídica, não há que se falar em hierarquia entre eles. Ao menos é esse o relato que prevalece. Nesse sentido, o princípio da defesa do consumidor não é superior, abstratamente, ao da livre concorrência, e vice-versa. Como, então, resolver o dilema? Latente haver, no caso concreto, um conflito, um choque principiológico. A pesagem de botijões, ao fomentar a realização do princípio da defesa do consumidor, implica, necessariamente, uma agressão ao princípio da livre concorrência. Sendo eles, no entanto, mandamentos de otimização, devem ser satisfeitos no maior grau possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas. Não é o caso, por conseguinte, de simplesmente declarar a invalidade de um deles, extirpando-o do ordenamento jurídico. É, nesse cenário, que surge o princípio da proporcionalidade. Aparece, justamente, como ferramenta que tem por intuito superar, resolver esse problema de choque principiológico. Não ignorando um princípio em detrimento do outro. De forma alguma. Levando em consideração o grau máximo de otimização de ambos, exige-se a proporcionalidade da medida. Em outras palavras, fornece parâmetros para que o decididor possa interpretar, naquela situação real, se a

9 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, p. 90, 2011.

851

restrição a determinada norma principiológica de direito fundamental é proporcional à realização de outra.

4.

A

estrutura

do

princípio

da

proporcionalidade:

adequação,

necessidade

e

proporcionalidade em “sentido estrito” A doutrina, tomando por base a jurisprudência da Corte Suprema alemã, divide o princípio da proporcionalidade em três subprincípios. Estes funcionariam como testes, barreiras, filtros: a medida estatal será proporcional se, e somente se, vencer tais testes. São eles a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em “sentido estrito”. Os dois primeiros cuidam da análise das possibilidades fáticas de otimização dos princípios, enquanto a proporcionalidade em “sentido estrito” das possibilidades jurídicas. É fundamental pormos em relevo a importância da ordem em que os subprincípios devem ser aplicados. Se, como dissemos, eles funcionam como barreiras, estas se apresentam em uma sequência bem delimitada. Assim, a adequação precede a necessidade, enquanto esta precede a proporcionalidade em “sentido estrito”10. Por conseguinte, sendo determinada intervenção T

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declarada inadequada, não há que se questionar pela sua necessidade, pois sequer passou pelo crivo da adequação. De forma bastante resumida, Humberto Ávila sintetiza os três subprincípios da seguinte forma: Uma medida é adequada se o meio escolhido está apto para alcançar o resultado pretendido; necessária, se, dentre todas as disponíveis e igualmente eficazes para atingir um fim, é a menos gravosa em relação aos direitos envolvidos; proporcional ou correspondente, se, relativamente ao fim perseguido, não restringir excessivamente os direitos envolvidos.11 (grifos do autor) T

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Analisemos cada um deles.

4.1 Adequação Também chamado de idoneidade, o primeiro dos subprincípios é o da adequação. Nas palavras de Ávila, “a adequação exige uma relação empírica entre o meio e o fim: o meio deve levar à realização do fim”12. Isso significa dizer que determinada intervenção estatal – meio – é T

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adequada se, diante das situações fáticas, for propícia à fomentação – relação de causalidade – do princípio que a justifica – fim. 10

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, ano 91, p. 34, abr. 2002. ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n 4, p. 28, jul. 2011. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2011. 12 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros Editores, p. 177, 2011. 11

852

O Tribunal Constitucional Federal alemão já se posicionou no sentido de que não é levado em conta, no exame da adequação, o grau de realização do direito fundamental obtido pela adoção da medida. Esse grau de realização será averiguado em outro momento, seja no teste da necessidade, seja no da proporcionalidade em “sentido estrito”. Tomando novamente nosso exemplo, seria o caso de perguntarmos: a lei que exige a pesagem dos botijões de gás fomenta a realização do princípio da defesa do consumidor? Se sim, então ela é adequada, devendo o intérprete seguir para o próximo subprincípio. Se não, a intervenção é desproporcional, e, por consequência, inconstitucional. Robert Alexy assim explica a adequação: Se M1 [medida 1] não é adequada para o fomento ou a realização do objetivo Z – que ou é requerido por P1 [princípio 1] ou é idêntico a ele -, então, M1 não é exigida por P1. Para P1 é, portanto, indiferente se se adota a medida M1, ou não. Se, sob essas condições, M1 afeta negativamente a realização de P2 [princípio 2], então, a adoção de M1 é vedada por P2 sob o aspecto da otimização em relações às possibilidades fáticas.13 (grifo nosso) B

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4.2 Necessidade Passado o crivo da adequação, questiona-se a necessidade da medida. Esse subprincípio é também chamado de princípio da intervenção mínima, da exigibilidade ou da indispensabilidade. Não

fosse

seu

caráter

imperativo,

confundir-se-ia

com

conhecido

“não se

topos:

abatem pardais com tiros de canhão”. Pergunta-se se dentre os diversos meios faticamente possíveis e igualmente adequados à realização de um direito fundamental, o escolhido é aquele menos invasivo em relação a outro direito igualmente tutelado a nível constitucional. Podemos recorrer mais uma vez ao multirreferido exemplo. Supondo-se que já se decidiu pela adequação da pesagem de botijões de gás, cabe questionar se não existe outra medida igualmente eficaz em relação à satisfação do princípio da defesa do consumidor, mas que viole, agrida, em menor intensidade, o princípio da livre concorrência. Não havendo outra medida, diríamos que a lei é necessária, devendo-se proceder à última etapa de análise. Mais uma vez, recorremos à lição de Robert Alexy: (...) o Estado fundamenta a persecução do objetivo Z com base no princípio P1 [princípio 1] (ou Z é simplesmente idêntico a P1). Há pelo menos duas medidas, M1 [medida 1] e M2 [medida 2], para realizar ou fomentar Z, e ambas são igualmente adequadas. M2 afeta menos intensamente que M1 – ou simplesmente não afeta – a realização daquilo que uma norma de direito fundamental com estrutura de princípio – P2 [princípio 2] – exige. Sob essas condições, para P1 é indiferente se se escolhe M1 ou M2. Nesse sentido, P1 não exige que se escolha M1 em vez de M2, nem que se escolha M2 em vez de M1. Para P2, no entanto, a escolha entre M1 e M2 não é indiferente. No que diz respeito às possibilidades fáticas, P2 pode ser realizado em maior medida se se escolhe M2 em vez de M1. Por isso, pelo ponto de vista da otimização em relação às possibilidades fáticas, e sob a condição B

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13 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, p. 120, 2011.

853

de que tanto P1 quanto P2 são válidos, apenas M2 é permitida e M1 é proibida.14 (grifo nosso) B

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4.3 Proporcionalidade em “sentido estrito” Por fim, o último subprincípio é o da proporcionalidade “em sentido estrito”. Não basta que os princípios sejam satisfeitos ao máximo dentro das possibilidades fáticas. Há, ainda, a exigência dessa máxima realização em face das possibilidades jurídicas15. Sendo determinada medida T

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adequada e necessária, deve-se, ainda, questionar se, naquela situação concreta, a restrição a determinada norma de direito fundamental é proporcional à concretização de outra. Em outras palavras, se a finalidade daquela medida concreta justifica as consequências indesejadas de sua adoção. É aqui que ocorre a verdadeira ponderação de bens. Alexy chega mesmo a afirmar que a proporcionalidade em “sentido estrito” é idêntica à própria lei do sopesamento: “quanto maior o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro”16. T

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Com base na ADIn da pesagem dos botijões de gás. Partemos do pressuposto que há uma argumentação “sólida” no sentido da adequação e necessidade da medida. Mesmo assim, haveria ainda de se averiguar se, naquela situação concreta, com todas as sua pecualiaridades e especificidades, a restrição à livre concorrência advinda da obrigatoriedade da pesagem dos botijões de gás é proporcional à finalidade da medida, qual seja, a tutela do consumidor.

5. Sobre duas formas de pensar: sistemática e aporética Acontece, todavia, que o princípio da proporcionalidade é utilizado de modo inadequado no Brasil. Mais que isso: que esse mau uso decorre de uma incompatibilidade entre o modo de pensar sistemático, ainda dominante entre os juristas brasileiros, e o modo de pensar aporético, diretamente exigido pelo mencionado princípio. Ora, a afirmação não parece, de forma alguma, óbvia. Ao afirmá-la, temos em mente um significado bastante específico para os termos utilizados. Assim sendo, parece-nos indispensável delimitar o sentido e alcance das expressões “pensar sistemático” e “pensar aporético”. Em outros termos, explicaremos, de forma bastante sucinta, dadas as limitações deste estudo, os multirreferidos conceitos, fundamentais à compreensão da tese defendida.

14

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, p. 119, 2011. 15 Ibidem, p. 593. 16 Ibidem, p. 593.

854

É

Theodor

Viehweg,

em

sua

obra

Topik

und Jurisprudenz: Ein

Beitrag

zur

rechtswissenschaftlichen Grundlagenforschung17, quem traz, para o âmbito jurídico, a distinção T

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entre o pensar sistemático e o pensar aporético. Ambos, frisemos, expressam modos, formas de pensar. Idealizações de eventuais atitudes do sujeito em relação ao objeto sobre o qual se debruça. São, por assim dizer, autorrelatos. Recorrendo à teoria das imagens, o sujeito, com base em determinado paradigma, projeta uma imagem da realidade, pautando suas ações com base nesta. Nesse sentido, pouco importa se essa imagem corresponde (ou não) a uma suposta realidade “em si”. Em outras palavras, se tal imagem “é” (ou não) uma “ilusão”. Certo é que, pragmaticamente, ela influi diretamente nas relações entre os sujeitos, os quais agem e criam expectativas justamente com base nessa projeção. Pois bem. O “pensar sistemático” parte da “crença”18 na existência de um sistema lógico T

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aprioristicamente posto. Este seleciona, dentre os infinitos problemas possíveis, aqueles os quais se propõe a solucionar19. Em outras palavras, fixa as questões relevantes, solúveis, ou seja, os T

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problemas propriamente ditos de acordo com o ponto de vista adotado. Percebe-se, desde logo, que um sem número de “problemas” permanece sem resposta, seja por serem considerados insolúveis, seja por serem tidos como meramente aparentes, posto que uma prova em contrário exigiria a atuação de sistema distinto daquele escolhido20. Já em relação aos problemas T

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propriamente ditos, (pré)selecionados, a resposta passa a ser decorrência direta do próprio sistema em questão. Nas palavras de Viehweg, “o sistema assume a decisão e decide por si só sobre o sentido de cada questão”21. A solução portanto, figura como mera conclusão lógica de um T

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raciocínio dedutivo, de um silogismo apofântico, apodítico. Única correta, à resposta não restam dúvidas, do ponto de vista técnico, de tal maneira que salta aos olhos sua (in)corretude. Assim, ao sujeito não cabe qualquer papel criativo22, restando-lhe, unicamente, a descrição de uma solução T

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previamente fornecida pelo sistema. Parte-se, em síntese, do sistema ao problema. Podemos depreender, daí, o caráter não situacional23 dessa forma de pensar. Pouco T

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importam as contingências do problema. O sistema e, por conseguinte, as respostas já estão ali postos. Melhor diríamos: a resposta goza de imunidade frente à situação concreta, problemática24, T

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17

Utilizaremos, neste estudo, as seguintes traduções: VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução de Kelly Susane Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008; e VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tércio Ferraz Jr. Brasília: Departamento Nacional de Imprensa, 1979. 18 Não é demais repetirmos que, para os fins deste estudo, pouco importa se o sistema lógico-dedutivo de fato existe ou não. Se o autorrelato do sujeito cognoscente é (ou não) frustrado pelo heterorrelato vencedor. Fundamental é que, a depender da forma de pensar “adotada”, ou seja, da forma como os sujeitos se debruçam sobre os problemas, diferentes imagens são projetadas. E é, justamente, com base nessas imagens, que esses sujeitos agem e criam expectativas. 19 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução de Kelly Susane Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 35, 2008. 20 Ibidem, p.35. 21 Ibidem, p. 45. 22 Ibidem, p. 45. 23 Para uma distinção entre as formas situacional e não-situacional de pensar, Cf. VIEHWEG, Theodor. Tópica y folosofia del derecho. Tradução de Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa Editorial, p. 176-184, 1991. 24 VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução de Kelly Susane Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 45, 2008.

855

sendo obtida abstratamente, com base em dogmas, não implicando qualquer prejuízo chamarmos tal modelo de abordagem de dogmático - “pensamento dogmático”. Tomando a semiótica, Viehweg fala de um completo desprezo ao âmbito pragmático, importando tão somente as dimensões sintático-semântica da linguagem25. T

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No “pensar problemático”, por outro lado, há, por assim, uma verdadeira mudança de perspectiva. O foco passa a estar no problema. Este é posto, diríamos, no centro do palco. Não há, aqui, uma exclusão prévia de questões26. Tampouco há a existência prévia de um sistema que T

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forneça respostas prontas e acabadas por meio de raciocínios puramente formais. Pelo contrário: são, justamente, as peculiaridades, as especificidades do problema (considerado aqui como qualquer questão que suscite dúvida no que diz respeito a sua possível resposta) que fornecerão um caminho para a solução. Daí falar-se, com o mesmo sentido, em “pensamento aporético”. Aporia, do grego, “ausência de caminho”: “ausência de caminho como critério solucionador de um dilema (...)”27. Ou seja, antes do problema, não há, ainda, uma via definitiva a ser seguida. Neste T

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sentido, é só a partir da análise dessas peculiaridades que se torna possível uma resposta adequada às demandas do problema. Não que haja uma ojeriza a toda e qualquer sistematização. De forma alguma. Tal sistematização, todavia, dá-se em momento posterior, amoldando-se às especificidades do caso concreto. Trilha-se, então, o caminho inverso: parte-se do problema ao sistema, ocupando o sujeito verdadeiro papel de criação no tocante a este. Assim, não é forçoso afirmarmos o caráter situacional do “pensamento aporético”. Situacional no sentido de existir uma vinculação direta entre a solução da controvérsia e o contexto na qual está inserida. Vinculação às individualidades do caso. O sujeito se move, no dizer de Viehweg, dentro da situação pragmática do discurso28. T

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É possível que o leitor, aqui, guarde certa cautela em relação ao exposto. Ora, se inexiste um sistema lógico previamente fixado, como, em termos práticos, essa resposta é obtida? Sem dúvida não cairá do céu! Esclarecemos: por meio da argumentação. Entra, aqui, em cenário a tópica. Mais que isso: a retórica. Visando o consenso, abre-se o diálogo. Argumentos pro e contra são levantados acerca de possíveis soluções. E onde encontraremos amparo para tais argumentos, senão em topoi? Topoi (plural de topos), lugares-comuns, “pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade”29. Esses lugares-comuns aparecem, justamente, para iluminar, T

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aclarar determinada situação discursiva30. “Funcionan en el lenguaje como avisos operativos, T

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25

Idem. Tópica y folosofia del derecho. Tradução de Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa Editorial, p. 178, 1991. Idem. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Tradução de Kelly Susane Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 35, 2008. 27 ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, p. 90, 2009. 28 VIEHWEG, Theodor. Tópica y folosofia del derecho. Tradução de Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa Editorial, p. 177, 1991. 29 Idem. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tércio Ferraz Jr. Brasília: Departamento Nacional de Imprensa, p. 27, 1979. 30 VIEHWEG, Theodor. Tópica y folosofia del derecho. Tradução de Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa Editorial, p. 179, 1991. 26

856

como

fórmulas

detectoras,

estímulos

mentales,

incitaciones

creativas,

propuestas

de

entendimento, directrices lingüísticas para la acción, etcétera”31. A tópica aparece, em suma, T

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como uma forma de orientar a argumentação, propiciando, ou melhor, incitando a criação da resposta. Tópica como techne: técnica do pensamento problemático32. T

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6. Brasil: o pensamento sistemático como relato-vencedor e o uso inadequado do princípio da proporcionalidade Feita breve exposição, fácil afirmarmos, categoricamente, a incitação ao pensar sistemático por parte do positivismo tradicional33. A tendência fica evidenciada em dois topoi do T

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positivismo jurídico. Topoi esses os quais, aliás, arriscaríamos taxar de corolários, dada a interdependência que parecem guardar. São eles: a afirmação do caráter lógico-sistemático do ordenamento jurídico e, sobretudo, a concepção de interpretação como atividade meramente descritiva. É persistente a ideia do ordenamento jurídico entendido como sistema. Unidade, completude e coerência são características que ostenta: unidade, pois todos os seus elementos podem ser reconduzidos a um fundamento comum; completo no sentido de não possuir lacunas jurídicas, resolvendo todas as questões a que se propõe; e, outrossim, coerente, pois destituído de antinominas, ou seja, entre os elementos que o compõem, não há contradição. O positivismo também afirma ser o trabalho do juiz meramente descritivo. Ao intérprete cabe, tão somente, declarar a norma jurídica, já presente na lei, no texto normativo. Há, assim, uma equiparação – para João Maurício Adeodato34, confusão – entre Direito e lei, norma e texto, T

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significante e significado. Tal tese encontra seu ápice nas formulações teóricas da École de l'exégèse, para o qual o decididor é, tão somente, o bouche de la loi, uma espécie de arauto do direito positivo, sendo este, vale repetir, fruto exclusivo do poder legislativo. Ora, diante de tais formulações, o trabalho do jurista resumir-se-ia à mera adequação do fato concreto à norma jurídica, ou melhor, ao ordenamento jurídico. Em outras palavras: ao jurista resta enquadrar o fato ocorrido na hipótese abstratamente prevista pela norma jurídica. Subsumir o fato à norma. Fala-se, não raramente, na decisão como um silogismo apofântico: a norma jurídica, previamente fabricada e fornecida pelo Legislativo, corresponde à premissa maior; o caso concreto, à premissa menor; a decisão, por fim, de acordo com essa concepção, aparece como mera conclusão do raciocínio silogístico. O decididor apenas descreve (seja correta, seja 31

Ibidem, p. 199. Idem. Tópica e jurisprudência. Tradução de Tércio Ferraz Jr. Brasília: Departamento Nacional de Imprensa, p. 33, 1979. 33 Admitimos o problema de trabalharmos com generalizações. Enquadrar um sem número de juristas, cada qual com suas particularidades, em um mesmo conceito – positivistas – é extremamente problemático. De outra forma, porém, não poderia ser. 34 Cf. ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação de poderes? In ______. A retórica constitucional – sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2008. 32

857

incorretamente) uma solução já tomada pelo próprio ordenamento jurídico, não exercendo, conseguintemente, qualquer papel criativo: sua decisão está, por assim dizer, isenta de qualquer valoração. Toda gênese normativa concentra-se, exclusivamente, na atividade legiferante. Nesse sentido, com a mesma certeza que “Sócrates é mortal”, “Tírcio deve responder por homicídio”. A nossa tese é, justamente, a de que persistem no Brasil esses paradigmas tipicamente positivistas. Lênio Streck fala da não-recepção da virada linguística pelo modelo interpretativo brasileiro35. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência permanecem convictos de que o papel do T

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juiz se inicia e, mais que isso, encerra-se na subsunção do fato à norma. O ordenamento jurídico já possui as respostas para toda e qualquer controvérsia jurídica que, eventualmente, seja trazida a juízo. A decisão, por consequência, apenas descreve uma solução previamente tomada (pelo legislador). Além disso, quando a lei é clara, não há espaço para a interpretação. In claris cessat interpretatio. A não clareza da lei é vista como resultado de uma atecnia legislativa, servindo a interpretação, na maioria das vezes, como forma de corrigir tal vício. Não configura esforço algum apontar exemplos reais dessa concepção na dogmática jurídica brasileira. Assim, Carlos Maximiliano, apesar de rejeitar o brocardo latino, entende que “o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém”, de modo que a interpretação restringe-se a “determinar o sentido e alcance das expressões do Direito”36. Pedro Lenza define a T

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função do exegeta como a de buscar o real significado dos termos, chegando a rotular de regra interpretativa fundamental a ideia de que, não existindo dúvida, ou seja, sendo o texto claro, não cabe interpretação37. Paulo Nader, apesar de admitir que “a interpretação do Direito exige, de T

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certa forma, criatividade”38, diz que esta consiste em “revelar o sentido e alcance das normas”39. T

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Paulo Dourado de Gusmão explicita que “a interpretação visa a descobrir o sentido objetivo do texto jurídico”40. As expressões utilizadas – revelar, descobrir, extrair, determinar – sugerem T

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sempre que a norma jurídica, cujo conteúdo resolverá a lide, tem existência anterior à ocorrência do caso concreto. Os exemplos são incontáveis41. Listá-los taxativamente seria, se não impossível, T

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desnecessário. A posição destes poucos - porém renomados - juristas parece suficiente para sustentar nossa conclusão. Qual seja: a de que permanece, no Brasil, a ideia de que o juiz não cria direito. A norma jurídica é uma realidade apririosticamente fabricada e fornecida pelo legislador. Em suma: a de que o pensamento sistemático reina como relato-vencedor nas terras tupiniquins.

35

Cf. STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, p. 61-77, 2009. 36 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, p. 1, 2006. 37 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, p. 130, 2010. 38 NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, p. 307, 2000. 39 Ibidem, p. 304. 40 GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, p. 227, 2005. 41 Para mais, Cf. STRECK, Lênio, op cit., p. 92- 96.

858

Acontece, contudo, que o neoconstitucionalismo traz novos paradigmas, de certa forma incompatíveis com as noções vigentes no positivismo jurídico. É, nesse sentido, que Luís Roberto Barroso destaca como marco filosófico do neoconstitucionalismo o pós-positivismo42. E, conforme T

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expomos, o princípio da proporcionalidade tem como pano de fundo teórico, justamente, o neoconstitucionalismo, de sorte que sua aplicação resta insatisfatória diante de certos pressupostos positivistas. Cabem, antes de continuarmos, algumas breves ressalvas. Não queremos defender, aqui, uma espécie de maniqueísmo. Esforçamo-nos ao máximo para não proferir qualquer juízo de valor, no sentido de considerar o pensamento sistemático ruim, por um lado, e o aporético bom, por outro. Tampouco queremos passar a impressão de que nosso estudo tem aspirações de ser enquadrado em uma espécie de realismo jurídico, como se tivéssemos a pretensão de revelar que o jurista decide assistematicamente, sendo os textos normativos, assim como o modelo silogístico de decisão, ferramentas retóricas de legitimação do Poder Judiciário43. Pouco importa, para os T

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fins deste trabalho, se o juiz, “de fato”, decide dessa ou daquela maneira. O foco aqui está na forma como os juízes pensam decidir, como os juízes projetam determinada imagem de decisão, e como essa imagem, independentemente de estar (ou não) correta, o influencia. Assim, mesmo que fosse possível ao juiz deduzir de um conjunto de textos uma única solução correta para a lide, um modelo de tal espécie restaria insuficiente para atender às demandas típicas da dogmática neoconstitucionalista. Assim, o princípio da proporcionalidade demanda expressamente a adoção de um papel criativo por parte do intérprete/aplicador. Isto fica mais claro se, pondo de lado os subprincípios da adequação e necessidade, observarmos a proporcionalidade em “sentido estrito”. Esta exige nada mais que um pensamento problemático: diante daquela situação concreta, daquele contexto único e irrepetível, argumente qual dos princípios em conflito deve prevalecer. A norma jurídica individual a ser aplicada é construída naquela e para aquela controvérsia judicial. Não há, portanto, no caso de um conflito entre princípios, a existência de um sistema prévio que forneça, per si, a solução. Antes do caso concreto, o princípio da proporcionalidade em nada ajuda. Aliás, mesmo com o aparecimento do problema juridicamente relevante, a proporcionalidade é incapaz de entregar uma resposta correta. Não é a proporcionalidade que fornece resposta alguma. Ela, melhor diríamos, silencia sobre o resultado da ponderação, restringindo-se a fixar fixa parâmetros, limites, fronteiras para que o juiz, diante daquele caso concreto, crie a regra a ser aplicada.

42

BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n 9, p. 4, mar./abr./mai. 2007. Disponível em: . Acesso em 30 nov. 2011. 43 Cf. SOBOTA, Katharina “Não mencione a norma!”. Tradução de João Maurício Adeodato. Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife. Recife, ed. UFPE, nº 7, p. 251-273, 1996.

859

É por isso mesmo que ele demanda um ônus argumentativo totalmente distinto do que os juristas brasileiros podem, atualmente, oferecer. Os juristas brasileiros, diante de uma situação de conflito entre princípios, não sabem como agir. Procuram desesperadamente naquele conjunto de textos que chamam de ordenamento algo que respalde sua decisão. Acabam, por fim, utilizando o princípio da proporcionalidade como se, ele próprio, fosse um (mero) “topos”. Com isso queremos dizer que não basta a simples menção à proporcionalidade para fundamentar uma decisão qualquer: dizer simplesmente que determinada medida é (ou não) proporcional é vazio de significado. Por que é proporcional? Quais as razões a favor da prevalência de P1 em detrimento de P2? E contra? Por que aquelas superam estas ou vice-versa? Em suma: quais argumentos levam à afirmação da (des)proporcionalidade da medida? A posição de Virgílio Afonso da Silva – apesar do persistente preconceito ontológico em relação à retórica - respalda nossa tese. O autor aponta que “a invocação da proporcionalidade é, não raramente, um mero recurso a um topos, com caráter meramente retórico, e não sistemático”44. Referindo-se ao HC 76.060-4, o autor dispõe, ainda, que “não é feita nenhuma T

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referência a algum processo racional e estruturado de controle da proporcionalidade do ato questionado, nem mesmo um real cotejo entre os fins almejados e os meios utilizados”45. Por fim, T

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com grande maestria, resume o raciocínio utilizado pelos juristas por meio de um silogismo apodítico: a constituição consagra o princípio da proporcionalidade; o ato questionado não respeita essa exigência; logo, o ato questionado é inconstitucional46. T

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Também Gustavo Ferreira Santos, comentando a decisão referente à inconstitucionalidade da lei que ordenava a pesagem dos botijões de gás, externa frustração em relação à argumentação do Supremo Tribunal Federal. Nas suas palavras, “observa-se que não há, ainda, na decisão aqui comentada, uma preocupação de demonstrar detalhadamente a operação que finda por reconhecer a desproporcionalidade da medida”47. T

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O caráter aporético do princípio da proporcionalidade traz a imposição inafastável de o intérprete explicitar todo o caminho por ele percorrido, ou seja, de despir a criação argumentativa da solução. Essa argumentação, conforme já dissemos, orienta-se por meio de topoi, lugarescomuns, sejam eles especificamente jurídicos ou não. Dizer, porém, que a proporcionalidade demanda um pensamento aporético e, por consequência, tópico, e dizer que a proporcionalidade é, ela própria, um topos são duas coisas fundamentalmente distintas. Isso porque o princípio da proporcionalidade possui fronteiras consideravelmente bem delimitadas. Sua utilização depende do preenchimento de uma série de requisitos. Além disso, possui uma estrutura específica, sendo composto pelos três subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade em “sentido estrito”, cada qual com conteúdo e 44

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, ano 91, p. 31, abr. 2002. Ibidem, p. 31. 46 Ibidem, p. 31. 47 SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 173, 2004. 45

860

parâmetros próprios. Por mais irônico ou paradoxal que pareça soar, é, justamente, o desprezo pelo caráter tópico do princípio da proporcionalidade que leva a sua utilização como se mero “topos” fosse. Afirmar, todavia, que a regra relativa à solução do choque principiológico é produto de criação do intérprete/aplicador não é o mesmo que defender a tese de que este esteja completamente livre para decidir o caso a seu bel-prazer. O pensamento problemático não é inimigo de toda e qualquer forma de constrangimento sistemático. Apenas se evitam, previamente, nexos dedutivos idealmente perfeitos. João Maurício Adeodato, aliás, apesar de defender uma recepção da tópica pela dogmática jurídica, põe em destaque a dificuldade – senão impossibilidade – de um encaixe perfeito entre aporética e um direito dogmaticamente organizado48. T

Assim,

T

afirmar

o

caráter

problemático

dos

princípios

e,

a

fortiori¸da

proporcionalidade, não implica a tese de que o juiz cria normas individuais ex nihilo. Não só os textos normativos que ensejam a construção de normas principiológicas, mas a própria estrutura do princípio da proporcionalidade - que, como vimos, tem limites relativamente precisos – funcionam como constrangimentos ao intérprete. Também o próprio resultado da ponderação, que, a princípio, é dirigida especificamente àquele caso concreto, compele o intérprete a decidir da mesma forma em relação a casos semelhantes, havendo, por consequência, um ônus argumentativo para que ele fuja desse resultado. Invocamos a esclarecedora metáfora de Friedrich Müller49: da mesma forma que a casa é construída com base no projeto do arquiteto, a T

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norma jurídica é construída com base no texto normativo produzido pelo legislador.

7. Conclusão O mau do princípio da proporcionalidade no Brasil finca raízes profundas. Decorre do próprio entendimento, da própria concepção que os juristas brasileiros guardam em relação à atividade que exercem. Há, então, uma verdadeira incompatibilidade. De um lado, os juristas brasileiros continuam arraigados a um pensamento sistemático, dogmático. Por outro, o princípio da proporcionalidade, especificamente o subprincípio da proporcionalidade em “sentido estrito”, demanda um pensamento problemático, aporético. Se nosso relato estiver “correto”, ou seja, se for aceito como explicação (heurística) do problema, a conclusão não é, de forma alguma, animadora. O direito dogmático brasileiro se encontra, de acordo com tal entendimento, em situação sui generis. Admite, assim como a força normativa dos direitos fundamentais, a dilatação das atribuições, dos poderes da jurisdição

48

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, p. 153, 2009. 49 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do Direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 259, 2009.

861

constitucional. Por outro lado, permanece imerso em paradigmas os quais se mostram incompatíveis ao manejo funcional dos métodos interpretativos tipicamente neoconstitucionais. Ora, mas o consenso é que são, justamente, tais método que permitem a efetivação adequada dos princípios jurídicos, propiciando segurança, ou melhor, regularidade à jurisdição constitucional. Sem uma mudança de perspectiva dos juristas brasileiros, o neoconstitucionalismo implica frustração, o que justifica o sem número de críticas por parte de constitucionalistas brasileiros ao fenômeno. É, assim, que arriscamos afirmar a necessidade inafastável de uma revolução na dogmática jurídica brasileira. Hora de rejeitarmos verdades objetivas, explicações ontológicas, interpretações unívocas, majestosas árvores conceituais. Enfim, se o juspositivismo tradicional atendeu às expectativas de determinados grupos sociais, se mostrou-se apto a neutralizar os conflitos sociais durante algum tempo, parecemos, agora,

estar em outros tempos. Tempos

retóricos. Levantamos nossa bandeira: o neoconstitucionalismo como triunfo da perspectiva retórica.

Referências bibliográficas ADEODATO, João Maurício. A retórica constitucional – sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2008. ________________________. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009. ________________________. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência (em contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann). São Paulo: Saraiva, 2009. ________________________. Retórica como metódica para o estudo do direito. Revista Sequência, n. 56, p. 55-82, jun. 2008. Disponível em: . Acesso em: 30 nov. 2011. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 4, jul. 2011. Disponível em:

. Acesso em: 30 nov. 2011. _______________. Teoria dos princípios. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O Triunfo Tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto

Brasileiro

de

Direito

Público,

n.

9,

mar./abr./mai.

2007.

Disponível

em:

862

. Acesso em 30 nov. 2011. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, p. 227, 2005. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, p. 1, 2006. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do Direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000. SANTOS, Gustavo Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: limites e possibilidades. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2004. SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, ano 91, p. 21-50, abr. 2002. SOBOTA, Katharina “Não mencione a norma!”. Tradução de João Maurício Adeodato. Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife. Recife, ed. UFPE, nº 7, p. 251-273, 1996. STRECK, Lênio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. VIEHWEG, Theodor. Tópica e jurisprudência. Tradução de Jorge M. Seña. Tradução de Tércio Ferraz Jr. Brasília: Departamento Nacional de Imprensa, 1979. _________________. Tópica e jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídicocientíficos. Tradução de Kelly Susane Aflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. _________________. Tópica y folosofia del derecho. Barcelona: Gedisa Editorial, 1991. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2010.

863

O STF e o discurso sobre o aborto de anencefalia: entre crime e direito humano da mulher Thaís Guedes Alcoforado de Moraes1 T

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2

Artur Stamford da Silva T

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Resumo

Abstract

A ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), trouxe ao STF a polêmica quanto à antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. Os corpora da pesquisa são os discursos presentes nas audiências públicas referentes a esta ADPF, com foco nos discursos de instituições representativas dos sistemas Religião, Ciência (Medicina) e Direito. Com o objetivo de observar as influências recíprocas entre argumentos jurídicos, religiosos e científicos, aplicamos a teoria social de Niklas Luhmann na análise destes corpora. Os conceitos de abertura cognitiva, fechamento operacional, acomplamento estrutural e autopoiesis são especialmente úteis neste trabalho. Ademais, fazemos uso dos conceitos de argumentação jurídica e princípios, que Luhmann desenvolve em sua obra El Derecho de la Sociedad. Ainda que em andamento, localizamos em defesa a autorização do aborto de anencéfalos os argumentos da dignidade humana e da liberdade da mulher; e o argumento da não-discriminação, por parte daqueles que defendem a criminalização de tal conduta. Além disso, identificamos que a inviolabilidade do direito à vida é um princípio constitucional que é invocado tanto pelos grupos contrários quanto favoráveis à legalização do aborto em caso de anencefalia, o que demonstra o potencial que tem os princípios constitucionais de ocultar diferenças, simulando consistência na inconsistência.

The “ADPF 54”, a case filed in 2004 by the National Confederation of Health Workers (CNTS), brought to Brazil’s Supreme Court the controversy regarding the abortion of anencephalic fetus. The corpora of the present research are the speeches at the public hearings regarding this case, focusing on discourses of institutions representing the social systems Religion, Science (Medicine) and Law. In order to observe the mutual influence between legal, religious and scientific arguments, we used Niklas Luhmann’s social theory in the analysis of the above mentioned corpora. The concepts of cognitive openness, operational closure, structural coupling and autopoiesis were especially useful in this paper. In addition, we use the concepts of juridical argumentation and constitutional principles, which Luhmann further develops in his work El Derecho de la Sociedad. Although the research is still in progress, we already identified the arguments of human dignity and freedom of women, used by those who defend the legalization of abortion in cases of anencephaly; whereas those who advocate its criminalization use, for instance, argument of nondiscrimination. In addition, we found that the inviolable right to life is a constitutional principle that is invoked by both groups (the ones who defend and the ones who oppose the legalization of abortion in this situation). This demonstrates the potential constitutional principles have to hide differences, simulating consistency where there is only inconsistency.

Palavras-Chave: Aborto; Anencefalia; Direitos Humanos; Criminalização; Sistemas Sociais.

Keywords: Abortion, Anencephaly, Criminalization, Social Systems.

Human

Rights,

1

Estudante de graduação em Direito na Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Pesquisadora bolsista PIBIC – UFPE.

2

Prof. Associado 1 da UFPE-CCJ_Faculdade de Direito do Recife, pesquisador PQ 2 pelo CNPq.

864

1. Introdução3 T

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O aborto de feto anencéfalo tem sido tema recorrente na sociedade brasileira. A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal com a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54-8 (ADPF 54), cuja petição inicial foi impetrada aos 17 dias do mês de junho de 2004 e, até a presente data já ocorreram diversas audiências públicas e está aguardando julgamento no referido Tribunal. A questão da anencefalia encontra uma lacuna no nosso ordenamento jurídico, uma vez que o Código Penal vigente é de 1940, quando não havia ainda tecnologia suficiente para identificar tal anomalia no início da gravidez. Esta lacuna dá ensejo a argumentações variadas, que priorizam critérios diversos variando conforme a perspectiva que se tem da sociedade. Identificou-se que o discurso científico sobre o tema difere do religioso, que por sua vez difere do jurídico. Dado o vazio legislativo existente, posições contrárias e contraditórias são adotadas em relação a casos semelhantes, o que traz demasiada insegurança jurídica, deixando os cidadãos (neste caso, especialmente, as mulheres gestantes de fetos portadores de anencefalia) em situação de vulnerabilidade e até exclusão quanto à concreção de seus direitos fundamentais. Assim, a depender da argumentação que se constrói sobre o tema, pode-se concluir que se trata de um crime ou, no outro extremo, de um direito humano, elevado ao status de cláusula pétrea de nossa Constituição Federal. Tamanha insegurança pode levar a que duas pessoas, que praticaram exatamente a mesma conduta, sejam tratadas de forma simetricamente oposta pelo direito: uma como criminosa, e outra como sujeito de um direito humano, merecedora de um tratamento de saúde adequado. Por isso, decidimos mapear as comunicações diversas sobre este assunto nestes três âmbitos de comunicação (ou sistemas sociais de sentido na teoria de Luhmann). Enquanto o sistema jurídico utiliza o código binário lícito/ilícito para processar suas operações, o sistema da Religião utiliza o código sagrado/não-sagrado e a ciência faz uso do código verdade/não-verdade. Vê-se, pois, que as comunicações próprias de cada um destes sistemas são processadas de acordo com critérios diferentes e se dão autonomamente, ainda que não de forma isolada umas das outras. Nossa pesquisa objetiva observar as comunicações sobre aborto de feto anencéfalo na sociedade brasileira, a partir especificamente das audiências públicas referentes à ADPF 54, no que concerne os sistemas Ciência, Religião e Direito. Para isso, aplicamos a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann, teoria que viabiliza observarmos as relações entre comunicações de diversos setores da sociedade. É que para Luhmann a sociedade é um sistema de sentido cuja célula é a comunicação. 3

O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil.

865

Visando o mapeamento das comunicações sobre o aborto de feto anencéfalo, os corpora da pesquisa consistem em trechos das transcrições das audiências públicas realizadas quanto à ADPF-54. Estes corpora serão explicitados mais especificamente nos tópicos referentes às comunicações do respectivo sistema social. Uma vez coletados os dados, sintetizamos as informações, identificando os principais argumentos utilizados para embasar as comunicações sobre aborto anencefálico. Passemos então a esclarecimentos preliminares quanto à teoria luhmanniana para depois investigarmos a forma como cada um dos três sistemas sociais ora em tela (ciência, religião e direito) comunicam o aborto de feto anencéfalo.

2. A teoria dos sistemas de Luhmann Antes de apresentar os dados da pesquisa, vejamos alguns informes sobre a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. A teoria luhmanniana se propõe a explicar a vida em sociedade, a partir da comunicação, a qual seria sua célula básica. Certas comunicações desenvolveram complexidade tal que formaram os sistemas sociais, os quais operam no médium de sentido. As comunicações sobre o Direito formam o sistema social jurídico, as comunicações sobre Religião constituem o sistema social religioso e assim por diante. Aplicando Luhmann, podemos considerar que, quando alguém informa algo, tem lugar o processamento do que foi enunciado recorrendo à memória. Ao serem acionados conceitos, o receptor do enunciado busca dar sentido ao enunciado. Isso implica que, para se entender o sentido de algo, processam-se sentidos sobre o que esse algo significa. A essa capacidade de processar comunicação desde comunicação, de produzir sentido desde sentido, Luhmann atribui a autopoiesis. Autopoiesis é, portanto, a capacidade de um sistema produzir, desde si mesmo (fechamento operacional) competência para lidar com seu entorno. Numa frase, autopoiesis é “a produção de indeterminação interna no sistema” 4. Antes que surjam normais incompreensões da T

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leitura dessa frase, sugerimos ao leitor que tente evitar concluir que sistema autopoiético implica ser o sistema suficiente a, em e para si mesmo, ou seja, sistemas isolados. Para entender autopoiesis, lembremos que comunicação é a célula da sociedade, bem como do construtivismo. Relacionando construtivismo, autopoiesis e comunicação, como já vimos que Luhmann adota a cibernética - teoria da comunicação em rede - para falar em sistema, chegamos à ideia que, para corrigir o conceito popular de comunicação, como afirma Luhmann, é preciso conceber comunicação como uma unidade composta por três elementos: informação (Information), dá-la-aconhecer (Mitteilung) e entendê-la (Verstehen)5. O detalhe é que esses três elementos estão T

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enlaçados de maneira circular (construtivista), inclusive porque só por comunicação é que se pode 4

LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad, Trad. Javier Torres Nafarrate, México: Universidad Iberoamericana, 2007, p. 46.

5

Idem, p. 49-51.

866

comunicar6, daí a comunicação ser autopoiética; ela gera, por si mesma, o entender que ela T

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necessita para operar por comunicação. Da teoria dos sistemas de sentido de Luhmann recorremos às seguintes assertivas: 1) A comunicação é a célula da sociedade – no sentido se ser a menor unidade de um sistema social; 2) A sociedade é um sistema que estabelece sentido; 3) O sentido se produz na trama de operações que sempre pressupõem sentido – é dizer, o sentido se produz exclusivamente como sentido das operações que o utilizam. Com a primeira assertiva, enfatizamos a ideia de autorreferência reflexiva da comunicação. A comunicação comunica que o ela se deixa interpretar. Nas palavras de Luhmann: “a comunicação cria para si mesma o sentido do que incessantemente se estabelece se a comunicação seguinte busca seu problema na informação ou no ato de dá-la-a-conhecer ou no de entendê-la”.7 T

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A comunicação é contínua e não o resultado da fixação de sentido atribuído ao discurso. Produz-se recursividade na comunicação, pois simultaneamente à construção de identidade (seleção de informações anteriores, memória) se dá o constante incremento de informações. Vêse, assim, que tal incremento de informações provoca, de forma paradoxal, o entendimento das informações anteriores. Em Luhmann, quando se fala do terceiro elemento da comunicação (entendimento) não se quer dizer que haja consenso. A comunicação não se vincula ao livre arbítrio dos sujeitos (psiquicamente considerados). Só se produz comunicação a partir da comunicação. Se assim é, a reação (aceitação ou recusa) diante do que comunicamos não é controlada previamente por aquele que comunica, nem depende exclusivamente da subjetividade dele ou do ouvinte. Assim é que Luhmann afirma que “a comunicação que aceita ou rechaça a proposta de sentido de uma comunicação é outra comunicação, a qual não resulta – apesar de todos os nexos temáticos – automaticamente da comunicação anterior. É condição básica da autopoiesis da sociedade – e de suas formações estruturais – que a comunicação não contenha em si mesma sua própria aceitação, senão que ainda deva decidir-se na comunicação ulterior acerca da dita aceitação.”8 T

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A partir destes esclarecimentos, observamos como, a partir da teoria luhmanniana, as comunicações de diversos sistemas de sentido se relacionam – ou ainda, como estamos vivenciando o acoplamento estrutural entre os sistemas de sentido nas comunicações da sociedade. No presente trabalho, escolheu-se o polêmico tema do aborto de feto anencéfalo como ponto de partida, a partir do qual se evidencia como as comunicações dos sistemas sociais (no 6

Idem, p. 68.

7

Idem, p. 50.

8

Idem, p. 59.

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caso, ciência, religião e direito) interagem entre si e produzem sentido(s) sobre um mesmo fenômeno social. Para isso, passemos à exposição dos dados.

3. Os sistemas de sentido da sociedade e a comunicação sobre aborto de feto anencéfalo 3.1 A comunicação do sistema social ciência sobre aborto de feto anencéfalo Para fins dessa pesquisa, a Medicina será considerada como comunicação do sistema social científico, assim, para observar a comunicação que a medicina enuncia sobre o tema (aborto de anencéfalos), realizamos um recorte no nosso universo amostral, que consiste no posicionamento da Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) na audiência pública para a ADPF 54 . Os materiais recolhidos foram: quanto ao CFM, a declaração do Doutor Roberto Luiz D’Ávila, 1º vice-presidente do CFM, durante a audiência pública relativa à ADPF 549; e a T

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Resolução CFM Nº 1.752/04 , relativa à autorização ética do uso de órgãos e/ou tecidos de T

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anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais. Esta resolução, ainda que revogada, apresenta considerações importantes sobre a conceituação médica de um feto anencéfalo. Quanto à FEBRASGO, utilizamos uma nota da Federação publicada em seu site oficial, entitulada “Posição da FEBRASGO sobre gravidez com fetos anencéfalos”11, além da T

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declaração – também na audiência pública relativa à ADPF 54 – do Doutor Jorge Andalaft Neto12. T

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Passemos, então, à análise dos principais argumentos utilizados neste material. Tanto a FEBRASGO como o CFM afirmam que a manutenção da gestação em casos de anencefalia aumenta o risco de morbimortalidade materna. Apontam alguns problemas de saúde freqüentes em gestantes nesta situação, tais como: hipertensão arterial e aumento do volume de líquido amniótico (polidrâmnio), alterações respiratórias, hemorragias vultosas por descolamento prematuro da placenta, hemorragias no pós-parto por atonia uterina e embolia de líquido amniótico (grave alteração que cursa com insuficiência respiratória aguda e alteração na coagulação sanguínea). Além disso, chamam atenção para os abalos psíquicos a que a mulher está sujeita, afirmando serem freqüentes os casos de stress pós-traumático, que podem deixar seqüelas para toda a vida. 9

Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 28/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_28808.pdf. Acessado em: 10.10.2011 TU

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Portal Médico. Conselho Federal de Medicina. Busca de resoluções. Tema “anencefalia”. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_resolucoes&buscaEfetuada=true&resolucoesUf=CFM&resolucoesNumero =&resolucoesAno=&resolucoesAssunto=2293&resolucoesTexto=#buscaResolucoes. Acessado em: 10.10.2011 TU

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FEBRASGO. Notícias. “FEBRASGO se posiciona sobre fetos anencéfalos”. Disponível em: http://www.febrasgo.org.br/?op=300&id_srv=2&id_tpc=5&nid_tpc=&id_grp=1&add=&lk=1&nti=818&l_nti=S&itg=S&st=&d st=3 . Acessado em: 10.10.2011 TU

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 28/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_28808.pdf . Acessado em: 10.10.2011 TU

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No mesmo sentido, argumenta o Doutor Roberto Luiz D’Ávila, representando o CFM na audiência pública quanto à ADPF 54: Se respeitamos a autonomia [da mulher], essa autonomia tem de ser respeitada no seu desejo de progredir a gravidez, por algum motivo, que não importa qual no momento - mas se ela diz: eu não posso carregar comigo esse bebê que não terá pensamento, não será pessoa humana como o Direito protege, no sentido de ter toda potencialidade, e por isso a sua atipicidade no enquadramento penal. Para o Código Penal - segundo o entendimento de um médico que trabalha dia a dia no seu consultório - o que importa é a expectativa de vida, é todo potencial de alguém que será, mesmo com a promessa de vir a ser alguém. O anencéfalo não será.13 T

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A Resolução da CFM nº 1.752/04 relativa à autorização ética do uso de órgãos e/ou tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais, afirma que os fetos anencefálicos enquadram-se no conceito de morte encefálica, estabelecido no art. 3º da Resolução CFM nº 1.480/97, a saber: “a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida”. Com base nesta definição de morte encefálica, a FEBRASGO afirma que a antecipação do parto de feto anencefálico não é um procedimento abortivo. Defendem, assim como o CFM, a atipicidade desta conduta, uma vez que não sendo aborto, não pode ser crime. Houve, contudo, uma recente mudança no posicionamento do CFM, por meio da revogação da Resolução nº 1.752/04. A revogação se deu por conta “[d]os precários resultados obtidos com os órgãos transplantados”. Mas também se argumentou que o critério de morte encefálica não seria aplicável aos fetos anencéfalos, devido à sua ausência de cérebro. De qualquer

maneira,

continua-se

reconhecendo

a

inviabilidade

vital

destes

fetos

e,

consequentemente, a atipicidade da antecipação terapêutica do parto (que não se enquadra como aborto) em tais casos.

3.2 A comunicação do sistema social religioso sobre aborto de feto anencéfalo Para fins desta pesquisa, o recorte do nosso universo amostral será a religião católica e, mais especificamente, o posicionamento da Confederação Nacional de Bispos no Brasil (CNBB). A escolha desta organização se justifica por ser o catolicismo a religião mais tradicional no país e a que ainda exerce certa hegemonia no contexto nacional, encontrando o maior número de adeptos. A CNBB publicou em seu site oficial a “Nota da CNBB sobre Aborto de Feto “Anencefálico” Referente à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 do Supremo Tribunal

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 28/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_28808.pdf TU

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Federal”14. Além desta nota, será explorada nesta sessão a declaração do Padre Luiz Antônio T

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Bento, Assessor Nacional da Comissão Episcopal para a Vida e a Família da CNBB, representando a CNBB na audiência pública relativa à ADPF 5415. Passemos, então, à análise T

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dos argumentos suscitados. A CNBB considera ser o aborto “uma morte deliberada direta, independentemente da forma como é realizado, de um ser humano na fase inicial de sua existência, que vai até o parto”.16 Afirma ainda que ninguém está autorizado a matar um ser humano inocente. Afinal, nesta T

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perspectiva o feto anencefálico é um ser humano vivente, ainda que com reduzida expectativa de vida, e precisa de cuidados. Argumenta-se que a permissão ao aborto de feto anencéfalo pode levar à eugenia, que, de acordo com o Padre Luiz Antônio Barreto, já deixou marcas profundas na história da humanidade e que provavelmente nunca serão apagadas. Busca-se eliminar o feto anencéfalo porque este não se encaixa nos padrões (arbitrários) do que se espera de um ser humano na sociedade atual. Nas palavras do mesmo: O aborto eugênico é uma barbárie, um sintoma de desumanização, aliás, uma escalada para a instalação de câmara de extermínio de recém-nascidos defeituosos, para a eutanásia de deficientes físicos e mentais e para a eliminação de idosos não produtivos.17 T

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Afirmam que, se a vida é um bem jurídico indisponível, e sendo o feto anencéfalo “um ser vivente”, não cabe aos pais decidirem nem por suas próprias vidas, e muito menos sobre a continuidade ou não da vida de seus filhos. Não seria, assim, lícito a ninguém – nem mesmo ao Estado (ainda que laico) – “julgar o valor intrínseco de uma vida por suas deficiências”.18 T

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A CNBB reconhece ainda o sofrimento da família e, especialmente da gestante de um feto anencéfalo – sofrimento este que deve ser acolhido por todos. Porém, “este sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida do filho que se carrega no ventre.”19 T

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Confederação Nacional de Bispos do Brasil. Nota da CNBB sobre aborto de feto “anencefálico”. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/imprensa/sala-de-imprensa/notas-e-declaracoes/1434-nota-da-cnbb-sobre-aborto-de-fetoanencefalico TU

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 26/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_26808.pdf TU

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 26/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_26808.pdf TU

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 26/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_26808.pdf TU

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 26/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_26808.pdf TU

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 26/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_26808.pdf TU

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Entre os ensinamentos bíblicos explicitamente mencionados pela CNBB para sustentar sua posição, estão: “Não matarás” (Ex 20,13); “Escolhe, pois, a vida” (Dt 30,19); e a afirmação de que Jesus Cristo veio “para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).20 T

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Traduzindo tais ensinamentos em argumentos jurídicos, mencionam-se os princípios constitucionais da “inviolabilidade do direito à vida”, da “dignidade da pessoa humana” e da promoção do bem de todos, sem qualquer forma de discriminação, (art. 5°, caput; art. 1°, inc. III e art. 3°, IV, da Constituição Federal), afirmando que estes devem aplicar-se igualmente aos fetos anencefálicos. Alegam ainda que uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3°, I, da Constituição Federal) não se constrói com ‘violências contra doentes e indefesos’.21 T

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Vê-se, pois, que as operações de comunicação sobre o tema não são em nada uniformes. Há uma enorme discrepância na forma como o sistema Ciência e Religião (especificamente, a religião católica) analisam o tema ora em tela. Estas visões divergentes representam um desafio ao sistema jurídico, diante da necessidade de se posicionar sobre o tema, de forma a estabilizar expectativas, em busca da segurança jurídica.

3.3 A comunicação do sistema social Direito sobre aborto de feto anencéfalo Para os fins desta pesquisa, buscaram-se posicionamentos quanto ao aborto anencefálico nas três principais fontes do Direito: legislação, doutrina e jurisprudência. A análise aqui feita não tem a pretensão de ser exaustiva, mas meramente elucidativa. Quanto à legislação, analisaremos o Código Penal à luz da Constituição Federal de 1988. Quanto à doutrina, exploraremos a visão sobre o tema de dois eminentes penalistas: Luiz Régis Prado e Cézar Roberto Bittencourt. Já quanto à jurisprudência, priorizaremos o Supremo Tribunal Federal – de especial importância no presente momento, por conta da ADPF 54 que aguarda uma decisão, possivelmente ainda para 2011. Todavia, ainda aguardamos o pronunciamento deste tribunal na decisão da ADPF 54. Assim, por ora, restringiremos o trabalho a uma breve análise do olhar da doutrina sobre a legislação. Quanto à legislação, vê-se um vazio quanto ao tema no Código Penal. Isso porque, sendo o Código de 1940, não era possível à época nem mesmo realizar um ultrassom. Era, pois, impossível saber ainda no pré-natal se aquele feto era portador de alguma anomalia grave, como a anencefalia. Com os avanços tecnológicos no campo da medicina, surgiu esta possibilidade de

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Confederação Nacional de Bispos do Brasil. Nota da CNBB sobre aborto de feto “anencefálico”. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/imprensa/sala-de-imprensa/notas-e-declaracoes/1434-nota-da-cnbb-sobre-aborto-de-fetoanencefalico TU

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Confederação Nacional de Bispos do Brasil. Nota da CNBB sobre aborto de feto “anencefálico”. Disponível em: http://www.cnbb.org.br/site/imprensa/sala-de-imprensa/notas-e-declaracoes/1434-nota-da-cnbb-sobre-aborto-de-fetoanencefalico TU

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previsão com 100% de certeza.22 No entanto, não se normatizou juridicamente a legalidade ou T

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ilegalidade da conduta, configurando uma lacuna no ordenamento jurídico. Quando a gestante descobre que seu feto é anencefálico e, caso queira interromper a gravidez, é orientada pelos médicos a buscar esta permissão junto à Justiça. No entanto, na falta de um marco legal claro, os magistrados proferem decisões discrepantes a partir majoritariamente de princípios constitucionais que, maleáveis que são, acabam por moldar-se às ideologias dos juízes, ferindo o princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, da CF/88). Dentre os argumentos encontrados na doutrina, Bittencourt afirma: Examinando-se nosso Código Penal de 1940, constata-se que o legislador de então, ao criminalizar o aborto, não foi radical, pois admitiu como lícito, ainda que excepcionalmente, o aborto necessário e o aborto sentimental (art. 128). Isso permite concluir que, se na época houvesse o arsenal de conhecimento e tecnologia de hoje, provavelmente também teria admitido o denominado aborto encefálico, diante da absoluta certeza da inexistência de vida, como ocorre na atualidade.23 T

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Além disso, Bittencourt afirma que a obrigação imposta à mulher de manter a gravidez indesejada de um anencéfalo acarretará graves distúrbios psicológicos na gestante, em decorrência da tortura sofrida e de um tratamento degradante – o que é vedado pelo inc. III do art. 5º da nossa Constituição Federal. Além disso, tal imposição violaria a autonomia da gestante, que representa um dos pilares da teoria principialista, a mais aceita na Bioética atual.24 T

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Menciona ainda a Lei de Transplante de Órgãos (Lei n. 9.434/97), uma vez que esta autoriza a extração dos órgãos a partir da morte cerebral do indivíduo, afastando-se da parada cardiorrespiratória como tradicional marco demarcador da vida. Assim, expõe o impasse: Ora, se a morte cerebral significa morte, ou se preferirem, ausência de vida humana, a ponto de autorizar o ‘esquartejamento médico’ para fins científicohumanitários, o que se poderá dizer de um feto que, comprovado pelos médicos, nem cérebro tem?25 T

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Diante do exposto, Bittencourt conclui ser atípica a conduta de antecipação terapêutica de feto anencéfalo, ante a ausência de elementares típicas do crime de aborto, uma vez que não há vida a ser tutelada. A mesma orientação segue Luiz Régis Prado.

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 28/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_28808.pdf TU

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BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. V. 2. Dos crimes contra a pessoa. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. pp. 173-174. 24

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. V. 2. Dos crimes contra a pessoa. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. pp.176-177. 25

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. V. 2. Dos crimes contra a pessoa. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. pp.178

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Prado afirma que nestes casos se constata apenas um desvalor de situação ou de estado que ingressa no âmbito do risco permitido, atuando como excludente do desvalor da ação. Também não há que se falar em causa de justificação, pois o anencéfalo não seria biologicamente capaz de concretizar-se em uma vida humana viável. Como a anencefalia não enseja, de acordo com o autor, um processo de vida, mas sim um “processo de morte”, falta o dolo ou a culpa – necessários à configuração do crime – assim como falta um resultado típico.26 T

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4. Observações sobre as comunicações de aborto de feto anencéfalo O mapeamento das comunicações sobre aborto de feto anencéfalo nos sistemas sociais Ciência, Direito e Religião evidenciam alguns pontos caros à teoria luhmanniana. Primeiramente, mostram como cada um destes sistemas é autônomo em relação ao outro, consituindo-se de suas comunicações específicas, através de operações de acordo com seus códigos binários respectivos (verdade/não-verdade; sagrado/não-sagrado; lícito/ilícito). Tal autonomia é chamada na teoria de Luhmann de fechamento operacional ou clausura operativa. Observa-se isto quando a Religião usa passagens bíblicas (sagradas) para fundamentar sua decisão; ou quando o Direito recorre ao argumento da ausência de previsão legal no Código Penal da hipótese de anencefalia, afirmando que tal conduta feriria o princípio da tipicidade do Direito Penal (ilícito); ou ainda quando a Ciência usa o argumento do aumento da probabilidade morbimortalidade materna, da ausência de probabilidade de que o feto sobreviva, ou dos diversos riscos à saúde da mulher (verdade). Estes exemplos são comunicações típicas destes respectivos sistemas, pois selecionadas de acordo com seus códigos binários. Em segundo lugar, mostram que, ainda que autônomos, estes sistemas não se encontram isolados do mundo nem totalmente fechados às irritações externas de seu entorno. De fato, dentre as comunicações apresentadas no desenvolver deste trabalho, são vários os argumentos jurídicos usados pela Religião, ou os argumentos científicos usados pelo Direito, por exemplo. É este o caso quando, na declaração da CNBB, encontram-se várias referências à Constituição Federal, como à inviolabilidade do direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Também é este o caso quando, numa decisão judicial, faz-se referência à impossibilidade de sobrevida do feto ou ao perigo à saúde materna. Isto demonstra que os sistemas sociais de sentido estão abertos às operações dos demais sistemas – embora não operacionalmente (já que, para que seja mantida a autonomia sistêmica, é preciso que haja uma clausura operativa, como já foi explicado anteriormente). É o que chamamos de abertura cognitiva. O fechamento operacional e a abertura cognitiva são os elementos que garantem a autopoiesis dos sistemas.

26

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V. 2. Parte Especial. Arts. 121 a 249. 8ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. pp. 98-99.

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Vê-se, pois, que a teoria de Luhmann oferece conceitos que nos ajudam a explicar a sociedade moderna a partir da comunicação, reconhecendo-se que certas comunicações ganharam tanta complexidade que se tornaram um sistema autônomo que, no entanto, ainda precisa estar em constante “diálogo” com o entorno para se manter ativo. É verdade que a interação sistema/entorno se dá estruturadamente, sendo o critério de seleção das comunicações que “entram” ou não no sistema, o código binário do sistema em questão. Assim, se uma comunicação do entorno do sistema Direito não pode ser decodificada pelo critério lícito/ilícito, esta comunicação não deve ser admitida no sistema jurídico, para que ele mantenha sua identidade e autonomia perante os demais sistemas sociais. É dizer, a comunicação de “a vida do nascituro é sagrada” não diz respeito a priori ao sistema jurídico, mas sim ao seu entorno, fazendo parte do sistema religioso. Contudo, nada impede que esta comunicação seja decodificada a partir do critério da licitude ou ilicitude. É o que se dá quando, no lugar de afirmar a sacralidade da vida do nascituro, afirma-se que a inviolabilidade da vida é protegida pela Constituição Federal. Assim, a comunicação quanto à proteção da vida do feto passa a integrar o sistema jurídico, evidenciando a abertura cognitiva e o fechamento operacional e, portanto, a autopoiesis do sistema. Todas estas observações são relevantes para esclarecer certos aspectos da teoria luhmanniana a partir da aplicação de sua teoria em um caso prático e de grande importância em diversos âmbitos da sociedade contemporânea brasileira. A teoria dos sistemas de sentido de Luhmann oferece uma perspectiva que nos permite analisar a interação entre comunicações diversas, numa sociedade complexa como a contemporânea. Espera-se ter contribuído assim tanto para o debate acerca do aborto de feto anencéfalo, a partir do mapeamento de sua situação atual na sociedade brasileira, quanto para a verificação da aplicabilidade prática da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann.

Referências bibliográficas BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial. V. 2. Dos crimes contra a pessoa. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. pp.173-178 Confederação Nacional de Bispos do Brasil. Nota da CNBB sobre aborto de feto “anencefálico”. Disponível em:

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FEBRASGO.

Notícias.

“FEBRASGO

se

posiciona

sobre

fetos

anencéfalos”.

Disponível

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LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad, Trad. Javier Torres Nafarrate, México: Universidad Iberoamericana, 2007, p. 46. PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V. 2. Parte Especial. Arts. 121 a 249. 8ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. pp. 98-99. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma do STJ concede habeas-corpus para impedir aborto. Disponível em: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=74456&tmp.area_anterior=44&t U

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Processo

HC

51982.

Disponível

em:

http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=368&tmp.texto=80387&tmp.area_anterior= U

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Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 26/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_26808.pdf. U

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Acessado em: 10.10.2011 Supremo Tribunal Federal. ADPF 54. Notas taquigráficas da audiência pública. Dia 28/08/2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaAdpf54/anexo/ADPF54__notas_dia_28808.pdf. U

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Acessado em: 10.10.2011

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ADPF 153: estudo de caso do acórdão na perspectiva da teoria da argumentação e da necessidade de efetivação dos direitos humanos no caso concreto Vinícius Reis Barbosa1 T

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Resumo

Abstract

O presente trabalho tem por objeto o estudo de caso do acórdão proferido quando do julgamento da ADPF 153, cujo pedido principal, conforme se verifica da petição inicial, é que se dê interpretação conforme a Constituição Federal para excluir da anistia concedida pelo §1º do art. 1º da lei n° 6.683/79 os crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime civil-militar. Este estudo de caso faz parte do projeto de pesquisa que se encontra em estágio inicial de desenvolvimento pelo autor no âmbito do Programa de Pós-graduação em Direito da UNESP, campus de Franca/SP, projeto este que tem por objetivo investigar como se dá a criação e efetivação judicial dos direitos fundamentais e cuja hipótese inicial de trabalho é de que tal criação e efetivação judicial vem se mostrando insuficiente. A partir de tal hipótese, surge a necessidade de comprovação da mesma através da metodologia do presente estudo de caso e da pesquisa bibliográfica. O marco teórico adotado é a teoria da argumentação jurídica tal qual desenvolvida por Robert Alexy, a qual se mostra adequada para análise da fundamentação racional do discurso decisório, das justificativas utilizadas para se atingir a conclusão a que chegou o STF e, principalmente, das finalidades que a decisão atingiu ou deixou de atingir, pautando que tais finalidades estão inegavelmente contidas na necessidade de efetivação material dos direitos humanos no âmbito do Estado Democrático de Direito, não só através da elaboração e concretização de políticas públicas (tarefas do Poder Legislativo e Executivo, respectivamente) mas também pela atuação do Poder Judiciário, inclusive no que diz respeito aos direitos humanos relacionados ao processo de justiça de transição no Brasil.

This paper aims to take a closer look in the case study of the decision produced by the trial of ADPF 153, whose main claim is to achieve an interpretation according to the Federal Constitution to exclude from the amnesty granted by § 1 of art. 1 of law n° 6.683/79 common crimes committed by the agents of repression against political opponents during the civil-military regime. This case study is part of the research project is in early stage of development by the author in the Postgraduate Program in Law of UNESP, Franca/SP, which aims to investigate how does the creation and judicial realization of fundamental rights, whose initial working hypothesis is that such judicial creation and enforcement has proven inadequate. From this assumption, there is the necessity of proving the same through the methodology of this case study and literature review. The theoretical framework adopted is the theory of legal argumentation as it was developed by Robert Alexy, which is adequate for analysis of the rational foundation of speech-making, of the justifications used to reach the conclusion reached by the Supreme Court, and especially of the purposes that the decision reached or did not achieved, basing such purposes are undoubtedly contained in the material need for effective human rights under the democratic rule of law, not only through the development and implementation of public policies (tasks of the Legislative and Executive respectively) but also by judicial power, including with regard to human rights related to the process of transitional justice in Brazil.

Palavras-Chave: Lei de Anistia; ADPF 153; Teoria da Argumentação; Direitos Fundamentais.

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Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito da UNESP, campus de Franca/SP. Membro do Núcleo de Estudos de Direito Alternativo da UNESP/Franca (NEDA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Advogado. E-mail: [email protected].

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1. Introdução A expansão da jurisdição constitucional, as novas tarefas que o Poder Judiciário vem sendo chamado a desempenhar e o desenvolvimento de uma hermenêutica jurídica especificamente constitucional que dê conta desta expansão e de tais novas tarefas são reflexos do predomínio da idéia de que os direitos humanos e os direitos fundamentais reclamam efetivação material, ou seja, concretização real e não apenas formal e de que o Poder Judiciário possui um papel a cumprir em relação a tal efetivação. Neste cenário é que foi proposta a argüição de descumprimento de direito fundamental (ADPF) 153, cujo pedido principal, conforme se verifica da petição inicial, é que se dê interpretação conforme a Constituição Federal para excluir da anistia concedida pelo §1º do art. 1º da lei n° 6.683/79 os crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime civil-militar. A ação foi julgada improcedente, o que se deu tendo por base os argumentos expostos no curso deste trabalho. Tendo em vista o cenário acima narrado, é necessário analisar em que medida, no caso concreto da ADPF 153, o STF cumpriu ou não com sua função de promotor de direitos humanos e fundamentais, postura essa condizente com o momento histórico atual. Tal análise será feita a partir do marco teórico da teoria da argumentação, especificamente a teoria da argumentação jurídica desenvolvida por Robert Alexy, a qual se mostra, na opinião do autor deste trabalho, como a mais bem desenvolvida e adequada para a elaboração e também para posterior análise da correção das decisões judiciais proferidas no âmbito da jurisdição constitucional. Na tentativa de guardar coerência com o procedimento delineado por Alexy para a correção das decisões judiciais, primeiramente serão identificados os direitos fundamentais em debate no caso concreto, bem como as normas que postulam incidência a partir de tais direitos; em seqüência, a análise do acórdão sob a perspectiva da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Espera-se contribuir, ainda que modestamente, para a identificação de como tem se dado a aceitação e utilização da teoria da argumentação de Alexy no âmbito do STF e como a Corte Constitucional vem lidando com a obrigação que possui de efetivar direitos humanos e fundamentais na práxis social, em especial os direitos humanos relacionados à concretização do processo de justiça de transição no Brasil, os quais, adiante-se, encontram-se no bojo da discussão do caso concreto em análise.

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2. Justiça de transição e os direitos humanos e fundamentais envolvidos no caso concreto A petição inicial da ADPF 153 aponta as seguintes violações de preceitos fundamentais por parte do §1º do art. 1º da lei n° 6.683/79: isonomia em matéria de segurança; dever do Estado de não ocultar a verdade; violação do princípio democrático e republicano e da dignidade da pessoa humana. Pode-se facilmente perceber que os preceitos fundamentais invocados pelo autor da ação encontram-se no âmbito dos direitos fundamentais envolvidos no campo da chamada justiça de transição. Para Van Zyl2, “o objetivo da justiça transicional implica em processar os perpetradores, T

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revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação.” Do objetivo enunciado pode-se destacar quatro linhas principais de atuação com vistas à promoção da reconciliação nacional: 1) possibilidade de processo judicial em face dos perpetradores de violações a direitos humanos e fundamentais no curso da existência do regime; 2) efetivação do direito à verdade e a memória, através da abertura e acesso a arquivos sigilosos e também de processos judiciais; 3) fornecimento de reparação pecuniária em favor das vítimas do regime e 4) reforma das estruturas estatais, tais como agências de inteligência, polícias e repartições públicas em geral. Vivencia-se no Brasil uma justiça de transição incompleta: encontra-se em curso o processo de reparação às vítimas, o qual se iniciou com a promulgação da lei n° 10.559/2002 e com a constituição da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e continua com a atividade intensa de referida comissão e das “Caravanas da Anistia”. Mais recentemente foi dado um passo decisivo rumo à concretização do direito à verdade e a memória, com a aprovação da lei n° 12.527/2011 e 12.528/2011, a primeira trazendo nova regulamentação para o acesso e sigilo de documentos oficiais e a segunda finalmente determinando a criação da Comissão Nacional da Verdade. Não obstante tais iniciativas, dois eixos da justiça transicional continuam à espera de concretização. Muito embora tenha ocorrido, em certa medida, a reforma das estruturas estatais após a promulgação da Constituição Federal de 1988, em especial as relacionadas à inteligência, polícia e segurança pública, a prática da tortura constitui uma triste herança da ditadura civilmilitar; se antes a mesma ocorria nos quartéis e nas salas dos órgãos de repressão, hoje ocorre nas delegacias de polícia3. Do mesmo modo continua completamente vedada a possibilidade de T

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2

VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, n. 1, p. 32-55, jan./jun., 2009, p. 32.

3

Pode-se encontrar interessante análise da temática em âmbito nacional em RELATÓRIO sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura. São Paulo: CNBB, 2010. Sobre a situação no estado de São Paulo, vide JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

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processo judicial em face dos agentes da repressão, por força da interpretação dominante da lei n° 6.683/79, a qual foi mantida pelo STF quando do julgamento da ADPF 153. Barbosa e Vannuchi4 sintetizam o que significa a origem e a manutenção desta T

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interpretação, ao afirmar que “a estratégia das ditaduras é conhecida: produzir a supressão da memória por meio de pactos de silêncio e de concessões mútuas que acomodam, precariamente, os sobreviventes do conflito e mantêm intocadas a possibilidade do ajuste de contas com o passado e a ignorância dos fatos pretéritos, sobretudo entre os jovens.” A lei n° 6.683/79 e sua interpretação dominante é claro exemplo da estratégia narrada acima, quando positivou, através de uma chicana jurídica, a idéia de que teria ocorrido um “pacto de transição” que inviabilizaria qualquer possibilidade de responsabilização dos agentes estatais que violaram direitos humanos dos opositores do regime. Nos quadrantes delimitados pela ADPF 153, tem-se que o julgamento de procedência da ação significaria justamente a retirada do obstáculo existente para a possibilidade de instauração de processo judicial em face daqueles que violaram direitos humanos e fundamentais durante a ditadura civil-militar, além de contribuir para o esclarecimento da verdade e efetivação da memória, o que se dá inclusive através do processo judicial. Em outras palavras, contribuiria com o próprio direito à justiça transicional, o qual pode e deve ser entendido como direito humano e como direito fundamental. De outra banda, a manutenção da interpretação corrente da lei de anistia significa exatamente o oposto, ou seja, negativa à concretização da justiça transicional e manutenção de uma suposta segurança jurídica, fundada na idéia enunciada acima. Esta foi a opção do STF quando do julgamento da ação.

3. Análise do acórdão sob a perspectiva da teoria da argumentação e dos direitos fundamentais de Robert Alexy Tendo em vista os preceitos fundamentais envolvidos no caso concreto e a correspondente decisão, pode-se considerar como sendo, à luz da teoria da argumentação e da teoria dos direitos fundamentais de Alexy, tanto referidos preceitos fundamentais quanto a própria decisão, possíveis de racionalização e análise através da identificação de uma norma atribuída de direito fundamental, o que é indispensável para que se possa analisar a decisão à luz do marco teórico escolhido, não obstante a já feita identificação dos direitos humanos e fundamentais envolvidos no caso concreto.

4

BARBOSA, Marco Antônio Rodrigues; VANNUCHI, Paulo. Resgate da memória e da verdade: um direito de todos. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 58.

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Afirma Alexy5 que “uma norma é uma norma de direito fundamental atribuída quando, para T

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sua atribuição a uma disposição de direito fundamental, é possível uma correta fundamentação referida a direitos fundamentais”, ou seja, dentre os critérios identificadores das normas de direito fundamental encontra-se a possibilidade de identificação de uma norma como sendo de direito fundamental a partir da atribuição de uma fundamentação correta e que seja referida a direitos fundamentais; tal fundamentação se dá através do processo de argumentação jurídica, que nada mais é do que um caso especial em relação à argumentação jurídica geral6. T

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No caso em estudo encontra-se inegavelmente presente a fundamentação de direitos fundamentais exigida, tanto na petição inicial quanto na própria decisão, podendo-se seguramente afirmar que esta última constitui uma norma atribuída de direito fundamental onde se pode identificar a prevalência final do princípio da segurança jurídica, resultado do conflito entre dois conjuntos de direitos fundamentais a exigir a aplicação da técnica da proporcionalidade: de um lado, o direito à justiça; de outro, a já citada segurança jurídica reafirmada pelo STF em sua decisão. O que se verifica é que o STF privilegiou exclusivamente o princípio da segurança jurídica que entende estar presente na vedação contida no §1º do art. 1º da lei n° 6.683/79, não dando nenhuma importância ao direito à justiça pleiteado na ação. Torna-se então possível e necessário, sob a ótica da teoria da argumentação jurídica e da teoria dos direitos fundamentais de Alexy, analisar se o acórdão cumpre satisfatoriamente os requisitos da decisão racional e se resolveu adequadamente a colisão de princípios existentes no caso concreto, através do exame de proporcionalidade, desdobrável no exame da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Importante ressaltar que “o discurso de direitos fundamentais é um procedimento argumentativo que se ocupa com o atingimento resultados constitucionalmente corretos7”, ou seja, T

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o discurso racional contido na decisão deve se pautar pelos valores constitucionalmente previstos e tidos como corretos pelo ordenamento jurídico, o que deve ser feito através do procedimento argumentativo (sem que isso signifique a adoção de uma teoria material dos direitos fundamentais, o que, é bom frisar, não é a proposta de Alexy). No que diz respeito ao requisito da adequação, pouco se tem a dizer, já que, para Alexy8, a T

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adequação “tem, na verdade, a natureza de um critério negativo. Ela elimina meios não adequados.” Está claro que a própria ADPF é um meio adequado para se atingir uma dada 5 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 82-83. 6

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 212.

7

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 573. 8

Idem, p. 590.

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finalidade, qual seja, a procedência do pedido de interpretação conforme. A seu turno, o pedido, se julgado procedente, também é meio adequado para a efetivação do direito à justiça contido na necessidade de efetivação da justiça transicional. A improcedência, como de fato ocorreu, significa a manutenção de um meio absolutamente inadequado para a concretização do direito à justiça. Pode-se concluir então que a decisão proferida pelo STF não satisfaz a adequação necessária à proporcionalidade que se espera na colisão de princípios em exame. No que diz respeito à necessidade, Alexy9 afirma que a mesma “exige que, dentre dois T

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meios aproximadamente adequados, seja escolhido aquele que intervenha de modo menos intenso.” O julgamento de procedência da ADPF 153 significaria apenas a possibilidade de abertura de ação penal contra os agentes da repressão, com as garantias processuais constitucionalmente previstas e inerentes ao processo criminal. Por fim, no que diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito, “cereja do bolo” da teoria de Alexy, alguns comentários prévios fazem-se necessários. A proporcionalidade em sentido estrito deve ser auferida a partir da chamada “lei de colisão”, a qual pode ser enunciada nos seguintes termos: “Se o princípio P1 tem precedência em face do princípio P2 sob as condições C: (P1 P P2) C, e se do princípio P1, sob as condições C, decorre a conseqüência jurídica R, então, vale uma regra que tem C como suporte fático e R como conseqüência jurídica: C → R.10” T

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A relação de precedência de um princípio em relação a outro, o que significa sua prevalência na decisão do caso concreto após o sopesamento, deve se dar de acordo com certas condições, as quais são identificadas e analisadas somente quando da análise do caso concreto. Chega-se assim à decisão decorrente uma conseqüência jurídica que nada mais é do que uma norma atribuída de direito fundamental que tem as condições que levaram à decisão como suporte fático e a própria norma que se infere da decisão como conseqüência jurídica. Cardoso11, detalhando a lei de colisão, afirma que “o peso elevado (grave) do direito que T

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fundamenta uma intervenção, justifica a afetação (prejuízo, não realização, não cumprimento) leve de um direito fundamental que com ele colide no caso concreto).” No caso em exame, atentando-se para o fato de que a decisão judicial deve atingir resultados constitucionalmente corretos e principalmente para o fato de que existe uma necessidade imperiosa de concretização da justiça transicional no Brasil, tem-se que é totalmente

9

Ibidem.

10

Idem, p. 99.

11

CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação: a teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 237.

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justificável do ponto de vista da racionalidade decisória a prevalência do direito à justiça em face do princípio da segurança jurídica. De fato, a intervenção na legislação pleiteada pelos autores da ADPF 153 era plenamente justificável sob o prisma exclusivamente jurídico, abrindo a possibilidade de afetação leve do princípio da segurança jurídica que emerge da interpretação corrente do §1º do art. 1º da lei n° 6.683/79. Destaque-se que tal intervenção pode ser tida como leve pois, como já se afirmou alhures, trata-se de viabilizar a possibilidade de persecução criminal dos agentes da repressão violadores de direitos humanos durante a ditadura civil-militar. Pode-se afirmar com segurança que ser vítima de persecução criminal, havendo justa causa para tanto e respeitados os direitos e garantias processuais fundamentais, não significa afetação de qualquer direito fundamental. Ocorre que o STF simplesmente inverteu o princípio que deveria ter precedência no caso concreto, qual seja, o princípio do direito à justiça, privilegiando o princípio da segurança jurídica, sob o argumento da ocorrência de um “pacto de transição” que não poderia ser alterado pelo Poder Judiciário, já que se trata de um acordo político feito pela sociedade quando da promulgação da lei n° 6.683/79. Esta argumentação fica clara no voto do Ministro Eros Grau: [...] a chamada Lei da anistia vincula uma decisão política naquele momento – o momento de transição conciliada de 1979 – assumida. A Lei n. 6.683 é uma leimedida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada. Para quem não viveu as jornadas que a antecederam ou, não as tendo vivido, não conhece a História, para quem é assim a Lei n. 6.683 é como se não fosse, como se não houvesse sido.

Essa linha de argumentação perpassa todo o acórdão, à exceção dos votos divergentes dos Ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Brito. Pode-se concluir então que a base da decisão proferida pelo STF pode ser classificada no âmbito do chamado argumento empírico, o qual, segundo Alexy12, “sempre representa uma parte importante e muitas vezes decisiva tanto no T

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discurso prático geral quanto no discurso jurídico.” O argumento empírico foi abertamente utilizado para explicitar as condições que levaram à prevalência do princípio da segurança jurídica em detrimento do direito à justiça. Novamente, vejase trecho do voto do Ministro Grau em que tal utilização fica clara: Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). 12

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 270.

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Ocorre que as condições que devem ser levadas em consideração para a aplicação da lei de colisão (e que permitem a posterior análise da decisão judicial) são aquelas que se colocam no momento da decisão, não havendo que se falar em invocação da mens legis ou da mens legislatoris para se justificar como condição o que não passa de argumento empírico utilizado através do método histórico (para se utilizar a terminologia da hermenêutica clássica de Savigny) ou, na conceituação de Alexy13, da aplicação da interpretação genética. T

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Deve-se separar a argumentação utilizada no voto do Ministro Grau para se evitar qualquer tipo de confusão: a remissão feita ao “pacto de transição” é uma forma de argumentação externa (empírica) e não a condição prevista na lei de colisão, como uma leitura apressada do acórdão pode levar a crer. Enquanto argumentação externa, significa também a apelação ao método de interpretação histórico (ou genético). Não se trata, portanto, da caracterização das condições que podem servir de justificativa racional para a prevalência do princípio da segurança jurídica em detrimento do direito à justiça transicional. Esclareça-se ainda que tal argumento empírico não guarda lastro com a realidade histórica vivida naquele momento, como bem expõe Pinheiro14, em artigo publicado na Folha de São Paulo T

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após o julgamento da ação: A Lei da Anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heróica oposição parlamentar haviam lutado. Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979 houve o Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21, um grande ato público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, igualmente contra o projeto do governo. A lei celebrada nos debates do STF como saldo de "negociação" foi aprovada com 206 votos da Arena, o partido da ditadura, contra 201 do MDB. A oposição, em peso, votou contra ato de Legislativo emasculado pelas cassações, infestado por senadores biônicos. Parece que o movimento da anistia e a oposição na época não tinham sido comunicados de seu papel no "acordo nacional" que os ministros 30 anos depois lhes atribuiriam.

As condições que possibilitariam a decisão racionalmente fundamentada são aquelas constitucionalmente identificáveis, ou seja, a necessidade de concretização do processo de justiça transicional como exigência do próprio modelo do Estado Democrático de Direito. A análise empreendida a partir da teoria fornecida por Alexy permite inferir que “não há um interesse institucionalmente compartilhado de legitimação do ativismo judicial dos tribunais superiores, especialmente do Supremo Tribunal Federal, em casos ‘politicamente custosos’ como aqueles que envolvem as pretensões de verdade, memória, punição e reparação inscritas no ideal 13 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 552. 14

PINHEIRO, Paulo S. O STF de costas para a humanidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 05 mai. 2010. Folha Brasil, p. 03. Para uma minuciosa reconstrução histórica do momento de luta pela anistia, elaboração do projeto de lei, discussão, votação e promulgação da lei n° 6.683/79, veja-se o excelente artigo de FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão aos torturadores”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, Ministério da Justiça, n. 4, p. 234-267, jul./dez., 2010.

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de justiça transicional15”, ou seja, no que diz respeito ao ativismo judicial, o julgamento da ADPF T

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153 permite concluir que o STF atua com seletividade no que diz respeito às matérias afeitas à justiça transicional, o que significa, na prática, um óbice para a concretização dos direitos humanos e fundamentais relacionados ao tema.

4. Considerações finais O julgamento de total improcedência da ADPF 153 inegavelmente contribuiu para a manutenção de um intolerável estado de coisas: a realização parcial e mambembe do processo de justiça de transição no Brasil, já que a manutenção da interpretação “original” e corrente do §1º do art. 1º da lei n° 6.683/79 inviabiliza a possibilidade de persecução criminal dos agentes estatais que praticaram a repressão durante o período da ditadura civil-militar. A necessidade do desenrolar completo de um processo de justiça transicional é não só exigência do Estado Democrático de Direito como também de todos aqueles que foram afetados direta ou indiretamente pelos anos da ditadura civil-militar. Somente com a realização firme e conseqüente do processo de justiça transicional os indivíduos envolvidos e a sociedade brasileira poderão superar o paradoxo tão bem retratado por Verissimo16 no conto A mancha,onde o T

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protagonista Rogério, ex-preso político, vive o dilema constante entre lembrar, esquecer e viabilizar a vida presente.

Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001. ______. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. BARBOSA, Marco Antônio Rodrigues; VANNUCHI, Paulo. Resgate da memória e da verdade: um direito de todos. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação: a teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filosóficos. Curitiba: Juruá, 2009. FICO, Carlos. A negociação parlamentar da anistia de 1979 e o chamado “perdão aos torturadores”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, Ministério da Justiça, n. 4, p. 234-267, jul./dez., 2010.

15

SILVA, Alexandre Garrido da; VIEIRA, José Ribas. Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, Ministério da Justiça, n. 2, p. 234-267, jul./dez., 2009.p. 263.

16

VERISSIMO, Luis Fernando. A mancha. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. PINHEIRO, Paulo S. O STF de costas para a humanidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 05 mai. 2010. Folha Brasil, p. 03. RELATÓRIO sobre tortura: uma experiência de monitoramento dos locais de detenção para prevenção da tortura. São Paulo: CNBB, 2010. SILVA, Alexandre Garrido da; VIEIRA, José Ribas. Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do ativismo judicial no Brasil. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, Ministério da Justiça, n. 2, p. 234-267, jul./dez., 2009. VAN ZYL, Paul. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, Ministério da Justiça, n. 1, p. 32-55, jan./jun., 2009. VERISSIMO, Luis Fernando. A mancha. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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Entre a Liberdade de Expressão e os Libertinos que se Expressam Bruna Gabriela de Oliveira Lima, Kaio Cesar Damasceno de Albuquerque e Marcela Guedes Alcoforado Rodrigues...887 T

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Oligopólios Midiáticos: Entraves à Concretização do Direito à Comunicação Camyla Figueiredo de Carvalho e Manuela Braga Fernandes.........................................................................................897 Liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana: o debate que envolve a criminalização dos preconceitos de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero na legislação brasileira Clarissa Cecília Ferreira Alves..........................................................................................................................................907 A liberdade de expressão frente ao problema da concentração nos meios de comunicação e a necessidade de promoção do pluralismo Geisyane Barbosa do Prado.............................................................................................................................................924 Tribunais Eleitorais na rede: a informação como caminho para a construção da democracia participativa Grasiela Grosselli e Geovana Cartaxo..............................................................................................................................936 Justiça e jornalismo: Freeport e Casa Pia, casos portugueses Josuel Mariano da Silva Hebenbrock................................................................................................................................950 T

Veja e PNDH-3: a teoria liberal sobre liberdade de expressão e de imprensa como discurso de justificação para a não regulação da mídia brasileira Lucas Grangeiro Bonifácio e Igor Caio Alves de Miranda................................................................................................959 T

Regulação da mídia televisiva voltada à defesa dos direitos da criança e do adolescente Marília Guadalupe de Mendonça Galvão Pereira.............................................................................................................972 A colisão entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão Moisés Zarzar Correia de Melo.........................................................................................................................................991 Como descrever as condições do ato de interpretação em que se apóia a ADPF 187. Uma abordagem a partir da Hermenêutica Constitucional e a liberdade de expressão Raul Diégues Serva Neto................................................................................................................................................1005 Descriminalização das rádios comunitárias na construção dos direitos humanos Thalita Vitória Castelo Branco Nunes Silva e Tamires Ferreira Coelho.........................................................................1020 A construção da imagem feminina no discurso pornográfico como hipótese de colisão de direitos fundamentais: entre o erotismo e a teoria dos direitos fundamentais Tieta Tenório de Andrade Bitu........................................................................................................................................1031

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Entre a Liberdade de Expressão e os Libertinos que se Expressam Bruna Gabriela de Oliveira Lima1 T

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Kaio Cesar Damasceno de Albuquerque T

Marcela Guedes Alcoforado Rodrigues

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3 T

Resumo

Abstract

Dado o caráter peculiar da trajetória política de nosso país, o ideal democrático sempre esteve atrelado à liberdade de expressão. No entanto, decorrido mais de duas décadas após a “redemocratização” do Brasil, o que se verifica é a confusão de acepções sendo a liberdade de expressão entendida como um passe livre para as ofensas públicas, mesmo quando violam os Direitos Humanos. Assim, no Brasil, a tentativa de instituir um controle público dos meios de comunicação emerge no debate como o grande leviatã que cerceará a liberdade de expressão de que desfruta a imprensa. Nesse contexto, tendo ciência de que o ideal democrático supõe maior envolvimento dos cidadãos em diferentes atividades da política, o presente estudo tem por objetivo examinar as constantes violações aos Direitos Humanos realizadas pela mídia, apontando possíveis soluções para tal problemática. Por se tratar de um corte transversal e em espiral, utilizou-se uma abordagem qualitativa na construção de um estudo exploratório, que possibilitou uma primeira aproximação com o fato e/ou fenômeno estudado. Como material de análise utilizaramse dados do Ombuds PE e do Observatório do Direito à Comunicação, que mapeiam as violações aos Direitos Fundamentais efetuadas pela mídia pernambucana e brasileira, respectivamente. Destarte, verifica-se que as maiores afrontas aos Direitos Humanos estão ligadas aos programas de cunho jornalístico e de humor, quando da violação do princípio da dignidade da pessoa humana. No entanto, como proceder num país onde a violação aos Direitos Humanos não revogam as concessões de rádios e/ou televisões? Assim sendo, deve-se considerar que as liberdades públicas não são incondicionadas e, por isso, devem ser exercidas de maneira harmônica devendo-se impor um liame que delimite a abrangência da liberdade de expressão a fim de evitar libertinos a se expressar, como ocorre atualmente.

Given the peculiar character of the political history of our country, the democratic ideal has always been tied to freedom of expression. However, after more than two decades after the "democratization" of Brazil, what occurs is a confusion of meanings and freedom of expression understood as a free pass for public offenses, even when they violate human rights. Thus, in Brazil, attempting to establish a public control of the media in the debate emerges as the great leviathan that restricts the freedom of expression enjoyed by the press. In this context, and aware that the democratic ideal assumes greater involvement of citizens in different political activities, this study aims to examine the constant human rights violations carried out by the media, pointing to possible solutions to this problem. Because it is a cross-section and spiral, we used a qualitative approach in the construction of an exploratory study, which enabled a first approximation to the fact and / or studied phenomenon. For analysis using data from the EP and the Ombuds Observatory right to communicate, that map the fundamental rights violations carried out by the media in Pernambuco and Brazil, respectively. Thus, it appears that the greatest affronts to human rights are linked to programs and journalistic slant of humor when the violation of the principle of human dignity. However, how to proceed in a country where human rights violations does not revoke the concession of radio and / or televisions? Therefore, one should consider that civil liberties are not unconditioned and therefore must be exercised on a harmonic should be imposed a bond that establishes the scope of freedom of expression in order to avoid libertines to express themselves, as occurs today.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Mídia; Democracia.

Keywords: Human Rights, Media, Democracy.

1

Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Membro do Núcleo de Assessoria Jurídica Popular- NAJUP- Direitos nas Ruas/ Movimentos Sociais.

2

Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq/PIBIC/Fundaj. 3

Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

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1. Introdução [...] Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma, / que não exista força humana alguma / que esta paixão embriagadora dome. E que eu por ti, se torturado for, / possa feliz, indiferente à dor, / morrer sorrindo a murmurar teu nome LIBERDADE [...] (Carlos Marighella, São Paulo, 1939)

“Liberté, egalité, fraternité, ou la mort”, eis o lema da Revolução Francesa que impulsionou o grande movimento de renovação de estruturas políticas, sociais, jurídicas e o nascimento de uma nova sociedade. Mas que liberdade é essa? Como surgiu a concepção de liberdade de expressão assim como a concebemos atualmente? O ideal de liberdade da Revolução Francesa entendeu-se antes como libertação da “tirania monárquica” do que como um regime consolidado em liberdades individuais4. Foram as transformações do movimento revolucionário, no entanto, que deram à liberdade de expressão um novo reconhecimento a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. A referida carta política, em seu art. 11, postula que “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na lei”. Compreendem-se, desse dispositivo, duas idéias principais que continuam a ser válidas nos dias atuais: primeiramente a garantia a todo ser humano de, por qualquer meio, expressar suas idéias e opiniões; em segundo lugar, a limitação à liberdade de expressão a qual não pode ser exercida de forma abusiva e, por isso, tem determinados limites5. Esse entendimento nem sempre foi posto em prática durante os governos brasileiros e a liberdade de expressão era vista como uma ameaça a sustentação do Estado. Após aproximadamente dois séculos da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a sociedade brasileira teve sua livre expressão de idéias cerceada por governos ditatoriais o quais legitimaram as ações de censura e de repressão por meio de uma legislação autoritária. Lembrar o caminho percorrido na luta pela liberdade de expressão é uma forma de consolidar a política democrática no Brasil. Assim as sementes de um Estado despótico foram lançadas durante o governo de Getúlio Vargas, instituindo-se a censura prévia e a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) responsável pela repressão a qualquer conteúdo midiático contrário ao Estado Novo. Embora, após 1945, tenha-se vivido um breve período democrático, não se extinguiu a censura prévia e, com a ascensão da ditadura militar, tal instituto fora recrudescido.

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COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010, p.150.

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MEIRA, Miguel Salgueiro. Os limites à liberdade de expressão no discurso de incitamento ao ódio. Disponível em : < http://www.verbojuridico.com/> Acesso em 21 de outubro de 2011. T

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A lei de Segurança Nacional e o AI-5 já davam margem ao cerceamento da liberdade de expressão, apenas se confirmando com a aprovação do Decreto-Lei 1077, no governo de Médici, que dispôs: Art. 1º - Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação. Art. 2º - Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior. Parágrafo único. O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o modo e a forma da verificação prevista neste artigo. Art. 3º - Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.

Após os “Anos de Chumbo”, o período de redemocratização do Brasil foi marcado pela promulgação da Constituição de 1988: A Constituição Cidadã. A nova Carta Magna, inspirada no anseio pela liberdade, perpetuou, em certos aspectos, o que se chama de entulho autoritário. No entanto, a Constituição de 1988, reagindo ao antigo regime, previu a liberdade de manifestação do pensamento (no artigo 220, caput, e 5º, IV – neste, proibindo o “anonimato”), liberdade de criação, de expressão e de informação (artigo 220, caput, e 5º, V – neste, “independentemente de censura ou licença”), o “acesso à informação” e o “sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional” (artigo 5º, XIV), e a proibição de “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (artigo 220, § 2º). 6 T

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2. Das liberdades a libertinagem: o excesso, a anomia e a colisão de direitos fundamentais Todo homem livre tem um indiscutível direito a expor o que sente ante o público: proibi-lo equivaleria a suprimir a liberdade de imprensa; mas se alguém publica o que é inapropriado, maligno ou ilegal, deve sofrer as consequências de sua própria temeridade. (William Blackstone, Inglaterra, 1766)

Como se pôde constatar, a sociedade brasileira não tem maturidade suficiente para compreender o tipo ideal de liberdade de expressão que se almeja. A princípio, pela trajetória política que vivenciamos – tendo sido o Estado o maior inimigo da liberdade de expressão – posteriormente, por razão de não possuirmos a vivência, suficiente, do regime democrático, ou seja, por não termos naturalizado a ontologia da democracia, de sorte que se pudesse repensar a noção de liberdade que a grande parcela da população comunga.

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FERNANDES, Pádua. Os olhos vazados da liberdade: cultura autoritária no Brasil, censura judicial e sistema interamericano de direitos humanos. Pg. 10.

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Cabe destacar, ainda, a importância do discurso da mídia, nesse contexto, influenciando na formação da noção de liberdade de expressão – diga-se de passagem – sem limites, que advoga. Decorridas mais de duas décadas após a consolidação do regime democrático, falar em mecanismos de controle da mídia remete, mediante uma interpretação equivocada e anacrônica, a discussão sobre a instituição da censura no Brasil. Ora, o que se pretende é criar instrumentos de controle externo da mídia que serviriam para responsabilizar os meios de comunicação quando dos excessos a liberdade, responsabilizá-los quando a liberdade de expressão invade direito alheio e se torna libertinagem, afrontando, assim, a outros direitos humanos positivados em nosso ordenamento jurídico no rol dos direitos fundamentais – como o direito à intimidade, a imagem e ao princípio basilar de todo aparelhamento jurídico do Estado que é o da dignidade da pessoa humana, isto é, causando uma colisão entre os direitos fundamentais. Como trabalhado por Luis Roberto Barroso, tais colisões de direitos fundamentais surgem inexoravelmente no direito constitucional contemporâneo pela complexidade e pluralismo das sociedades modernas as quais levam ao abrigo da constituição valores e interesses diversos, que eventualmente entram em choque.7 No nosso direito constitucional, não há hierarquia axiológica T

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entre as normas jurídicas. A ponderação entre os direitos fundamentais, ou seja, entre a liberdade de expressão e o direito à personalidade, à imagem, à dignidade da pessoa humana, só pode ser avaliada diante das peculiaridades do caso concreto. A leitura anacrônica dos dispositivos constitucionais, que versam sobre a liberdade de expressão, é tão prejudicial que acaba por se materializar no âmbito jurídico quando da resolução de conflitos que envolvam supostos excessos a este direito fundamental. Na APELAÇÃO CÍVEL Nº 70043311851 – TJRS, 2011, o Desembargador Túlio de Oliveira Martins defendeu que “a liberdade de imprensa, como de religião, pensamento e tantas outras, é garantia constitucional, cláusula pétrea e nuclear do contrato social brasileiro; não podendo, de forma alguma, ser adjetivada, reduzida ou condicionada”. Ora, o próprio texto constitucional se não trás de forma explícita mecanismos de contenção da liberdade de expressão, o faz de forma implícita se observadas forem as sanções que institui aos excessos. Ainda assim, o que se observa é um estado de anomia, de ausência ou não aplicabilidade das normas cabíveis nas ocorrências de excessos, das libertinagens. “As mulheres feias deveriam agradecer por serem estupradas” é um exemplo de como a percepção acerca das liberdades foi deturpada a ponto de proteger o discurso do ódio que pode estar implícito em certas declarações. A liberdade de expressão, de princípio basilar do Estado Democrático de Direito, passou a ser vista como prerrogativa para certos libertinos que, mediante a alegação de estar fazendo uso do direito fundamental à liberdade de pensamento, falem o que querem e não sejam responsabilizados. 7

FARIAS, Cristiano Chaves. Leituras Complementares de Direito Civil. Direito civil-constitucional em concreto. São Paulo: Juspodivm, 2009. Pg. 102.

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3. A outra face das liberdades 3.1 A displicência na divulgação de imagens acessíveis a quaisquer indivíduos, a não atenção às famílias de vítimas e o infeliz desrespeito às classes menos abastadas No estado em que tudo é permitido, o mais forte oprime o mais fraco. Não existe liberdade fora da lei... (Paulo Hamilton Siqueira Jr.)

Em junho de 2010, o jornal Folha de Pernambuco - de grande circulação no estado divulgou imagem que possivelmente causou choque em muitos, porém não foi alvo de debates à mesma medida que violou direitos essenciais ao indivíduo. Devido aos habituais comodismo e aceitação diante dos “relatos” divulgados pela mídia, o público se priva de refletir sobre a dignidade e privacidade de quem é exposto com a finalidade de que seu infortúnio seja fonte de lucros para um dado veículo de comunicação. A matéria, analisada pelo Ombus PE sob o título “Folha se supera no desrespeito ao ser humano”, incluía uma fotografia colorida em que uma jovem se encontrava morta debaixo de tronco de árvore com cabeça esmagada, e com sangue em volta e tecido orgânico espalhado. Ainda houve, por parte do jornal, a associação da vítima a drogas, sem que tenha sido dada à família a oportunidade de confirmar ou não o fato, bem como de dispor acerca da divulgação do registro visual daquela infeliz situação. O mais curioso e notável é perceber diferentes tratamentos conferidos a pessoas advindas de classes sociais diversas. A vítima retratada era pobre, sendo reduzida a probabilidade de retaliação por parte de algum ente seu contra o jornal. Fosse ela pertencente a uma família de classe alta, o tratamento teria sido outro – tanto isso é fato que, veículos de comunicação os quais violam com maior evidência os Direitos Humanos – costumam agir em bairros da periferia, onde a violência é recorrente e abre maior espaço para o famoso “sensacionalismo”, visto como uma grande fonte de riquezas, mediante a afirmação de que expectadores e leitores se interessam mais por este tipo de assunto. Certamente, fatos como o ocorrido com a jovem da matéria em pauta podem ser noticiados, todavia existem formas dignas de fazê-lo. O primeiro ponto a ser observado é que, em um homicídio brutal como este, a apuração do caso – não se trata de inquérito policial, mas de abordagem jornalística, comprometida com a verdade, das circunstâncias que geraram aquele resultado – é mais importante do que a descrição de como ocorreu a execução. Minuciar os golpes desferidos e a forma em que se encontra o corpo exacerba a liberdade de expressão, invadindo os limites da intimidade individual e da dignidade da pessoa humana. Já a segunda medida plausível a ser tomada é o respeito à família do ofendido, cuja imagem perante a sociedade é – muitas vezes – denegrida sem que seja dada a oportunidade de defesa, de justificação.

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É, também, fundamental observar o fato de que uma manchete de jornal poderá ser vista inclusive por pessoas as quais não necessariamente buscaram aquela informação. Não incomumente, periódicos são vendidos em semáforos, expostos em bancas de revistas e as imagens neles publicadas se tornam quase inevitáveis a qualquer transeunte, inclusive crianças. O

choque

de

ver,

pela

manhã,

uma

imagem

retratando

indiscriminadamente,

sem

responsabilidade, a miséria e a violência entre os seres humanos, é uma verdadeira agressão a ser evitada, em nome da liberdade de cada um em escolher, na medida do possível, as imagens e fatos a que deseja ter acesso. Não se trata aqui de coibir o acesso à informação, mas de evitar desrespeitos contra os dois pólos que se comunicam através de um veículo de comunicação: quem “protagoniza” o fato noticiado e o receptor daquela mensagem, visto que não faz sentido algum cercear completamente a liberdade de quem tem sua dignidade ou sua mente agredidas, em nome de proteger o livre-arbítrio de um terceiro, cujo papel vem sendo inescrupulosamente distorcido.

3.2 A atribuição de adjetivos jocosos e a exposição de indivíduos a situações humilhantes, sob a justificativa de terem obtido a sua autorização para tanto Há, nos dias atuais, uma enorme gama de programas humorísticos brasileiros cuja principal fonte de risadas advém da exposição ao ridículo de indivíduos os quais muitas vezes não têm consciência do que estão sofrendo, ou se colocam em posição de serem humilhados devido à necessidade de se sustentar.

Exemplos não faltam, vão de amarrar mulheres com corpos

definidos e consideradas “desprovidas de inteligência” no capô de um carro em movimento, à criação de um pseudo-reality show de autistas. Há concursos denominados “Musa da Beleza Interior” cujo único objetivo é ressaltar que determinadas pessoas estão fora do padrão de estética exigido pela sociedade e indivíduos com nanismo se vestindo de bichos de pelúcia, a fim de gerarem gargalhadas no público. Diante de tais fatos, deve-se questionar até que ponto o fato de o ofendido autorizar determinadas “brincadeiras” permite a deterioração da própria imagem. Ainda mais diante do fato de que, para isso ele dispõe de direitos os quais seriam, teoricamente, indisponíveis. Infelizmente, há bastantes exemplos de tamanha omissão quando se trata da jocosidade relacionada a cidadãos “fora dos padrões”, os quais passam a ser estereotipados, paradigmas para indicar o que não é aceito sem piadas de péssimo gosto. Ao se utilizar como “bobo da corte” uma única pessoa - em um programa televisivo - devido à sua disfemia, conhecida popularmente como gagueira ou gaguez, está sendo ofendido todo um grande grupo que apresente a mesma T

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dificuldade. Certa feita, Roberto Bolaños – conhecido pelo seu papel de Chaves – destacou em entrevista ao SBT, que um dos maiores infortúnios de sua carreira foi quando uma de suas 892

personagens cuja fala era anasalada despertou em um de seus fãs, pai de uma criança a qual tinha o mesmo problema e que passou a sofrer com preconceitos ainda maiores na escola, uma enorme decepção e tristeza. Bolaños não só retirou do ar a personagem durante certo tempo, como reformulou a sua forma de falar. Observe-se, portanto, a responsabilidade envolvida na exibição de um programa, por mais inocente que ele pareça, os meios de comunicação não apenas influenciam opiniões, como também fazem parte da formação de caráter de crianças e adolescentes, levados a crer na veracidade absoluta de tudo quanto lhes é apresentado, bem como podem gerar, devido aos seus conteúdos, grandes traumas em quem sofre preconceitos. Atualmente, os shows de calouros têm ganhado força e audiência, mas a brincadeira parece só ter graça quando fazem parte jurados cruéis, capazes de levar ao mínimo a autoestima de alguém. A Rede Record, ao exibir o programa “Ídolos”, não fez diferente: dos jurados ouvia-se de gargalhadas a comentários extremamente indelicados, e infelizmente a galhofa não parou por aí. Outro programa – intitulado “de humor”- o “Legendários” realizou uma seleção dos piores candidatos, alvos de piadas e comentários ofensivos. Pessoas muitas das quais aceitaram se expor, mas acreditando ter talento o suficiente para agradar o público e serem selecionadas. Indivíduos cujos desejos e sentimentos foram desprezados e cuja dignidade foi largamente desrespeitada. O quadro em que se exibia essa coletânea de insucessos denominava-se “Os canjicas”, deixando ainda mais evidente a sua finalidade de expor as pessoas a uma situação humilhante. Além disso, os considerados piores teriam de cantar em baixo de um chuveiro, sendo ensaboados por assistentes de palco, e submetidos ao julgo de novos jurados integrantes do programa, os quais denominariam o indivíduo de “canjica” ou não. Diante disto, não obstante o evidente propósito do programa, ouve-se como justificativa recorrente a alegação de que aquilo estaria sendo feito de acordo com a devida autorização dos participantes. Entrando, pois, na discussão acerca da disponibilidade de certos direitos. É perguntado, portanto, se poderia alguém dispor, por exemplo, de sua própria dignidade, mesmo quando isto atinge indiretamente a dignidade de outrem. Maior ainda é a discutibilidade de certos comportamentos da mídia quando pessoas cuja capacidade é perceptivelmente reduzida são envolvidas em exibições humorísticas, sendo bastante dificultoso compreender o motivo pelo qual se acredita que não pode o Estado tentar punir meios de comunicação de comportamento abusivo, sob a justificativa de que estaria se tentando estabelecer uma ditadura. Ao passo que são de conhecimento público os interesses políticos e de mercado de alguns veículos os quais não têm compromisso com a veracidade e licitude da informação. Inclusive, a população é recorrentemente levada a aderir determinadas opiniões, sem que ao menos lhe sejam oferecidos argumentos contrapostos, pois ainda há – popularmente – o acreditar em uma imprensa neutra, quando - na verdade - não há compromisso com a probidade entre grande parte dos meios de comunicação. 893

Os chamado mass media são detentores de imenso poder na sociedade moderna. A imprensa constrói e destrói reputações, cria verdades, conduz a opinião coletiva por caminhos nem sempre identificáveis e para finalidades muitas vezes ambíguas. Seu poder é tamanho que as concessões são disputadas por políticos, líderes religiosos e por grupos com a intenção de empolgar outras espécies de poder, seja econômico ou político.8 T

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A defesa da “liberdade de expressão” transformou-se em motivo de ofuscamento de reais interesses político-ideológicos. Aquilo que seria capaz de libertar a sociedade das amarras da opressão estatal, terminou se tornando em justificativa para minorias abastadas obterem ainda maior poder diante das massas. As pessoas são cada dia menos conduzidas a refletir e – muito mais – a aderir um discurso pré-moldado e, inequivocamente, revestido de finalidades capazes de atender, não à democracia, como é afirmado, mas à manutenção do status quo de determinados grupos. Os joguetes entre partidos políticos e emissoras não são suficientemente ocultos, isto quando ambos não se confundem nas mesmas pessoas, tornando-se necessária a fiscalização para que a sociedade deixe de ser uma espécie de ventríloquo da mídia e passe a enxerga-la de frente, sob um olhar crítico, com capacidade de discernimento.

4. Considerações finais A Liberdade de Expressão, que antes seria meio de libertação da sociedade em relação a um Estado visto na figura do “Grande Leviatã”, tornou-se argumento para que os defensores de uma concepção da liberdade incondicionada criassem um estado de anomia, no qual a ausência de normas, ou não aplicabilidade das normas existentes criam uma sensação da impunidade para os libertinos que, por sua vez, fazem uso da própria liberdade de expressão para justificar ofensas públicas, mesmo quando em conflito com outros direitos fundamentais. Todavia, as liberdades públicas não são incondicionadas e, por isso, devem ser exercidas de maneira harmônica devendo-se impor um liame que delimite a abrangência da liberdade de expressão a fim de evitar libertinos a se expressar, como ocorre atualmente. A liberdade de expressão, assim como as liberdades, de modo geral, deve ser relativizada, pois toda liberdade possui limites e este limite são as leis. A libertinagem, o excesso, portanto, deve ser punido – até como forma de educar a sociedade para o exercício da liberdade de expressão – devendo-se considerar a influência que a mídia possui no contexto social e os possíveis danos que a veiculação de uma imagem indevida, de uma informação equivocada, ou de tantos outros abusos que possam ocorrer na vivência da liberdade de expressão, principalmente num país como o Brasil, onde ainda é arraigada a ideia de

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NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 257

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neutralidade jornalística, sendo uma grande parcela da população levada ao erro de crer na correspondência entre notícia e realidade fática. Sobrevém, então, a discussão acerca da ponderabilidade entre os Princípios que regem o ordenamento jurídico brasileiro, bem como entre direitos constitucionalmente garantidos – quando há um choque evidente entre estes, sendo importante ressaltar a necessidade de observância do caso concreto. Factualmente, não há porque anular a Liberdade de Expressão e Imprensa, em favor da qual tantos lutaram, mediante o fato de que: A Indústria Cultural não deve ‘sair do ar’, mas não é ninguém em particular que nele a mantém. Ainda mais: aquilo que veicula – mensagens, conteúdo intelectivo e emocional -, a matéria-prima da qual pode dispor, é oferecido pela própria sociedade. Neste sentido, tanto ao nível da emissão quanto da recepção, nada se cria e nada se frui que não tenha por substrato a significação pública.9 T

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O limiar onde cessa a Liberdade de Expressão, dando espaço para a afirmação dos Direitos Humanos positivados em nossa Carta Magna, repousa na dignidade da pessoa humana. Passado este limiar, trata-se de libertinagem, não de liberdade. O próprio público, embora – segundo algumas teorias da comunicação, como a delimitada acima – faça parte da produção e fornecimento do que é veiculado pela mídia, rejeita muitas das más formas de uso dos veículos de comunicação, posto que ele mesmo finda como vítima dos excessos de libertinos que se expressam. Hodiernamente, É a lei ou o preceito o marco que determina o limite até onde o homem ou o povo pode se guiar por sua razão. São os executores da lei ou do preceito que velam para que o homem ou o povo não transponha este limite, são estes que o guiam fora dele, são os tutores ou os governos.10 T

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Resta-nos, portanto, coadunar com o posicionamento de Kant quando diz que o imperativo categórico universal é “Aja apenas de forma que a sua máxima possa se converter ao mesmo tempo em uma lei universal11”. Ora, se o pressuposto para a vivência das liberdades é a T

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inteligência, o meu direito acaba, quando o seu começa, e vice-versa.

Referências bibliográficas COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2010.

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ROCHA, Everardo. A Sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995.

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MELLO, Affonso D’Albuquerque. A Liberdade no Brasil. 2. Ed. Apresentação Nelson Saldanha. Recife: Fundaj – Editora Massangana, 1989. 11

Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010

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FARIAS, Cristiano Chaves. Leituras Complementares de Direito Civil. Direito civil-constitucional em concreto. São Paulo: Juspodivm, 2009. FERNANDES, Pádua. Os olhos vazados da liberdade: cultura autoritária no Brasil, censura judicial e sistema interamericano de direitos humanos. MEIRA, Miguel Salgueiro. Os limites à liberdade de expressão no discurso de incitamento ao ódio. Disponível em : < http://www.verbojuridico.com/> Acesso em 21 de outubro de 2011. U

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MELLO, Affonso D’Albuquerque. A Liberdade no Brasil. 2. Ed. Apresentação Nelson Saldanha. Recife: Fundaj – Editora Massangana, 1989. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ROCHA, Everardo. A Sociedade do sonho: comunicação, cultura e consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 1995. SOUSA, Jorge Pedro. Elementos de Teoria e Pesquisa da Comunicação e dos Media. Porto: BOCC, 2006.

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Oligopólios Midiáticos: Entraves à Concretização do Direito à Comunicação Camyla Figueiredo de Carvalho1 T

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Manuela Braga Fernandes T

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Resumo

Abstract

A distribuição do direito à comunicação no Brasil sofre de profundas vicissitudes. Grandes oligopólios controlam a mídia, e, com isso, a opinião pública. No entanto, presenciamos uma época em que esses oligopólios antigos caem; vemos diversas famílias com tradição em empresas de mídia cedendo controle ou mesmo vendendo seus capitais. Mas é isso positivo? Provavelmente não. Outros monopólios estão sendo formados. As opiniões apontam que grandes grupos internacionais da telefonia são os maiores candidatos a assumir o controle da mídia nacional, bem como as igrejas e os grandes empresários que agora decidem investir nesse mercado. Uma coisa é certa: o caminho traçado não é o de maior interesse para a concretização da democracia midiática. A Internet e a popularização da banda larga talvez se mostrem a solução para essa problemática. Nesse contexto de oligopólios como fica a questão da liberdade de expressão versus liberdade de imprensa? A confusão entre esses dois direitos prejudica a democratização do direito à comunicação em benefício dos oligopólios. Os grandes grupos constantemente avocam a liberdade de expressão como carta branca para sua livre manifestação, que não é de nenhuma forma livre, mas coberta de interesses minoritários. A partir da análise da movimentação negocial e dos interesses de grandes grupos de empresários da mídia, bem como do Projeto de Lei 29 e das decisões recentes acerca do conflito liberdade de expressão/liberdade de imprensa, o presente trabalho se propõe a discutir o prejuízo à democracia da comunicação que os oligopólios trazem, utilizando-se desta ardil restrição do conceito de liberdade de expressão.

The distribution of the right to communication in Brazil suffers with deep vicissitudes. Big oligopolies control media, and, with that, public opinion. However, we witness a time in which this old oligopolies fall; we see a variety of families with tradition media business giving control of their companies or even selling their capitals. But is that a positive thing? Probably not. Other monopolies are being formed. Opinions point that big international groups in the area of telecommunications are the strongest candidates to assume the control of national media, as well as churches and big business men that seek to invest in that market. One thing is right: the path being traced is not the one in the best interest to the achievement of media democracy. The Internet and the popularization of Broadbent may be solutions to these problems. In that context of oligopolies how the questions surrounding freedom of speech and freedom of press stays? The confusion between these two rights damages the democratic right do communication in favor to the oligopolies. The big groups constantly call for the freedom of speech as a hall pass to its free manifestation, that is not at all free, but covered in minority interests. Parting from the analysis of the negocial movimentation and from the interests of this big groups of media business men, as well from Law Project 29 e recent decisions surrounding the conflicts between freedom of speech/freedom of press, the present work proposes to discuss the damages to the communication rights that the oligopolies bring, using the cunning restriction of freedom of speech.

Palavras-Chave: Oligopólios; Comunicação mitigada.

Mídia;

Democracia;

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Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e membro do grupo de pesquisa Direito à Comunicação e Movimentos Sociais. [email protected]. TU

UT

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Graduanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e membro do grupo de pesquisa Realismo Jurídico e Direitos Humanos, vinculado ao programa de Pós-graduação da Universidade Federal da Paraíba. [email protected] UT

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1. Introdução Não existe na Constituição de 1988 menção direta ao direito à comunicação. Ele é uma construção ideológica dos Direitos Humanos para assegurar a garantia do acesso à uma informação livre e verdadeira. O direito à comunicação é a ferramenta que vai garantir a difusão do conhecimento. A acessibilidade à informação é cerne da questão aqui. Um outro aspecto relevante é que ele tem papel fundamental na garantia da Democracia. Não existe democracia concreta sem esse direito, pois é ele que cumpre papel relevantíssimo na desestruturação das concentrações de poder em termos de mídia. Um dos maiores empecilhos à concretização do Direito à Comunicação é a existência de oligopólios midiáticos. Apesar da proibição trazida no art. 220, §5º, o abuso aos direitos de liberdade e livre comunicação provocado pelos oligopólios na mídia nacional é gritante. O conceito de oligopólio, por sua vez, remonta da fase de transição do período feudal para o sistema capitalista de mercado, funcionando como uma evolução do conceito de monopólio. É literalmente um “comércio de poucos”, no qual um grupo de empresas domina a oferta de um determinado serviço. Tratar-se-á aqui de oligopólios midiáticos. Desde os primeiros tempos do surgimento da mídia impressa observou-se no Brasil grupos familiares exercendo controle em vários jornais impressos, como também diversos segmentos de mídia. Os patriarcas dessas famílias são os "velhos barões" da mídia, figuras conhecidas por todos. Mas o que se nota é que eles vêm perdendo espaço. Figuras como Roberto Civita, do Grupo Abril, os Mesquita, do Estado de São Paulo e os Marinho, da Rede Globo, vem perdendo controle acionário de suas empresas. As operadoras de telefonia e novos empresários em busca de influência política adentram o mundo da mídia tradicional e ameaçam o controle desses barões. A verdade é que essas empresas são bem maiores em termos de capital, se comparadas às de mídia tradicional. É uma questão de números: a Telefónica, ou mesmo a OI, brasileira, têm lucro superior ao faturamento da Globo. Também empresários em ascensão, com capital novo e vinculado a atividades lucrativas, chegam para ameaçar. É o caso do empresário J. Hawilla que recentemente adquiriu vários jornais antes pertencentes à família Marinho. Exemplo da atual perda de influência dos barões da mídia são as eleições de 2006, em que Lula se reelegeu apesar da forte oposição desses grupos tradicionalistas, que bombardeavam os meios de comunicação que possuem com informação negativa do candidato. A revista Carta Capital, em reportagem de 23 de dezembro de 2009, indica empresas como a Claro, a Oi, a Telefónica, da Espanha, bem como os jornais Destak e MetroNews, que são gratuitos e seguem um modelo inovador vigente na Europa e Estados Unidos, como as sucessoras dos barões da mídia. Essas empresas apresentam-se hoje com interesse de ingressar no mercado de mídia, substituindo o modelo tradicional. 898

Ora, mas o que isso significa? Se essas empresas substituírem os grupos familiares tradicionais não se pode dizer que haverá muita diferença na maneira com que o acesso à informação é garantido no Brasil. Empresas ou barões da mídia, todos transmitem informação vinculados a certos interesses políticos. A difusão da notícia se dá de maneira filtrada, de modo que só o que é condizente com os interesses do grupo é lançado ao público. Da mesma forma, as informações que sejam negativas ou destoantes dos interesses desses oligopólios são omitidas. O que se faz é aqui é negar o acesso à informação. Seja a mídia tradicional, os novos empresários ou as empresas de telefonia, a informação não é transmitida como se deve, com o devido respeito ao direito de todos os cidadãos à livre comunicação. O que elas fazem é impedir a concretização do direito à liberdade, através do impedimento do direito à comunicação. É bastante questionável o poder que esses oligopólios detêm, eles controlam e fiscalizam toda a mídia do país, manipulando todo acesso à informação. O mercado midiático é o que mais tem poder de controle sobre as decisões de toda a população. É através da mídia que um país toma suas decisões, desde as menores até em quem votar para Presidente da República. É esse mercado que forma a opinião da sociedade, define comportamentos e direciona o consumo. Até que ponto um cidadão brasileiro pode dizer que a decisão é sua ou da mídia que consome? E o que se faz no Brasil é colocar todo esse controle nas mãos de poucos. Prova relevante de como a informação passada sofre filtros de acordo com interesses dos próprios oligopólios está no caso do jornalista William Waack, exposto pela organização Wikileaks. O jornalista teve diversos encontros com diplomatas americanos para discutir a política nacional na época das eleições presidenciais de 2010, com registros de Waack discutindo com esses representantes detalhes dos candidatos à presidência. William Waack é jornalista da Rede Globo e as relações de afinidade com o governo americano são nada mais que uma séria ofensa ao direito à comunicação de todos os cidadãos brasileiros. A TV Globo é a maior do Brasil e não parece certa a censura de suas notícias por parte de governos internacionais. O controle midiático é exercido pelos oligopólios como se fosse simples mercadoria comum. No entanto, a verdade é que o acesso à informação é um dos maiores bens sociais e, enquanto direito fundamental, não pode ser negociado da maneira que os oligopólios fazem. A ausência de normas de controle é o que permite esse comportamento arbitrário e desrespeitoso em face do cidadão brasileiro. Mesmo quando as normas existem a política nacional encontra maneira de prejudicar o livre acesso à comunicação. É o que acontece na concessão de radiodifusão, importante meio de controle político da informação. É proibido constitucionalmente, no art 54 da CF, autorizar serviço de radiodifusão para qualquer parlamentar, de acordo com o abaixo transcrito: Art. 54 - CF - Os Deputados e Senadores não poderão: I - desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, 899

empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes.

Bem como: I - desde a posse: a) ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada.

Os deputados-concessionários, ou concessionários-deputados, aproveitam-se do fato de que é o próprio Executivo que permite e renova concessões para garantir seu controle sobre a mídia de radiodifusão e, consequentemente, controlar a opinião pública.

2. A distinção entre liberdade de expressão versus liberdade de imprensa à luz do Projeto de Lei 29/2007 O direito à comunicação, como constitucionalmente entendido, abarca não só a capacidade dos cidadãos de se expressarem livremente, mas também de serem sujeitos emissores ou consumidores de informação, no sentido mais amplo do termo. A despeito dessa delimitação, não raras são as vezes em que os oligopólios confundem essas duas liberdades, mormente para justificar sua hegemonia e desse modo, mitigar a expressão humana, individualmente considerada. Historicamente, a distinção é reconhecida, pois que senão inexistente seria a utilização destes dois termos desde as primeiras declarações de Direitos Humanos. O que se observa é que enquanto a liberdade de expressão está sempre referida à pessoa-indivíduo, a liberdade de imprensa se relaciona à pessoa-sociedade, funcionando como uma aparente “condição” para a concretização daquele direito individual genérico. Nesse contexto, cabe analisar os diferentes termos utilizados pelas primeiras declarações: enquanto a liberdade individual de expressão recebe, na primeira Emenda da Constituição dos EUA, em 1789, a nomenclatura de freedom of speech, a liberdade de imprensa é chamada de freedom of the press. Nesse sentido, o direito de expressão é historicamente denotado como a liberdade de falar, o direito ao discurso, à palavra emitida verbalmente; já a imprensa vem delimitada pela liberdade de imprimir, emitir opiniões escritas e a possibilidade de publicá-las. Estes também os sentidos empregados pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e pela nossa Carta Magna, de 1988, que se refere à “liberdade individual de manifestação do pensamento”, direcionando-se à liberdade de expressão; e a “plena liberdade de informação jornalística”, tratando da liberdade de imprensa. 900

Passadas estas primeiras considerações, o objetivo do presente tópico é a observação das “distorções importantes entre o que de fato está escrito nos principais documentos de referência e sua utilização pelos grupos de mídia na defesa do que chamam de liberdade de imprensa” (Venício Lima, 2009), além da comumente troca de um termo pelo outro, na intenção de proteger a ampla liberdade destes grandes grupos, em detrimento da garantia ao direito individual dos cidadãos. Kaarle Nordenstreng, citado pelo professor Dr. Venício Lima em trabalho acerca do tema, comenta o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos em que enfatiza a distinção entre os termos e analisa as não raras distorções feitas pelos grandes grupos midiáticos. Ele afirma que: “o sujeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais não é uma instituição chamada imprensa ou mídia, mas um ser humano individual. A frase ‘liberdade de imprensa’ é enganosa na medida em que ela inclui uma ideia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua voz através da mídia. Nada no Artigo 19 sugere que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade”. Afigura-se, portanto, intencional a utilização equivocada de um termo pelo outro. Os oligopólios trocam o sentido da liberdade de expressão pelo da liberdade de imprensa, de modo a garantir mais espaço e hegemonia do seu meio de comunicação, reduzindo o objetivo da pluralização do direito de se expressar. Funcionam como proprietários de um direito constitucionalmente garantido e verticalizam descaradamente a interpretação, outrora ampla, da liberdade individual de expressão, além de concretizarem, cíclica e infindavelmente, a hegemonia dos oligopólios. Foi neste contexto, e embasado na modificação do cenário antidemocrático da nossa mídia brasileira, que foi proposto o Projeto de Lei nº 29/2007, há pouco mais de dois meses sancionado pela presidente Dilma Rousseff em PLC 116 e posteriormente transformado na atual Lei 12.485, cujo objeto é a regulação da comunicação audiovisual de acesso condicionado, ou, em outras palavras, a unificação da legislação da TV paga. Desnecessário observar a atual extensão desse meio de comunicação, visto ser este cada vez mais abrangente na população brasileira. O grande intuito, em tese, do antigo PL 29, era a desconstrução paulatina dos grandes oligopólios de mídia estrangeiros e a melhor distribuição da mídia nacional, nos canais de TV por assinatura, funcionando como um preliminar controle da “propriedade cruzada” na mídia brasileira. Comenta André Miranda sobre as inovações da atual norma: “A Lei 12.485, assim, trouxe quatro grandes mudanças para o setor: um novo regime de outorgas, a criação de cotas na programação das TVs por assinatura, a regulação da atividade por parte da Ancine e o aumento no investimento através de novas linhas do Fundo Setorial do Audiovisual, que serão instauradas”. O grande intuito, aparentemente, é a maior possibilidade de oferta de mercado a produções nacionais, de modo a aumentar a competição justa entre os canais, oferecendo assim, menores 901

preços e mais diversidade ao consumidor. Nem tudo são flores, entretanto: há dispositivos que asseguram, de forma maquiada, a manutenção do capital estrangeiro em setores estratégicos da imprensa nacional; além da “competitividade mitigada”, que abarca somente poucos oligopólios, já estabilizados no país. Ou seja, não é competição se é somente entre poucos grupos que pregam a auto-liberdade de expressão para justificarem a falta de pluralismo deste direito. Outra crítica, observada pelo professor Dr. Venício Lima, é a da falácia do controle à propriedade cruzada pela nova legislação. Segundo o autor, os grandes grupos já estabilizados no cenário midiático continuam com uma considerável margem de distribuição de conteúdos na TV paga e os oligopólios de telecomunicações, cada vez mais atuantes na imprensa nacional, continuam com uma participação de até 30% nos serviços de radiodifusão, concretizando ainda mais a concentração da mídia no nosso país. Assim, inegável o intuito restritivo do direito à liberdade individual de expressão quando da utilização equivocada pelos grupos controladores da nossa imprensa. O que de fato existe é uma relação gênero-espécie entre os termos expressão-imprensa, que, concomitantes, moldam o direito à comunicação, tão prejudicado pela concentração midiática no nosso país, e que infelizmente, ainda não foi devidamente regulamentada pelos nossos representantes.

3. Análise do Grupo RBS O Grupo RBS (Rede Brasil Sul) é um afiliado das Organizações Globo que controla número e variedade absurda de mídias no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. São oito jornais, vinte e quatro emissoras de rádio e dezoito canais de TV aberta nos dois estados. No estado de Santa Catarina especificamente são seis emissoras de televisão, três de rádio e quatro jornais. O Decreto - Lei 236, de 1967, limita o número de emissoras de televisão a duas por entidade no mesmo estado. A RBS claramente excede esse número. Em janeiro de 2009 o Ministério Público Federal de Santa Catarina propôs ação civil pública contra o oligopólio. O estopim da medida foi a aquisição do jornal A Notícia, o quarto do catálogo catarinense da RBS. As diversas empresas são registradas em nomes de diferentes membros da família, como forma de burlar a determinação de limite legal. De acordo com Celso Três, um dos procuradores responsáveis pela ação, o próprio Ministério das Comunicações tem conhecimento dessa medida, que caracteriza sério abuso dos termos legais. O Grupo RBS é exemplo clássico de propriedade cruzada e de como a livre circulação de idéias é prejudicada pela falta de pluralidade na mídia. O MPF não tem dúvidas que se trata de oligopólio e a ação civil pública se propõe a discutir a questão da livre comunicação e da liberdade de expressão através da pluralidade dos meios de comunicação. Mas as práticas oligopolistas da RBS não se resumem ao número de empresas sob seu comando. Devido ao tamanho de seu poderio nesses estados o oligopólio tem se mostrado 902

também desrespeitoso à livre concorrência, engolindo as pequenas mídias através da prática de dumping. À época do lançamento do jornal Hora de Santa Catarina o preço estabelecido para venda foi R$ 0, 25. De acordo com o próprio MPF, o jornal estava sendo vendido abaixo do preço de custo, numa tentativa de sabotar a concorrência. Também é apontada como prática comum pelo MPF a constante pressão exercida pelo oligopólio sob distribuidores e vendedores de periódicos para que estes não trabalhem com mídias que não pertençam à RBS. Dessa forma, a ação do MPF de SC também enseja a discussão de como práticas oligopolistas ameaçam a livre concorrência e a liberdade econômica, garantias constitucionais. Por isso a manutenção da ordem econômica pode ser facilmente invocada nessa situação, já que, além do jornal Diarinho, quase não se pode falar em concorrência no estado. Antes de a ação ser impetrada foi aberta defesa para RBS e para o Ministério de Comunicação. A defesa de ambas foi redigida pelas mesmas pessoas. Esse é o tipo de prova do poder desse oligopólio e de como suas raízes estão infiltradas em todas as partes da Administração Pública. A defesa alegada pela RBS e pelo Ministério é que não se trata de oligopólio e a empresa respeita os limites legais de número de mídias por empresa. Mas o fato é que existe o uso de laranjas! Não há respeito ao limite do Decreto porque o que acontece é só que as diversas companhias estão postas em nomes de pessoas diferentes, todas ligadas à família Sirotsky, proprietária da RBS. Os diversos jornais e emissoras ficam em nomes de membros diversos e de terceiros com ligações com a mesma família. Trata-se da velha técnica do uso de “laranjas” para burlar preceitos legais. O Ministério Público teme o poder que esse oligopólio tem na ordem Política e Judiciária nacional. A questão para se fazer justiça aqui é clara, mas a influência de uma corporação não pode ser subestimada. O próprio ex-ministro do STJ, Paulo Galotti, foi contratado como consultor jurídico do Grupo RBS. Dessa forma, deve-se esperar também uma defesa consistente. No caso de a ação ser julgada procedente, o Ministério Público requer que o jornal A Notícia seja devolvido para as mãos de seus antecessores ou repassado para terceiros que não tenham vínculos com o oligopólio RBS. O mesmo deve acontecer com as emissoras que ultrapassem o número estabelecido em lei. Essa é a melhor solução para a garantia do direito à livre comunicação. Não é viável que uma empresa da magnitude da RBS, com as conexões políticas que possui, desapareça. O que se pede é que seu monopólio de mercado seja reduzido ao que é previsto em lei. Trata-se de caso explícito de propriedade cruzada com claro desrespeito às preleções legais e constitucionais. Um único grupo em controle de todas as formas de mídia do estado, manipulando e filtrando a informação de acordo com seus interesses e interesses de seus aliados. O acesso à livre informação é negado a todos os cidadãos que se encontram sob a influência da RBS. Não se pode falar em liberdade de expressão ou acesso à comunicação quando toda a mídia está nas mãos de um forte oligopólio com interesses políticos bem definidos. 903

4. Conclusões A restrição de sentido do termo “liberdade de expressão” pela mídia, devido à sua capacidade de propagação consideravelmente maior do que a dos particulares, se utiliza menos da ignorância do público consumidor do que da gritante lacuna legal de que se beneficia. Não são poucos os esforços dos profissionais da mídia em manter o status quo dominante, de aplicar a política de diminuição dos conflitos e deixar a esmo a opinião pública sobre a correta distribuição midiática e, mais prejudicial ainda, do real conceito de um dos seus direitos fundamentais constitucionalmente garantidos. As barreiras traçadas pelos oligopólios, entretanto, são sutis: utilizam-se do discurso da proibição da censura, ampla liberdade de imprensa como se de expressão fosse, e da própria fraqueza da população em fiscalizar a intenção disfarçada destes grupos. Promovem um discurso com “efeito silenciador” e objetivam nada mais do que a manutenção da “cultura do silêncio”, já enraizada nos costumes brasileiros. É na contramão deste poderio midiático que são propostas as alterações, os projetos de lei e as manifestações em torno da verdadeira e atuante regulação do direito à comunicação. Entretanto, a falta de coesão necessária nestas vertentes acaba por deixá-las a mercê da atuação repressora dos oligopólios, quando não as maculam do status de mera utopia social. Cite-se como exemplo o dispositivo, presente nas constituições estaduais de pelo menos 12 dos estados federados do Brasil, mais o do Distrito Federal, que prevê a criação de um Conselho de Comunicação Social, cujo intuito é definir, organizar e fiscalizar a política de comunicação do estado. O que se observa atualmente é que somente um estado regulamentou este dispositivo: trata-se da Bahia, que hoje possui aprovada a relativa autonomia fiscalizadora em relação aos grupos que persistem no processo monopolizador dos meios de comunicação. Não se trata, portanto, de atingir a completa liberdade de expressão, com todo o pluralismo que o seu conceito abarca, mas sim, de uma medida paliativa dos meios de prevenção da concentração da mídia. Os oligopólios, como se observa no Brasil, não só são dotados de exímio poderio econômico, mas também de uma cadeia rotativa de concentração. Em outras palavras, alguns oligopólios perdem espaço em conseqüência de terem surgido outros, mais poderosos economicamente, ou mais abrangentes quanto aos produtos que “comercializam”. É o chamado processo de convergência dos meios, ou, mais historicamente conhecido como “propriedade cruzada”. Desse modo, os novos senhores da mídia, notadamente as igrejas e empresas de telefonia, controlam aquele que outrora representava o reino dos oligopólios midiáticos embasados na influência política. A grande personagem que pode representar um desvio pró-sociedade nesse contexto de liberdade de expressão é a internet. O chamado “efeito banda larga” já há muito apontado como ápice da liberdade individual de expressão, oferece, pelo menos aparentemente, uma noção de maior horizontalidade na distribuição da mídia. É certo que o crescimento e a maior pulverização do uso da banda larga favorecem exponencialmente o acesso ao debate público às mais distintas 904

camadas da população, porém, não há se olvidar que também este – se não principalmente este – é alvo de cada vez maiores investimentos pelos novos senhores da mídia. A ação dos oligopólios neste sentido se dá pela pressão realizada diante do governo para que se concretize a universalização da oferta de banda larga a cada vez mais setores da população através de associações com as próprias redes de TV e telefonia, que hoje enveredam também pelo caminho do acesso à internet. Ou seja, se utilizam do objetivo do governo, que é a universalização de um serviço cada vez mais necessário, para não se dizer intrínseco, da sociedade globalizada, para garantirem mais seguramente o monopólio de informação. Ora, é consenso que o maior marco de atuação da internet é a inclusão social através da livre circulação de conteúdo, independente dos outros meios, já consolidados; é a desconstrução paulatina da estrutura verticalizada em que se encontra o acesso e a distribuição da mídia e a possibilidade de apresentar ao consumidor o debate aberto e integral, de que comumente é privado. É o meio que mais facilmente oferece o direito de que “o público ouça a todos que deveria”, assegurando a democracia dos meios de informação. Então como permitir que grupos consolidados em outras formas de mídia sejam os principais provedores desta que representa a arma latente de expressão dos particulares? É entregar aos oligopólios mais uma fatia – e uma fatia eminente - para que seja objeto de controle unilateral das empresas, retirando do domínio público tudo aquilo que não julgar conveniente para o seu próspero desenvolvimento. É associarse ao “tirano” e doar a ele o controle irrestrito sobre todas as formas de pensamento livre dos cidadãos. No sentido contrário desta medida, claramente reducionista, se apresenta a possibilidade de o governo criar uma empresa pública com um patrimônio próprio, direcionado à oferta do serviço de banda larga à população, promovendo o amplo acesso à informação e, respeitando, deste modo, a real finalidade de todo Estado Democrático de Direito, qual seja a livre formação e convencimento dos seus cidadãos. Os grandes grupos não maquiarão seu intuito globalizante de investimentos, bem como a internet não tem barreiras palpáveis para a concentração ilimitada destes oligopólios. Desse modo, os consumidores, enquanto sujeitos do direito fundamental à expressão ainda assistirão a grandes debates no palco da tão esperada regulamentação da mídia. O que se almeja, pelo menos, é a superação deste mero status de espectador, pois em se tratando de garantia de direitos fundamentais, não se descobriu ainda melhor defensor do que a própria atuação da sociedade.

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Liberdade de expressão e dignidade da pessoa humana: o debate que envolve a criminalização dos preconceitos de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero na legislação brasileira Clarissa Cecília Ferreira Alves1 T

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Resumo

Abstract

O presente artigo pretende partir da discussão travada no âmbito da sociedade civil acerca da criminalização da discriminação de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, no contexto do Projeto de Lei da Câmara nº 122, para debater os limites da noção existente de liberdade de expressão, tendo em conta o uso argumentativo deste princípio em face das diversas garantias de respeito aos direitos humanos. Buscar-se-á analisar até que ponto o Estado, em sua manifestação legislativa e judicial, mostra-se suficientemente útil no combate destas discriminações, e em que medida o mesmo as acolhe e respalda, dentro de uma ordem liberal marcada por diversas formas de desigualdade e de desrespeito às diferenças. Atentar-se-á para o papel exercido pelos grandes veículos de comunicação na construção simbólica de estereótipos e preconceitos de gênero e de orientação sexual, e da posterior utilização, por parte dos mesmos, da idéia de liberdade para condenar qualquer forma de regulamentação e intervenção que vise fomentar o respeito à dignidade. Objetivase repensar a abrangência da liberdade de expressão no contexto das manifestações de pensamento que vão de encontro aos direitos humanos, e do seu emprego enquanto justificativa e defesa de práticas e discursos discriminatórios.

The present article intends to leave from the discussion in the ambit of civil society about the criminalization of the gender discrimination, gender, sexual orientation and gender identity, in the context of the Projeto de Lei Câmara nº122, to debate the limits of the existing notion of liberty of speech, taking into account the argumentative use of this principle in face to the diverse guarantees about the human rights. It seeks to analyze until which point the State, in its legislative and judicial manifestation, reveals useful enough in the combat of these discriminations, and in which measure the same welcomes and supports them, within a liberal order marked by various forms inequality and disrespect to the differences. It will be attempted to the role exerted by the great vehicles of communication in the symbolic construction of stereotypes and prejudices of gender and of sexual orientation, and of the posterior use by the same, of the idea of freedom to condemn any forma of regulation and intervention that aims to foment the respect to the dignity. The objective is to rethink the scope of the liberty of speech in the context of the thought manifestations that meets with the human rights, and its job while justification and defense of discriminatory practices and speeches.

Palavras-Chave: Liberdade de expressão; Criminalização; Preconceito; Dignidade.

Keywords: Liberty of speech; Criminalization; Prejudice; Dignity.

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Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Federal da Paraíba. Colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Gênero e Direito da mesma instituição. E-mail: [email protected].

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1. Introdução Você não pode nem contar piada sobre bichinha mais. Se eu contar uma piada de veadinho aqui posso pegar cinco anos de cadeia. (Jair Bolsonaro – Dep. Federal)

As manifestações de ódio e violência contra homossexuais têm crescido de forma significativa no Brasil. Dados estatísticos que contabilizam assassinatos, torturas, agressões físicas e verbais, dentre outras formas de violência, são documentados cotidianamente nos noticiários, pesquisas sociais e trabalhos científicos. Em meio a isto, trava-se uma acirrada disputa no campo legislativo, no que tange à aprovação do Projeto de Lei da Câmara nº 122/2006, que visa criminalizar a discriminação motivada unicamente pela orientação sexual ou pela identidade de gênero da pessoa discriminada. O debate acerca de sua aprovação repercute intensamente em diversas outras esferas da sociedade civil, tendo por base valores religiosos, ideológicos e políticos e, neste cenário, vários seguimentos sociais tentam demarcar seus posicionamentos acerca desta questão, utilizando o argumento da liberdade de expressão como modo de legitimar e respaldar seus discursos e o direito que possuem de fazê-lo, mesmo que tais discursos possam colidir diretamente com o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. No presente artigo, intencionamos analisar, sobretudo através do uso instrumental das notícias, até que ponto o argumento de defesa da liberdade de expressão tem sido utilizado como instrumento que tenta respaldar e legitimar discursos discriminatórios e de ódio, podendo servir a interesses ideológicos e fomentar a exclusão das pluralidades e diferenças. Nesse contexto, destaca-se o papel da mídia enquanto principal agente detentor de poder no espaço público, e seu constante apelo à liberdade de expressão para justificar sua falta de comprometimento com a pluralidade e diversidade. Pautando a Dignidade da Pessoa Humana como princípio balizador da interpretação e definição dos direitos fundamentais, tentaremos discutir como se constrói o argumento da liberdade de expressão vinculado a discursos excludentes e que servem a um determinado interesse ideológico de manutenção do status social de heteronormatividade compulsória do ser humano.

2. O debate em torno da criminalização dos preconceitos de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero Nos últimos anos, o espaço público brasileiro tem presenciado um aumento significativo das discussões em torno de várias temáticas que circundam a idéia de orientação sexual. Seja pela maior abertura que aparentemente presenciamos, neste início de século, no que diz respeito ao desejo individual/coletivo de viver abertamente a homo/bi/transexualidade, e, portanto, mais pessoas parecem desejar exercer sua sexualidade de maneira pública; seja pelo contrapeso da 908

investida conservadora, que se utiliza de diversas estratégias argumentativas para justificar posicionamentos que implicam em alguma forma de discriminação, o debate que envolve os grupos LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero) têm se intensificado significativamente no âmbito da sociedade civil e do discurso midiático. Entretanto, ao lado disso, um quadro é desenhado simbólica e materialmente nas vidas das pessoas LGBTTT, através da convivência diária com as diversas formas de violência e preconceito cotidianamente a elas dirigidas, com respaldo social, pelo fato de orientarem-se sexualmente para além do sistema tradicional e moralmente dominante. Nessa lógica, as manifestações de ódio e violência contra homossexuais têm crescido assustadoramente no Brasil. Atualmente, a cada dia e meio, uma pessoa é assassinada, vítima de homofobia2. Segundo relatório organizado pela associação civil de defesa dos direitos humanos T

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dos homossexuais Grupo Gay da Bahia (GGB)3, em 20104, 260 assassinatos de gays, travestis e T

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lésbicas foram documentados, sendo 140 gays (54%), 110 travestis (42%) e 10 lésbicas (4%). Este levantamento também revela que, nesse contexto, 43% dos homossexuais foram mortos a tiros, 27% com facas, 18% vítimas de espancamento ou pedrada e 17%, sufocados ou enforcados. A forma com que se revelam tais práticas criminosas, em grande parte das vezes realizadas com requintes de crueldade, tortura, empalamento e castração, são índices reveladores do sentimento de ódio que envolve a homofobia. Para além disso, a discriminação sexual e de gênero não se manifesta apenas no que se refere aos diversos números de homicídios que se tem notícia. Ela está presente em discursos arbitrários e preconceituosos, em várias formas de agressão (físicas e morais), demissões de cargos profissionais, cárceres privados, coações, privações de freqüentar determinados lugares, e diversas outras manifestações de violência materiais e/ ou simbólicas, que extrapolam as limitações dos levantamentos, estatísticas e relatórios. É nesse contexto sócio-político que surgem iniciativas parlamentares que visam combater a desigualdade de gênero e a discriminação sexual, numa tentativa de apropriar-se do discurso jurídico para regulamentar e coibir tais práticas. O Projeto de Lei da Câmara nº 122 de 2006, denominado PLC 122/2006 é apresentado, em 07 de agosto de 2001, sob a numeração 5003/2001, pela ex-deputada Iara Bernardi (PT/SP), propondo sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas. 2

GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010. Disponível em: . Acesso em 01 nov. 2011. TU

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GRUPO GAY DA BAHIA. Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais de 2010. Disponível em: . Acesso em 01 nov. 2011. TU

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No ano de 2011, somente nos três primeiros meses, o GGB documentou 65 homicídios contra homossexuais (GRUPO GAY DA BAHIA. Epidemia do ódio 260 homossexuais foram assassinados no Brasil em 2010. Disponível em: Acesso em: 01 nov. 2011).

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Enquanto o projeto de lei tramitava na Câmara, foram designados vários relatores para emitirem pareceres acerca de seu conteúdo sem, no entanto, o fazerem, e várias audiências para votá-lo que, todavia, não obtiveram sucesso. Apenas em abril de 2005, o então Deputado Luciano Zica (PT/SP) apresentou parecer favorável, nos seguintes termos: Parecer do Relator, Dep. Luciano Zica (PT-SP), pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação deste, do PL 5/2003, do PL 3143/2004 e do PL 3770/2004, apensados, com Substitutivo; e pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição do PL 381/2003 e do PL 4243/2004, apensados.”5 T

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Em 22 de novembro de 2006, o PL 5003/2001 foi votado e aprovado em sessão da Câmara dos Deputados e, então, encaminhado ao Senado Federal, passando a denominar-se PLC 122. Assim, em meio a diversas estratégias da bancada conservadora de tentar dificultar o prosseguimento do projeto, foi encaminhado para análise em três comissões: Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Em 14 de outubro de 2009, a senadora Fátima Cleide (PT-RO) apresentou um novo parecer ao projeto de lei, que modificava seu conteúdo, buscando atender tanto às demandas do movimento e da comunidade LGBTTT, como às demandas dos setores religiosos do Congresso Nacional. Tal versão tem sido confundida, muitas vezes, com a versão inicial, tida como sendo mais densa e radical, contra a qual os opositores do PL argumentam ferrenhamente. No início de 2011, o projeto chegou a ser arquivado. Em seguida, foi desarquivado pela Senadora Marta Suplicy (PT-SP), que atualmente figura como relatora. O PL 122/2006 visa criminalizar a discriminação motivada unicamente pela orientação sexual ou pela identidade de gênero da pessoa discriminada. Se aprovado, equiparar-se-á aos demais preconceitos objetos da Lei nº 7716 de 1989, que define os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. O legislador busca, assim, contemplar o artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, que confere a igualdade entre as pessoas perante a lei e a conseqüente tutela contra qualquer discriminação. Também, com base nos artigos 3º e 5.º da Constituição Federal, onde estão descritos os objetivos fundamentais da República Federativa, considera a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação, assim como a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Apesar da nova redação ter sido resultado de uma tentativa de abarcar os anseios de todos os grupos6, o PLC 122 vem sendo alvo de duras investidas de grupos cristãos7, tanto T

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BRASIL. CONGRESSO, CÂMARA. PL 5003/2001. Disponível em: T

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. Acesso em: 29 out. 2011 6 Segundo pesquisa conduzida pelo DataSenado, em 2008, com 1120 pessoas de todas as cinco regiões do Brasil, 70% dos entrevistados são a favor da criminalização da discriminação contra homossexuais no país. A aprovação é

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católicos, como protestantes, que afirmam que qualquer manifestação que implique em crítica à conduta da população LGBTTT poderia ser caracterizada como discriminação ou preconceito e, portanto, configurar crime. O principal argumento utilizado é o de que a criminalização da homofobia irá ferir os princípios da liberdade religiosa e da liberdade de expressão, que também são direitos fundamentais da pessoa humana. Admitem, portanto, tais grupos, como válida, a tomada de posicionamento pública contra a homossexualidade, a defesa da heteronormatividade e a inaceitabilidade da diversidade sexual e de gênero, sem que isso configure, todavia, discriminação e preconceito. É, destarte, na utilização deste argumento, de que a inserção da homofobia no rol das discriminações que constituem crime fere a liberdade de expressão, que tentaremos nos debruçar, tendo em conta, nesse contexto, o papel exercido pelos meios de comunicação na construção do imaginário social e, posteriormente, na escusa dos mesmos de responsabilizar-se pelos conteúdos que veicula, utilizando, como justificativa, a mesma idéia de que é livre para manifestar qualquer pensamento, constituindo censura qualquer idéia de regulamentação.

3. O poder dos meios de comunicação na construção simbólica e subjetiva de estereótipos e preconceitos de gênero Os meios de comunicação passaram a ocupar um lugar central dentro da esfera pública, como veículo que, segundo Marx8, transporta signos; garante a circulação veloz das idéias; viaja T

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pelos cenários onde as práticas sociais se fazem; recolhe, produz e distribui conhecimentos e ideologia. Sem dúvida alguma, desempenham um papel extremamente relevante na cultura contemporânea, de modo a figurar como locus determinante no que tange à produção e à movimentação de discursos sobre produção de sentidos, realizando uma mediação entre as esferas pública e privada, ao reproduzir, para um grande número de espectadores, algum fato social. Ana Veloso9 vem afirmar que, em meio a esse cenário: T

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ampla em quase todos os segmentos, no corte por região, sexo e idade. Mesmo o corte por religião mostra uma aprovação de 54% entre os evangélicos, 70% entre os católicos e adeptos de outras religiões e 79% dos ateus. Entre aqueles entre 16-29 anos, 76% apoiaram o projeto. Ainda de acordo com a pesquisa, as pessoas com melhor nível de escolaridade tendem a ser mais favoráveis ao projeto de lei - 78% das pessoas com ensino superior e 55% das pessoas com o 4º ano da escola. BRASIL. CONGRESSO, SENADO. Criminalização do preconceito ou discriminação contra homossexuais. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2011). 7 Contra a aprovação do projeto, foi encaminhado ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB/AP), um abaixoassinado contendo cerca de um milhão de assinaturas contrárias à aprovação. Ao lado disso, organizam-se diversas marchas e protestos formados por grupos cristãos em defesa da família tradicional e contra a descriminalização do aborto, a união homoafetiva e a descriminalização das drogas. In: CASTRO, Gabriel. Religiosos entregam 1 milhão de assinaturas contra projeto que criminaliza homofobia. Revista Veja. Rio de Janeiro: Abril, 2011. Disponível em: . 8

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos (3 vols.). São Paulo: Edições Sociais, p. 67, 1977.

9

VELOSO, Ana. O discurso feminista na esfera pública. Disponível em: < http://www.ibase.org.br/modules.php?name=Conteudo&pid=851> Acesso em: 03/12/2010. p. 4.

911

emergem os movimentos da sociedade civil que reivindicam, cada vez mais, o reconhecimento de sua ação política e a inserção do seu discurso na cena pública, a exemplo dos grupos de gays e lésbicas, de defesa dos direitos das populações negras, dos(as) idosos(as) e de portadores(as) de necessidades especiais. Todos anseiam por mais do que visibilidade. Querem, na verdade, que suas propostas possam ser assimiladas pela opinião pública para formar uma opinião positiva acerca do que defendem e conquistar simpatia e apoio de outros segmentos para sua causa.

Dênis de Moraes10, na obra “A batalha da mídia”, assegura que a comunicação nunca T

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esteve tão diretamente entranhada na batalha das idéias pela direção moral, cultural e política da sociedade, e que a mídia ocupa uma posição proeminente no âmbito das relações sociais, visto que fixa os contornos ideológicos da ordem hegemônica, elevando o mercado à instância máxima de representação de interesses. Assim, invariavelmente, “o discurso dominante fabricado pelos aparatos midiáticos tenta neutralizar o espaço de circulação de visões dissonantes e contestadoras”. Com base na teoria da hegemonia gramsciniana11, Dênis de Moraes argumenta que a T

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supremacia dos meios de comunicação envolve a capacidade de um determinado grupo, localizado politicamente, de articular um conjunto de fatores que podem levá-lo a dirigir moral e culturalmente, e de modo sustentado, a sociedade como um todo. Assim, a imprensa representaria uma espécie de suporte ideológico da superestrutura das classes dominantes e, enquanto aparelhos político-ideológico que elaboram, divulgam e unificam concepções de mundo, televisão, jornais e revistas cumprem a função de organizar e difundir determinados tipos de cultura12. T

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Desta forma, enquanto instituição central dentro do espaço público, divulgadora de idéias, transmissora de acontecimentos, desde as mais abrangentes catástrofes mundiais ao mais simples dos fatos, a mídia ocupa uma posição privilegiada de distribuição de conteúdos. Tal posição, entretanto, mantêm-se controlada por grupos seletos e fechados, ideologicamente determinados e materialmente empoderados, que não permitem o compartilhamento deste privilégio com os diversos grupos que compõem a pluralidade social. O fato de tais veículos de comunicação favorecerem a “classe burguesa e a política burguesa”13, implica diretamente na formação lenta de uma espécie de “senso comum” no qual se T

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constrói uma série de “verdades” ditadas por uma única classe. Tais verdades, de modo

10

MORAES, Denis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, p. 17-18, 2009. 11 Dênis de Moraes baseia-se na concepção de hegemonia formulada por Gramsci, onde ela não se reduz à coerção militar e à superioridade econômica, pois decorre também de batalhas permanentes pela conquista do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou bloco de classes sobre outras. 12

MORAES, Denis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, p. 42, 2009. 13 MORAES, Denis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, p. 43, 2009

912

extremamente despercebido, influem diretamente na manutenção de desigualdades, preconceitos e da exclusão social de determinados grupos. Nesse sentido, faz-se necessário discutir de que maneira essa apropriação dos meios de comunicação por grupos seletos e ideologicamente determinados atua na construção das subjetividades

humanas,

na

determinação/construção

das

identidades

coletivas

e

na

marginalização das diferenças, através dos processos de transmissão indireta que estão sempre implícitos em qualquer tentativa de passar uma mensagem. Tais processos, observemos, “ocultam os mecanismos anônimos, invisíveis, através dos quais se exercem as censuras de toda ordem” que fazem dos meios de comunicação “um formidável instrumento de manutenção da ordem simbólica”14. T

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Impende destacar, portanto, que a qualidade de inconsciência apresenta-se como noção chave para a compreensão aprofundada desse processo. Bourdieu15 em “O poder simbólico”, apresenta uma análise acerca do conceito deste tipo T

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de poder, e afirma que, em se observando o exercício do poder em todos os lugares, é imprescindível saber descobri-lo “onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais completamente ignorado, portanto, reconhecido”16. O poder simbólico é, com efeito, “esse poder invisível o qual só T

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pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”17. T

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Segundo Bourdieu, as ideologias servem interesses particulares que tendem a apresentarse como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo e, desta maneira, a cultura dominante, propagada pelos meios de comunicação, contribui para a integração real da classe dominante; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções. Assim: Este efeito ideológico, produ-lo a cultura dominante dissimulando a função de divisão na função de comunicação: a cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções, compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante18. T

T

Os grupos historicamente excluídos do poder têm sido definidos e vislumbrados, portanto, a uma enorme distância da realidade. São construídos estereótipos que passam a representar cada grupo social como se de fato retratassem a realidade dos mesmos. Além de tais estereótipos 14

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 20, 1997

15

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

16

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 7, 1989.

17

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 7-8,1989.

18

BOURDIEU, Pierre. Sobre o Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p. 10-11, 1989.

913

disseminarem uma imagem equivocada destes grupos, eles atuam de maneira direta e indireta na formação e consolidação do reconhecimento que eles têm de si mesmos, construindo uma identidade padronizada. Assim, grupos de gênero que não se encaixam na concepção binária de homem-mulher, ou mesmo homens e mulheres homossexuais, bissexuais ou transexuais, têm sido historicamente excluídos de qualquer visibilidade midiática, sob alegações que tomam por base unicamente valores morais. E embora atualmente se tenha alguns exemplos de gays ou lésbicas em novelas, ou em foco de debate em programas televisivos, por exemplo, a imagem que se constrói desses grupos é, na maior parte das vezes, equivocada, ou baseada em preconceitos embutidos em sua representação19. Tal conjuntura desfavorável contribui diretamente no desenvolvimento de uma T

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percepção depreciativa dentro do imaginário social20, implicando, inclusive, na diminuição da autoT

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estima da população LGBTTT e na construção de um estado social de tolerância à violência e ao preconceito. O discurso midiático, assim, atua na perpetuação de uma cultura patriarcal, fundada em uma

heteronormatividade

compulsória21, T

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baseada

em

dicotomias

22

23

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dicotomizadas , que tomam sempre como pressuposto o binarismo T

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hierarquizadas

e

das relações, e como ponto

de partida e referencial, a heterossexualidade. A lógica difundida continuamente no espaço público é a da construção de um imaginário voltado para a marginalização, criminalização, patologização24 e invisibilização desses sujeitos, vislumbrando-se verdadeiras políticas de T

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higienização do cenário televisivo/ cinematográfico/ impresso/ literário. O resultado de tais representações (e/ou a falta delas) é a produção de subjetividade25 em T

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larga escala, difundida, sobretudo, pelos meios de comunicação de massa. Há uma espécie de modelagem e homogeneização do indivíduo, conforme as concepções políticas o atinjam em sua subjetividade, desenvolvendo-se, paralelo a isso, um processo de exclusão dos grupos que não 19

A difusão de imagens andróginas na mídia, publicidade, cinema é extremamente comum. Seres imaginários ou vizinhos do andar de cima, quem são estes seres que vem perturbar os esquemas delimitados e tradicionais das identidades sexuais? In: SWAIN, Tânia Navarro. Para além do binário: os queers e o heterogênero. Gênero. Niterói: s/ed. v. 2, n.1, p. 87-98, 2. sem., p. 88, 2001. 20

Dênis de Moraes entende que o imaginário social está composto por um conjunto de relações imaginéticas que atuam como memória afetiva de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade. Sendo ele uma produção coletiva, é o depositário da memória que os indivíduos e os grupos (enquanto elementos sociais que compartilham modos de ser, pensar e agir) recolhem de seus contatos com o cotidiano, bem como as percepções de si mesmo s e dos outros. 21 Sobre isto, ver: WITTIG, Monique. The straight mind and other essays. Boston: Beacon Press, 1992; e RICH, Adrienne. La contrainte à l’hétérosexualité et l’existence lesbienne. Nouvelles Questions Féministes, no 1, mars 1981. 22

OLSEN, Frances. El sexo del derecho, in David Kairys (ed.), The politics of law, Trad. Mariela Santoro y Christian Courtis, p. 452-467, Nueva York, 1990. 23

SWAIN, Tânia Navarro. Para além do binário: os queers e o heterogênero. Gênero. Niterói: s/ed. v. 2, n.1, p. 87-98, 2. sem. 2001.

24

GÓIS, João Bôsco Hora. Olhos e Ouvidos Públicos para Atos (Quase). Privados: a formação de uma percepção pública da homossexualidade como doença. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, 10(2): 75-99, 2000.

25

A noção de subjetividade é aqui entendida dentro da concepção de Guattari, que a define como o conjunto de condições que torna possível que instâncias individuantes e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial em adjacência ou em relação com uma alteridade ela mesma subjetiva In: GUATTARI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

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se encaixam nos padrões construídos e inconscientemente absorvidos como dentro de um padrão de normalidade26. T

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Assim, Félix Guattari27 argumenta que tudo que é produzido pela subjetivação capitalística T

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(aquilo que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam) não se trata apenas de uma questão de idéia, não é apenas uma transmissão de significações, mas trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a nossa maneira de perceber o mundo. Por isso, afirma Dênis de Moraes, quando intencionalmente se busca neutralizar ou silenciar representações, identidades e aspirações presentes em um contexto histórico-social, almeja-se impedir que expressões singulares desordenem a memória que se quer oficializar ou contraditem as linhas do imaginário fixadas perante a comunidade28. T

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Não é interessante para os detentores desse poder hegemônico permitir que expressões singulares e criativas possam atuar também na produção de identidades, padrões e subjetividades, descentralizando, progressivamente, processos comunicacionais e contribuindo para o alargamento das margens de diversidade. Trava-se, portanto, um embate ideológico em que diversas estratégias precisam ser cuidadosamente elaboradas. A guerra de posições dentro da pluralidade social traduz-se na constante ocupação de espaços táticos na sociedade civil, com vistas a disputar posições ideológico-culturais e políticas. Tendo isto em conta, uma concepção plural e democrática de espaço público implicaria necessariamente numa intensa reflexão acerca do papel exercido pelos meios de comunicação, levando em consideração a eliminação das desigualdades existentes, sobretudo no sentido de uma democratização do acesso a esses veículos; a possibilidade de que a mídia possa incorporar a pluralidade social, permitindo que diversos públicos possam ser igualmente considerados quando da produção de notícias, de imagens e de mídias em geral; a inclusão daquilo que se entende como “privado” no cenário midiático, refutando a concepção burguesa de que público e privado não podem misturar-se; e, finalmente, a necessidade de abertura à participação dos

26

Os discursos sobre o real tendem a mascarar a multiplicidade que os habita sob o perfil do unívoco, do mesmo, cristalizando identidades em torno de um eixo, o sexo biológico, binário, “natural”. Definidor de corpos e papéis sociais, o sexo se desdobra em sexualidade normatizada, a heterossexualidade, cujo caráter reprodutivo confere-lhe o selo da normalidade. In: SWAIN, Tânia Navarro. Para além do binário: os queers e o heterogênero. Gênero. Niterói: s/ed. v. 2, n.1, p. 87-98, 2. sem. p. 87, 2001.

27

GUATTARI, Felix e ROLNIK, Suely. Micropolítica – Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, p. 27, 1986.

28

MORAES, Denis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, p. 30, 2009.

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grupos excluídos na construção deste espaço, de modo que seu discurso possa também fazer parte de uma nova esfera pública de inclusão29. T

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Em meio a esse processo de construção simbólica, no espaço público, de um parâmetro de normalidade – baseado na heteronormatividade e na exclusão das demais manifestações de pluralidade e diferença – observa-se com clareza a escusa dos grandes aparelhos midiáticos da devida responsabilização pelo conteúdo que é, cotidianamente, por eles produzido e veiculado. Tal escusa é justificada através do uso argumentativo da idéia de liberdade de manifestação de toda e qualquer forma de opinião ou expressão artística/ cultural, sem restrições. Seguindo este raciocínio, qualquer medida estatal que vise regulamentar de alguma forma o conteúdo das mensagens transmitidas pelos veículos de comunicação é compreendida como violação desta suposta liberdade irrestrita de expressão. Assim, em síntese, a mídia exerce papel fundamental na construção do imaginário social, é ideologicamente direcionada (e em razão disso, também constrói direcionamentos), atua diretamente na construção simbólica de estereótipos e preconceitos de gênero e, posteriormente, exime-se de qualquer responsabilização que porventura possua, em nome da idéia de liberdade de expressão.

4. O argumento da Liberdade de Expressão Freqüentemente, o argumento de defesa da liberdade de expressar-se tem estado presente em discursos que condenam a regulamentação estatal de determinados atos que violem o principio da dignidade da pessoa humana, mesmo como forma de garantir que este não seja respeitado. Com base nisto, discursos discriminatórios, violentos e de ódio são proferidos continuamente sob o sutil e estratégico respaldo da idéia de liberdade de expressão, de modo que esta pode vir a tornar-se, a despeito de seu aspecto democrático e plural, verdadeiro instrumento de violação deste princípio. Importa, neste tópico, discutirmos brevemente em que sentido o argumento de defesa da liberdade de expressão tem sido utilizado como fundamento para legitimação de discursos homofóbicos e de ódio, em uma severa articulação de grupos conservadores contra a publicação do PLC 122/2006. Desde que surgiu, o projeto de lei que visa criminalizar práticas homofóbicas que impliquem em discriminação arbitrária tem sido alvo de intensos debates públicos. Sobretudo setores de orientação cristã, tanto católicos como evangélicos, têm deixado claro seus posicionamentos contrários à publicação da aludida lei, uma vez que possuem dogmas que condenam expressa ou implicitamente a homossexualidade. Em seus discursos e sermões, padres, pastores e demais representantes religiosos a concebem como pecado e argumentam

29 FRASER, Nancy. Rethinking the public sphere: a contribution to the critique os actually existing democracy. In Social Text, n. 25/26, p. 56-80, 1990.

916

que tal conduta contraria a ordem natural concebida por Deus, não sendo de forma alguma tolerável. Em discursos mais efusivos, vincula-se a homossexualidade à promiscuidade, ao desrespeito a valores éticos, à pedofilia30, à criminalidade31 e a patologias32, tendo em mente a T

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interpretação da exegese bíblica. Teme-se, nesse sentido, que a criminalização da homofobia atue de forma a impedir que tais argumentos sejam proferidos, sob pena de responsabilização criminal. Em junho de 2008, o pastor protestante pentecostal Silas Malafaia, organizou uma manifestação diante do Congresso Nacional, afirmando que o projeto não protege os homossexuais, mas lhes concede privilégios33. Em 1 de junho de 2011, organizou mais uma T

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mobilização T

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em Brasília, desta vez em maiores proporções, contando com cerca de 20 mil

manifestantes, em protesto contra o PLC 122. Malafaia afirma que: Homofobia já tem lei. Uma pessoa que tentar bater, espancar, matar um homossexual vai para a cadeia. O projeto quer criminalizar a crítica, eu não posso mais criticar porque se um homossexual se sentir ofendido, vexatoriamente, por filosofia, isto é por pensamento, eu posso ir para cadeia e pegar uma pena de dois a cinco anos. No artigo 5º da nossa Constituição, nós somos livres para expressar opinião, inclusive filosófica, está escrito na carta magna. Eu não sou contra os homossexuais. Cada um tem o direito de ser que quiser. É um direito, agora eu tenho o direito de criticar.35

Em outra esfera, tal discussão também esteve presente na pauta de determinados parlamentares, que condenaram declaradamente o acolhimento do projeto de lei. O deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ), por exemplo, afirmou abertamente que estava “se ‘lixando’ para o movimento gay”36 afirmando que tais grupos “não teriam nada a oferecer”. Em entrevista à revista T

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Época37, com perguntas formuladas pelos leitores, Bolsonaro afirmou que: T

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30 MALAFAIA, Silas. Porque o PLC 122 é inconstitucional. Associação Vitória em Cristo. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2011. 31

BOLSONARO, Jair. Entrevista com Jair Bolsonaro. Revista Época. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2011. TU

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32

BOLSONARO, Jair. Entrevista com Jair Bolsonaro. Revista Época. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2011. TU

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33

MALAFAIA, Silas. Porque o PLC 122 é inconstitucional. Associação Vitória em Cristo. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2011. 34

JORNAL NACIONAL. Lei que criminaliza homofobia motiva grande protesto em Brasília. Rio de Janeiro: Rede Globo. Ed. 01/06/2011. Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2011. TU

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35

JORNAL NACIONAL. Lei que criminaliza homofobia motiva grande protesto em Brasília. Rio de Janeiro: Rede Globo. Ed. 01/06/2011. Disponível em: . Acesso em: 02 nov. 2011. TU

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36

CAMPANERUT, Camila. Deputado Jair Bolsonaro diz que "está se lixando" para movimento gay. UOL Notícias. Brasília. Disponível em: . acesso em: 30 out. 2011. 37 BOLSONARO, Jair. Entrevista com Jair Bolsonaro. Revista Época. Disponível em: . Acesso em: 29 out. 2011. TU

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A maioria dos homossexuais é assassinada por seus respectivos cafetões, em áreas de prostituição e de consumo de drogas, inclusive em horários em que o cidadão de bem já está dormindo. O PLC 122, na prática, criará uma categoria de vítimas privilegiadas, ou seja, com proteção especial em virtude de sua opção sexual. Assassinar um heterossexual é menos grave que matar um homossexual.

E alegou que tal legislação iria de encontro à liberdade de expressão, afirmando que: É uma excrescência. Você não pode nem contar piada sobre bichinha mais. Se eu contar uma piada de veadinho aqui posso pegar cinco anos de cadeia [...] Você pode chamar deputado de ladrão, mas criticar o homossexual não pode, é crime. E eles podem me criticar por ser heterossexual38. T

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Como se pode diametralmente constatar, o temor de que o PLC 122/2006 seja aprovado reflete diretamente no temor de que determinados discursos não possam mais ser proferidos sem que, em decorrência disto, haja repercussão criminal, tolhendo, conseqüentemente, um suposto direito fundamental à liberdade de expressão que, se abrigasse tais manifestações, o que não concordamos, certamente serviria de guarida a toda e qualquer manifestação de incentivo a discriminações, preconceitos e ódio. Cabe-nos observar, todavia, como tais posicionamentos fundamentados na idéia de defesa da liberdade de expressão servem, necessariamente, a um discurso ideológico contrário à pluralidade e às diferenças, servindo-se da idéia do direito individual à expressão, direito historicamente conquistado às custas de intensas lutas por liberdade e garantias contra arbitrariedades do Estado, para, implicitamente, evitar qualquer atividade estatal que possa, minimamente, proteger a dignidade das pessoas vítimas de violências materiais e simbólicas. A liberdade de expressão parece, portanto, servir de instrumento publica e moralmente aceitável a ser utilizado para respaldar abertamente a defesa da heterossexualidade compulsória e das ideologias conservadoras, contrárias à diversidade, como se conviesse, na realidade, como uma forma eufemística de abrigar a idéia de existência de um “direito de discriminar”. Assim, já que não há argumentação cabível que sustente a defesa de práticas e discursos tão carregados de discriminação e ódio, a idéia de que somos livres para manifestarmos nossas opiniões, pensamentos e expressões acaba por funcionar como meio de proteger-se e defenderse de possíveis sanções públicas. Nesse sentido, impende compartilharmos da compreensão de que o direito à liberdade de expressão não é absoluto, nem ilimitado, devendo haver limites à liberdade de expressão

38

G1. Jair Bolsonaro joga água em manifestante de grupo gay. Distrito Federal. Atualizado em 01/06/2011. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2011. T

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ideológica, em especial quando servir para agressão a outros valores democráticos e aos direitos humanos39. Tal direito deve ser, como defende Gomes Canotilho: T

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harmonizado e sujeito a operações metódicas de balanceamento ou de ponderação com outros bens constitucionais e direitos com eles colidentes como a dignidade da pessoa humana, os direitos das pessoas à integridade moral ao bom nome e reputação, à palavra e à imagem, à privacidade, etc.40 T

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Embora a Liberdade de Expressão figure no rol das liberdades fundamentais da pessoa humana, constituindo direito por meio de diversos instrumentos jurídicos, inclusive da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que prescreve, categoricamente, em seu art. XI, que “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transferir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”, tal direito fundamental não pode ser tomado como exercitável em sua extremada ausência de limitações e fronteiras. Necessariamente, há que balizar-se o uso indiscriminado dos direitos, mesmo que estes estejam revestidos das prerrogativas de fundamentalidade para a vida humana. O uso do discurso da Liberdade de Expressão precisa estar alicerçado em bases fixas de comprometimento com os direitos humano, de modo que não possa ser utilizado como argumento que justifique e respalde diversas formas de agressão, violência e intolerância. É nesse contexto que compreendemos o caráter instrumental do princípio da Dignidade da Pessoa Humana enquanto elemento delimitador das fronteiras pertinentes aos direitos fundamentais. Senão o balizamento calcado no respeito à dignidade, qualquer direito fundamental poderia ser equivocadamente utilizado em nome de interesses escusos e meramente ideológicos, a despeito de terem sido fruto de históricas lutas no campo sócio-político, e constituírem pilares de um Estado que se pretende democrático e plural.

5. A dignidade da pessoa humana enquanto instrumento balizador Considerando-se a Dignidade enquanto qualidade intrínseca ao ser humano, e compreendendo este em suas características de complexidade e multifacetariedade, tal princípio só poderá ser compreendido quando se está diante das dimensões41 que o circundam, quais T

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sejam: a dimensão ontológica (característica de inerência e, portanto, inalienabilidade e 39

CAZETTA, Ubiratan; ROCHA, João Carlos de Carvalho; HENRIQUES FILHO, Tarcisio Humberto Parreiras. Direitos humanos: desafios humanitários. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 40

CANOTILHO, J.J. Gomes e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa – Anotada”, Volume 1, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, anotação V ao artº. 37º da CRP, pag. 574. 41 SARLET, Ingo (Org.). Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 20-33

919

irrenunciabilidade), a intersubjetiva (relação com a sociedade e pluralidade), a histórico-cultural (variabilidade no tempo e no espaço) e a dupla (característica de ser ao mesmo tempo limite e tarefa). Nesse sentido, todos os seres humanos são necessariamente dotados de dignidade, o que desemboca, por sua vez, numa concepção abrangente da própria noção de igualdade. A dignidade brotaria do fato dos seres humanos serem todos dotados de razão e consciência, sendo este o denominador comum da igualdade humana42. Ingo Wolfgang Sarlet43 afirma que a T

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dignidade seria o valor próprio que identifica o ser humano como tal e, como expressão da própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e promovida, não podendo, contudo, ser criada, concedida ou retirada44. T

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Assim, no que tange ao nosso debate acerca da restrição à liberdade de expressão na elaboração de discursos discriminatórios e de ódio, ao pretender, implicitamente, retirar a qualidade da dignidade inerente a determinado grupo de pessoas, em face de sua orientação sexual, estaria-se, portanto, retirando-lhes a própria condição de seres humanos. Ademais, na qualidade de principio fundamental, conceito que, segundo leciona Celso Antônio Bandeira de Mello45, implica em constituir “mandamento nuclear de um sistema, T

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verdadeiro alicerce dele, dispositivo fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência”, a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia46 e parâmetro de aplicação, interpretação e T

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integração47, não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda ordem jurídica, sendo T

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considerado como principio constitucional de maior valoração axiológica-valorativa presente no nosso ordenamento jurídico. A dignidade, como enfatiza Ingo Sarlet48, possui ainda valor hermenêutico, ou seja, serve de T

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fundamento para solução das controvérsias, sendo de grande importância para a unidade

42 SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 562. 43

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 558 44

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 561 45

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 841-842

46

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 578 47

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 585 48

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 586.

920

axiológica do ordenamento jurídico e do próprio sistema de direitos fundamentais, notadamente interpretando a normativa infraconstitucional à luz da dignidade da pessoa humana. Por óbvio, a dignidade não existe apenas onde ela é reconhecida pelo direito, já que consistiria em dado prévio, caráter intrínseco ao ser humano, entretanto, o Estado pode e deve exercer papel crucial na sua proteção e promoção, já que importa observar ate que ponto é possível ao individuo realizar, ele próprio, suas necessidades existenciais básicas49. Há que se ter T

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me conta o caráter de limite e tarefa dos poderes estatais e, no dizer de Sarlet50, da própria T

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comunidade em geral, de todos e de cada um. Ainda há de destacar-se o caráter de autonomia e autodeterminação do ser humano, advindo, sobretudo, da matriz kantiana, presente na concepção de dignidade, abrigando a idéia do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida, segundo o seu próprio projeto espiritual, representando, portanto, expressão da própria autonomia da pessoa humana de manifestar-se da forma que maior lhe traga satisfação e felicidade. Tolher tal expressão de autodeterminação do indivíduo no que diz respeito a sua orientação sexual e de gênero, iria de encontro não somente à dignidade da pessoa humana, mas a própria liberdade expressão destes indivíduos, caindo, esta discussão, numa grande contradição lógica. Constata-se, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana consistiria na matriz balizadora da liberdade de expressão, servindo de alicerce jurídico no amparo das livres manifestações que violassem os direitos de outros indivíduos, considerando que violar a dignidade de alguém seria o mesmo que violar sua própria existência.

6. Considerações finais Nessa esteira, concluímos que, a despeito de constituir um direito fundamental historicamente conquistado a duras penas e através de lutas políticas, tendo sua dimensão de grande importância e valor em um estado que se pretende democrático, a Liberdade de Expressão tem sido usada constantemente como forma de justificar de maneira minimamente “aceitável”, discursos e práticas discriminatórias e incitadoras de ódio. Ao lado disso, a mída, enquanto agente central do espaço público, perde todo seu potencial transformador, de agente fomentador de mudança, em nome de um discurso ideológico de manutenção do status quo, sob o mesmo argumento de exercício da liberdade de expressão, eximindo-se de qualquer responsabilidade pelo acolhimento da pluralidade e da diferença. 49

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 561-562 50

SARLET, Ingo. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. IN: BALDI, César Augusto, org. Os direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 565.

921

Por fim, vislumbramos na dignidade da pessoa humana o instrumento que irá balizar esse limite do direito fundamental à liberdade de expressão, porque, observemos, se não for a dignidade da pessoa humana a fazê-lo, o que ou quem poderá dizer até onde vai nosso direito de se expressar? Afinal, deixando a dignidade de existir, não haveria mais nada que precisasse ser respeitado.

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923

A liberdade de expressão frente ao problema da concentração nos meios de comunicação e a necessidade de promoção do pluralismo Geisyane Barbosa do Prado1 T

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Resumo

Abstract

O presente trabalho volta-se ao debate da necessidade de uma regulação da comunicação social que não se equipara a censura e que cuida de aspectos importantes para o jogo democrático em um Estado constitucional, tal como a questão da concentração nos meios de comunicação quando esta se contrapõe ao pluralismo das fontes de informação e favorece a imposição do discurso de algumas poucas vozes em detrimento do discurso de outras. Para que uma democracia constitucional possa usufruir de uma liberdade de expressão e informação qualitativa é necessário proporcionar a existência de espaços plurais no mercado da comunicação, dentro e/ou fora das grandes empresas, buscando garantir voz para a diversidade, seja cultural, seja informacional. Nos países europeus, a discussão dos entraves causados pela concentração é fundamental, visto que não é de hoje que se observa o domínio de alguns tubarões da comunicação na Europa, o que justifica a preocupação da União Europeia em ter o pluralismo dos meios de comunicação como um dos pontos fundamentais da política audiovisual europeia. As experiências do debate europeu podem ser aproveitadas no debate brasileiro, com o intuito de enriquecê-lo, dada a proximidade de conteúdo de normas constitucionais entre Brasil e países europeus. Embora nossa Constituição seja rica em regras sobre comunicação, nossa regulação infraconstitucional se mostra insuficiente, o que demonstra a importância desse debate.

The following work discusses the importance of media’s regulation which has no relation to censorship and which argues relevant aspects inside the role of a democracy in a constitutional state, as, for instance, the issue of media’s concentration in the hand of few, opposed to a pluralist form of information. The exercise of liberty of expression in a constitutional democracy as well as the production of qualitative information depends intrinsically of the existence of plural spheres the communication field within and / or outside of the major companies, seeking to ensure cultural and informative diversity. In European nations, the discussion of barriers caused by the communication’s concentration is crucial, for it is no recent problem that of the media’s concentration, which explains the concern of the European Union to the pluralism of the media as one of the cornerstones of European audiovisual policy. The experiences of the European debate may be used in the Brazilian debate, in order to enrich it, given the proximity of constitutional content between Brazil and European nations. Although our Constitution has great diversity in rules about communication, our constitutional regulation is deficient, which demonstrates the importance of this debate.

Palavras-Chave: Regulação da comunicação; Concentração dos meios de comunicação; Defesa do pluralismo; Oligopólios midiáticos.

Keywords: Regulation of communication; Concentration of media; Protection of pluralism; Media oligopolies.

1

Aluna do curso de Direito da UFPE

924

1. Introdução O presente estudo é explanatório e situa-se dentro do amplo universo de discussão acerca da liberdade de expressão, a partir de dois pilares: o problema da concentração dos meios de comunicação social e a necessidade de defesa do pluralismo. O fio condutor desse trabalho é o problema da chance de voz: as vozes que ressoam mais forte e impedem outras vozes de serem ouvidas; as vozes tímidas que querem falar, mas não conseguem. É importante destacar que quando se coloca neste trabalho o problema da concentração, fala-se daquela concentração adversa à promoção do pluralismo de voz, de vez. Como se verá mais adiante, há situações em que cabe questionar se a permissividade de certo grau de concentração não seria a própria promoção do pluralismo de voz. É o caso daqueles que defendem a necessidade de se produzir campeões nacionais, frente à mundialização do mercado cultural. O fortalecimento da indústria da comunicação social nacional não é necessariamente um problema em si. O problema é fortalecer A, B e C e permitir que A, B e C sufoquem D e E (agentes mais fracos), porque D e E não convêm, seja economicamente, seja politicamente, seja ideologicamente. Daí a União Europeia que tem uma política de promoção do pluralismo local e nacional, considerar fundamental o direito dos povos de poder promover essa cultura por mecanismos mais amplos como “condição básica de sobrevivência na sociedade da informação”2. T

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Esse trabalho visa fazer, primeiramente, uma explanação sobre a qualidade do pluralismo de voz e de vez que deve ser buscado e a importância de se combater a concentração que agride a existência desse pluralismo. Tudo isso para se construir uma ideia acerca da regulação que é fundamental ter numa democracia constitucional como garantidora de voz e de vez. A regulação independente do estado é necessária, mas não é o suficiente. É preciso um posicionamento não omissivo por parte do Estado. Isso é essencial para a manutenção da democracia à medida que garante, por exemplo, maior autonomia dos artistas e jornalistas. Para o desenvolvimento do trabalho, foi feita uma aproximação da discussão do tema no âmbito realidade da União Europeia (UE), mais precisamente dos comandos normativos constantes das diretivas acerca da política audiovisual supranacional daquela comunidade. Para a UE, o debate dos entraves da concentração é fundamental, pois, como é sabido, não é de hoje que se observa o domínio de alguns tubarões da comunicação na Europa, a exemplo do que ocorre no Brasil, o que justifica a preocupação da Comunidade Europeia em ter o pluralismo nos meios de comunicação como um dos pontos fundamentais de sua política audiovisual. 2

BOLAÑO, César; SOUSA, Helena. Relações entre as políticas audiovisuais de Portugal e do Brasil face à globalização e às propostas supra-nacionais da União Europeia e do Mercosul. Uma introdução. Actas dos Congressos em Ciências da Comunicação, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 21-22 de Abril 2004 (CD-Rom 'Ciências da Comunicação em Congresso na Covilhã, III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO'), p. 05. Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2011. TU

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925

Em termos de Brasil, destaca-se a decisão em primeiro grau da Justiça Federal em Santa Catarina, no caso RBS, que revela, conforme a crítica sempre ácida do ilustre Venício Lima, o posicionamento omissivo do Estado brasileiro mediante os entraves da concentração, o que justifica a necessidade da discussão reitera do tema no nosso país.

2. Pluralismo: porque defendê-lo é necessário? A diversidade deve ser definida como a possibilidade de escolher um momento dado entre diferentes gêneros jornalísticos, diferentes temas e acontecimentos, diferentes fontes de informação, diferentes formatos, apresentações e estilos, diferentes interesses, opiniões e valores, diferentes autores, diferentes perspectivas etc. Em síntese, a diversidade reenvia a reconstruções culturais do universo diferentes por parte dos meios de comunicação. (definição de diversidade pelo Conselho da Europa) 3 T

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Não se pode confundir um ponto de vista como uma verdade absoluta. Contrapondo a ideia de domínio da informação por poucas mãos, que podem colocá-la da maneira que lhes convier, temos a ideia de pluralização, seja dos meios, das formas, das idéias, das fontes das informações. No discurso democrático atual, a busca de legitimidade para qualquer coisa exige a garantia de que nenhuma voz contrária foi calada. O espaço para o contraditório, o inesperado, até mesmo o indesejado, tem que permanecer aberto. O debate de opiniões pode ter sim um vencedor, quando uma ideologia, um argumento, prevalece sobre outro, porém essa vitória não pode ser por simples ausência, não comparecimento da outra parte. Dai a necessidade de se garantir espaços plurais. Pluralidade deve ser entendida no sentido de diversidade nas mais diversas acepções, seja cultural, ideológica, informacional. Um país pode ter uma dezena de emissoras de TV aberta, dúzias de jornais, revistas etc, mas se a propriedade destas se concentram nas mãos de poucos nomes, como acontece na Itália de Berluscone ou mesmo no Brasil, onde uma dezena de famílias controla os principais veículos de comunicação do país4, teremos tão somente uma pluralidade T

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quantitativa – de números, mas não qualitativa – de conteúdos, ou seja, uma falsa pluralidade. E, inegavelmente, mais perigosa até. Quando a maior parte da população acredita está recebendo uma informação que está passando pelo filtro da concorrência das fontes de interesses, mas na verdade está submetida à imposição do ponto de vista dominante, que vai sendo reiterada à medida que a informação emana de mais de uma fonte, torna-se fácil haver manipulação de massas. Uma manipulação invisível, de um inimigo que ataca pelas mais diversas formas, por

3

LLORENS, C. Concentración de empresas de comunicación y el pluralismo: la Unión Europea Apud MARTINEZ, Ângela V. A concentração dos meios de comunicação em sociedades democráticas: perigo para a liberdade de expressão ou condição de subsistência? In A mídia entre a regulamentação e a concentração. Cadernos Adenauer VII. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, nº 4, 2007, p. 18. 4

Para citar algumas: Civita (Grupo Abril), Marinho (Organizações Globo), Frias (Folha de São Paulo), Saad (Rede Bandeirantes), Abravanel (SBT), Sirotsky (RBS).

926

todos os lados. A informação pode ser preparada e entregue da maneira que mais convier politicamente, economicamente, ideologicamente. E ela estará mascarada de imparcialidade à medida que jorra de fontes aparentemente diversas, embora que estas fontes estejam todas, na verdade, amarradas a um mesmo conglomerado midiático.

3. Entendendo a concentração O conceito em si não traz nenhum juízo de valor. Mesmo no âmbito econômico, quando o assunto é competitividade, a concepção tradicional que enxerga a concentração como necessariamente um problema cai por terra. É fundamental enxergar o contexto em que ocorre a concentração, o que se concentra, quem concentra... Na era em que os princípios regem os ordenamentos jurídicos modernos e ditam as diretrizes da razoabilidade, deve-se buscar priorizar a real efetivação daquilo que se entende por pluralismo e liberdade de expressão. Por exemplo, o que é a existência de um pluralismo no número de atores atuando em dado mercado, se, na prática, isso não se traduz em pluralismo de conteúdo? A proporcionalidade estimula que um princípio não seja aplicado com toda sua força se isso resultar em absurdos, verdadeiras aberrações jurídicas. Daí a ideia de princípios que limitam princípios. Destarte, a livre concorrência pode ser limitada pela necessidade de garantir espaços plurais.

4. Concentração como garantia de voz? Mastrini e Aguerre, em excelente artigo5 que explana sobre aqueles que seriam os grandes T

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desafios enfrentados pelo planejamento de políticas de comunicação, destacam, entre outros6, o T

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problema da concentração da propriedade. Eles observam que existem perspectivas destoantes de vê a questão: o ataque à necessária diversidade de opiniões de uma sociedade e a pressão para a sobrevivência de campeões nacionais que possam sobreviver ao mercado frente à crescente mundialização do mercado cultural, a exemplo de países do leste europeu, como Estônia e Polônia. Em ambos, há defesa da necessidade de concentração, por trazer benefícios para o mercado da mídia, conforme coloca Marius Dragomir. No primeiro, os responsáveis pela política de mídia argumentam que a possibilidade de concentrar uma maior quantidade de emissoras por parte das empresas midiáticas nesse país é essencial para que sobrevivam; no segundo, surgem vozes defendendo “que um maior número de canais em poder de empresas

5

MASTRINI, Guillermo; AGUERRE, Carolina. Muitos problemas para poucas vozes: a regulamentação da comunicação no século XXI. In A mídia entre a regulamentação e a concentração. Cadernos Adenauer VII. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, nº 4, 2007, p. 39-62.

6

Os quatro grandes desafios do planejamento de políticas de comunicação, segundo eles, seriam: (1) a convergência entre os setores audiovisual, informático e de telecomunicações; (2) a crescente influência dos organismos supranacionais no planejamento das políticas; (3) as novas formas de regulamentação do direito de propriedade e a (4) concentração da propriedade.

927

nacionais não constituem um perigo para a diversidade e o pluralismo, e que esta ameaça provém das corporações de mídias multinacionais, sobretudo americanas” (negritei)7. T

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Mastrini e Aguerre fazem observar também teorias que contradizem a visão comum de que a concentração é um bicho-papão para o pleno desenvolvimento do mercado da comunicação. Nesse sentido, temos as teorias tradicionais e a defesa à capacidade auto-regulatória em detrimento da interferência estatal para evitar a concentração. As teorias clássicas atribuem o dever de regulação às forças do mercado, que naturalmente expulsará os maus atores, ou seja, a concentração não é necessariamente um problema, ela pode acontecer se o mercado assim quiser. Os schumpeterianos8, por sua vez, relativizam a visão da concentração como um T

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problema, ao entenderem que, em um mercado imperfeito, “doses de concentração estimulam a inovação e o desenvolvimento econômico, sempre que não haja abuso de posição dominante em longos períodos de tempo”.9 T

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Essa perspectiva que desmistifica a ideia de concentração como necessariamente algo ruim é interessante, sobretudo no que diz respeito à possibilidade de utilizar certa dose de concentração como meio de promover espaços para vozes serem ouvidas, mas também devem ser notados os impactos negativos advindos dessa situação, como é possível se observar na realidade brasileira: A competitividade internacional das grandes redes brasileiras, especialmente a Globo, atesta o sucesso do modelo [centralizado no eixo Rio/São Paulo] do ponto de vista econômico, mas esconde o fracasso do sistema educativo estatal, impedido de concorrer no mercado (...) e das emissoras locais, essencialmente limitadas à condição de retransmissoras.10 T

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Por outro lado, a defesa da concentração pautada no discurso da auto-regulação do mercado perde força na fragilidade e no perigo representado pela adoção desse modelo liberal, sobre o qual haverá uma melhor explanação mais adiante.

5. A Europa, a concentração e o pluralismo O mundo europeu, por suas características peculiares, é um interessante palco para desenvolvimento do tema. Primeiro, o recorte cultural dominado por minorias destoantes num continente que tem a tradição de concentração de poder e, por segundo, a existência do bloco econômico-cultural mais bem definido do mundo, a União Europeia (UE).

7

DRAGOMIR, Marius. Concentração dos meios de comunicação na Europa: o jogo dos Golias In A mídia entre a regulamentação e a concentração. Cadernos Adenauer VII. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, nº 4, 2007, p. 69. 8

Refere-se aos seguidores do importante economista do início do século XX, Joseph Schumpeter.

9

MASTRINI, Guillermo; AGUERRE, Carolina, 2007, p.50.

10

BOLAÑO, César; SOUSA, Helena, 2004, p. 4.

928

Não obstante a independência de cada governo nacional da UE para regular a comunicação social no país, as instituições supranacionais editaram diretrizes gerais sobre o tema, com o objetivo de que os Estados-Membros direcionem suas legislações para atenderem os nortes comuns colocados pela UE. Em 1989 foi editada a diretiva “Televisão Sem Fronteiras” (TVSF), a pedra angular da política audiovisual da União Europeia, tendo sido revisada em oportunidades posteriores, visando o aprofundamento dos temas anteriormente tratados pela TVSF, além de buscar adequação a nova realidade de novas tecnologias. Como coloca André Fernandes11, com o advento da criação da diretiva, em 1989, T

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procurou-se incentivar, ainda que de forma pouco objetiva e vinculante, a difusão das obras audiovisuais européias. Entre outros ditames, as diretivas orientam os governos nacionais a promover a livre circulação de programas televisivos, garantir a diversidade cultural e a difusão de filmes e programas europeus. A promoção do pluralismo, como se observa, é colocado como um dos principais nortes da política audiovisual da UE. Nesse sentido, cabe observar, por exemplo, o MEDIA, programa que busca incentivar a indústria audiovisual da Europa, privilegiando a produção, promoção e a distribuição de filmes e outras obras audiovisuais, com o objetivo de evitar que o mercado europeu seja tomado por programas importados (especialmente os americanos). Aqui se observa, portanto, um incentivo à concentração vertical da produção e distribuição europeia, em detrimento das empresas que venham de fora, como forma de preservação cultural, fortalecimento do mercado interno etc. Ou seja, ao mesmo tempo em que a política comunitária audiovisual busca a promoção do pluralismo no âmbito interno, como, por exemplo, o incentivo de produções independentes, busca também viabilizar uma dose de concentração para inibir produtos estrangeiros. Como aponta Cesar Bolaño e Helena Sousa12, na Europa prevalece uma tese na qual T

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o direito dos povos a não apenas preservar a sua cultura local e nacional, mas também apresentá-la e divulgá-la através dos canais e mecanismos mais amplos, aparece (...) como um direito fundamental e condição básica de sobrevivência na chamada Sociedade da Informação, que se constrói globalmente pela ação decidida dos diferentes Estados nacionais, sendo a defesa da diversidade cultural tão importante e vital como a da biodiversidade para o futuro humano.

A política de incentivo à produção local e regional da Europa tem dado resultado. Segundo dados divulgados pela Comissão Europeia no oitavo relatório sobre a eficácia das regras 11

FERNANDES, André de Godoy. Meios de comunicação social no Brasil: promoção do pluralismo, direito concorrencial e regulação. 2009. Tese (Doutorado em Direito Comercial) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 394, 2009. Disponível em: . Acesso em: 2011-11-01. 12

BOLAÑO, César; SOUSA, Helena, 2004, p. 05.

929

comunitárias para a promoção de obras europeias, que abrange o período 2005-2006, mais de 63% do tempo de programação das estações de televisão da Europa é dedicado a obras europeias e mais de 36% a obras de produtores europeus independentes.13 T

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A concentração também é assunto tratado nas diretivas e objeto justificado de preocupação. A política econômico-audiovisual europeia visa garantir uma concorrência saudável, repreendendo, por exemplo, auxílios estatais que falseiam a concorrência e favorecem determinadas empresas. No entanto, os auxílios estatais a favor dos “serviços de interesse econômico geral” – dentre os quais se incluem os serviços públicos de radiodifusão – são considerados14. T

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Apesar disso, como bem coloca o excelente artigo de Marius Dragomir sobre o assunto, o mundo europeu sofre com a presença maciça no mercado de tubarões midiáticos: A concentração da propriedade nos mercados dos meios de comunicação avançou rapidambente com fusões e aquisições em massa que levaram a que surgisse um pequeno grupo de Golias da mídia em todo continente. Essa tendência surgiu apesar da existência da legislação antimonopolista em todos os países europeus, na medida em que as empresas aproveitaram leis permissivas, vazios legais ou atitudes tolerantes dos organismos reguladores, seja por uma cultura de conluio entre reguladores e operadores de radiodifusão ou graças a mecanismos reguladores débeis que não permitem obrigar proprietários a respeitar os limites fixados quanto à propriedade.15 (negritei). T

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Alia-se a tudo isto, a sombra da presença da “politização dos meios de comunicação público”16. O exemplo imediato é o magnata italiano Silvio Berlusconi, dono dos canais de T

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televisão mais importantes da televisão italiana e que, enquanto esteve no poder17, soube muito T

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bem utilizar-se dos meios de comunicação que dispunha para atender aos seus interesses. Daí o termo utilizado por alguns especialistas diante de situações caracterizadas pela invasão de interesses políticos privados no campo da esfera midiática: fala-se em berlusconização da mídia.

13

Dados retirados do site oficial da UE. IP/08/1207. Disponível em: . Acesso em: 01 nov 2011. TU

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14

Nesse sentido: “Em 22 de Maio de 2002, a Comissão aprovou o financiamento estatal do Reino Unido proveniente da taxa cobrada pela BBC para o funcionamento de nove novos canais digitais (N 631/2001). A Comissão concluiu que os novos canais digitais fazem parte da obrigação de serviço público da BBC, que não existia qualquer erro manifesto e que essa obrigação foi oficialmente confiada à BBC. Além disso, a Comissão entendeu que a compensação do Estado era proporcional aos custos líquidos dos novos canais. Por isso, a Comissão concluiu que a medida não constituía um auxílio estatal, na acepção do nº 1 do artigo 87º do Tratado CE.”. in RELATÓRIO DA COMISSÃO: XXXII Relatório sobre a Política de Concorrência 2002. Bruxelas, 5 mai 2003. Disponível em: . Acesso em: 03 out 2011. TU

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15

DRAGOMIR, Marius, 2007, p. 67.

16

DRAGOMIR, Marius, 2007, p. 64.

17

Em 12 de novembro de 2011, Berlusconi renunciou ao cargo de primeiro-ministro italiano, pondo fim a 17 anos de uma era política.

930

6. O caso RBS: um retrato do tratamento tímido dado pelo Estado brasileiro ao tema da concentração O Ministério Público Federal em Santa Catarina entrou com uma Ação Civil Pública (Ação Civil Pública nº 2008.72.00.014043-5/SC) na Justiça Federal contra o oligopólio da RBS (Rede Brasil Sul) naquele estado, requerendo a anulação da compra do jornal “A Notícia” (A RBS, além do periódico A Notícia, é dona do “Diário Catarinense”, do “A Hora de Santa Catarina” e do “Jornal de Santa Catarina”), a redução no número de emissoras do grupo ao máximo permitido em lei (Dec. Lei nº. 236/67) e o estabelecimento de percentuais de programação local da radiodifusão televisiva, que expressem a cultura de Santa Catarina, conforme preceitua o artigo 221, inciso III, da Constituição Federal. Da petição inicial do MPF (SC) 18, consta que a “ação visa tutelar os direitos de informação T

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e expressão do cidadão, a pluralidade, premissa de efetividade do Estado Democrático de Direito”. Afirma que “quando um agente econômico atinge posição dominante no mercado, passa a ter o poder de, unilateralmente, impor suas decisões aos consumidores e concorrentes, quando não pretender eliminar pura e simplesmente a concorrência”. Acusa ainda o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) por ter aprovado o ato da aquisição do jornal “A Notícia”, pelo grupo RBS, e a União por omissão do Ministério das Comunicações, que deveria “policiar, reprimir o oligopólio da RBS”. No começo de 2011 foi publicada a sentença proferida pelo juiz Diógenes Marcelino Teixeira, da Terceira Vara Federal de Florianópolis, que julgou improcedente o pedido.19 T

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Em relação à compra do jornal “A notícia”, o juiz entendeu que não há qualquer irregularidade no teor do processo administrativo que examinou o ato de concentração entre as empresas Zero Hora Editora Jornalística S/A e A Notícia S/A Empresa Jornalística, visto que não houve qualquer infração à ordem econômica, como a formação de oligopólio. Entendeu que o mercado em SC é “disputado” por vários jornais, filiados ou não ao grupo RBS, não havendo, portanto, formação de oligopólio. No que diz respeito ao número de emissoras de televisão ligadas ao grupo RBS, a sentença proferida diz que não houve ofensa à legislação que proíbe a concessão de mais de duas emissoras de radiodifusão à mesma empresa, porquanto como bem colocado na contestação da União, não houve a concessão de serviços de radiodifusão à “família Sirotsky”, e sim a pessoas jurídicas distintas, com quadro societário diverso, o que se comprova mediante o exame dos respectivos estatutos sociais juntados aos autos. (sublinhado no original). U

U

18

Petição Inicial do MPF/SC (Ação Civil Pública nº 2008.72.00.014043-5/SC). Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2011. TU

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19

SENTENÇA. Ação Civil Pública nº 2008.72.00.014043-5/SC. Publicado em 12/05/2011 (D.E.). Íntegra disponível em:. Acesso em: 30 out. 2011. TU

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931

Por fim, o magistrado afasta a incidência da aplicação dos percentuais de programação local da radiodifusão televisiva, justificando na falta de regulamentação do art. 221 da Constituição, asseverando, desse modo, que não há como impor aos réus obrigação ainda não positivada. A justiça, segundo Venício A. de Lima, mediante essa decisão, acabou por contribuir “para perpetuar uma situação onde apenas alguns poucos grupos têm direito a voz enquanto a imensa maioria da população permanece sem a possibilidade de exercer sua liberdade de expressão no espaço público.”20 T

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O insigne professor ainda faz uma crítica à postura do judiciário, do legislativo e do executivo, ao apontar que são coniventes com aquilo que ele chama de “censura dissimulada”: Essa é, na verdade, uma forma de censura dissimulada que vem sendo praticada e confirmada no nosso país não só por sentenças do Judiciário, mas também por decisões administrativas do Cade e pela escandalosa omissão do Poder Legislativo que, 22 anos depois, não regulamentou a maioria dos artigos do capítulo da Comunicação Social da Constituição. (negritei)21 T

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O MPF apresentou apelação. Resta agora aguardar a decisão do tribunal (TRF da 4ª região).

7. Conclusão: pela necessidade de uma regulação que não se equipara à censura Um palco para vozes diferentes ressoar e o combate à concentração que inibe isso é tão fundamental para a democracia quanto o ar que respiramos é fundamental para a vida. Se queremos esse palco temos que promovê-lo. O problema é: como promovê-lo? Diante da importância de proteger os meios de comunicação social, ferramentas da própria democracia, do domínio das tendências mercadológicas, interessadas tão somente no lucro, na aquisição de poder político e/o perpetuação de ideologias, faz-se necessário buscar a construção de instrumentos eficientes de regulação do setor, que tenha como foco a manutenção de espaços plurais, garantindo uma concorrência saudável e inibindo a imposição de monopólios midiáticos. Para a promoção desses instrumentos democráticos fundamentais que tratamos aqui há a necessidade de regulação. Regulação que não se equipara à censura, e que representa um meio termo razoável entre o controle pelo Estado e a auto-regulação. Como destaca Ferreira Santos, no Brasil, quando se fala em regulamentação no setor audiovisual a tendência é a adoção do discurso da auto-regulação, que se demonstra conveniente ao setor da comunicação. Em suas palavras:

20

LIMA, Venício A. A censura dissimulada. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2011. TU

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21

LIMA, Venício A. A censura dissimulada. Disponível em: . Acesso em: 30 out. 2011. TU

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Empresas e empresários fomentam um discurso de que dar ao Estado o poder de regular a mídia sempre resultaria em censura. Utilizam a “liberdade de expressão” como álibi para atingir seus interesses mercadológicos. Agem como se fossem donos do discurso da “liberdade de expressão”22. T

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De fato, a recente história da humanidade é um alerta para o perigo que representa uma arma poderosa como o controle estatal dos meios de comunicação. Não é preciso ir muito longe, basta voltar algumas décadas na história brasileira, quando pairava a sombra da ditadura. Porém, os pontos negativos resultantes da adoção de qualquer medida extremada (seja a regulamentação total pelo Estado ou a auto-regulação) junto com a tendência constitucional de princípios que velam pela proporcionalidade, sugerem a necessidade de acolhimento de posições mais moderadas, que ao mesmo tempo inibam o Estado a fazer uso político, em interesse próprio, dos meios de comunicação social, como também não permita que empresas privadas, verdadeiros tubarões midiáticos, ditem as regras do mercado e atrofiem o exercício de direitos constitucionais, tais como a liberdade de expressão e a livre concorrência. A interferência estatal, sem excessos, é fundamental. Não necessariamente no sentido de regular debaixo de suas asas, mas de viabilizar a regulação. Mecanismos oriundos da própria imprensa ou mesmo dos cidadãos, como sugerem os MAS de Claude-Jean Bertrand (sistemas de responsabilização da mídia, que englobam quaisquer meios de melhoria da mídia totalmente independentes do governo) se mostram fundamentais para obter uma mídia de qualidade, mas não são suficientes. E o próprio Claude-Jean reconhece isso, ao dizer: “Os MAS podem aliviar sintomas, mas não curar a doença arraigada da mídia: o controle excessivo pelas grandes empresas”23. T

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Não podemos prescindir de órgãos reguladores independentes. As diretivas da UE destacam a obrigação de que cada Estado-Membro assegure a independência da autoridade reguladora nacional responsável pela aplicação do disposto na diretiva. “A Comissão considera que a independência das autoridades reguladoras dos meios de comunicação social é um elemento essencial para a democracia e para garantir a pluralismo dos meios de comunicação”

24 T

. T

Além disso, há o encorajamento expresso à auto-regulação do setor e a co-regulação – uma combinação de regulação estatal e não estatal.

22

FERREIRA SANTOS, Gustavo. Da liberdade de expressão ao direito de comunicação. Direitos fundamentais & justiça. Porto Alegre: HS Editora. n. 10, p. 201, jan-mar., 2010. 23

BERTRAND, Claude-Jean. O Arsenal da Democracia: sistemas de responsabilização da mídia. Tradução: Maria Leonor Loureiro. Bauru: EDUSC, 2002, p. 48. 24 UE. IP/07/311. Bruxelas, 9 de Março de 2007. Disponível em: . Acesso em: 01 nov 2011. TU

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Marius Dragomir25, nesse sentido, elenca alguns requisitos necessários para que esses T

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órgãos reguladores atuem com autonomia, como: a) Definir claramente as condições de nomeação e demissão dos membros que o integram; b) Fixar de forma inequívoca a duração de seus mandatos e suas faculdades legais; c) Prever disposições legais para o caso de conflito de interesses; d) Adotar critérios objetivos de designação de membros que integram o órgão e seu financiamento.

Ademais, urge destacar que quanto maior a concentração, maior a falta de liberdade dos profissionais que compõe a mídia, que transmitem a notícia, que são agentes da democracia. Afinal, eles também precisam de salários para sobreviverem, e num mercado sem opções eles acabam se enquadrando aos mandos de quem ocupa o poder. Como coloca Alain Touraine, citada por André de Godoy Fernandes, “a democracia ficará privada de voz se a mídia, em vez de fazer parte do mundo da imprensa, portanto, do espaço público, vier a abandoná-lo para se tornar, antes de tudo, empresa econômica cuja política é comandada pelo dinheiro ou pela defesa dos interesses do Estado”.26 T

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A busca pelo palco plural do livre expressar jamais pode ser abandonada, sob pena de nos tornarmos reféns da própria liberdade: uma liberdade irresponsável e desregrada, que nos afasta da democracia em vez de nos aproximar dela. Nesse sentido, coleciono, por fim, uma citação instigante, constante de uma publicação de Aristheu Achilles, de 1941, acerca da D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda, do governo de Getúlio Vargas, um dos símbolos da sombra da censura midiática que acobertou o Brasil num passado não tão distante), e que revela o velho problema que, apesar das décadas e dos contextos históricos diferentes, se mantém atual: Nos países democráticos, os artistas e os homens da ciência dependem, para seu bom êxito, dos homens de fortuna, como nas ditaduras dependem do governo. O problema de se obter para eles certo grau de liberdade é difícil e até hoje não foi resolvido. Assim, Homero teve de adular seus superiores, como Virgilio, Shakespeare e Walt Whitman. 27 T

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Referências bibliográficas ACHILLES, Aristheu. Aspectos da ação do DIP. Arquivo Getúlio Vargas. 1941. BERTRAND, Claude-Jean. O arsenal da democracia: sistemas de responsabilização da mídia. Tradução: Maria Leonor Loureiro. Bauru: EDUSC, 2002.

25

DRAGOMIR, Marius, 2007, p. 80.

26

Qu’est-ce que la démocratie? Apud FERNANDES, André de Godoy, p. 421, 2009.

27

ACHILLES, Aristheu. Aspectos da ação do DIP. Arquivo Getúlio Vargas. 1941, p. 21.

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BOLAÑO, César; SOUSA, Helena. Relações entre as políticas audiovisuais de Portugal e do Brasil face à globalização e às propostas supra-nacionais da União Europeia e do Mercosul. Uma introdução. Actas dos Congressos em Ciências da Comunicação, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 21-22 de Abril 2004 (CD-Rom 'Ciências da Comunicação em Congresso na Covilhã, III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO'). Disponível em: . Acesso em: 01 nov. 2011. U

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de

São

Paulo,

São

Paulo,

2009.

Disponível

em:

. Acesso em: 01 nov. 2011. FERREIRA SANTOS, Gustavo. Da liberdade de expressão ao direito de comunicação. Direitos fundamentais & justiça. Porto Alegre: HS Editora. n. 10, jan-mar., 2010. LIMA,

Venício

A.

A

censura

Disponível

dissimulada.

em:

. Acesso em: 30 out. 2011. U

U

MARTINEZ, Ângela V. A concentração dos meios de comunicação em sociedades democráticas: perigo para a liberdade de expressão ou condição de subsistência? In A mídia entre a regulamentação e a concentração. Cadernos Adenauer VII. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, nº 4, 2007. MASTRINI, Guillermo; AGUERRE, Carolina. Muitos problemas para poucas vozes: a regulamentação da comunicação no século XXI. In A mídia entre a regulamentação e a concentração. Cadernos Adenauer VII. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, nº 4, 2007.

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Tribunais Eleitorais na rede: a informação como caminho para a construção da democracia participativa Grasiela Grosselli1 T

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2

Geovana Cartaxo T

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Resumo

Abstract

Os mecanismos para uma efetiva participação dos cidadãos na construção de uma sociedade mais democrática não terão plena eficácia se as pessoas que participam do processo não têm acesso às informações pertinentes aos interesses da coletividade. Assim o presente estudo visa estudar o surgimento dos Tribunais Eleitorais e sua função dentro de um regime democrático. Busca ainda estudar a incorporação de novas tecnologias pelo judiciário brasileiro e verificar, através da análise dos sites dos Tribunais Eleitorais, como ocorre a utilização das redes sociais para repasse de informação aos cidadãos e como forma de acesso aos principais eventos jurídicos a fim de estarem inseridos no plano de construção de uma justiça realmente colaborativa.

The mechanisms for effective participation of citizens in building a more democratic society will not be fully effective if the people involved in the process do not have access to information relevant to the interests of the community. Thus this study aims to study the emergence of electoral courts and their role within a democratic regime. It also seeks to study the incorporation of new technologies by the Brazilian judiciary and verify, by examining the sites of the Electoral Tribunals, as is the use of social networks for transfer of information to citizens and as a means of legal access to major events in order to be entered the plan to build a truly collaborative justice.

Palavras-Chave: Democracia; Eleitorais; Internet; Informação.

Keywords: Democracy, Justice, Electoral Courts, Internet, Information.

1

Justiça;

Tribunais

Mestranda pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

2

Universidade de Fortaleza. Professora de Direito. Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected].

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1. Introdução Por muito tempo, a troca de experiências entre indivíduos e entre grupos era feita de forma lenta e distante, assim como a propagação de informações e conhecimento. Porém, a sociedade passou por inúmeras mudanças, principalmente pelo impacto produzido através dos meios de comunicação altamente sofisticados, com grande destaque para o avanço das tecnologias. As novas tecnologias e sua utilização acabaram por gerar a chamada sociedade da informação, na qual a informação passa a ser o elemento central de toda a atividade humana. Assim, o artigo traz uma breve descrição do surgimento das novas tecnologias e o desenvolvimento da sociedade da informação. Além disso, estuda a utilização das novas tecnologias pelo Judiciário brasileiro para, enfim, verificar se os Tribunais Eleitorais estão fazendo uso dessa tecnologia através da criação de perfis nas principais redes sociais, com o intuito de envolver o cidadão nas suas atividades.

2. A emergência das novas tecnologias De acordo com Lévy (2000), os primeiros computadores (calculadoras programáveis) surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1945. Por muito tempo, reservados aos militares para cálculos científicos, seu uso civil disseminou-se durante os anos seguintes. Conforme Castells (2001) o primeiro computador eletrônico pesava 30 toneladas, foi construído sobre estruturas metálicas com 2,75 m de altura, tinha 70 mil resistores e 18 mil válvulas a vácuo e ocupava a área de um ginásio esportivo. Escreve Castells (2001), que quando ele foi acionado, seu consumo foi tão alto que as luzes da Filadélfia piscaram. Tecnicamente,

um

computador

é

uma

montagem

particular

de

unidades

de

processamento, de transmissão, de memória e de interfaces para entrada e saída de informações, por isso ele pode ser encontrado em qualquer lugar onde a informação digital seja processada automaticamente. Conectado ao ciberespaço um computador pode recorrer as capacidades de memória e de cálculo de outros computadores da rede (que, por sua vez, fazem o mesmo), e também a diversos aparelhos distantes de leitura e exibição de informações. Todas as funções da informática são distribuíveis e, cada vez mais, distribuídas. O computador não é mais um centro, e sim um nó, um terminal. (...) No limite, há apenas um único computador, mas é impossível traçar seus limites, definir seu contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar algum, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacado: o ciberespaço em si. (LÉVY, 2000, pg. 44).

Em meados de 1980, um movimento social nascido na Califórnia apossou-se das novas possibilidades técnicas e inventou o Computador Pessoal (PC) que, na verdade, se tornou o nome genérico dos microprocessadores (SILVA, 2011). 937

Desde então, o computador escapou do serviço de dados das grandes empresas e dos programadores profissionais para tornar-se, de acordo com Lévy (2000, p. 31 e 32) “um instrumento de criação (de textos, de imagens, de músicas), de organização (bancos de dados, planilhas), de simulação (planilhas, ferramentas de apoio à decisão, programas para pesquisa) e de diversão (jogos)” de uma proporção crescente da população de países, que Lévy coloca como desenvolvidos. Assim surgiu o que se chama de as novas tecnologias da informação que estão integrando o mundo em redes globais de comunicação. Segundo Coelho (2010), chama-se de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTICs) as tecnologias e métodos para comunicar sendo que a imensa maioria delas se caracteriza por agilizar, horizontalizar e tornar menos palpável (fisicamente manipulável) o conteúdo da comunicação, por meio da digitalização e da comunicação em redes (mediada ou não por computadores) para a captação, transmissão e distribuição das informações (texto, imagem estática, vídeo e som). Diante disso, a dimensão da revolução da tecnologia da informação destina-se a promover uma interação entre tecnologia e sociedade. Ao que tudo indica, a vida digital em termos de informação será cada vez mais modelável pelo usuário que poderá decidir de forma personalizada o momento mais adequado para a sua interação, uma vez que novas ferramentas estão sendo criadas e disponibilizadas na web e que podem ser acessadas de qualquer lugar do mundo, bastando que o usuário disponibilize dos recursos necessários para tal tarefa.

3. A sociedade da informação Com o advento e difusão das novas tecnologias de informação e comunicação e a forma como passou a ser utilizada pelos governos, empresas e indivíduos uma nova sociedade acabou surgindo, denominada sociedade da informação. Segundo Palhares, Silva e Rosa (2011) entende-se por sociedade da informação um estágio de desenvolvimento social caracterizado pela capacidade de seus membros (cidadãos, empresas, poder público) obter e compartilhar qualquer informação, instantaneamente, de qualquer lugar e da maneira mais adequada. A sociedade da informação designa uma forma nova de organização da economia e da sociedade. Para Gouveia (2004) a sociedade da informação está baseada nas tecnologias de informação e comunicação que envolve a aquisição, o armazenamento, o processamento e a distribuição da informação por meios eletrônicos. Castells (2001) define Sociedade da informação como um conceito utilizado para descrever uma sociedade e uma economia que faz o melhor uso possível das Tecnologias da Informação e Comunicação no sentido de lidar com a informação, e que toma esta como elemento central de toda a atividade humana. 938

No entanto, Castells (2001, p.65) apresenta distinção entre os conceitos “sociedade da informação” e sociedade informacional”, no qual O termo sociedade da informação enfatiza o papel da informação na sociedade. Mas afirmo que informação, em seu sentido mais amplo, por exemplo, como comunicação de conhecimentos, foi crucial a todas as sociedades, inclusive à Europa medieval que era culturalmente estruturada e, até certo ponto, unificada pelo escolasticismo, ou seja, no geral uma infra-estrutura intelectual. Ao contrário, o termo informacional indica o atributo de uma forma específica de organização social em que a geração, o processamento e a transmissão da informação tornamse as fontes fundamentais de produtividade e poder devido às novas condições tecnológicas surgidas nesse período histórico.

Desse modo, para Silva (2011) conhecimentos e informação são elementos cruciais em todos os modos de desenvolvimento, visto que o processo produtivo sempre se baseia em algum grau de conhecimento e no processamento da informação. A diferença na sociedade informacional é a ação de conhecimentos sobre os próprios conhecimentos como principal fonte de produtividade. Entretanto, é preciso atentar-se para as diversificações culturais e históricas de cada povo, o que faz com que cada sociedade sofra influências e transformações diferenciadas, gerando configurações especifica. Em um contexto globalizado, as tecnologias de informação e U

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comunicação, na perspectiva de Guiddens (1991, p. 75) “ligam localidades distantes de tal forma, que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo à milhas de distância e viceversa”, ou seja, pode-se dizer que tudo e todos estão conectados interferindo e modificando seu meio social, econômico, político, cultural e institucional. Todavia, é preciso ficar esclarecido que, de acordo com Castells (2001), a tecnologia não determina a sociedade, nem a sociedade escreve o curso da transformação tecnológica, visto que muitos fatores, inclusive criatividade e iniciativa empreendedora, intervêm no processo de descoberta científica, inovação tecnológica e aplicações sociais, de forma que o resultado final depende de um complexo padrão interativo. Desse modo, conforme Silva (2011) pode-se dizer que há uma interação dialética entre a sociedade e a tecnologia, pois a tecnologia incorpora a sociedade, mas não a determina. Da mesma forma, a sociedade utiliza a inovação tecnológica, também não a determinando, deste modo, o dilema do determinismo tecnológico é um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas. Tudo muda muito rápido, valores se desfazem e/ou se modificam, dissolvem-se fronteiras e desenraizam-se as coisas, as gentes e as idéias, trazendo com isso, diferentes implicações sociais em que emergem novas formas de participação dos cidadãos, bem como busca-se sensibilizar as pessoas, cada vez mais, para questionar, intervir e buscar de forma autônoma a apropriação das novas ferramentas tecnológicas. 939

4. O judiciário e a internet Com o advento e, posteriormente, com a grande expansão da internet3, e, em especial, da T

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world wide web4 (www), muitos teóricos passaram a considerá-la como a solução dos diversos T

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déficits democráticos, uma vez que suas ferramentas possibilitariam a criação de novos canais de comunicação e interação entre esfera civil e sistema político ou mesmo entre os próprios cidadãos. Segundo Coelho (2010) a internet é um veículo de informação e comunicação formada por uma rede de computadores e outras redes menores interligados ou conectados entre si em escala mundial através de um protocolo comum, com diversos serviços, funções e recursos, entre eles, o correio eletrônico, transferência de arquivos, comunicação em tempo real, entre outros. A internet cresce a cada dia, transformando o cotidiano das pessoas e das instituições, possibilitando novas formas de pesquisa, troca de informações e comunicação em tempo real. Com tudo isso o judiciário não poderia deixar de aderir aos novos modelos informacionais trazidos pela era tecnológica. Segundo Vera Ponciano (2011) a partir do ano de 1995, quando a Embratel lançou o serviço definitivo de acesso comercial à Internet, a maioria dos tribunais brasileiros (magistrados, servidores e usuários dos serviços judiciários) passaram a utilizar os recursos operacionais oferecidos pela internet, principalmente o correio eletrônico e a WWW - World Wide Web. O acesso à Internet, em conjugação com a informatização do Judiciário, proporcionou uma revolução em todo o sistema de elaboração e comunicação dos atos processuais, tanto pelo usuário interno dos serviços judiciários (juizes e servidores), quanto pelos usuários externos (partes, advogados), que passaram a ter acesso a várias informações de difícil obtenção anteriormente. Além disso, as páginas eletrônicas disponibilizadas pelo Poder Judiciário na internet contribuíram para um grande passo no processo de modernização da justiça brasileira. Ponciano (2011) afirma que os tribunais superiores (STF, STJ, entre outros), os tribunais regionais federais, tribunais do trabalho, tribunais de Justiça, seções judiciárias da justiça federal e varas desenvolveram suas páginas, oferecendo uma gama enorme de serviços relacionados à tecnologia de informação, entre eles: consulta de jurisprudência, do andamento processual, de atos normativos internos (regimento interno, provimentos, resoluções); acesso a licitações do 3

A internet tem inumeráveis formas, significados e utilizações, mas opta-se por utilizar a denominação internet de maneira mais ampla no texto, podendo se referir a todas essas possibilidades.

4

A World Wide Web ("Rede de alcance mundial"; também conhecida como Web e WWW) é um sistema de documentos em hipermídia que são interligados e executados na internet. Para visualizar a informação, geralmente usa-se um programa de computador chamado navegador para descarregar informações (chamadas "documentos" ou "páginas") de servidores web ("sites" ou "sítios") e mostrá-los na tela do usuário. O usuário pode então seguir as hiperligações na página para outros documentos ou mesmo enviar informações de volta para o servidor para interagir com ele. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/World_Wide_Web. Acesso em: 29 jun. 2010.

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órgão; informações sobre concursos públicos; história do poder judiciário; funcionamento, competência, estrutura e organização do respectivo órgão. Antes da Internet, o acesso a todas essas informações, além de restrito, era demorado e oneroso. A partir dessa revolução operada pela internet as pessoas passaram a ter acesso aos serviços, de sua residência ou de qualquer parte do mundo. Com o advento da Lei n.º 11.419/2006 a comunicação dos atos processuais (intimações e citações) também pode ser feita de forma eletrônica. Conforme previsão no seu artigo 4.º os tribunais podem criar o Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral. Quanto às intimações eletrônicas dispõe o art. 5.º da referida lei que devem ser feitas por meio eletrônico em portal próprio aos advogados e procuradores públicos que se cadastrarem, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico. A lei também permite, em caráter informativo, a remessa de correspondência eletrônica, comunicando o envio da intimação e a abertura automática do prazo processual, aos que manifestarem interesse por esse serviço (art. 5º, § 4º). Trata-se do denominado “sistema push”, o qual é a prestação de um serviço auxiliar e informativo de acompanhamento processual. E ainda, o art. 7.º prevê que as cartas precatórias, rogatórias, de ordem e, de um modo geral, todas as comunicações oficiais que transitem entre órgãos do Poder Judiciário, bem como entre os deste e os dos demais Poderes, devem ser feitas preferencialmente por meio eletrônico. Além disso, a consulta de jurisprudência e inteiro teor e o acompanhamento processual pela Internet é oferecido atualmente por quase todos os Tribunais do país, entre eles, STF, STJ, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça. Além dos tribunais, seções judiciárias e varas federais e estaduais também disponibilizam a consulta processual em suas páginas na Internet. Após a informatização do Poder Judiciário e sua entrada na rede mundial de computadores, não restam dúvidas que se ampliou o acesso à justiça.

4.1 A incorporação de novas tecnologias de comunicação As novas tecnologias de comunicação também modificaram o modo de exercer os atos processuais. O aperfeiçoamento da informática permitiu que fosse concebida uma interface de interrogatório por videoconferência, isso significa segurança e agilidade no andamento dos processos criminais. Segundo Corona e Rampin (2010) atualmente é possível realizar a oitiva de réu preso sem realizar o seu deslocamento até o fórum, evitando deslocamento de recursos materiais (especialmente viaturas) e humanos (expecialmente agentes penitenciários e policiais) para transportar o preso até o local em que o Juiz se encontra. 941

Outra novidade é o uso dos modernos recursos de telefonia para a realização de audiência (é possível realizar a oitiva de testemunha, impossibilitada de se deslocar até o local da audiência, via tele-conferência, por meio do recurso “viva voz”) e, inclusive, dos próprios atos do magistrado. A incorporação de novas tecnologias depende, também, do uso criativo que o magistrado faz das mesmas5. Um caso interessante ocorreu em 30 de outubro de 2009, quando o Juiz de Direito do T

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Estado do Acre, Edinaldo Muniz, titular da Vara Criminal de Plácido de Castro, usou um torpedo de celular para proferir uma sentença e expedir alvará de soltura. O magistrado estava em Rio Branco quando foi informado pelo cartório que um devedor de pensão alimentícia, preso desde 27/10, havia quitado o débito referente ao processo. Imediatamente, o juiz postou pelo celular ao cartório a seguinte sentença: "(...) Pago o débito, declaro extinta a execução. Esta, certificada, deverá servir de alvará em favor do executado. Sem custas e sem honorários. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Arquivem-se. Rio Branco/AC, 30 de outubro de 2009, às 14h24. Edinaldo Muniz dos Santos, Juiz de Direito"6. T

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Diversas são as formas e usos que as novas tecnologias podem proporcionar ao processo e sua utilização depende também da maneira que os construtores do direito utilizam essas novas realidades tecnológicas que lhes são apresentadas.

4.2 O judiciário e as redes sociais Orkut, Facebook, Twitter, Linkedln, Blogs, palavras que há pouco tempo só faziam parte do T

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cotidiano dos jovens começam a chegar ao mundo corporativo e ao Poder Judiciário. As redes sociais são formadas por indivíduos com interesses, valores e objetivos comuns para o compartilhamento de informações, permitindo uma comunicação interpessoal e também entre pessoas, empresas e instituições. Segundo Cartaxo (2010) o Twitter é uma rede social formada por microblogs, que permitem aos seus usuários publicar e visualizar textos (os chamados "tweets", textos de até 140 caracteres) de outras pessoas em tempo real. As atualizações são exibidas na página do usuário e também enviadas a outros usuários, os famosos "seguidores", que podem visualizar essas atualizações em seu perfil. Para publicar um tweet, é preciso criar uma conta no site twitter.com. O serviço é gratuito. Desde a sua criação, em 2006, o Twitter ganhou adeptos em todo o mundo. Em abril de 2011, o microblog registrou 200 milhões de usuários.

5

Veja casos do uso das novas tecnologias em: http://www.jusbrasil.com.br/topicos/1874012/arquivamento-da-execucaode-honorarios.

6

Veja a notícia do caso em: http://esma.tjpb.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=421:justica-do-acreusa-celular-para-proferir-sentenca-e-expedir-alvara-de-soltura&catid=1:noticias&Itemid=20. TU

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Já o Facebook é o site de rede social mais acessado no mundo (mais de 175 milhões de usuários ativos). Como todo site de relacionamento, cada usuário tem um perfil que expõe suas informações pessoais, suas preferências e a sua rede de amigos. A presença do Supremo nas redes sociais ainda não pode ser considerada ampla. Mas T

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tanto o próprio STF quanto o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão criado em 2004 para dar T

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transparência e fiscalizar a atuação dos juízes, já contam com os seus respectivos canais no T

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YouTube e perfis no Twitter. Uma das metas do planejamento estratégico do órgão, para o T

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período 2009/2013, é ampliar sua visibilidade nas redes sociais. T

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Para se ter um bom exemplo do uso do twitter pelo judiciário o Twitter do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) alcançou em 18/08/2011, a marca de 50 mil seguidores7. O perfil do T

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CNJ no microblog foi criado em abril de 2010 e, em pouco mais de um ano, publicou mais de 2 mil postagens e foi incluído na lista de 880 usuários. No Twitter e em outras redes sociais, como o Facebook, o CNJ divulga as principais notícias, ações e serviços do poder judiciário e fornece orientações e esclarecimentos aos seus seguidores e fãs. Além do twitter e do facebook outras redes sociais conhecidas são o Orkut, linkedin, feedrss, myspace, youtube, entre outro, que futuramente poderão vir a ser utilizadas pelo judiciário para expandir as informações e possibilitar uma maior comunicação e interação com a população.

5. A Justiça Eleitoral Em 1930, em meio a uma grave crise econômica e política, ocorreu no Brasil um movimento armado liderado pelos Estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul que culminou com a deposição do presidente paulista Washington Luís e com a assunção de Getúlio Vargas ao posto de chefe do governo provisório. Nesse contexto, é criada a Justiça Eleitoral por meio do Decreto-Lei 21.076 de 24 de fevereiro de 1932. No mesmo período, foram instituídos o voto secreto, o voto feminino e o primeiro código eleitoral do Brasil. Nesse sentido Cerqueira (2006, p. 98) informa que o Código Eleitoral de 1932 instituiu o voto universal, secreto e obrigatório, e criou a Justiça Eleitoral (alistamento, organização das Mesas, apuração dos votos, reconhecimento e proclamação dos eleitos), incorporando as mulheres e religiosos, mas ainda excluindo os analfabetos, mendigos e praças de pré. O Decreto ainda regulou as eleições federais, estaduais e municipais e instituiu a representação proporcional.

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Fonte: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/15481:cnj-bate-marca-de-50-mil-seguidores-no-twitter.

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A Constituição de 1934 constitucionalizou a Justiça Eleitoral, com a seguinte organização: TSE, TREs, Juízes singulares e juntas especiais para as eleições municipais (SANSEVERINO, 2007, p. 129). Atribuiu jurisdição eleitoral plena aos juízes vitalícios, na forma da lei (art. 82, § 7º. Estabeleceu a competência privativa da Justiça Eleitoral para o processo das eleições federais, estaduais e municipais, inclusive a dos representantes das profissões (art. 83, caput) competência essa que ia desde organizar a divisão eleitoral do país até o poder de decretar a perda do mandato legislativo, passando pela competência para processar e julgar os delitos eleitorais e os comuns que lhes fossem conexos. Dispôs, também, sobre o alistamento, direitos políticos e inelegibilidades (arts. 108 a 112), assim como sobre as eleições para Presidente da República, art. 52 (CÂNDIDO, 2006, p. 28). Em 1937, Getúlio Vargas deflagrou um golpe de Estado, instituindo a Ditadura do Estado Novo. Durante esse período, as eleições e os partidos políticos foram abolidos, assim como todos os órgãos que respondiam pela Justiça Eleitoral. No entanto, ainda na era Vargas, mas acompanhando uma nova ordem político-econômica, a Justiça Eleitoral foi reinstalada em 28 de maio de 1945, por meio do Decreto-Lei 7.586, passando a integrar a Carta Magna. A Constituição de 1988 regulou os direitos políticos (arts. 14 a 16) e dispôs sobre partidos políticos (art. 17), manteve a Justiça Eleitoral dentro do Poder Judiciário, como um de seus órgãos (arts. 92, V e 118 a 121). Regulou amplamente a eleição para Presidente e Vice-Presidente da República, indicando as substituições e seu processo, nos casos de impedimento e vacância. O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias contém vários artigos referentes ao Direito Eleitoral, mormente sobre pleibiscito, mandatos e eleições (arts. 2.º, 4º e 5º, etc.) (CÂNDIDO, 2006, p. 29). Do passado para o presente, muita coisa mudou, pois houve um tempo em que as cédulas eram feitas pelos próprios partidos, dadas ao eleitor e este votava, depositando-as na urna. Hoje, existe a urna eletrônica, que dispensa cédulas e papéis e quiçá, no futuro, o smart card – cartão inteligente – que com ajuda de scanner, reduz o número de servidores eleitorais, restaura o voto em trânsito em todo o território nacional e protege a vida de servidores, já que o processamento de dados não é mais necessário na zona eleitoral e sim diretamente do computador para o TSE, via intranet (CERQUEIRA, 2006, p. 102).

5.1 Tribunais Regionais Eleitorais O Tribunal Regional Eleitoral (TRE) é o órgão do Poder Judiciário, encarregado do U

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gerenciamento das eleições em âmbito estadual. Tem seu funcionamento regido pela lei 4.737 de U

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1965.

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Segundo Almeida (2009) os TREs são os órgãos jurisdicionais de segundo grau de jurisdição da Justiça Eleitoral e tem sede na capital dos Estado e no Distrito Federal com jurisdição no respectivo território. O artigo 120 da Constituição Federal determina que haverá um Tribunal Regional Eleitoral U

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na capital de cada estado e no Distrito Federal8. T

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Segundo Almeida (2009) na legislação brasileira, cabe aos TREs o controle e fiscalização de todo o processo eleitoral sob sua jurisdição, desde o registro de cada diretório regional dos partidos políticos até a impressão de boletins e mapas de apuração durante a contagem dos votos. Além disso, o TRE é responsável pelo cadastro dos eleitores, pela constituição de juntas e U

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zonas eleitorais e pela apuração de resultados e diplomação dos eleitos em sufrágios em nível U

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estadual. Por fim, o TRE também deve dirimir dúvidas em relação às eleições e julgar apelações às decisões dos juízes eleitorais. U

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5.2 Tribunais eleitorais nas redes sociais Seguindo o mesmo caminho trilhado pelos demais órgãos da justiça brasileira os tribunais eleitorais passaram a criar perfis em redes sociais para permitir uma aproximação com a população. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) criou em 22 de abril de 2010 o seu perfil do twitter com caráter informativo, no qual apresenta informações de interesse do eleitor, de candidatos, partidos políticos, jornalistas e advogados, como prazos do calendário eleitoral, propaganda partidária e eleitoral, decisões da corte, iniciativas da Justiça Eleitoral, entre outras9. T

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Pela eficiência, rapidez da disseminação e pela forma organizada na apresentação das informações, o perfil passou a ser uma importante fonte para jornalistas e cidadãos que podem se atualizar sobre a Justiça Eleitoral e assuntos relacionados à instituição. No mesmo caminho trilhado pelo TSE foram seguindo os Tribunais Regionais Eleitorais. Pouco antes das eleições de 2010 o Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina passou a contar com duas ferramentas de comunicação na internet para a divulgação de notícias e

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CF/88 - Art. 120 - Haverá um Tribunal Regional Eleitoral na Capital de cada Estado e no Distrito Federal. § 1º - Os Tribunais Regionais Eleitorais compor-se-ão: I - mediante eleição, pelo voto secreto: a) de dois juízes dentre os desembargadores do Tribunal de Justiça; b) de dois juízes, dentre juízes de direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça; II - de um juiz do Tribunal Regional Federal com sede na Capital do Estado ou no Distrito Federal, ou, não havendo, de juiz federal, escolhido, em qualquer caso, pelo Tribunal Regional Federal respectivo; III - por nomeação, pelo Presidente da República, de dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça

9

Fonte: http://www.tre-sc.gov.br/site/noticias/noticias-anteriores/lista-de-noticias-anteriores/noticiaanterior/arquivo/2010/abril/artigos/noticias-do-tse-serao-divulgadas-no-twitter-a-partir-desta-quinta-22/index.html

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informações da Justiça Eleitoral ao público. Uma delas é o Twitter, através do perfil "TRESCjusbr", U

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e a outra é o YouTube, com o perfil "canalTRESC"10. U

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Neste ano o twitter do TRE/SC completou um ano e o perfil do Tribunal é acompanhado atualmente por 1.403 seguidores, o que representa a 2ª maior marca entre os 12 TREs que já têm conta, e lidera o ranking de mensagens postadas, com 1.873 tuítes, quase 800 a mais do que o 2º colocado. No YouTube, o perfil do Tribunal hospeda os vídeos do TRE Notícias, com matérias jornalísticas e educativas. A conta dispõe, no momento, de 53 vídeos, que foram vistos 11.632 vezes até a tarde de sexta-feira (30/09). Cada vídeo tem, na média, cerca de 220 exibições11. T

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O Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul (TRE-RS) inaugurou seu perfil no site Twitter em 12 de abril de 2010. As notícias produzidas pela Assessoria de Comunicação Social do TRE-RS podem ser acessadas pelo endereço http://twitter.com/TRE_RS. Além disso, o TRE/PR, U

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TRE/SP, TRE/RJ, TRE/MG, TRE/PB, TRE/PE, TRE/RN, TRE/AC, TRE/GO e TRE/MA também possuem perfis no twitter com divulgação das principais notícias. Assim, dos 27 tribunais eleitorais no Brasil, 12 deles possuem perfil no twitter, 8 tem feed de notícias no RSS e apenas 1 possui conta no facebook. Apesar dos perfis na sua maioria contarem com publicações informativas já é um grande avanço no caminho das tecnologias pelos tribunais eleitorais. Quem sabe o próximo passo seja criar, a exemplo do TRE/SC uma conta no facebook, a qual permite uma maior participação por parte da população que, além de ler as principais notícias veiculadas pelo tribunal podem ainda fazer comentários em tempo real. O bom será quando os serviços também puderem ser solicitados e atendidos via redes sociais, por enquanto os atendimentos ainda são feitos por telefone ou pessoalmente. Como a interface do Twitter é simples e as mensagens têm tamanho máximo de até 140 caracteres, a rede tem demonstrado grande potencial para uso nos atuais aparelhos de celular, conhecidos como smartphones, considerados por muitos profissionais da área de tecnologia como o futuro da comunicação. A mobilidade permite o aprimoramento da comunicação do Judiciário com a sociedade, de forma ágil e democrática.

6. A informação para construção da democracia participativa As discussões sobre participação política na sociedade contemporânea e a sua relação com as novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), principalmente a Internet, têm 10

Fonte: http://www.tre-sc.gov.br/site/noticias/noticias-anteriores/lista-de-noticias-anteriores/noticiaanterior/arquivo/2010/setembro/artigos/tresc-passa-a-divulgar-noticias-e-informacoes-no-twitter-e-no-youtube/index.html

11

Fonte: http://www.tre-sc.jus.br/site/noticias/noticias-anteriores/lista-de-noticias-anteriores/noticiaanterior/arquivo/2011/setembro/artigos/perfis-do-tresc-no-twitter-e-youtube-completam-um-ano-cominformacoes/index.html

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permeado uma parte significativa da literatura sobre ciberespaço e política, sobretudo a partir da década de 1990. Segundo Silva (2006) as características comunicacionais da Internet - maior capacidade de armazenamento e distribuição de informação, conciliada com a possibilidade de interação em tempo real; convergência dos mais variados formatos de mídia (imagem, som, escrita etc) - tem levado um grande volume de autores a configurar o ciberespaço como uma ferramenta potencializadora para o estabelecimento de formas mais participativas de ação política do cidadão nas democracias de massa contemporânea e na melhoria da qualidade democrática na relação entre sociedade civil e governos. Para Frey (2001) a internet permite um acesso mais rápido e eficiente ao conhecimento, possibilitando novas práticas de intercâmbio de informações, conceitos e abordagens, ou seja, um acesso livre a uma gama gigantesca de informações. O que, potencialmente, facilitaria a geração de cidadãos mais bem informados e capacitados para se inserirem no processo político. Além disso, Gomes (2005) afirma que a internet permite que os internautas divulguem aquilo que meios industriais de notícias não conseguem, não querem ou não podem divulgar, o que permitiria superar a informação industrial. Essa informação ainda poderia ser mais sofisticada se comparada aos meios antigos de comunicação pela possibilidade de se usar texto, imagem, som e vídeo de acordo com a necessidade em particular. Assim, a informatização do judiciário, com a disponibilização das informações no meio eletrônico, principalmente nas redes sociais poderá se tornar um meio no qual os indivíduos passem a acompanhar todo o processo. E ainda, através dos canais de comunicação gerar mecanismos para que o cidadão não apenas acompanhe as informações, mas também participe de forma interativa com os tribunais, e isto sim, poderia gerar cidadãos comprometidos com a justiça e a cidadania o que levaria ao fortalecimento da democracia.

7. Conclusão Com o desenvolvimento das novas tecnologias da informação e comunicação e o surgimento da sociedade da informação os indivíduos passaram a sofrer transformações cotidianas. Na atualidade tudo muda muito rápido, valores se desfazem e/ou se modificam, dissolvemse fronteiras e desenraizam-se as coisas, as gentes e as idéias, trazendo com isso, diferentes implicações sociais em que emergem novas formas de participação dos cidadãos, bem como busca-se sensibilizar as pessoas, cada vez mais, para questionar, intervir e buscar de forma autônoma a apropriação das novas ferramentas tecnológicas.

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Após a informatização do Poder Judiciário e sua entrada na rede mundial de computadores, não restam dúvidas que se ampliou o acesso à justiça e se deu um grande passo para a modernização dos serviços judiciários, permitindo que a tutela jurisdicional fosse prestada em tempo razoável. O uso intensivo dos recursos tecnológicos no sistema judiciário constitui um meio relevante para a modernização da administração da justiça e para a sua democratização, a fim de acompanhar a dinâmica das relações econômicas e sociais dos novos tempos. As mídias e redes sociais se tornaram uma ferramenta eficiente de comunicação, garantindo informações diretas, rápidas e em primeira mão para os seguidores das redes. Os Tribunais eleitorais já começaram a utilizar essas redes para se aproximar de seus públicos, mas muito há que se fazer ainda, com trabalhos voltados para a inclusão digital, no qual mais pessoas possam ter acesso a esses recursos e ao final se consiga desenvolver uma sociedade realmente democrática.

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Justiça e jornalismo: Freeport e Casa Pia, casos portugueses Josuel Mariano da Silva Hebenbrock1 T

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Resumo

Abstract

A constituição portuguesa de 1976 nao assegura apenas em seu artigo 37° a liberdade de expressão e informação como direitos fundamentais e sim também, mostra uma ideia de igual hierarquização entre os direitos. O trabalho ora aqui exposto busca analisar dois casos de relevância internacional, onde o jogo entre jornalismo e justiça atingiram ápices de discordãncias. O primeiro, se refere ao processo ‘Casa Pia’ iniciado em setembro de 2002 após uma denúncia na imprensa portuguesa sobre a violação sexual de um menor, por parte de pessoas públicas. Este processo foi concluido no mesmo mês de 2010. O segundo, se refere ao caso ‘Freeport’, onde jornalistas de diversos meios de comunicação portugueses são envolvidos supostamente em violação do segredo de justiça. A metodologia usada neste trabalho será a descritiva, tendo como aporte teórico estudiosos como: Salazar Casanova, (2004) mostrando a justiça e o jornalismo judiciário em suas perspectivas jurisprudenciais, José Rebelo (2010) analisando a exposição da privacidade, intimidade e violência na imprensa portuguesa e Sara Pina (2009) analisando o processo Casa Pia. O presente artigo permea a problemática de como é possível informar ou ser informado sem discriminação do direito de livre expressão do pensamento?

The Portuguese Constitution of 1976 not only provides in its Article 37 the freedom of expression and information as fundamental rights but also shows the same idea of a hierarchy of rights. The work exposed here now is to analyze two cases of international significance, where the interplay between journalism and justice reached heights of disagreement. The first refers to the process 'Casa Pia' started in September 2002 following a report in the Portuguese press about the rape of a minor, by public persons. This process was completed in the same month of 2010. The second case refers to the 'Freeport', where journalists from different Portuguese media are involved allegedly in violation of secrecy. The methodology used in this study will be descriptive, with the theoretical support scholars as Casanova Salazar (2004), showing fairness and justice in their journalism jurisprudential perspectives, Jose Rebelo (2009) analyzing the exposure of privacy, intimacy and violence in the Portuguese press and Sara Pina (2009) analyzing the process Casa Pia. This article permeated the issue of how you can inform or be informed without discrimination the right to freedom of speech?

Palavras-Chave: Liberdade de Expressão; Liberdade de Informação; Justiça; Portugal.

Keywords: Freedom of Expression, Information, Justice, and Portugal.

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1 Doutorando em Comunicação Política/Espanha, [email protected]. Investigador visitante júnior do ICSUL – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/Portugal e integrante do Núcleo de Estudos e Ações sobre Democracia e Direitos Humanos (NEADDH), da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco/ Brasil. TU

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1. Introdução A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em Lei. (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789. IN: Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano. 54. 1994, p. 39)

Partindo de uma perspectiva generalista não será conflituoso afirmar que à relação do jornalismo com o aparato judicial e em particular com o criminal tenha uma relação de colaboração. Se observarmos o jornalismo se nutre do aparato judicial com suas instituições criminais para dar visibilidade a suas “histórias.” É também através do reproduzir destas histórias que o jornalismo assume seu papel fundamental na sociedade moderna ocidental. Na visão de (ERICSON et al., 1991) os media constituem-se assim como lugar privilegiado para a representação da autoridade simbólica. Assim pode-se concluir que é através do jornalismo que a sociedade toma conhecimento dos crimes mais importante da época, das mazelas sociais e as ameaças que circundam o dia-a-dia do cidadão. Dentro da categorização jornalística, uma das, que se destaca pelo seu envolvimento judicial é o “Jornalismo Investigativo,” pela sua precisão informacional e sua forma rebuscada de trazer a tona os fatos que por muitas vezes necessitam de técnicas e métodos específicos desta categoria. (HEBENBROCK, 2006). Nas páginas periodísticas, também se pode encontrar conflitos culturais, marcados pela época que são postos em jogo pelo aparelho judicial e pelas instituições criminológicas. Mesmo a relação, “jornalismo – justiça” servindo muitas vezes interesses comuns, essas mesmas instituições assumem por vezes características diversas. Nem sempre as lógicas que presidem aos regimes de funcionamento de jornalistas e de profissionais do aparelho de justiça se equacionam de modo complementar, nem tão pouco o tempo e os objetivos dos jornalistas se relacionam pacificamente. Nesta mesma perspectiva, temos que levar em conta diferenças cruciais entre os media e o aparelho judicial em relação as suas normativas, onde os primeiros são colocados em uma dependência hierárquica em relação ao segundo. Mesmo o jornalismo tendo seu código deontológico, isto não lhe conferi está acima do aparelho judicial, o qual vela pela ordem e pela lei “Direito”. Para Araújo (2009) Direito e Deontologia são na verdade, lentes normativas pelas quais o papel do jornalismo pode ser analisado. Em termos genéricos, pode-se afirmar que o direito delega ao jornalista o que se pode fazer e o que não se poder fazer, enquanto, a deontologia, o que deve fazer e o que não se deve fazer, (dever/poder). O artigo que se segue está organizado em três capítulos, sendo o primeiro uma explanação da relação de poder entre justiça e jornalismo em uma forma genérica, dando ênfase ao jornalismo investigo, por ser esse um dos gêneros mais próximo ao poder executivo, na concepção do autor do texto. Como bem explica Nelson Traquina (2001), a opinião pública reconhece o JI como o quarto poder. Também é neste capítulo, onde se nota com mais clareza o enquadramento teórico do texto. Já o segundo e o penúltimo capítulo se 951

referem aos estudos de casos, Casa Pia e Freeporte, os quais serão analisados sob a luz da justiça portuguesa. Casos esses, que não só chamaram a atenção da população em Portugal, como também da comunidade internacional pela projeção dos fatos. Nas considerações finais, fazemos uma análise do resultado dos processos: Casa Pia e Freeport emitidos pelos media locais e pela justiça.

2. Justiça e Jornalismo: uma relação de poder Todo o individuo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão. (Jorge Sampaio, Expresso, 18.02.2003).

A categoria de jornalismo que mais se aproxima do aparato judicial é o jornalismo investigativo, isso, devido suas técnicas e métodos de investigação. Para muitos pesquisadores da comunicação sejam eles, nacionais ou internacionais, essa breve categorização é redundante, até por que para muitos deles, toda a classe de jornalismo já carrega consigo o seu teor de investigação (JANISCH, 1998; SÔNIA PADILHA, 2003; MARCET, 1998). Porém, os jornalistas investigativos redefinem e implementam novas ferramentas e métodos de investigação que faz desse campo de trabalho algo diferente. Os professores da ECA-USP, Dirceu Fernandes Lopes e José Luiz Proença (2003: 12) conceituam e definem o jornalismo de investigação em três linhas básicas: ● o jornalismo é produto da iniciativa pessoal; ● reportagens especiais; ● assuntos de interesse público que algumas pessoas ou instituições querem manter em segredo. Para o pesquisador, um trabalho jornalístico só pode ser considerado verdadeiramente de investigação quando ele cumpri três requisitos básicos: ● que a investigação seja resultado do trabalho do jornalista, não informação elaborado por outras áreas. Por exemplo, a justiça; ● que o objetivo da investigação seja razoavelmente importante para a maioria da população, não por exemplo, para os interesses de determinados sectores; ● que

os investigados tentem esconder esses dados do público. Quando há ocultação, a

consciência não está tranqüila. Uns dos grandes obstáculos enfrentados pelos profissionais praticantes deste tipo de jornalismo acima mencionado são com as fontes de informação e a veracidade dos factos. Já, um dos pontos de discordância entre a Justiça e o Jornalismo, neste caso o investigativo, é a falta de incentivo financeiro por parte das empresas de comunicação e o “Deadline” enfrentado pelos profissionais. Enquanto as instituições judiciárias contam com o apoio de Governos Federais, as 952

empresas de comunicação ficam a mercê, das iniciativas privadas ou públicas, sendo assim mais fácil o envolvimento dentro de uma perspectiva “Cala Boca, Jornalista!”2. T

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Neste ponto pode-se averigua uma das diferenças cruciais entre o jornalismo e a justiça em sua forma de investigação. A justiça por ter seus parâmetros embasados na lei e por ter o dever de zelar pela mesma, colocando a ordem na sociedade não pode divulgar factos que não tenham sido anteriormente comprovados. No caso da imprensa, ela mesma deveria seguir essa ordem judicial, principalmente se tratando de caso de investigação. Porém, como já foi mostrado e publicado, há vários exemplos onde jornalistas cometeram erros irreparáveis, por falta de profissionalismo ou experiências trabalhistas. Um dos casos mais emblemáticos aqui no Brasil foi o ocorrido pela Folha de São Paulo em março de 1994, quando o jornalista, Marcelo Godoy com título de repórter especial publicou uma matéria no caderno “cotidiano” tendo por título “Escola é acusada de prostituição” condenando previamente a direção da Escola Base por abuso sexual de menor. O erro, em que inquiriu o repórter foi publicar uma matéria deste teor, sem ao menos ouvir a outra parte e sem cruzamento das informações já obtidas, como reza a cartilha do jornalismo investigativo. Após três meses de o fato ser publicado, saiu o laudo pericial da justiça comprovando a inocência dos proprietários da escola e levando o jornalista a um processo judicial imputado no crime de injuria e difamação, mais, uma causa trabalhista levando-o a uma demissão por justa causa. Este tipo de comportamento, ou melhor, formulando, este tipo de erro não ocorre apenas no Brasil. A tese de mestrado apresentada em 2009, no Instituto de Estudos Jornalísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pela aluna Claudia Silva Araújo mostra no decorrer de seu trabalho não só a questão de visibilidade midiática da justiça, entrando em cooperação com o jornalismo, como também explicita em suas conclusões justamente a quantidade e qualidade de crimes em que os jornalistas portugueses são inquiridos. A autora traz em sua tese um panorama histórico-jurídico dos crimes de abuso de liberdade de imprensa desde 1820. Outro tópico importante do trabalho da autora e que pode nos ajudar a clarear o nosso ponto de discussão neste artigo é em relação aos crimes: contra a honra, difamação, injuria, devassa da vida privada, gravações e fotografias ilícitas, violação de segredo de justiça. Alguns desses crimes são perceptíveis nos dois casos a seguir, ou seja, Casa Pia e Freeport.

3. Casa Pia, onde os papéis se mesclam É necessário que os operadores judiciários respeitem o segredo de justiça como é imprescindível que os órgãos de comunicação compreendam que não podem pactuar com uma situação que afecta os princípios essenciais do Estado de Direito, como o principio da presunção de inocência. (Cavaco Silva, Público: 21.07.2011)

2

Titulo do Livro do autor Fernando Jorge. Petrópolis – Rio de Janeiro, editora vozes, 1987.

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Manchetes como: “Jornalistas personas non grata” (Público, 19.07.2011), “Secretário-geral do PSD regional insulta jornalista” (Diário de Noticias da Madeira, 18.07.2011), “Informação desprotegida: a detenção de Manso Preto foi inédita. Mas outros três jornalistas estão intimados a revelar fontes” (Expresso, 28.09.2009) “Aumenta processos contra jornais e jornalistas” (Público, 30.06.2010) e “Presidente Cavaco Silva pede uma relação transparente, disciplinada e serena entre a justiça e a comunicação social” (Agência Lusa, 14.06.2011) se tornaram comuns nos meios de comunicação no Estado Português. Ou seja, a relação de cooperativismo entre justiça e jornalismo, ora harmoniosa, ora contundente parece se romper. No final de novembro de 2002, o semanário Expresso publicou uma reportagem, assinada pela jornalista, Felícia Cabrita, cuja manchete fora antecipada um dia anterior pela televisão portuguesa Sic. A matéria explicava que centenas de crianças do sexo masculino dos colégios da Casa Pia de Lisboa teriam sido violentadas sexualmente ao longo dos últimos anos. A reportagem tinha como ponto de partida uma queixa-crime apresentada pela mãe de um adolescente contra um funcionário da instituição. Um dia após a publicação dessa matéria, a secretária de Estado da Família, Tereza Costa Macedo confirmou em um canal televisivo (TVI) que o funcionário envolvido fazia parte de uma rede de pedofilia, onde grande parte dos envolvidos eram pessoas do meio político, artístico, diplomático e jornalístico. O escândalo Casa Pia foi durante, os dois anos que duraram as fases de inquérito e instruções judiciais, noticias freqüentes de abertura dos jornais televisivos e manchetes quase diária da imprensa escrita, indo da popular a imprensa de referência. Essas informações relançaram junto à opinião pública a questão dos abusos sexuais sobre menores convertendo-se na investigação judicial mais comentada da democracia portuguesa. Para o articulista da revista semanal Focus, Andre Macedo, (04.06.2003). “A pedofilia, instalou-se na sala de estar de todas as famílias e o resultado é devastador: já não é possível acreditar em ninguém”. Com efeito, desde a publicação da reportagem pelo diário Expresso, as rádios e os canais de televisão envolveram-se numa agressiva competição informativa sobre todas as incidências do caso, desenvolvendo investigações paralelas à investigação judicial. Essas denúncias revelaram excertos de peças processuais em segredo de justiça e suscitaram tomadas de posição do presidente da república, primeiro-ministro, ministros da segurança social e do trabalho (com tutela da Casa Pia) e da justiça e outras entidades públicas. Pela relevância do caso, quatro dias após a publicação da primeira matéria, a Assembléia da República promoveu um debate parlamentar sobre o caso e a emoção por ele suscitada em que a tónica dominante entre maioria governamental e oposição foi a da necessidade de punir exemplarmente os responsáveis. A movimentação causada pela imprensa levou o descontentamento de uma classe política, como no caso da jornalista e deputada do partido social democrata (PSD) Maria Elisa, que acusava as televisões de promoverem um “voyeurismo mórbido” ao divulgar informações desnecessárias sobre suspeitas de abusos sexuais na instituição, pedindo que essas reportagens 954

passem em horários mais tardios. A ala do bloco de esquerda requeria que fossem ouvidos no parlamento todos os secretários de estado que, desde 1980, tiveram a tutela da Casa Pia. Todos os dias os jornais se enchiam de noticias sobre o fato “Casa Pia” sucedendo com isto, novas demissões, declarações contraditórias e chocantes testemunhos de vítimas denunciando personagens que iam desde políticos, jogadores de futebol, produtor televisivo, médicos passando por cientistas sociais, jornalistas e atingindo diplomatas locados no exterior. (PINHA, 2009). Durante o período em que se estendeu o processo “Casa Pia”, vários estudiosos da comunicação e da jurisprudência portuguesa abordaram o tema em vários livros e artigos acadêmicos publicados em revistas de renome. Para Rabelo (2010: 80): se assistiu a um verdadeiro diálogo entre advogados por interpostos jornais, ao mesmo tempo que a cobertura jornalística do caso suscitava de parte a parte processos por difamação e abuso de liberdade de imprensa. De acordo com os seus interesses, as partes usam tanto a imprensa contra a justiça como a justiça contra a imprensa.

Como se nota na citação acima, um dos tópicos mais suscitado era a relação jornalismo – justiça. Na visão de Backett e Sasson (2000) defendida por Salas (2005) as análises das noticias da imprensa escrita, sugeria a existência de duas grandes linhas de orientação na cobertura midiática do caso, uma tratando-o predominantemente da perspectiva do sofrimento das vítimas, ‘suscitando sentimentos contraditórios de cólera e piedade’ e transformando a piedade em veemência justiceira. De acordo com dados revelados em um estudo recente do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia CIES/ISCTE- Instituto Universitário de Lisboa, publicado em 2010 mostra que, privacidade, intimidade e violência na imprensa vêm comandando os noticiários jornalísticos. O estudo ainda revela que teoricamente, pressupõe-se que o grau máximo de violação da privacidade de alguém é atingido quando, indicadores como: sexo, localidade, imagem, idade, nome profissões e antecedentes criminais são nomeados em uma peça jornalística. Já a intimidade só é violada quando teoricamente indicadores como: grau vida conjugal/vida familiar, condições físico-psicológicas, ligação amorosa hábitos, consumo de drogas e rotinas são expostas em matérias jornalísticas.

4. Freeport o segredo de justiça A investigação criminal não deve ser perturbada por fugas de informação ou interferências externas, a investigação criminal tem que prosseguir o seu caminho até o fim, com eficiência e tranqüilidade. (José Sócrates, Correio da Manha: 18.06.2008)

O caso Freeport teve sua origem em suspeitas de corrupção (ativa e passiva), branqueamento de capitais, financiamento ilegal de partidos políticos e tráfico de influencia no início de 2009 envolvendo o ex- primeiro ministro José Sócrates, o qual na época ocupava a pasta 955

do ministério do meio ambiente. O caso tomou as páginas dos jornais portugueses pelo fato de haver uma alteração à zona de proteção especial do estuário do Tejo para a construção do espaço comercial em Alcochet. Entre os argüidos no processo estavam desde empresários britânicos e portugueses, como: Charles Smith e Manuel Pedro, como também pessoas que possuíam cargos políticos e profissionais liberais como: o arquiteto Capinha Lopes, o expresidente do Instituto de Conservação da Natureza, Carlos Guerra, entre outros. A natureza do fato só veio tomar proporção internacional, quando o nome do ex-ministro José Sócrates foi envolvido no processo, e o de José António Cerejo, o JAC, um jornalista do jornal o Publico foi constituído como assistente no processo do Freeport3. A comunidade de T

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profissionais da comunicação passaram a observar este fato com desconfiança. Primeiramente, pelo fato de como assistente no inquérito judicial, o jornalista assistia a um intenso e sistemático tratamento, descontextualizado e segmentado dos documentos e informações que estavam sendo produzidas. Segundo, por ferir o código deontológico português, onde o profissional da comunicação não pode passar a exercer fora de seu âmbito legal (jornalista), o papel de fonte. Isto sim, apenas delegado ou inquirido por lei (Direito). Terceiro, estaria em ‘jogo’ a credibilidade do jornal, para o qual o profissional trabalhava. Com a quantidade de matérias jornalísticas que foram publicadas ao dia, sobre o caso Freeport, aumentaram também o numero de processos judiciais contra jornalistas e órgãos de comunicação. Tem-se como exemplo o ex- primeiro ministro, José Sócrates que instaurou em abril de 2009, nove processos contra jornalistas4 em sua maioria abordando o crime de difamação T

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artigo (180) e injuria artigo (181) do código penal de 1982. Para uma maior clareza dos crimes buscaremos nas palavras do desembargador, Salazar Casanova (2004: 870) uma explicação mais sucinta: No caso de ilícitos penais está em causa a ofensa de valores em que, para além da lesão individual, a comunidade também se considera afectada e, portanto, incube-se de reagir oficiosamente (crimes públicos) ou na seqüência de queixa (crimes semi-públicos); no caso de crimes particulares (é o caso, em regra, dos crimes de injuria e de difamação: artigos 180 e 181 do código penal de 1982).

Analisando o caso Freeport sob a luz do direito de informar Salazar (2004) explica que o caso de o relato de uma determinada ocorrência pode parecer prima facie inteiramente legitimado (v.g. denuncia de negócios privados passados entre uma figura política marcante na área financeira do executivo e empresário de uma empresa concorrente a uma empreitada de obras

3

A constituição de assistente em processo penal torna o assistente em auxiliar do Ministério Público na prossecução do jus puniendi em relação ao delito cometido. O assistente não pode estar no processo disfarçado de outra qualidade sobreponível ou não, no caso não pode estar no processo na qualidade de jornalista disfarçado e para aí vir a ter acesso privilegiado a documentos nele produzidos, com a exclusiva intenção de os vir a tratar num processo paralelo de comunicação social e sem as regras inerentes à sua produção e contexto processual, em manifesta posição de fraude à lei e a valores como o princípio da legalidade, com ancoragem no ordenamento jurídico-penal e constitucional. José Augusto Rocha. Público: 29.08.2010. http://www.clubedejornalistas.pt/?p=3121. Acessado em: 20.09.2011. TU

4

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Cinco jornalistas foram da TVI, três do Público, e do Diário de Noticias.

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públicas) à luz do direito de informar.

Diante dessa contextualização Salazar lança duas

perguntas seguidas de resposta para automaticamente concluir o seu pensamento referente à harmonização do direito. ● O direito de informar estará porventura legitimado quando não é exercido com isenção por ser privilegiar o intuito persecutório ou por se discriminar, com base num puro arbítrio, aquele que vai ser denunciado publicamente daquele que o não vai ser? ● Ou, pelo contrário, não há que atender à omissão do fato que poderia ter sido relatado, e não foi, importando apenas analisar o fato relatado para se saber se é verídico e a sua divulgação fundada em efetivo interesse legítimo? (SALAZAR, 2004: 875) Para o desembargador, se o direito de informação tem assento constitucional, também a constituição consagra, no artigo 26, entre outros, o direito ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar igualmente tutelados pela lei civil no artigo 70 e seguintes do código civil. O jurista, Salazar concordando com Vieira de Andrade (1987) ainda afirma que essa harmonização realiza-se por meio do princípio da concordância prática executado através de um critério de proporcionalidade, exigindo-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros.

5. Considerações finais De acordo com a conclusão que Araújo (2009) chegou a sua tese de mestrado é que a maioria das pessoas que instaram processos judiciais contra os Media, em sua maioria termina não utilizando o direito de resposta, assegurado por lei. Já a lei de imprensa (Lei n.° 2/99, de 13 de Janeiro) prescreve a observância e punição nos termos gerais quer se trate de responsabilidade civil, quer se trate de responsabilidade penal, embora com a agravação, no caso de crimes cometidos através da imprensa, de um terço da pena nos seus limites mínimo e máximo (artigo 30.°/2 da Lei n.° 2/99). Para Salgado Zenha (2003) quando se excede o âmbito do direito de informação a conduta é ilícita. Ou melhor: a ilicitude dá-se quando o direito de informação se exerce por forma a ofender direitos da personalidade. Partindo dessa explanação pode-se entender que as restrições só se põem quando o direito de informar é posto em confronto com a necessidade de tutelar a honra ou outros direitos da personalidade. Conclui-se que ao Direito não interessa o tipo de atividade informativa exercida, ou seja, meramente noticiosa, literária, desportiva, humorística, etc, assim como lhe é indiferente a forma como a imprensa aborda os assuntos ressalvadas normas gerais de aviso do leitor sobre o conteúdo da publicação. Como salienta Casanova (2004), a necessidade de distinguir os casos em que a imprensa exerce uma função pública dos demais casos só interessa para efeito de ela ‘reivindicar uma particular proteção fundada na garantia jurídico-constitucional do direito de informação. 957

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Veja e PNDH-3: a teoria liberal sobre liberdade de expressão e de imprensa como discurso de justificação para a não regulação da mídia brasileira Lucas Grangeiro Bonifácio1 Igor Caio Alves de Miranda2

Resumo

Abstract

O seguinte trabalho analisará como a Veja, semanário de maior circulação no Brasil, tem se mostrado contrária ao Plano Nacional de Direitos Humanos. Nesse sentido, destacaremos os argumentos utilizados pela revista e iremos compará-los com as propostas realmente existentes no PNDH-3. Posteriormente, trataremos do argumento principal por ela utilizado, o de que em se tratando de liberdade de expressão e de imprensa, o Estado deve se abster de estabelecer qualquer regulação. A fim de verificarmos a legitimidade de tal discurso para o atual contexto brasileiro abordaremos, em traços gerais, a teoria liberal sobre liberdade de expressão e de imprensa, especialmente o tratado por Mill em sua obra “Sobre a Liberdade”. Posteriormente, verificaremos qual a atual situação do contexto midiático no Brasil, para então concluirmos se a Veja utiliza-se de tal discurso em congruência com a realidade ou apenas como um modo de justificar a não regulação da mídia brasileira.

The following text will examine how Veja, the biggest weekly magazine in circulation in Brazil, has been shown against the third National Human Rights Plan. On this way, we will compare the arguments used by Veja with the proposal that actually exists in PNDH3. Later, we will pick up the main argument used by that magazine which is, in other words, that when we refer anything about the freedom of speech and press, the State must refrain from making any regulation. In order to verify the legitimacy of such speech in the current Brazilian context, we will treat, in general, about the liberal theory of freedom of speech and press, especially the one treated by Mill in his “On Liberty”. Later, we will find which is the current Brazilian media situation, to finally conclude if Veja has used such speech in congruence with Brazilian reality or just as a way to justify the not regulation of Brazilian Media.

Palavras-Chave: Veja; PNDH-3; Liberdade de expressão.

Keywords: Veja; PNDH-3; Freedom of speech.

1 T

Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected].

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Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected].

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1. Introdução A grande mídia brasileira tem incriminado as diversas tentativas de estabelecer um marco regulatório da comunicação, veiculando-as como meio de o governo cercear a liberdade de imprensa. Aqui, cabe esclarecer que entendendo por grande mídia os grupos midiáticos nacionais que controlam a produção e difusão da informação e ao redor dos quais os meios de comunicação regionais orbitam, sendo exemplos as organizações Globo, Sílvio Santos, Amaral de Carvalho, Abril. Nesse contexto a Veja, revista de maior circulação do Brasil, tem constantemente se posicionado contrariamente a qualquer proposta do governo em regular a mídia. Foi o que aconteceu com a publicação do III Plano Nacional de Direitos Humanos que define, em sua diretriz 22, ações programáticas a fim de consolidar o direito à comunicação. A revista logo difundiu a ideia que tais propostas eram forma de o governo restabelecer a censura. Percebe-se que a revista utilizou a teoria liberal a fim de legitimar, no contexto atual, o caráter negativo das liberdades de expressão e de imprensa, ou seja, de abstenção do Estado. Entretanto a concepção de imprensa sobre a qual foi construída a teoria liberal é diversa da existente atualmente. Naquela época, a imprensa era organizada nos moldes da pequena indústria artesanal, enquanto hoje encontramos a mídia comercial de massas, com grande propensão à concentração midiática e à homogeneização da opinião pública. Dessa forma, a Veja utiliza a teoria liberal como discurso de justificação para a não regulação do espaço midiático brasileiro. Aqui, entendemos por regulação todo meio de se estabelecer uma política que democratize o acesso a mídia; ou ainda que busque fiscalizar e estabelecer meios para que os diversos meios de comunicação respeitem os direitos humanos. Inicialmente, apresentaremos quais as principais medidas sobre comunicação trazidas pelo PNDH-3 e o discurso da Veja sobre elas, a fim de comparar o que foi veiculado pela revista e o que o documento efetivamente dispunha. Num segundo momento, estudaremos o principal argumento utilizado pela revista, ou seja,o de que para garantir a liberdade de imprensa o Estado deve se abster de regular o setor midiático para que não incorra em censura. Tal estudo se dará primeiramente pela apresentação, em termos gerais, da teoria liberal sobre liberdade de expressão e de imprensa e da ideia de liberdade construída por Stuart Mill em Sobre a Liberdade. Posteriormente iremos opor esta teoria e o contexto sobre o qual foi construída a atual realidade da mídia brasileira e a finalidade que sua aplicação hoje persegue.

2. PNDH-3 O III Plano Nacional de Direitos Humanos (Decreto nº 7.037 de 21 de dezembro de 2009) é um conjunto de diretrizes visam a orientar a atuação do poder público no âmbito dos direitos humanos, rumo a sua efetivação. Teve como antecessores o PNDH I, publicado em 1996, que 960

davam ênfase aos direitos civis e políticos; e o PNDH II que, publicado em 2002, incorporava os direitos econômicos, sociais e culturais. O atual programa diferencia-se dos anteriores pelo foco na universalidade, interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos, propondo, assim, ações transversais e inter-ministeriais. Teve um processo democrático de formulação com a participação de aproximadamente 14.000 pessoas nas diversas reuniões empreendidas pelos estados, Distrito Federal, organizações da sociedade civil e poderes públicos. Nesse contexto se destaca a 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos que reuniu cerca de 1200 delegados e 800 observadores3. T

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Dentre as 25 diretrizes do documento, apenas uma, a 22, refere-se ao direito à comunicação. Ela busca a garantia do direito à comunicação democrática e acesso à informação. Divide-se em dois objetivos estratégicos, o primeiro visa a promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação sendo apresentadas ações programáticas como a criação de um marco legal para o respeito aos direitos humanos nos serviços de radiodifusão e a promoção de diálogo com o Ministério Público para proposição de ações a fim de suspender programações atentatórias aos direitos humanos. Já o segundo objetivo trata especificamente da garantia ao direito à comunicação e à informação, trazendo ações programáticas como a promoção de parcerias com entidades para a produção e divulgação de materiais sobre Direitos Humanos, além de incentivar pesquisas regulares com o objetivo de identificar violações de tais direitos na mídia. A Veja4, na edição nº 2184 de 29 de setembro de 2010, faz uma pequena descrição do que T

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entende ser o PNDH-3. Tal é apresentada dentro de uma matéria sobre supostas tentativas que o governo Lula teria empreendido para cercear a liberdade de imprensa, dentre as quais a revista enumera a tentativa de elaborar um Conselho Federal de Jornalismo e de “reforma do arcabouço jurídico que regula o funcionamento das TVs”, tentativas, na realidade, de regular a mídia. Inserida num quadro, cujo título é “Não foi uma, não foram duas, não foram três – Desde 2003, o governo Lula tentou cercear a liberdade de imprensa em pelo menos seis ocasiões” na página 79 da citada edição, a descrição do plano é assim apresentada “PNDH-3 (dezembro de 2009) O Programa Nacional de Direitos Humanos-3 veio disfarçado de pacote de providências de apelo humanitário, mas contrabandeava medidas que possibilitavam a cassação de concessões de emissoras de rádio e TV por comitês compostos de integrantes nomeados pelo governo. Caiu diante da reação da sociedade.” A revista se refere, em específico, à ação programática contida na letra a, do objeto estratégico I, da diretriz 22, cuja redação original dada pelo Decreto nº 7.037 de 2009 afirma:

3

BRASIL. Plano Nacional de Direitos Humanos III. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/pndh3/pndh3.pdf. Acesso em: 11 nov. 2011 4

Veja. A imprensa ideal dos petistas. Disponível em: http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx

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Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas.5 T

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O citado artigo 221 estabelece os princípios que a produção e a programação das emissoras de rádio atenderão: Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.6” T

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Sua regulação já era prevista pelo artigo 220 da Constituição Federal que em seu § 3º, inciso II diz competir à lei federal “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 2217”. Dessa forma, o PNDH-3 apenas reafirmou o compromisso da criação do marco T

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regulatório já contido na Constituição Federal, pois, para se realizar, qualquer proposta do PNDH3 deverá ser transformada em Projeto de Lei e ser aprovada pelo Congresso. Ademais, a revista afirma que o plano “contrabandeava medidas que possibilitavam a cassação de concessões de emissoras de rádio e TV por comitês compostos de integrantes nomeados pelo governo”. Ora cabe lembrar o disposto nos § 2º do art. 223: “O cancelamento da concessão ou permissão, antes de vencido o prazo depende de decisão judicial8”. A ação T

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programática prevê apenas que o desrespeito aos direitos humanos seria motivo para a cassação de concessão, entretanto tal não seria feito por um comitê de membros do governo, mas sim por decisão judicial, sendo atendidos os requisitos do devido processo legal. Percebe-se que a Veja utilizou o discurso liberal sobre liberdade de imprensa e liberdade de expressão, dando relevo a uma posição de abstencionismo que o Estado deveria incorporar, a fim de divulgar uma tentativa de regulação do setor como forma de censura empreendida pelo governo. Ademais, vê-se que a revista trata as concessões de radiodifusão como propriedade dos concessionários, esquecendo-se que são, na realidade, serviço público de competência da União, 5

BRASIL. Decreto nº 7.037 de 21 de dezembro de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm. Acesso em: 12 nov. 2011 6

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 45ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 162, 2011

7

ibid.,p.162

8

ibid.,p. 163

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a qual outorga a exploração do serviço a terceiros. Na condição de tal, cabe ao Estado intervir para assegurar o direito de todos à comunicação. A fim de verificarmos a legitimidade do discurso da Veja, que associa as diversas tentativas de regulação da mídia a tentativas do governo de censurar a imprensa, apresentaremos em traços gerais a teoria liberal sobre liberdade de expressão e de imprensa, especificamente o disposto por Mill em “Sobre a Liberdade”. Posteriormente contrastaremos tal teoria, o contexto em que foi desenvolvida e as finalidades perseguidas com a realidade do espaço midiático brasileiro e a finalidade com a qual tal teoria é hoje aplicada.

3. Teoria liberal Cabe iniciar com a distinção entre liberdade de expressão, de imprimir e de imprensa, termos utilizados com freqüência pela teoria liberal. Venício A. de Lima9 diferencia speech, printig T

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e press, que significam palavra, imprimir e imprensa respectivamente. A primeira se relaciona com a liberdade de expressão, ou seja, com o direito do homem à livre palavra, de expressar o que pense ser correto em qualquer área do conhecimento. A segunda se conecta à liberdade de imprimir, a qual é uma extensão da livre expressão. Ambas as liberdades tem em comum o titular do direito, o homem; entretanto são distintas em funções: a primeira diz respeito a exteriorização das convicções individuais em qualquer área, já a segunda é um dos meios técnicos que torna possível tal movimento. Por fim, surge a liberdade de imprensa (press) que diz respeito à liberdade de empresas, a mídia em sentido lato, de publicarem aquilo que considerem informação jornalística. Nos liberais clássicos é comum o uso de tais termos. Entretanto, deve-se sublinhar que a imprensa existente naquela época guarda poucas semelhanças com a atual. Era um negócio pouco lucrativo organizado aos moldes da pequena indústria artesanal. Além disso, a publicidade ainda não constituía forma de sustento de forma que a redação tinha autonomia10. T

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A liberdade de expressão e de imprensa, na teoria liberal, são direitos primariamente individuais exercíveis contra a opressão do Estado e, assim, para a emancipação do indivíduo. Tal se dá em dois sentidos, tanto no puramente humano onde se fala em autonomia, ou seja, ter convicções próprias, poder conformar sua vida e atitudes de acordo com elas e também poder divulgá-las sem sofrer qualquer tipo de censura por parte do Estado ou qualquer entidade; quanto no sentido político, abrangendo a democracia liberal, esta entendida como instrumento para a realização dos interesses do indivíduo independente. Assim, tem um cunho de participação política do homem na coisa pública, na gestão do Estado e sua submissão a vontade popular. Tal participação se daria pela formação de uma opinião pública crítica cujas funções seriam o controle 9

LIMA, Venício A. de. Liberdade de expressão x liberdade de imprensa: direito à comunicação e democracia. São Paulo: Publisher, p. 21, 2010 10

LÓPEZ, Modesto Saavedra. La libertad de expresión en el Estado de Derecho: entre la utopia y La realidad. Barcelona: Editorial Ariel, p. 80, 1987

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do exercício do poder e a mediação entre o Estado e as necessidades da sociedade, de forma a subordinar a atuação daquele às vontades desta11. Ademais, tal opinião pública deveria ser plural, T

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onde cada indivíduo teria a possibilidade de manifestar seu pensamento para que não incorresse na tirania da maioria, nas palavras de Mill. Assim, mesmo que toda a humanidade tenha uma opinião e uma única pessoa pense diferentemente do todo, não se deve silenciá-la, mas antes deixar que seja expressa12. Dessa forma, verifica-se que o principal objetivo da imprensa era a de T

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produzir publicidade dos atos políticos, questionar o poder tradicional e consolidar a liberdade em sentido geral. Busca-se, aqui, o fim de todo privilégio e o livre desenvolvimento do indivíduo. Então, de acordo com a doutrina liberal, qual seria a organização de tal imprensa. Ora, para tal corrente a liberdade é um dado natural e, assim, anterior ao Estado. Este apenas pode intervir para organizar o livre exercício de tais direitos, com o cuidado que a atuação de um não fira o igual direito do outro. Assim, por exemplo, difamação, calúnia teriam responsabilização judicial (ou penal). Ademais, sendo todos os indivíduos formalmente iguais, não poderia haver legislação que os discriminasse no exercício da liberdade de expressão, impossibilitando a existência de censura prévia ou autorização para imprimir. A única restrição existente seria a possessão dos meios necessários para seu exercício. Como todas as liberdades liberais, a de imprensa também possui sentido negativo, devendo assim ser acompanhada da liberdade econômica, necessitando os indivíduos de possuírem os meios para imprimir suas idéias13. T

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Assim, em face da tendência homogeneizante da atual imprensa comercial de massas é necessário apresentar a ideia de liberdade desenvolvida por Mill no seu “Sobre a Liberdade”. O inglês constrói a idéia desta em oposição à tirania da maioria, ou seja, trata da dicotomia liberdade versus autoridade, dos limites do poder que pode ser exercido pela sociedade sobre o individuo. Nesse sentido, desenvolve-se o conceito de tirania da maioria, que possui um âmbito social e outro político. Neste âmbito se relaciona com a ideia de representatividade desenvolvida na sociedade moderna, ou seja, a necessidade de o exercício do poder se dar por representantes do povo, eleitos, temporários e responsáveis. Entretanto, em geral não é todo o povo representado pelo governo, apenas a maioria dele. Já naquele âmbito, o social, Mill afirma que a massa que representa a maioria tende a ser intolerante com o novo, com a individualidade. Assim, impõe regras de conduta a sociedade e a obriga a seguir tal padrão por meio de sanções sociais acarretando na uniformidade de gostos, opiniões, valores. Tende-se a homogeneizar a sociedade em torno do despotismo do costume6. Por este nos referimos à expectativa do consenso social da obrigatoriedade daquela série de comportamentos, ou seja, da institucionalização deles, que se confirma pelo silêncio e acatamento daqueles que o praticam.

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ibid.,p. 58

12

Mill, Stuart. Sobre a liberdade. São Paulo: Hedra, p. 60, 2010

13

LÓPEZ, op. cit.,p. 62

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À tirania da maioria Mill opõe a individualidade. Por esta ele entende o fato de o homem ser plural, possuindo diferentes valores, sentimentos, desejos e podendo, assim, agir de diferentes formas e em diversas direções. Não é, portanto uma máquina construída com uma função, não podendo sair deste âmbito de atuação pré-determinado de ação, mas um indivíduo livre9. Além disso, apenas quando se assume aqueles valores e idéias individuais é que se adquire um caráter. O indivíduo deve, certamente, beneficiar-se dos conhecidos resultados da experiência humana, mas não deve a eles se limitar. Tendo atingido a maturidade de suas faculdades deve interpretar e recriar tais experiências ao seu modo. A individualidade está intimamente ligada ao desenvolvimento da sociedade. O valor da individualidade para o progresso está na originalidade que dela surge. Mill cita, aqui, Humboldt e afirma que em havendo uma variedade de situações associada com liberdade, esta se transforma em originalidade. O único limite imposto ao desenvolvimento das faculdades e ao cultivo da originalidade são aqueles impostos pelo mesmo direito de pleno desenvolvimento que os outros possuem. Coloca-se, então, a questão da liberdade de opinião e de expressão dela. Tal é dirigida, em primeiro plano, ao indivíduo, ou seja, abrange a possibilidade de ele seguir seus valores, idéias, percepções intelectuais. Ademais, a liberdade também beneficia os ouvintes do debate que se desenvolve entre as opiniões contrastantes, mas pelo ouvinte que terá a oportunidade de escutar ambos os lados e definir por si o que é a verdade, sem preconceitos e falsidades. Entretanto o debate não ocorre senão num ambiente plural e de livre expressão de todos. Ora, diante das perseguições a verdade nem sempre triunfa, ela não tem nada de inerente que a faça vencer naturalmente sobre o erro. Nesse sentido, a aplicação de penas legais e sociais será suficiente para interromper sua propagação. Daqui se deduz que para uma real liberdade de expressão é necessário um ambiente plural onde não haja repreenda contra as manifestações de opiniões, mesmo aquelas contrárias à dominante. O único limite de tal liberdade seria o igual direito do outro de se expressar e de se defender. Pode-se, ainda, perguntar o porquê de a liberdade de expressão ser tão importante para o desenvolvimento da sociedade. Nesse sentido, Mill esgrime quatro razões. Primeiro, há a possibilidade de uma opinião que seja silenciada ser verdadeira. Ao fazê-lo, assumimos a infalibilidade de nossa opinião. Por tal, entenda-se não o fato de se sentir seguro de uma doutrina, mas sim de se esforçar para resolver a questão pelos outros, sem deixas que ouçam os diversos lados existentes. Ademais, para assumir que uma opinião é verdadeira, o livre debate é pressuposto. O único fundamento da solidez de opinião é a possibilidade de que se possa provála infundada. Segundo, mesmo sendo a opinião silenciada um erro, ela pode conter parte da verdade, já que, em geral, a opinião dominante não possui a verdade completa. Esta apenas se alcança pelo conflito as opiniões contrastantes, que faz aparecer os erros e, assim, a verdade. Em terceiro lugar, mesmo que determinada opinião seja a verdade completa, caso ela não seja 965

apresentada com a possibilidade de ser contradita, será assimilada com pouca compreensão e preconceituosamente. Por fim, e em quarto lugar, ao se negar o debate põe-se em risco mesmo o significado da idéia, havendo a possibilidade de ela se enfraquecer e se tornar mero dogma14. T

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O ideário acima apresentado é o que a Veja afirma ser partidária, de modo a poder utilizar uma visão negativa da liberdade de expressão e de imprensa, ou seja, de abstencionismo do Estado. Assim, qualquer proposta de regulação do setor é logo tratada como censura, empecilho à livre difusão das idéias, passando a serem invocados os textos liberais sobre a liberdade. A questão é que a censura tratada nos textos liberais diz respeito àquela exercida pelo Estado contra a pluralidade de informações que impossibilitem o livre desenvolvimento do mercado de idéias e da opinião pública crítica. Atualmente, entretanto, com o desenvolvimento do mercado, o surgimento dos meios de comunicação de massa e a visualização da possibilidade de lucro com o uso de publicidade criaram uma tendência ao desaparecimento da pluralidade e à formação de monopólios. Esse é atualmente o efeito silenciador, a verdadeira censura. Além disso, interpretando teleologicamente tanto a teoria liberal quanto a proposta de regulação veremos que ambos intentam a formação de um espaço público e democrático de discussão, onde existam tantas vozes quantas opiniões existentes. Daí se deduz a contradição da Veja que adota a teoria liberal, mas ao mesmo tempo vai de encontro ao seu núcleo ideológico.

4. Realidade brasileira Vimos que a teoria liberal foi desenvolvida sobre um contexto em que a mídia era incipiente, funcionando nos moldes da pequena indústria artesanal. Além disso, era um negócio pouco lucrativo, já que a publicidade ainda não constituía fonte de financiamento. Temos também que a finalidade perseguida por ela era a criação de um espaço público de debate com fim a efetivar a participação política do indivíduo na direção do Estado. O contexto atual é diverso daquele sobre o qual foi idealizada a teoria liberal. Diferencia-se por diversos fatores, como o desenvolvimento de uma mídia comercial de massas, da concentração da mídia e da existência de uma política de outorga de concessões que favorece a propriedade cruzada e o coronelismo eletrônico. No final do século XIX encontramos em diversos países uma mídia cujo principal objetivo é o consumo e não mais a formação daquele ambiente de debate plural. Muitas foram as causas que para isso concorreram, mas três merecem destaque: o crescimento do número em potencial de clientes da imprensa graças ao maior acesso à instrução e ao voto; a introdução da publicidade como forma de financiamento; e a evolução tecnológica que permite a difusão mais rápida da notícia. As consequências foram a perda da independência da imprensa, já que a publicidade 14

MILL, op. cit.,p. 58-114

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estabelece suas regras e não mais se divulga o que é contra os grandes anunciantes; a tendência a homogeneização e da despolitização da opinião pública. Ademais, é restrita a liberdade de imprimir porque tanto apenas a exerce aqueles que dispõem de capital para manter um meio de comunicação, quanto somente expressam aquilo que lhes seja útil15. T

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Ademais, Lopéz também enumera outras consequências da gestão comercial da imprensa, que em sua totalidade denomina síndrome da imprensa comercial. São elas a subordinação da redação a propriedade com o controle do controle da mensagem pelo capital; tendência à concentração dos meios de comunicação; debilitação cultural e despolitização do conteúdo. No Brasil, o gênero concentração midiática se manifesta em três espécies: a vertical, a horizontal e a lateral ou diagonal. A primeira diz respeito ao controle de toda a cadeia de produção e distribuição de um conteúdo midiático por um grupo. A segunda se refere ao fenômeno de um grupo comprar diversas empresas de um mesmo segmento da mídia. Por fim, o terceiro acontece quando um grupo expande suas fronteiras de atuação, agindo em outros setores midiáticos; é a conhecida propriedade cruzada. Tal quadro se iniciou com a fundação dos Diários Associados, conglomerado que em 1931 controlava oito periódicos e uma revista. Em 1950, o mesmo grupo midiático, sob a direção de Assis Chateaubriand começa a instalar a TUPI, primeira emissora de televisão brasileira. Esse movimento se dá num contexto de quase ausência de regulação do setor, com exceção da proibição da propriedade de empresas jornalísticas por estrangeiros e pessoas jurídicas, sendo assim permitida a propriedade cruzada. Em seu apogeu, o Diários Associados controlava diretamente, 18 emissoras de televisão, 36 estações de rádio, 34 jornais, 14 revistas, além de agências de notícias e propaganda. Assim, o surgimento da TV no Brasil é empreendida pelos detentores de jornais e rádios, formando grupos de comunicação16. T

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Atualmente, os conglomerados que lideram as cinco maiores redes nacionais de televisão (Globo, SBT, Band, Record e Rede Tv) controlam, direta ou indiretamente, os principais veículos de comunicação do País17. Tais integram o Sistema Central de Mídia brasileiro. Segundo Gorgen, T

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existe no sistema midiático brasileiro um núcleo central, ao redor do qual gravitam os grupos regionais. Ele é composto pelos conglomerados econômicos que possuem os principais meios de produção e distribuição de produtos e serviços de comunicação social. Partindo desses critérios o autor identifica dez conglomerados do Sistema Central de Mídia no Brasil: Organizações Globo, Sílvio Santos, Igreja Universal do Reino de Deus, Bandeirantes, TeleTV, Abril, Amaral de Carvalho, Governo do Estado de São Paulo e Organização Monteiro de Barros. Juntas tais organizações controlam 1310 veículos midiáticos, entre revistas, jornais, rádios, emissoras de televisão, entre outros. 15

LÓPEZ, op. cit.,p. 69-82

16

GÖRGEN, James. Sistema Central de Mídia: proposta de um modelo sobre os conglomerados de comunicação no Brasil. Disponível em: Http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos /seges/EPPGG/producaoAcademica/Dissertacao_JAMESGORGEN.pdf. Acesso em: 12 nov. 2011 17

Disponível em: http://donosdamidia.com.br/redes

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Tais características, concentração midiática e propriedade cruzada, são incentivadas pela política de outorga de concessões de rádio e TV brasileira. É necessário salientar, antes de tudo, que o Brasil adotou o trusteeship model, ou seja, um modelo que privilegia a exploração do setor pela iniciativa privada. Nesse sentido, a exploração de determinado serviço compete à União, mas é outorgado para operação de terceiros18. Atualmente, entretanto, a Constituição prevê o princípio T

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da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal na exploração de tais serviços como tentativa de corrigir o desigualdade existente entre esses sistemas19. T

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A Constituição de 1988 estabelece no parágrafo 5 do artigo 220 que os meios de comunicação não podem ser objeto de monopólio, direta ou indiretamente. Entretanto, entre as diversas normas que estabelecem parâmetros para a organização do setor, como o Código Brasileiro de Telecomunicações (lei nº 4.137/1962) e a Lei da Tv a Cabo (Lei 8.977/1995), não há norma eficaz contra a propriedade cruzada e a concentração na mídia. É certo, entretanto, que o Decreto-Lei 236/1967 disciplina um número limite de concessões a serem outorgadas a uma entidade. Entretanto, tem-se tomado tal termo como pessoa física sem que eventuais relações de parentesco entre os concessionários sejam considerados fatores impeditivos. O resultado é a consolidação da propriedade cruzada e da concentração como principais características da mídia brasileira20. T

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Outro fenômeno, que afasta a realidade brasileira daquele contexto plural, pressuposto da teoria liberal, é o coronelismo eletrônico. Tal remonta ao coronelismo, que baseado no monopólio da propriedade da terra, vigeu entre o Império e a República. O atual modelo, entretanto, baseiase no controle da informação por oligarquias locais, o que se dá através do monopólio dos meios de comunicação. Ora, a mídia, a partir do regime militar, passou a exercer papel central na política brasileira, através da formação de consenso político entre a população. Dessa forma, o coronel tanto promove a si mesmo quanto limita a expressão de adversários21. Nesse sentido, pesquisa T

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realizada pelo sítio Donos da Mídia22 revela, no Brasil, 271 políticos são sócios de 324 veículos de T

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comunicação. Destes 147 são prefeitos, 55 deputados estaduais, 48 deputados federais, 20 senadores e um governador. Tem importante papel nesse contexto,a interpretação dada ao parágrafo único do artigo 38 do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962) e às letras a e b do inciso I do Artigo 54 da Constituição de 1988. O primeiro proíbe aqueles que estejam em gozo de imunidade parlamentar de exercer função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão. As segundas proíbem senadores e deputados de exercerem cargos remunerados em 18

LIMA, Venício Artur. Regulação das comunicações: História, poder e direitos. São Paulo: Paulus, p. 28, 2011

19

ibid.,p. 100

20

ibid.,p. 86

21

ibid.,p. 106

22

Disponível em: http://donosdamidia.com.br/levantamento/politicos

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empresas concessionárias do serviço público. O Ministério Público Federal, entretanto, interpreta que tais normas vedam apenas a participação dos parlamentares na gestão dessas empresas, não impossibilitando sua propriedade. Ademais, essa situação gera o inconveniente de participantes de um dos poderes concedentes se confundirem com o próprio concessionário. Ora, segundo o parágrafo 1º do artigo 223, o Congresso Nacional deverá apreciar os atos de outorga e renova de concessão. Tal faz com que parlamentares titulares de concessões votem pela renovação destas23. T

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Além disso, do coronelismo eletrônico tradicional surge o de novo tipo. Ele se baseia nas permissões dirigidas às comunidades locais, especialmente as que dizem respeito ao funcionamento de rádios comunitárias. Segundo pesquisa empreendida por Venício A. de Lima elas são, em maioria, controladas por políticos locais, representando, assim, uma especificação daquele sistema maior de coronelismo eletrônico24. T

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Mesmo em face do apresentado, a Veja insiste em tratar as tentativas de regulação do setor como formas de instituir a censura à liberdade de expressão e de imprensa. Entretanto regulação e censura não se confundem. Esta se refere à tentativa de silenciar as vozes do debate público que expressam opiniões desfavoráveis ao ente censor, seja o Estado ou qualquer outra instituição. Já aquela, a regulação, visa a garantir a efetividade do direito a comunicação, de modo que as diversas opiniões existentes possam se manifestar no debate público. Atualmente liberdade de expressão não pode se desvencilhar de liberdade de informação. Tal termo amplia o de liberdade de imprensa, pois não se refere apenas a mídia impressa, mais também a todas as outras formas de divulgação da informação proporcionada pelo desenvolvimento tecnológico25. Além disso, o conceito também abarca a liberdade de se informar, T

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ou seja, a livre recepção do conteúdo difundido. Ademais, quando se fala no direito coletivo de ser informado dizemos direito a informação, o qual pode ser interpretado como o direito de receber informação verídica, não manipulada26. Ora, nesse sentido faz-se necessária maior intervenção do T

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Estado a fim de assegurar tal direito à informação verídica e plural. Ademais, o Estado também deverá utilizar seu poder regulador no que se diz respeito a televisão e ao rádio pelo fato de serem estes classificados como serviço público, sendo verificado o principio da complementaridade para sua execução . Entretanto, como a comunicação social é instrumento para exercício de diversos direitos fundamentais, o Estado deve agir de forma a não atingi-los, mas sim assegurá-los. Nesse sentido, Fontes Junior enumera alguns princípios a serem observados na relação entre o Estado e os operadores da comunicação social, como o princípio 23

LIMA, op. cit., p. 87

24

LIMA, op. cit.,p. 111-137

25

TERROU, Fernand. La información. Barcelona: Vilassar de Mar, p. 1970

26

LÓPEZ, op. cit.,p. 20

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da independência dos operadores perante os poderes públicos; o princípio da neutralidade, pelo qual se exige independência dos comunicadores em relação ao governo; princípio do pluralismo externo, de onde se deduz que o Estado deve evitar a concentração dos meios de comunicação; princípio da necessidade da intervenção pública, pela qual o Estado deve intervir em situações estritamente necessárias para assegurar a eficácia dos direitos fundamentais; princípio da interpretação pró-liberdade, através do qual os conflitos que surgirem nas relações entre Estado e os órgãos de comunicação social devem ser resolvidos de forma a garantir as liberdades negativas. Diante do exposto, verifica-se que a Veja se apropria de forma inadequada da teoria liberal sobre liberdade de expressão e de imprensa de modo a incriminar as diversas tentativas de regulação do setor, a exemplo do PNDH-3. Ela apenas se apodera de um dos pressupostos apresentados pela teoria liberal, a não intervenção estatal, sem, no entanto, observar as finalidades por ela objetivadas e o tipo de imprensa para a qual foi desenvolvida. A teoria é utilizada na realidade como discurso de justificação para que o sistema midiático brasileiro continue a ser instrumento de expressão de uns poucos, de modo a gerar consenso social em relação aos seus interesses.

5. Conclusão A Veja tem se utilizado da teoria liberal de forma distorcida, como um discurso de justificação para incriminar qualquer tentativa de regulação da mídia brasileira. Nesse quadro se insere o PNDH-3 que traz algumas medidas objetivando garantir o direito do povo à comunicação. Foi logo tomada pela revista como medida autoritária, tentativa do governo de censurar a livre difusão das idéias, enquanto na realidade ela visa, sim, a promover o maior respeito dos direitos humanos pelos meios de comunicação. Mesmo em face do apresentado, percebemos que a revista, juntamente com a grande mídia brasileira, tem conseguido legitimar seu discurso graças a um movimento pelo qual ela se coloca como defensora da liberdade de expressão, como se essa liberdade do indivíduo fosse acessória à liberdade da imprensa, e não o contrário. Tal fenômeno se manifesta pela criação de uma opinião pública homogênea e acrítica, cuja principal função passa a ser a formulação de consenso social ao redor das idéias por elas veiculadas. Esse movimento ocorreu com o PNDH-3. Após campanha da grande mídia brasileira, inclusive da Veja, cinco meses depois de publicado o plano foi “atualizado” pelo Decreto 7.177 de 12 de maio de 2010. A redação original da letra a, do objetivo estratégico I, da diretriz 22 foi modificada segundo dispõe o artigo 3º do citado decreto: Art. 3o A ação programática “a” do Objetivo Estratégico I – Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos – da Diretriz 22: Garantia do direito U

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à comunicação democrática e ao acesso à informação para consolidação de uma cultura em Diretos Humanos, do Anexo do Decreto no 7.037, de 2009, passa a vigorar com a seguinte redação: U

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a) Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados.

A nova redação apenas afirma que deverá ser criado um marco legal estabelecendo o respeito aos direitos humanos, entretanto nada cita sobre possíveis sanções aplicáveis no caso de os veículos de comunicação os desrespeitarem como era feito na redação antiga.

Referências bibliográficas LÓPEZ, Modesto Saavedra. La libertad de expresión en el Estado de Derecho: entre la utopia y La realidad. Barcelona: Editorial Ariel GÖRGEN, James. Sistema Central de Mídia: proposta de um modelo sobre os conglomerados de comunicação no Brasil. Porto Alegre. 2009 LIMA, Venício Artur. Regulação das comunicações: História, poder e direitos. São Paulo: Paulus, 2011 LIMA, Venício A. de. Liberdade de expressão x liberdade de imprensa: direito à comunicação e democracia. São Paulo: Publisher, 2010 TERROU, Fernand. La información. Barcelona: Vilassar de Mar.

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Regulação da mídia televisiva voltada à defesa dos direitos da criança e do adolescente Marília Guadalupe de Mendonça Galvão Pereira1 T

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Resumo

Abstract

Este trabalho tem a nobre função de demonstrar os efeitos psicológicos causados por uma programação inadequada ao público infanto-juvenil, bem como incentivar as emissoras a transmitirem programas adequados à cada faixa etária, respeitando os princípios Constitucionais, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Convenção sobre os Direitos das Crianças. Primeiramente, será demonstrado que a Televisão pode inibir a capacidade de imaginação das crianças e adolescentes, bem como, interferir no comportamento deste público. Daí a necessidade de regulamentar a mídia televisiva. No segundo capítulo, trataremos das questões administrativas atinentes ao instituto da concessão pública de radiodifusão sonora de sons e imagens. Teceremos críticas a esse instituto, principalmente no que se refere à renovação da concessão pública, prevista no art. 223 e seguintes da Constituição Federal (CF). Trataremos acerca da criação de um órgão independente, que tenha o poder de fiscalizar a grade de programação das emissoras de televisão. Além de tratar da criação desse órgão independente, iremos tratar da função do Conselho de Comunicação Social, previsto no art. 224 da CF, responsável pela concessão, renovação e fiscalização da concessão pública das emissoras de televisão. Por fim, trataremos da regulação da mídia televisiva e da garantia da liberdade de expressão.

This work has the noble task of demonstrating the psychological effects caused by unsuited TV programs to children and youth as well as encouraging broadcasters to transmit programs appropriately for each age group, respecting the Constitutional principles, Children’s and Adolescents’ Statute (ECA) and the Convention on the Rights of the Child. In the first chapter will be shown that the TV is able to inhibit the skill of imagination of children and adolescents, as alter their behavior. This, it’s necessary to regulate the broadcast media. In the second chapter we’ll deal with administrative matters related to the institute of public concession of radio broadcasting audible sound and pictures. We will elaborate a series of critics addressed to this institute, particularly with regard to the renewal of public concession, provided for art. 223 from Federal Constitution of Brazil. We will discuss about the creation of an independent organization which has the power to police the program guide from TV stations. While addressing the creation of this independent body will treat the role of the Media Council as provided for art. 224 of the Constitution, the granting, renewal and review of the granting of public television stations. The third chapter will discuss the social function of television programming created especially for the children and adolescents. An interesting aspect of the second item will be discussed in this chapter. Here we report on a search of an American university, which shows that those who finances the media violence does not succeed with their commercials. Finally, the last chapter, we address the regulation of television and the guarantee of freedom of speech expression.

Palavras-Chave: Qualidade dos programas televisivos; Criança e Adolescente Comunicação; Liberdade de expressão; Regulação da Mídia; Princípios e Fundamentos.

Keywords: Quality of television programs. Children and Adolescents Communications. Freedom of expression. Regulating Media. Principles and Fundamentals.

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Graduada em Ciências Jurídicas pela Universidade Católica de Pernambuco. – UNICAP. Advogada. [email protected] (e-mail) TU

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1. Introdução Este artigo analisará a programação televisiva voltada para o público infanto-juvenil sob a perspectiva do instituto da concessão pública e da função social dos meios de comunicação. Tentaremos promover a constituição de um campo comum entre a comunicação e a educação como caminho para formar cidadãos críticos. Nos termos do artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral pelo Poder Público, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. É dever do Poder Público, por meio das autoridades competentes, assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes. No que concerne à comunicação, o Poder Público deve fiscalizar se as emissoras estão transmitindo programas adequados a fim de garantir a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, os quais têm direito ao respeito e à dignidade como pessoas humanas, sujeitos de direitos civis garantidos na Constituição. As emissoras, por serem concessionárias de um serviço público, devem disseminar uma programação televisiva de qualidade que atenda ao interesse público e não ao interesse econômico privado.

A televisão está sujeita à regulamentação e controle, pela própria natureza

jurídica e características do instituto da concessão. A criação de um órgão independente irá contribuir para a fiscalização das emissoras, repelindo práticas abusivas e desrespeitadoras dos direitos infantis.

2. A regulação da televisão 2.1 O instituto da televisão e seu poder de invisibilidade A TV soube conquistar – em pouco mais de cinco décadas – o fascínio, antes pertencente ao rádio, de maneira que sua popularização surpreendeu quem já previa parte de sua capacidade. A junção de áudio e imagens em movimento, aliada a transmissão em tempo real, proporcionou à TV uma inserção plena nas atividades quotidianas dos seres humanos, principalmente pelo fato de ser um objeto dinâmico e de fácil entretenimento. A televisão constitui segundo Sérgio Ricardo Queiroga Macleimont 2, um meio de poderosa T

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penetração, transformando-se em instrumento de cultura e interação social. Ela tem o poder de colocar à disposição do público, em geral, informações de natureza diversa que, a depender da

2 MACLEIMONT, Sérgio Ricardo Queiroga. Televisão e Crianças: novas perspectivas de relação. Revista Brasileira de Ciência da Comunicação, v.8, n.1, Jan/Jun, 2002.

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formação político-social do telespectador, podem ser utilizadas para o consumo comum, como material educativo e instrutivo, como base para a formação de opinião ou como ponto central de um debate. Para se ter idéia da importância desse debate, cabe destacar que cerca de 98% dos brasileiros têm televisão em casa. Porém, apenas 10% da população têm acesso aos jornais impressos, internet e revistas. A TV é, portanto, o meio de comunicação responsável não apenas pela informação, mas, principalmente, pela construção de valores no nosso país. Praticamente detém o monopólio da comunicação. Em 1954, quando foi lançado o aparelho de televisão no Brasil, havia apenas 120 mil unidades em todo o país. No último censo feito pelo IBGE, em 2002, somaram mais de 42.778.810 aparelhos. A televisão é, assim, um meio de comunicação que seduz e nos transmite, além de informações gerais, idéias de mundo, padrões de beleza, estereótipos e ideologias. Entretanto, este aparelho pode determinar o que será visto pelos telespectadores e o que não será. Ela tem o poder de transmitir somente aquilo que interessa as emissoras, deixando de lado todas as outras matérias e informações que não possuem nenhuma relevância para elas. Este é o risco que os telespectadores estão submetidos, o de não conhecerem tudo o que se passa ao redor deles. E, no que concerne ao público infanto-juvenil, a omissão de informações pode representar uma limitação de conhecimento. Pierre Bourdieu 3, no livro “Sobre a televisão”, falou do risco social que a mesma produz na T

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vida dos seres humanos ávidos por informação. Ela tem a capacidade de “ocultar mostrando”, ou seja, ela pode transmitir algo diferente do que deveria ser transmitido, bem como pode disfarçar a informação, moldando o que deveria ser repassado para o público, construindo, assim, uma informação que não corresponde com o real acontecimento. Ele argumenta que a TV possui o poder da invisibilidade, isto é, determinar o que veremos e, mais ainda, o que não veremos. A questão ganha importância quando se considera o fato de que são estas mídias que determinam o que existe e o que não existe para a sociedade. Daí sua grande influência no comportamento humano. Bourdieu justifica esse fenômeno citando Patrick Champagne em “La Misere du monde”. Ele explica que o que vemos e interpretamos, através da televisão, é reflexo da educação que os jornalistas tiveram ao longo de sua formação. Assim, os jornalistas têm “óculos” especiais a partir dos quais vêem certas coisas deixando passar outras; eles analisam a informação através de uma ótica própria. Desta maneira, utilizando as palavras de Bourdieu “Eles operam uma seleção e uma

3 BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Zahar. 1996. p. 24.

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construção do que é selecionado”, o telespectador, portanto, tem acesso a uma informação prémoldada, que não condiz com a verdadeira realidade, e, sim, com a realidade do jornalista. Nos termos do sociólogo acima: O princípio da seleção é a busca do sensacional, do espetacular. A televisão convida à dramatização, no duplo sentido: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade e o caráter dramático, trágico.

A televisão é um meio que se deixa levar, facilmente, pelos interesses de quem a comanda. A informação repassada advém da percepção e da apreciação de um determinado grupo de pessoas que estão em busca de sensacionalismo e do extraordinário. As notícias são moldadas para chocar os telespectadores. Este aparelho torna-se um instrumento de acesso a notícias que não correspondem à realidade. Desta maneira, todas as emissoras de televisão, ávidas por um furo de reportagem, terminam por colocar na mídia notícias que tem o objetivo de chocar, e acabam uniformizando a informação; há, portanto, a banalização da informação. Quem sofre com essa distorção da informação é o telespectador. Ele, maior prejudicado nesta cadeia informativa, termina recebendo uma informação, muitas vezes, incorreta, e acaba transportando àquela situação para o seu pensamento quotidiano.

2.2 A interação entre o público infanto-juvenil e a televisão Nos termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), considera-se criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre 12 e 18 anos de idade. Quanto à influência da TV sobre as crianças, o escritor e caricaturista brasileiro Ziraldo, em entrevista para a TV Cultura, argumenta que a criança não pode ser analisada como um ser ainda em formação, mas sim, como um ser em si mesmo, repleto de direitos e deveres. Para ele, os programas televisivos, voltados para o público infantil, devem ser adequados para a faixa etária, priorizando o ambiente temporal e cognitivo em que estes pequenos seres estão inseridos. As crianças devem entrar em contato com produções televisivas que possam interferir positivamente na sua formação moral e social. As emissoras devem transmitir, no horário adequado, programas educativos a fim de formar cidadãos conscientes. A televisão tem produzido fortes impactos sobre a produção das subjetividades e identidades culturais, sobretudo em meninos e meninas. É por isso que podemos afirmar que a regulação da mídia também se configura como um instrumento pedagógico. Para uma regulação efetiva da mídia, é de grande importância a classificação indicativa dos programas, tendo em vista 975

o enquadramento pela faixa etária, respeitando a capacidade de compreensão das crianças e adolescentes. Para se ter idéia da forte influência exercida pela televisão sobre as crianças, basta analisarmos o caso do programa "Rebeldes", um fenômeno da novela mexicana exibido pelo Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) em horário nobre. Tal programa levou crianças brasileiras entre dez e doze anos de idade a se vestirem com roupas provocantes e cabelos tingidos, caracterizando os personagens da referida novela. Tatiana Merlo-Flores 4 diz que: T

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No primeiro nível, crianças e adolescentes extraem elementos da linguagem, do jeito de se vestir, dos temas sociais e de relacionamento para se comunicar, assim se conformando a uma subcultura televisiva. As crianças imitam o que vêem e quando assistem a cenas de violência, por exemplo, é provável que incluam à sua maneira que “é o mais forte que tem razão”.

Assim, as crianças captam rapidamente o que assistem na televisão. Elas, por estarem em uma fase inicial de conhecimento, não conseguem discernir um comportamento correto de um comportamento inadequado. Elas simplesmente incorporam, no seu comportamento quotidiano, aquilo que vêem. A TV interfere bastante no modo de vida das crianças.

2.3 As cenas violentas nos programas infantis A título de curiosidade, estudos informam sobre o mal estar público relativo ao volume de violência apresentado nos programas televisivos. O Instituto Data Folha T

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apontou que 75% dos

telespectadores eram favoráveis a algum tipo de controle sobre a programação; havia contrariedade pública ao excesso de sexo e violência no vídeo e uma crítica fervorosa à programação dominical, classificando-a como inadequada à infância. Nos Estados Unidos, estimativas afirmam que uma criança vê na televisão 3.000 atos de violência todos os anos (em especial assassinatos, agressões, tortura, assaltos e roubos). Em 1950, 15% da programação do horário nobre era violenta, número este, relativamente expressivo. Na metade da década de 90, o percentual aumentou para 80%, e, curiosamente, os programas infantis eram mais violentos que os destinados ao público adulto (6 atos violentos por hora no horário nobre, contra 26 no horário infantil de sábado e domingo). Antes de chegar ao ensino médio (high school) uma criança típica norte-americana terá assistido 100.000 atos de violência na televisão, sendo 8.000 assassinatos. Isso explica o

4 MERLO-FLORES, Tatiana. Porque assistimos à violência na televisão? In: A Criança e a Violência na Mídia. Unesco, 1999. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001308/130873por.pdf. U

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5 Pesquisa publicada na Folha de S. Paulo, de 09 de novembro de 1997, pp. 10-11.

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aumento do número de terrorismo nas escolas americanas 6. O debate acerca destes números T

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aborda os efeitos desse tipo de programação. Há forte correlação entre essa programação e as atitudes agressivas por parte das crianças. Segundo as explicações psicológicas, os infantes aprenderiam por imitação. Assistindo programas com conteúdo violento, os instintos violentos das crianças seriam “disparados” e, gradativamente, iriam perder a sensibilidade emocional por se acostumarem a observar ambientes virtuais saturados com esse tipo de mensagem. Desta feita, as crianças estariam fadadas a se tronarem adultos insensíveis, que não demonstram nenhum desejo de intervir para impedir atos agressivos.

2.4 A influência da televisão e a limitação da capacidade de imaginação sobre o público infanto-juvenil A forte influência da TV sobre as crianças é preocupante pelo fato deste aparelho, como dito anteriormente, ter um grande poder de modificar comportamentos. A TV, além de tudo, limita a capacidade de imaginação da criança. Seria mais saudável que a criança formulasse suas próprias idéias a partir de suas próprias convicções. Enquanto a televisão busca entreter o público infantil a partir de percepções pré-fixadas, o livro procura estimular o pensamento e a interpretação da criança, fazendo com que esta compreenda o que está sendo repassado por meio de suas próprias percepções, sem qualquer indução. Pedro A. Guareschi 7 complementa a discussão: T

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Podemos imaginar, pois, a diferença que existe entre práticas tais como ler um livro ou assistir a um programa de TV. Não é necessário refletir muito para nos darmos conta de que são duas posturas bastante distintas: na primeira prática a criança é ativa, lê uma sentença, imagina como seria o que a leitura lhe está sugerindo, pode parar no momento em que quiser, ir à frente, imaginar diferentes tipos de personagens – sempre de acordo, está claro, com sua experiência passada. Já na segunda prática, a criança está fixa na TV, seus olhos reagem aos movimentos e estímulos da tela, ela ri, fica triste, etc., de acordo com os estímulos mostrados. Há uma diferença fundamental nas duas práticas: na primeira, a criança imagina, cria tipos, imagina lugares, situações, paisagens, cores, odores, ruídos, etc., de acordo com estímulo escrito, mas imaginado por ela; na segunda prática, porém, ela já tem tudo isso dado. Ela não necessita construir. É poupada dessa tarefa criativa. O que lhe resta é conferir, interiorizar, como que “copiar” reproduzir e repetir o que alguém já fez para ela.

6 WAINBERG, Jacques A. Mídia e terror – comunicação e violência política. Paulus, 2005, p.35 7 GUARESCHI, Pedrinho A. O meio comunicativo e seu conteúdo. In: Televisão, criança, imaginário e educação: dilemas e diálogos. Campinas, SP: Papirus, 1998.

977

Para Valdemar Setzer 8, a televisão, por exemplo, causa sonolência nas pessoas, o que T

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explica o movimento rápido e constante das cenas durante as transmissões dos programas. Assim, segundo ele, não sobra espaço para o telespectador formar imagens próprias, pois as pessoas não conseguem nem pensar sobre o que é transmitido. Ainda, nos termos do pensamento do Autor acima: O mais importante é criar nas crianças imagens, elas têm de treinar a imaginação. É muito mais importante criar imagens do que ver imagens. A televisão mata a capacidade da criança ser fantasiosa.

2.5 Considerações acerca da regulação televisiva A fim de consolidarmos uma mídia de qualidade – que leve em conta o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes – é necessário estimular os benefícios que envolvem a relação com os meios de comunicação, bem como analisar e impedir os impactos negativos advindos desta interação. Para estimular e proteger os direitos juvenis é necessário por em prática os princípios constitucionais e do Estatuto da Criança e do Adolescente, os quais preservam a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente. Esse estímulo pode ser realizado por meio de ações individuais ou coletivas, informais ou formais. Do mesmo modo, podem ser estabelecidas por meio de regulações estatais ou através de códigos de conduta autoproclamados pelas partes envolvidas, no caso do Código de Ética da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). O ideal, para um efetiva regulamentação da mídia, seria estabelecer uma instância reguladora dedicada à interface mídia e infância – de abrangência nacional e independente – com a participação da sociedade civil, governo, empresas e órgãos internacionais, destinada a proteger os direitos específicos desse público frente a possíveis violações, garantindo o incentivo à implementação de políticas públicas específicas e a promoção de uma mídia de qualidade. Uma proposta interessante seria o estímulo à produção de conteúdos de qualidade. O artigo 17 da Convenção da ONU, sobre os Direitos da Criança, determina que os Estados devem incentivar os meios de comunicação a difundir informações e materiais de interesse social e cultural para a criança, estimulando o desenvolvimento de suas aptidões mentais e físicas, o respeito aos direitos humanos, questões de identidade cultural e a igualdade de sexos e a amizade entre os povos (art. 29).

8 SETZER, Valdemar. Os perigos do filtro tecnológico. Revista Educação. Ano 12, n. 143, Mar/2009. p. 30.

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É necessário explicar que a mídia televisiva é, na atualidade, um elemento central para a socialização de crianças e adolescentes (seja por seus impactos positivos ou negativos), por isso merece uma atenção especial das autoridades competentes. Daí a necessidade de estudar todas as questões que envolvem a mídia televisiva, a fim de estimular as emissoras a exibirem para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, conforme estabelece o art. 76 do ECA.

3. A televisão como serviço público concedida 3.1 Concessão de serviço público de radiodifusão sonora e de sons e imagens Compete ao Poder Executivo, por força do art. 223 da CF/88 outorgar e renovar a concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. O § 5º aduz que o prazo da concessão ou permissão será de dez (10) anos para as emissoras de rádio e de quinze (15) para as de televisão. Nestes termos, para obter o direito de transmitir sinais de TV e rádio é preciso que um grupo empresarial receba uma concessão pública. Cabe, portanto, ao Estado conceder, por um determinado tempo, o direito de utilização de um bem que é público, ou seja, pertencente ao conjunto dos cidadãos deste país. A população, todavia, não tem conhecimento de que as emissoras de televisão detêm uma concessão pública para explorar a comunicação televisiva, que é um serviço público. Essa informação não é de conhecimento da população brasileira, conforme aduz Flávio Gonçalves 9. T

T

Esta omissão deliberada ajuda a construir a imagem de que não cabe ao Estado e a sociedade construir um processo de avaliação da programação das concessões públicas de rádio e TV e de se posicionarem quando do momento de sua renovação. Flávio Gonçalves argumenta, ainda, que: As concessões comerciais de rádio têm duração de 10 anos, enquanto na TV o prazo é de 15 anos. Após este período as concessões podem ou não ser renovadas. Infelizmente, historicamente o processo de renovação destas concessões é automático e sem qualquer debate público e fiscalização por parte do Estado e da sociedade. Sabe-se que jamais na história deste país uma concessão pública de rádio e TV não foi renovada. E pior, centenas de emissoras de rádio e TV estão com suas concessões vencidas há anos. No Espírito Santo o quadro, sem qualquer visibilidade pública, é de total descontrole.

9 GONÇALVES, Flávio. Concessões Públicas de rádio e TV no Espírito Santo, 2007. Disponível em: http://www.overmundo.com.br/overblog/concessoes-publicas-de-radio-e-tv-no-es U

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Não só no Espírito Santo, conforme relatou Gonçalves, mas nos demais Estados brasileiros a situação se repete. Não há qualquer fiscalização por parte do poder público quando da renovação da concessão pública da emissora televisiva. Nunca houve um processo amplo, transparente e democrático de debate na sociedade sobre o papel desempenhado por uma emissora ao longo do tempo em que esta deteve a concessão pública. As emissoras deveriam realizar seminários para que a sociedade colocasse sua opinião sobre a qualidade da programação, injetando idéias para uma programação mais democrática. Todavia, as emissoras não realizam audiências públicas, principalmente porque, no Brasil, um mesmo grupo comercial pode controlar TV's, rádios, jornais e Internet, em flagrante desrespeito ao § 5º do art. 220 da CF. Há, portanto, um silêncio sobre o tema por parte dos diversos meios de comunicação. É importante destacar que a Constituição Brasileira no artigo 221 estabelece que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística; respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Lamentavelmente, as emissoras televisivas promovem exatamente o contrário do que está estabelecido na Carta Magna. Elas impõem uma programação centralizada e importada da indústria cultural estrangeira. A Constituição também exige que a TV tenha finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, mas as emissoras produzem e veiculam programas que não atendem esse preceito constitucional. “Elas despejam em cima da população programas de baixaria e o lixo importado, que nada têm a ver com a identidade, os valores e a cultura nacional”, observa Hamilton Octávio de Sousa. Além de descumprirem tais preceitos, as emissoras não recebem qualquer sanção por parte dos órgãos fiscalizadores, o que termina sendo um aval para que as mesmas continuem procedendo desrespeitando os valores sociais e o interesse público. O instituto da concessão de serviço público utilizado no serviço de televisão por radiodifusão, portanto, tem servido aos interesses dos concessionários e ao seu propósito lucrativo, ficando, em segundo plano, o interesse público. A concessão e o respectivo regime de serviço público contribuíram, muito mais, à formação de reservas de mercado e à concentração de poder econômico, do que aos interesses sociais dos usuários dos respectivos serviços. Inúmeras outras irregularidades acontecem em detrimento do interesse público. Conforme relata Flávio Gonçalves, por meio do artigo já citado:

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A Constituição estabelece que nenhum parlamentar pode ter relação direta com qualquer empresa concessionária pública. Entretanto, um em cada três senadores é concessionário de rádio e TV. Na Câmara dos Deputados 15% dos parlamentares são radiodifusores.

A concessão favorece os interesses dos políticos, havendo uma politização excessiva no processo de outorga e de renovação de emissoras de televisão. Nesse aspecto, o Direito não tem sido efetivo o suficiente para impedir o cometimento de abusos, a exemplo da propriedade de inúmeras emissoras por políticos.

3.2 Críticas a esse modo de concessão Como se sabe, a distribuição de canais de televisão e de rádio, tradicionalmente, é feita ao sabor do Executivo, para atender a interesses pessoais ou políticos de pessoas ou grupos, sem quaisquer critérios objetivos que permitam controlar-lhes a juridicidade. Assim, o ato de outorga ou renovação da concessão de serviços públicos de radiodifusão sonora e de sons e imagens, é realizado pelo Presidente da República, que deve submeter o ato ao Congresso Nacional para deliberação, que poderá ser de até 10 anos para rádio e 15 anos para televisão, não havendo proibição de renovação de concessão, após o termo dos prazos. Portanto, de acordo com a Constituição de 1988, a concessão pública de TV tem validade de 15 anos. Para que ela seja renovada, o governo precisa encaminhar pedido ao Senado, que pode aprová-lo com o voto de 3/5 dos senadores. No caso de rejeição, a votação é mais difícil. A proposta do governo deve ser submetida ao Congresso Nacional, que pode acatar a não renovação da concessão da emissora com os votos de 2/5 dos deputados e senadores. Antes da Constituição de 1988, esta decisão cabia exclusivamente ao governo federal. A medida democratizante, porém, não consolidou a transparência, tendo em vista que muitos parlamentares possuem concessão para explorar canais de televisão e, portanto, a votação sempre é feita em favor dos seus próprios interesses. Como se vê, o ato de conceder, renovar, ou o ato de não renovar as concessões de tais serviços públicos, origina-se do Presidente da República, mas é no Congresso Nacional que será decidido. E, isso, torna a concessão um instituto parcial, que é deferido àqueles que possuem alguma ligação com o Poder Político.

3.3 Conselho de Comunicação Social Um avanço, no que pertine à criação de um órgão fiscalizador de acompanhamento da renovação e outorga das concessões, foi a instalação, em maio de 2002, do Conselho de 981

Comunicação Social (CCS), previsto no artigo 224 da Constituição Federal e regulamentado pela Lei 8.389/1991. A função deste órgão é auxiliar em pareceres, recomendações, realização de estudos e outras solicitações que lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional, a respeito dos direitos e deveres dos meios de comunicação social nacionais. Teoricamente, este Órgão impede que um único segmento público determine toda a política de comunicação de massa do país. A composição dos CCS compreende um representante de cada meio (rádio, televisão e imprensa escrita) e um das categorias profissionais dos jornalistas, artistas, radialistas e dos profissionais de cinema e vídeo, além de um engenheiro com conhecimentos consideráveis da área de comunicação social e cinco membros da sociedade civil. Dessa maneira são 13 vagas para a representação do Conselho, além de 13 suplentes, com mandato de dois anos. Observa-se, assim, a participação, teórica, da sociedade civil nos assuntos que dizem respeito à comunicação social. Cabe ao Poder Público, todavia, informar aos cidadãos da existência deste órgão e da sua, conseqüente, participação, no que diz respeito á qualidade da programação televisiva, bem como na fiscalização das emissoras televisivas. A sociedade, desta feita, tem um espaço para opinar acerca da grade de programas que é oferecida pelas emissoras, inclusive, solicitando a retirada de programas que desrespeitem os princípios constitucionais do art. 221 da CF, bem como solicitando a inclusão de programas instrutivos e regionais, ou seja, programas que retratem características próprias de cada região. Vera Nusdeo Lopes 10 tecendo críticas acerca do CCS, aduz que: T

T

Em tese, o CCS foi previsto pelo artigo 224 da Constituição de 1988. Contudo, a lei que efetivamente o criou – Lei 8.389/91 – atribuiu-lhe competências bastante tímidas: emitir pareceres, estudos e recomendações sobre as consultas que lhe forem enviadas pelo Congresso, sem qualquer atribuição normativa ou decisória. Funciona apenas como auxiliar das decisões do Congresso sobre as matérias relativas a comunicação social. Ou seja, a participação da sociedade supostamente ensejada pelo Conselho restou frustrada. As atribuições do órgão, além de restritas, são facultativas. Logo, não é de surpreender que até hoje, quase dez anos após sua criação, o conselho nunca tenha efetivamente saído do papel.

É lamentável que este Conselho não tenha uma participação efetiva nos assuntos relativos a concessão pública das emissoras de televisão. Não obstante a previsão da participação da sociedade, na prática não há participação desta nos assuntos relacionados ao tema e, acima de tudo, não há conscientização de que não se trata de um serviço meramente privado, mas de real serviço público, exercido para a sociedade, e não para o enriquecimento e proveito dos concessionários.

10 LOPES, Vera de Oliveira Nusdeo. A Lei da Selva. In: a TV aos 50 – criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. Ed. Fundação Perseu Abramo, p.181.

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Argumento nesta perspectiva é apresentado pelo cientista político Guilherme Canela T

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. T

Segundo ele, é indefensável que concessões geradoras de polpudos dividendos para o Setor Privado – e, na maioria das vezes, sem qualquer contrapartida financeira para o poder público – não possam ser acompanhadas por rigorosos critérios regulamentadores que reflitam os anseios da sociedade (devidamente inscritos na Constituição Federal).

4. Liberdade de expressão, controle e censura 4.1 Limites à liberdade de expressão A Constituição Federal de 1988 prevê o direito à liberdade de expressão no artigo 5º, inciso IX: É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Não obstante a existência de tal disposição, a Constituição limita a liberdade de expressão ao estabelecer no art. 220 que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. Desta feita, a liberdade de expressão deve respeitar os princípios constitucionais. O § 3º, do artigo supra mencionado, infere que compete à lei federal estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no artigo 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Assim, a Magna Carta ao salvaguardar a liberdade de expressão e coibir a censura, preocupada com a família, em especial com a criança e o adolescente, estabeleceu limites, princípios e finalidades das quais as programações de televisão devem orientar-se. A Constituição, portanto, protegeu os Direitos inerentes á família, e esta, por sua vez, juntamente com o Estado, deve proteger os Direitos das crianças e dos adolescentes. O art. 227 da CF aduz que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, dentre outros direitos, o direito à educação, à cultura, à dignidade, ao respeito, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

11 CANELA, Guilherme. Televisão: ônus sem bônus? In: Remoto Controle. 1 ed. 2004

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Sem dúvida que a liberdade de expressão é ingrediente essencial na construção de um Estado Democrático de Direito. Todavia, nenhum direito é absoluto, visto que encontram limites nos demais direitos igualmente consagrados pelo texto constitucional. Sobre o tema, o Supremo Tribunal federal manifestou-se no MS nº 23.452/RJ, relator Min. Celso de Mello, DJ 12.05.200: Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medias restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerando o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

Nesse sentido, a doutrina e a jurisprudência têm enfatizado que os direitos e garantias fundamentais expõem-se a restrições autorizadas, expressa ou implicitamente, pelo texto da própria Constituição, já que não podem servir como manto para acobertar abusos do indivíduo em prejuízo à ordem pública. Desta feita, normas infraconstitucionais – lei, medida provisória – podem impor restrições ao exercício da liberdade de expressão consagrado na Constituição. Um exemplo é o Estatuto da criança e do adolescente que, por meio do artigo 74, regulamenta a veiculação de obras áudio visuais, estabelecendo que o poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. A liberdade de expressão é livre desde que não viole a integridade psíquica e a formação de crianças e adolescentes, com simples adequações de horários e faixas etárias com relação à veiculação dos programas. Assim, a liberdade de expressão pode ser limitada ante a veiculação de programas que explorem a sexualidade de crianças ou transmitam conteúdos violentos e racistas. Eleger a liberdade de expressão à categoria de direito absoluto, é prejudicar o direito alheio. A liberdade de expressão deve ser amplamente entendida no sentido de se reconhecê-la não, apenas, como um direito do produtor de TV, mas também como um direito da criança e do adolescente, em ter uma programação televisiva que cumpra sua função social.

984

Conforme salienta Alexandre de Moraes T

12

, a liberdade de expressão deve ser exercida T

com responsabilidade e seu desvirtuamento para o “cometimento de fatos ilícitos, civil ou penalmente, possibilitará aos prejudicados plena e integral indenização por danos materiais e morais, além do efetivo direito de resposta”.

4.2 Regulação do conteúdo e vedação à censura Uma das grandes dificuldades de se regulamentar o conteúdo dos programas de televisão se refere ao fato de que, para muitos, isso levaria a uma censura. O fato de países como o Brasil terem passado por um período ditatorial, onde as publicações sofriam rigorosos controles e a liberdade de expressão era constantemente maculada, contribuem para esse tipo de postura. Todavia, esta postura antiquária deve ser esquecida. Não se deve associar a limitação à liberdade de expressão à censura. O homem não pode ser tolhido de sua capacidade criativa, todavia devem ser respeitados os demais preceitos constitucionais. Tais preceitos é que tem legitimidade para limitar a liberdade de expressão. Assim, as leis que estabelecem limites à liberdade de expressão, fundamentadas no próprio sistema constitucional, não caracterizam censura. Desta feita, normas que venham a tipificar violações, pelos meios de comunicação, não caracterizam a censura. Obras que violem os direitos das crianças e adolescentes, os quais estão garantidos constitucionalmente e por meio do Estatuto da criança e do adolescente, não devem ser veiculadas, e caso sejam veiculadas, devem se submeter às sanções previamente estabelecidas legalmente. Não se trata de uma censura prévia, vez que a obra não condiz com preceitos fundamentais já sedimentados na sociedade e, portanto, não deve ser publicada. Um exemplo de controle efetivo do conteúdo da programação televisiva ocorre na Alemanha. Lá, há limites rígidos para a publicidade. É vedada qualquer inserção de mensagens publicitárias durante programas religiosos ou dirigidos ao público infantil. Na Inglaterra, existem dois órgãos que atuam no controle da programação: a Broadcasting Complaints Comission (BCC) e o Broadcasting Standart Council (BSC). A BCC é competente para o recebimento das queixas apresentadas pela audiência com relação aos programas transmitidos e o BSC tem autoridade nas questões referentes à violência, obscenidade e ética. 13 T

12

T

DE MORAES, Alexandre Direito Constitucional. 25ª ed.

13

LOPES, Vera de Oliveira Nusdeo. A Lei da Selva. In: a TV aos 50 – criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. Ed. Fundação Perseu Abramo, p.173.

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Nessa perspectiva, as políticas de classificação da programação, em função de sua adequação ou não a certas faixas etárias e horários, devem ser claras, ou seja, o Poder Público deve especificar, por exemplo, que programas com conteúdo violento só devem ser transmitidos após as 10 horas da noite. E, caso a emissora não cumpra o estabelecido admite-se, apenas, uma responsabilização a posteriori dos abusos que vierem a ser cometidos. Assim, deveriam ser estabelecidos parâmetros claros dos quais a classificação deve ser feita.

À autoridade responsável pela veiculação caberia a avaliação de como deve ser

enquadrado determinado programa, sujeitando-se a sanções caso não corresponda aos critérios estabelecidos. Ao Ministério da Justiça, por meio da Portaria 1.100, publicada em 14 de julho de 2006, compete o exercício da classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão. A transferência de determinada temática para horário posterior, ao destinado ao público infanto-juvenil, não viola a dignidade humana de ninguém. Ao contrário, assegura uma saudável liberdade de expressão.

4.3 A criação de um órgão independente para uma regulação eficiente da televisão A regulação é o instrumento que as democracias possuem para normatizar a atividade de setores de relevância estratégica para a sociedade. E, no que diz respeito à comunicação, a ação regulatória da mídia visa garantir o respeito aos direitos de crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que preserva um ambiente de liberdade de expressão. A regulação da interface mídia e infância vai de encontro aos principais marcos internacionais de Direitos Humanos (Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, Convenção sobre os Direitos da Criança) e nacionais (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente). Sabe-se que para que uma emissora de televisão goze de uma concessão pública, faz-se necessário um processo licitatório, o qual foi introduzido, para o caso da radiodifusão sonora de sons e imagens, apenas em 1997. Antes, vigorava a mais completa ausência de critérios para escolha do concessionário, possibilitando que fosse feita de forma arbitrária, segundo estrita conveniência pessoal dos governantes. Todavia, para que haja uma efetivação desse processo licitatório, é importante que sejam analisadas as propostas da emissora. É imprescindível observar se a emissora possui propostas para uma programação de qualidade que respeite os princípios constitucionais. Portanto, exigências devem ser feitas para a concessão incial, a fim de delimitar as regras e normas a serem

observadas

pelas

concessionárias,

especificando

as

penalidade,

caso

haja

descumprimento.

986

A fim de materializar a idéia acima exposta, cumpre analisar o exemplo dos Estados Unidos. Lá todo o setor de comunicações é regulamentado pela FCC, Federal Comunication Comission, criada em 1934. Trata-se de uma Agência ligada ao Congresso Nacional, mas com independência e autonomia. Para selecionar os concessionários, se houver mais de um interessado, a FCC analisa as propostas de cada um, para determinar qual deles melhor servirá ao interesse público. Leva-se, em conta, basicamente 2 critérios: qual deles oferece o melhor serviço e como a escolha de um dos candidatos poderá garantir a máxima difusão do controle dos meios de comunicação 14. T

T

Para que possam gozar de uma concessão púbica, também seria necessário que as emissoras possuíssem em seu corpo de diretores, profissionais independentes de seus controladores. Tais profissionais não teriam qualquer ligação com os “donos” da emissora. Eles iriam controlar à programação televisiva. Seriam, portanto, os responsáveis por uma programação em respeito aos princípios constitucionais. Cumpre salientar que a Lei Holandesa sobre os meios de comunicação social, de 1988, exigiu para que os órgão de imprensa pudessem receber auxílio financeiro social, que os jornais fossem editados sob a responsabilidade de um corpo de editores, independente dos controladores. Segundo Konder Comparato T

15

, é indispensável que o setor de comunicação seja regulado T

e fiscalizado por um órgão administrativo autônomo, do tipo autorité administrative independente, como ocorre na França. Seria um órgão não subordinado nem ao governo, nem ao legislativo. Esse órgão seria competente para outorgar concessões, renovações, e aplicar sanções pelo descumprimento dos preceitos legais, às emissoras de televisão. Iria substituir o mecanismo instituído pelo artigo 223 da CF, o qual propicia, claramente, a troca de favores entre o Presidente da república e os Parlamentares. Ademais, esse órgão autônomo seria responsável pela fiscalização do cumprimento dos princípios estabelecidos no artigo 221 da CF, no que concerne à produção e à programação das emissoras de televisão, bem como iria nortear a transmissão de programas em respeito ao ECA. Este órgão seria composto por representantes da sociedade civil, com uma participação efetiva na discussão das matérias envolvidas; do Ministério Público; da Ordem dos Advogados do Brasil; e de Organizações não-governamentais nacionais e internacionais.

14

LOPES, Vera de Oliveira Nusdeo. A Lei da Selva. In: a TV aos 50 – criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. Ed. Fundação Perseu Abramo, p.169. 15

COMPARATO, Fábio Konder. A democratização dos meios de comunicação de massa. In: A TV aos 50 – Criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. Ed. Fundação Perseu Abramo, p. 198.

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Os entes componentes deste órgão teriam a função, no que concerne à defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, de colocar em prática a classificação indicativa dos programas proposta pelo Ministério da Justiça. Cuidar da qualidade dos programas televisivos é um dever do Estado. É urgente a criação de um órgão autônomo e independente dos Poderes Estatais, com a função de fiscalizar a grade dos programas televisivos, a fim de preservar a integridade das crianças e dos adolescentes, seja por meio da classificação indicativa dos programas ou por meio de uma fiscalização direta em face das emissoras de TV que venham descumprir os regulamentos da concessão pública.

5. Considerações finais Ante a função social das emissoras de televisão, em face do instituto administrativo da concessão pública, seu poder de interferir no comportamento do público infanto-juvenil, bem como dos princípios constitucionais existentes que devem pautar o comportamento das emissoras, é possível concluir que a regulação da mídia televisiva, com base em normas regulamentadoras que promovam os direitos da criança e do adolescente, não configura censura. Ao contrário, salvaguardar os direitos infantis, fazendo com que as emissoras de televisão pautem sua programação difundindo a cidadania, preservando e promovendo a cultura regional e nacional, bem como respeitando os valores éticos e sociais da pessoa e da família, é garantir o respeito à uma liberdade de expressão saudável. Obras que violem os direitos das crianças e adolescentes, os quais estão garantidos constitucionalmente e por meio do Estatuto da criança e do adolescente (ECA) não devem ser veiculadas. O art. 17 do ECA assegura a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente. Sendo assim, qualquer programa que viole a integridade do público infantil deve ser passível de sanção, a fim de garantir o desenvolvimento mental e moral destes cidadãos. É necessário esclarecer que a comunicação social, numa sociedade democrática, é matéria de interesse público, isto é, pertinente ao povo. Desta feita, podem-se admitir formas, direta ou indireta, de controle sobre os meios de comunicação. O Poder Público, especialmente os parlamentares que compõem o Congresso Nacional, representantes direto do povo, deve fiscalizar se as emissoras televisivas estão cumprindo sua função social, em respeito ao interesse público. O argumento de que controlar é censurar deve ser superado. Do contrário, estar-se-á elegendo o direito de que dispõem os concessionários deste serviço público à categoria de direito absoluto, ferindo, de conseqüência, o direito a que têm as crianças e os adolescentes a uma programação televisiva adequada aos princípios constitucionais e normas legais vigentes. 988

A razão pelo qual as emissoras de TV não priorizam programas educativos, para o público infantil, é o fato de que este público não tem poder econômico e autonomia para intervir no mercado consumidor. Programas dessa natureza não são atrativos para os anunciantes. Todavia, este argumento deve ser superado, pois, as emissoras prestam um serviço público à sociedade, ainda que de entretenimento, e, portanto, não devem visar benefícios financeiros. Devem, ao contrário, priorizar o interesse público em detrimento de qualquer favorecimento particular. Para que o povo possa ver assegurado o seu direito fundamental à uma programação televisiva de qualidade, é indispensável que as empresas concessionárias do serviço público de radiodifusão sonora de sons e imagens possuam, em seu quadro administrativo, representantes independentes que possam fiscalizar, diretamente, se as emissoras estão cumprindo as obrigações pactuadas no contrato administrativo de concessão. Caso não estejam cumprindo corretamente suas funções, tais representantes devem informar ao órgão competente a irregularidade a fim de salvaguardar os direitos sociais dos cidadãos. Neste ínterim, a lei holandesa sobre os meios de comunicação social, de 1988, exigiu, para que as empresas de comunicação pudessem receber auxílio financeiro oficial, que os jornais fossem editados sob a responsabilidade de um corpo de editores, independente dos controladores. É indispensável, ainda, que o setor de comunicação social seja regulado e fiscalizado por um órgão administrativo autônomo, do tipo independent regulartory comission ou autorité administrative indépendante, como ocorre, respectivamente, nos Estados Unidos e na França. Tal órgão seria dotado de personalidade administrativa, mas não subordinado nem ao governo nem ao Legislativo, para não correr o risco de sofrer interferências políticas nas suas atribuições. Seria um órgão composto por representantes da sociedade, do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e de entidades não-governamentais que atuem na área de comunicação. A sociedade teria uma participação efetiva, denunciando as emissoras que estão desrespeitando os direitos constitucionais. Não seria uma participação meramente burocrática, como acontece no âmbito no Conselho de Comunicação Social. A sociedade, diferentemente, teria o poder de, até mesmo, fazer com que as emissoras retirem determinados programas de sua grade. Assim, conclui-se o presente trabalho na esperança de contribuir para o fomento das questões relacionadas à comunicação televisiva, com o objetivo de auxiliar e dar consistência às vozes levantadas em defesa de uma programação televisiva para crianças e adolescentes que se coadune com os princípios constitucionais.

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990

A colisão entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão Moisés Zarzar Correia de Melo1 T

T

Resumo

Abstract

Na era do pós-positivismo, na qual se encontra o direito constitucional contemporâneo, os direitos fundamentais atingiram uma magnitude normativa que os impõe não como meros princípios a serem utilizados quando a lei for omissa, mas como verdadeiros preceitos a serem tutelados e promovidos pelo estado. Em virtude do pluralismo democrático inscrito na Constituição de 1988, é comum haver conflitos entre direitos fundamentais, fazendo-se necessário ponderá-los com o intuito de que cada um seja considerado de acordo com as exigências determinadas pelas circunstâncias e a constituição como um todo seja respeitada na maior plenitude possível. Porém, em determinadas situações, os conflitos são meramente aparentes, visto que a análise do caso concreto pode revelar que ele não está inserido no âmbito de proteção de um determinado direito fundamental. Este trabalho teve como objetivo geral tentar identificar, na legislação pertinente, na doutrina e na jurisprudência, quais os possíveis caminhos que podem ser seguidos pelos operadores jurídicos de forma a solucionar da melhor forma o conflito entre os direitos à privacidade e à liberdade de expressão. Para isso, foi utilizada a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. a principal conclusão deste trabalho é que não foram estabelecidos critérios uníssonos, havendo alguns, entretanto, que têm maior predominância que outros.

In the era of post-positivism, which is the contemporary constitutional law, fundamental rights have reached a magnitude that imposes rules not merely as principles to be used when the law is silent, but as true precepts to be protected and promoted by the state. due of democratic pluralism in the constitution of 1988, there is often conflict between fundamental rights, making it necessary to consider them in order to each one be considered in accordance with the requirements determined by the circumstances, and the constitution as a whole is respected as much as possible. However, in certain situations, conflicts are merely apparent, since the analysis of the case may reveal that he is not inserted into the scope of protection of a particular fundamental right. This study aimed to try to identify, through the relevant legislation, doctrine and jurisprudence, what are the possible paths that can be followed by the legal order to solve optimally the conflict between privacy rights and freedom of expression. For this, the literature and case law was used. The main finding of this study is that no criteria were set in unison, but there are criteria that prevail.

Palavras-Chave: Direito Constitucional; Colisão Direitos Fundamentais; Privacidade; Liberdade Expressão.

1

de de

Bacharel em Direito – UNICAP - [email protected]

991

1. Colisão entre direitos fundamentais Em diversos julgados nacionais e estrangeiros, ficou claramente evidenciada a existência de limites para os direitos fundamentais. A doutrina também se filia a essa idéia, a exemplo de Andrade2, ao afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados, estando T

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expostos a limites internos, frutos do conflito entre valores que representam os diversos desdobramentos da dignidade da pessoa humana, e a limites externos, que advêm da necessidade de conciliar as exigências intrínsecas a esses direitos com aquelas que são próprias da vida em sociedade, tais como a ordem pública, a ética ou moral social, a autoridade estatal, a segurança nacional. Como ressaltado por Andrade3, existem basicamente três formas em que se apresentam T

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esses conflitos entre valores. A primeira delas atinge o próprio âmbito de proteção constitucional do direito fundamental, que ocorre nas situações em que certas formas ou modos do seu exercício são excluídos em termos absolutos. Esses são os chamados limites imanentes. A segunda resulta da intervenção legislativa para salvaguarda de valores constitucionais. Trata-se das leis restritivas de direitos fundamentais. A terceira e última forma, que é a que interessa especificamente neste ponto, provém das diversas situações em que, dentro de determinadas circunstâncias, há uma concorrência direta entre diferentes valores constitucionais: são essas as chamadas colisões de direitos fundamentais ou conflitos em sentido estrito. Porém, antes de adentrar especificamente na temática das colisões de direitos fundamentais, é necessário esclarecer um conceito de suma importância, com o intuito de se evitar a queda na armadilha do conflito meramente aparente. Trata-se de entender em que consiste o âmbito de proteção de um direito fundamental. Segundo Mendes4, ele “abrange os T

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diferentes pressupostos fáticos e jurídicos contemplados na norma jurídica”. Assim, antes de se tentar solucionar um caso concreto, em que se supõe que haja um conflito entre dois específicos direitos fundamentais, faz-se mister verificar cuidadosamente o âmbito de proteção dos direitos envolvidos, pois as circunstâncias envolvidas podem excluir aquela situação específica da tutela constitucional, de forma que nem sequer haja de fato dois direitos em colisão, mas apenas um deles. Por vezes, a Constituição é expressa nas restrições a determinados direitos fundamentais. Por exemplo, de acordo com o art. 5°, inciso VII, da Constituição, “é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva”. Trata-se de reserva legal expressa, ou seja, há uma previsão constitucional autorizando que o legislador infraconstitucional restrinja esse direito. Como a cláusula autorizadora da restrição é 2

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 213-214.

3

Ibidem, p. 214.

4

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 284.

992

genérica, “nos termos da lei”, trata-se de reserva legal simples. Em outro exemplo de reserva legal expressa, o poder constituinte, no art. 5°, inciso XIII, determinou que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Porém, neste caso, a reserva legal é qualificada, pois a restrição legislativa terá que se ater a estabelecer requisitos atinentes a “qualificações profissionais”. Há outras situações em que os limites não são tão claros, havendo até uma aparente falta de limite. É o caso, por exemplo, dos direitos à intimidade e à vida privada, contidos no art. 5°, inciso X, da Constituição, que determina: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Interpretada gramaticalmente, a Constituição parece estar dizendo que esses direitos são absolutos, ilimitados. Porém, alguns princípios hermenêuticos constitucionais determinam que não é dessa forma que deverá ser efetuada a leitura da Carta Magna. Para dar apenas um exemplo, o princípio da unidade da Constituição determina que “as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios, que é instituído na e pela própria Constituição.” 5 T

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Assim, a partir de uma leitura sistemática, integradora da Constituição, é possível se perceber situações em que está configurada a exclusão de determinadas condutas do âmbito de proteção de determinados direitos fundamentais. José Carlos Vieira de Andrade apresenta uma série de exemplos de condutas que revelam a existência de limites imanentes aos direitos fundamentais, que implicam na existência meramente aparente de conflito: Por exemplo, poder-se-á invocar a liberdade religiosa para efectuar sacrifícios humanos ou para casar mais de uma vez? Ou invocar a liberdade artística para legitimar a morte de um actor no palco, para pintar no meio da rua, ou para furtar o material necessário à execução de uma obra de arte? Ou invocar o direito de propriedade para não pagar impostos, ou o direito de sair do país para não cumprir o serviço militar, ou o direito de educar os filhos para os espancar violentamente? Ou invocar a liberdade de reunião para utilizar um edifício privado sem autorização, ou a liberdade de circulação para atravessar a via pública sem vestuário, ou o direito à greve para destruir ou danificar equipamentos da empresa ou para que Portugal faça pressão para o reconhecimento do estatuto de preso político aos membros do IRA? 6 T

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Segundo Andrade7, os limites imanentes também se apresentam nas situações em que um T

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direito fundamental afeta um outro direito no seu conteúdo essencial, visto não ser possível, sob pena de falta de unidade constitucional, que haja colisão entre os conteúdos essenciais de dois direitos. Segundo o autor, para definir o que seria o conteúdo essencial de um direito fundamental, existem dois tipos de teorias: absolutas e relativas. Segundo as teorias absolutas, o conteúdo essencial consistiria em um núcleo fundamental, que poderia ser determinado em abstrato, e que 5

Ibidem, p. 107.

6

ANDRADE, op. cit., p. 216-217.

7

Ibidem, p. 222.

993

seria de fato intocável. Seria um espaço de maior intensidade valorativa que não poderia ser afetado, para que o direito em si não deixasse de existir. 8 T

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Já para os adeptos das teorias relativas: o núcleo essencial seria aferido mediante a utilização de um processo de ponderação entre meios e fins (Zweck-Mittel-Prüfung), com base no princípio da proporcionalidade. O núcleo essencial seria aquele mínimo insuscetível de restrição ou redução com base nesse processo de ponderação. 9 T

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Mas a controvérsia em relação ao conteúdo essencial do direito fundamental não se limita à questão entre os que admitem e os que não admitem a sua relativização, pois se discute, também, se esse conteúdo ou núcleo essencial deve ser interpretado em sentido subjetivo ou objetivo. De acordo com a visão subjetiva, o que seria proibido seria a supressão de um direito subjetivo determinado, ao passo que, para os que se filiam à corrente objetiva, o que se pretenderia assegurar seria a intangibilidade objetiva de uma garantia dada pela Constituição10. T

T

Segundo Klaus Stern11: T

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embora não se haja formado uma doutrina dominante em torno do tema, tem-se unanimidade em relação à idéia de que a proteção do núcleo essencial refere-se ao elemento essencial (essentiale) dos direitos fundamentais, não se podendo afirmar que tal garantia seja supérflua.

No caso de colisão efetiva de direitos fundamentais, recorre-se ao princípio da proporcionalidade. Segundo Sarmento12, esse princípio passou a ser utilizado na seara T

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constitucional somente após a Segunda Guerra Mundial, na Alemanha, tendo depois se difundido para outros países europeus, como a Itália, onde é chamado de princípio da razoabilidade, Portugal, onde há expressa previsão constitucional, e Espanha. Nos Estados Unidos da América, sob influência do common law, herdado da Inglaterra, foi acolhido o princípio da razoabilidade, a partir de uma interpretação evolutiva da cláusula do devido processo legal – due process of law. Conforme salientado por Daniel Sarmento, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, embora cristalizados a partir de diferentes matrizes históricas, na prática são intercambiáveis, uma vez que se propõem à mesma finalidade: “coibir o arbítrio do Poder Público, invalidando leis e atos administrativos caprichosos, contrários à pauta de valores abrigada pela Constituição.” 13 T

8

Ibidem, p. 233.

9

MENDES, op. cit., p. 307.

10

Ibidem, p. 308.

11

apud MENDES, op. cit., p. 309.

T

12

SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 80.

13

Ibidem, p. 87.

994

Ensina Sarmento14 que o princípio da proporcionalidade é decomposto em três T

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subprincípios: adequação, necessidade (ou exigibilidade) e proporcionalidade em sentido estrito. De acordo com o subprincípio da adequação, deve-se aferir a idoneidade da medida administrativa ou legislativa para a consecução da finalidade estatal perseguida, havendo assim uma convergência entre os fins e os meios. Já o subprincípio da necessidade determina que o Poder Público deverá sempre adotar a medida menos gravosa possível para atingir uma determinada finalidade, ou seja, dentre várias formas de se chegar a um determinado resultado, o administrador ou legislador deverá optar pela forma que afete com menos intensidade os direitos e interesses da coletividade em geral. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito é no sentido de que deverá haver uma ponderação, colocando-se de um lado da balança os interesses protegidos pela medida a ser tomada, e do outro os bens jurídicos que serão restringidos ou sacrificados por ela. “Se a balança pender para o lado dos interesses tutelados, a norma será válida, mas, se ocorrer o contrário, patente será a sua inconstitucionalidade.” 15 T

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Segundo José Carlos Vieira de Andrade, não se trata de prescrever propriamente a realização ótima de cada valor em jogo, em termos matemáticos, mas apenas “um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medida possível.”16. Além disso, a escolha entre as diversas T

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possíveis soluções aplicáveis ao caso concreto deverá ser realizada de forma a comprimir o mínimo possível cada valor envolvido, segundo o respectivo peso na situação, ou seja, “segundo a intensidade e a extensão com que a sua compressão no caso afecta a protecção que lhes é constitucionalmente concedida.” 17 T

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Um excelente exemplo de ponderação de interesses pode ser visualizado no seguinte trecho da argumentação desenvolvida na decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha sobre o aborto (BVerfGE 39, 1), de 25/02/1975: Não é possível uma equalização que garanta a proteção da vida do nascituro e a liberdade da gestante de praticar o aborto, visto que este sempre significa a aniquilação da vida intra-uterina. Na ponderação, por isso mesmo necessária, “... os dois valores constitucionais devem ser vistos como ponto central do sistema de valores da constituição em sua relação com a dignidade humana” (BVerfGE 35, 202 [225]). Numa orientação pelo Art. 1 I GG, a decisão deve ser tomada em favor da prioridade da proteção à vida do nascituro contra o direito de livre escolha da gestante. Esta pode ser atingida pela gestação, parto e educação da criança em muitas possibilidades do desenvolvimento da sua personalidade. Em contrapartida, a vida do nascituro será aniquilada pelo aborto. Por isso, pelo princípio da harmonização mais poupadora das posições concorrentes [...]

14

Ibidem, p. 87.

15

Ibidem, p. 89.

16

ANDRADE, op. cit., p. 222.

17

Ibidem, p. 223.

995

protegidas pela Grundgesetz, observando-se o pensamento básico do Art. 19 II GG, deve prevalecer a vida do nascituro. 18 T

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2. A liberdade de expressão em colisão com o direito à privacidade Entre as restrições que abrandam o âmbito de proteção da liberdade de expressão, vale ressaltar aquela que determina o respeito aos direitos atinentes à privacidade, a qual está prescrita no art. 220, § 1°, da Constituição, in verbis: Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. (grifos nossos).

O art. 5°, inciso X, assim prescreve, in verbis: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (grifo nosso)

Como é possível perceber pela leitura do dispositivo acima transcrito, a liberdade de expressão, especialmente na sua vertente jornalística, ao ser regulada por lei, terá de observar, entre outros, os preceitos estabelecidos pelo art. 5°, inciso X, referentes ao direito à privacidade. Dessa forma, fica estabelecido que, no ordenamento jurídico brasileiro, a priori, a liberdade de expressão não poderá ser colocada em um nível hierárquico acima dos direitos à intimidade e à vida privada, da mesma forma que esses direitos não poderão ficar, antecipadamente, à frente daquela liberdade. Fica então para se ponderar, no caso concreto, qual direito deverá prevalecer: o direito à liberdade de expressão ou o direito à privacidade. Segundo Edilsom Farias, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm tentado estabelecer critérios hermenêuticos para guiar racionalmente a superação da colisão em comento, “mas o resultado está longe de constituir um quadro rígido e estabilizado de soluções.”19 Segundo o autor, T

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sob determinadas situações e requisitos, haveria uma prevalência das opiniões e informações divulgadas. A primeira situação elencada pelo autor seria a relevância social da informação ou da opinião, referentes a pessoas ou assuntos públicos. No que diz respeito aos assuntos públicos, independentemente das pessoas envolvidas serem ou não públicas, estão incluídos, por exemplo, “os assuntos políticos em geral e os atinentes à administração da coisa pública, especialmente quando relacionados ao desempenho das funções executiva, legislativa e judiciária do Estado”. A segunda situação ou requisito seria concernente à veracidade das informações difundidas, ou seja, trata-se do comunicador provar que, antes de divulgá-las, “realizou uma diligente e acurada verificação das fontes das notícias (verdade putativa).” O terceiro requisito consistiria na 18

MARTINS, Leonardo (org.). Cinqüenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Montevidéu: Fundação Konrad Adenauer, 2006, p. 270. 19

Ibidem, p. 252.

996

moderação e adequação das expressões utilizadas, ou seja, “a exposição deve evitar o uso de epítetos pejorativos ou de meras sacadilhas, que em nada contribuem para o exercício da liberdade de expressão e comunicação”.20 Segundo o autor, a esses requisitos, que já qualificam T

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a prevalência da liberdade de expressão, ainda pode ser acrescentado o exercício regular da liberdade de comunicação, que favoreceria ainda mais essa liberdade em face do direito à privacidade. 21 T

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Por sua vez, Sampaio22, ao destacar que não devem ser levados em consideração apenas T

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os aspectos objetivos e transcendentes da notícia, defende que, por se tratar de uma colisão que envolve valores que, a priori, gozam de um mesmo nível de proteção, devem também ser consideradas as seguintes situações fáticas presentes: (1) quais fatos estão sendo noticiados; (2) a influência do ânimo ou comportamento do envolvido; (3) o âmbito espacial de proteção; (4) a notoriedade do fato ou da pessoa; (5) o lapso de tempo transcorrido desde o momento em que ocorreram os fatos narrados. A seguir, essas situações fáticas listadas, com exceção da última, que não foi caracterizada em detalhes pelo autor, serão explanadas de forma resumida. (1) Para serem investigados ou revelados fatos essencialmente sensíveis, Farias sustenta que deverá haver “justificativa particularmente séria, objetiva e relevante ao interesse público”23. T

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Como exemplos de fatos que podem ser classificados como essencialmente sensíveis, o autor cita os seguintes: estado de saúde, defeitos físicos, tratamento médico ou submissão à intervenção cirúrgica, recuperação de um estado mórbido, opiniões políticas, filosóficas e religiosas, incluindo o exercício da religiosidade ou da prática de culto; relações conjugais e extraconjugais, a natureza da união conjugal, história amorosa e sentimental, relações familiares e afetivas, preferências e gostos sexuais. 24 T

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(2) Para se avaliar se uma determinada invasão de privacidade pode ser considerada lícita, é fundamental tomar em conta o comportamento da pessoa, pois pode se tratar de uma pessoa que busca os holofotes, donde se possa concluir haver um consentimento tácito para que “a mídia reproduza, em uma platéia ainda mais ampliada, suas confissões e aventuras”, não se deixando de considerar, por outro lado, a possibilidade de haver modificações nessa franquia, pois quem se expunha anteriormente poderá, em um outro momento, recolher-se ao “anonimato e à benevolência pacificadora do tempo.” 25 T

20

Ibidem, p. 253.

21

Ibidem, p. 254.

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22

SAMPAIO, José Adercio Leite. Direito à intimidade e à vida privada: uma visão jurídica da sexualidade, da família, da comunicação e informações pessoais, da vida e da morte. Belo horizonte: Del Rey, 1998, p. 389-390. 23

Ibidem, p. 391.

24

Ibidem, p. 390-391.

25

Ibidem, p. 391.

997

(3) Em ambiente público, a pretensão de intimidade chega a ser restringida, mas não a ponto de ser eliminada. Para o autor, na via pública, o indivíduo deverá se sentir anônimo, livre da identificação ou observação, “não podendo ser fotografado, a menos que não seja facilmente identificável e não esteja em primeiro plano na foto”. 26 T

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(4) Não se pode incluir no âmbito de reserva fatos públicos, tais como os constantes em autos de processos judiciais que não sejam cobertos pelo segredo de justiça. Também deve ser considerada a projeção pública das pessoas envolvidas, não no sentido de negar inteiramente o espaço de intimidade dessas pessoas, mas no de restringir, de forma contingencial e funcional, o seu alcance, obedecendo à regra da finalidade e proporcionalidade da divulgação, que pode ser traduzida sinteticamente nas seguintes questões: há realmente interesse público “no conhecimento da informação a ser veiculada? Se houver, é suficientemente relevante para suplantar a intimidade da pessoa noticiada?” 27 T

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3. Como a jurisprudência brasileira tem ponderado os direitos à privacidade e à liberdade de expressão Na jurisprudência brasileira, como na estrangeira, é comum o conflito entre a liberdade de expressão e os direitos atinentes à privacidade. A seguir, serão apresentados alguns exemplos, que demonstram quais critérios têm sido utilizados pelos julgadores para se efetuar a conciliação de interesses tão antagônicos. No REsp N° 1.082.878-RJ, que não proveu o inconformismo da Editora Globo, condenada em primeira e segunda instância a indenizar o ator Marcos Fábio Prudente, conhecido como Marcos Pasquim, por ter publicado na revista Quem Acontece uma foto do artista em que ele aparece beijando mulher que não era sua cônjuge, em local público, sem sua autorização. De acordo com as informações obtidas do inteiro teor do recurso especial, percebe-se que foi comprovado o ato ilícito da editora, por ter obtido as fotos “furtivamente, de forma invasiva, provavelmente com o uso de lente teleobjetiva ou zoom digital”28. A sentença deu provimento ao T

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autor, condenando a recorrente ao pagamento de R$ 40.000,00 a título de danos morais. Porém, o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reduziu o quantum indenizatório para R$ 5.000,00. Abaixo, a ementa desse acórdão: DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. DIREITO À IMAGEM E À INTIMIDADE EM OPOSIÇÃO AO DIREITO À LIBERDADE DE INFORMAÇÃO. PUBLICAÇÃO DE FOTO DE PERSONALIDADE ARTÍSTICA. BEIJO EM PÚBLICO. FOTOS QUE REVELAM EXPOSIÇÃO DESCUIDADA DO AUTOR, A QUEM COMPETE A TUTELA PRIMORDIAL DO DIREITO À IMAGEM E À INTIMIDADE, TANTO MAIS QUANDO SABEDOR DE QUE SUA EXPOSIÇÃO INTERESSA À SOCIEDADE E, 26

Ibidem, p. 391.

27

Ibidem, p. 392.

28

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Recurso Especial n° 1.082.878-RJ (2008/0187567-8). Recorrente: Editora Globo S/A. Recorrido: Marcos Fábio Prudente. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 14 out. 2008, p. 7.

998

VIA DE CONSEQÜÊNCIA, À MÍDIA. IMAGENS INVASIVAS CUJA PUBLICAÇÃO FOI EVIDENTEMENTE EXPLORADA, EM PREJUÍZO DO DEMANDANTE. QUANTUM INDENIZATÓRIO QUE SE REDUZ PARA R$ 5.000,00, VISTO QUE, EMBORA REPROVÁVEL A CONDUTA DA RÉ, ESTA NÃO PODE SER RESPONSABILIZADA INTEGRALMENTE PELAS OPÇÕES PESSOAIS DO AUTOR [...] 29 T

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Constata-se, pela leitura do excerto acima, que foram levadas em consideração a atitude da vítima, que se expôs em local público, e cujo direito à privacidade, por ser pessoa pública, é atenuado, mas não excluído. Também foi considerado o fato de que a ré explorou a imagem da vítima com o propósito de incrementar a venda da revista, como se constata pelo excerto abaixo: Não há dúvida que está na espécie caracterizada a abusividade no uso da imagem na reportagem, porque, fora apenas um texto jornalístico, relatando o fato (verdadeiro) ocorrido, desacompanhado de fotografia, desapareceria totalmente o alegado abuso por não ter imagem. Não se pode ignorar que o uso de imagem é feito com o propósito de incrementar a venda da revista. Assim, tendo a recorrente feito chamada de capa, e nesta usado a imagem (em tamanho menor) do recorrido e no interior da revista repetido a foto em tamanho maior, não há dúvida que excedeu, e pelo excesso deve responder. 30 T

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No trecho abaixo, é ressaltado o aspecto de se tratar de pessoa pública: A situação do recorrido é especial, pois se trata de pessoa pública, por isso os critérios para caracterizar violação da privacidade são distintos daqueles desenhados para uma pessoa cuja profissão não lhe expõe. Assim, o direito de informar sobre a vida íntima de uma pessoa pública é mais amplo, o que, contudo, não permite tolerar abusos. No presente julgamento, o recorrido é artista conhecido e a sua imagem foi atingida pela simples publicação, até porque a fotografia publicada retrata o recorrido, que é casado e em público beijava uma mulher que não era a sua cônjuge. 31 T

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Importante também destacar que o arrazoado acima foi utilizado para a edição da Súmula 403 do STJ, que foi assim ementada: Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais. 32 T

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Um caso que teve bastante repercussão em diversos veículos de comunicação nacionais e internacionais foi o que envolveu a modelo Daniella Cicarelli Lemos e o seu namorado à época, Renato Aufiero Malzoni Filho, os quais, em agosto de 2006, foram filmados em momentos de intimidade, por um paparazzo, enquanto namoravam em uma praia espanhola. A empresa 29

Ibidem, p. 4.

30

Ibidem, p. 8-9.

31

Ibidem, p. 9.

32

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. Súmula n° 403. Brasília, 28 out. 2009.

999

YouTube Inc., sem autorização do casal, divulgou em seu sítio eletrônico o filme, ao qual foi dado o seguinte título: “Daniella Cicarelli transando no mar”. Veículos da internet brasileira, incluindo o iG e a globo.com, divulgaram fotos e links para o vídeo. Em decorrência desses fatos, o casal impetrou na justiça paulista uma ação inibitória em face das empresas citadas, com o intuito de obrigá-las a cessarem imediatamente, sob pena de multa diária, a exibição do vídeo e das fotos dele extraídas, seja diretamente ou via links, para evitar maiores transtornos à sua vida privada. A petição inicial continha também um pedido de antecipação de tutela, que foi negado33. Em virtude T

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do indeferimento da antecipação de tutela, foi interposto um agravo de instrumento junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo, que deu provimento ao pedido, confirmado por maioria na 4ª Câmara de Direito Privado. 34 T

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Segundo o entendimento do relator do agravo de instrumento, favorável ao provimento: [...] não custa realçar a importância dos direitos da personalidade no estágio atual do Direito. [...] CARLOS ALBERTO BITTAR [...] sempre defendeu o conceito de resguardo da intimidade e da imagem retrato, ainda que em se cuidando de pessoas famosas, como artistas, que, igualmente, não merecem testemunhar agressões de sua imagem em revistas de sexo, de pornografia e ilustrações de textos indecorosos [Os Direitos da Personalidade, 2ª edição, Forense Universitária, 1995, p. 91]. 35 T

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Continuando sua argumentação, o relator inicia a ponderação de interesses: Aliás, sobre essa circunstância e devido ao fato de a questão atingir pessoa conhecida, como Daniela Cicarelli, é de rigor mensurar se a informação que está sendo transmitida caracteriza adequada utilidade de conhecimento, isto é, se é bom para a sociedade insistir na transmissão do vídeo em que os dois cometem excessos à beira-mar. Não soa razoável supor que a divulgação cumpre funções de cidadania; ao contrário, satisfaz a curiosidade mórbida, fontes para mexericos e “desejo de conhecer o que é dos outros, sem conteúdo ou serventia socialmente justificáveis” [GILBERTO HADDAD JABUR, “A dignidade e o rompimento da privacidade”, in Direito à Privacidade, Idéias e Letras, 2005, p. 99]. 36 T

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Apreciando especificamente o tempero da privacidade de pessoas famosas: O direito à imagem sofre, não se discute, temperamentos. Não é absoluto, embora de cunho potestativo [somente o titular poderá dele dispor, mediante consentimento] cede frente ao interesse público preponderante. A pessoa não poderá se opor, por exemplo, que sua imagem-retrato seja incluída como parte de um cenário público, como quando é fotografada participando de um evento público, de uma festa popular, de um jogo esportivo, etc. Alguns segredos de pessoa notória podem ser contados e não filmados, com a discrição necessária. [...] 33 RONALDO. Veja a sentença que proibiu a veiculação do vídeo de Daniella Cicarelli na internet. Área de Trabalho. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2011. 34

PORFÍRIO, Fernando. Justiça confirma veto ao vídeo de Cicarelli na internet. Consultor Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2011. 35

Ibidem.

36

Ibidem.

1000

Contudo, como adverte a Professora MARIA HELENA DINIZ [“Direito à imagem e sua tutela”, in Estudos de Direito de Autor, Forense Universitária, 2002, p. 101], essa restrição é legítima quando a figura da pessoa não é destacada com insistência, pois o objeto da licença é o de divulgar uma cena em que a imagem da pessoa seja parte integrante [secundária]; aqui, no entanto, o que se verifica é a exploração das imagens das pessoas na praia e não o contrário. [...] 37 T

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Continuando o sopesamento de valores: Resulta que não há uniformidade sobre essa importante variante do direito contemporâneo. Não é permitido afirmar, de forma categórica, no intróito da lide, que os jovens que protagonizaram cenas picantes não possuem direito de preservarem valores morais, como o de impedir que esses vídeos continuem sendo acessados por milhares de internautas, porque isso constrange e perturba a vida dos envolvidos, como relatado nos autos. E, na dúvida sobre o direito preponderante, “o privilégio sempre há de ser da vida privada. Isso por uma razão óbvia: esse direito, se lesado, jamais poderá ser recomposto em forma específica: ao contrário, o exercício do direito à informação sempre será possível a posteriore, ainda que, então, a notícia não tenha mais o mesmo impacto” [SÉRGIO CRUZ ARENHART, A tutela inibitória da vida privada, RT, 2000, p. 95]. 38 T

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No trecho abaixo, o relator aborda a questão do consentimento da pessoa, que, no caso, não pode ser tácito: No caso em apreço, segundo consta dos autos, a exposição da imagem dos autores é do tipo que causa depreciação, com ofensa ao resguardo e a reserva, porque são filmagens que estão sendo transmitidas como forte apelo sexual e com sentido obsceno. Nessa situação, lembra ADRIANO DE CUPIS, o consentimento da pessoa, com a exposição de imagem lesiva à honra, é obrigatoriamente expresso e específico [Os Direitos da Personalidade, Lisboa, 1961, p. 140], conceito que se aplica à hipótese, pois, ainda que eles não proibissem a indiscrição do paparazzi, como se aventou, deveria existir concordância deles para a publicação dos lances íntimos, porque depõem contra o resguardo da privacidade. Os paparazzi são conhecidos pelo modo agressivo com que atuam na captação das imagens, informa REGINA SAHM [Direito à imagem no direito civil contemporâneo, Atlas, 2002, p. 207], o que caracteriza a ilicitude de suas atividades [voyeurismo]. Negar a tutela antecipada seria premiar a atuação desses profissionais que não pedem autorização para suas filmagens e fotos e, principalmente, legalizar o sensacionalismo e o escândalo propagados pelos meios de comunicação, sem licença dos envolvidos. 39 T

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No excerto abaixo, o relator aborda a intensidade do sacrifício que está sendo sofrido pelo casal, o que faz parte da ponderação de interesses: Os postulantes afirmam que não autorizaram as fotografias e as filmagens, e isso é verossímil, uma conclusão que se toma diante das circunstâncias em que foram fotografados e filmados. O Juiz poderá aplicar o art. 335, do CPC, para entender que, até prova em contrário, é permitido presumir que não autorizaram que seus momentos de intimidade fossem divulgados pelo mundo todo, como está 37

Ibidem.

38

Ibidem.

39

Ibidem.

1001

ocorrendo. Há reclamação da parte dos envolvidos de que a maciça divulgação das cenas, da forma pornográfica e escandalosa que se confirma pelos documentos juntados, está repercutindo mal no ambiente de trabalho deles, o que é um motivo de reforço da tutela que se concede, originariamente, para preservação de sentimentos e direitos fundamentais da dignidade humana [art. 1º, III, da Constituição Federal]. 40 T

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Continuando a ponderação de interesses, o relator aborda o outro lado da balança: Tendo em vista que o vídeo não contém matéria de interesse social ou público, há uma forte tendência de ser, no final, capitulada como grave a culpa daqueles que publicaram, sem consentimento dos retratados e filmados, as cenas íntimas e que são reservadas como patrimônio privado. Portanto e porque as pessoas envolvidas são conhecidas, a exploração da imagem poderá ter um sentido e uma conotação mercantilista, o que justifica mensurar a astreinte na mesma proporção das vantagens que as requeridas pretendem auferir com a divulgação, sob pena de se tornar inócua a providência judicial. 41 T

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Em sentido contrário à decisão referente ao agravo de instrumento, o juiz de primeiro grau, Gustavo Santini Teodoro, na sua decisão final, julgou improcedente a ação. Seu principal argumento foi baseado na conduta do casal, tendo se utilizado inclusive de julgado anterior para reforçar sua tese de que o comportamento da vítima pode transformar em lícita a divulgação de sua intimidade, quando ela própria abre mão da sua esfera de proteção expondo ao público aquilo que teria caráter reservado. Nos excertos abaixo, utilizados pelo magistrado, é apresentado o arrazoado de um precedente referente a uma moça que foi fotografada de topless em uma praia lotada: A partir do momento que uma jovem, por sua vontade livre e consciente, desnuda os seios em local público, expõe-se ela à apreciação das pessoas que ali se fazem presentes, de tal sorte que se jornal [...] lhe fotografa, apenas registra um fato que ocorreu numa praia, ampliando a divulgação de uma imagem que se fez aberta aos olhos do público. 42 T

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[...] Da mesma forma que tinha direito, diante da liberdade que lhe é assegurada, de praticar topless, o fotógrafo usou da liberdade para fazer seu trabalho e registrou esta cena, e [...] o jornal veiculou esta fotografia, exercendo seu direito de liberdade de imprensa. 43 T

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Depois de reconhecer a diferença entre as situações tratadas no precedente e no caso Cicarelli, o juiz defende que as situações são idênticas no que tange aos limites do direito à imagem. Assim, implicitamente, ele estava se referindo aos limites imanentes, que quando presentes implicam na inexistência de colisão de direitos, quando defendeu que “em certas 40

Ibidem.

41

Ibidem.

42

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial n° 595.600-SC (2003/0177033-2). Recorrente: Maria Aparecida de Almeida Padilha. Recorrido: Zero Hora Editora Jornalística S/A. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. Brasília, 18 mar. 2004, p. 2.

43

Ibidem, p. 4-5.

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circunstâncias, não há dever de abstenção na divulgação da imagem, quando esta é exibida pela própria pessoa em local público.”44 Para ele, então, o cerne da questão seria “definir se existe o T

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dever de não divulgar vídeo ou foto de pessoa que expõe sua imagem em local público, numa situação não exatamente corriqueira, que pode chamar a atenção de terceiros.” 45 T

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O magistrado transcreveu outros trechos do precedente supracitado, em que se defende que “o deslinde da controvérsia [...] reclama a conciliação de dois valores sagrados”, que seriam “o da liberdade de informação (no seu sentido mais genérico, aí incluindo-se a divulgação da imagem) e o da proteção à intimidade, em que o resguardo da própria imagem está subsumido.”46 T

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Os excertos abaixo, também utilizados pelo magistrado, evocam os limites da proteção da intimidade e da liberdade de expressão: Todavia, a proteção à intimidade não pode ser exaltada a ponto de conferir imunidade contra toda e qualquer veiculação de imagem de uma pessoa, constituindo uma redoma protetora só superada pelo expresso consentimento, mas encontra limites de acordo com as circunstâncias e peculiaridades em que ocorrida a captação. 47 T

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[...] não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito a própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionarse a existência de evidente interesse jornalístico que, por sua vez, tem como referencial o interesse publico, a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário publico ou espontaneamente. 48 T

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No último excerto utilizado pelo magistrado, defende-se que: se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução sem conteúdo sensacionalista pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada. 49 T

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Apesar de ter admitido que, no caso em análise, diferentemente da situação tratada no precedente, houve conteúdo sensacionalista, tendo sido apresentados os momentos íntimos do casal até mesmo em tom pornográfico, e que a divulgação ocorreu “em inúmeros meios de comunicação e na internet, em proporção infinitamente maior”, o julgador avaliou que, “nada disso decorreu de conduta dos réus”. 50 T

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Mais uma vez retomando a questão do comportamento das vítimas, o magistrado argüiu que os autores (Daniella Cicarelli e o seu namorado), depois de terem efetuado uma viagem à 44

RONALDO, op. cit.

45

Ibidem.

46

BRASIL, op. cit., p. 5.

47

Ibidem, p. 5.

48

Ibidem, p. 6.

49

Ibidem, p. 6.

50

RONALDO, op. cit.

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praia de Mikonos, na Grécia, quando teriam sido acompanhados de perto pela imprensa, “deveriam saber que não poderia ser diferente na viagem à Espanha”, de forma que toda a algazarra em torno do caso, para ele, teria decorrido da conduta do casal conhecido que trocou carícias íntimas na praia, e “não propriamente da divulgação do vídeo no site do co-réu Youtube e das fotos e links nos sites dos co-réus Globo e IG”. 51 T

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Finalmente, com base no subprincípio da adequação, componente do princípio da proporcionalidade, assim argumentou o juiz: É de conhecimento de qualquer pessoa minimamente integrada ao mundo atual que ocorre essa multiplicação exponencial da informação via internet. A utilização dos mecanismos jurídicos tradicionais, como o desta ação, é completamente inócuo e até mesmo cômico. Como corretamente sustentado pelo co-réu Internet Group (fls. 623-624, itens 61, 62 e 65), a conduta dos autores viola o princípio da boa-fé objetiva, pois não lhes é permitido agir de “dada maneira em público e depois afirmar que isso não poderia ser veiculado publicamente”. 52 T

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Os casos acima destacados foram selecionados não apenas pela repercussão que causaram nos meios de comunicação, mas principalmente por servirem de exemplos de situações nas quais as colisões entre os direitos fundamentais à privacidade e à liberdade de expressão se apresentam como verdadeiros hard cases, ao serem contrapostos alguns dos valores mais caros à sociedade que pretende não apenas ser democrática, como também dignificar o ser humano.

4. Considerações finais Apesar de não ter sido possível identificar critérios padronizados, estabelecidos com o intuito de nortear a tarefa do julgador na solução dos conflitos entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão, percebeu-se que alguns parâmetros são utilizados com maior freqüência que outros. Assim, por exemplo, ao dimensionar, no caso concreto, até onde se estendem as esferas de proteção da intimidade e da vida privada de uma determinada pessoa, a doutrina tem levado em consideração o grau de exposição, o quanto a pessoa é comum ou conhecida do público em geral, o local em que ocorreu o fato, e, principalmente, a conduta das pessoas envolvidas e dos agentes de comunicação que noticiaram o fato. Em relação à liberdade de expressão, há uma forte tendência a ser levado em consideração o cuidado que o órgão noticiador teve em prestar informações verídicas, que demonstrem ter havido, no mínimo, a presunção de verdade em relação ao fato noticiado, bem como o cuidado de não expor informações íntimas que não sejam relevantes ao interesse público.

51

Ibidem.

52

Ibidem.

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Como descrever as condições do ato de interpretação em que se apóia a ADPF 187. Uma abordagem a partir da Hermenêutica Constitucional e a liberdade de expressão Raul Diégues Serva Neto1 T

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Resumo

Abstract

Este trabalho tem como principal objetivo colocar as condições sob as quais acontece o ato interpretativo da ADPF 185 (marcha da maconha). A partir da análise da teoria da interpretação constitucional. A princípio há uma reflexão sobre as teorias interpretativistas apegadas ao texto e sua literalidade, bem como as teorias não interpretativistas que lidam com a aplicação de valores e princípios substantivos. E, em se tratando, de valores e princípios substantivos inevitavelmente há que se tratar das teses substancialistas e procedimentalistas. Só que, do ponto de vista interpretativo o trabalho pretende ir em buscar mais das semelhanças das teses antagônicas do que de suas diferenças. Já que o contributo da teoria da interpretação proposta por Häberle propõe uma pessoalização da interpretação em face da corrente impessoalidade significativa(vontade do legislador) como uma das consequencias da sociedade aberta dos intérpretes. Por outro lado Konrad Hesse irá se preocupar com as condições do ato interpretativo que melhor forneça eficácia a força normativa da constituição. Ademais, ambos se preocupam em trazer o contexto em que ocorre o ato interpretativo, bem como uma proposta de união ou conciliação em face do problema da teoria e da práxis. Dado o arcabouço teórico faz-se uma análise do contexto histórico que informa o paradigma da interpretação da liberdade de expressão a luz do paradigma do Estado liberal e também do Estado social democrático de direito. Uma vez feito isso, percebese que o paradigma da liberdade de expressão no STF mudou para o do Estado Social de Direito.

This paper has with main objective put the conditions of the interpretative act of ADPF 185 (parade of mariajuana). The article develops the analyse of interpretation theory of constitution. In the beginning has a reflection about the theories called at first interpretativists, which is linked with the text and a literal interpretation, and, at second with noninterpretativists which has the application of substantive principles and values. When we mention substantive principles and values, it is inevitable to talk about the substancialists and procedimentalists. But, on interpretative point of view the paper is going to search about the similarities in these antagonic thesis and not forget the differences that remain. First, we talk about Peter Härbele which proposes the personalize of the act of interpretation which is the opposite of the legislative will, by the way this is a consequence of the open society of interpreters. In other aspect Konrad Hesse will be concerd about the conditions of the interpretative act that provides better effectiveness of normative force from Constitution. Moreover both concerns to bring the context which occurs the interpretative act and a propose to conciliate or union the problem about theory and practice. With all these theories analyses the historic context of the freedom of speech and identifies the paradigm of the Liberal State and the transformation into paradigm of the Social Democratic State. And, at last, with theses analyses brings the perception about the changes in the Brazilian Supreme Court in the jurisprudence.

Palavras-Chave: Teoria da Procedimentalismo; Substancialismo; Hermenêutica Constitucional.

Keywords: Intepretation Theory; Procedimentalism; Substancialism; ADPF 185; Constitutional Hermeneutic.

Interpretação; ADPF 185;

1

O autor é mestrando na Universidade Católica de Pernambuco. Cursou a graduação na Universidade Católica de Pernambuco. Atualmente é Advogado. E-mail: [email protected]

1005

1. Introdução Este estudo tem como objeto descrever as condições do ato interpretativo constante na fundamentação das decisões jurídicas tomando como exemplo a ADPF 187. É dizer, quais fatores contribuíram para que a decisão se formasse. Indaga-se, primeiramente, com base nas correntes do interpretativismo e nãointerpretativismo o início da problemática sobre a interpretação constitucional e as influências no caso estudado. Após essa análise apóia-se nas contribuições sobre a teoria da interpretação de Peter Häberle e Konrad Hesse para fornecer um caminho à investigação do sentido dado a liberdade de expressão na decisão ora analisada. Como caminho para fundamentar os fatores de decidibilidade que influenciaram o sentido dado a liberdade de expressão procura-se a racionalidade adotada para condução do caso a partir de sua evolução histórica ainda que seja na jurisprudência americana que guarda alguma similitude no caso da ADPF 187. Além disso, perceber que a problemática entre a liberdade de expressão e a teoria da interpretação constitucional possuem entre si muito em comum a ponto de uma e outra contribuírem para a descrição das condições da interpretação feita pelas cortes constitucionais no momento em que leva em consideração a problemática da democracia contrastada com o exame das maiorias em face das minorias. Dado o arcabouço teórico, procura-se fazer uma análise de qual parâmetro invocado da liberdade de expressão foi utilizado a ponto de identificar que posicionamento o Estado adotou em face do discurso das minorias diante de uma interpretação conforme da constituição dada na ADPF 187. Esse parâmetro se assemelha e muito ao princípio da neutralidade empregado na jurisprudência americana.

2. O início da problemática da interpretação: interpretativismo x não-interpretativismo Primeiramente, o que é interpretar2? Interpretar é uma forma de compreender algo, T

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perguntar por seu sentido ou significado. É, sobretudo, uma forma de adquirir ou lidar com o conhecimento da realidade mediante argumentos. Enfim, importante é saber concatenar de forma coesa e coerente os sentidos que se encontram ora em um texto, ora em uma expressão verbal, ou qualquer forma suscetível de apreender um sentido.

2

Interpretar, ao contrário, quer dizer a mediação do pelo conhecimento racional, que pressupõe a imediatez da compreensão prévia, mediando-a, porém racionalmente por decomposição por decomposição, fundamentação e explicação, e elevando-a assim a imediatez mediata de uma compreensão aprofundada e expressamente desenvolvida. CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo. Editora EPU. 1973. p. 48.

1006

No caso deste trabalho a temática volta-se para interpretação que é feita do texto constitucional. Só que a forma como a interpretação será feita em face da Constituição acarretará consequências para a aplicação da mesma. É dizer, a partir da adoção da concepção interpretativista ou não interpretativista a Constituição poderá ser interpretada a ponto de privilegiar apenas o seu texto ou ir além dele privilegiando valores diante de uma perspectiva concreta em que se articula os interesses da democracia. É, sobretudo, conciliar decisões entre maiorias ou minorias. Essas duas formas de interpretar elencam uma nova forma de lidar com os velhos ideais do positivismo em contraposição ao jusnaturalismo3. Só que desta vez relacionados à teoria da T

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interpretação, à compreensão da constituição e da democracia. Vejamos o que se entende por interpretativismo: As correntes interpretativistas consideram que os juízes, ao interpretarem a constituição, devem limitar-se a captar o sentido dos preceitos expressos na constituição, ou, pelo menos, nela claramente implícitos. O interpretativismo, embora não se confunda com o literalismo – a competência interpretativa dos juízes vai apenas até onde o texto claro da interpretação lhes permite – aponta como limites a competência interpretativa a textura semântica e a vontade do legislador. Estes limites são postulados pelo princípio democrático – a decisão judicial não deve substituir a decisão política legislativa da maioria democrática – isto é, o papel da rule of Law não pode transmutar-se ou ser substituída pela Law of judges4. T

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A preocupação dos interpretativistas é conciliar a decisão que foi tomada pela maioria diante da manifestação do poder constituinte originário e a possível interpretação do texto constitucional por parte das Cortes Constitucionais. Não é devido à possibilidade de guarda da constituição e de dar a última palavra sobre o que é constitucional que haverá a possibilidade de decidir sobre decisões dos demais poderes com uma fundamentação de cunho voluntarista. Em suma, a problemática do ativismo judicial e a politização do judiciário. Já os não-interpretativistas defendem a possibilidade de rever decisões políticas do legislador de modo que diante do caso concreto com normas permeadas de conceitos abertos e indeterminados o juiz possa ir além do texto constitucional a ponto de interpretá-lo dando um conteúdo material a norma constitucional. De um modo geral, as posições não interpretativistas defendem a possibilidade e a necessidade de os juízes invocarem e aplicarem valores e princípios substantivos – princípios de liberdade e da justiça – contra actos da responsabilidade do legislativo em desconformidade com o projecto da constituição5. T

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3

Quien abarque com la mirada, em uma ojeada de conjunto, las mudanzas históricas de la ciencia del Derecho, se dará cuenta em seguida de que, detrás de formas y nombres sin Cesar cambiantes, se revela a cada paso, a través de todas esas vicisitudes, uma contraposición que es siempre la misma: la contraposción entre el formalismo y el finalismo. RADBRUCH, Gustav. Introducción a la ciencia del derecho. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1930. p. 96.

4

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1195.

5

Op. cit. p. 1196.

1007

Diante dessas duas posições encontram-se problemas como a possibilidade do juiz de uma corte constitucional não se preocupar com a responsabilidade política de suas decisões, já que não depende do voto popular para ocupar seu cargo? Ou será que sua legitimidade é adquirida em virtude da fundamentação de suas decisões e um possível controle sobre elas? Ou até mesmo dar mais importância as decisões de uma geração passada que vincula as gerações futuras? Longe de se propor uma solução neste trabalho o ideal é situar a liberdade de expressão sendo utilizada por cada uma das posições expostas. Só que diante da corrente interpretativista o sentido da norma não deve ficar preso ao contexto de sua formação, mas também “ela deve ficar restrita às categoriais gerais de males almejados pela disposição”6. Assim, a liberdade de T

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expressão ficaria presa ao seu ideal liberal, quer dizer, a imposição de uma conduta negativa por parte do Estado a ponto de permitir a sua manifestação se preocupando apenas com a vedação do anonimato para não haver abusos de direito. Ou seja, menos regulação em forma de censura em prol da liberdade de se expressar e não se omitir. Já uma posição não interpretativista diria que “os tribunais de justiça constitucional decidem na base de valores constitucionais ao rejeitarem a acção política que ameace as liberdades individuais”7. Isso quer dizer que um conflito que envolva a liberdade de expressão T

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passa a ser visto como algo que envolve também o contra-valor igualdade. Em outras palavras, “o debate aberto e livre é uma precondição para alcançar uma igualdade verdadeira e substantiva”8. Ou, se preferir, primeiro todos serão livres para depois se tornarem iguais ou T

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preferencialmente todos serão iguais para que depois se tornem livres. Nesta parte trabalho a proposta é identificar os usos que se tem feito dos métodos da teoria da interpretação em face das compreensões das correntes interpretativistas e não interpretativistas. Sendo constatado respectivamente, que na primeira há uma primazia do método gramatical em face do apego ao texto, já no que diz respeito à segunda se assemelharia a jurisprudência dos interesses só que com uma nova roupagem permeada por valores9. T

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6

ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes. 2010. p. 19.

7

QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Lisboa: Coimbra, 2000. p. 259.

8

FISS, OWEN. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro. Renovar. 2005. p. 42.

9

No início deste século, a jurisprudência dos interesses de Philipp Heck conseguiu, como vimos, pelo menos no âmbito do Direito privado, um inusitado êxito. Ressentia-se, todavia da aplicação equívoca da expressão interesse: esta era ora entendida como o factor causal da motivação do legislador, ora como objecto das valorações por ele empreendidas e, por vezes mesmo, como critério de valoração. (...) As leis, são de acordo com esta concepção, pelo menos no âmbito do direito privado, instrumentos de regulação de conflitos de interesses previsíveis e típicos entre particulares ou grupos sociais, de tal modo que um interesse tenha de ceder a outro na exacta medida em que este possa prevalecer. Esta prevalência consubstancia uma valoração, para a qual o legislador pode ser determinado pelos mais diversos motivos. LARENZ, Karl. Metodologia da ciencia do direito. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 163 – 164.

1008

3. Hermenêutica Constitucional de Peter Häberle e Konrad Hesse como desdobramento da primeira problemática O desdobramento das correntes interpretativistas e não interpretativistas recai sobre a Hermenêutica Constitucional. Sendo que esta, como visto, trás novos elementos para as discussões sobre a teoria da interpretação constitucional, sobretudo quando envolvida com a democracia e a política. Na primeira parte a problemática se revela em relação ao apego da interpretação ao texto, só que nesta temática há uma preocupação apenas com as causas e consequências da interpretação constitucional e de modo implícito quais métodos se mostram necessários, como o gramatical ou a busca dos fins históricos da formação da norma constitucional. A pergunta que se faz é o que se interpreta. Só que a Hermenêutica constitucional também indaga de outros fatores como quem interpreta e o relacionamento com a eficácia da interpretação feita a partir da Constituição. Neste aspecto Peter Häberle e Konrad Hesse ganham destaque. Apesar de suas diferenças ambos já partem de três ideias preconcebidas, a primeira relativa as interpretações constitucionais que acontecem dentro de um contexto. Isso significa que não precisamos mais perquirir a vontade do legislador, ou a vontade da lei. A segunda indaga sobre o que se pode compreender por norma. A norma será tida como resultado de uma interpretação e não como seu pressuposto, ou seja, a norma está no fim do processo de interpretação e não em seu começo. A terceira trata da aproximação da teoria e da práxis a partir da interpretação constitucional. A inserção do contexto no âmbito da interpretação constitucional por si só mostra-se capaz de superar este mito no momento em que toda forma de interpretar já se mostra voltada para a realidade diante de casos concretos. O primeiro autor Peter Häberle defende a sociedade aberta dos intérpretes como um novo elemento que se coloca diante das duas problemáticas já referidas. Qual seja, o participante, é dizer o intérprete. Häberle acrescenta uma segunda pergunta a interpretação constitucional, qual seja quem interpreta. O segundo autor Konrad Hesse trata da força normativa da constituição se preocupando em estabelecer uma teoria voltada para a sua concretização.

3.1 A tese da sociedade aberta dos intérpretes. Aspectos importantes para este trabalho Se a norma é o resultado de uma interpretação, então quem deve realizar esse processo para chegar a tal resultado? Essa é a pergunta que Häberle se faz. Em uma concepção clássica da interpretação jurídica a ênfase dada recaiu sobre o juiz, neste caso a Corte Constitucional. Só 1009

que a jurisdição constitucional é constituída de partes que participam do processo constitucional. O detalhe é que Häberle ainda não iria se satisfazer com essa ampliação. Pois, para ele intérprete será: O conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co interpretá-la (Wer die Norm lebt, interpretiert sie auch mit). Toda atualização da Constituição, por meio da atuação de qualquer indivíduo, constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional antecipada10. T

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Logo, não só os representantes formais do processo constitucional possuidores de competência para participar são intérpretes, mas sim todo aquele capaz de um modo ou de outro seja afetado pela interpretação feita pela corte constitucional. Significa, que associações, sindicatos, igreja, media e tantos outros são também considerados intérpretes da constituição. O autor também irá criticar a utilização dos métodos interpretativos. Passagem importante, pois já mostra que não há espaço para uma concepção ingênua da neutralidade das interpretações ao serem feitas. “A utilização de um conceito de interpretação delimitado também faz sentido: a pergunta sobre o método, por exemplo, apenas se pode fazer quando se tem uma interpretação intencional ou consciente”11. T

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Some-se a isso a ideia de personalização da interpretação constitucional que procura identificar as pessoas concretas que de fato realizam a interpretação. O Direito sempre faz ressalvas como o Legislador, a suprema corte, o governo, esquecendo de fato as concepções ideológicas de quem compõe essas instituições. Häberle percebe que uma concepção plural dos diversos intérpretes constitucionais que compõem a realidade e ajudam na formação do resultado interpretativo da constituição faz com que a norma integre-se a realidade de modo a se coadunar com a democracia. Daí a ideia de integrar a teoria e a práxis. Como consequência Häberle não se preocupa apenas com o emprego de um método de interpretação, mas se mostra receptivo a utilização de todos eles no processo de formação da norma. E por último duas passagens que mostram que apesar de ser procedimentalista Häberle pode ao menos aceitar a possibilidade de um substancialismo informando o procedimento. Vejamos: É legítimo indagar se se poderia cogitar, ainda que de forma relativizada, de uma interpretação correta (Richtigkeit der Auslegung). Para a teoria constitucional, coloca-se a questão fundamental sobre a possibilidade de vincular 10

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição : contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto alegre: Sérgio Fabris, 2002. p. 14. 11

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição : contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto alegre: Sérgio Fabris, 2002. p. 14.

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normativamente as diferentes forças políticas, isto é, de apresentar-lhes bons métodos de interpretação”12. T

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(...) “Constitucionalizar formas e processos de participação é uma tarefa específica de uma teoria constitucional (procedimental). Para conteúdos e métodos, isto se aplica de forma limitada13. T

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A partir do momento em que não há como defender uma interpretação correta, dada a pluralidade e a capacidade da sociedade aberta dos intérpretes conviver com interesses contrapostos de seus participantes, o procedimento que se estabelece para chegar ao resultado da norma deve ser informado por alguns valores substanciais. A fórmula quanto mais participação melhor a comunicação precisa de um conteúdo que não pode ser nem certo ou errado, mas sim substancial.

3.2 A força normativa da constituição e suas contribuições para este trabalho A força normativa surge em contraposição à tese de Ferdinand Lassale, a qual resumia constituição à soma dos fatores reais de poder. Importante é ressaltar o falta de efetividade que o conceito sociológico de constituição possuía. Já a tese de Konrad Hesse pode ser colocada da seguinte forma: A constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força normativa que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeiro plano, como uma questão de vontade normativa de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)14. T

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Hesse tenta uma conciliação entre o que pode ser compreendido por Constituição e sua adequação a realidade presente. Quanto mais houver articulação do mundo da norma em relação aos poderes dominantes da sociedade, é dizer, sua eficácia maior será a força normativa da Constituição. “Em outros termos, o Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando assim, o desenvolvilmento da dogmática e da interpretação constitucional”15. T

12

Op. cit. p. 53.

13

Op. cit. p. 55.

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14

HESSE, KONRAD. A força normativa da Constituição. trad. Gilmar ferreira Mendes. In: HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional: textos selecionados e traduzidos por Carlos santos Almeida,Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo. Saraiva. 2009. p. 137. 15 HESSE, KONRAD. A força normativa da Constituição. trad. Gilmar ferreira Mendes. In: HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional: textos selecionados e traduzidos por Carlos santos Almeida,Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo. Saraiva. 2009. p. 140.

1011

Ora, essa preocupação com explicitar as condições sob as quais a norma ganha eficácia, e em sendo a norma resultado de uma interpretação, é sobretudo, voltada para a produção de sentido que o interpretar tem que lidar. Hesse dessa maneira, indaga, do mesmo modo que este trabalho, as condições sob as quais se manifesta o ato interpretativo. Essa preocupação também está presente em Peter Häberle16. T

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E por que essa preocupação com o explicitar, em suma, os elementos informadores da interpretação da norma? É que quando os fatores que informam a interpretação da norma são postos de manifesto, o controle que há em sede da justificação de uma tomada de posicionamento interpretativo se revela adequado a coibir manipulações do sentido. Dito de outra forma, as razões de escolha de um dado argumento quando indagada fornece meios para o controle das arbitrariedades, até então óbvias, mas implícitas no sentido. Em vez de indagar, por que se decidiu dessa forma? Procura-se perguntar: como foi que se chegou a essa interpretação? Não há necessidade de uma objetivação da subjetividade do intérprete. Ainda que decisões das cortes constitucionais tenham um viés político, explicitar o caminho a que se chegou a partir dos usos que foram feitos dos institutos e instrumentos jurídicos e dos sentidos interpretados mostra-se um meio adequado ao controle da legitimidade das fundamentações judiciais. Colocar as condições do ato interpretativo em manifesto serve, sobretudo, em face da problemática do ativismo judicial e sua legitimidade. Até mesmo, mostrar se nas fundamentações jurídicas o quanto há de espaço para arbitrariedades a ponto de haver voluntarismos ou decisionismos na decisão judicial. E o que isso tudo tem haver com a liberdade de expressão? É que quando se está diante da análise do valor liberdade sendo oposta a seus respectivos contravalores em sede de ordem, igualdade ou democracia, explicitar as condições de sobreposição ou conciliação entre eles deve ser feita analisando cada elemento informador do sentido das posições que permeiam a comunicação em seu debate. É, sem embargo, descrever o que informa o sentido do discurso que propicia a regulação por parte do Estado, em suma o interesse estatal em não permitir o debate ou de permiti-lo levando em conta suas consequências. Já da parte do discurso contrário ora da posição do Estado ou de um grupo social protegido pelo mesmo, o que ele deve informar ainda que permeados de preconceitos ou valores que informam a tomada de posição na comunicação.

16

Uma teoria constitucional que se concebe como ciência da experiência deve estar em condições de, decisivamente, explicitar os grupos concretos de pessoas e fatores que formam o espaço público (Öffentlichkeit), o tipo de realidade de que se cuida, a forma como ela atua no tempo, as possibilidades e necessidades existentes. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição : contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto alegre: Sérgio Fabris, 2002. p. 19.

1012

Toda essa forma de agir é voltada para o eterno embate que ocorre entre maiorias e minorias17. As vezes se percebe que não é a maioria que governa, por precisar da parte da T

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minoria, outras vezes o discurso da minoria pode ser descaracterizado em sua seriedade por propugnar igualdade onde até então não existia.

4. Como a liberdade de expressão se tornou irônica e o que temos a aprender com ela para compreender a ADPF 187? O que é a ironia? Segundo o dicionário Houaiss em sua rubrica em relação a literatura significa: “esta figura, que se caracteriza pelo emprego inteligente de contrastes, us. literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos18”. Se desconsiderar os efeitos humorísticos e T

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ficarmos com o emprego inteligente de contrastes denota-se que a ironia é constituída por o emprego de oposições, antagonias, contradições. E qual é a sua relação com a liberdade de expressão? É que a liberdade de expressão encontra-se permeada por um conflito entre valor e um contravalor dependendo do contexto em que se insere o discurso e a disputa pelo debate. Contravalor pode ser conceituado como um valor que se opõe a algum referencial. Ao longo deste trabalho defendeu-se a importância do contexto no momento de interpretar. Logo, se estamos no Estado Liberal como iríamos interpretar a disposição do art. 5º inc. IX19 da T

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CF/88 que diz respeito à liberdade de expressão, especialmente quando compreendemos que o Estado deve se abster em face da liberdade do cidadão? Ou seja, a liberdade de expressão é contraposta a ordem que o Estado regula sendo uma limitadora deste. E em sendo assim, a liberdade de expressão é tida como um direito de se auto-expressar sem que o Estado possa realizar intervenções prévias a ponto de permitir ou não a exibição ou apresentação do discurso. Essa forma de compreender a liberdade de expressão é especialmente defendida em um país como o Brasil que na época de formação da Constituição de 1988 saía de uma ditadura que prezava pela censura do discurso público.

17

A tarefa sempre foi e continua sendo a de criar uma ou mais maneiras de proteger as minorias da tirania das maiorias sem incorrer numa contradição flagrante com o princípio do governo majoritário: no direito, como na lógica, qualquer coisa pode ser inferida de uma contradição, e não adianta simplesmente afirmar que a “maioria governa mas a maioria não governa”. O problema do não interpretacionismo é exatamente desvencilhar-se de modo convincente desse tipo de contradição. ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes. 2010. p. 12.

18

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2011.

19

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direto à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: inc. IX é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. ANGHER, Anne Joyce (Org). Vade Mecum acadêmico de direito. 8.ed. São Paulo. ed. Rideel. 2009. p. 24.

1013

Só que Owen Fiss tratando da ideologia liberal indaga sobre um pequeno detalhe, ainda que seja no contexto americano, a ideologia que norteia a interpretação é a mesma: A visão libertária – de que a Primeira Emenda é uma proteção da auto-expressão – faz um apelo para o ethos individualista que tanto domina a cultura popular e nossa cultura política. A liberdade de expressão é vista como análoga à liberdade de religião, que também é protegida pela primeira Emenda. Todavia, essa teoria não consegue explicar por que os interesses daqueles que produzem o discurso deveriam ter prioridade sobre os interesses dos indivíduos objeto do discurso, ou os indivíduos que devem escutar o discurso, quando esses dois conjuntos de interesses que conflitam20. T

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Nesta perspectiva, entre a limitação do Estado e o desenvolvimento do discurso há um embate entre “o valor da liberdade de expressão versus os interesses promovidos pelo Estado para sustentar a regulação (os chamados contravalores)”21. T

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Só que na evolução histórica, da compreensão da liberdade de expressão, é também necessário atentar para o Estado Social. Agora, neste momento cobra-se do estado uma postura mais intervencionista de modo a combater desigualdades. Sobretudo, como realizar os conjuntos de interesses que conflitam anteoriomente citados. Owen Fiss identifica a segunda forma de compreender a liberdade de expressão, vejamos: Enquanto o liberalismo do século XIX foi definido pelas reivindicações por liberdade individual e resultou numa inequívoca demanda por governo limitado, o liberalismo de hoje acolhe o valor igualdade assim como a liberdade. Ademais, o liberalismo contemporâneo reconhece o papel que o Estado pode desempenhar assegurando igualdade e por vezes mesmo a liberdade22. T

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O Estado Social procurou como pôde reduzir desigualdades de modo a promover uma política inclusiva23. Grupos sociais que antes eram discriminados passaram a ter pretensões T

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respaldadas nos direitos civis, por exemplo. Dessa maneira imagine no caso do Brasil Chico Buarque e a canção Roda Viva. O Estado a encarava, no dizer de Owen Fiss, “como um perigo iminente e manifesto (clear and present danger) a um vital interesse estatal”24. Qual seja? A T

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20

FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro. Renovar. 2005. p. 30.

21

Op. cit. p. 33.

22

Op. cit. p. 38.

23

Como resultado desses desenvolvimentos, mais e mais esferas da atividade humana – voto, educação, moradia, emprego, transporte – vieram a ser cobertas por leis antidiscriminatórias, de forma que hoje não há virtualmente qualquer atividade pública de algum significado que esteja além do seu alcance. Ademais, a proteção do Direito foi estendida para um elenco amplo de grupos desfavorecidos – minorias raciais, religiosas e étnicas, mulheres, portadores de deficiência. Logo ele deve ser provavelmente estendido para grupos definidos por sua orientação sexual. 23 FISS, OWEN. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro. Renovar. 2005. p. 39. 24

FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro. Renovar. 2005. p. 34.

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perturbação da ordem e todos os fatores que dela advém como segurança, estabilidade e outros. Ainda que o interesse em manter a ordem fosse também resguardar a ditadura de críticas. Já no Estado Social ante sua política inclusiva em que considera todos iguais a liberdade de expressão teve que se deparar com a seguinte questão: Só quando todos forem livres é que haverá igualdade, ou todos serão iguais quando houver liberdade. Por trás deste jogo de palavras está a problemática de fornecer mais discursos para haver igualdade ou regulá-lo de modo que seu exercício não soterre o discurso das minorias. Em outros termos, quando todos possuem a capacidade de se expressar e de se auto-realizar pelo discurso como ouvi-los? “Algumas vezes nós devemos reduzir vozes de alguns para podermos ouvir as vozes dos outros”25. T

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A preocupação agora não é simplesmente com a posição social dos grupos que poderiam ser prejudicados pelo discurso cuja regulação é contemplada. Ao revés, a preocupação é com as postulações daqueles grupos a uma integral e isonômica oportunidade de participar do debate público – as postulações desses grupos à sua liberdade de expressão em oposição ao seu direito à igual proteção. O Estado, ademais está honrando aquelas postulações não por seu valor intrínseco ou para promover seus interesses discursivos, mas apenas como um meio de desenvolver o processo democrático. O Estado está tentando proteger o interesse da audiência – a cidadania como um todo – de ouvir um debate aberto e inclusivo das questões de importância pública26. T

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Agora que todos podem participar do debate democrático algumas vozes não conseguem ser ouvidas. O problema não é mais poder ou não poder expressar em face da ordem estatal, mas sim como delinear a capacidade de influência dos discursos na democracia de modo que uma opinião seja formada ouvindo os dois lados da moeda. O que a democracia exalta não é simplesmente a escolha pública, mas a escolha pública feita com informação integral e sob condições adequadas de reflexão. Da perspectiva da democracia, não deveríamos reclamar, mas aplaudir o fato de que o resultado foi afetado ( e presumivelmente melhorado) pelo debate aberto e completo27. T

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Diante desse panorama, agora a liberdade de expressão não possui mais como contravalor a ordem, ou a igualdade, mas sim as consequências da última como marcantes na democracia. O que se apresenta agora é que a regulação recai sobre os a disputa das posições em debate de modo que a quantidade de discurso deve ser filtrada em prol da sua qualidade. Em outras palavras, “com efeito, uma maneira de descrever a situação é simplesmente dizer que agora o discurso aparece em ambos os lados da equação, como um valor ameaçado pela regulação e como contravalor promovido por ela”28. T

25

Op. cit. p. 49.

26

Op. cit. p. 50.

27

Op. cit. p. 55.

28

Op. cit. p. 50.

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1015

4.1 A liberdade de expressão e a ADPF 187 A problemática da ADPF 187 se insere sobre a possibilidade de se realizar uma passeata com o fim de promover o debate sobre o uso da maconha de forma legal. Não se quer apoiar o tráfico de entorpecentes, mas sim tornar lícito os usos da maconha para fins medicinais, industriais e “recreativos”. Em outras palavras o seu porte em menor quantidade que a de um traficante seja capaz de não ser considerado crime. Ressalte-se que o teor dos debates ainda está na possibilidade ou não de haver discussão sobre o tema. O problema é que externar esse ponto de vista, é dizer fazer uso da liberdade de expressão para manifestar uma forma de pensar, vai de encontro ao que estabelece o art. 28729 T

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do Código Penal brasileiro. E essa forma de interpretar o caso foi feita por juízes em sede de primeira instância e tribunais. Do caso exposto, ainda que de maneira superficial, já há uma relação à primeira vista com as decisões dos juízes de primeira instância e tribunais com a ideologia liberal da liberdade de expressão. Pois, há primazia do contravalor ordem em detrimento da ideia de possibilitar a manifestação do pensamento. Até aqui não há novidade nenhuma já que corresponde ao perigo iminente e manifesto ao interesse Estatal, em outras palavras é melhor honrar o contravalor ordem ante a balburdia de uma marcha que faz apologia ao crime. Só que a questão chegou ao STF através de uma ADPF para haver uma interpretação conforme a constituição em face do art. 287 do Código Penal. E a pergunta que se fazia em termos bem simples era: a democracia “pode” pelo menos discutir se a maconha deve ser descriminalizada, ou não? Só que um argumento foi levado em conta na petição inicial da ADPF 187 proposta pelo MPF: Uma idéia fundamental, subjacente à liberdade de expressão, é a de que o Estado não pode decidir, pelos indivíduos, o que cada um pode ou não pode ouvir. Como ressaltou Ronald Dworkin, ‘o Estado insulta os seus cidadãos e nega a eles responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas’. Daí por que o fato de uma idéia ser considerada errada ou mesmo perniciosa pelas autoridades públicas de plantão não é fundamento bastante para justificar que a sua veiculação seja proibida. A liberdade de expressão não protege apenas as idéias aceitas pela maioria, mas também – e sobretudo – aquelas tidas como absurdas e até perigosas. Trata-se, em suma, de um instituto contramajoritário, que garante o direito daqueles que defendem posições minoritárias, que desagradam ao governo ou contrariam os valores hegemônicos da sociedade, de expressarem suas visões alternativas30. T

29

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Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime. T

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30

DUPRAT, Deborah. Petição Inicial da ADPF 187. Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2011. Parágrafos 27 e 28 de folhas 10 e 11.

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Esse argumento coloca a discussão sobre a liberdade de expressão em outro patamar até então não considerado pela jurisprudência pátria. É que a discussão sobre a liberdade de expressão alçou-se a problemática do novo contravalor, qual seja, igualdade com consequências para a democracia. Deixou-se de lado a problemática de saber se a marcha da maconha enquanto forma de autoexpressão de um grupo minoritário era contrária a ordem, para ser considerada em face da problemática da qualidade das postulações no debate público de modo a haver uma discussão aberta e democrática em relação a descriminalização ou não da maconha. Em suma, percebeu-se que não era apenas o Estado que estava impedindo de haver a discussão, mas sim um grupo social que em seus papéis desempenhados na sociedade também ocupavam posições de poder como no judiciário. Desta percepção o Estado passou a ser participante da discussão. Olha a importância da personalização da interpretação na sociedade aberta dos intérpretes, como também uma interpretação que conceba maior força ao papel mediador que a Constituição desempenha. Dessa forma, o paradigma da compreensão da liberdade de expressão mudou saindo daquele ethos social de percepção ordinária. Até porque, “o princípio da neutralidade de conteúdo proíbe o Estado de tentar controlar a escolha das pessoas dentre pontos de vista contrapostos, favorecendo ou desfavorecendo um lado do debate”31. T

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Levando em consideração isso os pressupostos que informaram o acontecer do raciocínio jurídico na ADPF foi descrito, de maneira que os fatores que informaram a condição do ato interpretativo foram elencados e não só isso levou-se em consideração o contexto de formação de opinião de ambos os lados tanto de uma maioria que defende valores tradicionais e outra que defende a marcha da maconha com uma posição mais progressista.

5. Conclusões. O que aprendemos com a ironia da liberdade de expressão? No mundo jurídico existem as mais diversas concepções e teorias explicativas da realidade, cada uma defende sua primazia e proeminência. Ainda que se repitam ao longo das épocas com novas roupagens e novos argumentos elas são sempre as mesmas. Na história do pensamento jurídico sempre existiu e existirá posições com interpretativistas e não interpretativistas. O velho duelo entre direito positivo e direito natural açola as mais variadas gerações. A Hermenêutica constituída pelas mais diversas teorias da interpretação auxilia na organização do pensamento e por conseguinte em que termos pode haver uma conexão de 31

FISS, Owen. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro. Renovar. 2005. p. 53.

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sentidos diante das mais variadas interpretações. Nesta forma de pensar teorias não passam de uma forma de compreensão da realidade em que é permeada por interpretações dos seus respectivos autores. Um exemplo disso é o duelo em que existe entre procedimentalistas e substancialistas, não passando de formas de compreender os problemas que são enfrentados pela Constituição. Na vida, na democracia, assim como no Direito haverá teses e antíteses. Problema é não saber conciliá-las a ponto de não deixar transparecer a sobreposição de uma em face de outras como se houvesse um desmerecimento de alguma delas. Só que das oposições ganha relevância o debate, a participação, o conteúdo substancial do que se debate. Para levar em conta todos esses elementos é preciso explicitar, desvelar os motivos, as razões a finalidade, de uma tomada de decisão ou posição. As vezes escolhemos por que os outros também seguiram esse caminho e quiçá nem questionamos vamos logo reproduzindo, ou até mesmo se já foi posto como inegável os pontos de partida não outro maneira se não seguir o que todos já dizem. Ainda que se revele ingênua tal tentativa e problemática, serve de exemplo a ironia da liberdade de expressão empregando de maneira satisfatória o relacionamento entre opostos, ainda que em uma das partes do debate haja mais poder por causa da quantidade dos participantes em detrimento de uma minoria. E tal postura só aumenta a qualidade do debate. Um dia se percebe que todos se fazem as mesmas perguntas, a algum tempo e porque não compartilhá-las? As respostas virão no plural. Para isso precisamos de Häberle com seu procedimentalismo organizando a participação, sua ideia de personalização da interpretação constitucional mostra que não é o Estado em si mesmo considerado o responsável, mas as pessoas que o constituem, e ainda mais quem os colocam ali, ou seja, nós mesmos. A importância de Konrad Hesse como substancialista está em mostrar a força que uma percepção de respeito à Constituição pode enriquecer a sociedade, ainda que tenhamos que renunciar em prol da coletividade. Enfim, assim como Owen Fiss deixa claro sua intenção no texto também o faço aqui como forma de explicitar o uso que fiz de cada teoria no intuito de mostrar que conciliando todos saem ganhando. E dessa forma a argumentação não visa a manipular sentidos com interesses de alguns dos lados.

Referências bibliográficas ANGHER, Anne Joyce (Org). Vade Mecum acadêmico de direito. 8.ed. São Paulo. ed. Rideel. 2009.

1018

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1195. CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo. Editora EPU. 1973. DUPRAT,

Deborah.

Petição

Inicial

da

ADPF

187.

Disponível

em:

. Acesso em: 31 ago. 2011. Parágrafos 27 e 28 de folhas 10 e 11 ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo. Editora WMF Martins Fontes. 2010. FISS, OWEN. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Rio de Janeiro. Renovar. 2005. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição : contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto alegre: Sérgio Fabris, 2002. HESSE, KONRAD. A força normativa da Constituição. trad. Gilmar ferreira Mendes. In: HESSE, Konrad. Temas fundamentais do direito constitucional: textos selecionados e traduzidos por Carlos santos Almeida,Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo. Saraiva. 2009. LARENZ, Karl. Metodologia da ciencia do direito. 3.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Lisboa: Coimbra, 2000. RADBRUCH, Gustav. Introducción a la ciencia del derecho. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1930.

1019

Descriminalização das rádios comunitárias na construção dos direitos humanos Thalita Vitória Castelo Branco Nunes Silva1 T

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2

Tamires Ferreira Coêlho T

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Resumo

Abstract

As rádios comunitárias são meios de comunicação constituídos enquanto instrumentos de divulgação de notícias, de discussão de interesses das comunidades, e de difusão dos movimentos sociais. Todavia, no Brasil a operacionalização das rádios comunitárias não autorizadas é vista como crime. Assim, cabe questionar como essas rádios podem ser consideradas criminosas, se realizam trabalhos socialmente aceitos? Posto isso, o presente trabalho tem o objetivo de apresentar aspectos históricos, jurídicos e comunicacionais concernentes ao panorama das rádios comunitárias no Brasil, tendo como base sua importância para os direitos humanos e a necessidade de descriminalizar a maioria dessas rádios. Além disso, fez-se uma pesquisa jurisprudência com os temas “rádios comunitárias” e “crime”, no qual constatou-se que a jurisprudência dominante ainda considera crime a operacionalização das rádios comunitárias não autorizadas. Todavia, foi observado que já existe uma jurisprudência minoritária que desconsidera as rádios comunitárias enquanto exploração clandestina.

The community radio stations are media which disseminate news, discuss about community interests and diffuse social movements. However the operation of unauthorized community radio in Brazil is seen as a crime.Thus, it's important questioning about how these radio stations can be considered criminal if they do socially acceptable work? The objective of this article is presenting the historical, legal and communicative aspects concerning the outlook of community radios in Brazil. The study is based on community radio relevance to Human Rights and the need for decriminalizing the majority of these radios. Moreover, it was made a jurisprudence research with the themes “community radio stations” and “crime”, which has found that the dominant jurisprudence still considers the operation of unauthorized community radio as a crime. However it has been also observed that one minority jurisprudence disregards community radio as an illegal exploitation.

Palavras-Chave: Rádios Comunitárias; Crime; Decisões Judiciais; Direitos Humanos.

Keywords: Community Radio; Crime; Judicial Decisions; Human Rights.

1 Estudante de graduação em Direito pelo Instituto Camillo Filho e em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. Estagiária da Defensoria Pública da União-Piauí e integrante do Grupo de Pesquisa COMUM; e-mail: [email protected]. T

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Estudante de graduação em Comunicação Social/Habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí, com intercâmbio na Universidade do Minho (Portugal) para cursar disciplinas de graduação e mestrado em Ciências da Comunicação; Integrante dos núcleos de pesquisa de Estudos e Pesquisas em Estratégias de Comunicação (NEPEC) e de Pesquisa em Comunicação e Jornalismo (NUJOC); e-mail: [email protected]. T

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1. Introdução As rádios comunitárias são meios de comunicação com abrangência local, tendo em vista que são instrumentos de divulgação de notícias e de discussões relativas aos interesses das comunidades, estando norteadas pela noção de cidadania. Essas rádios podem também ser utilizadas como meio de difusão dos movimentos sociais. O objetivo de uma rádio comunitária é, mais do que simplesmente informar, divulgar conteúdo direcionado às necessidades da comunidade na qual está inserida – de forma a priorizar informações ligadas à cultura dessa comunidade. O termo cultura é aqui empregado de forma a ultrapassar o campo do entretenimento e das manifestações artísticas, compreendendo o contexto sócio-econômico e a memória de um grupo. O Ministério das Comunicações considera a rádio comunitária como […] um tipo especial de emissora de rádio FM, de alcance limitado a, no máximo, 1 km a partir de sua antena transmissora, criada para proporcionar informação, cultura, entretenimento e lazer a pequenas comunidades. Trata-se de uma pequena estação de rádio, que dará condições à comunidade de ter um canal de comunicação inteiramente dedicado a ela, abrindo oportunidade para divulgação de suas idéias, manifestações culturais, tradições e hábitos sociais (MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES, online).

Posto isso, as rádios comunitárias devem ter baixa potência (25 Watts) e cobertura restrita ao raio de um quilômetro a partir da antena transmissora. O diploma normativo que regulamenta o setor é a Lei 9.612, de 1998, e o Decreto 2.615 do mesmo ano. No entanto, a partir dessa base legal acredita-se que, no Brasil, seja fechada pelo menos uma rádio por dia. Diante dessa realidade, há um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, que descriminaliza as rádios comunitárias, extinguindo a pena de prisão para quem for flagrado operando sem autorização. Assim, tendo em vista os conceitos relacionados às rádios comunitárias e às suas atribuições enquanto meios de comunicação diferenciados, este artigo faz uma análise tendo como base pesquisa bibliográfica e pesquisas feitas por outros estudiosos. Dentre os referenciais teóricos que trabalham com rádios comunitárias na perspectiva comunicacional, destacamos Peruzzo (2006; 2007) e Berti (2007). O objetivo principal deste estudo é apresentar de forma interdisciplinar – relacionando aspectos históricos, jurídicos e comunicacionais concernentes ao tema – um panorama das rádios comunitárias no Brasil, tendo como base sua importância para os direitos humanos e a necessidade de descriminalizar a maioria dessas rádios. 2. Histórico As rádios comunitárias surgiram no final da década de 1950 na Inglaterra, sob a denominação de “rádios piratas”. Sobre essa denominação, Peruzzo ressalta: O tema rádios comunitárias no Brasil está envolto em controvérsias que se apresentam em duas perspectivas. Primeira, porque, ao mesmo tempo, em que o interesse por sua criação é crescente, elas não são bem aceitas, principalmente pelos setores dominantes. Ganharam um tratamento pejorativo de “piratas” ou 1021

“clandestinas”. Inicialmente por serem ilegais, seja porque passaram a existir mesmo antes de promulgada a legislação para o setor, ou porque, diante da morosidade do poder público em conceder autorização para seu funcionamento, muitas delas operam sem permissão legal. No fundo o uso dos adjetivos “pirata” e “clandestina” esconde a ira das rádios comerciais pelo fato das comunitárias disputarem a audiência local, e conseqüentemente “roubarem” seus anunciantes. O que, de fato, nem sempre ocorre porque o anunciante da rádio comunitária tende a ser o mercadinho da esquina que nem costuma veicular publicidade por meio da mídia tradicional. Por outro lado, as emissoras comunitárias já assumiram o lema de que “não estão atrás do ouro”, como as “piratas” inglesas no século passado (2006, p.183-184).

Apesar de as primeiras transmissões não-oficiais no Brasil possuírem vestígios na década de 30, esses os veículos radiofônicos comunitários só teriam chegado ao país em 1970, diferenciando-se dos demais porque não tinham fins lucrativos e ajudavam a desenvolver as comunidades nas quais estavam instalados. Esse auxílio no desenvolvimento é descrito por Berti (2007, p.05) quando explica que “a formação democrática da sociedade depende cada dia mais das mídias que a representam ou teoricamente deveriam representa-la, notadamente as mídias comunitárias, por estarem mais próximas as questões das comunidades”. Faz-se importante destacar que, segundo Peruzzo (2007), nem toda rádio denominada “comunitária” pode ser considerada como tal: A rádio comunitária que faz jus a este nome é facilmente reconhecida pelo trabalho que desenvolve. Ou seja, transmite uma programação de interesse social vinculada à realidade local, não tem fins lucrativos, contribui para ampliar a cidadania, democratizar a informação, melhorar a educação informal e o nível de cultura dos receptores sobre temas diretamente relacionados às suas vidas. A emissora radiofônica comunitária permite ainda a participação ativa e autônoma das pessoas residentes na localidade e de representantes de movimentos sociais e de outras formas de organização coletiva na programação, nos processos de criação, no planejamento e na gestão da emissora (p.69-70).

A primeira rádio comunitária de que se tem notícia é a “Rádio Paranóica” de Vitória-ES, em outubro de 1970. Posteriomente, surgiria em Sorocaba-SP a “Rádio Spectro”. Essas primeiras rádios, apesar de já constituírem-se como inovadoras, ainda não tinham preocupação com os movimentos sociais e, geralmente, eram operadas por jovens com propósitos ligados à diversão (BROCANELLI, 1998, p.03). Mesmo ajudando a construir críticas acerca da realidade em que viviam, como o caso da “Rádio Paranóica”, somente algum tempo depois, as emissoras despertariam para o foco social propriamente dito. Como afirma Brocanelli (1998, p.03), “Sorocaba seria o berço de uma nova fase da história das rádios livres no Brasil. Em 1981, o número de estações aumentaria para 6: Estrôncio 90, Alfa 1, Colúmbia, Fênix, Star e Centaurus”. A primeira rádio de São Paulo-SP foi a “Rádio Xilik”, constituída por alunos da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e cujas transmissões partiam do campus da faculdade. “A Xilik já tinha uma forte sustentação ideológica.

1022

A principal influência de seus organizadores foram as experiências européias de rádios sem concessão, principalmente as da Itália e da França” (BROCANELLI, 1998, p.04). Mesmo atentando para o fato de a denominação “comunitária” nem sempre ser cabível a alguns meios, a própria Peruzzo (2007) ressalta que, em alguns casos históricos – e aí inserimos os exemplos supracitados –, “mesmo faltando um ou outro desses aspectos em uma rádio, esta consegue prestar bons serviços à comunidade onde se insere […] Em razão desta diversidade, há que se ter cuidado na classificação” (p.70). Nos anos 90, houve uma mudança no entendimento jurisprudencial das rádios comunitárias devido ao caso da rádio “Reversão”, operada pelo jornalista e escritor Léo Tomaz. A proposta da rádio, considerada por alguns como radical e cuja composição reunia artistas de diversas modalidades, era privilegiar na programação as músicas das bandas da zona Leste da capital paulista. “A Rádio Reversão, assim com a Xilik, foi uma das emissoras que utilizou bem a imprensa para passar os seus ideais e anunciar as emissões” (BROCANELLI, 1998, p.04). A rádio “Reversão” foi fechada em 1991 porque funcionava sem obter licença do governo, tendo seus equipamentos apreendidos pela Polícia Federal após uma denúncia feita pela DENTEL (Departamento Nacional de Telecomunicações). Em março de 1994, o juiz Casem Mazlom divulga finalmente a sentença: Léo Tomaz é inocente. Estava criado um precedente importante para os futuros processos. Segundo o juiz, não há crime em se colocar rádios não-autorizadas, sem fins lucrativos e sem motivações político-partidárias. Depois do desfecho desse processo houve uma explosão no número de rádios livres na cidade de São Paulo. Com a jurisprudência na lei, houve tranqüilidade necessária para que se multiplicarem as emissoras. A fiscalização poderia até apreender os equipamentos, mas a batalha jurídica terminaria, em grande parte dos casos, em absolvição das pessoas envolvidas. (BROCANELLI, 1998, p.06).

Desde a absolvição de Léo Tomaz, ocorreram mudanças no que concerne à criação e manutenção de emissoras de rádio no Brasil. Atualmente, há rádios comunitárias espalhadas por todo o território nacional.

3. Rádios comunitárias, direitos humanos e a liberdade de expressão e comunicação Os direitos humanos são direitos naturais de todo ser humano, disciplinados em declarações e convenções internacionais. Assim, a violação de um direito fundamental do cidadão não é questão da ordem interna de um país, mas tem importância transnacional. Tais direitos são divididos em gerações. A primeira geração compreende direitos individuais: são os direitos de liberdade, efetivados com uma abstenção do Estado. A segunda geração é constituída por direitos sociais que, para serem concretizados, necessitam de uma ação positiva do Estado. Na terceira geração

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estão os direitos de titularidade coletiva. Alguns autores ainda consideram a existência de uma quarta geração de direitos humanos que seriam relativos à genética ou biogenética. A sociedade tecnológica presencia o aparecimento de novas formas de direitos humanos desconhecidas em sociedades anteriores. A exemplo disso está o direito à comunicação, que tem apresentado formas distintas com a articulação prática da vida social contemporânea. A comunicação humana, segundo FROSINI (1997), passou por três fases. A “fase oral” – que permite somente a relação direta entre pessoas –, a “fase escrita” – que superou limites tempo-espaciais na transmissão da mensagem, mas produz uma distinção de caráter intelectual e social entre os alfabetizados e os analfabetos –, e a “fase da comunicação tele transmitida” – simbolizada por tecnologias como rádio, televisão e transmissores eletrônicos, que superou ainda mais limites do tempo e do espaço, levando em consideração que uma mesma notícia pode ser transmitida para o mundo no mesmo momento em que ocorreu. As rádios comunitárias estão inseridas nessa terceira fase da comunicação humana. Meliani (1999) defende as rádios comunitárias enquanto meios que potencializam a função social designada aos veículos de comunicação na Constituição brasileira: São muitos os preconceitos que enfrentamos quando defendemos as rádios de baixa potência. Veículo considerado menor e ultrapassado, o rádio, no entanto, é o que possui maior alcance junto à população de baixa renda e nas regiões pouco industrializadas. Possui altíssimo índice de recepção porque liberta o ouvinte para atividades paralelas. Filha da rádio livre, a rádio comunitária ainda poderá ser vista como um dos braços mais importantes da comunicação social, desde que fique no meio e ao lado da população e que incorpore a legítima função social que a Constituição atribui aos meios de comunicação (1999, n.p.).

Se cumprem com a função social exigida aos meios de comunicação no país, pressupõese que essas rádios também deveriam ter espaço no cenário midiático e jurídico, uma vez que a democracia brasileira assegura a liberdade de expressão e comunicação. Mas, na prática, não é bem isso que acontece. As liberdades de comunicação e de expressão constituem-se como princípios basilares do Estado democrático de Direito. Vários documentos internacionais reconhecem esses princípios, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que proclama em seu artigo XIX que “toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (ONU, 1948, n.p.). De acordo com o que foi estabelecido pela Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950, em seu artigo 10º, todos têm direito à liberdade de expressão:

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[…] Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia (SECRETARIA DO TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM, 2010, p.06-07).

Além disso, o exercício da liberdade de expressão, segundo o que foi definido na convenção supracitada, traz como consequência deveres e responsabilidades, de forma que não pode configurar-se como risco à segurança pública, entre outros pré requisitos e sujeições. No Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, consagra a liberdade de expressão e de comunicação, de forma que: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional […] Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. § 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV. § 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (BRASIL, 1988, n.p.)

Farias explica que a liberdade de expressão e comunicação é compreendida como um “direito subjetivo fundamental assegurado a todo cidadão”, já que consiste na capacidade de “manifestar livremente o próprio pensamento, idéias e opiniões através da palavra, escrito, imagem ou qualquer outro meio de difusão, bem como no direito de comunicar ou receber informação verdadeira, sem impedimentos nem discriminações” (FARIAS, 2008, p.145). No entanto, a doutrina majoritária tem entendido que há uma diferença entre a liberdade de expressão e a de comunicação. A falta de concordância com o que é postulado por Farias se dá porque a liberdade de expressão teria como objeto pensamentos, ideias, opiniões, crenças e juízos de valor, com âmbito de proteção mais amplo que a liberdade de comunicação e não estando sujeita ao limite interno da veracidade. Já a liberdade de comunicação teria como objeto, segundo a doutrina majoritária, o direito de comunicar-se e receber livremente informação sobre fatos – talvez até mais restritamente sobre fatos considerados noticiáveis.

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É importante frisar que tais direitos não são absolutos, devendo compatibilizar-se com os outros direitos fundamentais do cidadão, quais sejam, moralidade pública, saúde pública, segurança pública, integridade territorial, honra, intimidade, vida privada, etc. As liberdades de expressão e de comunicação contribuem para a formação de uma opinião pública pluralista em uma sociedade democrática. Sendo assim, as rádios comunitárias são veículos importantes para a efetividade dos princípios constitucionais, pois possibilitam a discussão nas comunidades sobre determinados temas – e sob perspectivas – muitas vezes negligenciados pelas emissoras comerciais. O direito à comunicação ultrapassa a noção de liberdade de expressão e do direito à T

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informação: é o direito que todos têm quanto ao acesso aos meios de produção e veiculação de T

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informação, constituindo-se enquanto direito de possuir condições técnicas e materiais para ouvir e ser ouvido, de ter o conhecimento necessário para estabelecer uma relação autônoma e independente frente aos meios de comunicação convencionais. Sendo um direito, é preciso que T

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haja a permanente busca por garantí-lo. No entanto, há impeditivos (sejam eles sociais, políticos, econômicos ou técnicos) para a realização plena desse direito. T

4. Descrimininalização e jurisprudência das rádios comunitárias no Brasil No Brasil, há atualmente poucas rádios comunitárias legalizadas. O processo de concessão às rádios é lento e burocrático, de forma que há alguns meios que funcionam de maneira ilegal – Peruzzo (2006) contabiliza mais de 15 mil rádios na ilegalidade em 2005. O grande número de emissoras funcionando ilegalmente – a maioria com pedidos de autorização cadastrados - se justifica pelas distorções no processo de concessão oficial. Há por parte do governo uma morosidade na legalização das rádios comunitárias, além de uma política de repressão àquelas em funcionamento sem a prévia autorização, como se as “comunidades” pudessem esperar dois ou três anos pela autorização (PERUZZO, 2006, p.186).

Conforme preleciona o artigo 183 da Lei º 9472/97, em seu artigo de número 183, é crime “desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação”, o que implica pena de “detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais)”. No entanto, há um projeto de lei (452003/2010) em tramitação no Congresso Nacional que prevê a descriminalização das rádios comunitárias, com o objetivo de extinguir a punição criminal para quem atua nessa área. Assim, quem violar algum preceito da lei terá punição administrativa e não mais penal (PL 4573- 2009). Só haverá atuação penal caso a utilização de rádio comunitária afete algum serviço público enquadrado como telecomunicação de emergência ou de segurança pública. Assim, conforme preleciona RIBEIRO (2009, n.p.): De maneira geral, muda a perspectiva do uso do meio rádio comunitário e da responsabilidade de quem gerencia o processo e executa, realmente, um trabalho 1026

voltado para as diferentes comunidades com o uso da rádio e com a intenção de realmente realizar algo para o desenvolvimento dessas comunidades que têm rádios instaladas. Se houver uma caracterização nesse processo de um efetivo desenvolvimento com o uso da rádio, realmente faz sentido essa descriminalização.

A importância do projeto de lei supramencionado vai, portanto, além do âmbito jurídico e estende-se à construção democrática no Brasil, tendo em vista que, nos últimos vinte anos, de uma a três rádios comunitárias são fechadas pelo governo diariamente, em um cenário que é dominado pelo sistema privado – no qual existe um oligopólio de 11 famílias das quais seis controlam mais de 80% do fluxo informacional e de significados no país (ROCHA, 2008, p.10311032). Peruzzo (2006) explica que a abordagem das rádios comunitárias traz consigo diversas polêmicas: Os debates sobre as rádios comunitárias no Brasil abordam questões polêmicas, tais como o que se entende por rádio comunitária, as rádios comunitárias ilegais, o fechamento de emissoras pelo poder público, a falta de compromisso do governo com o setor comunitário de radiodifusão, a municipalização das autorizações, as reivindicações do setor no que se refere ao alcance e canais de transmissão etc. Estes temas perpassam as discussões no âmbito do próprio movimento de rádios comunitárias e respingam na academia (p.183).

Uma pesquisa jurisprudencial realizada no Portal da Justiça Federal constatou que o entendimento dominante no poder judiciário é o de que a operacionalização de rádios comunitárias sem autorização estatal é crime. Isso pode ser exemplificado pela ementa a seguir (CJF, online): HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO. FALTA DE AUTORIZAÇÃO, PERMISSÃO OU CONCESSÃO. TIPICIDADE. LEI N. 4.117/62, ART. 70. LEI N. 9.472/97, ART. 183. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DE PENSAMENTO. EXERCÍCIO DE DIREITOS CULTURAIS. PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA. RÁDIOS COMUNITÁRIAS. LEI N. 9.612/98. TRANCAMENTO DE INQUÉRITO POLICIAL. IMPOSSIBILIDADE DE APROFUNDAMENTO NO EXAME DE PROVAS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. 1. Os serviços de telecomunicações caracterizam-se pela comunicação à distância, compreendendo os serviços de radiodifusão, que se resolve na comunicação à distância por intermédio de ondas eletromagnéticas. O exercício de serviços de radiodifusão configura tipo penal, seja o art. 70 da Lei n. 4.117, de 27.08.62, seja o art. 183 da Lei n. 9.472, de 16.07.97, a qual revogou a legislação anterior por força do seu art. 215, I. 2. A Emenda Constitucional n. 8, de 15.08.95, deu nova redação ao art. 21 da Constituição da República, de modo que os serviços de telecomunicações encontram-se regulados no seu inciso XI, ao passo que os serviços de radiodifusão no seu inciso XII, a. A alteração da norma constitucional, porém, tende a possibilitar a exploração daqueles serviços por particulares, sem contudo alterar a natureza mesma desses serviços, de maneira que os serviços de radiodifusão, na esteira da hermenêutica anterior, continuam compreendidos pelos serviços de telecomunicações. 3. A necessidade de autorização, permissão ou concessão para os serviços de radiodifusão é imposta pela própria Constituição da República (CR, art. 21, XII, a), inclusive para as rádios comunitárias (CR, art. 223). A Lei n. 9.612, de 19.02.98, art. 6º, igualmente exige autorização estatal para a exploração dos serviços de radiodifusão comunitária. Os requisitos legais não são 1027

abusivos, razão pela qual a norma não conflita com o Pacto de San José da Costa Rica, promulgado pelo Decreto n. 678, de 06.11.92, em especial seu art. 13, n. 1 a 3. 4. A Constituição da República garante a liberdade de expressão (CR, art. 5º, IX) e de manifestação do pensamento (CR, art. 220), assegurando também o exercício de direitos culturais. Mas não é incompatível com tais garantias a exigibilidade de autorização estatal para os serviços de radiodifusão, pois esta é estabelecida pela própria Constituição da República, em cujos termos devem ser desfrutadas as faculdades por ela asseguradas. 5. O trancamento do inquérito policial ou de uma ação penal exige ausência de justa causa, atipicidade da conduta ou uma causa extintiva da punibilidade evidente. 6. O crime do art. 183 da Lei n. 9.472/97 tem natureza formal, de modo que prescinde de resultado naturalístico para a sua consumação. É despiciendo, assim, que a conduta do agente cause efetivo prejuízo a outrem. O delito se consuma com o mero risco potencial de lesão ao bem jurídico tutelado, qual seja, o regular funcionamento do sistema de telecomunicações, bastando para tanto a comprovação de que o agente desenvolveu atividade de radiocomunicação, espécie de telecomunicação, sem a devida autorização do órgão competente 7. O mero indiciamento não pode ser considerado como coação ilegal, sanável pela via do writ. 8. Ordem denegada (Processo: HC 201103000150510 HC - HABEAS CORPUS – 45774- Relator: JUIZA LOUISE FILGUEIRAS- Órgão Julgador: Quinta turma TRF 3- Fonte: DJF3 CJ1 DATA:04/08/2011 PÁGINA: 620- Data do julgamento 25.07.2011- Data da Publicação: 04.08.2011).

Todavia, é possível encontrar entendimentos pontuais de que a rádio comunitária não caracteriza exploração de rádio clandestina, demonstrado pela decisão proferida pelo Juiz Federal da 12ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal Marcos Vinicius de Reis Bastos. Utilizou, principalmente como fundamentação da sua sentença, o direito à liberdade de informação, assegurado pela própria Constituição Federal de 1988 e o pelo Pacto de San José da Costa Rica – no qual o Brasil é signatário. Assim, conforme sua decisão: Para o magistrado federal, o direito à informação, expressamente reconhecido pelo art. 220 da Constituição Federal, não é compatível com a criminalização das atividades de telecomunicação, até porque, no seu entendimento, cabe à União apenas regulamentar a prestação dos serviços, de maneira a garantir a igualdade e a qualidade dos diversos espectros de radiofrequência. Dessa forma, num ordenamento jurídico informado por tais regras, não há justificativa legal para a incriminação de atividade que, quando muito, caracterizará mero ilícito administrativo, no caso de não serem observadas as normas que regulam o exercício da atividade de radiodifusão. Portanto, a instalação de rádios comunitárias constitui atividade destinada a realizar materialmente a norma constitucional, e quem assim procede, em princípio, não comete ilícito penal. Julgou, por isso, improcedente a ação penal movida pelo MPF contra o líder comunitário do Recanto das Emas, absolvendo-o da acusação de operar rádio clandestina, determinando a entrega dos equipamentos e aparelhagens apreendidos à emissora comunitária (PORTAL DA JUSTIÇA FEDERAL, 2010, online).

A justiça trabalha com leis e normas que precisam estar adequadas às sociedades as quais pretendem reger. Dessa forma, o ideal seria que, conforme a sociedade fosse transformando seus valores e práticas, o poder judiciário também alterasse os parâmetros de análise e punição. De acordo com Peruzzo (2007), os próprios fazeres relacionados à comunicação comunitária implicam “um processo que tende ao aperfeiçoamento progressivo, principalmente, quando assumido coletivamente” (p.70). A decisão do juiz federal mencionada 1028

anteriormente pode ser analisada como um efeito das mudanças que o judiciário vem sofrendo em decorrência das modificações da própria sociedade e da comunicação – não somente em seu segmento comunitário. 5. Considerações finais É possível, portanto, observar que a operacionalização de rádios comunitárias enfrenta diversos problemas no Brasil, sobretudo, a criminalização – cuja punição compreende detenção e multa, conforme o artigo 183 da lei 9472/1997. Assim, qualquer rádio comunitária que funcione sem autorização estatal é considerada como criminosa por boa parte dos juízes que compõem o poder judiciário brasileiro. Mesmo assim, considerando o entendimento jurisprudencial dominante, já existem decisões pontuais de que a rádio comunitária sem autorização não caracteriza exploração de atividade clandestina. Espera-se que o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que termina com a punição criminal para quem atua nessa área possibilite uma adequação das leis, no sentido de democratizar a comunicação no país. O projeto concebe que a violação de algum preceito da lei terá uma punição administrativa e não mais penal (PL 4573- 2009). Além de uma mudança nas penalizações, é importante que esse projeto estimule uma maior quantidade de debates acerca da comunicação comunitária, que é fundamental para várias comunidades negligenciadas pelas emissoras comerciais em todo o Brasil. É importante ressaltar que a descrimininalização das rádios comunitárias é um caso que diz respeito aos direitos humanos, tendo em vista que sua viabilização irá colaborar com o direito básico da liberdade de comunicação, garantido a todos os cidadãos e comunidades. Afinal, o judiciário faz parte do Estado – instituição que tem o dever de promover a pluralidade e a luta constante pelo fim das desigualdades, sejam elas de ordem econômica, política ou comunicacional.

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A construção da imagem feminina no discurso pornográfico como hipótese de colisão de direitos fundamentais: entre o erotismo e a teoria dos direitos fundamentais Tieta Tenório de Andrade Bitu1 T

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Resumo

Abstract

Observando-se a crescente difusão da pornografia enquanto fenômeno social, os conceitos através dela largamente debatidos, e o chamado princípio da proporcionalidade, busca o presente trabalho, dentro da perspectiva atual, analisar fontes bibliográficas e artigos que tratam do tema pornografia e da colisão dos direitos fundamentais. Relacionando a teoria dos direitos fundamentais com o fenômeno social da pornografia alcança-se o objetivo maior, qual seja: tratar da colisão entre os direitos fundamentais, no atual Estado democrático de direito. Dessa forma, é desenvolvida inicialmente a formulação do conceito de pornografia e a possível diferença entre esta e o erotismo, tendo por base a idéia da indústria cultural. Relata-se sobre as posições de crítica e de defesa do papel desenvolvido pela pornografia, na construção da imagem feminina, e se ressalta a visão feminista que considera a mulher, no âmbito da produção pornográfica, um objeto. Assim, conclui-se que a maior dificuldade reside em definir com precisão o conceito de pornografia, pois este é estritamente dependente da concepção individual e da realidade social-histórica vigente. Através da ligação entre a realidade social - de produção e consumo da pornografia - com o mundo jurídico, no segundo momento, trabalha-se o aspecto de maior relevância. O impasse criado pelos opositores e defensores da pornografia, que se utilizam dos direitos fundamentais como seus argumentos e geram conseqüente colisão entre direitos. Apresenta-se, no fim, como uma possível solução a esse conflito a teoria desenvolvida por Robert Alexy, através da qual se determina o uso do princípio da ponderação. Com base nesse princípio após a identificação dos direitos colidentes se observará o que melhor se adéqua ao objetivo perseguido e que tem uso realmente necessário, sem eliminar o outro e a fim de dar aquele maior peso e utilização. Esse princípio, portanto, é apontado como solução, uma vez que, traz pra si a responsabilidade de afastar a possibilidade de ocorrência dos excessos cometidos pelo Estado e ao mesmo tempo o cuidado de sempre manter ativo e salvaguardar os direitos fundamentais. Cria-se, então, com sua utilização limites que serão impostos a um determinado direito e que permitirá a coexistência entre os mesmos e, conseqüentemente, entre opiniões divergentes evitando a hierarquização e os excessos tanto para restringir quanto para liberar seu exercício. Resultando, então, na concretização máxima de um direito e na restrição do outro sem, no entanto, haver sua negativa.

Observing the spread and growth in the diffusion of pornography as a social phenomenon, the concepts through which the debate is brought into existence, and the so called principle of proportionality, the present work aims to analyze within the contemporary perspective, bibliographical sources and scientific papers dealing with the issue of pornography and the collision of basic human rights. The correlation between fundamental rights and the social phenomenon of pornography in its turn, accomplishes the higher purpose of the study, namely, to deal with the possible collision between fundamental rights in the current democratic state of law. Thus at first, the formulation develops the basic concept of pornography, and a possible difference between the pornographic discourse and eroticism, having as a basic idea the cultural industry. Also, we will relate on the criticism and on the defensive opinions of the role played by pornography in the construction of the female image, to highlight the feminist point of view that women are treated as objects within the framework of pornographic production. We conclude that the greatest difficulty resides in defining with precision a universal concept of pornography, considering that it is entirely dependent on the link between individual and sociohistorical realities– of pornographic production and consumption, with the juridical world view. In a second moment we raise the more relevant issue, of the impasse built between the opposition and those in favor of pornography, who avail themselves of fundamental rights as arguments in their debate and therefore, create collisions between basic rights. At the end Robert Alexy’s theory is presented as a possible solution to the conflict, with the proposition of the application of the principle of ponderation. Based on the same principle, after the identification of the conflicting rights, to determine which of them is best suited to the pursuit of the object in question, and how necessary and useful it is, without eliminating the other, and in order to give it further weight and utility. Therefore, the principle is proposed as a solution, given that it brings with it the responsibility to discard the possibility of abuses by the State, and at the same time, with the due care to preserve fundamental rights. The application of the principle creates limits that are imposed to a determined right, that will allow the peaceful coexistence between them, to avoid excesses, divergent opinions and hierarchization, in restrictions as well as its exercise. Resulting in the optimal protection of one right, and the restriction of another, without denying their existences.

Palavras-Chave: Pornografia; Robert Alexy; Princípio da Proporcionalidade; Concretização de Direitos.

Keywords: Pornography, Robert Alexy; Proportionality; Realization of Rights.

1

Principle

of

Acadêmica de Direito da UNICAP, email: [email protected]

1031

1. Introdução O presente trabalho, como bem esclarece o tema, busca observar a evolução da construção da imagem feminina tendo como pano de fundo o discurso e produção pornográfica ressaltando a hipótese de colisão entre os direitos fundamentais no contexto envolvido, que serão ao longo do trabalho identificados.

2. Menção histórica sobre a pornografia É bastante comum se pensar que a pornografia é algo novo, criado com a modernidade e sem nenhuma ligação com o passado, que as produções pornográficas são e foram criadas pura e simplesmente para homens e mulheres se exporem, atingirem a honrar e a moral da sociedade sem possuir nenhum outro objetivo. Observa-se logo que essa é a forma inicial de se interpretar a produção pornográfica. Outra forma de ver, contudo, é entendendo a pornografia como produto de uma evolução histórico-social sempre combatida pela sociedade, mas paradoxalmente, produzida em todo o tempo. Através de estudos percebe-se que há uma contextualização da produção e que seu objetivo não se limita à transgressão de conceitos individuais; pelo contrário, se estende a uma coletividade. É importante salientar que conceitos como desejo e sensualidade sempre existiram. Já pornografia e erotismo até os dias atuais não possuem uma definição clara. Sabe-se apenas que erotismo é uma palavra de origem recente, meados do século XIX, que deriva do grego Eros, conhecido como deus do amor no sentido sexual amplo. E pornografia deriva do grego pornographos que literalmente significa “escrito sobre prostituas”, são textos que descrevem a vida, os costumes e hábitos das prostitutas e de seus clientes.2 Os dicionários ainda T

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acrescentam como significado “a expressão ou sugestão de assuntos obscenos na arte, capazes de motivar ou explorar o lado sexual do indivíduo.” 3 T

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É no fim do século XVIII ao XIX, principalmente no Ocidente, que se tem um momento decisivo para se buscar conceitos mais claros. Com desejo de pôr a prova os limites do decente e censurar as autoridades eclesiásticas e seculares; escritores, pintores e gravadores realizaram atividades que levou ao desenvolvimento da pornografia. Intensificada com a evolução do material impresso que é responsável pelo aumento das publicações e a conseqüente popularização das obras pornográficas. Seguindo uma evolução histórica, Hunt mostra desde o período do renascimento, na Itália, quando Pietro Arenito começa a produzir os escritos de temas considerados imorais, a existência de uma ligação dessa produção com a Antiguidade Clássica; pois, apesar de buscar chocar o futuro público as obras sempre retornam ao passado.4 Passado T

2

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MORAES, Eliane Robert; LAPIEZ, Sandra Maria. O que é pornografia. São Paulo: Abril Cultura: Brasiliense, 1985. p. 7.

3

ABREU, Nuno Cesar; O olhar pornô: A representação do Obsceno no cinema e no vídeo. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996. p. 09.

4

HUNT, Lynn. A Invenção da Pornografia. Obscenidade e as Origens da Modernidade, 1500-1800. São Paulo: Hebra,1999. p. 79.

1032

esse bastante marcado com o contexto aqui explorado. Por exemplo, nas sociedades hebraicas as prostitutas eram mulheres socialmente conhecidas. Na Grécia, eram musas inspiradoras das classes de diversos artistas, mas não só deles. No Oriente, lugar de onde um estudioso de religião criou o manual da arte do amor – Kama Sutra - e em Roma, de onde surgiram diversos poetas e poetisas que abordavam o assunto. Maior destaque pode-se dar aos escritos do Marquês de Sade bem exemplificados pela sua obra “Os 120 dias de Sodoma”, na qual demonstra todo seu interesse pelas formas mórbidas de prazer, descrevendo orgias, coprofagia, abuso de crianças, relações homossexuais, todas suas idéias libertárias e permissivas. No final do Renascimento Italiano surge uma literatura pornográfica mais “culta”. Os humanistas produzem textos baseados num discurso mais formal das academias. São os escritos obscenos e eróticos do século XVI com técnica voyeurística, subversiva e carregada de um grande conteúdo filosófico que darão uma base forte para os dois seguintes séculos. Nesse momento através do desenvolvimento da imprensa, haverá uma grande divulgação, comercialização e evolução na forma de produzir as imagens e literatura de conteúdo moral duvidoso e conseqüentemente aumento de um público leitor nas cidades, agora não mais limitado à elite, resultando assim na intensificação da constante busca de uma forma de censurar e do meio de definir o que era lícito ou não. No período Iluminista e durante a Revolução Francesa que de maneira muito mais forte a pornografia é usada como meio de criticar a Igreja, principalmente, o clero e a nobreza; e que as produções de conteúdo duvidoso recebem uma maior carga política e filosófica.5 Já, no século T

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XIX e períodos seguintes, com toda uma nova realidade histórica, e uma sociedade carregada com os ideais românticos, com o novo conceito de família, casamento e relações no geral surgem palavras como homossexuais, heterossexual, pornografia e a visão da prostituta como vítima, uma diminuição significativa do conteúdo político das obras pornográficas e a manutenção da repressão. Permanecendo, contudo, indefinição para palavra pornografia e dificuldade diferenciar os limites entre o conceito de erótico e pornográfico. No Ocidente, a pornografia tem sua divulgação intensificada no século XX, com a explosão da internet como meio de comunicação e divulgação da produção artística e não-artística. É nesse momento, que de forma mais intensa se busca uma definição do seu conceito, uma diferenciação e a imposição dos limites entre o pornográfico e o erótico. Se percebendo desde logo e diante do que foi exposto como esboço histórico da pornografia que, se há uma fronteira entre esses dois conceitos ela é incerta. Pois a forma de interpretá-los depende tanto da natureza, da forma como é transmitido quanto da forma que é recepcionado, ou seja, de uma concepção individual do que é admissível ou não. Acrescenta-se ainda que essa visão individual não é estática no tempo e no espaço o que torna mais imprecisas as definições.

5

HUNT, Lynn. A Invenção da Pornografia. Obscenidade e as Origens da Modernidade, 1500-1800. São Paulo: Hebra,1999. p. 259.

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3. Busca pela distinção entre erótico e pornográfico, as influências da indústria cultural e diferenças dos conceitos: moral, libertino e libertário, com ênfase no discurso feminista Mesmo assim, arriscamos demonstrar um conceito de erótico, que da mesma forma que a pornografia sofreu transformação e hoje não é simplesmente compreendido através da origem da palavra e da mitologia. Também é observado de forma diversa por vários grupos existindo os que admitem de forma simplista não perceber diferença entre pornografia e erotismo achando que se resumem na descrição dos prazeres carnais e que o erotismo é apenas uma forma de disfarçar a venda da pornografia. Porém de forma quase unânime e mais bem elaborada há os que consideraram o erotismo outro lado da sexualidade, que segundo Bataille está presente no cotidiano da humanidade e é sinônimo de transgressão, para o mesmo o erótico esta dentro da esfera do desejo que surge da proibição, fazendo parte, assim como a pornografia do não habitual. Concorda-se, pois que o erótico dispensa o vulgar, o grosseiro e a exposição exagerada. O erótico ao contrário da pornografia valoriza o segredo/ mistério, o menos obsceno, o sensual e o suave sendo “uma modalidade não utilitária de prazer ao propor o gozo como o fim em si mesmo”.6 Trata, assim, da sexualidade e de assuntos a ela ligados de forma “nobre”, “humana”, T

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problematizando-os com dignidade.7 Podemos ainda dizer que o erotismo retrata da arte de amar T

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e que “é tudo que torna a carne desejável, tudo o que desperta uma impressão de beleza, saúde, deleite”8 T

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Para tentar construir uma definição de pornografia, dentro do contexto histórico contemporâneo, deve-se iniciar observando-a como um fenômeno social produto da “indústria cultural”, termo muito bem trabalhado por Adorno e Horkheimer que bem antes do auge da internet já falavam da padronização e da produção em série da arte. Disseminada através dos meios de comunicação, cinema e rádio, com o fim mercadológico que resulta “no mundo inteiro forçado a passar pelo filtro da indústria cultural”9, e assim, na visão dos mesmos, se instala nos T

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homens de uma vez por todas a violência da sociedade industrial e “os produtos da indústria cultural podem ter certeza que até mesmo os distraídos vão consumi-los alertamente.”10 A T

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nomenclatura indústria cultural é usada para retratar, de forma simplificada, um momento social no qual se deu a explosão das técnicas de criação e de divulgação de toda produção artísticocultural. Com o cinema, o rádio e hoje de forma assustadora com a internet saí essa criação de uma posição quase insignificante para a total popularização tanto em termos de consumo quanto

6

ANDRADE, Sebastião Costa. Desejos Desvelados: Erotismo e pornografia numa perspectiva macrossociológica. Curitiba: Instituto Memória, 2009. p. 74. 7

ABREU, Nuno Cesar; O olhar pornô: a representação do Obsceno no cinema e no vídeo. Campinas: Mercado de Letras. 1996, p. 40.

8

ANDRADE, Sebastião Costa. Desejos Desvelados: Erotismo e pornografia numa perspectiva macrossociológica. Curitiba: Instituto Memória, 2009. p. 58. 9

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. De Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1985. p.118. 10

Idem, p. 119.

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em termos de produção. Agora tudo pode ser produzido e consumido pelos homens de forma quase que automática, em todo e qualquer lugar há um meio de se receber informações. E, no fim, como bem esclareci Adorno e Horkheimer: Quanto mais firmes se tornam as posições da indústria cultural, mais sumariamente ela pode proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as, disciplinando-as e, inclusive suspendendo diversão: nenhuma barreira se eleva contra o progresso cultural. 11 T

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A revista, o rádio, a fotografia, a propaganda, o cinema, a internet e o vídeo caseiro e industrial alimentam diariamente o número de informações, todos se tornam fascinados pelos produtos das técnicas de capitação audiovisual pela reprodução da realidade, que muitas vezes não condiz com o real, ou seja, é a realidade programada. E sem perceber perde-se lentamente o senso crítico a capacidade de refletir diante do que é oferecido e vendido. E o pior, passa-se a ver com olhos da indústria cultura e não mais se sabe separar a realidade de fato com a realidade reproduzida. Outro ponto marcante do conceito, que aqui falo brevemente, é o da padronização. Apesar das diversas técnicas e meios utilizados o produto na essência é o mesmo seja qual for o ramo da produção o objetivo é fazer todos consumirem igualmente, não só em termos de quantidade, mas principalmente de conteúdo. A aparente boa intenção de produzir algo singular muitas vezes só resulta em mais um produto pré-fabricado para atender as exigências de consumo de um grupo que logo mais perderá a sua característica singular, nada mais é produzido em pequenas quantidades todo resultado deve atingir os grandes números, a grande escala e esse produto será procurado e posto no mercado como todos os outros. Muitos dos produtos da indústria cultural são paradoxalmente condenados e consumidos pela sociedade. E assim é com a produção pornográfica. Ela é atualmente um dentre os diversos produtos fabricados e veiculados nos vários meios de comunicação, com maior força, claro, na internet. Meio pelo qual se divulga a produção pornô sem nenhuma forma de censura ou controle. E onde se sabe que não é/será fácil impor limites à produção e ao consumo, por conta da maneira extremamente sofisticada com quais as informações são passadas. Não busca o presente trabalho questionar os benefícios trazidos pela rede mundial de computadores, nem quanto a sua capacidade de divulgação, porém não se pode deixar de avaliar que a “agilidade no desenvolvimento de novas tecnologias e, conseqüentemente na transmissão de informações e de imagens, tem trazido muita dor de cabeça à sociedade”.12 Ressalta-se, contudo, que “logicamente, a internet não é um problema em si. T

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Como qualquer nova tecnologia, ela oferece muitas possibilidades de informação e comunicação, mas também riscos sociais específicos”.13 T

11

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Idem, p. 135.

12

LEINER, Carla, Abuso sexual, pornografia: a infância é a última fronteira da violência, 1º. ed, São Paulo: Terceiro Nome, 2007. p. 43.

13

LEINER, Carla, Abuso sexual, pornografia: a infância é a última fronteira da violência, 1º. ed, São Paulo: Terceiro Nome, 2007. p. 47.

1035

Então, tratando especificamente da produção pornográfica na atual era da informação percebe-se como dito anteriormente a enorme amplitude da divulgação e das diversas opiniões e discursos que o acompanham. Depois do exposto sobre erotismo e dentro do contexto antes delineado tenta-se a partir de agora esclarecer melhor as definições e as diferentes opiniões acerca da pornografia. Impossível será dizer quantos especificamente aceitam com naturalidade ou não a grande divulgação e produção de material com conteúdo pornográfico, porém pode-se afirmar que com a explosão tecnológica houve um significativo aumento e visibilidade das diversas opiniões sobre esse tema. Envolvendo-o existem três discursos tradicionalmente focados pela sociedade. Primeiramente pode-se citar o grupo dos conservadores, também, chamados de moralistas, pois possuem como principal argumento o conceito de moral ligado as tradições cristãs que considera a pornografia pura falta de regra e um estímulo ao comportamento antisocial devendo a mesma ser totalmente reprimida a fim de que se evite a decadência dos valores morais e socais. O segundo seria o dos libertinos que se posicionam do lado oposto dos conservadores, não se prendem às convenções morais ou sociais, defendem que o sexo deve ser tratado abertamente, livre de imposições e de limites e que a produção pornográfica é exercício livre da imaginação. Como terceiro grupo é possível se falar dos libertários esses abarcam certo radicalismo, recusam-se a aceitar estereótipos tradicionais e acreditam e defendem que a produção pornográfica é um trabalho como outro qualquer; “podem se situar como radicais apreciadores da excitação lasciva ou ultrajante, mas podem também se aproximar do campo da patologia”.14 T

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Somado as esses grupos podemos acrescer o das feministas que apesar de ser um grupo com características determinadas possui no seu interior divergências com relação à pornografia. Defende as diferentes opiniões que há os que a consomem por considerá-la boa, positiva, pois gera conseqüências do tipo: “vencer inibições sexuais, sobre tudo a culpa, estimula a libido e ensina um vasto repertório de atividades eróticas, que acabam a levar a plena satisfação sexual”15 T

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e muitas vezes acabam até servindo como meio educativo, os que são indiferentes a tal divulgação: “apenas uma forma de entretenimento, nem positiva nem negativa”16 uma forma de T

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entretenimento geradora de “uma sensação de poder, um aura de vigor sexual que pode ser despendido em imaginação sem implicação no mundo real”17 e aqueles que a vêem como um mal T

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social.

14

ABREU, Nuno Cesar; O olhar pornô: A representação do Obsceno no cinema e no vídeo. Campinas: Mercado de Letras, 1996. p. 35. 15

PAUL, Pamela. Pornifcados: como a pornografia está transformando a nossa vida, os nossos relacionamentos e as nossas famílias. trad. de Gilson César Cardoso de Sousa, São Paulo: Cultrix, 2006, p. 74. 16

Idem, p. 73.

17

Idem, p. 39.

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Entre esses o grupo que possui maior destaque, é sem dúvida daqueles que se posicionam contra a produção pornográfica, que a vêem como um mal social, pensam que é através dessa produção que se cria um novo e negativo conceito da imagem feminina. Alegam que a ampliada divulgação e a facilidade de acesso tornou tudo sem graça, perdeu-se a natureza secreta da pornografia, não existe mais o seu fascínio. Que se criou através da indústria pornográfica e da sua integração com a cultura popular uma conseqüente cultura pornificada e como bem defendem Adorno e Horkheimer: “a fusão da cultura e do entretenimento não se realiza apenas como depravação da cultura, mas igualmente como espiritualização forçada da diversão”.18 E assim, muitos homens que vêem a pornografia como um passatempo, “um outro T

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entretenimento, algo a ser consumido na mídia sem maiores conseqüências”19 colaboram, na T

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visão das mesmas, na verdade, para existência de conseqüências graves com relação ao papel da mulher na sociedade, da sua imagem. Na opinião dessas mulheres a utilização de material pornografia é para os homens uma fuga da realidade onde em vez de se buscar a concretização da fantasia, gera-se no mesmo a utilização do corpo da mulher como objeto, algumas vezes de forma violenta, e divulgando a visão machista. Defende esse grupo que através da visão pornográfica as mulheres servem apenas para agradar aos homens e por isso estam sempre dispostas a fazer tudo, aceitar fazer tudo o que eles querem delas, o que quer que ela seja. Até a busca por um aparente prazer recíproco torna-se fundamental nesse mundo. Além de tudo tem-se a visão das mulheres transformadas em objeto e tratadas nas fotos e vídeos de forma humilhante. São essas mulheres levadas a pensar que o maior problema de toda produção e um dos maiores riscos social trazido pela explosão da indústria cultural e pela mídia, que buscam: diversão excessiva, liberação sem limites e constante necessidade de se atingir novos espaços; esta é a forma natural e sem limites com que se em cara tal liberação da produção visual do sexo. Consideram, contudo que a pornografia “foi longe: algo que era considerado prejudicial e secreto hoje passa por exercício saudável da imaginação” 20

, o que era antes tido como inaceitável, imoral, absurdo de ser produzido e consumido hoje se

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tornou socialmente aceitável, “a linha que dividia o aceitável do inaceitável deslocou-se acentuadamente para o lado explícito”.21 Vulgarizando acentuadamente o papel sexual da mulher, T

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violando sua dignidade e levando muitas vezes a situações de violência, de abuso e exploração sexual. Então, partindo da idéia de pornografia como fenômeno social, passa-se a afirmar que ela sempre existiu, porém, nos dias atuais os materiais de conteúdo pornográfico como resultado da 18 ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1985, p. 134. 19

PAUL, Pamela. Pornifcados: como a pornografia está transformando a nossa vida, os nossos relacionamentos e as nossas famílias. trad. de Gilson César Cardoso de Sousa, São Paulo: Cultrix, 2006, p. 36. 20

PAUL, Pamela. Pornifcados: como a pornografia está transformando a nossa vida, os nossos relacionamentos e as nossas famílias. trad. de Gilson César Cardoso de Sousa, São Paulo: Cultrix, 2006, p. 57. 21

Idem, p. 59.

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indústria cultural tomaram proporções diferentes, são hoje muito maiores. Sem perder a sua maior característica que é da transgressão, sensação que alimenta o consumo. Atingem a sociedade de forma mais veloz, sem distinguir, na maioria das vezes o gênero ou faixa etária dos receptores; oferecendo a eles um número muito grande de sites que possuem vídeos e fotos de conteúdo pornográfico utilizando uma espécie de catálogos/cardápios que objetivam classificar nos mais variados tipos de mulheres e relações sexuais; de classificar tudo o que é produzido, como forma de satisfazer diretamente cada grupo de consumidor, levando-os a buscar determinada produção por sinais e categorias bastante variadas e, para alguns, discrimadoras.

4. Hipótese de colisão entre os direitos fundamentais envolvidos na produção pornô e o princípio da proporcionalidade Com toda essa descrição é possível se afirmar que nesse momento atinge o trabalho seu ponto mais importante, aonde a pornografia vai ser vista como um problema social contemporâneo. Percebe-se, pois dentro do contexto de cultura de massa que há a partir da década de 60 um vertiginoso aumento das publicações e consumo das obras de conteúdo pornográfico, e que apesar de se compreender todo o papel de imposição da indústria cultural, o “sentimento” de necessidade de consumo gerado por ela traz à tona questionamentos sobre os possíveis danos pessoais, sociais e as conseqüentes implicações no mundo jurídico. Sabendose, pois que as transformações fáticas na sociedade geram o desenvolvimento e a criação de novos direitos; ao se tratar dos meios de comunicação de massa e principalmente da internet não se pode deixar de analisar os riscos trazidos por sua grande capacidade de divulgação. Nesse contexto, as necessidades de tutela de novos direitos podem surgir e outros podem ser violados. Dentro dessa possibilidade faz-se necessário uma intervenção do Estado/Juiz como forma de proteção ao cidadão e de controle dos abusos que podem ser cometidos, inclusive por parte do próprio Estado. Observando a divulgação de material pornográfico- onde pessoas e imagens estão a todo tempo expostas seja com a intenção comercial ou simplesmente de divulgar seu corpo, ou uma relação sexual e, partindo da idéia que, no mundo virtual as informações são na maioria das vezes objetos de comércio e de diversão excessiva não pode o mundo jurídico se limitar a tratar do tema apenas levando em conta os problemas que envolvem as esferas jurídicas cíveis e penais, restringindo-se a tratar de contratos realizados no âmbito virtual e do crime de pedofilia. Deve-se se observar que direitos outros como aqueles tutelados pela Constituição e abordados especificamente pelo direito constitucional estão diretamente relacionados com o tema e não devem ser minimizados quando se trata de situações onde o homem é seu mais importante autor e ator. Importante é compreender que os direitos humanos fundamentados na Constituição não são mera enunciação de princípios, são, sim, positivação de direitos, a partir dos quais qualquer

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individuo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário.22 Sem esquecer que terá sempre o T

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Estado de buscar a sua efetivação. Partindo de uma visão crítica com relação aos efeitos das novas tecnologias e da facilidade da divulgação do material pornô, no qual para a maioria da opinião é uma produção que degrada a imagem feminina, a transforma em um objeto perdendo todo seu valor e dignidade como pessoal humana, é imprescindível iniciar citando como princípio constitucional a ser preservado pelo ordenamento jurídico o princípio da dignidade humana. A partir dessa concepção, considera-se o homem como um fim em si mesmo e que o sentido da vida esta no homem quando respeitado enquanto tal, sendo este o valor maior da sociedade. Sociedade esta que na tentativa de efetivar o direito antes citado e sustentar suas características democráticas toma como ponto de partida o respeito a “uma pluralidade de códigos morais”23 e distintas concepções a fim de T

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facilitar o desenvolvimento e manutenção das formas particulares de existência que abrangem outros direito tutelados pela constituição. A informática junto com a produção pornô provocou como dito anteriormente, mudanças de costumes da humanidade suscitando por isso, novas questões com relação aos vários direitos e com relação aos direitos fundamentais. E são esses direitos fundamentais que entrarão em colisão quando se tem como pano de fundo as diversas opiniões de discursos que envolvem o tema da pornografia. É possível de forma bem prática e direta antes de comentar especificamente sobre cada direito que envolve a produção e o consumo de vídeos pornô dividir os direitos fundamentais geralmente colidentes em dois grupos. Primeiramente podemos unir os direitos que são base do argumento daqueles que concordam com a liberação da pornografia, são eles: liberdade de expressão, liberdade de comunicação e direito à informação. Já o segundo grupo de direitos, que se contrapõem aos citados acima, é formado pela: intimidade, privacidade, dignidade, honra e imagem. São eles utilizados como forma de se posicionar contra a liberação. Os direitos selecionados no primeiro grupo surgem como bons argumentos por que trazem para o conflito entre direitos a discussão sobre o que vem a ser a liberdade dentro da perspectiva jurídica. Como sabido, é a liberdade constitucionalmente garantida, no caput. do art. 5º, e segundo Gilmar Mendes pode ser conceitua como: “perspectiva da pessoa humana como ser em busca da auto-realização, responsável pela escolha dos meios aptos para realizar suas potencialidades”24 e T

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ainda deduzem fortemente aqueles direitos a forma de expressão da liberdade de pensamento que “trata-se de liberdade de conteúdo intelectual e supõe o contato do indivíduo com seus

22 ESLAVO, Bárbara. Colisão dos direitos fundamentais com as novas tecnologias. Revista de direito privado. ano 10, n. 40, out.-dez./2009, p. 61-83. 23

RABENHORST, Eduardo Ramalho; Dignidade Humana e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 111. 24

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Martires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 2º ed., 2008, p. 359.

1039

semelhantes”.25 Fala-se então que é a liberdade de expressão, exposta no art. 5º, inciso IX, uma T

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forma de externar pensamentos, idéias e opiniões que normalmente estão carregados de juízo de valor e crenças. É assim relativa a sentimentos, a arte; expressões do indivíduo. A liberdade de comunicação por sua vez abarca o direito de comunicar e receber informações, diz respeito aos meios de comunicação social através dos quais se expressa e difunde idéias e informações. Para finalizar os argumentos bases dos defensores da pornografia citamos ainda o direito à informação importante, pois se trata de um direito coletivo, diz respeito aos indivíduos que irão receber a informação, identificado na Constituição no seu art. 220 quando expõe que manifestar pensamento, criação, expressão informação sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerá restrição quando seguir o disposto no texto constitucional. E ainda no art. 221, inciso IV que dispõe que a produção e a programação das emissoras, aqui estendemos a idéia aos mais atuais meios de comunicação, deverão respeitar aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Através desses argumentos pode a pornografia ser tida como uma expressão artística, com forte valorização do erótico, como um meio de se educar e passar informações referentes ao sexo e a sexualidade e que pode e deve ser consumida pela população, sem gerar nenhum tipo de dano. Complementa-se ainda que não existe lei, no Brasil, que proíba a produção pornô, exceto quando se trabalha com menores, e que todos tantos os que consomem quanto os que produzem estão simplesmente exercendo os direitos que são garantidos pela constituição. Logo, entende-se que liberdades de expressão, de comunicação e direito à informação são direitos constitucionalmente garantidos e vistos atualmente como direitos fundamentais que devem ser assegurados a todos os cidadãos. É valido, porém, ressaltar que no regime democrático não há direito absoluto, para se garantir as liberdades e pluralidades individuais acabam todas as leis/ normas e ações individuais e coletivas por sofrerem limitações. Limitações essas que nem sempre são postas da forma predeterminada. Pelo contrário, na maioria das vezes, para haver a imposição desse limite é necessário o estudo de um caso concreto, onde direitos estão em conflito, mas só um poderá ser aplicado. Quando se fala em conflito de direitos fundamentais e limitação a direitos envolvendo a pornografia tem-se que se compreender que essas limitações serão conseqüência da existência daqueles dois grupos de direitos que nesse contexto caminha em direções opostas. Entre os diversos interesses em jogo tem-se no segundo grupo os argumentos baseados em direitos que possuem na sua maioria um conceito abstrato, que apesar de expresso no texto constitucional precisam para se definir recorrer à discussão doutrinária. Assim, cita-se primeiramente como forte argumento daqueles que se posicionam contra a pornografia o conceito kantiano de dignidade, que já fora trabalhado, mas que pode ser reforçado como um valor intrínseco à pessoa humana que deve afastar e mitigar tudo aquilo que puder 25

DA SILVA, José Afonso; Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 241.

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reduzir a pessoa à condição de um objeto direcionando a um fim. Junto a esse estão outros contidos no art. 5º inciso X, que expressa que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, e ainda garante que caso não seja cumprida a violação estará assegurado o direito a indenização pelo dano moral ou material. Defendem os contrários a produção pornô que não se pode divulgar imagens estáticas -foto- ou dinâmicas –vídeos- indiscriminadamente, utilizando como argumento as liberdade de expressão e de comunicação e o direito à informação pois estes se dessa forma utilizados ferem diretamente os direitos contidos no art. 5º, inciso X. A compreensão da intimidade como elemento de caráter subjetivo que reflete a relação do indivíduo consigo mesmo, e a exclusão do conhecimento de outros daquilo que só se refere a ele. Junto com a definição de vida privada como elemento possuidor de um caráter mais objetivo que envolve as características da intimidade em um espaço em que o indivíduo se relaciona com outros e onde cabe exclusivamente ao seu controle a escolha de compartilhar ou não o que a ele se refere. Oferecem grande força a negativa da pornografia quando veiculada como algo que expõe de forma bastante aberta e indiscriminada o sexo, a sexualidade e principalmente a mulher dentro dessa relação. Para completar esse circulo de direitos fala-se do conceito de honra que “surge das primeiras manifestações em defesa de valores ou qualidades morais da pessoa humana”26 e que traz à tona valores imateriais que compõe o homem colaborando para uma T

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perspectiva não apenas material da vida, mas também abordando a reputação, avaliação realizada pelo meio social da exteriorização de um comportamento, e o valor que a pessoa realiza de sua própria dignidade moral. Fala-se ainda, para efetiva conclusão da discussão a cerca dos direitos que compõem esse grupo, do direito à imagem que de forma contrária a honra tutela a integridade física e “restringe-se à reprodução dos traços físicos da figura humana sobre um suporte material qualquer”.27 É juridicamente definido como uma faculdade dada a toda pessoa de dispor da sua T

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aparência autorizando ou não a utilização dos seus aspectos físicos. Da mesma forma que os dois direitos antes citados, colaboram esses últimos para negação da pornografia em quanto movimento social no momento em que defendem a integridade física e moral de qualquer ser humano, não excluindo, pois as mulheres. Pelo contrário, podem eles reforçar a idéia que no mundo pornô a mulher é explorada, subordinada, desumanizada como uma máquina/objeto, que esse tipo de apresentação do papel feminino fere a dignidade da mulher, denegri sua imagem, põe em cheque a sua honra, incita violência contra a mulher. E que é extremamente absurda a visão de que a mulher sente prazer e se valoriza quanto apresentada nesse tipo de representação. Percebe-se, contudo, que o mútuo exercício de direitos pode ensejar uma série de conflitos com outros direitos constitucionalmente protegidos. O que faz necessário para solucionar

26

DE FARIAS; Edilson Pereira. Colisão de Direitos: A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade expressão e informação, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2000, p. 134. 27

Idem, p. 148.

1041

a situação analisar pressupostos fáticos e jurídicos envolvem a colisão entre direitos fundamentais. O presente tópico, contudo, busca suscitar reflexões sobre o momento no qual o Estado Democrático de Direito abrange o enorme leque de direitos fundamentais e tenta ao mesmo tempo desenvolver limites, restrições, formas de coexistência desses, com o objetivo de vê-los englobados em um mesmo plano se desenvolvendo mutuamente. Possível é se observar que o desenvolvimento e a construção dos direitos ditos fundamentais não se deram de forma tão simples nem automática, pelo contrário é resultado de um complexo processo histórico. Com o intuito de facilitar a exposição do presente tópico iniciamos com a idéia que os direitos fundamentais possuem a característica de princípio jurídico e não de regra. Necessário então é um breve desenrolar sobre as diferenças existentes entre esses. Como base na didática doutrinaria, é possível se afirmar que existem no ordenamento jurídico brasileiro subespécies de normas, sendo elas: as regras e os princípios. As regras são concretas e por isso de maior facilidade para serem aplicadas, obedecendo aos mandamentos da fixação, são usadas quase que automaticamente; se ocorre o suporte fático nela previsto não há o que se discutir, aplica-se a regra por meio da subsunção. As regras são determinações préestabelecidas onde é ordenado fazer rigorosamente o descrito. Já os princípios, possuem aplicação bem distinta. Não há uma determinação taxativa, eles carregam uma maior generalidade sendo assim mais abstratos. Para utilizá-los, deve-se ter uma analise mais profunda do caso concreto buscando sempre relacionar o valor expresso no princípio e a hipótese fática com a qual esse se relaciona. Os princípios não são aplicados como as regras, mas não se encontram em oposição a essas. Ressalta-se que juntos constroem o mesmo ordenamento. São os princípios “normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida tão alta quanto possível relativamente a possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização.” T

28 T

Pode-se dizer, portanto, que sua forma de aplicação é até mais

complexa, pois se faz necessário um julgamento prévio de peso e valor. E ainda se afirmar que quando atingida uma conclusão diante do caso concreto não podem eles ser declarados inválidos ou hierarquicamente superiores; entre os princípios não há hierarquia. Porém, como predomina a idéia de mandamento de otimização, na qual o princípio deve ser cumprindo de forma a alcançar o maior resultado possível e a possibilidade, diferentemente das regras, de diante de um caso concreto se utilizar mais de um princípio, implica a utilização de um deles na restrição de uso do outro. Então, percebe-se que no conflito existente entre determinados princípios um não anulará o outro, mais sim, prevalecerá sobre o outro de acordo com a situação fática. É nesse momento em que se encontra o real objeto do trabalho: uma situação fática que necessita de uma solução jurídica, porém com mais de um direito fundamental podendo ser aplicado. Robert Alexy defende

28

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. trad. de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 64.

1042

que: “princípios e ponderação são lados do mesmo objeto”29 sendo contextos inseparáveis e T

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considerando-se a colisão dos direitos fundamentais colisão entre princípios sempre que se tratar desse conflito deverá se buscar a solução através da ponderação. Este é, pois o meio pelo qual se soluciona ou se busca solucionar da melhor forma, atingindo sempre a máxima de utilidade de um direito, o conflito entre os princípios e conseqüentemente entre as normas que possuem sua mesma estrutura. Atualmente os direitos fundamentais estão na sua maior parte escritos, catalogados nas Constituições, porém é sabido que outros surgidos de situações posteriores apesar de não catalogados carregam elementos constitucionais que os equiparam aos escritos. Os estudiosos desses direitos, utilizando-se da ótica jurídica, vão no exercício de interpretação e aplicação encontrar limites, barreiras que são o cerne da colisão. A título de demonstração, têmse atualmente, com críticas também existentes, dois tipos de colisão. A colisão em sentido restrito e a colisão em sentido amplo. A primeira é definida quando existe choque entre dois direitos ditos fundamentais e a segunda pode ser definida quando se tem um conflito entre um direito fundamental com uma norma ou princípio de possuem como objeto bens da coletividade, por exemplo, aqueles que envolvem as questões ambientais. Acrescenta-se que esses direitos podem está em confronto com outros direitos coletivos, mas também com direitos individuais.30 T

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Quando se fala dos limites impostos ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e conseqüente colisão torna-se primordial falar da ponderação como resposta, ou como melhor forma até agora encontrada, para solucionar esse conflito. De início pode-se afirmar que a idéia desse princípio não esta expressa como norma geral do direito escrito e que apesar de a algum tempo ter sido trabalhada em alguns países como Alemanha, só a pouco, em meados do século XX, que os tribunais brasileiros dele fazem uso. Refletindo, claro: o desenvolvimento de longo tempo de trabalho da doutrina, a construção histórica dos direitos fundamentais e o surgimento das novas dimensões desses direitos; e conseqüente vinculação deles ao Direito Constitucional. Com isso o princípio que busca solucionar a colisão entre direitos do homem ganha, no Estado de Direito, uma importância, um prestígio diferente. Passa ele a carregar uma nova característica, pois deixa de possuir o sentido mecânico, técnico das regras e traz pra si a responsabilidade de afastar a possibilidade de ocorrência dos excessos cometidos pelo Estado e ao mesmo tempo o cuidado de sempre manter ativo e salvaguardar os direitos fundamentais. Como bem declara Paulo Bonavides a aplicação mais proveitosa e potencial desse princípio é aquela que o torna instrumento de interpretação sempre que ocorre antagonismo entre princípios fundamentais e daí o surgimento de uma “solução conciliatória”.31 A ocorrência do antagonismo entre princípios, T

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direitos fundamentais, e a necessária restrição deles, como dito anteriormente, é o resultado da crescente expansão do âmbito de proteção desses direitos e, ao mesmo tempo, da possibilidade 29

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo, trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 64.

30

ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo, trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 56.

31

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 22º ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 425.

1043

de intervenção Estatal que só será solucionada com a utilização da regra da proporcionalidade resultando na concretização máxima de um direito e na restrição de outro. A idéia de ponderação será vista de forma mais enfática quando se falar do princípio da proporcionalidade em sentido estrito. O sentido estrito é buscado, pois o princípio da proporcionalidade é composto por mais dois princípios, também chamados de subprincípios ou ainda de elementos parciais. O primeiro é o da adequação, também denominado de princípio da idoneidade é utilizado como passo inicial para se concretizar a regra da proporcionalidade. Servi de meio para questionar se a medida, o caminho tomado é realmente apropriado para alcançar o objetivo perseguido. Geralmente, é utilizado com o auxílio o seguinte questionamento: “A medida adotada é adequada para fomentar a realização do objetivo perseguido?”32 Em seguida tem-se o princípio da necessidade ou T

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exigibilidade que tem por base a comparação, pois será analisado qual meio, qual das diversas medidas é realmente necessário pra se atingir determinado fim. Tem que se ter em mente que através dele se busca atingir o resultado mais eficiente, as várias maneiras de alcançá-los existem e são essas maneiras que devem ser comparadas. Nesse contexto, se deve lembrar, que a necessidade não pode ser confundida com urgência, o objetivo ao utilizar esse princípio é escolher o meio entre os quais um será considerado mais adequado e que causará menos danos. Até agora se falou apenas da forma mais adequada e necessária para se fomentar o objetivo perseguido não se mencionou os efeitos dos possíveis danos causados pela restrição e o fundamento que justifique constitucionalmente o uso de determinado direito. Esse é, pois um passo importante para concretização da regra da proporcionalidade. E que se encontra no terceiro princípio o da proporcionalidade sentido estrito ou da razoabilidade. Que servirá para o momento de analise final onde se observará a possibilidade de existência de um direito que se adéqüe ao objetivo perseguido e que seja necessário, mas que não fira, não restrinja de forma muito intensa outro ou vários direitos e por fim que haja uma justificativa racional para usá-lo. Isso só será verdadeiramente apreciado quando estudado minuciosamente o caso concreto, quando identificado os direitos colidentes, quando descritas todas as possibilidades e situações; no momento em que estiverem todos os subprincípios já concretizados.

5. Conclusão Após discorre sobre a evolução histórica da pornografia, sua influências sociais, sobre a difícil tarefa de distinguir o conteúdo erótico do pornográfico e ainda de trabalhar as diversas concepções que envolvem o tema, com ênfase na corrente feminista, alcançou-se o objetivo mais especifico do trabalho, a identificação do problema gerado pela pornografia. Através da delimitação do contexto verificaram-se os direitos fundamentais envolvidos na discussão sobre a 32

DA SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. p.170.

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pornografia como algo que deve ser na opinião de alguns proibida, banida da sociedade e para outros liberada, livremente produzida e consumida. Observou-se a partir de então que a Constituição brasileira revela diversos pólos de tensão normativa, de direitos que consagram valores e bens jurídicos que se contrapõe e precisam em alguma situação fática ser harmonizados. Verificando-se que as novas tecnologias trouxeram à tona discussões que abordam a livre publicação pornográfica e que esse tema engloba bens sociais e jurídicos aparentemente antagônicos, como liberdade de expressão versus direito à honra e à imagem, e conseqüentemente a colisão entre direitos fundamentais; não se pode esquecer que o caminho teórico apresentado como possível solução e já utilizado na prática em outros casos concretos emerge da teoria desenvolvida por Robert Alexy através da qual se determina o uso do princípio da ponderação. Princípio este que como já exposto busca possibilitar uma fundamentação racional, levando-se em conta condições fáticas e da realidade, para se garantir no caso concreto a aplicação do direito que melhor se adéqua ao objetivo perseguido e que tem o uso realmente necessário, sem eliminar o outro e a fim de dar aquele maior peso e utilização, seja preservando a liberdades expressão e comunicação e o direito à informação ou admitindo maior relevância aos direitos possuidores de características mais abstratas como dignidade, honra, imagem, privacidade e intimidade. Entende-se, finalmente, que não é fácil julgar a legitimidade de um direito, quando em colisão e quando bastante influenciados pelas posições moral e ética, da forma que aqui foi analisado. Porém, sabe-se que no Estado democrático há constante iminência de conflito entre direitos e por isso o direito deve antes de qualquer julgamento objetivar a realização prática do princípio da dignidade da pessoa humana, dando a todos o direito de se expressar sem que sejam direitos outros lesados. Pondo um fim nas breves considerações acerca da pornografia, dos direitos colidentes que com elas se expõe e da sua possível proibição ou liberação, considerase, então, lançada a questão que ainda merece muitos estudos e debates no campo do direito.

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Mecanismos judiciais de efetivação dos direitos culturais: a propriedade intelectual sob a perspectiva do direto ao desenvolvimento I Amanda P. Coutinho de Cerqueira............................................................................................1048 A judicialização do direito à saúde no Brasil Arlley Cavalcante de Oliveira e Érika Maria Magalhães Ávila de Araújo........................................................................1062 O direito constitucional à moradia: Os projetos habitacionais na cidade de Currais Novos – RN sob a ótica da efetivação do direito à moradia I Cícero Rivan dos Santos e Marcus Vinícius Pereira Júnior....................................1070 Racionalismo jurídico e legitimação do judiciário: o papel do poder judiciário brasileiro na proteção dos direitos humanos sociais prestacionais I Dafne Fernandez de Bastos...................................................................................1085 A responsabilidade fiscal do gestor público e a responsabilização criminal: os valores por trás da legislação e o desrespeito aos direitos humanos fundamentais da sociedade sob a ótica da Lei de Responsabilidade fiscal e da Lei 10.028/2000 I Evyne Marina Espirito Santo Salvador.........................................................................................1097 A análise da eficácia dos direitos e garantias fundamentais com base nas teorias constitucionais Francieldo Pereira da Luz e Enoque Feitosa Sobreira Filho..........................................................................................1115 A saúde sob o signo da justiça: uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Gabriela de Cássia Moreira Abreu Ferreira....................................................................................................................1129 O conflito entre a judicialização dos direitos sociais e a reserva do possível a partir de uma análise da ADPF Nº 45/DF I Heloísa Marinho.................................................................................................................................................1148 O poder judiciário enquanto “última ratio” dos vulneráveis: a judicialização das políticas públicas relativas à previdência social no Brasil l Júlia Lenzi Silva e Juliana Presotto Pereira Netto........................................................1160 Redes sociais e Constituição Sócio-Política l Manuela Fialho Galvão......................................................................1179 Ativismo judicial e materialização das políticas públicas infanto-juvenis na constituição da república Marcus Vinícius Pereira Júnior.......................................................................................................................................1188 O discurso do poder judiciário quanto à atuação das agências reguladoras na concretização de direitos fundamentais sociais: um retrato da experiência no supremo tribunal federal e no superior tribunal de justiça Maria Clementina Guedes Alcoforado e Marcelo Labanca Corrêa de Araújo................................................................1200 A questão da justa indenização nas ações de desapropriação por utilidade pública (megaventos esportivos): uma discussão a partir do direito fundamental à moradia, do direito à cidade e do princípio da dignidade humana I Marise Costa de Souza Duarte e Ricardo Duarte Jr. ....................................................................................1213 Princípio da reserva do possível X direitos sociais: desafio ao Poder Judiciário Rafaela Patricia Inocencio da Silva e Jailton Macena de Araújo....................................................................................1234 Violência homofóbica, processo de criminalização de condutas e efetividade de direitos fundamentais Robson Cosme de Jesus Alves......................................................................................................................................1245 O Poder Judiciário e o Direito Social à Saúde do Preso: estudo de caso l Rogério de Araújo Lima......................1258 Disponibilidade de recursos: um debate na esfera do poder judiciário l Tiago Soares Vicente............................1266 A materialização da dignidade da pessoa humana e o cumprimento das penas privativas de liberdade – Estudo acerca das possibilidades de responsabilização interna e internacional do Estado brasileiro, em decorrência da violação dos direitos humanos dos apenados l Uliana Lemos de Paiva..................................................................1277

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Mecanismos judiciais de efetivação dos direitos culturais: a propriedade intelectual sob a perspectiva do direto ao desenvolvimento Amanda P. Coutinho de Cerqueira1 T

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Resumo

Abstract

O trabalho parte da contextualização da chamada pós-modernidade. Utilizando-se de conceitos como: sociedade da informação, capitalismo cognitivo, economia da cultura, a pesquisa enfatiza a tecnologização e a transversalidade da cultura na contemporaneidade. A cultura tida como “bom negócio” catalisa os debates internacionais e nacionais e colocam sob nova perspectiva a voracidade com que a questão direitos de propriedade intelectual é debatida. O foco neste tema é a distribuição equilibrada dos direitos da informação e da cultura. A partir da perspectiva polissêmica e multifacetada de desenvolvimento, o artigo problematiza os padrões de proteção à propriedade intelectual. Neste contexto, o trabalho atenta para a importância e necessidade de complementaridade e integração entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais – os DESC´s. O direito à cultura é tido como direito fundamental, indissociável aos direitos civis e políticos, todos formadores dos direitos humanos. A sua implementação requer do Estado meios eficazes de efetividade. O objetivo é refletir sobre a importância adquirida pelos DESC´s nas estratégias de litígio e os atuais debates em torno da propriedade intelectual, através do processo de reconhecimento e aprofundamento da exigibilidade dos direitos culturais perante os tribunais nacionais. A exigibilidade dos direitos culturais aqui poderá ser efetivada através da flexibilização da propriedade intelectual.

The work starts of the context of so-called postmodernity. Using concepts such as: information society, cognitive capitalism, economics of culture, research and transverse stresses technologization in contemporary culture. The culture taken as a "good deal" catalyze national and international debates and put in a new light with the voracity that the issue of intellectual property rights is discussed. The focus of this theme is the balanced distribution of the rights of information and culture. From the perspective polysemic and multifaceted development, the article discusses the standards of intellectual property protection. In this context, the work's attention to the importance and need for complementarity and integration between the civil and political rights and economic, social and cultural rights - ESCR's. The right to culture is seen as a fundamental right, integral to the civil and political rights, all human rights trainers. Its implementation requires effective means of state effectiveness. The aim is to reflect on the importance acquired by the ESCR´s litigation strategies and the current debates on intellectual property, through the process of recognition and enforceability of the deepening of cultural rights before national courts. The requirement that cultural rights can be effected here through the relaxation of intellectual property.

Palavras-Chave: Direitos culturais; intelectual; Desenvolvimento; Efetividade.

Keywords: Cultural rights; Development; Effectiveness.

Propriedade

Intellectual

property;

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Mestranda em Direito Econômico na Universidade Federal da Paraíba – UFPB. E-mail: [email protected] | CV Plataforma Lattes: http://tinyurl.com/3n4a724 TU

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1. Introdução A pós-modernidade anda à solta. O termo pode ser autêntico na sua inadequação. O mundo que se apresenta parece revelar tensões que somente podem ser captadas mediante a renúncia de uma visão linear e resolutiva dos elementos da sociedade. Em qualquer área do conhecimento instala-se a visão complexa na busca por explicações aproximadas para fenômenos contraditórios e multifacetados. As derivações advindas das descobertas científicas aplicadas às ciências naturais parecem avançar sobre o campo das ciências da sociedade e marcam a semântica aplicada pelos analistas dos fenômenos contemporâneos: sistema, rede, totalidade, probabilidade, noética, noosfera, caos. Tudo aparece implícita ou explicitamente no conceito de globalização. A partir das transformações que se revela na dinâmica do sistema capitalista e da utilização dos recursos high tech do novo milênio, a sociedade é classificada como uma sociedade da informação em uma era do conhecimento. Modifica-se o paradigma clássico do capitalismo centrado no conteúdo material dos processos produtivos. O sistema de produção é amparado sobretudo na geração de conhecimento, no processamento de informações e na comunicação de símbolos. A economia de bens simbólicos sinaliza para um capitalismo cognitivo: isto significa fundamentalmente a centralidade das dimensões imateriais de acumulação, a partir do valor agregado do intangível. Surgem os conceitos de economia da cultura e economia criativa. Projetase a potencialidade econômica do setor. A cultura é agora encarada na perspectiva do “bom negócio”. Os saldos positivos na balança comercial envolvendo os direitos de propriedade intelectual colocam sob nova perspectiva a voracidade com que a questão é debatida. Ao mesmo tempo, as mesmas tecnologias mudam fundamentalmente a base-midiáticotecnológica de produção, distribuição e consumo de bens culturais, tornando os intermediários dispensáveis e potencializando o compartilhamento de conteúdos. Manter a escassez artificial no campo da cultura é um dos maiores desafios do capitalismo.

Está instalada a provocação

catalisadora dos debates nacionais e internacionais atuais: a distribuição equilibrada dos direitos de informação e da cultura. Paradoxos. A pesquisa toma como premissa que o acesso livre e praticamente gratuito à cultura energizado através das novas tecnologias não constitui um drama, senão uma oportunidade de desenvolvimento em seu sentido plural (econômico, social, cultural e humano). Tentar travar o avanço deste processo, restringindo o acesso e criminalizando os que fazem uso da cultura parece não fazer o mínimo sentido. Tem sentido sim estudar novas regras do jogo capazes de assegurar um lugar aos vários participantes. A pesquisa problematiza as implicações dos padrões de proteção à propriedade intelectual para o direito ao desenvolvimento e compreende que fazer uso de flexibilidades do direito autoral é fundamental para o desenvolvimento no seu sentido polissêmico. A hipótese básica do trabalho é: as reservas monopolistas de mercado debilitam as posições dos países em desenvolvimento 1049

sujeitando-os a formas de condicionalidade política e econômica, fazendo com que os direitos autorais aproximem-se muito mais das estratégias de desenvolvimento meramente econômico dos conglomerados culturais. Para a apuração da hipótese apontada o artigo é dividido em três secções. A primeira, intitulada Por uma perspectiva de direito ao desenvolvimento, contextualiza o tema a partir da necessidade de se considerar, além dos aspectos econômicos do desenvolvimento, as feições culturais, jurídicas, sociais e humanas do processo, comportando ações inter e transdisciplinares. A segunda secção – Direitos econômicos, sociais e culturais: da compartimentalização à indivisibilidade –, problematiza a distinção entre os pares de direitos e defende a exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, todos formadores dos direitos humanos. A terceira e última secção, A exigibilidade dos direitos culturais a partir da flexibilização da propriedade intelectual, reflete sobre o processo de reconhecimento, nos tribunais domésticos, dos direitos culturais a partir da propriedade intelectual.

2. Por uma perspectiva de direito ao desenvolvimento É verdade que a palavra desenvolvimento é multifacetada, fazendo-se acompanhar, em geral, de variadas adjetivações, que acabam conferindo à expressão significados próprios. Historicamente a palavra foi tomada por empréstimo das ciências biológicas pelas ciências sociais, particularmente pela economia, sendo, também por isso, identificada com a ideia de crescimento econômico. Havia um padrão a ser seguido. Os adeptos daquela teoria usavam os padrões de desenvolvimento das economias centrais como arquétipo a ser alcançado ou emulado, atendendo a determinações econômicas generalistas. Nas décadas de 1940-70 o pensamento econômico heterodoxo começa a sair do estado de torpor. Os trabalhos gerados na Comissão Economica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) começaram a formar o chamado nacional-desenvolvimentismo, termo consagrado nos trabalhos de autores como Celso Furtado e Hélio Jaguaribe. É possível identificar características comuns nos seus autores, dentre as quais: i) defesa da autonomia e da soberania nacionais; ii) industrialização como meio necessário para superação dos entraves ao desenvolvimento da periferia; iii) o Estado como agente estratégico promotor de políticas públicas de planejamento e bem-estar social. Até aproximadamente 1960, o nacional-desenvolvimentismo gozou de enorme prestígio intelectual e político na América Latina, convergendo com o projeto político das burguesias industrias da região2. T

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Todo o quadro referente à hegemonia do nacional-desenvolvimentismo é abrandada nos anos 1980 com o neoliberalismo e a emergência de acumulação financeirizado. O debate sobre desenvolvimento sai de cena para dar lugar à agenda política neoconservadora sobre 2

Patente é a conciliação entre capital e trabalho tendo em vista o “interesse nacional”, abstrata e voluntariamente colocado acima dos conflitos hegemônicos de classe.

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liberalização e desregulamentação dos mercados, estabilização dos preços e privatização dos bens públicos3. T

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No final dos anos 1990 e início do século XXI o neoliberalismo mostra sinais de esgotamento, com a persistência dos desequilíbrios macroeconômicos, a redução dos direitos sociais e o aumento do desemprego estrutural. Abre-se uma janela histórica para as possibilidades de movimentos políticos e contestatórios ao mesmo tempo em que surge as teses dos novo-desenvolvimentistas. O principal objetivo dos novos-desenvolvimetistas é delinear um projeto nacional de crescimento econômico combinado a uma melhora substancial nos padrões distributivos do país. A consecução deste objetivo passa, necessariamente, por um determinado padrão de intervenção do Estado na economia e na “questão social”. Em última instância, trata-se de lutar pela manutenção da ordem econômica e da coesão social. Um estruturalismo desestruturado (isto é, um estruturalismo teoricamente desenvolvido sem uma análise substantiva das questões econômicas, políticas e sociais estruturais) faz com que o desenvolvimento seja visto como uma questão de altas taxas de crescimento econômico, agora com uma velha e ineficaz preocupação adjetiva aos seus aspectos sociais4. T

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E é assim. Ao longo da história o conceito de desenvolvimento transmuta-se de acordo com as contendas ideológicas. As teorias desenvolvimentistas deram lugar a debates sobre diversas feições do desenvolvimento e indicam que não há uma definição universal, globalmente válida, para conceituá-lo ou indicar suas dimensões, vez que a diversidade e os padrões heterogêneos de cada contexto acabam por engendrar respostas que indicam um tipo de desenvolvimento útil ou relevante para determinado povo, nação ou Estado. A ausência de uma base sólida de conceituação, aliada a embates políticos travados em torno dessa temática, resultam no caráter plural do termo. Na contemporaneidade o conceito de desenvolvimento recebe inúmeras influências e adjetivações. Afinal é preciso delinear uma semântica inovadora, adequada às configurações do novo capitalismo contemporâneo: etnodesenvolvimento, ecodesenvolvimento, desenvolvimento humano [...] Para novos tempos, novas teorias; para novos desafios, um novo projeto nacional. Para além do aspecto caótico da chamada pós-modernidade, as novas designações revelam a necessidade de se ampliarem os diálogos para considerar, além dos aspectos econômicos, as feições culturais, políticas, jurídicas, sociais, ideológicas e humanas do processo de desenvolvimento. Para fins de contextualização teórica deste trabalho, para além do crescimento econômico – fenômeno quantitativo, sem transformações estruturais –, a promoção do desenvolvimento é entendido como processo plural e multifacetado. Isso significa fundamentalmente que o 3

CHESNAIS, François. Finança mundializada: raízes sociais e políticas. São Paulo: Boitempo, 2005.

4

BRANCO, Rodrigo Castelo. O novo-desenvolvimentismo e a decadência ideológica do estruturalismo latinoamericano. Disponível em: http://www.revistaoikos.org/seer/index.php/oikos/article/view/132/111. Acesso em 21 Nov. 2011. TU

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desenvolvimento não é uma coleção de coisas – Teoria das Coisas5. Pensar as coisas em si T

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mesmas provocam falsas expectativas. E pior, evita providências que poderiam efetivamente promover

o

desenvolvimento.

É

conhecida

a

distinção

entre

desenvolvimento

e

expansão/crescimento, sendo o primeiro uma mudança qualitativa; enquanto o segundo, uma mudança qualitativa. Os dois estão intimamente vinculados, mas não são a mesma coisa. Sob alguns aspectos, a expansão econômica é mais intrigante do que o desenvolvimento. Porque o crescimento sem desenvolvimento não contribui para melhorar as condições de vida da maioria da população. E este será o foco. A ideia de desenvolvimento é aquela fundamental para uma perspectiva integrada dos direitos humanos. Isto é, devem-se tratar, em perspectiva transversal e interdiscursiva, as dimensões do desenvolvimento econômico, do desenvolvimento social e cultural e da sustentabilidade ambiental. A propósito deste entendimento, o economista indiano Amartya Sen entende que o desenvolvimento é o processo integrado de expansão das liberdades substantivas reais. A perspectiva da liberdade humana concentra-se no potencial das pessoas para levar a vida que elas têm razão para valorizar e para melhorar as escolhas reais que elas possuem. E é a partir desta noção ampla de desenvolvimento que se fundamenta a defesa da indivisibilidade e integração dos direitos.

3. Direitos econômicos, sociais e culturais: da compartimentalição à indivisibilidade A perspectiva de direitos ao desenvolvimento abarca a proteção dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais – os DESCs –, destaques na atual agenda internacional de direitos humanos. Mas as raízes do tratamento distinto das duas “categorias” de direito – de um lado dos direitos civis e políticos, de aplicação “imediata”; de outro, os direitos econômicos, sociais e culturais, de aplicação “progressiva” – surgiu em 1951, quando a Assembléia Geral das Nações Unidas resolveu criar dois pactos de Direitos Humanos – adotados mais adiante, em 1966 –, refletindo assim a divisão ideológica do mundo, pós Segunda Guerra6. T

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Autores como Cançado Trindade7 repudiam essa repartição e esclarecem que ela nunca de T

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revestiu de caráter absoluto, mas serviu para alimentar a convicção de que seria muito difícil garantir a aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais por via do controle judicial.

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JACOBS, Jane. A natureza das economias. São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001.

6

FEITOSA, Maria Luiza A. Mayer. Desenvolvimento econômico e direitos humanos. Boletim de Ciências Económicas. Coimbra: G.C, 2009.

7

CANÇADO TRINDADE, A. A. Do direito econômico aos direitos econômicos, sociais e culturais. In: CANÇADO TRINDADE et al (orgs.). Desenvolvimento e intervenção do Estado na ordem constitucional. Porto Alegre: Fabris, 1995.

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Não obstante as proclamações de indivisibilidade dos direitos humanos8, não é raro T

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enfrentar-se com opiniões que, negando o valor jurídico aos direitos econômicos, sociais e culturais, os caracterizam como meras declarações de boas intenções. Os instrumentos que estabelecem os DESCs são considerados documentos de caráter político, antes que catálogos de obrigações jurídicas para o Estado, como é o caso da maioria dos direitos civis e políticos. De acordo com esta visão, estes últimos são os únicos direitos que geram prerrogativas para os particulares e obrigações para o Estado, sendo, por isso, exigíveis judicialmente. Contudo, os documentos que consagram os direitos econômicos, sociais e culturais geram obrigações concretas aos Estados, exigíves judicialmente. Este argumento é construído no seguinte plano9: i) a relatividade da distinção entre direitos civis e políticos e direitos econômicos, T

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sociais e culturais. Existem níveis de obrigações estatais que são comuns a ambas as categorias de direito. ii) todos os direitos econômicos, sociais e culturais tem ao menos algum aspecto claramente exigível judicialmente. Aqueles que crêem ver na natureza dos DESCs a origem da impossibilidade de alcançar sua exigibilidade, centram sua argumentação no suposto caráter de obrigação negativa dos direitos civis e políticos, as quais se resolveriam com um não fazer do Estado: não restringir a liberdade de expressão, não interferir na propriedade privada etc. Ao contrário, a estrutura dos direitos econômicos, sociais e culturais se caracterizariam por obrigar o Estado a fazer. Mas esta distinção está baseada em uma visão totalmente naturalista do papel e funcionamento do aparato estatal, que coincide com a posição do Estado mínimo. Sem embargo, resulta mais que óbvia a interrelação entre as supostas obrigações positivas e negativas. Direitos civis e políticos como o devido processo legal e o acesso à justiça supõe a criação das respectivas condições institucionais por parte do Estado. Por outro lado, é possível reconhecer que a faceta mais visível dos direitos econômicos, sociais e culturais são as obrigações de fazer. No entanto, não é difícil descobrir a existência concomitante das obrigações de não fazer: ao direito à saúde supõe a obrigação de não destruir a saúde. A partir desta perspectiva, as diferenças entre direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais são diferenças de grau, mais que diferenças substanciais. Em suma, os direitos econômicos, sociais e culturais devem ser caracterizados como um complexo de obrigações positivas e negativas por parte do Estado, ainda que as obrigações positivas tenham uma importância simbólica de mais fácil identificação.

8

O divisor de águas nesse sentido foi a I Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Teerã em 1968. A conferência proclamou a indivisibilidade dos direitos humanos, afirmando que a realização plena dos direitos civis e políticos seria impossível sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Mas foi o Protocolo de San Salvador de 1988 que representou o ponto culminante de um movimento de conscientização em prol da estreita relação existente entre a vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais e a dos direitos civis e políticos formando um todo indissolúvel.

9

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ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Hacia la exigibilidad de los derechos económicos, sociales y culturales. Estándares internacionales y criterios de aplicación ante los tribunales locales. Disponível em: http://www.pj.gov.py/ddh/docs_ddh/Exigibilidad_de_los_DESC_Abramovich.pdf. Acesso em 22 Nov. 2011. UT

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As dificuldades conceituais fazem com que seja difícil distinguir radicalmente os direitos civis e políticos, de um lado; e os DESCs, de outro, reafirmando a necessidade de um tratamento teórico e prático comum. A concepção teórica dos direitos tradicionalmente considerados direito negativos tem variado de tal modo que alguns direitos civis e políticos tem adquirido uma vertente social. A perda do caráter absoluto do direito de propriedade sob a base de considerações sociais é o exemplo mais clássico, ainda que não o único. As distinções absolutas também perdem sentido nesse caso. O desafio será lidar com os paradoxos. Neste contexto, a forte objeção que se aponta contra a caracterização dos DESCs como direitos exigíveis é dependência de recursos por parte do Estado. Esta subordinação denominada condicionante econômico relativizaria a universalidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, considerados, também por isso, direitos de segunda categoria. Cabe repetir que esta objeção parte da premissa simplista dos direitos econômicos, sociais e culturais como direitos que estabelecem exclusivamente obrigações positivas. Além disso, é preciso ter em conta que o Estado pode assegurar a satisfação de um direito através de outros meios que não a relação direta de transferência de fundos entre Estado – beneficiário da prestação. As formas que o Estado pode adotar medidas de obrigações positivas são múltiplas – o estabelecimento de formas escalonadas público/privadas de cobertura é um exemplo. Por último, as possibilidades de satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais superam o marco do Estado e devem situar-se no plano da cooperação internacional. Entre as duas “categorias” de direitos já não há lugar para compartimentalizações e antinomias, senão interação. E esta necessidade de complementaridade deve ser a argumentação fundamental para a flexibilização da propriedade intelectual, a partir da perspectiva dos direitos culturais.

4. A exigibilidade dos direitos culturais a partir da flexibilização da propriedade intelectual Cada vez mais a agenda contemporânea tem incorporado a cultura como elemento de discussão que perpassa um significativo espectro da dimensão societária10 – é a chamada T

transversalidade da cultura. É na sua interface com o campo da economia T

11 T

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que de forma mais

acentuada a cultura tem vindo a demandar a atenção do mundo científico-acadêmico, de 10 As transformações na dinâmica do sistema capitalista e as mutações de acumulação do capital também são responsáveis pelo agendamento da cultura nos circuitos de debates. Elas deslocam a ênfase do paradigma do industrialismo, a força motora do capitalismo clássico, com a ascensão do que Manuel Castells chamou de capitalismo informacional. O sistema de produção amparado na geração de conhecimento, de processamento de informações e de comunicação de símbolos cria um terreno fértil para o desenvolvimento da economia de bens simbólicos. É dizer: o desenvolvimento científico-tecnológico e a capacidade criativa fizeram emergir uma nova perspectiva econômica, na qual o poder de conhecimento foi capaz de diversificar a cesta de bens e serviços a serem consumidos. Como importante componente da atividade criativa opera com expressivo êxito o setor cultural. 11 A necessidade de reconhecer que a cultura poliglota fala também a língua da economia é evidente quando se discute a alocação de recursos e financiamento. Ao restituir à cultura o seu valor econômico, a economia da cultura lhe garante um lugar de peso nos debates sobre alocação de orçamentos públicos, nas negociações multilaterais, nos bancos internacionais, além de promover o envolvimento do setor corporativo nas questões culturais – não apenas como marketing ou responsabilidade social, mas como estratégia de negócios.

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instituições governamentais, de agências internacionais, de bancos de desenvolvimento e de organizações não-governamentais. As discussões em torno da economia da cultura12 vêm T

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ganhando vulto no chamado capitalismo do conhecimento ou criativo. No processo geral de culturalização da mercadoria13 o setor, tradicionalmente visto como um notório tomador de T

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recursos, mostra agora altos níveis de rentabilidade e os mais altos níveis de crescimento de demanda. A propósito, Adorno14 é elucidativo quanto à mercantilização da cultura na passagem T

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da modernidade para o mundo contemporâneo, intimamente ligada ao desenvolvimento do capitalismo e à chamada indústria cultural. Debord15, por sua vez, contextualiza a temática com T

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suas reflexões sobre a sociedade do espetáculo, no momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social. A cultura torna-se a mercadoria vedete da sociedade espetacular e desempenha o papel motor do desenvolvimento da economia. Mas acontece que a expansão econômica e comunicacional propiciada pelas indústrias culturais não beneficia equitativamente todos os países e regiões. O mercado de bens simbólicos tem as suas leis que não são as da comunicação universal entre sujeitos universais16: T

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Os EUA ficam com 55% dos lucros mundiais gerados pelos bens culturais e comunicacionais; a União Européia, com 25%; o Japão e o restante da Ásia, com 15%, e os países latino-americanos, só com 5%. A desvantagem econômica mais notória, a da América Latina, resulta do baixo investimento de nossos governos em ciência, tecnologia e produção industrial de cultura, condicionada a escassa competitividade global e a difusão restrita, limitada a cada nação, da maioria dos filmes, vídeos e discos.17 T

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A propriedade intelectual surge como um monopólio por tempo limitado de direitos concedidos ao autor/criador. O tempo deveria ser o suficiente para gratificar o autor, mas não tão longo a ponto de prejudicar o interesse público. O tempo de proteção dos direitos intelectuais, no entanto, só fez crescer. O fetichismo do desenvolvimento meramente econômico, que é também o fetiche da mercadoria, atinge momento de excitação fervente. O seu foco hoje? O desenvolvimento econômico a partir da geração da propriedade intelectual. Não por acaso, cria-se uma batalha ideológica e econômica em torno do direito do acesso ao conhecimento e à cultura. 12

A economia da cultura utiliza-se do uso da lógica e metodologia econômica no campo cultural. A economia passa assim a ser instrumental, emprestando os seus alicerces de planejamento, eficácia, estudo do comportamento humano e dos agentes de mercado para reforçar a coerência e a consecução dos objetivos traçados pela política pública. Para isso, a economia analisa as relações de oferta, distribuição e demanda culturais, identifica as falhas de mercado que fazem com que nem todos tenham acesso aos bens culturais, por exemplo, mapeia as restrições, sinaliza caminhos possíveis para o seu desenvolvimento sustentável e sugere ações a serem tomadas para que distorções sejam corrigidas. REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável: o caleidoscópico da cultura. São Paulo: Manole, 2007.

13

RUBIM, Antonio Canelas. Políticas culturais entre o possível e o impossível. Disponível em: http://politicasculturais.files.wordpress.com/2009/03/politicas-culturais-entre-o-possivel-e-o-impossivel.pdf. Acesso em 6 Ago. 2011. TU

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14

ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e terra, 2002.

15

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Disponível em www.geocities.com/projetoperiferia. Acesso em 13 Out. 2011; TU

16

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BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

17

CANCLINI, Néstor García. Latinos-americanos à procura de um lugar neste século. São Paulo: Iluminuras, p. 63, 2008.

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O caráter de imperatividade a que se reveste o direito econômico global confere à temática da propriedade intelectual status de urgência internacional e, ao mesmo tempo, doméstica. Enquanto a tecnologia torna os bens cada vez mais acessíveis, as leis de proteção ao direito autoral evoluem simetricamente para o movimento inverso. O argumento apresentado é que se trata de proteger os direitos dos criadores que estão lutando para sobreviver. Mas os criadores, na realidade, pouco tem a ver com essa história. Para quem serve o direito autoral? Na divisão dos recursos dos direitos autorais da indústria fonográfica, por exemplo, os intermediários ficam com 51% a os outros 49% são divididos entre os criadores: compositores, arranjadores, intérpretes e músicos.18 T

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A base de discussão sobre o direito do autor refere-se ao conceito de propriedade. Um assunto espinhoso. A tradicional forma de reconhecer os direitos de propriedade intelectual é aquela presa aos arcabouços patrimonialistas que afetam tanto os bens tangíveis quanto os bens intangíveis. E então, a lógica da escassez controlada é aplicada aos bens culturais: a cultura só se transforma em preço quando esta atividade é impedida de difundir-se. Quanto mais indisponível um bem, mais adquire valor para quem os controla. E foi assim até a internet embaraçar as coisas e tornar a escassez muito mais complicada. Afinal a internet foi criada para compartilhar – e agora? A lógica da economia das ideias é inversa: a ideia ganha mais valor à medida que é partilhada. E isso porque os bens culturais são bem não-rivais. Ou seja, ao contrário da propriedade tradicional, o uso de uma pessoa não exclui o uso de outros. Em outros termos: uma ideia partilhada por duas pessoas dá duas ideias. Demolição da matemática? Não contente de correr sempre, o rio de Heráclito agora transbordou19. Hoje, um dos maiores canais de acesso às T

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manifestações culturais são as mídias digitais. As transformações nas tecnologias de informação e de comunicação, por sua vez, desenvolvem teorias de novos paradigmas. São eixos de reflexões que exigem novos instrumentos de análise, abrindo espaços que vale a pena acompanhar e compartilhar. A título ilustrativo, Castells20, sobre a sociedade em rede; Rifkin21, sobre a era do acesso; André Gorz22, T

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sobre a revisão dos próprios meios de produção; e outros autores. Sobre a tecnologização da comunicação e da cultura tem-se o aparecimento da intitulada cultura midiatizada com a explosão das redes informáticas e todo o conjunto de ciberculturas que hoje passam a ambientar a sociabilidade.23 T

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18

ORTELLO, Pablo. Os nacionalistas da cultura. Disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/osnacionalistas-da-cultura. Acesso em 28 de Nov. 2011. TU

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19

LÉVY, 1999

20

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e terra, 2010.

21

RIFKIN, Jeremy. A era do acesso. São Paulo: Makron, 2005.

22

GORZ, André. O imaterial. São Paulo: Annablume, 2005.

23

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: 1999.

1056

Ainda sobre como as mudanças tecnológicas influenciaram as práticas sociais de produção de conhecimento, criando novas oportunidades para a produção e a troca de informações e cultura, necessárias são as reflexões de Jean-François Lyotard24 quanto às T

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mudanças das operações de aquisição, classificação, possibilidade de disposição e de exportação do conhecimento na sociedade pós-moderna. As suas reflexões convergem para a seguinte premissa: a questão do saber na era da informática é mais que nunca uma questão de governo. De forma mais específica, Ladislau Dowbor25 reflete sobre a propriedade intelectual na economia T

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do conhecimento e importantes são os seus questionamentos acerca do tema: a propriedade intelectual não tem limites? Lawrence Lessing26 elucida o desafio maior que hoje deve ser T

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enfrentando: a gestão da informação e do conhecimento e a distribuição equilibrada dos direitos. No sistema de distribuição convencional o autor tem de recorrer a um editor. É este quem possui os meios de fixar a criação em suportes para a sua distribuição e logística. Em geral, a transferência de direitos é exclusiva, estabelecendo um sistema monopolista de comercialização. Sem concorrência na produção, cabe somente ao editor fixar o preço a ser cobrado. Daí a sensação dos consumidores de que há alguma coisa de errado com os preços finais. Isso permite também que o editor simplesmente deixe de produzir a obra, ao mesmo tempo em que também impede outros de fazê-lo. Mas as tecnologias digitais (principalmente as redes P2P e a web 2.0) transformam o intermediário entre o autor e o público uma figura praticamente dispensável. Artistas e público passam a ter a possibilidade de uma relação direta. O que se está vivendo, nesse momento, é um embate entre dois modelos: o modelo tradicional e o modelo novo, digital, no qual os intermediários são menos importantes. Ao direito autoral, enquanto instrumento jurídico que limitaria o acesso, cabe uma reformulação de maneira que se coloque em uma realidade onde ele não é mais o elemento estruturante da indústria cultural. A reformulação passa pela defesa de regras mais flexíveis que significam sobretudo reajustar o direito do autor por um direito de propriedade restrito e limitado. O exemplo do artista independente é o emblema da reação ao excesso de proteção. Frequentemente fazendo uso do creative commons, cria um universo de bens culturais que podem ser acessadas, compartilhadas, redistribuídas, com a sua autorização voluntária. A lógica é: quanto mais ouvido e conhecido um artista, maior é o consumo de seus produtos. A mera existência dessa iniciativa já representa um exercício para se pensar novos caminhos para a cultura sob os arquétipos da cidadania, da diversidade cultural e do direito ao desenvolvimento. A propriedade, no seu sentido comum patrimonialista, fundamenta-se também na rígida separação entre o intitulado proprietário e aquele que é excluído. Acontece que quando se trata de bens culturais, a cultura não nasce separada. Todo autor se utiliza da herança cultural. Toda 24

LYOTART, Jean-François. La condicion postmoderna. Buenos Aires: Editorial R.E.I, 1999.

25

DOWBOR, Ladislau. Democracia econômica. São Paulo: Vozes, 2008.

26

LESSING, Lawrence. Il futuro delle idee. Turim: Feltrinelli, 2006.

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inovação se apóia em outras de outros períodos e lugares, em movimento de crescente horizontalidade. Não seria todo processo criativo uma co-criação? Se a inovação é um processo socialmente construído, deve haver limites à sua apropriação individual. Se a criação é tida como origem do patrimônio coletivo da sociedade, sua fruição não pode ser restrita de forma desarrazoada. O direito autoral não está baseado no direito de propriedade comum, senão no potencial de estimular o enriquecimento cultural e científico de toda a população. A aticipidade do bem cultural está no elemento social que o diferencia. Considerando os atuais embates em prol da proteção cultural e a crescente importância do setor na economia mundial (em 2005, segundo dados da UNESCO, a economia da cultura representou em torno de 7% do PIB mundial) como um dado concreto dos desafios e perspectivas postos, problematiza-se os desafios da proteção intelectual. Do ponto de vista jurídico, a preocupação se volta para os instrumentos normativos de proteção à cultura à propriedade intelectual. No que tange aos instrumentos internacionais, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, dispõe no seu artigo 22 que todo ser humano seve ter assegurado os direitos culturais, considerados indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Já o artigo 27 enfatiza o direito das pessoas de participar e fruir dos benefícios da cultura, ao dispor que todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade e ter acesso às artes e ao progresso científicos. Outros instrumentos internacionais se sucederam. Em 1966 foi concluída a elaboração do Pacto Internacional dos Direitos econômicos, sociais e culturais, prevendo obrigações legais para os Estados-partes no caso de descumprimento dos direitos ali previstos. Em 1986 foi elaborada a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, que em sua exposição de motivos já anuncia a importância da promoção dos direitos culturais para o escopo do desenvolvimento. A Conferência Geral da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, tem como princípios a proteção da diversidade cultural dos povos e a democratização da produção e do acesso aos bens culturais, estabelecendo ainda o plano de ação para a plena aplicação das disposições nela previstas. Em seguida, como forma de efetivar esta última declaração, foi celebrada, em 2005, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, ratificada pelo Brasil, prevendo adoção de medidas efetivas pelos Estados-partes. A atual Constituição Federal brasileira, ao tratar de cultura, anuncia sua importância e necessidade de proteção, bem como define o papel do Estado como incentivador e fomentador das atividades culturais. A despeito dos vários dispositivos dispersos na Constituição tratando de cultura, o interesse aqui se volta às previsões do artigo 215, que em seu caput prevê: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

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Direitos econômicos, sociais e culturais têm sido consagrados no plano internacional e nacional em numerosos instrumentos. Mas o que qualificará a existência de um direito cultural como direito é a existência de algum poder jurídico em caso de descumprimento da obrigação devida. Em outros termos, considerar um direito cultural como direito é possível unicamente se – ao menos em alguma medida – o titular/credor está em condições de produzir mediante uma demanda o cumprimento de uma obrigação que constitui o objeto de seu direito. Muitas são as objeções quase automáticas dadas frente a possível justicibilidade dos direitos culturais. Não cabe aqui uma explanação aprofundada sobre todas elas. Mas a falta de ações ou garantias processuais concretas que tutelem os direitos culturais e a inadequação da estrutura e da posição do Poder Judiciário para o exigir o cumprimento das obrigações, são as principais objeções à esta matéria. Sobre o Poder Judiciário cabe outorgar razão de que não o é exatamente adequado para realizar planificações de políticas públicas. Mas, ainda admitindo as dificuldades, as sentenças podem constituir importantes veículos de canalização das necessidades da agenda pública. Isto é, o Poder Judiciário provocado adequadamente pode ser um poderoso instrumento de formação de políticas públicas. Sobre os mecanismos processuais, em muitos casos, pode-se conduzir a exigência dos direitos culturais ao reclamo dos direitos civis e políticos, e neste casos, os mecanismos processuais tradicionais resultam ao menos parcialmente adequados. A falta de mecanismos ou garantias judiciais adequadas não diz nada acerca da impossibilidade conceitual de fazer exigíveis os direitos culturais, senão exigem imaginar instrumentos processuais aptos para levar a cabo estes reclamos. Parte dos avanços do direito processual contemporâneo se dirige a este objetivo: a legitimação do Ministério Público para representar interesses coletivos é um exemplo dessa tendência. Em síntese: se é possível conceder que existe limitações à exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais, cabe concluir em sentido exatamente inverso – dada a sua complexa estrutura, não existe direito econômico, social ou cultural que não apresente ao menos alguma característica ou faceta que permita sua exigibilidade judicial em caso de violação. Do ponto de vista histórico, pode-se considerar notável a importância recentemente adquirida pelos direitos econômicos, sociais e culturais na jurisprudência comparada e nas estratégias de litígio. Vislumbra-se hoje um processo, ao mesmo tempo, de ampliação e aprofundamento da exigibilidade destes direitos perante tribunais nacionais, o que, embora antes tenha se restringido a poucas jurisdições, hoje pode ser constatado em diversos países de todas as regiões e sistemas jurídicos do mundo. Há exemplos concretos de jurisprudência doméstica que fazem menção ao direito cultural. Em algumas situações estes direitos resultam analisados à luz da obrigação de não discriminação. Em outros casos atuam como limites razoáveis ao exercício de um direito civil. Mas 1059

o que se percebe é uma exacerbada proteção da propriedade intelectual, através dos crimes de violação de direito autoral, como por exemplo a venda de CD´s “piratas”27. T

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No mais, é sempre saudável atentar para a prepotência ou pretensão do Direito. É preciso, por um lado, que não se tenha desprezo pela luta jurídica, mas, por outro, saber que não será somente por meio dela que se materializará uma noção ampla de desenvolvimento. A Constituição também depende da democracia e da Administração Pública para ser concretizada. Neste processo, é fundamental a participação social, política e cultural dos grupos tradicionalmente considerados objeto do desenvolvimento que devem tornar-se sujeito desse processo. A democracia é essencial para o desenvolvimento, através, sobretudo, da ampliação da base democrática28. T

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As questões de propriedade intelectual no cenário mundial e sua regulamentação no Brasil exigem das instituições públicas, notadamente as de natureza cultural, uma postura proativa no sentido de possibilitar a discussão em torno da legislação e conceitos pertinentes à gestão do direito cultural, para que seja possível integrar a produção cultural ao fluxo de desenvolvimento humano do país. A aplicação dos direitos autorais deve ser considerado num amplo contexto de interesses sociais. A perspectiva que se quer imprimir no trabalho é uma perspectiva integrada de desenvolvimento em seus múltiplos aspectos: econômico, social, cultural e humano. O desafio, repete-se, será lidar com os paradoxos. Afinal enquanto o direito autoral fala em bloqueio, a internet fala em fluxo. Um quer vender, a outra quer compartilhar. Um fala que tudo tem um proprietário, a outra mostra que não tem. E o pior, um está enamorado das corporações, a outra procura alguém mais “descolado”.

5. Conclusão Além de um “bom negócio”, a cultura deve ser atrelada ao desenvolvimento cultural, social e humano. Do contrário, o debate restaria bastante limitado. O mercado é insuficiente para garantir os direitos sociais e culturais. É preciso instrumentalizar uma estrutura regulatória que direcione o crescimento econômico para a efetiva promoção dos direitos culturais. Importa, igualmente, remover os obstáculos procedimentais e formais à efetivação desses direitos. O desenvolvimento aqui é tido na perspectiva transversal e interdiscursiva.

27

HC 98898 / SP - SÃO PAULO - Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI - Julgamento: 20/04/2010. EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL. VENDA DE CD'S "PIRATAS". ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA POR FORÇA DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. IMPROCEDÊNCIA. NORMA INCRIMINADORA EM PLENA VIGÊNCIA. ORDEM DENEGADA. I - A conduta do paciente amolda-se perfeitamente ao tipo penal previsto no art. 184, § 2º, do Código Penal. II - Não ilide a incidência da norma incriminadora a circunstância de que a sociedade alegadamente aceita e até estimula a prática do delito ao adquirir os produtos objeto originados de contrafação. III - Não se pode considerar socialmente tolerável uma conduta que causa enormes prejuízos ao Fisco pela burla do pagamento de impostos, à indústria fonográfica nacional e aos comerciantes regularmente estabelecidos. IV - Ordem denegada. 28

BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

1060

Referências bibliográficas ABRAMOVICH, Víctor; COURTIS, Christian. Hacia la exigibilidad de los derechos económicos, sociales y culturales. Estándares internacionales y criterios de aplicación ante los tribunales locales. Disponível em: http://www.pj.gov.py/ddh/docs_ddh/Exigibilidad_de_los_DESC_Abramovich.pdf Acesso em U

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Pablo.

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Acesso em 6 de Agosto de 2011; SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 1061

A judicialização do direito à saúde no Brasil Arlley Cavalcante de Oliveira1 T

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Érika Maria Magalhães Ávila de Araújo T

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Resumo

Abstract

Constatando a quantidade de pedidos de suspensão de segurança, de tutela antecipada e de liminares existentes no Supremo Tribunal Federal, com vistas a suspender a execução de medidas que condenam a Fazenda Pública ao fornecimento das mais variadas prestações de saúde, o objeto do presente artigo será a discussão sobre a judicialização do direito à saúde no Brasil, em virtude das omissões do Poder Público, que, na maioria dos casos, possui políticas públicas, mas não as põe em prática, alegando a reserva do possível para não cumpri-las. Para tanto, a presente pesquisa pretende analisar a polêmica e recente Suspensão de Tutela antecipada n° 390, exarada nas mãos do Presidente Ministro César Peluso, em decisão no Agravo Regimental interposto pela União, dando ênfase às consequências práticas e locais no Estado da Paraíba. O objetivo geral é propiciar uma visão crítica e atualizada sobre a efetivação do direito à saúde pelo Poder Judiciário e a responsabilidade da Administração Pública quanto ao caos em que se encontra o Sistema Único de Saúde brasileiro, a partir de um sistematizado estudo integrado por notícias jornalísticas, doutrina, legislação e jurisprudência. A pesquisa será, em sua maior parte, bibliográfica, já que será utilizado grande aparato doutrinário quanto à parte constitucional da pesquisa, no que diz respeito ao direito à saúde enquanto direito social e à entronização da reserva do possível como limite fático à sua concretização.

Noting the number of requests for suspension of safety, and preliminary injunctive relief existing in the Supreme Court, in order to halt the execution of measures that condemns the Treasury to supply a variety of health benefits, the object of this article will be the discussion about the legalization of the right to health in Brazil, because of omissions of the Government, which in most cases, has public policies, but does not put them into practice, claiming "reserve of possible" to not fulfill them. Besides, this research will examine recent e controversial suspension injunctive relief No. 390, handed down by Minister President César Peluso, emphasizing the practical and local consequences in Paraíba. The overall goal is to provide a critical and updated vision about realization of the right to health by the judiciary and the responsibility of the government for the chaos that is Brazilian Unified health System, using news journalism, doctrine, law and jurisprudence. The search will be mainly literature, as it will be used major constitutional doctrinal apparatus, regarding right to health as social right and the enthronement of “reserve of possible” as factual limit to achieve it.

Palavras-Chave: Efetividade; Direito à saúde; Reserva do possível; Poder Público.

Keywords: Effectiveness; Right to Health; “Reserve of Possible”; Government.

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Estudante de Direito da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]

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Estudante de Direito da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected]

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1. Introdução É incontestável o avanço do Poder Judiciário nos últimos anos, todavia, enquanto função estatal desempenhada por um conjunto de órgãos, mostra-se ainda demasiado distante da sociedade, motivo por que referido progresso demanda profundas reflexões teóricas. A discussão acerca dos problemas de organização judiciária e do acesso à justiça é recente, quando, então, a sociedade voltou seus olhos para o Poder Judiciário. Este mantinha uma atitude discreta, e seus magistrados, julgando-se imparciais, proferiam decisões apegadas à letra da Lei, cujo dispositivo permanecia carente de efetividade, o que gerava o sentimento de repugnância e descrédito por parte dos jurisdicionados. A Constituição Federal de 1988, com seu viés social, foi responsável por ampliar as bases constitucionais dos direitos fundamentais, dentre eles, o direito à saúde. As demandas judiciais aumentaram, e os juízes, gradativamente, modificaram sua postura, alterando, dessa forma, o cenário anterior. Sustentados pelo compromisso constitucional, os membros do Poder Judiciário passaram a dialogar com os cidadãos, com o Ministério Público e com os outros Poderes, proferindo sentenças mais harmonizadas com a realidade das partes e se comprometendo com a mudança social e com a concretização do Estado Democrático de Direito em face da omissão ou da ineficácia de políticas públicas do Poder Executivo. Neste diapasão, constatando a quantidade de pedidos de suspensão de segurança, de tutela antecipada e de liminares existentes no Supremo Tribunal Federal, com vistas a suspender a execução de medidas que condenam a Fazenda Pública ao fornecimento das mais variadas prestações de saúde, a judicialização do direito à saúde é objeto de polêmica, decorrente da tentativa de restrição do argumento jurídico relacionado aos direitos sociais. Além disso, aliado ao caos em que se encontra o Sistema Único de Saúde brasileiro, o Poder Judiciário adquiriu uma tarefa árdua e arriscada: delimitar o conteúdo do direito à saúde.

2. A judicializaçào do direito à saúde Considerado um Estado Democrático de Direito, o Brasil traz, em sua Carta Magna, uma seqüência de normas que apregoam a existência de direitos e garantias fundamentais, visando a viabilizar a dignidade da pessoa humana, alicerce do ordenamento jurídico. Neste ínterim, a saúde é um direito fundamental, que exige o compromisso do Estado, ora para proteger as liberdades fundamentais, através da atividade do Poder Judiciário, ora para suprimir progressivamente as disparidades sociais e regionais – art. 3°, III, CR -, implementando políticas públicas. O direito à saúde, previsto no artigo 6° e regulamentado, especificamente, pelo artigo 196 da Constituição Federal, é configurado como um direito público subjetivo e tem como meio de 1063

efetivação o Sistema Único de Saúde – SUS -, fundado na descentralização e no atendimento integral. Trata-se de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – art. 23, II, CR. Na realidade, contudo, quem se vale dessa garantia se depara com empecilhos, cuja justificativa é a aparente insuficiência de recursos para criar políticas públicas. Nesse diapasão, em face da inércia do Poder Público na concessão de serviços de saúde, assegurados pela legislação e pela teoria do mínimo existencial, é imprescindível a atuação do Poder Judiciário nos casos concretos, buscando reiterar esse direito de todos como dever do Estado, originando a chamada judicialização do direito à saúde. Acerca deste fenômeno, Luís Roberto Barroso assinala: A judicialização no Brasil decorre do modelo constitucional brasileiro e, portanto, em alguma medida ela é inevitável. Constitucionalizar é tirar uma matéria da política e trazê-la para dentro do Direito. E, portanto, existem prestações que o Judiciário não pode se negar a apreciar - e é muito bom que seja assim. Porém, a judicialização tem uma óbvia faceta negativa. É que, na medida em que uma matéria precise ser resolvida mediante uma demanda judicial, é sinal que ela não pôde ser atendida administrativamente; é sinal que ela não pôde ser atendida pelo modo natural de atendimento das demandas, que é, por via de soluções legislativas, soluções administrativas e soluções negociadas. A faceta positiva é que, quando alguém tem um direito fundamental e esse direito não foi observado, é muito bom poder ir ao Poder Judiciário e merecer esta tutela.3 T

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A discussão é centralizada no âmbito da eficácia jurídica do direito à saúde. Ainda que haja consenso, a doutrina majoritária e os Tribunais sinalizam pela aplicação imediata das normas de direito à saúde, como conseqüência do princípio da força normativa da Constituição, que aos direitos fundamentais confere supremacia normativa na ordem jurídica. É verdade que cabe à Administração Pública definir políticas públicas e o modo de executá-las, todavia três hipóteses, frequentemente, subsistem: a política pública inexiste, ou, se existente, não é posta em prática, ou é inadequada. Nessas ocasiões, o Poder Judiciário deve cobrar a observância das normas constitucionais em respeito ao Estado Democrático de Direito. Esse cumprimento não pode ser absoluto, em virtude de que os recursos públicos são limitados, todavia é inegável que há um conjunto de condições materiais que formam a noção de dignidade, cuja existência é regra, sob pena de termos um ordenamento jurídico nulo, qual seja: o mínimo existencial. Ana Paula Barcellos define o mínimo existencial como “um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade”.4 O mínimo existencial permeia os valores e os princípios jurídicos mais relevantes, T

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motivo por que Ricardo Lobo Torres atesta: 3

BARROSO, Luís Roberto. Palestra proferida na Audiência Pública nº. 4 – STF. Disponível em: Aceso em: 10 Nov. 2011 4

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, p 304, 2002.

1064

Não é um valor por não possuir a generalidade e a abstração de idéias como as de liberdade, justiça e igualdade. Não é princípio porque não exibe as principais características dos princípios, que são as de ser objeto de ponderação e de valor prima facie. De feito, o mínimo existencial não pode ser ponderado e vale definitivamente porque constitui o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, que é irredutível por definição e insuscetível por sopesamento. O mínimo existencial é regra, porque se aplica por subsunção, constitui direitos definitivos e não se sujeita a ponderação.5 T

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Em contrapartida, como a saúde não é o único valor que a sociedade deseja gozar, convencionou-se condicionar a concretização dos direitos sociais ao princípio da reserva do possível. Os direitos fundamentais vinculam os órgãos administrativos, no entanto, em virtude da restrição de recursos, para sua realização em prol da coletividade, necessita-se de previsão orçamentária, definida sob a autonomia e as prioridades do Poder Executivo. Mesmo assim, as políticas públicas estabelecidas pela Administração Pública devem objetivar a efetivação do mínimo existencial. Da mesma forma, o Poder Judiciário deve agir cuidadosamente, seja quando outorgar, seja quando inadmitir uma prestação de saúde. Seguindo este raciocínio, analisar-se-á o caso concreto ocorrido na Paraíba, o qual envolve a União, o Estado da Paraíba e o Município de João Pessoa, para que se compreenda a necessidade de judicialização do direito à saúde no Brasil.

3. Análise da suspensão de tutela antecipada N° 390 Antes de adentrarmos a análise propriamente dita, é oportuno situar o caso. Toda a querela teve início com a interposição de uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal em face da União, do Estado da Paraíba e do Município de João Pessoa, com a finalidade de procurar soluções para o caos enfrentado pelos pacientes com problemas renais no Estado da Paraíba. Para tanto, houve o pedido para que os referidos entes públicos, além de realizar 30 cirurgias de emergência, adotassem medidas urgentes e necessárias para garantir o direito fundamental à saúde no Estado. O julgamento dessa ação, pela 1ª Vara Federal da Seção Judiciária da Paraíba, gerou uma sentença de caráter liminar, a qual determinou as seguintes medidas: (a) que fossem realizados, no mínimo, 30 transplantes renais ao ano, na proporção de 2:1 (dois para um), com doador de cadáver, bem como pelo menos 20 (vinte) captações de órgãos, mantendo-se a lista de transplantes com os exames atualizados de todos os pacientes; (b) que o Estado realizasse a inscrição dos primeiros pacientes paraibanos presentes na lista de transplantes renais, a serem submetidos à cirurgia em unidades hospitalares em outros Estados, em um prazo de 30 dias; (c) 5

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In:

SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 316, 2008.

1065

caberia ao Estado custear as despesas referentes a transporte e à hospedagem, e a União suportaria as demais; (d) o Ministério da Saúde deveria enviar uma equipe multidisciplinar, para a realização de uma auditoria completa da crise, apontando os motivos e propondo sugestões para tentar solucionar a crise dos transplantes renais na Paraíba; (e) o Estado da Paraíba e o Município de João Pessoa, a cada ente em separado, apresentaria um termo circunstanciado, no prazo de 30 dias, dos últimos 5 anos (2004/2008) sobre as suas competências e as políticas públicas com relação à saúde, ações ou programas já implantados ou que não puderam ainda ser implantados, assim como os que planejam, listando os recursos investidos, não investidos e os previstos, tudo devidamente fundamentado. A união, inconformada com a decisão exarada em primeiro grau, interpôs um Agravo de Instrumento nº 2009.05.00.014093-9 perante o TRF 5ª Região. O argumento utilizado pelo Tribunal para negar o recurso foi o de que o direito à saúde deve ser garantido por todos os entes políticos, e o poder público não pode se eximir de tamanha responsabilidade, valendo-se do Princípio da Reserva do Possível. Além de considerar razoável a medida liminar, o colendo Tribunal Federal considerou justa a cominação de uma multa diária pelo não-cumprimento, assim como de extrema relevância o envio de uma equipe para a formulação de um estudo mais detalhado sobre a situação enfrentada pela Paraíba. Contra essa decisão do TRF, a União interpôs frente ao STF o pedido de suspensão da Tutela Antecipada, argumentando que o cumprimento desta medida ocasionaria grave lesão à saúde, à ordem e economia pública, além de grave violação aos Princípios da Legalidade, da Programação Orçamentária, da Reserva do Possível e da Separação dos Poderes. Ademais, considerou abusiva a fixação de uma multa diária de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por atraso no cumprimento das medidas, pois provocaria lesão grave à economia pública. Alegou ainda a existência de um periculum in mora inverso, no que concerne à transferência do problema da saúde da Paraíba para outros Estados. O Supremo Tribunal Federal, ao analisar o recurso, considerou que a controvérsia constitucional repousou na afronta aos Princípios da Segregação dos Poderes, da Legalidade, da Programação Orçamentária, da Reserva do Possível e ao Direito à saúde. Dessa forma, o Colendo Tribunal considerou a questão como complexa e não compatível com provimentos antecipatórios, pois ausente estava a comprovação dos fundamentos justificadores da permanência da medida acautelatória. É clara a utilização de argumentos meramente técnicos para a suspensão da medida pela Suprema Corte, uma vez que esta se limitou a analisar apenas a presença ou não dos requisitos da Suspensão de Medida Liminar, esquecendo-se de considerar que a questão em comento, na verdade, trata-se de um relevante problema social, a precariedade do serviço de transplantes renais no Estado da Paraíba, um direito social que não é garantido pelos entes envolvidos.

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Resta claro que se discute a possibilidade de interferência do Poder Judiciário na autonomia do Executivo, reacendendo a discórdia entre esses Poderes, concernente aos limites de atuação de um em detrimento da autonomia do outro. A norma pragmática referente à saúde tem abrangência geral, uma vez que seu acesso é universal e igualitário, portanto direito fundamental de todos e dever do Estado garanti-lo. Nesse norte, posiciona-se a 1ª instância em geral, revelando uma real preocupação na efetivação do direito à saúde, pois, ao analisar a situação fática mais de perto, coloca a saúde como conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. Interpreta realmente a norma em comento, moldando-a ao caso concreto, reduzindo a possibilidade de ocorrer benefícios individuais e beneficiando a coletividade. A liminar em comento procurava trazer elementos probatórios de muita importância para a instrução do processo, buscando elementos auxiliadores para uma decisão mais justa e efetiva à solução do conflito. Quando a Egrégia Corte, no entanto, suspendeu a medida, baseando-se na Reserva Legal, no favorecimento de uma minoria, em requisitos meramente formais e na afronta a separação de poderes, impediu que o Poder Público prestasse explicações sobre a crise dos transplantes renais na Paraíba, prejudicando não só 30 pacientes, mas todos aqueles que esperam há anos na hemodiálise. A nosso entender, a medida não afetaria gravemente as finanças públicas por falta de previsão orçamentária. Será que o custo para a realização de 30 transplantes, em pacientes que já se encontravam aptos, afetaria gravemente a ordem econômica do país? O Estado da Paraíba não teria condições financeiras para desenvolver um estudo aprofundado que diagnosticasse os problemas para a realização dos transplantes nos limites de sua jurisdição? A Paraíba tem todas as condições e estrutura para a realização dos transplantes renais, mas não o faz. Possui serviço credenciado, centro capacitado, equipe completa e até realiza a coleta de órgãos - que são, inclusive, enviados para outros Estados. Em outros termos, possui todo o aparato necessário, mas continua sem realizar nenhum transplante, submetendo os pacientes a constantes exames preparatórios, para se manter no cadastro nacional, e a diárias sessões de hemodiálise, enquanto esperam a sua vez, uma espera, sem dúvida, infinita. Se formalmente o serviço não existisse, as operações aconteceriam em outros Estados. Nesse ínterim, alegar a possibilidade de um periculum in mora inverso, pautado na transferência do problema de um Estado para outro, é atentar contra o bom senso e contra a noção de realidade de um ser humano de entendimento comum. Diante da omissão dos entes competentes, deve o judiciário impor sua coercitividade, exigindo provas mais contundentes da indisponibilidade de recursos financeiros por parte da Administração e negando as constantes “suspensões de segurança”, utilizadas quando o poder público, ao alegar a reserva do possível, impõe a sua vontade para protelar, ou, até mesmo, 1067

abster-se de concretizar os direitos sociais de exigência positiva, como, por exemplo, o Direito à saúde. Nas palavras do Procurador Federal Duciran Van Marsen Farena: (...) o uso abusivo das suspensões, que são concedidas monocraticamente pelos presidentes dos tribunais, tornaram-nas uma espécie de AI-5 judiciário, onde prepondera a vontade (ou a falta de vontade) do administrador e a “reserva do possível” (...)6 T

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Como é concedida sem contraditório, a “suspensão de segurança” proferida em segunda instância permite um fortalecimento do argumento da “reserva do possível” pela Administração Pública, impedindo a efetivação dos direitos sociais fundamentais coletivos. Este fato ocasionaria uma descrença nas concessões proferidas em primeira instância, restando ao cidadão a busca de medidas judiciais mais concretas em sede de ações individuais, abalroando o Judiciário. Dessa forma, assevera Duciran Van Marsen Farena: (...) São o triunfo da ‘reserva do possível’, da ‘questão complexa’, do ‘efeito multiplicador’ (isto é, se um conseguir ter o seu direito respeitado, outros que estão na mesma condição vão querer também). Enfim, são o terreno fértil para teses elucubradas para impedir a satisfação coletiva de direitos, deixando apenas a possibilidade de ações individuais – que, destinadas a poucos afortunados, agravam as disparidades sociais e mantêm descuidado o administrador7. T

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O princípio da reserva do possível não pode ser entronizado como fundamento do Estado Democrático de Direito, sendo utilizado como argumento pelo Poder público quando quiser omitirse de ser “o garantidor dos direitos fundamentais”. Para isso, o Judiciário não pode se valer da abertura interpretativa conferida pela CF de 88 para negar os direitos sociais; ao contrário, deve interferir e analisar as medidas liminares que atendam a uma coletividade, de acordo com o caso concreto, de maneira mais criteriosa, analisando as conseqüências e impactos reais de suas decisões, e negar pedidos de suspensão de liminar, quando considerar que a Administração está tentando maquilar uma situação de omissão e descaso com as políticas públicas. Encontra-se, assim, de um lado, a fundamentalidade do direito à saúde e, de outro, a autonomia do Poder Executivo – princípio da separação do poderes – para fixar políticas públicas. Como solucionar um caso concreto? A doutrina, inspirada na Corte Constitucional alemã, aponta a utilização do princípio da proporcionalidade em suas três dimensões: adequação, vedação do excesso e proporcionalidade em sentido estrito. Assim, uma sentença será adequada se alcança o fim almejado, proporcional se as vantagens superam os prejuízos, e a vedação do excesso exerce o papel de relativizar o direito fundamental em jogo. Nesse ínterim, vê-se que o princípio da proporcionalidade delimita a eficácia do direito à saúde, no entanto também é responsável por 6

FARENA, Duciran Van Marsen. O STF faz mal à saúde. Disponível em: Acesso em: 15 de novembro de 2011.

7

Ibidem.

1068

preservá-lo em seu mínimo grau, pelo menos, motivo por que se afirma que o princípio da reserva do possível deve ser visto com ressalvas, no sentido de que, muitas vezes, é empregado como argumento para obstruir o mandamento judicial e pretexto para a omissão estatal no domínio da justiciabilidade dos direitos fundamentais.

4. Conclusão Defende-se, portanto, a Judicialização do direito à saúde, no sentido de que o Poder Judiciário pode e deve assegurar o efetivo acesso à saúde quando desatendidos o mandamento constitucional e a legislação sanitária. Não se trata de desarticular o Sistema de Saúde através de decisões judiciais nem de favorecer uma minoria com conhecimento detentora de tutelas antecipadas ou liminares ou de substituir a Administração Pública na fixação de políticas públicas, mas de garantir que a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios cumpram as políticas de saúde com as quais estão comprometidos por força constitucional. Quando se lida com o direito à vida, todo esforço deve ser envidado. O Poder Judiciário deve se posicionar sensivelmente a esse quadro de negação ao direito à saúde, sob pena de resultar em prejuízo coletivo e nulificação dos direitos constitucionais impregnados de fundamentalidade, como o caso da STA n° 390, analisada acima, e suas drásticas conseqüências para a população do Estado da Paraíba.

Referências bibliográficas BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Palestra proferida na Audiência Pública nº. 4 – STF. Disponível em: Acesso em: 10 Nov. 2011 FARENA,

Duciran

Van

Marsen.

O

STF

faz

mal

à

saúde.



Disponível

Acesso

em:

15

em: de

novembro de 2011 TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

1069

O direito constitucional à moradia: Os projetos habitacionais na cidade de Currais Novos – RN sob a ótica da efetivação do direito à moradia Cícero Rivan dos Santos1 T

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2

Marcus Vinícius Pereira Júnior T

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Resumo

Abstract

Este trabalho pesquisou o posicionamento do poder público municipal perante a sociedade quanto ao seu direito à moradia, especificamente nos conjuntos habitacionais empreendidos na cidade de Currais Novos (RN) destinados à população carente. Nesse sentido, a abordagem se ateve ao referido direito trazido como cláusula pétrea sob o enfoque de direito fundamental, além de alertar aos legitimados que têm competência de interceder pela população, da necessidade de saírem da inércia e cobrar a efetividade dos direitos e garantias fundamentais daquela, para que se sinta realmente representada e assistida por quem de direito. Assim, tendo por base a Carta Magna, jurisprudência e doutrina abalizada sobre o tema moradia e direitos fundamentais, desenvolveu-se a análise das condições estruturais ofertadas sugerindo melhoras nos ambientes nos quais estão inseridos os conjuntos habitacionais. Primeiro foi abordado o direito constitucional à moradia relacionando-o aos princípios, fundamentos e objetivos da República, exaltando sua condição de preceito fundamental. Observou-se a realidade da falta de moradia da qual padece o cidadão, dignidade humana e exclusão social e gastos que poderiam ser revertidos para uma estruturação melhor dos conjuntos sob os critérios de razoabilidade e proporcionalidade. A fiscalização e/ou exigência de habitações dignas e seguras, além de alertar aos legitimados da necessidade do seu envolvimento para que se possa mudar o panorama e o paradigma habitacional que é estabelecido hodiernamente em Currais Novos (RN). Abordou-se legislação referente ao tema moradia para a obtenção de subsídios suficientes à fiscalização por parte das autoridades competentes e uma possível ação amparada pelo direito difuso, para que se enquadre a proposta habitacional do município ao que determina as políticas públicas constitucionais vinculantes, combatendo omissões do gestor público.

This work researched the position of municipal government before community about it's living right, specifically in public housing built in Currais Novos (RN) destined to poor population. Accordingly, the approach sustained to the mentioned right brought as entrenchment clause under the focus of fundamental right, further on alerting the legitimated who are able to interfere for population, about the need to stop passivity and ensure their rights and fundamental guarantees effectiveness, to feel trully represented and supported by those eligible. So, grounding the Letter of the Republic, jurisprudence and doctrine landmarked about the subject living and fundamental rights, an analysis about the offered structural conditions was developed, suggesting improvements in housing environments. First was treated the constitutional right to living related to the principles, groundings and goals of Republic brought on Constitution, exalting it's condition of fundamental rule. It was observed the homelessness which hits the citizen, human dignity and social exclusion and expenses that could be reverted in a better structure of housing with reasonable and proportionality criteria. To supervise and/or to demand worthy and safe housing, and also alert the legitimated about the need to get involved in order to change the scenery and housing paradigm established in our times in Currais Novos (RN). Legislation addressed to housing subject to obtain enough aids to supervision by those eligible and a possible action supported by diffuse Law, in order to fix the housing proposal of city to what determines binding constitutional public policies, also fighting public manager omissions.

Palavras-Chave: Constitucional; Fundamentalidade; Políticas Públicas.

Keywords: Constitutional; Public policies.

1

Moradia;

Housing;

Fundamentality;

Graduando em Direito pela UFRN (Campus - CERES).

2

Professor Efetivo da UFRN; Professor Convidado da ESMARN (Escola da Magistratura do RN); Graduado em Direito pela UnP (Universidade Potiguar); Licenciado em Filosofia pela UFRN; Mestrando em Direito Constitucional – UFRN; Especialista em Infância e Juventude – UFRN; Especialista em Direito Processual Civil – Universidade Gama Filho (RJ) e Especialista em Ministério Público e Cidadania – UnP.

1070

1. Introdução A urbanização em países desenvolvidos se deu de maneira ordenada e gradativa, visto que eram atrativos para as populações rurais a nova infra-estrutura que surgia, os empregos disponibilizados, ou seja, as transformações advindas da industrialização das cidades. O mesmo não se pode falar quando o tema é urbanização em países subdesenvolvidos, pois os maiores motivos que levaram o homem a sair do campo e procurar por melhorias nas cidades foram justamente as péssimas condições que mantinham na zona rural, a falta de possibilidade de investimento para os pequenos agricultores, salários baixos, dentre outros. Nesse sentido, não há como tratar de direito à moradia sem estabelecer paradigmas vinculados à urbanização brasileira, mais precisamente no município de Currais Novos (RN), pois a perspectiva do presente trabalho é visualizar de que maneira os responsáveis por garantir que esse direito seja efetivamente exercido pelo cidadão, o tratam e o dispõe na forma de serviços, políticas públicas e projetos habitacionais. A moradia sem dúvida é o primeiro passo para a dignificação da condição humana, é nela que o indivíduo se desenvolve. Sem ela não há como o sujeito manter sua família com o mínimo de segurança ou até mesmo de saúde, objetivando a sobrevivência e o desenvolvimento familiar impondo limites a ações extrínsecas, sejam humanas ou da natureza. Para isso é que foi elevado à condição de preceito fundamental o direito à moradia trazido pela Carta da Magna em seu artigo 6º. É obrigação estatal a viabilização de mecanismos que tenham por escopo a segurança e o bem-estar dos cidadãos, no que se refere ao direito à moradia, desenvolvendo projetos que tratem de saneamento básico, pavimentação, auxílio às famílias de baixa renda, entre outros; e é direito da sociedade a cobrança de uma gestão participativa para que o poder público não se omita quanto ao seu dever constitucional de garantir a dignidade humana necessária aos cidadãos promovendo a extinção de desigualdades e favorecer o enraizamento de uma sociedade livre, justa e solidária. A questão de moradia em conjuntos habitacionais na cidade de Currais Novos (RN) trazida neste trabalho ficou assim disposta. Primeiramente, será abordado o direito constitucional à moradia sob a ótica da garantia fundamental disposta como cláusula pétrea pela Constituição Federal, sob a égide do Estado Democrático de Direito, regida por normas programáticas relacionando com os fundamentos, objetivos e princípios constitucionais. Em seguida, haverá uma abordagem sobre a dignidade da pessoa humana e exclusão social, baseada nos modelos de conjuntos habitacionais que são disponibilizados ao cidadão, além de dispor sobre gastos supérfluos do poder constituído que poderiam ser revertidos para uma melhor adequação das moradias dos conjuntos, levando-se em conta critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Também será comentado o infortúnio de muitos cidadãos não possuírem residências ou quando as têm são antiquadas e em localização que dificultam o relacionamento social. Depois, serão instigados os legitimados que podem pleitear em nome próprio o direito da sociedade a uma moradia digna, livre de qualquer 1071

discriminação ou ameaças à segurança familiar, à saúde ou qualquer bem tutelado pelo Estado, tecendo comentários sobre as possíveis ações que possam ser tomadas no interesse social. Por fim, os direitos dos cidadãos serão trazidos à baila para que se possa ter um fundamento lógico e certo no intuito de garantir uma fiscalização rígida sobre a proposta habitacional do município e afiançar subsídios para propor uma possível ação para a obtenção da tutela jurisdicional tendo como justificativa o direito difuso, abrangente de atuais e futuras gerações.

2. Direitos fundamentais: compreensão geral Há divergência na doutrina de quando teria se dado início ao movimento dos direitos fundamentais trazidos nas constituições. Para alguns autores, a história de tais direitos se inicia com a promulgação da “Magna Carta Libertatum” pelo rei João sem Terra em 1215, já para outros se dá com a Constituição Americana de 1787. Ainda há crenças da origem no povo Hebreu ou ainda na Lei das 12 tábuas, em Roma. Enfim, tem-se a certeza de que o esforço pelos direitos fundamentais não é novo, mas nasce com o desejo do cidadão em limitar o poder estatal. Assim, os direitos fundamentais surgem como garantia do cidadão em face das ações do Estado. A partir desse contexto, surgiram movimentos que desencadearam a universalização desses direitos, os quais tinham como objeto o ser humano, tendo na Revolução Francesa a manifestação dessa universalização dos direitos fundamentais, atingindo o melhor resultado prático com a Declaração francesa de 1789, que trazia em seu bojo direitos que abarcavam a liberdade, a propriedade, a segurança, dentre outros. A essa universalização Bonavides se refere da seguinte maneira: “A universalidade se manifestou pela vez primeira, qual descoberta do racionalismo francês da Revolução, por ensejo da célebre Declaração dos Direitos do Homem de 1789” T

3

. Assim, os direitos fundamentais passaram a se manifestar institucionalmente em T

gerações, as quais mantêm correspondência com o lema revolucionário do século XVIII: liberdade, igualdade e fraternidade.

2.1 Os direitos fundamentais de primeira geração4 T

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Após o movimento francês que inspirou as constituições, os direitos foram insculpidos na esfera normativa dos países de modo a funcionarem como égide para os indivíduos, parte hipossuficiente, na relação com o Estado. Destarte, os direitos de primeira geração estão relacionados com o lema da liberdade, assim despontando nos direitos civis e políticos inseridos nos textos constitucionais, sendo oponíveis ao Estado e tendo por titular o cidadão, revestindo-se de subjetivismo, garantem a resistência do indivíduo perante o Estado. Vale ressaltar que tais direitos, apesar de terem percorrido insalubre caminho para se manterem como normas 3 4

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 22ª ed., Malheiros, São Paulo, p. 562, 2008. Idem.

1072

garantidoras, hoje se encontram pacificados em diversas das constituições contemporâneas. Em suma, os direitos de primeira geração vêm dar destaque valorativo ao ser humano, garantindo-lhe que sua liberdade individual não seja bulida pelo Estado, sem qualquer amparo legal que o permita fazê-lo.

2.2 Os direitos fundamentais de segunda geração5 T

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Povoando o século XX, mais precisamente o período pós-guerra, os direitos de segunda geração vêm refletir o princípio da igualdade que emergiu na Revolta Francesa, assim amparando os direitos sociais, culturais e econômicos, bem assim os coletivos. Trata-se de direitos que reclamam do Estado prestações de cunho material em benefício da sociedade, das quais advêm normas programáticas que vinculam certas ações estatais junto aos indivíduos inseridos na sociedade. Nesse intento, o bem estar social poderá ser obtido através de ações que o Estado exerce disponibilizando ao cidadão o meio mais amplo para se chegar ao bem comum, como a saúde, educação, etc. Dessa maneira, é notável que tais direitos surgem como exemplo de prestações positivas por parte do Estado, ao revés dos de primeira geração que apresentam uma prestação negativa.

2.3 Os direitos fundamentais de terceira geração6 T

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Estes encontram sustentáculo no princípio da fraternidade, não tendo como interessados as pessoas individualmente reconhecidas ou mesmo um grupo, mas possuem como principal alvo o próprio ser humano, reconhecido em seu gênero. Dessa feita, esses direitos podem ser exemplificados como aqueles que são de interesse de todos os indivíduos independente de em que Estado nacional se encontrem. Assim, como exemplificadores temos o direito à paz, ao meio ambiente, à comunicação, etc. Diante disso, pode-se afirmar que o próprio Estado tem o dever de zelar pelos interesses dos outros Estados, bem como manter relações que digam respeito ao mútuo desenvolvimento se ajudando uns aos outros no que for necessário. Ante essas três gerações, há que se chamar atenção para os direitos fundamentais de quarta geração que sinalizam reciprocidade com a globalização econômica advinda do neoliberalismo que, silenciosamente, tende a negar o Estado nacional pondo em risco a soberania dos Estados. Entretanto, há uma globalização política que ascende demonstrando um maior elo com os povos, quais sejam seus exemplos, direito à democracia, à informação e o direito ao pluralismo político.

5 6

Idem. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 22ª ed., Malheiros, São Paulo, 2008

1073

2.4 O direito à moradia como direito fundamental O seu reconhecimento pela sociedade internacional vem de longa data, onde se é visualizado primeiramente na Declaração dos Direitos Universais do Homem e posteriormente, seguindo no mesmo entendimento, vários outros tratados e/ou diplomas internacionalmente ratificados por diverso países contam com esse elementar direito em seu teor. Nessa esteira, apenas como rol exemplificativo de diplomas que trazem o referido direito em seu bojo podemos citar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (Art. 17, § 1º); Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais (Art. 11, § 1º), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Art. 5º, e, iii); dentre outros. Nessa toada, destaque-se a incidência primeira desse direito no âmbito internacional quando da instituição da Declaração de 1948 da ONU, a qual tratou, com base na dignidade humana e princípios correlatos, dos direitos econômicos, culturais e sociais, se transformando em ideal comum de todos os povos e nações. Dessa forma, assim dispõe o artigo XXV, nº 1: Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.7 T

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Embora tenha sido considerado direito do homem há muito tempo, o direito à moradia tornou-se direito fundamental somente depois que assim foi considerado pela Constituição da República e, nesse sentido, convém chamar a devida atenção para a Emenda Constitucional número 26 de 14 de fevereiro de 2000 que alterou a redação do artigo 6º da Constituição, que trata dos direitos sociais do cidadão, vindo a elencar junto aos demais itens já constantes como sendo direitos sociais do cidadão brasileiro e, por isso, considerado direito fundamental para o ordenamento pátrio. Como já oportunamente citado, a moradia é o local onde o indivíduo encontra o mínimo possível de segurança contra ações humanas ou da natureza. É nela que o homem se desenvolve e cria sua prole, é o local primeiro em que os cidadãos devem encontrar a dignificação necessária à condição humana.8 Assim, fica certo que o direito à moradia insculpido T

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no texto constitucional tem relacionamento direto com os princípios, objetivos e fundamentos nele, também, trazidos. Dessa forma, fundamenta-se na dignidade humana a necessidade de garantir como direito fundamental social esse direito à moradia, que é tão basilar quanto a vida, onde a espécie humana encontrará seu conforto e segurança visando evitar intempéries contra sua vida e saúde. Ademais, ao ser ele disposto no âmbito de um tratado internacional, tornando-se direito

7

Declaração Universal dos Diretos Humanos de 1948.

8

Nesse sentido, no artigo O DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA: O DESAFIO DA EFETIVIDADE E O DISCURSO NO JUDICIÁRIO, George Sarmento define o direito à habitação: O direito à habitação pressupõe um conjunto de fatores que asseguram as condições necessárias para que a pessoa humana se beneficie de uma casa para abrigar a si e sua família, com satisfatórias condições de vida, salubridade, serviços básicos, equipamentos comunitários e infra-estrutura.

1074

humano, a Carta também o vê como objetivo da República ao ter a prevalência dos direitos humanos como tal. Em sede constitucional, temos que o direito fundamental à moradia é envolvido sob o manto da cláusula pétrea, sob a égide do estado constitucional democrático de direito, situado como norma programática relacionando-se com os fundamentos, princípios e objetivos encartados na Constituição.

3. Dignidade humana e exclusão social: os conjuntos habitacionais e a eficácia dos direitos fundamentais Como se é cediço não há uma fórmula matemática que defina um conceito exato do que seja dignidade da pessoa humana, esta tem seu desenvolvimento no curso da história acompanhando as particularidades humanas em cada momento histórico. Ela tem por objetivo principal proteger o ser humano dos infortúnios que possam lhe ser acarretados, como componente intrínseco ao próprio ser, em torno do qual giram todos os outros direitos, servindo de cerne orientador da Constituição. Nesse diapasão, convém afirmar que a dignidade humana está para o homem desde o seu nascimento e o acompanha durante todo o decorrer de sua existência, fazendo saltar à compreensão que, independente de quaisquer condições, econômica ou social, orientação sexual, etnia, etc., este princípio tem função essencial no sentido de exigir a satisfação das necessidades existenciais básicas dos indivíduos, seja reclamando do Estado ações, positivas ou negativas, que proporcionem ao cidadão uma vida com o mínimo possível para o seu desenvolvimento normal no seio da sociedade, seja afastando qualquer interferência que advenha de qualquer outro indivíduo inserido na sociedade, garantindo que sua particularidade seja permanentemente mantida ilesa. Assim, a dignidade humana, por ser inerente ao âmago de todo o indivíduo, corolário dos direitos fundamentais, acaba por se tornar a base para onde converge um grande número de valores existenciais que condicionam a vida humana, como podemos exemplificar: a ética, a moral, a religião, de modo a servir de inspiração para um modelo de sociedade que busca o bem estar e a justiça social. Nestes termos, toda pessoa individualmente deverá ter para si toda proteção necessária que o Estado possa dispor com o intuito de que sejam protegidas sua identidade e integridade, física ou moral, materializando todo o esforço que se faz no sentido de fazer valer tão importante princípio que é peculiar e inseparável ao ser humano. Dessa feita, é imperioso suscitar o entendimento do professor Ingo Wolfgang Sarlet, acerca do indigitado princípio: A dignidade da pessoa humana corresponde à qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e 1075

promover a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.9 T

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Diante disso, embora o princípio tenha uma força vinculante que deve agir nos que fazem a sociedade e o Estado, levando-os a seguir uma trilha que culmine na razão principal que é o ser humano, é fato que por demasiadas vezes o indivíduo se ver excluído dos seus direitos fundamentais decorrente da ineficácia e, sobretudo, da falta de efetividade de tais direitos trazidos no ordenamento jurídico, por falta de prestação do poder público. Nesse contexto, passamos de uma situação em que são visualizados direitos e garantias sendo efetivamente prestados ao indivíduo para outra na qual o cidadão amarga a condição de excluído diante da sua própria comunidade, não raramente, ocorrendo principalmente com aquele que faz parte da classe menos favorecida. Sendo assim, apresenta-se a exclusão social como o estado antagônico ao efetivo cumprimento dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, trazendo um profundo desequilíbrio na sociedade, gerando discriminações e repulsa à situação daquele que se encontra em condição de exclusão. Em que pese haver essa problemática quanto à efetividade dos direitos do cidadão, cumpre ressaltar aqui que o direito à moradia, ora apreciado, possui tênue liame com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, ou seja, o direito à moradia está diretamente atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana por ser naquela que o ser humano se desenvolve, tem sua liberdade e privacidade, cuida de sua família, enfim, tem nela o local onde usufrui das condições necessárias à vida. Nesse sentido, é certo que ao cidadão o poder público deve prestações no sentido de tornar efetivo o direito à moradia, principalmente àquele que não tem como conseguir, por meios próprios, um lar digno para si e os seus familiares. Entretanto, para os indivíduos carentes de um lar próprio, não basta que sejam disponibilizadas moradias, faz-se necessário que estas estejam completamente adequadas ao convívio social, pois uma moradia adequada é um direito básico da pessoa humana. Morar dignamente é o mínimo que se pode exigir das autoridades gestoras de programas de habitação. Ocorre que normalmente o poder público, na cidade de Currais Novos – RN, ao estabelecer programas de habitação para a sociedade o faz de maneira que ao final do referido empreendimento as moradias se encontram aquém do que realmente se deseja. É fácil notar quando os modelos empregados nos conjuntos não encontram infra-estrutura adequada, ou seja, quando concluídos observa-se a falta de pavimentação seja em paralelepípedos ou asfáltica; saneamento básico de acordo com o que se necessita para a prevenção de doenças e animais peçonhentos, devendo estar ele de forma que garanta a universalização de seu acesso; infere-se

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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 2ª ed., Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2002.

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ainda a falta de terraplanagem que ocasiona ruas esburacadas e desniveladas; dentre outros problemas que podem ser visualizados. É bem verdade que o déficit habitacional no Brasil é de um número agigantado, são cerca de 5,8 milhões de moradias a ser construídas, segundo estudo feito em 2009 – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNDA)10. Também é certo que muitos brasileiros possuem residências T

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que não lhes garantem o mínimo de segurança ou em locais que não favorecem um crescimento individual pautado na boa relação de convívio social. Entretanto, não é por isso que o poder público irá disponibilizar moradias de qualquer sorte para a população, é obrigação a prestação de uma política pública voltada para a habitação que garanta conforto e dignidade para o indivíduo. Acerca disso, aquele que não dispõe de um lar para seu abrigo ou o possui sem estrutura acaba sendo discriminado por sua condição social. Dessa forma, quando da implementação das habitações na referida cidade, nota-se que os locais onde se localizam permanecem sem estruturas dignas para as comunidades, sendo assim favorecendo cada vez mais que se amplie o abismo entre o desafortunado e a sociedade de uma forma geral, que o põe de lado devido a sua situação desfavorecida economicamente. Ademais, se o intuito de alguns programas de habitação é a inserção de cidadãos no meio social para obter, enfim, um convívio baseado no respeito, ocorre justamente o contrário quando temos unidades habitacionais que privilegiam ainda mais a diferença entre as classes. Contudo, basta uma pequena adequação dos gestores para que se fomente uma estruturação adequada para os moradores dos conjuntos habitacionais, acarretando dignidade e respeito necessários para a vida. Nesse ínterim, são conhecidos vários gastos que poderiam ser revertidos para projetos públicos que visassem ao bem comum de todos, mais precisamente direcionando aos conjuntos, seria possível uma melhora incomensurável se, por exemplo, o ente público deixasse de investir milhares de reais a cada ano em eventos festivos, patrocinando bandas, que não beneficiam a sociedade, apenas a alguns, passando a alocá-los em políticas públicas. Afinal de contas, é profundamente irrazoável que se invistam verbas públicas em eventos que privilegiam apenas aqueles que certamente lucrarão, não constituindo em benefício para a sociedade, e desproporcional deixar que o cidadão sofra à míngua enquanto se faz festa. Assim dispõe José Roberto Pimenta Oliveira: Razoabilidade e proporcionalidade inibem ou limitam qualquer atuação administrativa desprovida do respeito que a Constituição estabelece aos órgãos e entidades que devem diuturnamente responder pela ótima efetivação dos interesses coletivos prestigiados pelo sistema normativo, posto à cura administrativa.11 T

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Disponível na internet: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/catastrofes-anunciadas-deficit-habitacional-no-brasil-e-de5-8-milhoes-de-moradias. Acesso em: 02 de setembro de 2011. 11 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Direito Administrativo Brasileiro. Vol. 16, Malheiros , São Paulo, 2006. TU

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Assim, estando o direito fundamental à moradia intrinsecamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, é mister que, quando da execução de planos habitacionais, o gestor político o exerça de tal maneira que promova o bem comum daqueles que serão beneficiados, garantido que com a implementação sejam incluídos socialmente com o intento de obter uma comunidade igualitária. Dessa forma, em conseqüência teríamos a aniquilação de discriminação em virtude do seio onde mora o indivíduo, acarretando harmonia social e respeitando a vontade da norma constitucional.

4. A defesa do cidadão Haja vista que a dignidade humana norteia todos os momentos da vida e que os que fazem o Estado devem ser, também, guiados por ela, conquanto a dignidade da pessoa humana deve ficar além das leis e de quaisquer preceitos positivados, não se concebe que empreendimentos que serão instituídos para a sociedade sejam elaborados e executados de tal forma que não garanta uma notável melhoria na vida do cidadão. Nesse contexto é que surgem as moradias que o poder constituído da cidade de Currais Novos oferece àqueles que não possuem o mínimo de condições de adquirir um imóvel, a todos os que em seu dia a dia se esforçam para obter um meio de sobreviver ante as agruras diárias. É bem visível o descaso com os menos favorecidos quando da proposta habitacional que, ao revés de garantir todo um processo adequado de moradia objetivando boa localização para melhor acesso aos diversos serviços dentro da sociedade; garantir que o direito a acessibilidade seja um fator também preponderante; uma boa infra-estrutura que promova um direito de habitar com dignidade, paz e segurança e, por fim, residências com condições de uma moradia adequada ao fim nela proposto; temos moradias disponibilizadas sem um comprometimento do ente público em propiciar essas condições que são estruturalmente necessárias para o cidadão. Nessa toada, vale ressaltar papel importantíssimo daqueles que podem interferir nessa relação que envolve a prestação de serviços ou obras. Partindo do próprio cidadão que pode fiscalizar e reivindicar que sejam tomadas todas as providências para que obras do interesse social sejam executadas conforme o anseio da sociedade, podemos percorrer uma relação de legitimados capazes de representar os indivíduos e cobrar das autoridades políticas que se enquadrem no que determina o censo legal e social. Assim, a lei 7.347/85 traz um rol taxativo daqueles que podem representar o cidadão em possível ação civil pública que vise responsabilizar aqueles que causarem danos à ordem urbanística, ao meio ambiente, a qualquer outro interesse difuso12 ou coletivo, dentre outros. Acompanhando esse raciocínio, a cidade é o local onde todos T

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Para Hugo Nigro Mazzilli: “Difusos - como os conceitua o CDC - são interesses ou direitos "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstancias de fato". Os interesses difusos compreendem grupos nenos determinados de pessoas (melhor do que pessoas indeterminadas, são antes pessoas indetermináveis), entre as quais inexiste vinculo jurídico ou fático preciso. São como um feixe ou conjunto de

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residem constituindo-se em um bem indivisível que deve ser mantido por todos e pelo poder público, garantindo que haja uma ordem urbanística condizente com sua função social acarretando o bem-estar dos habitantes. Dessa forma, podemos inferir que uma ordem urbanística que contribua para uma cidade sustentável, garantindo que se tenha na função social o consequente bem comum e o bem estar social, se refere a um direito da sociedade em viver com dignidade, segurança e paz, devendo abranger, não só as gerações atuais, porém deve abraçar as futuras gerações, o que acaba por caracterizar o direito difuso, podendo este ser pleiteado, em caso de lesão, junto ao poder judiciário. Nesse sentido, o Estatuto das Cidades é claro quando afirma que o direito à moradia é um desdobramento do direito a uma cidade sustentável que deve ser disposto para as presentes e as futuras gerações, envolvendo-se como uma luva no conceito de direito difuso, visto que abarca pessoas indeterminadas. Dessa maneira, em se tratando dos conjuntos habitacionais disponibilizados na cidade em comento, fica nítido que o poder público ao não fazer esse direito se tornar efetivo com respeito à infra-estrutura necessária, lesa o cidadão ao causar dano ao seu direito, compreendido difuso, de habitar em condições que lhe garantam segurança, saúde, acessibilidade, etc., assim dando subsídio para que se possa pleitear junto à Justiça a regularização das moradias. Destarte, mesmo que não se pretenda fundamentar o direito difuso pelos critérios elencados acima, fica também evidente que a ordem urbanística é deturpada, pois com modelos de habitação ora analisados, resta claro que se cria um desequilíbrio na sociedade, ou seja, não cumpre o desejo constitucional de se ter a função social da cidade garantida, trazendo ao indivíduo condições dignas de habitabilidade adequada. Assim é a compreensão de Paulo Afonso Leme Machado ao tratar da ordem urbanística: “O conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrio ambiental e do bem-estar dos cidadãos”. 13 T

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Desse modo, em estando tais habitações em desacordo com o que se é estatuído pelas normas, além de não garantir dignidade ao morador, cumpre ao legitimado ativo se empenhar em obter junto ao judiciário ações do poder público no sentido de tornar efetivo aquilo que é justo por determinação legal, visando alcançar a estruturação necessária para proporcionar uma vida regrada em um convívio de harmonia social, sem desequilíbrios causados pela ineficácia das políticas públicas, deixando a inércia e tomando uma posição ativa visando o interesse social.

interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por pessoas indetermináveis, que se encontram unidas por circunstancias de fato conexas” 13

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 12ª ed., Malheiros, São Paulo, 2004, p. 367.

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5. Legislação habitacional: fundamentos jurídicos para um direito à moradia com dignidade Por muito tempo o Brasil deixou de fora do rol dos direitos fundamentais o direito à moradia, hoje fazendo parte da Constituição depois de sua inserção através da Emenda Constitucional nº 26 de 2000. Embora isto tenha ocorrido um tanto quanto tardio, é fato que a Carta Magna já trazia em seu teor referência à moradia quando, dentre outros, estabeleceu que o salário mínimo deveria dar condições de atender às necessidades básicas da moradia; quando dispôs sobre a função social da propriedade; quando instituiu a competência concorrente da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para a construção de moradia, melhoria das condições das habitações e de saneamento básico; etc.. Antes disso, foi considerado direito intrínseco ao homem, que logo foi inserido na relação dos direitos humanos, que veio à tona com a Declaração dos Direitos Universais do Homem da ONU, como já foi frisado anteriormente. Nesse ínterim, ele tomou corpo e hoje além de ser considerado direito do homem também faz parte dos direitos fundamentais de inúmeros países. Dessa forma, com inspiração no direito internacional e na própria Magna Carta, a legislação infraconstitucional nacional surge subsidiariamente para dar contorno específico e ditar de que forma deve ser garantido, ao cidadão, que se cumpra os delineamentos dispostos sobre o direito à moradia. Temos que, visando o bem-estar dos cidadãos e sua segurança, o Estatuto das Cidades nos mostra diretrizes dentre as quais podemos citar o desejo de garantir uma cidade sustentável para os indivíduos como moradia, infra-estrutura urbana, etc., que sejam afetas às presentes e futuras gerações, constituindo, portanto, em um direito difuso, pois temos o direito de pessoas que não podem ser individualizadas quando da estruturação do espaço urbano. Caminhando nesse rumo, a lei 11.124/05 que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, complementa o estatuído na norma anteriormente analisada quando estabelece regras voltadas para a viabilização do acesso a terra urbanizada e moradia digna e sustentável para a população de baixa renda, baseando-se em princípios como os essenciais: uma moradia digna como vetor de inclusão social; função social das cidades e da propriedade. Ainda em termos estruturais, há claramente a necessidade de manter um eficaz saneamento básico para os moradores garantindo que estes tenham acesso de forma igualitária e universal com o abastecimento adequado de água potável, coleta de resíduos sólidos, drenagem de água, e demais serviços essenciais à sustentabilidade das cidades. Assim, a lei 11.445/07, que trata do saneamento básico, vem como salvaguarda para os cidadãos, para que estes ou seus legitimados, conforme já disposto, possam cobrar dos gestores públicos que se cumpram as normas regulamentadoras do direito à moradia. Convém ainda trazer à baila, mecanismo da lei 11.888/08 que trata da possibilidade de o morador de baixa renda usufruir de serviços técnicos gratuitos que serão prestados no intuito de promover a construção, reforma, ampliação ou regularização fundiária da habitação, desde que seja no interesse social, ou seja, tais serviços fazem parte integrante do direito social à moradia, logo socialmente indispensáveis. Nessa esteira, fazendo um comparativo entre o que é disposto pelas normas regulamentadoras do direito em tela e a real situação dos conjuntos que são 1080

disponibilizados aos integrantes da sociedade que detêm baixa renda e que não dispõe de condições para adquirir ou residir em imóvel com estrutura, vemos que é flagrante a falta de investimento, como se deveria, por parte do administrador público o que vem acarretar um insustentável meio ambiente para se viver colocando em risco a saúde e vida dos moradores, pois com moradias sem o que a legislação considera como fundamental, não há que se falar em moradia digna ou sustentável, ferindo assim a função social da cidade e a dignidade humana. Há que se notar que, como o direito à moradia é um direito humano e também fundamental, não basta que apenas fique no discurso, na teoria legislativa, necessita-se que seja efetivamente posto em prática nos termos em que a legislação o traz, ou seja, que detenham as moradias que serão dispostas aos moradores todas as condições estruturais como saneamento básico universal e integral de forma a abranger o abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, etc.; habitabilidade; acessibilidade; pavimentação; etc., não deixando faltar qualquer requisito desses. Nestes termos, requer então que sejam tomadas providências para que se satisfaçam estruturalmente os conjuntos habitacionais, objetivando que o cidadão consiga realmente residir com dignidade. Assim, como se trata de um direito difuso como disposto na própria legislação, Lei 10.257/01, viável seria que um legitimado ativo acionasse o judiciário através de uma ação civil pública com o intento de condenar o ente público à obrigação de fazer para que estabeleça uma condição socialmente aceitável aos moradores dos conjuntos ora estudados reformulando e garantindo uma estrutura digna para suas habitações. Nesse sentido, confirmando a tese de direito difuso, dispõe a lei de Ação Civil Pública: “Art. 2º. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.14 T

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Como pode se observar, tais moradias não possuem condições que dignifiquem a qualidade de vida e ainda excluem os habitantes aqui citados, e por não proporcionarem esgotamento sanitário condizente com a vida e a saúde humanas, pavimentação necessária, escoamento de águas pluviais ou decorrentes das residências, etc., é que se faz evidentemente necessário, tomando por base a legislação habitacional e constituição, uma ação enérgica por parte daqueles que representam a sociedade no intento de ver as normas garantidoras sendo observadas pelo poder público. Assim, como os conjuntos habitacionais dispensados ao cidadão 14

Lei 7347/85. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências.

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curraisnovense não se insere nas condições exigidas para que se garanta uma ordem urbanística adequada, a função social da cidade, a dignidade humana, a inclusão social e demais dispositivos constitucionais como a cidadania, erradicação da pobreza e desigualdades sociais e regionais extirpando do meio social qualquer forma de discriminação, etc., urge fazer valer um princípio constitucional que toma para si toda essa discussão: a prevalência dos direitos humanos, que deverá ser determinada por autoridade judicial que será chamada a se pronunciar no mérito em processo que deverá obrigar o ente público a reformular os conjuntos para que não prejudique mais ainda os valores sociais do homem e sua dignidade, como forma da mais pura efetivação dos direitos fundamentais.

6. Considerações finais O direito à moradia que deve ser observado pelo poder público não se trata apenas de conceder ao indivíduo um imóvel para que este se estabeleça juntamente como seus familiares ou proporcionar que ele consiga fixar domicílio. Sua definição é mais ampla do que uma mera casa, porém passa por toda uma particularidade que se liga à natureza do próprio homem cujo qual, sem moradia, certamente está fadado a desfalecer à margem da sociedade. A Constituição Federal espelhando-se nos diplomas internacionais passa a tratar o referido direito como sendo fundamental e, subsidiariamente, a legislação infraconstitucional trata de regulamentar de que maneira esse direito deve ser posto em prática pelo ente político através de projetos habitacionais, levando em consideração, dentre outros, a dignidade da pessoa humana, a função social da cidade, a inclusão social, a cidadania, etc. A compreensão de que uma moradia pautada na condição de direito fundamental agraciado pela Carta Magna deve trazer ao cidadão benefícios de ordem social que o insiram definitivamente na sociedade prestigiando, dessa forma, sua condição de ser, dotado de dignidade que deve ser observada como o ponto de partida de todas as ações estatais dirigidas à sociedade. O Poder Público não oferta moradias em condições salubres para o cidadão humilde economicamente. Percebe-se, então, que as políticas públicas voltadas a suprir as necessidades habitacionais no município de Currais Novos (RN) estão degeneradas, conquanto não mantêm as características e critérios trazidos nas normas que regulamentam o assunto moradia como habitabilidade, localização, infra-estrutura, ordem urbanística, função social, etc., assim, não se consegue ou não se quer oferecer moradias que detenham estrutura condizente com a dignidade humana. Considerando a situação estrutural do modelo de habitação descrita durante a pesquisa tem-se a clara evidência de que as hipóteses problemáticas levantadas deverão servir de suporte para se chegar ao fim desejado que é a total reformulação dos conjuntos e uma mudança de pensamento de todos que compõem o núcleo social, principalmente do gestor político, de como se deve fornecer habitação ao cidadão. Alertar à sociedade que ela pode e deve cobrar das 1082

autoridades públicas constituídas uma melhoria em sua condição social e instigar aos legitimados ativos pela sociedade em eventual processo coletivo a tomar uma posição de vanguarda no atual cenário habitacional com o fito de buscar, com base na legislação inerente ao conteúdo ora tratado, providências para obter o melhoramento do ambiente em que estão inseridas as unidades habitacionais que foram dispostas ao indivíduo desafortunado, é um objetivo traçado que deverá surtir efeitos positivos, com o alicerce aqui implantado, despontando finalmente em uma moradia adequada consubstanciando os princípios que rezam o direito à moradia. Da maneira como são propostos os modelos habitacionais pelo poder público municipal curraisnovense, significa deturpar o direito à moradia adequada violando toda condição intrínseca à natureza humana, que parte de sua dignidade, não lhe proporcionando meios suficientes de conviver com harmonia e respeito no seio social de onde surgirá uma segregação social que fará parte da vida de todos. Nesse contexto, ao empregar métodos precários na construção das habitações acarretando uma infra-estrutura insuficiente, fere-se os princípios e critérios ora analisados deixando que o cidadão sofra as discriminações que resultarão do processo falho de habitação empregado hodiernamente. A constatação de que no judiciário, na cidade de Currais Novos, não tramita nenhuma ação coletiva cuja finalidade seja a preservação do direito fundamental à moradia dos indivíduos é um fato que caracteriza a inércia dos legitimados processuais capazes de intervir para a resolução do problema. Também há evidente omissão por parte do poder público municipal em tentar solucionar os problemas estruturais dos conjuntos habitacionais, deixando que permaneçam os seus moradores em situação que atenta contra o direito à cidade sustentável, à saúde, segurança, etc., além do mais a fiscalização por parte das autoridades competentes e principalmente do agente financiador é insuficiente acarretando imóveis de qualidade inferior ao necessário para a população. Por fim, a legislação que regulamenta o direito à moradia não vem sendo considerada no momento de empreender conjuntos habitacionais para a população carente, tendo como consequência ambientes insalubres, os quais não conseguem oferecer ao cidadão condições que visem o bem-estar e o bem comum de todos, não respeitando, assim, o direito à cidade.

Referências bibliográficas BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 22 ed., São Paulo Malheiros, p. 562, 2008. Catástrofes anunciadas: déficit habitacional no Brasil é de 5,8 milhões de moradias. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/catastrofes-anunciadas-deficit-habitacional-no-brasil-e-de-5-8-milhoesU

de-moradias. Acesso em: 02 de setembro de 2011. U

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Ingo

Wolfgang.

A

Eficácia

dos

Direitos

Fundamentais,

10 Ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2011. ______. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 2 ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2002. ______. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito do seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, nº 20, dez./09 a fev./10. Disponível na internet: . Acesso em: 03 de setembro de 2011. U

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Racionalismo jurídico e legitimação do judiciário: o papel do poder judiciário brasileiro na proteção dos direitos humanos sociais prestacionais Dafne Fernandez de Bastos1 Resumo O objeto da presente análise são os direitos sociais prestacionais (direitos econômicos, sociais e culturais – DESCs) e o poder judiciário brasileiro, enquanto poder garantidor deste direitos na ausência/lacuna de atuação dos Poderes Executivo e legislativo, a partir do viés da legitimação daquele para tal atuação e a relevância, para tanto, da corrente filosófica do racionalismo. Como objetivo principal do estudo, tem-se a demonstração da relevância do racionalismo enquanto método de legitimação para a atuação do Poder Judiciário brasileiro no que tange à implementação dos DESCs, haja vista exigirem uma atuação positiva do Estado para sua implementação, permitindo a efetivação dos referidos direitos e garantindo o compromisso Estatal com os ditames constitucionalmente previstos. A metodologia escolhida cinge-se a proceder a uma análise da obra de Manuel Atienza: As Razões do Direito – teorias da argumentação jurídica, observando as propostas das diversas teorias abordadas, bem como a do próprio autor, para obter um posicionamento sólido acerca da fundamentação racional das decisões judiciais no que concerne aos DESCs no Brasil, de forma a legitimar essa atuação, haja vista sua grande repercussão (social, econômica, jurídica, etc) e o impacto na estrutura do Estado e da própria sociedade, sendo necessária uma plausibilidade e aceitabilidade de grande dimensão. Adota-se como marco teórico a afirmação de Manuel Atienza no sentido de que a prática do direito consiste, basicamente, em um processo argumentativo. Atualmente, a pesquisa encontra-se em fase de posicionamento crítico acerca da temática discutida, já tendo sido analisadas as 5 teorias presentes na obra do autor, bem como a dele própria. Palavras-Chave: Racionalismo; Poder Judiciário; Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Legitimação.

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Advogada (OAB/PA 15.826); Especializanda em Direito Público pela Rede de Ensino LFG e Mestranda em Constitucionalismo, Filosofia e Direitos Humanos pela UFPA, Bolsista CAPES.([email protected]). T

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1. Introdução O presente estudo tem em vista analisar qual o papel do Poder Judiciário na proteção e implementação dos chamados direitos econômicos, sociais e culturais – ora tratados por DESCs – e em que medida o racionalismo jurídico seja um mecanismo adequado para a legitimação desta atuação. Direitos sociais prestacionais, pela forma como foram previstos em diplomas internacionais e nacionais – “implementação progressiva” –, possuem certa dificuldade de implementação, justamente por exigirem uma atuação positiva do Estado e não sua mera abstenção. Passa-se a discutir o fator “custo” dos direitos e em que medida e de que maneira eles deveriam ser implementados a partir desse fator. Constitucionalmente previstos, portanto de aplicabilidade imediata, os DESCs são direitos humanos e fundamentais, conseguinte, revestidos de indivisibilidade e universabilidade; condicionar sua efetivação ao seu custo retira-lhes estas características essenciais, já que se lhes impõe condicionante à concretização. Sob este enfoque da constitucionalidade e da separação dos poderes, observa-se que os Poderes Executivo e Legislativo, muitas vezes não exercem de forma adequada os comandos normativos constitucionais que lhes são direcionados, deixando lacunas que devem ser preenchidas, destacando-se a atuação do Poder Judiciário para suprir essas lacunas. Dotado da característica da substitutividade à vontade das partes – ainda que uma delas seja o próprio Estado – este Poder detém a força necessária para solucionar as questões abertas suscitadas acerca dos DESCs e sua efetivação. Neste diapasão, defende-se aqui que cabe ao Poder Judiciário suprir a inércia2 legislativa T

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(legislação pertinente) ou/e executiva (políticas públicas) no que tange aos direitos sociais prestacionais, haja vista exigirem uma prestação estatal, um agir, que por vezes não é exercida, não podendo estes direitos restarem inefetivados. Importa destacar, então, o papel da doutrina alemã da reserva do possível, excludente da responsabilidade estatal, que, quando adotada para o caso brasileiro, deve ser feita com ressalvas, tendo-se em vista a peculiaridade da situação brasileira no que diz respeito à precariedade das condições de vida e a disparidade social vigente. Adotada a linha de pensamento de que deve o Judiciário ocupar-se do preenchimento das falhas de implementação de direitos prestacionais quando não observados pelos demais poderes estatais – sempre atentando-se para uma noção mais dinâmica da divisão de competências constitucionais, traduzida pela doutrina dos checks and balances –, resta a questão da legitimação de sua atuação nesse sentido. Uma vez que os membros deste Poder não são democraticamente eleitos para representar a população, torna-se imperioso discutir qual a legitimação das medidas tomadas, tendo-se em 2

Importa diferenciar o instituto do ativismo judicial do da judicialização. Aqui são tratados no sentido de que, enquanto este traduz-se no atendimento das normas vigentes constitucionalmente e dispostas em códigos atinentes à competência e jurisdição, aquele traz à tona uma noção mais proativa do órgão julgador.

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mente a repercussão social das decisões, em especial no que tange aos direitos difusos e coletivos. Exatamente no quesito legitimação, é que se aponta o importante papel desempenhado pelo racionalismo jurídico, destacando serem várias as teorias a esse respeito. Trata-se de mecanismo de legitimação, uma vez que permite a aceitabilidade das decisões tomadas, haja vista estarem fundamentadas em argumentos lógicos – coerentes e consistentes – e sólidos, apoiados na razão. Decisões judiciais racionalmente fundamentadas permitem sejam suas determinações aceitas e, mais importante, haja maior probabilidade de produzirem os efeitos determinados.

2. Os direitos humanos sociais prestacionais: dificuldades de implementação Tendo em vista as atrocidades cometidas pela II Guerra Mundial, surgem os direitos humano, citando-se a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 como documento principal no que tange à concepção contemporânea destes direitos, introduzindo duas conseqüências importantes: a revisão da noção tradicional de soberania absoluta dos Estados, haja vista a possibilidade de intervenção internacional para a proteção de direitos humanos; e a cristalização do indivíduo como sujeito de direitos na ordem internacional. Além disso, a Declaração de 1948 inova ao destacar a universabilidade e a interdependência – idéia posteriormente ratificada pela Convenção de Viena de 1993 – dos direitos humanos. Portanto, as várias “dimensões”3 de direitos reconhecidos (relacionados à T

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liberdade, igualdade e fraternidade) apenas são efetivamente consagrados, na medida em que são todos implementados, pois que integrados e interdependentes entre si. A discussão que assombra os direitos sociais, econômicos e culturais diz respeito ao fato de que, quando previstos em diplomas internacionais, e mesmo quando reconhecidos pelos diversos ordenamentos nacionais, sua implementação fora prevista como de forma progressiva e por intermédio dos meios apropriados disponíveis4. T

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5

Em apertada síntese, a doutrina nacional costuma classificar as normas quanto à sua T

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eficácia, havendo aquelas que são imediatamente aplicáveis, as que dependem de integração legislativa

ordinária

para

aplicação,

ou

que

prevêem

a

necessidade

de

legislação

3

Doutrina tradicional divide os direitos humanos em “gerações”, a saber 1ª, 2ª e 3ª, relativos à, respectivamente, liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, no presente estudo, adota-se moderna concepção que classifica os direitos humanos em “dimensões”, haja vista que, exatamente devido seu caráter indivisível e interrelacionado, estes não podem se superpor ou mesmo substituir uns aos outros, mas interagir, de forma a intensificar e fortalecer a proteção internacional. 4 Art. 2º (1), Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966. Cada Estado-parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. 5 A doutrina brasileira costuma dividir-se em dois grandes grupos no que tange à classificação das normas constitucionais: os que as classificam de forma bipartida e os que as dividem de forma tríplice. A maioria expressiva da doutrina, capitaneada pelo ilustre jurista José Afonso da Silva, adota a posição tripartite, em que se classificam as normas em “de eficácia plena”, “de eficácia limitada” e “de eficácia contida”.

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infraconstitucional para restringir e delimitar o alcance da norma, que já é, em si aplicável, e ainda as normas que são “programas de ações futuras”, as chamadas normas programáticas. É nesta última classificação que as normas que descrevem DESCs costumam ser enquadradas por massiva maioria doutrinária, ou seja, como dependentes de condições futuras da sociedade e do Estado – como um ideal constitucionalizado – ou, no máximo, como normas que apenas podem ser implementadas/aplicadas, caso haja integração legislativa infraconstitucional. Cumpre destacar que está a tratar-se de normas prescriptivas de direitos, caracterizadas por justiciabilidade – a grande diferença entre direito e os preceitos morais, estes desprovidos de valor jurídico, não sendo exigíveis judicialmente. Entretanto, a despeito da classificação tradicional acerca das normas jurídicas quanto à sua eficácia, atualmente tem prevalecido o entendimento de que a Constituição é um documento jurídico dotado de exigibilidade, obrigatoriedade e justiciabilidade, como os demais. Nesse sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello: Todas as normas constitucionais concernentes à Justiça Social, inclusive as programáticas, geram imediatamente direitos para os cidadãos, inobstante tenham teores eficaciais distintos. Tais direitos são verdadeiros ‘direitos subjetivos’, na acepção mais comum da palavra.6 T

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No mesmo sentido, tem-se o ensinamento do ilustre professor José Afonso da Silva7, para T

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quem toda norma constitucional é dotada de eficácia, porquanto “cada norma constitucional é sempre executável por si mesma até onde possa, até onde seja suscetível de execução”. A própria Constituição Federal do Brasil põe fim a esta acirrada discussão, a partir do §1º, do art. 5º, a saber: “As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”. O debate passa, então, para a questão da validade formal (vigência) e da validade fática (eficácia), haja vista que, materialmente, normas definidoras de direitos humanos – sejam constitucionais, sejam de direito internacional – têm plena efetividade (aptidão para produzir efeitos, ainda que apenas alguns). No que tange aos tratados internacionais ratificados pelo Brasil – em especial os referentes a direitos humanos, que seguem o rito do art. 5º, §2º, da CRFB/88 –, não há o que se questionar, haja vista que, para sua implementação no direito interno, devem passar por rigoroso trâmite legislativo e, nesse diapasão, não há qualquer diferenciação entre os direitos civis e políticos e os econômicos, sociais e culturais, todos se submetendo às mesmas regras procedimentais de ratificação. A diferença cinge-se, portanto, na seara da validade fática (eficácia). No entanto, conforme o ensinamento do próprio Kelsen, toda norma deve possuir um “mínimo de eficácia”8, a dizer, T

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Ver a esse respeito os estudos de Maria Helena Diniz: Norma constitucional e seus efeitos, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992; de Celso Bastos e Carlos Ayres Britto: Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo: Saraiva, 1982; de Celso Antonio Bandeira de Mello: Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 57-58, p. 232-256, jan./jun. 1981. 7 Aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 66.

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deve ser imbuída da possibilidade da norma poder ser obedecida e não aplicada pelos tribunais (obediência espontânea), ou, se desconhecida pelos indivíduos a ela subordinados ou conhecida, porém não observada, ser aplicada pelos órgãos jurídicos (não observância e possibilidade de dedução em juízo, com execução forçada, se necessário). As normas de DESCs possuem, por conseguinte, eficácia plena, tendo aplicabilidade imediata, haja vista que os Estados têm capacidade para cumpri-las, fazendo-o no mais das vezes, sem necessidade de coerção judicial, ou mesmo de necessidade de recurso a organismos internacionais. O simples fato de terem sido previstos nos pactos internacionais como normas de implementação progressiva não lhes retira a justiciabilidade e a eficácia. Não deve essa previsão diferenciada entre os direitos civis e políticos e os sociais, econômicos e culturais ser avaliada como dualista (mutuamente excludente), mas de viés pluralista, classificatório e combinatório das realidades complexas e distintas; mera diferença de perspectiva, pois as premissas e finalidades dos DCP e dos DESC são diferentes, porém não opostas. Portanto, suas eficácias são obtidas por meios diversos, possuindo significados próprios, o que não enseja, necessariamente, sejam hierarquicamente superpostas ou que sejam despidas de eficácia. Dessa forma, é perceptível que uma leitura menos profunda enseja errônea semelhança das normas de direitos sociais com as chamadas normas programáticas, que necessitam de integração legislativa para implementação efetiva. Contudo, como já demonstrado, todas as normas instituidoras de direitos humanos são dotadas de eficácia e aplicabilidade imediata, e o simples fato de estes direitos terem forma diversa de revelarem sua eficácia não significa, necessariamente, que sejam dela despidos, ou que a tenham de forma mediata, como grande parte da doutrina tradicional afirma, tratando-os como meras normas morais, havendo inclusive, no Brasil, tratamento constitucional da questão (art. 5º, §1º), que determina deverem todas as normas consubstanciadoras de direitos humanos terem aplicabilidade imediata.

3. O papel do poder judiciário na proteção e implementação dos direitos humanos sociais prestacionais Com considerável dimensão geográfica, o Brasil apresenta uma população em torno de 192 milhões de habitantes9 e, muito embora tenha alcançado significativo desenvolvimento T

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econômico, ainda enfrenta severos problemas sociais (escassez de moradia, disparidades econômicas elevadíssimas, abandono de menores, ineficácia de proteção a menores, etc). Desde o período imperial, as autoridades públicas têm prestado pouca ou nenhuma atenção à questão das políticas públicas, em especial àquelas concernentes às questões

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DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 8. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 353. Fonte: estimative IBE 2010. Disponível em www.ibge.com.br.

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humanitárias, abstinência ensejada sobretudo pela corrupção vigente no país e à má gestão das verbas públicas. A incorporação dos DESCs no texto constitucional teve por objetivo conferir-lhes efetiva garantia. A natureza particular destes direitos exige um tratamento jurisdicional diferenciado, ainda devendo ter-se sempre em vista o viés transindividual dos direitos humanos. No decorrer do século XIX, presenciou-se o início do processo de constitucionalização dos Direitos do Homem, ou Direitos Humanos. Na primeira metade do citado século, dos direitos ligados à liberdade e à individualidade; posteriormente, na segunda metade, daqueles de caráter coletivo e político. A constitucionalização, em si, já representou enorme passo, pois simboliza garantia, haja vista os direitos deixarem de ser meras recomendações destinadas a orientar a atividade governamental, passando a ser verdadeiros direitos subjetivos, passíveis de discussão perante o judiciário (justiciabilidade). Nesse viés, os instrumentos necessários à sua discussão também foram constitucionalizados (ex: habeas corpus, ações questionadoras da constitucionalidade, mandado de injunção,etc). Existe certa dificuldade em incluir os DESCs na lista dos direitos humanos fundamentais, bem como de reconhecer sua justiciabilidade, o que implica na ausência de percepção da necessária superação do caráter essencialmente individualista das ações constitucionais, para que a proteção jurisdicional desta categoria de direitos seja efetiva, ingressando-se de forma concreta na fase social do constitucionalismo moderno. A implementação destes direitos, de fato depende de uma atuação positiva do Estado e seu perfil constitucional exige clara definição das políticas públicas, a dizer, políticas de ação governamental, para sua efetiva realização e o conseqüente desenvolvimento integral da pessoa humana. A constitucionalização dos direitos prevê um mínimo a ser desenvolvido pelo governo que, a bem dizer, dentro dos recursos cabíveis, deve implementar o máximo possível, cabendo a mecanismos outros, a saber, mecanismos judiciais, corrigir a lacunosa alocação de recursos ou mesmo a ineficiente e má versação de verbas. Não se pretende aqui defender o ativismo judicial, na sua acepção pejorativa, no sentido de atuação desgovernada do Poder Judiciário, sem observância do sistema de freios e contrapesos, mas se está a afirmar que os cidadãos devem dispor de instrumentos de controle jurisdicional aptos a efetivar os direitos em sua totalidade, considerando sua interdependência e interrelação. Esta nova expectativa de prestação jurisdicional pressupõe que o processo e a decisão final da justiça estejam adaptados à nova realidade social e política, assim como ao novo perfil da cidadania, adequada a uma concepção pluralista e transindividual. Importa destacar que a cidadania prevista no Estado Democrático de Direito pressupõe participação popular na definição de políticas públicas em maior escala e de forma mais efetiva. 1090

Entretanto, o indivíduo, cidadão, ainda enfrenta diversos obstáculos para influenciar os representantes políticos e as regras do jogo democrático carecem de reforma que lhes muna de seriedade para acabar com a crise da representação política. Esse cenário desemboca em grande pressão sobre o Judiciário, para que concretize direitos constitucionalmente reconhecidos, sendo, no mínimo razoável discutir os instrumentos processuais cabíveis para sua maior efetividade. Ora, o Poder Judiciário figura como o único detentor da chamada “substituição processual”, característica que permite impor sua decisão às partes, independente de ser favorável ou não ao pleito, independente de uma destas partes ser o próprio Estado. Nesse aspecto, é importante destacar a teoria da reserva do possível, de origem alemã, em 1972, utilizada para viabilizar a excludente de responsabilidade estatal em virtude de ausência de recursos financeiros suficientes para a implementação de direitos prestacionais. No entanto, não se vislumbra sua aplicação no Brasil, ao menos não nos moldes em que fora prevista na Alemanha, uma vez que o Brasil apresenta realidade sócio-econômica excludente, bem como carente de condições dignas para grande parcela da população, sendo necessária a intervenção do Poder Judiciário para equilibrar esse quadro de negligência e inocuidade legislativa e executiva, bem como para garantir a implementação efetiva dos direitos constitucionalmente previstos. Partindo-se do princípio que os Estados têm a obrigação constitucional de implementar os direitos humanos e que os DESCs são direitos humanos e que, por força do art. 5º, §1º, da CRFB/88, têm aplicabilidade imediata, na ausência de iniciativa dos Poderes Executivo e Legislativo, cabe ao Poder Judiciário prover a sociedade desses direitos. Não se vislumbra ser cabível aos Estados furtar-se à efetivação destes direitos, devendo-se relativizar a aplicação da teoria da reserva do possível na situação brasileira em virtude da peculiaridade social do Estado.

4. O racionalismo jurídico Racionalismo é uma corrente filosófica que tem como marco a definição do que é raciocínio, a saber, uma operação mental, discursiva e lógica com ideias centrais comuns às doutrinas do racionalismo. Usa uma ou mais proposições para extrair conclusões se uma ou outra proposição é verdadeira, falsa ou provável. Neste sentido, o racionalismo vem a ser a corrente central no pensamento liberal, ocupada em procurar, estabelecer e propor caminhos para alcançar determinados fins, que são postulados em nome do interesse coletivo (commonwealth), base do próprio liberalismo e que se torna assim, a base também do racionalismo. Pode-se observar, então, que se trata do oposto do empirismo, noção que considera como fonte de todas as nossas representações, os sentidos, sendo todo o conhecimento, neste, a posteriori, ou seja, provindo da experiência e a ela se resumindo.

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Trata-se, ainda, de concepção diversa daquela denominada empírico-racional ou intelectualismo, para a qual as representações humanas seriam construções a posteriori, mas que seriam elaboradas pela razão a partir dos dados experimentais. Dessa forma, o conhecimento teria sua origem na experiência, mas sua validade só poderia ser garantida pela razão. Isto posto, insta dizer que o racionalismo é a doutrina que afirma que tudo que existe tem uma causa inteligível, privilegiando a razão em detrimento da experiência do mundo sensível como via de acesso ao conhecimento; portanto, considera a dedução como o método superior de investigação filosófica. Importantes filósofos tiveram papel fundamental na introdução desta doutrina na filosofia moderna, como René Descartes (1596-1650), Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-1716). Além destes, é possível citar Friedrich Hegel (1770-1831), como relevante para a identificação entre o racional e o real, supondo a total inteligibilidade deste último.

4.1 O racionalismo jurídico como meio de legitimação de decisões judiciais Considerando-se o racionalismo a doutrina que toma por base a razão, pode-se ter em conta que se trata de um mecanismo de legitimação de decisões judiciais, uma vez que empresta validade a estas, por apresentarem por base argumentos fundamentados racionalmente, portanto, viáveis (possíveis) e aceitáveis (coerentes e consistentes). A “certeza” é uma busca constante que acompanha a história do homem e a matemática (geometria) e a lógica foram dois sistemas que foram essenciais para tal empreitada no raciocínio humano10. T

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No início da história do pensamento e da busca pelo conhecimento, com o pensamento grego, há uma aproximação do próprio pensar com a matemática geométrica, com grande apelo à filosofia platônica e seu conceito de saber, que excluía da cultura qualquer ramo puramente empírico11. T

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Não obstante, é preciso destacar, conforme bem aponta Hilton Japiassu12, que tal unidade T

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“pensamento-geometria”, não gerou, de imediato, uma repercussão na prática, ficando restrita à teoria, sem validação experimental ou prática; diferente do que ocorrera mais adiante, a partir do pensamento moderno-racional-ocidental. Em período posterior à Idade Média, mais especificamente no Renascimento (séc. XVI – Reforma Protestante), marco do início da Idade Moderna, ocorre a rejeição das idéias até então vigentes, garantidas pela força das autoridades, que passaram a ser contestadas.

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História da filosofia. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004. p. 24. JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia : a formação do homem grego. São Paulo : Martins Fontes,1979. p.850. JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. São Paulo : Letras & Letras, 2001. p.59.

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Este movimento, motivado pela necessidade de compreensão, representou motivação forte à pesquisa científica e preparou os fundamentos para a arrancada científica do século XVII, período de introdução da razão e do espírito científico de forma plena. A partir de René Descartes, que introduziu um método para captar a razão da certeza e estendê-la a outros ramos do conhecimento (método cartesiano), a busca por certeza através do método tem início com a provisória colocação em dúvida de todas as certezas. Após a dúvida cartesiana, resta não apenas a desconfiança em relação às verdades adquiridas, mas o vazio que se segue à destruição sistemática de todas as certezas por via da recusa dos procedimentos pelos quais essas certezas foram adquiridas (sem utilizar o método), para aceitar inteiramente o novo processo metódico de construção da ciência13. T

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Por intermédio da dúvida metódica, surge uma primeira certeza, a temática cartesiana clássica: “se duvido, penso”. Por conseguinte, surge a máxima cartesiana: “se penso, logo existo”. O ser ontológico (o “eu”) passa a ser o novo marco a partir do qual se pode traçar o horizonte de inteligibilidade sobre todo o conhecimento humano. Assim, a razão passa a se apresentar como o único alicerce sólido a não poder ser abalado. Dando continuidade a esta análise, aponta-se a relevância da argumentação para o racionalismo. A prática do Direito, em efeito, consiste fundamentalmente, na atividade argumentativa. Ao longo dos tempos, várias foram as teorias desenvolvidas para alcançar a fundamentação do Direito de forma satisfatória. Em outras palavras, de forma racional e que pudesse ser aceita, tendo como base fundamentadora, a razão. Conforme já destacado, diversas foram as teorias criadas, mas aqui optou-se por ater-se àquelas analisadas por Manuel Atienza, em sua obra Teorias da Argumentação Jurídica; portanto, aquelas desenvolvidas por Theodor Viehweg, Chaïm Perelman, Stephen E. Toulmin, Neil MacCormick e Robert Alexy. Grande foi a contribuição de tais autores no que tange à argumentação e, portanto, à fundamentação racional da prática jurídica que, conforme o entender de Atienza, o que aqui se corrobora, cinge-se à atividade argumentativa. De forma sucinta, pode-se agregar em um grupo os pensamentos de Theodor Viehweg, Chaïm Perelman e Toulmin, que rejeitaram a idéia da lógica formal-dedutiva como modelo de base da argumentação, tendo a pretensão de evidenciar seus limites. Por outro lado, tem-se Neil Maccornick e Alexy, que configuram o que se convencionou chamar de “teoria padrão da argumentação jurídica”, com destaque precisamente no contexto de justificação dos argumentos, que em geral têm pretensões descritivas e prescriptivas. Dessa forma, entenderiam que as decisões jurídicas podem e devem ser justificadas. Destaque para a teoria do próprio Atienza, que, após analisar as 5 teorias aqui já tratadas, desenvolve a sua própria, alegando ser uma “verdadeira teoria da argumentação jurídica”, plenamente desenvolvida. 13

SILVA, Franklin Leopoldo. Descartes : a metafísica da modernidade. São Paulo : Moderna, 1993.p.44.

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O autor atesta que uma tal teoria deveria ser avaliada a partir de 3 aspectos distintos: objeto; método e função, e inclusive aponta que as teorias que aborda em sua obra são deficientes nesses requisitos. Atienza aponta que grande parte das argumentações externas ao âmbito judicial escapam às teorias analisadas, pois estas voltam-se tão somente às questões normativas e, para o autor, uma teoria da argumentação deveria se ocupar também da vida ordinária e do cientificismo, bem como da seara da produção jurídica. Metodologicamente, a crise do autor recai no fato de que as teorias deveriam ter mecanismos eficazes para atestar a adequação e correção das argumentações propostas, sendo falha crassa a ausência de procedimento capaz de representar com precisão como os juristas fundamentam as decisões tomadas. Para Atienza, a teoria da argumentação jurídica deveria cumprir, de forma essencial, três funções: de caráter teórico ou cognoscitivo; de natureza prática ou técnica; e política ou moral. Mister se faz observar que, na obra aqui tratada, o autor realiza uma delimitação do campo de atuação das teorias analisadas, sendo eles o da produção de normas jurídicas (pré-legislativa e legislativa)14; o da aplicação das normas jurídicas; e o da dogmática jurídica. Importa destacar, T

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no entanto, que para Manuel Atienza, nenhuma das teorias por ele analisadas volta-se para tais fases. Tais teorias concentram-se na solução de questões denominadas hard cases, os “casos difíceis”, apontando que apenas as questões de direito podem ser objeto de interpretação. No que tange aos fatos, estes não são alcançados pelas teorias de argumentação jurídica; portanto, estes e os ditos “casos fáceis”15 são excluídos da análise das teorias aqui estudadas. T

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Aspecto relevante na análise das teorias feita por Atienza diz respeito ao contexto da descoberta (explicar) e da justificação (justificar). O autor explica que atividade de descobrir uma teoria não é suscetível de uma análise do tipo lógico, entretanto, a justificação de uma teoria com o fim de demonstrar a sua validade, exige uma análise deste tipo. A lógica formal se preocuparia com argumentos do ponto de vista de sua correção formal, motivo de insatisfação, já que bons argumentos deveriam sê-lo formal e materialmente; motivo ensejado pelo fato de que a lógica dedutiva apenas oferece correção formal, a despeito de critérios materiais.

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A primeira é conseqüência do surgimento de um problema social, em que acredita-se que a solução possa ser a adoção de medidas legislativas. Considera-se nessa fase que os argumentos possuem caráter mais político e moral do que jurídico. A segunda fase, definida como fase legislativa, entende-se que um problema só passa a ser considerado relevante quando adentra no âmbito do poder legislativo, independente de ter sido discutido pela opinião pública. Nessa fase as questões possuem um caráter do tipo técnico-jurídico. 15 Reputa-se relevante destacar que, muito embora seja a denominação utilizada pelo ilustre autor, aqui não se concorda com ela. Não se acredita existirem “casos fáceis”, haja vista a complexidade do direito, em si; o que ocorre, de fato, nos citados casos, é a menor justificação doa argumento, soluções mais claras e respostas mais práticas ou mesmo de menor repercussão. Dessa forma, trata-se de lacuna ou insuficiência a tese de que tais casos fáceis não estariam possivelmente à mercê das teorias da argumentação jurídica.

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Argumentos podem ser classificados em dedutivos e não dedutivos. Os dedutíveis estão ligados ao caráter de necessidade da passagem das premissas à conclusão, ao passo que, toda vez que um argumento em que a passagem das premissas à conclusão não é necessária, trata-se de um não-dedutível. Neste raciocínio, importante observar a relação existente entre lógica jurídica e argumentação jurídica, em especial no que se refere à questão da racionalidade. A argumentação jurídica vai além da lógica jurídica, pois os argumentos jurídicos podem ser estudados fora do campo da lógica. Todavia, a lógica jurídica vai além da argumentação jurídica, no sentido que tem objeto de estudo mais amplo. E ambas servem ao propósito racional de fundamentação sólida dos argumentos utilizados na prática do Direito, permitindo a coesão e a coerência do sistema.

5. Conclusões: a legitimação do poder judiciário para proteger e implementar os direitos sociais a partir do racionalismo jurídico Reputa-se pacificado o entendimento de os DESCs serem direitos humanos. Como tanto, indivisíveis e universais. Sua previsão internacional (Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais de 1966, ratificado em 1992 pelo Brasil) como direitos a serem implementados “progressivamente” na medida dos recursos disponíveis e cabíveis não é uma excludente para a justiciabilidade desses direitos. DESCs exigem uma atuação prestacional por parte do Estado para serem implementados e, na ausência dessa prestação por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, os responsáveis pela observância das normas programáticas de “ação de governo”, cabe aos jurisdicionados discutir sua implementação perante o Poder Judiciário, que deve se encarregar de suprir as lacunas deixadas pelos demais poderes e cumprir os deveres estatais de garantir os direitos humanos, não cabendo, na realidade brasileira, evocar levianamente a teoria da reserva do possível, haja vista a realidade precária de grande parcela da população, carente de condições dignas de vida. Nesse sentido, as decisões judiciais necessitam de suporte reforçado a embasar suas determinações. Por isso, é de grande relevância o estudo do racionalismo, corrente filosófica que toma como base a razão. Decisões judiciais racionalmente fundamentadas são aceitas e conferem maior probabilidade de serem implementadas faticamente, efetivando, assim, os direitos a que se propõem proteger e implementar. A partir da análise das informações trazidas defende-se “flexibilização do Judiciário”16, a T

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partir da racionalização do processo jurisdicional, enquanto produto e conseqüência da modernidade, devendo condizer com a realidade factual, dispondo de mecanismos viáveis e

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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Reformas e Poder Judiciário. Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rio de Janeiro, n. 6, 1999, p. 88.

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solidamente fundamentados – portanto aceitos – para a realização de sua atividade primordial: a atuação concreta do direito. Tal flexibilização do processo enseja um viés mais participativo, sem prejuízo de sistemas de composição das lides através de vias alternativas que, insta dizer, não são excludentes da prestação jurisdicional convencional, porquanto a ela complementares. Seguindo esta interpretação, aponta-se a conseqüente flexibilização da interpretação, que adquire feição de interpretação valorativa, construindo o direito a partir de um comprometimento com a ordem constitucional, assumindo decisivamente a sua condição de órgão político e condutor da sociedade, realizando e concretizando a justiça social.

Referências bibliográficas ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: teorias da argumentação jurídica. Trad. de Maria Cristina Guimarães Cupertino. 3ª ed. São Paulo: Landy, 2006. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social. Revista de Direito Público, São Paulo, v. 57-58, p. 232-256, jan./jun. 1981. BASTOS, Celso; BRITTO, Carlos Ayres. Interpretação e aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo: Saraiva, 1982. DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992. ________________. Compêndio de introdução à ciência do direito. 8. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995. História da filosofia. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004. p. 24. JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia : a formação do homem grego. São Paulo : Martins Fontes,1979. JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. São Paulo : Letras & Letras, 2001. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Reformas e Poder Judiciário. Cidadania e Justiça. Revista da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rio de Janeiro, n. 6, 1999. PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS ECONÔMICOS SOCIAIS E CULTURAIS. 1966. (Decreto n. 591, de 6 de julho de 1992). PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 1º edição. São Paulo, Max Limonad Editora, 1996. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade e eficácia das normas constitucionais. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 66. SILVA, Franklin Leopoldo. Descartes : a metafísica da modernidade. São Paulo : Moderna, 1993.

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A responsabilidade fiscal do gestor público e a responsabilização criminal: os valores por trás da legislação e o desrespeito aos direitos humanos fundamentais da sociedade sob a ótica da Lei de Responsabilidade fiscal e da Lei 10.028/2000 Evyne Marina Espirito Santo Salvador1 T

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Resumo

Abstract

A justificativa do inadimplemento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º, CF) tem por base a lamentável, ou irresponsável, ausência de recursos necessários à concretização de mecanismos que implementem a satisfação dos direitos humanos fundamentais da população. Os valores que regem a elaboração da nossa legislação e orientam as decisões judiciais em relação aos crimes contra as finanças públicas por várias vezes não se adéquam às respostas urgentes que clama o cenário hodierno brasileiro. Diante dos problemas massivos e frequentes que acometem os nossos conterrâneos, particularmente os mais desafortunados, a atuação do judiciário deve atingir a própria razão da inexistência de recursos, com respostas efetivas e combativas frente as atitudes corruptas dos gestores públicos equivalentes aos grandes escândalos da atualidade neste aspecto. Toma-se então por marco histórico o ano de 2000, debruçando-se sobre a legislação que regula a atuação do gestor público, especialmente no que toca a LC 101/2000 (LRF) em seus aspectos penais, com vistas a contornar argumentos conformadores da situação caótica do nosso país e a justificação da inoperância dos órgãos governamentais, através de revisão de literatura, análise legislativa e levantamento das decisões do Poder Judiciário a tal respeito, que permitem o desenvolvimento de uma a linha de raciocínio segundo a qual é necessário buscar a repreensão de agentes disseminadores da corrupção, para que se atinja a raiz da não execução de políticas públicas direcionadas à real transformação da realidade miserável de muitos brasileiros. Apresentase, neste sentido, a responsabilização fiscal e criminal dos gestores da Administração Pública, de sorte que os crimes que envolvem os recursos públicos não são matéria de direito penal mínimo, conforme a atual realidade que circunda a aplicação da legislação em testilha.

The justification for the breach of the Federative Republic of Brazil’s fundamental objectives (art. 3, CF) is based on the unfortunate, or irresponsible, lack of resources necessaries to implement mechanisms in order to satisfy the population’s basic human rights. The values that rule the preparation of our legislation and direct the judicial decisions about the crimes against the public finances most of the time do not suit the urgent responses claimed by the present brazilian scenery. Facing the massive and frequent problems of our compatriots, especially the most disadvantaged, the judiciary’s actions shall reach the very reason why there are no public resources, forcing effective and combative solutions to the public managers’ corrupt attitudes equivalents to the great scandals of our time on this aspect. Starting from de year 2000 and analyzing the legislation which directs the public manager’s decisions, especially about what the LC 101/2000 (LRF) collocates in its criminal terms, in order to circumvent the resigning arguments for the Brazil’s chaotic situation, as well as the justification to the ineffectiveness of the government institutions, by using literature reviews, legislative analysis and surveys of the Judiciary verdicts in this regard, which reinforce the idea of punishing the public agents severely, so that it reaches the root of the nonimplementation of public policies aimed at transforming the miserable reality of so many Brazilians. It presents, in this sense, the fiscal accountability and criminal liability of the Public Administration managers, so that crimes involving the public resources are no matter of minimum criminal law, as the current application of the law in focus suggest.

Palavras-Chave: Responsabilidade; Gestor Público; Finanças Públicas; Direitos Humanos; Controle judicial.

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Graduanda em direito pela Universidade Federal de Alagoas. [email protected]. Orientador: Alberto Jorge Correia de Barros Lima. Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas. TU

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1. Introdução A pertinência da discussão a respeito da responsabilidade fiscal, que enseja a transparência e o planejamento na administração da coisa pública, remonta à própria motivação para a elaboração da Lei Complementar nº 101/2000, quando se revelou tratamento inovador, porque sem precedentes brasileiros, e abrangente, porque válida para as três esferas de governo, para as principais questões referentes aos efeitos macroeconômicos e fiscais decorrentes do uso dos recursos públicos. A alusão aos recursos públicos dispensa então maiores justificativas, uma vez que o Estado, enquanto garantidor dos direitos fundamentais faz jus a todo um aparato físico e humano para que os preceitos constitucionais se possam concretizar. Uma série de fatores contribui para a não conformação dos valores trazidos pelas legislações em análise com aquilo que se costuma ver no cotidiano. Dentre eles, deve-se dizer que se trata de conceito relativamente novo, especialmente no âmbito municipal, o que se soma à toda herança negativa que a sociedade brasileira ainda traz da repressão sofrida durante a ditadura militar e a falta de informação, ou melhor, conscientização da população, bem como a generalização da idéia de que “todos roubam” e de que prevalece sempre a impunidade, decorrentes da falta de investimento que levam setores como a educação e a saúde a um nível de precariedade que ultrapassa os limites do absurdo. Diante do exposto, propõe-se a divulgação dos valores veiculados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como pela lei 10.028/2000 e análise da sua concretização no cenário jurídico hodierno, tomando como pressuposto o fato de que os direitos fundamentais que nos são tão caros atualmente, só vislumbram efetiva materialização se o Estado dispuser de recursos suficientes para efetuar as despesas que habitam o lado oculto das garantias constitucionais.

2. A lei de Responsabilidade fiscal e a lei 10.028/2000 2.1 Contexto histórico e político No que pese a existência de divergência doutrinária a respeito do surgimento da Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil, sob o enfoque jurídico, percebe-se que a sua origem decorre da previsão constitucional veiculada nos arts. 163 e 169 da Lei Maior de 1988 (Capítulo II: Das Finanças Públicas, Título VI: Da Tributação e do Orçamento), os quais passou a disciplinar, consubstanciando um novo e perene ambiente fiscal no País, como reação a ações econômicas externas que atingem o Brasil por conta da globalização. Nesse sentido, a LRF define os princípios básicos de responsabilidade, tendo por objetivo precípuo a fixação da responsabilidade fiscal como um dos princípios da gestão pública, e não meramente a fixação de um agente responsável. É neste sentido a disposição do §1º do art. 1º do diploma em comento, in verbis: A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas 1098

públicas, mediante o cumprimento de metas de resultado entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receitas, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.

Do texto, emanam os quatro princípios norteadores da administração pública, a saber: o planejamento, a transparência, o controle e a responsabilidade2. Nestes, contidas as noções de T

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prudência na gestão de recursos públicos, limites específicos referentes a variáveis como nível de endividamento, déficit, gastos e receitas anuais, bem como mecanismos prévios de ajustes destinados a assegurar a observância de parâmetros de sustentabilidade da política fiscal, determinando sanções, tanto na esfera individual quanto na de responsabilidade.3 T

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A LC 101/2000 sofreu grande influência das diretrizes do Fundo Monetário Internacional, segundo o qual a transparência é elemento singular na construção de uma boa governança. As experiências da União Européia, dos Estados Unidos e da Nova Zelândia, por sua vez, também contribuíram para a elaboração do texto da referida lei. a) Comunidade Econômica Européia – Tratado de Maastricht e protocolos, estabilidade e emprego, padrões e mecanismos de ajustes fiscais, limites de déficit (3% do PIB) e dívida (60 % do PIB), punições graduais aos Estados membros; b) Estados Unidos: Budget Enforcement Act (1990) – O Congresso fixa metas fiscais plurianuais e limites de gastos orçamentários por função Despesas obrigatórias e discricionárias são limitadas por mecanismos distintos: a) a legislação que cria as despesas obrigatórias deve se ajustar aos limites (processo ‘pay as you go’); b) as despesas discricionárias, também sujeitas a limites, estão submetidas a seqüestro automático; c) Nova Zelândia: Fiscal Responsibility Act (1994) – ênfase no controle social e transparência das estratégias e metas fiscais (aceita afastamentos temporários e justificados); Declarações de responsabilidade da Fazenda e Tesouro;4 T

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Da análise do Código de Boas Práticas para a Transparência Fiscal – Declaração de Princípios5 estabelecido pelo FMI, podemos concluir que “o debate público sobre a concepção e T

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Tal rol, contudo, não é taxativo, enquadrando-se dentro da principiologia constitucional administrativa do art. 37 da CF/88. 3

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Lei de Responsabilidade Fiscal: Manual de procedimentos para aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador: Conselheiro Hélio Saul Mileski. Novembro de 2000. In Site do BNDES. Disponível em: Acesso em: 11/11/11.; LONDERO, Daiane; MARCHIORI NETO, Daniel Lena; VELOSO, Gilberto. A Lei de Responsabilidade Fiscal e seu impacto sobre a ordem fiscal nos municípios do Rio Grande Do Sul. Disponível em Acesso em 15 de Novembro de 2011.; OLIVEIRA, Regis Fernandes de.Curso de Direito Financeiro.2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. TU

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BRASIL. Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Lei de Responsabilidade Fiscal: Manual de procedimentos para aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador: Conselheiro Hélio Saul Mileski. Novembro de 2000. In Site do BNDES. Disponível em: Acesso em: 11/11/11. TU

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Baseado em quatro princípios gerais da transparência fiscal: (a) definição clara de funções e responsabilidade; (b) acesso público à informação; (c) abertura na preparação, execução e prestação de contas do orçamento; (d) garantias independentes de integridade.

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sobre os resultados da política fiscal amplia o controle sobre os governos, aumentando a credibilidade nas ações estatais.” 6 T

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Introduzida, por conseguinte, em um contexto de mudança estrutural do regime fiscal nacional, apresenta conceitos inovadores e abrangentes7 como fundamento de uma administração T

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pública gerencial , com vistas ao alcance de um regime fiscal capaz de assegurar o equilíbrio T

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intertemporal das contas públicas. Trata-se, pois, de um código regulamentador da conduta gerencial nas finanças públicas, cujo objetivo é a redução do déficit público e a estabilização do montante da dívida pública em relação ao Produto Interno Bruto da economia.9 T

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Os conceitos dos quais foi precursora a Lei de Responsabilidade Fiscal, surgem, pois, como instrumentos de enfrentamento da crise fiscal, agravada a partir da década de 1980, que, repousando sobre o setor público, atingiu de forma peculiar o Governo Brasileiro, cuja reestruturação se busca implementar desde o pós-II Guerra Mundial (época dourada, Estado de bem-estar social), ainda que paulatinamente, uma vez que se trata de uma transformação de toda a mentalidade de intervenção excessiva do Estado na Economia, para superar o modelo burocrático de administração, já ultrapassado, juntamente com a idéia de Estado mínimo. Eis a necessidade da materialização da eficiência como princípio da administração pública, que consiste basicamente no uso eficiente da máquina do Estado. Com efeito, a Lei de Responsabilidade Fiscal é parte integrante do processo de reforma do Estado como instrumento de implemento da administração pública gerencial no que tange à necessidade de redução drástica do déficit público e como ferramenta de controle orçamentário e da qualidade da gestão. [...] promulgada no curso da execução de um orçamento, e, também, em meio à aplicação de leis anteriores que ainda estão surtindo seus efeitos, sem que tenham sido previstos mecanismos de adequação dos poderes e órgãos ante as novas exigências, impõe, por certo, dificuldades na sua aplicação. Não obstante as dificuldades na aplicação do novo diploma legal, emerge o inarredável e árduo desafio de adaptação à nova legislação...10 T

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LONDERO, Daiane; MARCHIORI NETO, Daniel Lena; VELOSO, Gilberto. A Lei de Responsabilidade Fiscal e seu impacto sobre a ordem fiscal nos municípios do Rio Grande Do Sul. Disponível em: Acesso em: 15 de Novembro de 2011. TU

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Abrangente, porque a disciplina do conjunto das principais questões referentes aos efeitos macroeconômicos e fiscais decorrentes do uso dos recursos públicos é válida para as três esferas de governo e para cada um dos seus Poderes. Inovadora, porque foi desenvolvida a partir da fixação de princípios definidores de uma gestão fiscal responsável, experiência que não tem precedentes na história brasileira e encontra poucos paralelos, ademais, todos recentes, em outros países. OLIVEIRA, Regis Fernandes de.Curso de Direito Financeiro.2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 462, 2007.

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Com ênfase na eficiência, eficácia e efetividade.

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BRASIL. Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Lei de Responsabilidade Fiscal: Manual de procedimentos para aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador: Conselheiro Hélio Saul Mileski. Novembro de 2000. In Site do BNDES. Disponível em: Acesso em: 11/11/11.; LONDERO, Daiane; MARCHIORI NETO, Daniel Lena; VELOSO, Gilberto. A Lei de Responsabilidade Fiscal e seu impacto sobre a ordem fiscal nos municípios do Rio Grande Do Sul. Disponível em: Acesso em: 15 de Novembro de 2011.; OLIVEIRA, Regis Fernandes de.Curso de Direito Financeiro.2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. TU

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BRASIL. Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Lei de Responsabilidade Fiscal: Manual de procedimentos para aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Coordenador: Conselheiro Hélio Saul Mileski. Novembro de 2000. In Site do BNDES. Disponível em:

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A lei 10.028/2000, por seu turno vem alterar o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de U

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1940 – Código Penal, a Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950, e o Decreto-Lei no 201, de 27 de U

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fevereiro de 1967, instituindo o que se conhece atualmente por Crimes contra as finanças públicas, demonstrando, pois, a seriedade do assunto em comento, posto que tutelado pelo Direito Penal, cujo emprego é adotado apenas em caso de extrema relevância do bem jurídico a ser protegido.

2.2 Relação entre os dois diplomas Como cediço, a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece regras de conduta a serem observadas pelos administradores públicos, cujo descumprimento enseja sanções de ordem institucional e pessoal. Aquelas, também chamadas estruturais, estão previstas na própria Lei Complementar em testilha, ao passo que estas, de acordo com a determinação do art. 7311 daquele T

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diploma, são veiculadas pela Lei n° 10.028 de 20 de outubro de 2000, oriunda do Projeto de Lei n° 621/99 que acompanhou a Lei de Responsabilidade Fiscal.12 T

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Por esta última previsão legal, restou modificado o art. 339 do Código Penal (denunciação caluniosa) e foram inserido o capítulo referente aos Crimes contra as finanças públicas (arts. 359-A a 359-H) no rol que trata dos Crimes contra a Administração Pública, bem como foram acrescentados oito novos tipos penais13 ao antigo rol constante do art. 1º do Decreto- Lei 201/67. T

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Sobre a Lei 1.079/50 , foram acrescentados também oito tipos penais em seu art. 10 (Capítulo VI T

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Os Crimes contra as Leis Orçamentárias), ampliando ainda o rol dos sujeitos ativos (arts. 39-A e 40A), e determinando a obediência ao rito previsto na lei 8.038/90, sendo possível o oferecimento de denúncia por todo cidadão, respeitada a prerrogativa de foro de tais autoridades (art. 41-A). Estabeleceu ainda, a Lei 10.028/2000, a cominação de pena de multa de 30% dos vencimentos anuais para prática de infração administrativa, como se depreende da leitura de seu art. 5º, cujo procedimento é de competência do Tribunal de Contas responsável pela fiscalização contábil, financeira e orçamentária da pessoa jurídica de direito público envolvida.15 T

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Não sendo possível refutar a singularidade das disposições trazidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, divisor de águas na história da Administração Pública Brasileira, percebe Acesso em: 11/11/11.; TU

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O presente trabalho se deterá às novidades trazidas pela Lei 10.028/2000, sendo pertinente salientar, todavia, que o descumprimento ao que dispõe a Lei nº 8.429/92 (Improbidade Administrativa) enseja punições como suspensão dos direitos políticos, a perda da função, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, bem como a impossibilidade de contratar com a Administração Pública e receber desta qualquer espécie de benefício. 12

QUEZADO, Paulo Napoleão Gonçalves. Os aspectos penais de Lei de Responsabilidade Fiscal – Inovações introduzidas pela lei nº 10.028 de 20 de Outubro de 2000. Disponível em: < www.uvc.org.br/downloads/1682329.doc> Acesso em 15/11/2011. 13

Crimes que podem ser cometidos pelos Prefeitos Municipais e por outras pessoas em co-autoria com eles.

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Define os crimes de responsabilidade e o processo de julgamento

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KHAIR, Amir Antônio. Lei de Responsabilidade Fiscal: As transgressões à Lei de Responsabilidade Fiscal e Correspondentes punições fiscais e penais. In Site do BNDES. Novembro de 2000. Disponível em: < http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/livro_lrf/Transgresso es.pdf> Acesso em: 11/11/2011. TU

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se a sua ratificação pela lei nº 10.028/2000, que prevê as sanções a serem aplicadas na hipótese gerenciamento irresponsável e fraudulento da coisa pública, que deve ser pautada pela transparência, a honestidade e a eficiência.

3. A necessidade de efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais 3.1 A nova relação entre Estado e Sociedade Civil A atividade financeira do Estado comporta dois elementos essenciais, qual sejam a receita e a despesa, ambos interligados pela lei orçamentária anual, a qual estima a arrecadação para o exercício financeiro, a qual é devida em seus maiores percentuais à tributação; e autoriza aquele segundo elemento. A lei orçamentária [pois] não institui os tributos, que são criados por outras leis, às quais a doutrina e a jurisprudência reconhecem natureza tipicamente normativa e eficácia mandatória. Disso decorre uma primeira constatação: um dos polos da equação orçamentária não está à disposição do Poder Executivo. [...] O outro polo da equação é constituído pela despesa. Aqui prevalece a tese de que a lei orçamentaria constitui apenas uma autorização para o Poder Executivo, que pode deixar de dar cumprimento às previsões de gasto, sem nem mesmo ter de justificar os motivos. 16 T

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Neste pesar, irrazoável conceder tratamento tão rigoroso ao primeiro elemento apresentado sem que se dispenda atenção semelhante ao segundo tema. Esta constatação filia-se, pois, ao próprio princípio democrático, quando exsurge a necessidade de uma conscientização social no sentido de que a cidadania fiscal vence a obrigação de pagar tributos para se alojar também na fiscalização popular dos gastos do Poder Público, exigindo maior atenção às decisões do Poder Executivo, notadamente no que tange às políticas públicas.17 T

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A razão para tanto reside também no fato de que imprescinde o Judiciário, para fornecer respostas eficientes aos escárnios de gestores públicos irresponsáveis que ainda intentam atribuir feições personalistas à Administração Pública, de uma sociedade consciente a tal respeito, de modo a pressionar os órgãos de representação coletiva a atuação tanto de forma concreta e individual quanto de forma geral, na reivindicação de melhores diplomas legais.

3.2 A responsabilidade do gestor público na consecução dos objetivos da República Federativa Brasileira O Estado, enquanto ente criado e destinado à realização do bem comum e do interesse público, servindo de instrumento à concretização destes últimos, no que pese a abrangência de tal

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MENDONÇA, Eduardo. Da faculdade de gastar ao dever de agir: o esvaziamento contramajoritário de políticas públicas. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, p. 384, 2010. 17

ibidem, p. 388.

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expressão, tem no gestor público o elo entre a teoria e a prática. Explica-se, é este o responsável por tornar possível na prática, o atendimento aos preceitos legais e constitucionais do ordenamento brasileiro a respeito da Administração Pública. Tendo o Poder Público, como objetivos fundamentais, a educação, a saúde, a defesa externa, a justiça, a habitação e o transporte, tudo fica muito prejudicado, uma vez que, não tendo recursos, ou sendo eles devidos, há fatal prejuízo à boa prestação de tais serviços. Em suma, há sério prejuízo à população, diante dos desvios dos ingressos públicos que, em decorrência da corrupção [e os crimes contra as finanças públicas, notadamente], deixam de vir para os cofres do Estado. Os prejuízos decorrem não só do não ingresso, mas de despesas aumentadas [...] renúncia fiscal [...] atos que prejudiquem o patrimônio público, seja conluiado com outros agentes [públicos], seja com particulares.18 T

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Já é entendimento corrente que a amplíssima gama de direitos a nós garantidos pela Constituição Federal exige do Estado a manutenção de toda uma estrutura destinada à materialização dos mesmos, de sorte que, nisto se justifica a função social dos tributos, de modo a ressaltar a relevância das receitas percebidas pelo Estado, uma vez que sem recurso público não há como viabilizar uma estrutura física e humana adequada ao atendimento da população e suas necessidades mais básicas.19 T

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É neste dizer que reside o liame entre a responsabilidade fiscal e criminal do gestor público e a efetivação dos Direitos Humanos Fundamentais: apenas erradicando antigas práticas de má administração da coisa pública e disseminando a consciência de uma ação gerencial responsável, transparente, planejada e eficiente, punindo aqueles que andam em desacordo com estas idéias, é que se pode prevenir o desvio de recursos a serem destinados à melhoria das condições básicas de vida de cada brasileiro, levando o nosso país a outro nível de desenvolvimento, fazendo, pois, jus à sua diversidade e riqueza. Desperdício e ineficiência, precariedade de serviços indispensáveis à promoção de direitos fundamentais básicos e vultuosos gastos em publicidade governamental e comunicação social não são fenômenos pontuais e isolados na Administração Pública brasileira, o que ganha maior relevância quando se tem em conta a grandiosidade dos números registrados em matéria de arrecadação tributária. Jurista e cidadão devem se preocupar como o Estado gasta tais recursos e que limites e condicionamentos deve observar ao fazê-lo.20 T

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Cada direito fundamental pressupõe, para a sua promoção e proteção, obrigações negativas ou positivas por parte do Estado, de sorte que toda ação estatal no sentido de sua concretização consubstancia-se em decisões acerca do dispêndio de recursos públicos, como dito. 18

OLIVEIRA, Regis Fernandes de.Curso de Direito Financeiro.2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 276, 2007.

19

MENDONÇA, Eduardo. Da faculdade de gastar ao dever de agir: o esvaziamento contramajoritário de políticas públicas. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010.

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BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, p. 104, 2010.

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A administração pública, incumbida, pois, de efetivar os comandos gerais na ordem jurídica e, em particular, promover os direitos fundamentais em caráter geral, deve transmitir aos jurisdicionados confiança e segurança quanto ao patrimônio que cujo titular é o próprio povo, erradicando idéias de comodismo a respeito da corrupção e outras mazelas que há muito vem comprometendo o cenário político brasileiro. Neste sentido, o descaso com os setores da saúde e educação é explicito e dispensa maiores apresentações. 21 T

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Diante do exposto, surge o questionamento: Como acreditar em uma melhora se comprometido está o nosso sistema eleitoral pela falta de conscientização popular sobre tudo que está relacionado à política e à coisa pública, o que é fruto do péssimo sistema de ensino, cuja otimização não é prioridade, com vistas à manutenção do sistema de poder que hoje está instaurado? Posto está o ciclo vicioso que impede o desenvolvimento esperado por todos nós. É conseqüência então deste raciocínio a convicção de que somente punindo efetivamente os transgressores da ordem jurídica no âmbito aqui em pauta que poderá se combater práticas tão odiosas e evitar a repetição do mesmo cenário político por tantas e tantas eleições. Isto posto, justifica-se a idéia de que o Judiciário é o Poder apto a exercer controle sobre tais práticas, em nada ferindo a autonomia dos demais poderes, mas sim reafirmando o princípio republicano e democrático, fundamento de toda a principiologia constitucional acerca da administração pública. É neste sentido a reflexão de Regis Fernandes de Oliveira acerca do pacto federativo brasileiro e a discussão a respeito da abrangência ou não dos municípios (o que se entende que sim, pela leitura do art. 1º da CF), dos desequilíbrios regionais, da guerra fiscal, do excesso de concentração de recursos da União e da manipulação dos partidos políticos dominantes, que alimentam o odioso ciclo de reprodução da corrupção antes colocado. Diz o autor: Em suma, a federação carece de redefinição. O pacto federativo está equivocado, seja na proporcionalidade da representação política, seja na concentração de recursos nas mãos da União, o que empobrece os Estados e Municípios. Desestabiliza-se o pacto, fruto de desvio na previsão de competências políticas estatuídas na Constituição.22 T

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Não é desarrazoada a crítica transcrita, contudo, antes de mudança tão drástica na atual configuração do Estado Brasileiro, é de fundamental importância a implementação de mecanismos de combate mais rudimentares, como é a própria punição dos administradores que não se enquadram nas exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal, com a revisão das penalidades veiculadas pela lei 10.028/2000, posto que, na prática, acabam por não intimidar aqueles que disseminam as más práticas no seio do setor público, seja pela falta de diligência na condução processual, que acaba por ensejar decisões judiciais que não resolvem o mérito da questão, seja pelo próprio sistema punitivo, que acaba por gerar a sensação de impunidade e insegurança 21

idem, p. 105.

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OLIVEIRA, Regis Fernandes de.Curso de Direito Financeiro.2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 467, 2007

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jurídica, ainda mais nos casos em comento, por se tratar da efetiva punição de pessoas financeiramente abastardas. Aqui é de se refletir a orientação do direito penal mínimo aplicada às infrações em comento23. Não se trata de mero desvio no orçamento público ou sanção por administração indevida T

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nos termos da lei, as conseqüências que as referidas práticas assumem no contexto social, especialmente quando se fala do Brasil, são extremados. Investimentos em segurança pública, por exemplo, são irrisórios se comparados à devastação que causa a falta de investimento em educação, cuja precariedade está diretamente ligada aos altos índices de criminalização, conclusões a que se chega qualquer homem médio que assiste ao noticiário pelas manhãs. Fato é que sempre houve quem corrompesse e quem se corrompesse em todas as sociedades conhecidas. Para isto, fatores pessoais e circunstâncias que é impossível resumir, sempre contribuem. Entretanto, há fatores gerais que a isso estimulam, como há outros que a tanto desencorajam, os quais se identificam com um pouco de bom senso e alguma experiência de vida [Manoel Gonçalves Ferreira Filho][...]O brasileiro tem comportamento paradoxal. É crítico acerbo da conduta antiética, pública ou privada. No entanto, ao mesmo tempo, comete comportamentos aéticos, diariamente [...] É bom notar que o problema não é brasileiro, mas universal. Um dos estímulos é a impunidade. Da mesma forma, o grau de reprovação. Se nada acontece ao servidor que recebe vantagem indevida, estando ciente seu colega, fica este estimulado a ter o mesmo comportamento, vendo o “sucesso” financeiro do outro. [Marcos Fernandes da Silva]24 T

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A falência do sistema penitenciário e os entraves processuais que encontram abrigo no ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, ratificam a sobredita sensação de impunidade, refletindo em um menor grau de reprovação social de tais condutas criminosas. Este fenômeno não é peculiar aos crimes contra as finanças públicas, mas assola o sistema processual brasileiro em geral no que se refere à seara penal. A concretização do ideal democrático, nos termos ora apresentados, remete-nos então à (falta de) liquidez do Direito Penal. A dinamicidade da sociedade atual, associada à imediaticidade das informações, nos coloca o fenômeno criminógeno brasileiro hodierno, cujo combate é o objetivo deste trabalho. Os crimes chamados “de colarinho branco” são os mais preocupantes na conjuntura brasileira contemporâneas e a ineficiência do sistema em oferecer respostas válidas oscila entre a falta de legislação e instituições competentes para combatê-los e a herança ainda vida das épocas da ditadura militar, de que é exemplo o extenso marco regulatório da nossa Constituição Federal. Ao se falar em legislação competente, registre-se, a melhoria deve ser encampada a nível processual e executório,

importando

esclarecer

que

acredita-se

nos

valores

trazidos

pela

Lei

de

Responsabilidade fiscal, desenvolvendo-se a discussão suscitada, por conseguinte, no que concerne a aplicação das penalidades aos seus transgressores, nos termos da Lei 10.028/2000. Há 23

Rol explicativo das punições fiscais e penais pode ser encontrado na obra de Amir Antônio Khair, citada nas referências do presente trabalho.

24

OLIVEIRA, Regis Fernandes de.Curso de Direito Financeiro.2 tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 2745, 2007.

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que se considerar, pois, as penas em todas as suas funções, como bem leciona Paulo Roberto Coimbra Silva: As normas jurídicas, de forma genérica, enquanto instrumentos que regulam os comportamentos humanos na coletividade e veículos de afirmação de determinados valores considerados relevantes ao bem comum, constituem um fenômeno humano universal, na medida em que exercem funções imprescindíveis à convivência humana, viabilizando a vida em sociedade. Dentre as mais relevantes virtudes das normas jurídicas, refulge sua utilidade conservadora, na medida em que garantes a manutenção da ordem social. Paradoxalmente, merece destaque sua função transformadora, revelando-se um dos principais agentes da mudança social, ao dirigir, ordenar e, por vezes, impulsionar o processo de desenvolvimento. Não menos importante é a sua virtude educativa, uma vez que põe em evidência, em seus preceitos, a conduta mais conveniente para a convivência social. [...] observase no ordenamento jurídico uma crescente ampliação – em número e, por vezes, em intensidade – das normas sancionadores, como decorrência inexorável do aumento da diversidade e complexidade das relações humanas disciplinadas pelo direito positivo [...] As sanções exercem, pois, no direito uma utilidade plúrima, destacandose dentre as suas funções a preventiva, a repressiva, a reparatória, a didática, a incentivadora e a assecuratória.25 T

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Ao se falar no papel preventivo, deve-se ter em vista que “a sanção tem a virtude de desestimular o rompimento da ordem jurídica, mediante a intimidação de seus possíveis infratores a se sujeitarem aos seus efeitos indesejáveis efeitos.”26 Uma vez aplicada in concreto, por seu turno, T

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a sanção assume os encargos punitivo/repressivo e educativo, isto é, didático, aquele porque provê um castigo ou aflição como resposta aos clamores sociais retributivos e este pela razão de que contribui, ou pelo menos deve contribuir, para a educação e correição do infrator, “auxiliando-s a apreender as lições a que não se dispôs espontaneamente seguir, impedindo-o, assim, de ser nocivo à sociedade no futuro.”27 Sobre a função reparadora, por sua vez, deve-se remeter para as T

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hipóteses cujo objetivo é a indenização do dano ocasionado à vítima do ato ilícito, quando a reparação é impingida ao perpetrante. As duas outras funções restantes apresentam em seu bojo uma acepção mais ampla ao que geralmente se entende por sanção, de sorte que “o pressuposto da sanção não seria apenas o ilícito, mas também os atos e fatos convenientes ao ordenamento jurídico, por razões econômicas, sociais ou políticas”28, quando surge a função incentivadora ou T

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premial, destinando-se a função assecuratória, como o próprio nome já demonstra, aos casos em que a eficácia da norma impositiva resta comprometida pela ocorrência de fato previsto pelo legislador, como passível de comprometer, dificultar, ou inviabilizar a realização de direitos considerados caros, motivo pelo qual a estes são imputadas conseqüências com vistas a garantir sua satisfação.29 T

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25

SILVA, Paulo Roberto Coimbra. Direito Tributário Sancionador. São Paulo: Quartier Latin, p. 60, 2007.

26

idem, p. 61.

27

idem, p. 68.

28

ibidem, p. 70.

29

idem, p. 61-76.

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Em prol do corte metodológico imposto ao presente trabalho, as sanções serão adrede abordadas nas quatro primeiras funções apresentadas alhures. A punitiva quando da repreensão ao gestor que malversar os recursos públicos, emergindo então a função educativa nos termos já apresentados. Ao caráter preventivo das normas sancionadoras, outrora, remete-se quando da discussão sobre os efeitos das penas privativas de liberdade imputadas aos crimes contra as finanças públicas e seus reflexos na sociedade, em tangência ao grau de reprovabilidade das condutas que afrontam os princípios da Administração Pública e os valores da LRF. A função reparatória ou indenizatória, sem maiores delongas, é aquela que permeia o argumento principal na associação da responsabilização criminal e fiscal do gestor público como meio de concretizar os direitos fundamentais, uma vez que as condutas ilegais vilipendiam diretamente os recursos públicos disponíveis para a materialização das políticas públicas. Com base no entendimento sobreposto, apresenta-se o papel do Judiciário, como estímulo inicial a corroborar os valores inaugurados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, ratificada pelas sanções trazidas na Lei 10.028/2000, cuja observância e efetiva aplicação, atendendo ao disposto na Lei Maior, permite maiores investimentos em sede de políticas públicas, de modo a satisfazer os clamores sociais e promover atuações estatais exemplares neste particular.

4. O papel do poder judiciário Como apresentado, toda ação estatal envolve gastos públicos e a necessidade de se estabelecer em que e como gastar o dinheiro público disponível justifica-se pelo fato de que o orçamento do Estado é limitado. Sendo as políticas públicas indispensáveis à garantia e promoção dos direitos fundamentais tutelados pela Carta Magna, impede destacar os elementos que interligam a concretização destes direitos e a ação estatal, permitindo, então, o controle por parte do Poder Judiciário. Vejamos (i) a Constituição estabelece como um de seus fins essenciais a garantia e a promoção dos direitos fundamentais; (ii) as políticas públicas constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma sistemática e abrangente; (iii) as políticas envolvem gasto de dinheiro público; (iv) os recursos públicos são limitados e é preciso fazer escolhas; logo, em certa medida, (v) a Constituição vincula as escolhas em matéria de políticas públicas e o gasto dos recursos públicos. [...] A definição do conjunto de gastos do Estado é exatamente o momento no qual a realização dos fins constitucionais poderá e deverá ocorrer. [...] A impossibilidade de controle jurídico e jurisdicional das políticas públicas acabaria por esvaziar a normatividade de boa parte dos comandos constitucionais relacionados com os direitos fundamentais, cuja garantia e promoção dependem, em larga escala, das políticas públicas.30 T

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30

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, p. 106-7, 2010.

1107

O controle supracitado e que ora se defende é alvo de divergências devido ao fato de que a Constituição Federal cede espaço à ampla interpretação por parte dos agentes públicos e da sociedade, uma vez que não define especificamente as políticas públicas a serem implementadas em cada caso. Aí residem as críticas a intervenção do Poder Judiciário, as quais seriam de três ordens principais, a saber: 1. As que envolvem a discussão sobre a teoria da Constituição, seu papel e alcance; 2. As que oferecem óbices de natureza predominantemente filosófica; e 3. As críticas operacionais. O primeiro grupo tem papel limitado em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, apresentando um odioso messianismo jurídico, devendo-se atentar para o fato de que direito constitucional e política majoritária são fenômenos diversos. No que toca ao segundo grupo, que apresenta o controle jurídico como uma presunção de melhores decisões do judiciário em detrimento do legislativo, olvida-se de que há hipóteses que versam sobre padrões e consensos morais ou conhecimentos técnicos ou científicos consolidados, de modo que a legitimidade do controle jurídico é reforçada quando alguma opção política não consegue se justificar racionalmente a luz do fundamento moral que é a centralidade do homem. Acresce esse argumento o fato de que transpassado o juízo valorativo acerca do conteúdo da política publica escolhida, a lisura na utilização dos recursos públicos deve ser observada, âmbito no qual não há que se falar em discricionariedade política.31 O terceiro grupo, por seu turno, mostra-se mais pertinente, de modo T

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que discorre-se sobre o mesmo em seção apartada. Construir um conjunto de ações governamentais, direcionadas para desvelar um Estado Democrático de Direito, exige por parte dos intérpretes e operadores do direito, disposição para fazer acontecer esta multiplicidade de indicações constitucionais. Mais uma vez deve ser ressaltado: para que as políticas públicas possam desvelar um Estado Democrático de Direito, o conjunto de sentidos da tradição do constitucionalismo moderno aparece como via de acesso crucial. Destarte, tal constitucionalismo há de ser funcionalizado como fundamento hermenêutico de tais programas de ação governamental, pois nenhuma prática administrativa poderia estar divorciada destas indicações empíricas, sob pena de faltar-lhes uma autêntica legitimidade. [...] Efetivamente, duas grandes dimensões com relação ao tema das políticas públicas necessitam urgentemente de maior problematização não apenas por parte dos juristas, mas dos próprios operadores do direito e agentes públicos: 1) as relações de sentido entre políticas públicas e Constituição e 2) a vinculação entre políticas públicas e as ações da Administração Pública.32 T

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A implementação das políticas públicas que traduzam fielmente os direitos fundamentais dependem, portanto, como dito, de uma relação sem precedentes entre Estado e Sociedade Civil, cabendo a esta a corresponsabilidade de fazer acontecer a cidadania e àquele, o desenvolvimento em níveis mais amplos de sua capacidade de cumprir seus papéis mais relevantes, garantindo em

31

idem.

32

OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, p. 293-4, 2010.

1108

concreto as garantias já tuteladas constitucionalmente. Na conjuntura de um Estado Democrático de Direito, então, o controle das políticas públicas torna-se possível no que concerne tanto ao seu procedimento, quanto ao seu próprio conteúdo, posto que este não é objeto de deliberações majoritárias, e o Judiciário, longe de agir de forma ilegítima quando da sua proteção, não só pode como deve intervir no processo de alocação dos recursos públicos quando é visível a inobservância dos objetivos precípuos da República Federativa do Brasil.33 T

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Um direito social concretizado não é menos jurídico do que o direito à repetição de um tributo inconstitucional ou a uma indenização pecuniária por danos materiais provocados por conduta de agente público. O judiciário está sujeito a limites, em qualquer caso, e talvez estes sejam mais intensos do que os verificados na aplicação dos direitos individuais clássicos. Mas não se trata de mundos apartados. Também aqui se cuida do reconhecimento de direitos definidos pela ordem jurídica, e não de uma caridade de Estado.34 [grifo próprio] T

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Com esta afirmação, passa-se à análise da última crítica retro citada.

4.1 Improcedência da crítica operacional Prima facie, não se pode refutar de forma simplista argumentos que refletem a falta de condições ou elementos para avaliar a realidade da ação estatal como um todo por parte do juiz ou do jurista, somado ao fato de que nem sempre são as classes menos favorecidas a postular em juízo, apresentando os problemas inerentes à relação Microjustiça e Macrojustiça, com eventual deslocamento de recursos de políticas públicas gerais, seja por imprevisão dos reflexos antecipados que uma determinada decisão pode desencadear, seja por desconhecer todas as necessidades a serem suportadas pelos recursos públicos, ou mesmo a impossibilidade de proceder a investigações completas e aprofundadas, não sendo de sua alçada um planejamento global da atuação dos poderes públicos. Face ao exposto, deve-se ter em foco qual o objeto a ser juridicamente controlado (que conduta ou bem será exigido, de quem e sob que fundamento), bem como a modalidade de controle que se pretende implementar (ambiente processual no qual a discussão será posta e, consequentemente, os efeitos objetivos e subjetivos de eventuais decisões proferidas).35 T

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No que tange aos objetos específicos de controle, pode-se dizer que se agrupam em duas categorias. 33

MENDONÇA, Eduardo. Da faculdade de gastar ao dever de agir: o esvaziamento contramajoritário de políticas públicas. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010.; OHLWEILER, Leonel Pires. Políticas e controle jurisdicional: uma análise hermenêutica à luz do Estado Democrático de Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010.

34

MENDONÇA, Eduardo. Da faculdade de gastar ao dever de agir: o esvaziamento contramajoritário de políticas públicas. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, p. 374, 2010.

35

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010.

1109

No primeiro bloco, será possível controlar, em abstrato, (i) a fixação de metas e prioridades por parte do Poder Público em matéria de direitos fundamentais; em concreto, será possível cogitar do controle (ii) do resultado final esperado das políticas públicas em determinado setor. No segundo grupo, é possível controlar ainda três outros objetos: (iii) a quantidade de recursos a ser investida, em termos absolutos ou relativos, em políticas públicas vinculadas à realização de direitos fundamentais; (iv) o atingimento ou não das metas fixadas pelo próprio Poder Público; e (v) a eficiência mínima na aplicação dos recursos públicos destinados a determinada finalidade. [...] Os dois primeiros objetos de controle se ocupam do conteúdo das políticas públicas em si, ao passo que os três últimos pretendem controlar aspectos do processo de decisão e execução das políticas públicas levado a cabo pelo Poder Público.36 T

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No que remete às modalidades de controle, destacam-se sobremaneira as ações coletivas e abstratas porque capazes “não apenas de evitar um sem número de demandas individuais, livrando o Judiciário de uma sobrecarga adicional, mas também os próprios Poderes Públicos de responderem a uma quantidade significativa de ações individuais.”37 Há que se considerar ainda que T

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os legitimados para a propositura de tais demandas, ou seja, o Ministério Público e as associações, gozam de condições consideravelmente mais avantajadas para expor e discutir o contexto geral das políticas públicas, isto é, a macrojustiça, favorecendo, pois, a isonomia e evitando as distorções que eventuais processos individuais podem gerar na distribuição de bens na sociedade, sobressaindo tais modalidades tanto sob a ótica das críticas estudadas, quanto ao ponto de vista do sistema jurídico. 38 T

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4.2 Sobre a aplicabilidade da lei 10.028/2000 e a concretização dos valores da Lei de Responsabilidade Fiscal pelo Judiciário Antes da análise meritória a que se propõe este trabalho, é essencial a observação de que os diplomas legais sob análise são relativamente novos, o que dificulta uma dissertação aprofundada sobre a posição do judiciário em sua configuração atual no que concerne à punição de agentes públicos infratores da Lei de Responsabilidade fiscal, de modo que se apresentam decisões muito pontuais seja pela dificuldade da aplicação da legislação em testilha e as discussões que a mesma suscita, seja pela ausência de ações judiciais em trâmite, posto que número expressivo das decisões dos sodalícios pátrios é no sentindo de esclarecer a interpretação adotada e a forma de aplicação das exigências trazidas pela LRF, de sorte que as divergências são de cunho notadamente teórico e sua análise jurisprudencial cede espaço à doutrinária. Não obstante, para ilustrar os argumentos apresentados acima, são trazidas à baila duas decisões do Superior Tribunal de Justiça:

36

idem, p. 116.

37

idem, p. 130.

38

No que pese serem menos aconselháveis as ações individuais, elas podem ser aplicadas em relação a objetos específicos de controle, como o resultado esperado das políticas públicas, sendo, neste caso, a mais usual no Brasil no cenário hodierno. Idem.

1110

AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. DIREITO PENAL E DIREITO PROCESSUAL PENAL. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGALIDADE. PROVA ILÍCITA. INOCORRÊNCIA. PROCEDIMENTO DE NATUREZA INQUISITORIAL. VIOLAÇÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. INOCORRÊNCIA. ARTIGO 359-D DO CÓDIGO PENAL. DESPESA NÃO AUTORIZADA POR LEI. ATIPICIDADE. PREVARICAÇÃO. ATIPICIDADE E INÉPCIA FORMAL DA DENÚNCIA. DENÚNCIA REJEITADA. [...] 8. O tipo do artigo 359-D do Código Penal reclama, para sua configuração, a ordenação de despesa "não autorizada por lei". 9. O complemento legal necessário do tipo inserto no artigo 359-D do Código Penal, por força de sua própria letra, há de dizer direta e imediatamente da despesa proibida, em nada se identificando com norma jurídica outra, mesmo se referente a ato mediato que possa ser relacionado com a despesa pública, como seu antecedente, ainda que necessário. 10. Requisita, por sem dúvida, o tipo penal norma legal complementar de proibição expressa da despesa, afastando interpretações constitutivas e ampliadoras da tutela penal, que desenganadamente violam o princípio da legalidade, garantia constitucional do direito fundamental à liberdade, enquanto limite intransponível do ius puniendi do Estado. 11. Faltasse outro argumento, não seria, como não é, outro o resultado da interpretação sistemática do tipo do artigo 359-D do Código Penal, especialmente da elementar "despesa não autorizada por lei", pois que a Lei nº 10.028/2000 não só acrescentou o Capítulo IV ao Título XI do Código Penal, Dos Crimes contra as Finanças Públicas, mas também os itens 5 a 12 ao artigo 10 da Lei nº 1.079/50, relativamente aos crimes de responsabilidade do Presidente dos Tribunais, e os incisos XVI a XXIII ao artigo 1º do Decreto-Lei nº 201/67, aperfeiçoando especificamente a tutela jurídica das finanças públicas, que parte da Constituição da República, Capítulo II do Título VI, Das Finanças Públicas, principalmente o artigo 163, inciso I, e passa pela Lei Complementar nº 101/2000, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. 12. Há de se declarar atípicas as condutas imputadas pelo Ministério Público Federal aos denunciados, que, de qualquer modo, quando e se contrataram, o fizeram, na letra mesma da denúncia, pautados "(...) em inúmeras leis estaduais que supostamente 'autorizariam' a criação dos cargos e, conseqüentemente, a nomeação dos servidores", às quais se acresceram leis orçamentárias discutidas e votadas pela Assembléia Legislativa, não se sabendo, afinal, qual a realidade e a verdadeira causa da situação legal-institucional da Justiça Maranhense, existente há mais de duas décadas de anos e sem qualquer notícia de propositura de ação civil pública ou de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público pelos legitimados. 13. Não se imputando o crime de prevaricação como definido na lei penal, porque não há confundir a prática de ato contra disposição expressa da lei, com o fundado em lei abstratamente afirmada inconstitucional, de rigor a rejeição da demanda penal. 14. É inepta a denúncia, por infringente ao artigo 41 do Código de Processo Penal e ao inciso LV do artigo 5º da Constituição da República, que não particularizou os atos de nomeação, não demonstrou a sua irregularidade à luz do seu título jurídico, não definiu o objeto do interesse ou do sentimento satisfeito pelos agentes, nem estabeleceu o alegado grau de parentesco que existiria entre os nomeados e o Presidente do Tribunal ou outro membro do Poder Judiciário, não ultrapassando os limites da acusação genérica. 15. Denúncia rejeitada. (APN 200401801883 APN - AÇÃO PENAL – 398 Relator HAMILTON CARVALHIDO. CORTE ESPECIAL STJ DJ DATA:09/04/2007 PG:00218) AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. ORDENAÇÃO DE DESPESA NÃO AUTORIZADA POR LEI. PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE (APLICAÇÃO). ART. 359-D DO CÓD. PENAL (NORMA PENAL EM BRANCO). NORMA INTEGRADORA (FALTA). CRIME (NÃO-OCORRÊNCIA). DENÚNCIA (REJEIÇÃO). 1. A lei penal incriminadora não tem efeito retroativo. Assim, porque, à data da prática dos atos por um dos acusados, não existia lei que tipificasse sua conduta como crime, nem deveria ter sido oferecida denúncia em relação a ele. 2. O art. 359-D, segundo o qual é crime "ordenar despesa não autorizada por lei", consiste em norma penal em branco, uma vez que o rol das despesas permitidas e das não-autorizadas haverá de constar de outros textos legais, entre os quais, por exemplo, o da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n° 101/00). 3. Se, na peça acusatória, 1111

inexiste referência à norma integradora, falha é a denúncia. 4. Ademais, quando devidamente explicável a despesa, deslegitima-se a possibilidade de punição da conduta ao menos no âmbito penal. A inexistência de autorização de despesa em lei constitui, tão-somente, indício de irregularidade. Para se criminalizar a conduta, é necessária a existência de lesão não-justificada ao bem jurídico, isto é, às finanças públicas, o que, no caso, não ocorreu. O fato narrado evidentemente não constitui crime. 5. Denúncia rejeitada. (APN 200400293173 APN - AÇÃO PENAL – 389 Relator NILSON NAVES. Corte Especial STJ. DJ DATA:21/08/2006 PG:00215)

Da leitura do texto de ambas as decisões, percebe-se a constatação de vícios formais, por parte do colendo tribunal, ora explicando a interpretação a ser dada aos dispositivos legais, ora destacando vícios na própria denúncia, deixando exposta a presença de lacunas legais. Por conseguinte, a responsabilidade pelo exemplo inicial outrora dito necessário, não pode ser atribuído aos magistrados quando não lhe são fornecidos os elementos básicos para análise do processo e proteção de garantias constitucionais outras como o contraditório e a ampla defesa, de modo que não há que se falar em ponderação de valores constitucionais em conflito, mas sim cuidados básicos para que se chegue a conclusão mais próxima da realidade, evitando-se juízos valorativos do próprio julgador. Nestes termos, essencial a maior diligência da Polícia e do Ministério Público, quando das investigações e redação da denúncia. Outro ponto a ser abordado, por certo, é o fato de as penas cominadas aos crimes contra as finanças públicas acabarem por ser substituídas por penas restritivas de direito, nos termos do art. 44 do Código Penal, não configurando, na prática, sanção que corresponda nem ao caráter punitivo e muito menos ao caráter preventivo. É neste contexto que se apresenta a maior rigorosidade das penas privativas de liberdade e outras sanções que recaiam sobre o patrimônio particular do condenado, a exemplo da multa prevista no §1º do art. 5º da Lei 10.028/2000, como medida que satisfaz tanto ao Estado quanto à sociedade, posto que se vê o transgressor efetivamente penalizado e os danos ao erário público ressarcidos, o que retorna à sociedade como recursos disponíveis para a concretização dos direitos fundamentais. Nesta esteira, privações patrimoniais como apropriação de bens imóveis por parte do Estado, ou impossibilidade de receber vantagens patrimoniais por meio de contratos civis, com vistas a reverter o padrão financeiro galgado às custas da má administração dos recursos públicos, leia-se, desvios e prática de condutas ilícitas à própria população. Há que se esclarecer, contudo, que a aplicação de obras voltadas à caridade não são rechaçados, mas cumprem seu papel com louvor se bem fiscalizadas e se a sua prática realmente corresponder aos danos causados. A aplicação da lei 10.028/2000, perlustre-se, deve de fato ratificar os valores apresentados na Lei de Responsabilidade Fiscal e não recair em punições que não assumam o caráter repressivo, posto que só eleva a sensação de impunidade e diminui a reprovabilidade dos atos corruptos, como já dito linhas acima, estimulando o ciclo vicioso de práticas irresponsáveis e obscuras na Administração Pública não só entre os gestores públicos, mas entre os próprios servidores, como reflexo da própria sociedade brasileira. Nesse contexto, sua aplicação deve ser associada a revisão 1112

da legislação ora vigente e a melhoria do sistema carcerário, no intuito de ceder ao processo penal maior celeridade, debruçando-se em questões que cingem,a nível ilustrativo, o sistema de nulidades processuais e o emprego desmedido do Habeas Corpus. Outra solução a se considerar neste respeito, impende ressaltar, seria a cogestão com empresas privadas, assumindo o Estado o papel de fiscalizador, cooperação esta que se destinaria a viabilizar a existência de trabalho para os reeducandos dentro e fora das prisões, por exemplo, medida esta de eficácia consagrada em patamares doutrinários, por devolver ao preso sua dignidade, por proporcionar uma ocupação saudável do tempo inclusive com rendimentos lucrativos.

5. Conclusões O descaso com a fiscalização das despesas públicas relaciona-se diretamente com a inexistência de mecanismos eficazes de controle jurídico da aplicação dos recursos, em que os já existentes assumem índole puramente formal, fator este que se associa à ausência de controle político eleitoral, gerando um ciclo nocivo no desenvolvimento das políticas públicas e a efetivação dos direitos sociais, apoiando-se em argumentos como a reserva do possível, a nível material e outros tantos a nível processual penal. Além disso, também a própria legislação que insere sanções aos crimes contra as finanças públicas carece de revisão, posto que não correspondem à relevância do bem jurídico tutelado, gerando sensação de impunidade e diminuindo o grau de reprovabilidade das práticas corruptas entre os brasileiros. Por este motivo, e pelo fato de vivermos em um Estado Democrático de Direito, o Judiciário não pode se imiscuir do controle das políticas públicas levadas a cabo pelo Legislativo, restando superadas as críticas ao controle jurisdicional destas últimas, ainda que este pensamento seja permeado por divergência doutrinária. Este controle das políticas públicas associa-se, por conseguinte, à aplicação da Lei 10.028/2000 como norma que ratifica os valores da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que a punição dos gestores públicos irresponsáveis a nível fiscal e criminal, representa maior cuidado quanto ao destino dos recursos públicos, tão essenciais ao desenvolvimento de uma sociedade na qual os direitos sociais são garantidos e efetivamente concretizados por parte do Poder Público. De todo o exposto, depreende-se que a alteração legislativa não é suficiente para empreender uma mudança de comportamentos sociais. Associada a melhora da técnica legislativa brasileira, o cenário estrutural que se espera do nosso país, em termos de transparência e eficiência, está atrelado a necessidade de novos exemplos, cuja multiplicação desvela a sedimentação de uma cultura de honestidade, manifestação última do modelo de administração pública gerencial. Neste contexto, apresenta-se o Poder Judiciário como agente responsável pela iniciativa em direção à modificação estrutural sonhada de forma visionária pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

1113

Referências bibliográficas BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti. Direitos Fundamentais, orçamentos e “reserva do possível”. 2 ed. Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. 412 p. p. 101-132. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In Presidência da República, Casa Civil, Subchefia

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A análise da eficácia dos direitos e garantias fundamentais com base nas teorias constitucionais Francieldo Pereira da Luz1 Enoque Feitosa Sobreira Filho2

Resumo O presente artigo objetiva mostrar novos mecanismos jurídicos que viabilizem uma aplicação do direito, visando a eficácia das normas que tratam dos direitos e garantias fundamentais. O período de redemocratização do Brasil teve como reflexo a elaboração da Constituição de 1988 que implementou uma nova ordem jurídica denominada por alguns doutrinadores de neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional. Nesse sentido, pretendemos inicialmente realizar um estudo acerca do período de redemocratização do Brasil, no intuito de contextualizar as novas concepções de interpretação do direito. Em um segundo momento, propomos analisar as premissas do neoconstitucionalismo que se baseiam no marco teórico, filosófico e histórico. No marco teórico, há o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. No marco filosófico foi instaurado o pós-positivismo que visa realizar uma leitura do direito de forma ligada ás concepções sociais, históricas e éticas para que haja a prevalência dos direitos fundamentais. Por fim, o marco histórico refere-se a aos movimentos de redemocratização que implantaram o Estado Democrático de Direito. Nossas considerações estão embasadas nos estudos de BARROSO (2009), CALSAMIGLIA (1998), NUCCI (2009) e SARMENTO (2011). Os resultados desse estudo demonstram que a aplicação do direito não deve apenas estar aliada a um método de subsunção, mas um resultado da relação estabelecida com os fatores históricos, sociais e éticos. Alem disso, observamos que a interpretação segundo o neoconstitucionalismo almeja, principalmente, garantir a eficácia das normas constitucionais que refere-se aos direitos e garantias previstas na Carta Magna de 1988. Palavras-Chave: Redemocratização; Neoconstitucionalismo; Eficácia dos Direitos; Garantias Fundamentais.

1 T

Bacharelando em direito (UFPB); [email protected]

T

U

T

2 T

U

Professor Dr. Universidade Federal da Paraíba; orientador.

1115

1. Introdução O Neoconstitucionalismo é identificado como um importante instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, pois introduz uma nova práxis no meio jurídico no tocante à pretensão de aplicar o direito, visando, sobretudo, a proteção da dignidade humana. O direito passa a ser analisado em paralelo com questões éticas, filosóficas e sociológicas, tendo uma implementação de uma nova ordem jurídica pautada na supremacia das normas constitucionais e, principalmente, a aplicação de princípios constitucionais para viabilizar a eficácia imediata de normas que fazem menção aos direitos civis, políticos, sociais e coletivos ou difusos. Nesse sentido, o propósito desse artigo é discutir os meios proporcionados pelo neoconstitucionalismo para garantir a máxima eficácia dos direitos fundamentais. Além disso, verificar os reflexos desse novo paradigma jurídico no ordenamento infraconstitucional, pois esse novo direito constitucional tem como referência a supremacia constitucional, a expansão da jurisdição constitucional, a implementação do Estado Democrático de Direito e a elaboração de um novo modelo de interpretação das normas e princípios constitucionais. O presente artigo propõe, através de uma metodologia de pesquisa bibliográfica, analisar a posição de vários doutrinadores acerca do neoconstitucionalismo com a finalidade de demonstrar o modo como este novo paradigma contribui para a tutela dos direitos essenciais à pessoa humana. Primeiramente,

fará

a

leitura

de

doutrinas

que

abordem

a

questão

do

neoconstitucionalismo. Depois, discorrerá sobre a evolução da tutela dos direitos fundamentais no âmbito jurídico e analisará criticamente esse novo paradigma na jurisdição constitucional. Por fim, demonstrará a contribuição desse novo direito constitucional para a eficácia dos direitos e garantias fundamentais.

2. O processo de evolução do constitucionalismo Ao analisar, de forma histórica, a evolução do constitucionalismo constata-se as mudanças sofridas pela jurisdição constitucional no âmbito da tutela jurídica dos direitos fundamentais. Dessa forma, ao analisar as alterações sofridas pelo direito constitucional, faz-se necessário um estudo sobre os movimentos constitucionais. O constitucionalismo moderno pode ser compreendido como movimento que busca, essencialmente, dois propósitos: a limitação do poder estatal e a elaboração de uma constituição. Assim, a procura pela implementação de instrumentos que impedissem a ação arbitrária e autoritária do Estado na figura do governante se tornou

o objetivo dos movimentos

constitucionais. Apesar de existir alguns constitucionalismos que não possuem uma constituição escrita como o inglês, mas o modelo ocidental de constitucionalismo tinha como finalidade a

1116

instauração de um documento escrito em que houvesse tutelados os direitos e garantias fundamentais em face de atos arbitrários do estado. Ao conferir uma definição rigorosa do constitucionalismo, Canotilho (1993) afirma: Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Numa outra concepção – histórica-descritiva – fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo, a partir do século XVIII, questiona nos planos políticos, filosóficos e jurídicos os esquemas tradicionais do esquema político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma forma de ordenação e fundamentação do poder político (Canotilho, op.cit, p. 51-52).

O movimento constitucional, na sua concepção moderna, possui suas origens relacionadas com um dado período histórico e espaços culturais e geográficos diferenciados. Assim, não existe um único tipo de constitucionalismo, mas vários constitucionalismos (o constitucionalismo francês, o constitucionalismo americano e o constitucionalismo inglês). Dessa forma, verifica-se que o constitucionalismo moderno constitui uma forma de oposição ao constitucionalismo antigo em que havia uma desproporção de poder atribuído ao governante, fato propiciador de lesões aso direitos fundamentais, e os mecanismos de proteção da sociedade em face desse autoritarismo. No percurso dos movimentos constitucionais surgem alguns elementos que proporcionam uma análise da realização dos princípios e das regras da lei fundamental de um país. Dentre esses fatores, existe o neoconstitucionalismo que vem averiguar o processo de efetividade das normas constitucionais, principalmente, as que tratam dos direitos e garantias fundamentais. Com relação ao assunto, Canotinho (1993) defende: O direito constitucional, como qualquer prática social humana, tem as suas modas. Há que estar atento a elas, porque andar aqui na “moda” pode representar um modo privilegiado de testar a constituição e as normas do direito constitucional na sua interação com outros subsistemas sociais, como o sistema econômico, o sistema social e o sistema cultural (Canotilho, op.cit, p. 25).

Portanto, o novo direito constitucional como fenômeno da contemporaneidade está embutido da missão de garantir a eficácia das normas constitucionais que traduzam os direitos inerentes à pessoa humana. Além disso, possui o objetivo de implementar uma nova forma de analisar o direito em consonância com os fatores sociais, políticos e sociológicos.

3. O Neoconstitucionalismo e a tutela dos direitos fundamentais O direito é um fenômeno que dia a dia sofre mudanças, visando se adequar da melhor forma possível ao fatores sociais. Assim, o direito reflete idéias, paradigmas e polêmicas resultantes da sociedade ao qual está inserido. 1117

Em consonância com essa afirmação Barroso (2009) afirma com precisão: O direito é uma invenção humana, um fenômeno histórico e cultural, concebido como técnica de solução de conflitos e instrumento de pacificação social. Onde quer que haja um agrupamento humano, normas de organização e conduta tendem a desenvolver-se, ainda que de forma tácita e precária (BARROSO, op.cit, p. 229).

Nas últimas décadas, aflorou no mundo jurídico um debate a cerca da aplicação, da interpretação e da estruturação do direito, pois houve um inadequação do direito com os novos valores sociais. O Brasil passou por um regime autoritário em que se viu várias agressões aos direitos essenciais ao ser humano em decorrência de atos arbitrários contra cidadãos. Nesse período, a Constituição representava um convite ao atuar dos poderes políticos, sendo um documento expositivo de normas que deveriam ser observadas caso fosse conveniente. Esses fatores somados com outros elementos internacionais como a Segunda Guerra Mundial, o Nazismo e o Facismo, em que houve a desvalorização da dignidade da pessoa humana sob o fundamento de uma legalidade e a busca a qualquer preço pela conquista da hegemonia econômica, política e militar, fez necessário pensar uma nova estrutura jurídica, assim como elaborar uma nova constituição que viesse a colocar o homem juntamente com a dignidade humana no centro de sua estruturação. Na linha desse pensamento convém invocar o pensamento de Daniel Sarmento (2006): O direito brasileiro vem sofrendo mudanças profundas nos últimos tempos, relacionadas à emergência de um novo paradigma tanto na teoria jurídica quanto na prática dos tribunais, que tem sido designado como 'neoconstitucionalismo'. Estas mudanças que se desenvolve sob a égide da Constituição de 88, envolvem vários fenômenos diferentes, mas reciprocamente implicados, que podem ser sintetizados: reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e a valorização da sua importância no processo de aplicação do Direito, rejeição ao formalismo, recurso mais freqüente a métodos ou 'estilos' mais aberto de raciocínio jurídico: ponderação, tópica e teoria da argumentação e constitucionalização do Direito, com a irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo os relacionados aos direitos fundamentais, para todos os ramos do ordenamento (...) (SARMENTO, op.cit, p. 1).

O período de redemocratização no Brasil teve como marco a elaboração de uma constituição caracterizada pela ampliação de seu escopo referente a proteção dos direitos fundamentais, assim como a introdução de princípios que viabiliza a efetividade desses direitos e pelo fortalecimento das instituições democráticas. O debate em torno da eficácia dos direitos fundamentais e a identificação de instrumentos que garanta a efetividade das normas que diz respeito a tutela da dignidade humana são elementos que integram o Neoconstitucionalismo.

1118

4. O Neoconstitucionalismo e seus reflexos O Neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional possui um campo de estudo amplo, mas a priori o seu foco está relacionado com a busca pela máxima eficácia dos direitos inerentes ao homem. Para fazer uma análise detalhada desse novo momento na seara constitucional, fazse necessário abordarmos o neoconstitucionalismo por meio de três fatores: teórico, filosófico e histórico. No aspecto teórico, verifica-se os reflexos do neoconstitucionalismo sobre a vários ramos do direito como o reconhecimento da força normativa à constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de um novo modelo de interpretação constitucional. Primeiramente, como fizemos referência em momentos anteriores, no curso da evolução dos mecanismos de tutela dos direitos fundamentais havia vários postos de forma gradativa, em que se encontrava a constituição. Antes da Segunda Guerra Mundial, a constituição não tinha caráter relevante no mundo jurídico, sendo destituída de força normativa, e representava, de certa forma, apenas um documento escrito que não tinha poder vinculativo. Além disso, as normas constitucionais tinham como função o estabelecimento de parâmetros de ação política. Dessa análise há a fundamentação de Luís Roberto Barroso (2009) ao afirmar que: Atualmente, passou a ser premissa do estudo da Constituição o reconhecimento de sua força normativa, do caráter vinculativo e obrigatório de suas disposições. Vale dizer: as normas constitucionais são dotadas de imperatividade, que é atributo de todas as normas jurídicas, e sua inobservância há de deflagrar os mecanismos próprios de coação, de cumprimento forçado (BARROSO, op.cit, p. 262)

Com a implementação do Neoconstitucionalismo observamos “a virada de jogo” em que houve a atribuição de força jurídica à constituição, sendo colocada no ápice do ordenamento jurídico e, a partir desse momento, as normas infraconstitucionais deviam obediência às normas constitucionais sob pena de tornarem inválidas. Assim, as normas constitucionais passaram a ter força vinculante e passaram a ser referência para todo o ordenamento jurídico. A força normativa da constituição é representada de forma clara na famosa pirâmide Kelseniana em que a Constituição representa o topo da pirâmide e possui como característica essencial a fundamentação

da

ordem

jurídica

e,

consequentemente,

a

validação

das

normas

infraconstitucionais. O segundo elemento do aspecto teórico, a expansão da jurisdição constitucional, decorre da supremacia conferida a Constituição, sendo que os efeitos da força normativa da constituição passaram a irradiar seus reflexos sobre o ordenamento jurídico. Dessa forma, verifica-se a influência da constituição nas searas do direito penal, tributário, civil e dentre outros. Neste sentido, observa-se a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. Assim, a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas decorre da percepção que 1119

a opressão das liberdades e da dignidade humana não provém apenas do Estado, mas também das relações interindividuais. A partir de então, vislumbra-se a necessidade de ampliar a perspectiva dos direitos fundamentais, criando, pois, a louvável dimensão objetiva. Dentro deste foco, NUCCI (2006) Afirma: Reconhecendo que a lesão aos direitos e às garantias fundamentais ocorre também na relação privada, a lei que tipifica o crime de tortura (lei 9455/97), considera como sujeito ativo do crime qualquer pessoa, ou seja, trata o crime de tortura como crime comum, ao contrário do que define a Convenção da Organização das Nações Unidas, de Nova York de 1985, em seu art. 1º que considera o crime de tortura como crime próprio, assim, somente haveria tortura quando "infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. (NUCCI, op.cit, p. 734).

Na constituição temos normas e princípios que são tidos como referência para o ordenamento jurídico como o princípio da dignidade da pessoa humana, da legalidade e da igualdade. Por último, passemos a analisar o novo modelo de interpretação constitucional que vem fazer um contraponto aos modelos tradicionais de interpretação: o gramatical, o teleológico, o sistemático, o histórico. A necessidade de um novo tipo de interpretação constitucional é decorrente do estabelecimento de uma ordem jurídica em que busca-se a tutela dos direitos e garantias fundamentais do homem. Assim, a constituição traz em seu corpo um conjunto de regras somadas a princípios que, muitas vezes, promovem um conflito normativo em virtude de não haver um método que identifique qual princípio deve prevalecer no caso concreto. Dessa forma, o operador do direito não deve fazer uso dos modelos tradicionais de solução de antinomias quando há um choque de princípios constitucionais (critério da hierarquia, da especialidade e da temporariedade) e sim optar por métodos ponderativos no caso concreto. Assim, a pretensão pela prevalência de mecanismos de ponderação e de razoabilidade para incidir em um dado caso específico, não quer dizer que houve um afastamento dos mecanismo tradicionais de interpretação, mas que na análise de conflitos de princípios constitucionais em um caso concreto se elabora uma solução por meio de ações ponderativas do que propriamente por uma ação silogística. Ao fazer um paralelo com os mecanismos do novo modelo de interpretação

Luis Roberto

Barroso comenta: Mesmo no quadro da dogmática jurídica tradicional, já haviam sido sistematizados diversos princípios específicos de interpretação da Constituição, aptos a superar as limitações da interpretação jurídica convencional, concebida sobretudo em função da legislação infraconstitucional e, mais especialmente, do direito civil. A grande virada na interpretação constitucional se deu a partir da difusão de uma constatação que, além de singela, nem sequer era original: não é verdadeira a crença que as normas jurídicas em geral – e as constitucionais em particular – tragam sempre em si um sentido único, objetivo, válido para todas as situações sobre as quais incidem. E que, assim, caberia ao interprete uma atividade de mera 1120

revelação do conteúdo preexistente na norma, sem desempenhar qualquer papel criativo na sua concretização. No direito contemporâneo, mudaram o papel do sistema normativo, do problema a ser resolvido e do interprete (BARROSO, op.cit, p. 306-307).

Ao analisar a Constituição Federal verifica-se que sua estruturação se viabiliza por meio de princípios que asseguram a proteção de direitos fundamentais conquistados ao longo

da

evolução do constitucionalismo. Assim, observa-se que são os princípios aderentes de sua força normativa que fornecem embasamento à ordem constitucional, sendo de fundamental importância os princípios da dignidade humana, o da supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade das normas, da interpretação conforme a constituição, da efetividade e da razoabilidade. Dessa forma, observa-se que o novo modelo de interpretação introduzida pelo Neoconstitucionalismo torna um instrumento essencial para a efetivação dos direitos fundamentais, pois ao extrair um dado significado às normas e aos princípios, que possuem ligação com os direitos essenciais do homem, fornecem aos aplicadores do direitos uma importante missão que é incidir em um caso concreto os efeitos desse método interpretativo. No aspecto filosófico do Neoconstitucionalismo, verifica-se o surgimento do póspositivismo, caracterizando-se pela elaboração de uma nova corrente jurídica inserida de alguns elemento positivistas e naturalistas. Para uma melhor compreensão do modelo filosófico introduzido pelo Novo Direito Constitucional, faz-se necessário uma análise do direito natural e do direito positivo, pois serão os reflexos destas duas concepções jurídicas que irão fornecer um embasamento para a formação de uma nova corrente filosófica. Dentro desta abordagem, faz-se necessário recorrer a doutrina de Luis Roberto Barroso (2009): O marco filosófico do novo direito constitucional é o pós-positivismo. O debate acerca de sua caracterização situa-se na confluência das duas grandes correntes de pensamento que oferecem paradigmas opostos para o direito: o jusnaturalismo e o positivismo. Opostos, mas, por vezes, singularmente complementares. A quadra atual é assinalada pela superação – ou talvez, sublimação – dos modelos puros por um conjunto difuso e abrangente de idéias, agrupado sob o rótulo genérico de pós-positivismo (BARROSO, op.cit, p. 247).

Assim, o jusnaturalismo era uma corrente jurídica baseada em leis naturais que eram imutáveis e universais, sendo que em caso de um conflito entre uma lei estatal e outra natural haveria preponderância desta última. O caso de Antígona é fundamental para demonstrar as concepções do jusnaturalismo, pois é uma passagem, em que a personagem se recusa a obedecer as leis postas pelo Rei, alegando que “anteriormente às leis estatais havias suas concepções naturais da quais não abriria mão”. Dessa forma, demonstra-se que o naturalismo é permeado por uma filosofia natural que identifica o direito com a moral e outras esferas de condutas espontâneas. Essa base filosófica do jusnaturalismo contribui demasiadamente para a 1121

formação de várias revoluções que tinham como base a universalização de direitos. Com o passar do tempo, essa corrente jurídica foi sofrendo muitas críticas com relação ao seu caráter metafísico e anti-científico, resultando na perda de sua força. Dentro dessa perspectiva Luís Roberto Barroso (2009) argumenta: O jusnaturalismo moderno, desenvolvido a partir do século XVI, aproximou a lei da razão e transformou-se na filosofia natural do direito. Fundado na crença em princípios de justiça universalmente válidos, foi o combustível das revoluções liberais e chegou ao apogeu com as Constituições escritas e as codificações. Considerando metafísico e anti-científico, o direito natural foi empurrado para a margem da história pela a ascensão do positivismo jurídico, no final do século XIX (BARROSO, op.cit, p. 247).

O positivismo tinha como característica principal o direito posto pelo estado, equiparando o direito à lei. O juspositivismo foi concebido da estruturação do direito dogmático moderno que possui como característica a inegabilidade dos pontos de partida e a obrigatoriedade de decidir todo e qualquer conflito. Neste período, havia a pretensão do estado em monopolizar a produção normativa e em tornar prioritário o ordenamento estatal em face das outras regras de condutas espontâneas. Calsamiglia caracteriza o pós-positivismo pela confluência de duas características positivistas: “em primer lugar, la defensa de la teoria das fuentes sociales del derecho y em segundo lugar, la tesis de la separación entre el derecho, la moral y la politica”. Assim, verifica-se que o direito positivo não admitia a relação do direito com outros fatores sociais, morais e, muito menos, éticos. O positivismo surgiu para fornecer uma objetividade científica não admitindo que outros setores como a filosofia, a sociologia e a história influenciasse o direito. Contudo, a experiência juspositivista resultou em efervescentes críticas a este modelo, pois houve a instalação de regimes fascistas e nazistas que promoveram a subtração de várias vidas sob a proteção da legalidade. Aqui, faz-se menção ao pensamento de Luís Roberto Barroso (2009): O positivismo, por sua vez, em busca de objetividade científica, equiparou o direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Como já assinalado, sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da Segunda Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito, inicialmente sob a forma de um ensaio de retorno ao direito natural, depois na roupagem mais sofisticada do pós-positivismo (BARROSO, op.cit, p. 247-248).

Com o fracasso dessas correntes jurídicas, verificou-se a necessidade da instalação de uma nova posição filosófica do direito, surgindo, dessa forma, o pós-positivismo. Esta nova corrente jurídica vem analisar os direitos dentro de uma relação com os fatores sociais, históricos, filosóficos e dentre outros. Assim, esse concepção jurídica não vem negar o direito posto, mas também não trata o ordenamento jurídico de forma metafísica. Na verdade há uma pretensão de demonstrar que o direito não é só lei e, muito menos, nem uma categoria metafísica. Diante disso, verifica-se um momento em que os princípios constitucionais possuem força normativa e faz-se a 1122

busca pela garantia dos direitos fundamentais, levando em consideração a dignidade da pessoa humana e os direitos essenciais ao homem. Por último, há a necessidade de analisar o processo histórico que resultou na implementação do Neoconstitucionalismo. Na Europa, após a Segunda Guerra, iniciou-se um processo denominado de constitucionalização do pós-guerra, tendo como elemento primordial a tutela dos direitos e garantias fundamentais que por ora haviam sido lesionado no tocante ao desrespeito à dignidade humana. No período anterior a Segunda Guerra, a ordem jurídica não possuía muita importância, havendo uma preponderância da atividade legiferante. Além disso, para que um direito social ou político tivesse eficácia era necessário que houvesse uma previsão legal, sob a pena de constar como um elemento expositivo, destituído de eficácia. Após a Guerra Mundial, verifica-se a intenção de vários países na ratificação de tratados e convenções referentes aos direitos humanos e a proteção dos grupos sociais vulneráveis. No âmbito europeu, há a Lei Fundamental de Bonn de 1949 que representa o referencial no desenvolvimento do novo direito constitucional europeu, sendo de grande importância como modelo para a execução do processo de redemocratização no Brasil. Com isso, observa-se um novo momento pautado na valorização da constituição em detrimento da atividade legislativa e a busca pela efetividade dos direitos fundamentais. Ao tratar dos mecanismos históricos que contribuíram para a eficácia dos direitos essenciais ao homem, Daniel Sarmento (2006), comenta: Depois da Segunda Guerra, na Itália e na Alemanha e algumas décadas mais tarde, após o fim de ditaduras de direita, na Espanha e em Portugal, assistiu-se a uma mudança significativa deste quadro. A percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se com a barbárie, como ocorrera no nazismo alemão, levou as novas constituições a criarem ou fortalecerem a jurisdição constitucional, instituindo mecanismo potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador. Sob esta perspectiva, a concepção de Constituição na Europa aproximou-se daquela existente nos Estados Unidos, onde, desde os primórdios do constitucionalismo, entende-se que a Constituição é autêntica norma jurídica, que limita o exercício do Poder Legislativo e pode justificar a invalidação de Leis.(...) (SARMENTO, op.cit, p. 2).

No Brasil, o Neoconstitucionalismo decorre do período de redemocratização que teve como principal realização a implementação do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, antes do processo de redemocratização, havia um período marcado pelo autoritarismo que tratou os direitos humanos de forma negligente. O regime militar foi um elemento essencial para que o povo e seus representantes fizessem uma análise crítica a respeito dos direitos fundamentais. Assim, surgiu vários movimentos da sociedade em prol de melhores condições de vida e em defesa dos direitos humanos. Nesse momento, inicia o processo de redemocratização que representou um grande avanço no que se refere às garantias e aos direitos fundamentais. Ao tratar dos reflexos oriundos do processo de redemocratização, Daniel Sarmento, argumenta:

1123

(...) Alguns autores, como Luís Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève, passam a advogar tese que a Constituição, sendo norma jurídica, deveria ser rotineiramente aplicada pelos juízes, o que até então não ocorria. O que hoje parece uma obviedade, era quase revolucionário numa época em que a nossa cultura jurídica hegemônica não tratava a Constituição como norma, mas como pouco mais do que um repositório de promessas grandiloqüentes, cuja efetivação dependeria quase sempre da boa vontade do legislador e dos governantes de plantão. Para o constitucionalismo da efetividade, a incidência direta da Constituição sobre a realidade social, independentemente de qualquer mediação legislativa, contribuiria para tirar do papel as proclamações generosas de direitos contidas na carta de 88, promovendo justiça, igualdade e liberdade (...)(SARMENTO, op.cit, p. 7).

Nesse contexto, o período de redemocratização do Brasil foi um fator essencial para fornecer um arcabouço jurídico que visa, sobretudo, a tutela dos direitos fundamentais. Assim, verificamos a implementação de uma nova ordem jurídica fundamentada na supremacia da constituição e o papel relevante que passa a ter o judiciário em face da atividade legiferante nas questão das garantias fundamentais.

5. Metodologia O primeiro passo desta pesquisa, quanto a fazer uma leitura de doutrinas que abordem a questão do neoconstitucionalismo, foi pautado numa escolha rigorosa de quais seriam os doutrinadores que fazem estudos a respeito desse novo paradigma constitucional de forma crítica. Desse modo, observa-se que há uma parte considerável dos juristas que já reconhecem o novo direito constitucional como um meio de tornar eficazes os direitos fundamentais. Daí, a necessidade de realizar uma análise crítica desse novo fenômeno na ordem jurídica, tendo a finalidade de demonstrar o avanço da tutela dos direitos inerentes ao homem. Nosso principal objetivo neste artigo é mostrar o modo pelo qual o neoconstitucionalismo contribui para a proteção dos direitos fundamentais e, consequentemente, demonstrar como esse novo paradigma na ordem jurídica pode tornar um importante mecanismo de tutela dos direitos oriundos da dignidade humana. Esta pesquisa é bibliográfica, com vista a uma abordagem qualitativa. Assim, há identificação de alguns doutrinadores que na nossa acepção fazem uma abordagem do neoconstitucionalismo, tendo em vista, de forma crítica, demonstrar a forma de contribuição desse novo paradigma para a eficácia do ordenamento jurídico. Eduardo Cambi ao se posicionar sobre o novo direito constitucional defende que ‘o neoconstitucionalismo serve de suporte crítico para a construção não somente de “novas” teorias e práticas, mas sobretudo para a construção de técnicas que tornem mais efetivas, rápidas e adequadas a prestação jurisdicional’. Com relação á esse mesmo assunto, Daniel Sarmento reconhece as várias alterações sofridas na jurisdição constitucional com a introdução desse novo paradigma. Por fim, Luís Roberto Barroso ao defender o neoconstitucionalismo relata que ‘Tal fato potencializa a importância do debate, na teoria 1124

constitucional, acerca do equilíbrio que deve haver entre supremacia constitucional, interpretação judicial da Constituição e processo político majoritário. As circunstâncias brasileiras, na quadra atual, reforçam o papel do Supremo Tribunal Federal, inclusive em razão da crise de legitimidade por que passam o Legislativo e o Executivo, não apenas como um fenômeno conjuntural, mas como uma crônica disfunção institucional. Num segundo momento, propõe-se discorrer sobre a evolução dos movimentos constitucionais. Nesse período, passa-se a mostrar a forma de como está estruturado o neoconstitucionalismo e os fatores que contribuíram significativamente para a implementação desse novo paradigma constitucional. Passado esse momento, num terceiro passo, fará uma análise crítica desse novo paradigma na jurisdição constitucional, sendo identificado um avanço na área jurídica da forma como se aplica, interpreta e analisa o direito, pois o Neoconstitucionalismo vem contribuir para a introdução de novos métodos na área jurídica como aplicar o direito em observação do contexto social, dos valores éticos e morais e do aspecto sociológico, filosófico e histórico. Além disso, há um novo modelo de interpretação que prima pela proteção dos direitos fundamentais e pelos princípios refletidos da dignidade da pessoa humana. Num quarto momento, demonstra-se a contribuição do novo direito constitucional para a eficácia dos direitos e garantias fundamentais. Assim, este período é fundamental para identificar a contribuição fundamental do Neoconstitucionalismo que é garantir a máxima eficácia dos direitos inerentes a pessoa humana, pois tínhamos uma ordem jurídica que não se pautava na tutela dos direitos fundamentais na medida que tratava a proteção da dignidade de forma simbólica. Dessa forma, esse novo paradigma introduz no meio jurídico a supremacia das normas constitucionais e possui como ponto central a proteção dos direitos e garantias fundamentais. A análise do Neoconstitucionalismo a partir da visão de vários doutrinadores que tecem estudos sobre o tema, foi uma tarefa um tanto difícil, pois tivemos que identificar aqueles juristas que de forma crítica abordassem o assunto, além de fazer uma análise em conjunto das opiniões desses escritores e elaborar uma acepção crítica a respeito do neoconstitucionalismo.

6. Análise do novo paradigma constitucional Após uma longa análise do neoconstitucionalismo é notório que houve a implementação de um novo paradigma no mundo jurídico, tendo como finalidade a busca pela máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais. Nessa nova ordem jurídica alguns elementos como a constituição e os princípios perdem o valor simbólico e ganham atribuições de força normativa. Assim, o neoconstitucionalismo possui difícil caracterização pelo motivo da abrangência de seu campo, mas podem ser relatados alguns elementos que fazem parte de sua essência: a supremacia da constituição, rejeição ás técnicas formalistas de análise do direito, judicialização da 1125

política e das relações e outros itens citados anteriormente. Essa “reviravolta” no direito vem fortalecer as bases de um Estado Democrático e garantir os direitos inerentes aos cidadãos formadores de uma dada ordem jurídica. Nesse contexto Eduardo Cambi (2007), afirma: O “novo” deve se impor na medida em que se mostre ser uma alternativa melhor que a velha. A mudança não pode ser feita para que as coisas continuem substancialmente as mesmas, apenas com uma aparência diferente. Mudar por mudar é esconder a vontade de manter as coisas como já eram ou dar uma aparência nova para poder retroceder aos avanços já conquistados (CAMBI, op.cit, p. 43).

Contudo, não deveria faltar a menção da constitucionalização do direito, sendo um fenômeno decorrente do neoconstitucionalismo. A constitucionalização do direito não refere-se a uma ordem jurídica que possui referência em uma constituição, mas as conseqüências dos reflexos da força normativa das normas constitucionais sob o ordenamento jurídico. Este fenômeno influência os três poderes do Estado Constitucional, pois é colocado parâmetros para o Legislativo, uma vez que, ao elaborar as leis dever-se-á pautar nos princípios constitucionais que garantem os direitos fundamentais ao homem. O Executivo possui sua atuação prevista no corpo da Constituição para que não incorra em atos arbitrários ao ponto de lesionarem os direitos fundamentais. Por fim, o Judiciário possui a tarefa de declarar a constitucionalidade das leis frente a Constituição e de contribuir para a eficácia dos direitos fundamentais no

momento de aplicação do direito. Dessa forma, a

constitucionalização do direito contribui para a aproximação entre constitucionalismo e democracia, a força normativa da constituição e a difusão da jurisdição constitucional. Nesse aspecto é importante o argumento de Luis Roberto Barroso (2009): Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do direito. Esse fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional (BARROSO, op.cit, p. 363).

Portanto, verifica-se que o novo direito constitucional promove uma relevante contribuição do para a tutela dos direito fundamentais, assim como, consiste num mecanismo de fortalecimento da democracia e de efetivação dos direito inerentes ao homem. Dessa forma, poderemos indicar algumas atribuições do

neoconstitucionalismo em que favorece a efetividade dos direitos

inerentes ao homem no espaço jurídico. Primeiramente, houve uma inovação da interpretação constitucional, introduzindo um novo modelo de interpretação que representasse a vontade 1126

substancial da Constituição. Esse fator é decorrente da abertura principiológica e da eficácia horizontal dos direitos fendamentais propiciados pelo novo direito constitucional. Assim, verifica-se que há uma tentativa de implementação no meio jurídico de um modelo interpretativo em que preze pela eficácia dos direitos fundamentais, transcendendo da garantia formal para a tutela material. O novo paradigma constitucional forneceu ênfase aos conceitos jurídicos indeterminados (Clausulas Gerais) que fornece uma delimitação maior para que os interpretes do direito procurem fornecer um enfoque nas garantias constitucionais. Outra questão é o reconhecimento da normatividade dos princípios, sendo normas que consagram determinados valores ou indicativos de propostas públicas que tendem a serem alcançadas. Assim, a busca da concretização normativa dos princípios como da dignidade da pessoa humana, da ampla defesa, da solidariedade faz com que haja uma maior pretensão da tutela dos direitos fundamentais. Outro ponto a ser citado é a existência da técnica de ponderação que tem como base os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Essa técnica é utilizada para a resolução das colisões de normas constitucionais em que se encontra em conflito dois ou mais bens jurídicos, sendo possível mais de uma solução. Nesse procedimento, busca-se desvendar uma solução que atente para a garantia dos direitos fundamentais. Portanto, observa-se que o neoconstitucionalismo possui inúmeros instrumentos que buscam a realização dos direitos e garantias fundamentais. Apesar de ser um algo recente no mundo jurídico, entretanto há uma tendência muito forte da introdução desse novo paradigma no âmbito prático e teórico do judiciário.

7. Considerações finais Ao fim da análise realizada, verifica-se a importância do Neonstitucionalismo para uma práxis emancipatória do direito, já que possui como foco a busca pela efetivação dos direitos fundamentais. Assim, há a implementação de uma nova ordem jurídica que encontra seu arcabouço na dignidade da pessoa humana, pretendendo, de forma efetiva, tutelar os direitos inerentes da pessoa humana. Observa-se que não é necessário apenas garantir formalmente os direitos fundamentais, mas elaborar mecanismo que tornem esses direitos eficazes. Nesse aspecto, verifica-se a contribuição essencial do novo direito constitucional em que a formalização de garantias de direitos constitucionais passou de um elemento simbólico para um momento que busca a efetivação dos direitos essenciais ao homem. Julga-se necessário a realização, de forma mais amplificada, de debates na academia acerca da implementação do Neoconstitucionalismo para que haja a formação de profissionais do direito com um posicionamento crítico diante da realidade social e que tenham a função de tornar efetivos os direitos e garantias fundamentais. Portanto, a mera formalização de direitos não 1127

resulta em garantia de efetivação de tais direitos, assim cabe ao operadores essa missão fundamental que é tornar efetivos esses direitos inerentes a pessoa humana.

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Saraiva, São Paulo, 2009. CALSAMIGLIA, Albert. Postpositivismo. Cuadernos del Filosofia del Derecho, n 21-I, 1988, p. 210. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44. Disponível em: . U

U

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6. ed. rev. Coimbra: Almedina, 1993. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas.1. ed, 2 tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. Disponível em: U

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A saúde sob o signo da justiça: uma análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal Gabriela de Cássia Moreira Abreu Ferreira1

Resumo

Abstract

O trabalho analisa decisões do Supremo Tribunal Federal relativas à justiciabilidade do direito social à saúde, em relação a prestações fáticas demandadas dos diversos níveis da Administração Pública. Analisa-se como a jurisprudência desse Tribunal vem interpretando tal direito, desde as decisões da década de 1990, a partir das reivindicações dos portadores da SIDA/HIV, ao momento atual, em que é debatido nacionalmente o boom de ações sobre o tema em Tribunais de todo o Brasil. É destacada a Audiência Pública nº 4, realizada em 2009, que discutiu transdisciplinarmente tais demandas, considerada um marco no STF, pois decisões no âmbito de Suspensões de Tutela Antecipada e de Segurança foram proferidas com os aportes do debate ali ocorrido. Sublinha-se o Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175-CE, que sinaliza tendência de mudança no posicionamento da Corte, por ser decisão colegiada e trazer, a partir do voto do Ministro Gilmar Mendes, diversos parâmetros a serem seguidos pelos magistrados nas demandas referentes à assistência farmacêutica. Sob o marco teórico de Ronald Dworkin, será discutido o papel dos juízes nas democracias constitucionais e no debate quanto às políticas públicas, tendo como base sua teoria do direito como integridade, exposta na obra O Império do Direito.

This paper analyses the decisions of the Supremo Tribunal Federal concerning the justiciability of the social right to health, in relation to the factual provisions demanded from the various areas of the Public Administration. It is analyzed how the jurisprudence of that Court interprets such right, since the decisions proffered in the 1990s, from the claims of HIV carriers, to our present time, where it is debated the “boom” of petitions about that theme in Courts all around Brazil. It is highlighted the Public Audience n° 4, realized in 2009, which discussed those demands in a transdisciplinary way, considered a mark in the STF, as decisions concerning to Suspension of Injunctive Reliefs and Writs of Mandamus were proffered referencing the informations collected at the debate occurred. We also highlight the “Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada n.° 175-CE” decision, that points a tendency to a change of opinions in the Court, as it is a group decision that brings, from the vote of the Minister Gilmar Mendes, many standards to be followed by Magistrates when judging cases relating to pharmaceutical assistance. From the theoretical point of Ronald Dworkin, it will be discussed the role of judges in the constitutional democracies and in the debate of public policies, having as its base the theory of the Law as Integrity, exposed in his masterpiece Law’s Empire.

Palavras-Chave: Supremo Tribunal jurisprudência; direito à saúde; Ronald Dworkin.

Keywords: Supremo Tribunal Federal; jurisprudence; right to health; Ronald Dworkin.

Federal;

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Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Pará. Bolsista CAPES. Contato: [email protected]. T

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1. Introdução O artigo tem como objetivo discutir de que forma o Supremo Tribunal Federal vem interpretando o direito à saúde, na sua perspectiva prestacional demandada do Estado, ao longo dos últimos anos, dividindo-se em três marcos: antes e depois da Audiência Pública nº 4, realizada em 2009, e um momento intermediário em 2007. Em um segundo momento, a partir dos aportes da teoria de Ronald Dworkin do direito como integridade, discutir-se-á como os juízes devem agir nas democracias constitucionais em relação ao tema das políticas públicas e se é possível trazer colaborações deste autor no deslinde ao conteúdo do direito à saúde no Brasil.

2. Direito à saúde como direito fundamental social A Constituição conquistou, no Brasil, nos últimos anos, verdadeira força normativa e efetividade. A jurisprudência sobre o direito à saúde e sua exigibilidade perante o Estado é um exemplo simbólico disto. As normas constitucionais não são mais tidas como partes de um documento estritamente político, mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, passando a gozar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Neste contexto, os direitos constitucionais genéricos, e os direitos sociais em particular, transmudaram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, passíveis de tutela judicial específica. A intervenção do Poder Judiciário, por determinações à Administração Pública a fim de que forneça gratuitamente medicamentos e outras prestações de saúde em uma multiplicidade de situações, visa cumprir a promessa constitucional de prestação universalizada deste importante direito social. Em nossa história constitucional, pela primeira vez, a atual Carta Magna fixou a saúde como um direito fundamental, elencada no rol do art. 6º, que pertence ao Capítulo II (“Dos Direitos Sociais”) de seu Título II (“Dos Direitos Fundamentais”. À saúde é dedicada uma seção específica no Título VIII (“Da Ordem Social”), abrangendo os arts. 196 a 200. Aquele a define da seguinte forma: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A saúde integra a seguridade social, ao lado da assistência e previdência social, sendo orientada pelos objetivos dispostos no art. 194, parágrafo único2. T

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De forma mais específica, as ações e serviços de saúde são munidos de “relevância pública” (art. 197), cabendo ao Poder Público sua regulamentação, fiscalização e controle, criando a Constituição um “sistema único de saúde” (arts. 198 e 200) como garantia institucional desse 2

Universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos beneficios; equidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.

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direito. A assistência à saúde é ainda livre à iniciativa privada (art. 199), que pode participar de forma complementar do SUS, dando-se preferência às entidades filantrópicas e sem fins lucrativos. Quanto à repartição de competências, a Constituição estipula que União, Estados, Distrito Federal e Municípios possuem competência executiva comum para “cuidar da saúde” (art. 23, II) e competência legislativa concorrente sobre “proteção e defesa da saúde” (art. 24, XII). Em 2000, a Emenda Constitucional nº 29 fixou a aplicação de percentuais da receita tributária de todos os entes federativos em ações e serviços públicos de saúde, vinculando recursos orçamentários à implementação dessas políticas. O extenso conjunto de disposições constitucionais referentes à saúde e outros direitos sociais na Carta de 1988 exigiu da doutrina e da jurisprudência constitucionais o desenvolvimento da reflexão sobre seu conteúdo, eficácia e aplicabilidade. No campo do direito à saúde, de início, foi rejeitada a interpretação de que tais disposições seriam normas meramente programáticas, destituídas de força vinculante sobre os poderes públicos. O reconhecimento da eficácia das normas constitucionais sobre saúde3, fundada na sua T

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definição como direito fundamental e, por conseguinte, regida pelo princípio da aplicabilidade imediata veiculado no art. 5º, § 1º (as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata) foi constantemente ratificado pelo Supremo Tribunal Federal, como se verá adiante, e forneceu a base para dimensionar sua exigibilidade judicial. Apesar do direito à saúde possuir, igualmente, uma nítida dimensão negativa ou defensiva (como todos os direitos fundamentais), a qual veda os poderes públicos de praticar ações que coloquem em risco a saúde dos cidadãos, as maiores controvérsias quanto à sua aplicabilidade decorrem da dimensão positiva (prestacional), que requer um dar ou fazer estatal para seu exercício e impõe a realização de políticas públicas, isto é, um conjunto de ações governamentais. Em paralelo a esse desenvolvimento doutrinário, o legislador editou, em 1990, a Lei Orgânica da Saúde, composta das Leis nº 8.080/90 e nº 8.142/90, esta que estabelece os mecanismos de controle social nesse campo, nomeadamente os Conselhos e Conferências de Saúde. A partir de então, desenvolveu-se, em todos os níveis da Federação, uma intensa produção legislativa e regulamentar, destacando-se, nesse último campo, as Normas Operacionais Básicas e as Normas Operacionais da Assistência à Saúde. Não obstante os inegáveis avanços, o Brasil enfrenta graves problemas no sistema de saúde pública, que não consegue atender de forma devida às demandas da população. Ante tal situação, o Judiciário, paulatinamente, foi sendo mais procurado para obrigar o Estado a fornecer 3

Como em: DALLARI, Sueli Gandolfi. O direito à saúde. Revista de Saúde Pública. São Paulo, EdUSP, n. 1, ano 22, p. 57-63, fev., 1988; KRELL, Andreas J. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des) caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria dos advogados, 2009.

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prestações de saúde. Nos próximos tópicos, examinaremos de que modo tem se dado a justiciabilidade do direito à saúde no Brasil, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para, a partir das contribuições teóricas de Ronald Dworkin, vislumbrarmos uma possibilidade de tornar mais efetiva a proteção judicial desse direito em nosso país.

3. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal 3.1 Antes da audiência pública Nº 4 (2009) O Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Poder Judiciário do país, firmou entendimento favorável à entrega dos medicamentos solicitados aos cidadãos que deles necessitam, a exemplo dos portadores de HIV/Aids. Uma decisão tomada como paradigma e bastante citada em outros julgados, é o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271.2688/RS, de relatoria do Ministro Celso de Mello, julgado em 2000. O acórdão sintetizou e ratificou entendimentos que vinham sendo desenvolvidos no Supremo nos anos imediatamente anteriores, a partir da década de 1990. Destaca-se que o Ministro abordou os seguintes pontos: 1) O direito à saúde como consequência indissociável do direito à vida: o Ministro assevera que a saúde possui o cunho de direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas pela Constituição, a partir de exegese do artigo 196, traduzindo o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar, incumbindo ao Poder Público formular e implementar políticas sociais e econômicas aptas a garantir, aos cidadãos, tal acesso. Além de ser um direito fundamental autônomo, o direito à saúde é consequência constitucional indissociável do direito à vida, não podendo o Poder Público, em qualquer esfera federativa, ser indiferente à problemática da saúde, sob pena de incorrer em grave comportamento inconstitucional, ainda que por omissão. 2) O caráter programático do artigo 196 da Constituição não pode se tornar promessa constitucional inconsequente: a regra inscrita no art. 196, de caráter programático, possui como destinatários todos os entes políticos da ordem federativa brasileira. Tal característica não pode se tornar promessa constitucional inconsequente, pois o Poder Público, assim agindo, estaria fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, e cometendo ato irresponsável de infidelidade governamental ao que estipula a própria Constituição. 3) A primazia da inviolabilidade do direito à saúde e à vida face ao interesse financeiro e secundário do Estado: em passagem que se tornou bastante conhecida (e criticada), o Ministro Celso de Mello afirma que, entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, direito subjetivo inalienável, ou fazer preponderar um interesse financeiro e secundário do Estado, por razões de ordem ético-jurídicas, é imposta ao julgador somente uma opção: a que privilegia o respeito à vida e a saúde humana, especialmente dos que têm acesso, por legislação local, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes. 1132

Assevera o Ministro que não é suficiente que o Estado proclame o reconhecimento formal de um direito, sendo primordial que seja respeitado e garantido em sua integralidade, como nos casos em que a pessoa pode exigir a implementação de prestações positivas postas pela ordem constitucional, como é a saúde. Consideramos que se a norma constitucional possui eficácia jurídico-positiva, como bem reconhece Konrad Hesse4, não há porque o Min. considerá-la de cunho programático. Defender T

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efeitos positivos para normas programáticas equivale a esvaziar totalmente esse conceito. Se o STF compreende que a norma exposta enseja o surgimento de pretensões a prestações positivas deve admitir que o art. 196 não é norma meramente programática. A afirmação de que o sistema constitucional orçamentário equivale a interesse financeiro e secundário do Estado é exagerada. A atividade burocrática que envolve a implementação do fornecimento estatal de medicamentos, especialmente aquela vinculada à previsão e controle orçamentário, pode, sim, ceder espaço a outras normas relevantes, que sejam prioritárias em um viés jusfundamental ou que sejam impostas constitucionalmente de modo direto na sua aplicação, mas nem por tal fato deve ser tida como “problema secundário”. O tom deste trecho parece esquecer que o orçamento público é, igualmente, algo “previsto constitucionalmente”, e está ligado aos imperativos de transparência e racionalização da gestão financeira5. T

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Esse Agravo Regimental reitera decisão anterior do mesmo Ministro, que tinha como conteúdo fático o custeio de tratamento de rara doença, a distrofia muscular de Duchene (Petição 1.246-1/SC, julgada em 1997), na qual, pela primeira vez, foi apresentado o famoso parágrafo da contraposição entre o direito à vida e à saúde e o interesse financeiro e secundário do Estado. O debate foi prejudicado por questões processuais, mas as razões expostas na decisão singular do Min. Celso de Mello ainda permanecem como fundamento de outras decisões da Corte. Scaff critica tal posicionamento, pois, na verdade, houve uma decisão processual sem análise de mérito como se tivesse tido um julgamento que o apreciasse6. T

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Aliás, a mesma crítica pode ser tecida em relação a outro caso, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45-DF, julgada em 04 de maio de 2004, que nem acórdão é, também prejudicado por ter perdido o objeto (questionava uma medida provisória que 4

Com a superação do pensamento clássico que descrevia o texto constitucional como um documento estritamente político, a Constituição finalmente alcançou o seu papel como uma – nas palavras de Konrad Hesse – “força ativa que influi e determina a realidade política e social”. HESSE, Konrad. Temas fundamentais de Direito Constitucional. Textos selecionados e traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, p. 137, 2009.

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Segundo Marcos Gouvêa: “Mais uma vez, cabe repisar que, dentro da principiologia adotada pelo sistema brasileiro, calcada na pedra de toque da assistência integral, o orçamento, embora não perca sua função autorizativa e legitimadora dos gastos, assume sobretudo a finalidade de permitir o planejamento e o controle de despesas”, o que o torna importantíssimo à própria concretização dos direitos fundamentais, especialmente quando no viés prestacional. GOUVÊA, Marcos Maselli. O Direito ao fornecimento estatal de medicamentos. In: GARCIA, Emerson (coord.). A efetividade dos direitos sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 215, 2004.

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NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Os Tribunais e o direito à saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 119, 2011.

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não teve eficácia renovada). De mesma relatoria, o Ministro apreciou o mérito inoportunamente, ao que Scaff denomina de “belas proclamações sem nenhuma deliberação no caso concreto”. A ADPF não pode ser visualizada como precedente, nem jurisprudência assente para o STF e demais órgãos do Judiciário, inobstante as diversas menções a ela em outras decisões das diversas instâncias judiciais e na doutrina. Como é citada, conhecer seu conteúdo é importante, ainda que se critique a forma como vem sendo empregada. A saúde continua sendo delineada como direito fundamental, porém o Tribunal reconhece que seu cumprimento judicial é excepcional e deverá ocorrer em situações de inação abusiva do poder público diante do mínimo existencial. No viés relatado seguiu o posicionamento de nossa Corte Maior, até o ano de 2007, quando se encontram indícios de mudança jurisprudencial, analisados a seguir.

3.2 Momento intermediário: decisões monocráticas da Min. Ellen Gracie (2007) Informam Hoffman e Bentes7 que vem crescendo o descontentamento com o impacto T

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orçamentário crescente dos litígios relativos os direitos à saúde, tal como com a gestão judicial de certas políticas sanitárias e educacionais. Dentre algumas medidas tomadas, em março de 2007, o Ministério da Saúde criou uma Comissão para o Uso Racional de Medicamentos, para produzir diretrizes sobre a utilização dos remédios das listas do SUS, direcionadas, entre outros, às autoridades públicas em requerimentos de acesso a remédios. Neste panorama de críticas à concessão judicial relativas a este tipo de assistência já materializada por políticas públicas preexistentes, conforme os autores mencionados, observou-se um recuo político que recebeu o apoio inicial do Supremo, pela Ministra Ellen Gracie. E é a partir da decisão da Suspensão de Segurança nº 3073-RN, julgada em 09 de fevereiro de 2007, pela Ministra Ellen Gracie, à época presidente do STF, que se verifica uma mudança de postura do Supremo, não diria para uma restrição, mas para um maior critério, decisões mais acuradas, que visualizem, para além da leitura da primeira parte do artigo 196 da Constituição (“a saúde é direito de todos e dever do Estado”), a visualização da política pública que a Carta Magna e as leis ordinárias construíram para a efetivação do direito à saúde. A mudança de postura consistiu em a Ministra ter reconhecido a grave lesão à ordem pública alegada pelo Estado do Rio Grande do Norte: porquanto a execução de decisões como a ora impugnada afeta o já abalado sistema público de saúde. Com efeito, a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o 7 HOFFMANN, Florian F.; BENTES, Fernando R.N.M. A litigância judicial dos direitos sociais no Brasil: uma abordagem empírica. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coords.). Direitos sociais: fundamentos, judicialização e direitos em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 412, 2008.

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benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários.

Ellen Gracie considerou o caráter coletivo do art. 196 da Constituição, já que este se refere, em princípio, a políticas públicas que busquem abarcar toda a população, em caráter universal e igualitário. Afirmou, igualmente, que a concessão do remédio ao impetrante subtrairia as chances de acesso aos serviços básicos de saúde às outras pessoas. Foi tido em consideração o caráter excepcional do fármaco, ou seja, ainda estava em fase de pesquisas e testes; que o Estado do RN não estava se recusando a oferecer tratamento, porque o remédio pedido seria um plus ao tratamento ao qual já vinha se submetendo, além do perigo do “efeito multiplicador”; argumentos favoráveis ao deferimento do pedido de suspensão da liminar concedida no mandado de segurança. Com argumentos similares, a Ministra tomou decisão na Suspensão de Tutela Antecipada 91-AL, julgada em 26/02/07. Repetindo os mesmos parágrafos da decisão na SS 3073, a Ministra configurou a lesão à ordem pública, por afetar o “já abalado sistema público de saúde”, e, igualmente, o caráter coletivo do art. 196. O Estado não estaria se negando a fornecer tratamento, mas os medicamentos não constavam da Portaria 1318, e seriam responsabilidade do Município de Maceió. A Ministra deferiu parcialmente o pedido, para limitar a concessão, pela Secretaria de Saúde do Estado de Alagoas, aos medicamentos previstos na Portaria nº 1318. Essas duas decisões começaram a ser utilizadas como precedentes, fazendo a Ministra se manifestar com preocupação acerca da “interpretação ampliativa que vem sendo dada às decisões desta Presidência”, para esses casos de fornecimento de medicações, aduzindo, igualmente, que: Os pedidos de contracautela em situações como a que ensejou o deferimento da liminar ora impugnada devem ser analisados, caso a caso, de forma concreta, e não de forma abstrata e genérica, certo, ainda, que as decisões proferidas em pedido de suspensão se restringem ao caso específico analisado, não se estendendo os seus efeitos e as suas razões a outros casos, por se tratar de medida tópica, pontual. (grifos da autora)

A Min. Ellen Gracie julgou outras situações contendo pedido de medicamento ou tratamento médico, decidindo tanto pela obrigatoriedade quanto negando. Apesar da tentativa de emprego de parâmetros nas decisões, há certas contradições, pois um dos critérios à concessão dos pedidos nas SS 3.205, 3.158, 3.231, 3.429, 3.452 e STA 181 fora a gravidade e necessidade de permanência do tratamento, o caso da STA 91 não seria diferente, pois envolvia “medicamentos necessários para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes transplantados”. Ademais, se um parâmetro foi o medicamento constar em uma política pública, os medicamentos requeridos nas SS 3.205, 3.158, 3.429, 3.452 e STA 181 não estão nesse grupo e foram concedidos. Se havia hipossuficiência dos pacientes ou discussão sobre o 1135

preço do medicamento, tais questões não foram ventiladas nos casos em que o pedido foi negado. Patrícia Werner critica a lógica da maioria das decisões (tanto do STF, quanto do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo), que privilegia a ótica individual do direito à saúde como direito subjetivo, olvidando-se a ótica coletiva que o mesmo possui por ser um direito social8. Afirma ser imperioso que o Judiciário harmonize o direito T

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subjetivo com os mandamentos constitucionais da universalidade e igualdade. O tema é polêmico. Ingo Sarlet rejeita a afirmação de que os direitos sociais possuem titularidade coletiva, dizendo há confusão entre a titularidade em si de um direito fundamental, isto é, a condição da pessoa ser o sujeito de direitos, com eventual restrição do objeto do direito ou mesmo restrição do acesso a alguma prestação por uma condição econômica privilegiada ou outros critérios. Outro motivo, para o autor, para a errônea atribuição de titularidade coletiva aos direitos sociais (acompanhada da negação da titularidade individual) pode estar relacionado à confusão entre a figura das políticas públicas e dos direitos sociais como direitos fundamentais. Em suma, defende não poder ser suprimida a titularidade individual do direito à saúde9. T

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O STF reconheceu esta dupla dimensão do direito a saúde, como veremos a seguir, aprofundando e desenvolvendo melhor os argumentos semeados pela Min. Ellen Gracie.

3.3 A audiência pública Nº 4 e seu impacto no STF Nos dias 27, 28 e 29 de abril e 04, 06 e 07 de maio de 2009 foi realizada a Audiência Pública nº 4 no Supremo Tribunal Federal. Foi convocada para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em matéria de sistema único de saúde. A Audiência objetiva esclarecer as questões técnicas, científicas, administrativas, políticas e econômicas envolvidas nas decisões judiciais sobre saúde. Foi conclamada tendo em vista diversos pedidos de suspensão de segurança, de suspensão de tutela antecipada e de suspensão de liminar em trâmite no âmbito da Presidência do STF, objetivando suspender a execução de medidas cautelares que condenam a Fazenda Pública ao fornecimento das mais variadas prestações de saúde (fornecimento de medicamentos, suplementos alimentares, órteses e próteses; criação de vagas de UTIs e leitos hospitalares; contratação de servidores de saúde; realização de cirurgias e exames; custeio de tratamento fora 8

“A lógica que predomina é simplificar o direito à saúde como equivalente ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana. É um direito individual subjetivo que não pode ser denegado de forma alguma; porém, todo indivíduo tem o direito à vida; todo indivíduo tem o direito à dignidade humana e todo indivíduo tem direito à saúde”. WERNER, Patrícia Ulson Pizarro. O direito social e o direito público subjetivo à saúde: o desafio de compreender um direito com duas faces. Revista de Direito Sanitário. São Paulo: CEPEDISA/NAP-DISA/USP, n. 2, ano 9, p.126, jul-out., 2008. 9

SARLET, Ingo Wolfgang. A titularidade simultaneamente individual e transindividual dos direitos sociais analisada à luz do exemplo do direito à proteção e promoção da saúde. In: NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da. O CNJ e os desafios da efetivação do direito à saúde. Belo Horizonte: Fórum, p. 130; 135, 2011.

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do domicílio, inclusive no exterior, entre outros). Hoje, além dos pedidos de suspensão, tramitam na Corte uma proposta de súmula vinculante e um recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, que envolvem questões relativas à eficácia do artigo 196 da Constituição10. T

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A partir dos dados colhidos na Audiência Pública, foi constatado que a maior parte dos pleitos não decorre de omissão estatal absoluta, mas antes de uma intervenção judicial para cumprimento de políticas públicas já estabelecidas, ou seja, não há uma interferência em um espaço amplo de discricionariedade administrativa. O Supremo elaborou balizas jurisprudenciais para a análise deste tipo de pedidos. A decisão leading case foi exarada no Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175-CE, julgada em 17.03.2010, tendo por relator o Min. Gilmar Mendes, à época presidente do Tribunal. Relatou-se que a paciente necessitava de medicamento que lhe possibilitaria aumento de sobrevida e melhora em sua qualidade de vida, além de que sua família não teria condições materiais de financiar o tratamento, orçado em R$ 52 mil por mês. A União, em síntese, afirmou que o medicamento não estava registrado na ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) quando da propositura da ação. Porém, na análise do mérito, o Min. Relator declarou que estava registrado até 01/2012, embora não estivesse incluído na Política Farmacêutica da rede pública, não havendo ainda Protocolo Clínico para seu uso perante o SUS. Mas o alto custo do medicamento, por si só, segundo o Min., não justificava a falta de fornecimento. No voto foi sublinhado o caráter fundamental do direito à saúde, que não apenas deve ser objeto de uma proibição de intervenção, que é um postulado de proteção, como também de proibição de proteção insuficiente. O Estado deve dispor de determinado valor para custear toda a estrutura necessária a assegurar a liberdade de todos os cidadãos, porém, no caso da saúde “deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve, portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos (...) Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender) configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‘escolhas trágicas’ pautadas por critérios de macrojustiça” (fls. 5). A seguir, destrincha a análise do artigo 196 da Constituição, o qual reconhece que o direito à saúde em nosso país, na expressão “direito de todos”, constam tanto direitos individuais como 10

A Proposta de Súmula Vinculante nº 4, apresentada pela Defensoria Pública Geral da União, visa à edição de súmulas vinculantes que tornem expressas “a responsabilidade solidária dos entes da federação no que concerne ao fornecimento de medicamentos e tratamentos” e “a possibilidade de bloqueio de valores públicos para o fornecimento de medicamento e tratamento, restando afastada, por outro lado, a alegação de que tal bloqueio fere o artigo 100, caput e §2º, da Constituição de 1988”. No Recurso Extraordinário nº 566.471, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, reconheceu-se a repercussão geral do recurso extraordinário que questiona se situação individual pode, sob o ângulo do alto custo, pôr em risco a assistência global à saúde do todo. Trata-se do direito ao fornecimento de medicamento de alto custo, imprescindível para o tratamento da doença de hipertensão pulmonar, e não previsto na relação de fármacos dispensados pelo SUS.

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coletivos, caracterizando-se como um “direito público subjetivo assegurado à generalidade das pessoas, que conduz o indivíduo e o Estado a uma relação jurídica obrigacional”, como já assentado nas decisões anteriores comentadas. Foi estipulado no acórdão que os entes federativos possuem responsabilidade solidária para as ações de saúde, não sendo viável atribuir maior responsabilidade a um do que a outro para tal tipo de dispêndio. Como será compensado entre os entes os gastos não foi mencionado, e nem era objeto do caso. Fernando Scaff sintetizou os principais pontos da decisão11: T

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1) Quando a ação de saúde pretendida for prevista nos textos normativos e não estiver sendo prestada: O Poder Judiciário deve intervir a fim de fazer cumprir a norma12,13. T

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2) Quando a ação de saúde pleiteada não estiver entre as políticas do SUS, é imprescindível distinguir se ela decorre: a) De uma omissão legislativa ou administrativa: deverá ser privilegiado o tratamento estabelecido pelo SUS, e serem feita revisões periódicas dos protocolos de saúde, sendo permitido ao Poder Judiciário intervir caso um indivíduo comprove que o tratamento fornecido não é adequado para atender o seu caso. b) De uma decisão administrativa de não fornecê-la em virtude de: i) O SUS fornece tratamento alternativo: igualmente deverá ser privilegiado o tratamento disponibilizado pelo SUS, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política existente14. T

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(ii) O SUS não possui tratamento para a patologia: (1) Por ser um tratamento meramente experimental: neste caso caracterizase como pesquisa médica e não é possível o Poder Judiciário deferir os pleitos efetuados. 11

NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury, Op. cit, p. 126.

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“No Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas, em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento das políticas já existentes” (fls. 17). 13

No caso “a”, na hipótese de se pretender obter medicamento não registrado na ANVISA, um dos pontos mais realçados na Audiência Pública foi a proibição legal de a Administração fornecê-lo, inclusive os importados. A Lei nº 6.360/76, que dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, em seu artigo 12 assevera que “nenhum dos produtos de que trata esta lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde”. O registro de medicamento é uma garantia à saúde pública, lembrando que o artigo 196 também vislumbra o aspecto de defesa do direito à saúde, ao dizer que as políticas sociais e econômicas visam a redução do risco de doença e de outros agravos. 14

Decidiu-se que o SUS só terá obrigação de prestar as ações conforme as políticas sociais e econômicas públicas elaboradas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, pois filia-se à corrente da Medicina baseada em Evidências. “em geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente” (fls. 20/21). Foi reconhecida “a possibilidade de o Poder Judiciário ou a própria Administração, decidir que medida diferente da custeada pelo SUS deve ser fornecida a determinada pessoa que por razões específicas do seu organismo, comprove que o tratamento fornecido não é eficaz em seu caso”, sendo necessárias “revisões periódicas dos protocolos existentes e de elaboração dos novos protocolos”.

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(2) Por ser um novo tratamento ainda não testado pelo SUS, mas disponível na rede privada: o Poder Judiciário poderá intervir, em ações individuais ou coletivas, para que o SUS dispense aos seus pacientes o mesmo tratamento disponível na rede privada, mas desde que haja instrução processual probatória, o que inviabiliza o uso de liminares15. T

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c) De uma vedação legal à sua dispensação: esta hipótese, a despeito de elencada pelo acórdão, não foi tratada em seu texto. Cremos que no item 1, decidiu de forma acertada o Supremo Tribunal Federal, pois há uma clara disposição normativa já delineada e que está sendo descumprida, devendo o Judiciário intervir para torná-la eficaz. Em relação ao item 2.c, não houve deliberação do STF, mas, a priori, é correto o indeferimento judicial de ações de saúde expressamente proibidas por normas, sem deixar de considerar possível circunstancia do caso concreto que demande solução diferenciada, a partir de forte argumentação jurídica neste sentido (poderá valer-se de princípios que consigam superar a regra, pois a princípio o magistrado não deve decidir contra legis). Quanto ao item 2.b.ii.1, o entendimento da excelsa Corte é de se aplaudir, pois soube reconhecer o aporte teórico e técnico de outros ramos do saber necessários as causas em saúde, como a apreensão do paradigma adotado da Medicina Baseada em Evidencias, além de obedecer ao aspecto de defesa que o direito a saúde possui (como qualquer direito fundamental), justamente o de proteger a integridade dos cidadãos, evitando-se riscos. Portanto, tratamento experimental não deve ser requerido do Estado brasileiro e provido pelo Judiciário. Os tópicos mais polêmicos são o 2.a e 2.b.ii.a, pelos quais o STF previu a possibilidade de intervenção judicial, por meio de pleitos individuais ou coletivos. De certa forma, pode significar a manutenção do atual quadro, mesmo tendo sido recomendada a dilação probatória, o que dificultaria a concessão de liminares. Há quem discorde da concessão de tal tipo de prestação em ações individuais, como 16

Scaff . José Reinaldo de Lima Lopes demonstra que há uma dificuldade na implementação dos T

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direitos sociais pelo Judiciário, pois é dificultada a percepção de contextos amplos pelo julgador17. T

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A cultura jurídica brasileira foi tradicionalmente marcada por um viés individualista. Tal modelo foi pensado e é eficiente para a solução de conflitos (lides) entre indivíduos (quando os interesses em embate são particulares). Porém, sua aplicação a hipóteses em que os interesses 15

Nesta, “parece certo que a inexistência de Protocolo Clínico no SUS não pode significar violação ao princípio da integralidade do sistema, nem justificar a diferença entre as opções acessíveis aos usuários da rede pública e as disponíveis aos usuários da rede privada. Nesses casos, a omissão administrativa no tratamento de determinada patologia poderá ser objeto de impugnação judicial, tanto por ações individuais como coletivas”, havendo necessidade de instrução probatória, o que compromete a concessão de cautelares (fls. 22). 16

NUNES, António José Avelãs; SCAFF, Fernando Facury. Op. cit, p. 127.

17

LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos sociais: teoria e prática. São Paulo: Método, 2006.

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sobrepujam a esfera jurídica dos sujeitos do processo vem se mostrando especialmente nociva. O Poder Judiciário tenta se adaptar à valorização das tutelas coletivas e de notória preocupação com questões sociais. José Reinaldo de Lima Lopes afirma que “o Judiciário está pouco aparelhado para fazer a justiça distributiva na medida em que foi montado e desenhado para supervisionar conflitos individuais e, sobretudo, bilaterais”18. A cultura individualista de T

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solução de conflitos tem levado os membros do Poder Judiciário a ignorar repetidamente as consequências adversas de suas decisões no que tange à efetivação do direito social à saúde. No entanto, diversos estudos indicam que as decisões judiciais nessa matéria, ao buscarem efetivar o direito à saúde em demandas individuais, têm imposto custos elevados ao sistema público sem incrementar significativamente o acesso a seus serviços. Percebe-se, assim, que a intervenção do poder judiciário, apesar de inspirada na compreensão do direito à saúde como direito fundamental, pode não vir a contribuir para a universalização desse direito19. T

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Um estudo profundo sobre as características da judicialização do direito à saúde no Brasil abrangeu mais de 10.000 casos em cinco estados brasileiros (Bahia, Goiás, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul), de 1994 a 2004, e demonstrou que somente 2% deles eram coletivos, sendo massivas as ações de pessoas físicas contra o Estado visando fornecimento de medicamentos ou tratamentos médicos. Ademais, as ações individuais têm índices de êxito muito superiores às ações coletivas20. T

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Como regra geral, o Judiciário foi pensado e aparelhado para efetivar justiça comutativa e não distributiva, no sentido de que faz microjustiça e não macrojustiça. Os direitos sociais estão relacionados ao escopo da macrojustiça, por mais que possam ser veiculados em demandas individuais. Portanto, o foco na implementação do direito a saúde seria a formulação das políticas públicas de saúde e não em sua busca de forma individualizada de medicamentos ou outras ações semelhantes. Neste sentido, os Protocolos formulados pela Administração devem ser obedecidos, não havendo óbice a que se pleiteie perante o Judiciário que sejam inseridos nos Protocolos procedimentos ou medicamentos ainda não previstos, ou uma rígida fiscalização na aplicação dos recursos públicos destinados a tal atividade21. T

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Concordamos que o papel primordial do Judiciário é o de fiscalizar e atuar ante a omissão estatal. Contudo, não ratificamos a postura de quem pretende, implícita ou explicitamente,

18

LOPES, José Reinaldo de Lima, Op. cit., p. 136. O paradigma codificador novecentista, inspirado no Código de Napoleão, baseava-se na justiça comutativa ou retributiva, que trabalha com relações bilaterais, ou jogo da “soma zero”: há o lícito-ilícito, credor-devedor, culpado-inocente, isto é, o resultado pertence, na totalidade, a um vencedor. Para casos envolvendo a justiça distributiva, dá-se um jogo de soma não zero, com caráter plurilateral, não binário. Envolve uma cooperação, em que o produto é criado por todos, e não é algo que será concedido a alguém. Idem, ibidem, p. 145.

19

MAUÉS, Antonio Gomes Moreira. Op. cit.

20

HOFFMANN, Florian F.; BENTES, Fernando R.N.M. Op. cit., p. 383-416, 2008.

21

SCAFF, Fernando Facury. Op. cit., p. 129-130.

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rechaçar todo e qualquer pleito individual em tal âmbito, pois seria nítido retrocesso na proteção de um direito fundamental. Em verdade, como Gustavo Amaral22 diz: a saúde é direito de todos e direito de cada um. T

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Isto denota uma tentativa de escapar do dicotomismo entre saúde direito de todos como a se perceber que está em campo de políticas públicas puras, sem que haja direitos individuais, e saúde direito de cada um, como se possível fosse solver o imbróglio em um silogismo simplista “em que a premissa maior é que saúde é direito de todos e dever do Estado, a premissa menor é que fulano ou fulana necessita de cuidados médicos e a síntese é que logo, o Estado estão obrigado a entregar seja-lá-o-que-for, custe-o-que-custar”23. T

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Visualizamos como se deu o entendimento do STF nos últimos anos acerca do direito à saúde e constatamos as dificuldades de: 1) interpretação de seu conteúdo; 2) qual papel o Judiciário deve ter em relação à sua efetividade. Para nos ajudar neste sentido, propomos o modelo teórico de Ronald Dworkin, a seguir exposto.

3.4 Ronald Dworkin e o papel do judiciário na concretização dos direitos fundamentais Um caminho teórico que se revela atrativo no desafio de compreender qual o papel do Judiciário na discussão posta, pela reflexão quanto aos seus critérios, é o ofertado pelo conceito de direito como integridade de Ronald Dworkin. O jusfilosófo estadounidense, partindo da ideia de que as concepções do direito devem oferecer uma justificativa geral para o exercício do poder coercitivo do Estado, defende que a legitimidade estatal se funda no princípio da integridade24. T

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Na visão dworkiana, o direito deve ser enxergado como um complexo de normas que tem como peculiaridade o poder de apresentar soluções jurídicas a quaisquer situações fáticas, ainda quando estas pareçam não estar direta e devidamente reguladas pelo ordenamento (casos difíceis). Dworkin afirma que a integridade deve ser estudada sob a ótica de dois princípios, o legislativo e o jurisdicional. Aquele exerce a função de exigir dos legisladores que estabeleçam um 22

AMARAL, Gustavo. Saúde direito de todos, saúde direito de cada um: reflexões para a transição da práxis judiciária. In: NOBRE, Milton Augusto de Brito; SILVA, Ricardo Augusto Dias da (coord.). O CNJ e os desafios da efetivaçäo do direito a saúde. Belo Horizonte: Fórum, p. 82, 2011. 23 Para a primeira posição, o dever do Estado é o de desenvolver mecanismos gerais de atendimento e o direito do indivíduo é ao cumprimento dessas políticas, nos limites em que foram estipuladas. A intervenção do Judiciário só seria possível no controle da execução das políticas públicas, no controle das escolhas e dos resultados. Para a segunda, a Constituição outorga um direito subjetivo a saúde: obter prestações estatais com o fim de se chegar a um estado de plenitude de “saúde”, com o único fundamento a condição de cidadão. Por este prisma, a chamada judicialização seria uma tautologia. A Constituição já asseguraria direitos diretamente, devendo o Judiciário zelar para que este seja cumprida. 24

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, cap. 6, 2003. Vale ressaltar que, para o autor, o problema da legitimidade do poder coercitivo não é igual àquele das obrigações políticas e morais dos cidadãos, tendo em vista que nem todas essas obrigações devem ter seu cumprimento exigido pelo Estado e, em alguns casos, o uso da força é justificável ainda contra pessoas que não têm dever de obediência. Porém, mesmo que a existência de obrigações não seja condição suficiente para o emprego da coerção, aproxima-se de uma condição necessária.

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ordenamento coerente ou, em outras palavras, “que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente”25. A integridade jurisdicional exige que esse conjunto de leis seja também encarado de T

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modo coerente e uniforme. O direito como integridade aceita a existência de direitos e responsabilidades jurídicas que devem limitar a atuação dos juízes em consonância com as decisões políticas anteriores. Porém, supõe que a coerência com as decisões anteriores beneficia a comunidade não apenas por ofertar previsibilidade e equidade processual, e sim porque assegura uma igualdade substancial entre os cidadãos, tornando a comunidade mais genuína. Segundo esta concepção, os direitos e responsabilidades decorrem de decisões anteriores ainda que não estejam nelas explícitos, mas desde que procedam dos princípios que justificam a decisão. Tal visão do direito deve ser vista como um conto em que vários autores escrevem partes diversas, dando a esse fenômeno o nome de “romance em cadeia”26. Partindo de tal premissa, T

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ressalta que cada juiz, ao aplicar a lei, estaria escrevendo uma parte do romance desenvolvido, pois, quando dessa atividade, deveria interpretar a lei e os julgados passados e redimensioná-los para uma aplicação no presente. Compreende-se, portanto, a afirmação de que os juízes são igualmente autores e críticos. Seria como se cada capítulo do romance fosse escrito por um juiz diverso e que pretendesse manter uma continuidade lógica da história, mas, concomitantemente, pretendesse criar, a partir dos dados recebidos, um único romance que fosse o mais aprimorado possível. Esse seria o movimento contínuo do direito e em que todos o vissem como um conjunto coerente de normas. A partir de tais considerações, Dworkin recorre a um julgador que ele mesmo considera utópico, denominado Hércules. Seria, portanto, “um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade”27. Hércules, quando a ele fossem dirigidos T

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casos difíceis (hard cases) para julgamento, deveria, antes de apontar a solução jurídica para o caso, visualizar todas as respostas possíveis que o direito permitiria e, desta forma, deveria interpretar a lei e as decisões proferidas no passado a casos semelhantes na busca do melhor conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal. Dwokin, ao exemplificar a atuação de Hércules, pega como exemplo uma ação judicial na qual tem como pedido uma indenização por danos morais, o caso McLoughlin28. T

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Dele imagina todas as possíveis respostas que o direito poderia apresentar ao caso, extraindo seis hipóteses de solução. Ao realizar uma análise geral do direito, seleciona uma das possíveis soluções como a resposta ideal do direito para o caso sujeito à sua tutela, tudo com 25

DWORKIN, Ronald , Op. cit., p. 213.

26

Idem, ibidem, p. 274.

27

Idem, ibidem, p. 287.

28

A senhora McLoughlin sofrera um infarto ao saber da notícia do acidente de automóvel de seu marido e seus filhos e queria receber por isso uma indenização do motorista que provocara o acidente.

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base no conjunto de princípios que considerar mais coerente. Assim, demonstra que o direito está sempre apto a solucionar os casos e, consequentemente, fundamenta sua teoria da integridade. Dworkin não deseja com este exemplo de juiz Hércules, em absoluto, impor a um juiz mortal que aja desta forma, articulando suas hipóteses até tal ponto. Isto é inviável, dadas as circunstâncias reais de atuação dos magistrados, que não possuem o tempo disponível; além disso, um caso difícil não seria o único de sua vida ou o único a esperar sua apreciação. Porém, o que se quer é que o juiz enfrente problemas novos e desafiadores como uma questão de princípio, é isso o que dele exige a integridade; o juiz Hércules é uma analogia de como funciona o raciocínio do direito como integridade. Mesmo estando Dworkin inserto numa realidade jurídica diferente da nossa, pode-se observar, através deste esquema, a possibilidade de aplicação concreta de sua tese ao Direito nacional. Sabemos que a proposta de Dworkin, expressamente, é situada no ordenamento jurídico estadounidense, porém os aportes teóricos desse autor podem ser úteis na busca de soluções de problemas nacionais, tendo em vista a estrutura da atual Constituição conceber normas no sentido explicado: abrangendo tanto regras quanto princípios. Não por acaso, ela inicia com a declaração de princípios, direitos e garantias fundamentais, nos Títulos I e II, quando na Constituição anterior (1967, com a Emenda Constitucional n° 1, de 1969) havia uma declaração de regras no art.153. A Carta Política atual traz valores, ratificando a proposta de Dworkin de direito e moral não serem campos totalmente à parte, como queriam Kelsen e Hart, mas que se interpenetram. Como exemplo, o art. 1º, com os fundamentos da república (soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político), o art. 170, que aborda a função social da propriedade, entre outros tantos. A análise dos direitos sociais em nosso modelo constitucional é fortemente relacionada à maneira como foram positivados. A Constituição Federal de 1988 prevê alguns direitos prestacionais definitivos, como o caso do artigo 208, I, que garante educação básica e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade. Contudo, boa parte dos direitos sociais foram positivados sob a forma de princípios, com a definição de metas e objetivos a serem atingidos pelo Estado, sendo este o caso do direito à saúde. As respostas extraídas do texto constitucional não são atemporais, mas fruto de um processo interpretativo construtivo. Segundo Dworkin, o Direito é uma prática social, cujo significado é construído através de uma atitude interpretativa criativa, informada pelos propósitos do intérprete e atrelada às possibilidades interpretativas impostas pelos fatos e o momento histórico. Quando se está diante de um conflito envolvendo questões de princípios, e neste ponto se defende que o problema da justiciabilidade dos direitos sociais é uma questão de princípios, a integridade exige que as decisões sejam fundamentadas em algum princípio coerente capaz de impor sua autoridade para o caso concreto. As decisões jurídicas devem ser baseadas em 1143

princípios identificáveis de justiça, colocados em uma certa ordem racional. O direito à saúde é plenamente concebível como caso difícil que possui princípios asseverados pelo próprio texto constitucional, como o da universalidade, integralidade e igualdade. Não há como extrair uma regra, uma resposta a priori para todos os casos, um mandamento como o do art. 208, II. O juiz, especialmente o juiz constitucional, que, no Brasil, não são somente os Ministros do STF, pela possibilidade do controle difuso de constitucionalidade, deve respeitar o princípio da integridade. A princípio, soaria contraditória tal afirmação, pois, como vimos, ela diz que devem ser respeitadas as decisões anteriores. Poder-se-ia também argumentar que o modelo de Dworkin foi concebido para um ordenamento de Common Law, em que a força dos precedentes se faz muito mais sentir que em países de Civil Law, como o Brasil. Não obstante, é perceptível que em nosso país esta divisão estanque está em xeque, tendo sido incorporadas, nos últimos anos, uma série de modificações legislativas que nos aproximam da ideia dos precedentes, como a repercussão geral e a súmula vinculante (existe um Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida e Proposta de Súmula Vinculante relativas diretamente à questão da saúde, como exposto). Consequentemente, é ainda mais importante discutir de que forma tais precedentes serão construídos. Devemos recordar que a solução para o caso concreto deve conjugar o passado com o presente, pensando também no futuro, ideia que a integridade defende. Ou seja, pode haver superação do entendimento sedimentado, desde que justificado racionalmente para um caso concreto que não se adéque àquela posição ou que a própria interpretação do direito deva mudar pelas circunstâncias do momento. A interpretação criativa que Dworkin defende não é estática, é dinâmica. Neste viés, é possível visualizar como adequada a mudança de jurisprudência do STF, pois ela está refinando a interpretação de um direito que vinha sendo aplicado sem nenhuma diferenciação no que tange às variadas circunstâncias que podem ocorrer, como vimos no esquema proposto pelo Min. Gilmar Mendes. No capítulo X do mencionado livro, Dworkin desenvolve com mais vagar como seria a postura de Hércules no julgamento de casos constitucionais. Após rejeitar diversas posições teóricas, como o historicismo e o passivismo, o autor se mostra contrário ao chamado ativismo: Hércules não é um ativista. Ele vai recusar-se a substituir seu julgamento por aquele do legislador quando acreditar que a questão em jogo é fundamentalmente de política, e não de princípio, quando o argumento for sobre as melhores estratégias para satisfazer inteiramente o interesse coletivo por meio de metas, tais como a prosperidade, a erradicação da pobreza ou o correto equilíbrio entre economia e preservação29. T

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A partir deste trecho, poder-se-ia a alegar a incompatibilidade da teoria de Dwokin com a imposição de direitos sociais, pois garantiria uma postura mais participativa de Hércules somente 29

DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 474-475.

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quanto à proteção dos direitos fundamentais individuais. Contudo, deve-se compreender o “ativismo” combatido pelo autor nos termos por ele mesmo destacados. O ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como integridade condena o ativismo e qualquer outra jurisdição constitucional similar. Insiste em que os juízes apliquem a Constituição por meio da interpretação, e não por Fiat, querendo com isso dizer que suas decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não ignorá-la. Um julgamento interpretativo envolve a moral política, e o faz da maneira complexa já estudada. Mas põe em prática não apenas a justiça, mas uma variedade de virtudes políticas que às vezes entram em conflito e questionam umas às outras. Uma delas é a equidade: o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção de equidade que convém a uma Constituição. A alternativa ao passivismo não é um ativismo tosco, atrelado apenas ao senso de justiça de um juiz, mas um julgamento muito mais apurado e discriminatório, caso por caso, que dá lugar a muitas virtudes políticas, mas, ao contrário tanto do ativismo quanto do passivismo, não cede espaço algum à tirania. Defendemos que a incompatibilidade, em relação ao ordenamento brasileiro, é aparente. No trecho colacionado, percebe-se que Dworkin afasta, como em outros momentos de suas obras, a possibilidade do magistrado se ater a argumentos de política para fundamentar suas decisões, em detrimento dos argumentos de princípio. Nossa Constituição, ao contrário à dos Estados Unidos, previu os direitos sociais (e o direito à saúde) como direitos fundamentais. Sua proteção, logo de pronto, representa um debate jurídico, mesmo que fatores políticos nunca estejam totalmente afastados, como ele mesmo reconhece e defende quando fala na aplicação de princípios extraídos também da prática política da comunidade. Ademais, nossa Carta Magna deu um passo adiante: o direito à saúde, como outros direitos sociais, além de estar genericamente previsto no rol do artigo 6º, teve sua estrutura deslindada no Título VIII – Da Ordem Social, nos arts. 196 a 200. A regulação constitucional do direito à saúde não se limitou a estabelecer regras, como a do financiamento de tal direito, mas instituiu uma ampla política pública, o Sistema Único de Saúde, e estipulou os princípios regedores de tal política e do direito à saúde como um todo. E princípios que podem ser enquadrados naquela definição de Dworkin, qual seja, de normas balizadoras de cunho moral, para além de uma rígida distinção semântica entre regras e princípios.

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4. Conclusão Após todas essas considerações, pode-se concluir que a justiciabilidade da saúde no Brasil não é ilegítima; ao contrário, o que se está argumentando é que os magistrados devem atuar no campo delimitado pela própria Constituição e, a partir dela, pela Lei Orgânica do SUS e as demais normas reguladoras do direito à saúde. Aqui é o campo dos argumentos de princípio. O que as pesquisas referidas apontam, no fundo, é que os magistrados brasileiros, de um modo geral, não conhecem a regulação deste direito e aplicam somente a primeira parte do artigo 196 da Constituição (a saúde é direito de todos e dever do Estado), ou seja, a crítica é ao modo como tal justicibialidade vem ocorrendo em nosso país. Cremos que é possível, a partir dos aportes da teoria do direito como integridade, enxergar a questão da saúde com outro olhar: aquele de que todos os dispositivos constitucionais devem ser harmonizados entre si e com a prática jurisdicional. O Supremo Tribunal Federal não deixou de reconhecer, pelo contrário, reafirmou a fundamentalidade do direito à saúde. Não foi abandonada a interpretação anterior; o que se está tentando fazer é adequá-la, racionalizar suas inferências para melhor contribuir na concretização deste importante direito. Assim, a teoria de Dworkin é útil para tentarmos deslindar o conteúdo do direito à saúde. Ratificamos a fuga dos dois extremos, como já discutido, pois a Constituição não dá primazia a nenhuma das duas posições, mas concebe as duas conjugadamente. Ademais, devese ter em conta não só sua regulação legislativa, mas especialmente sua estruturação constitucional.

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O conflito entre a judicialização dos direitos sociais e a reserva do possível a partir de uma análise da ADPF Nº 45/DF Heloísa Marinho1 T

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Resumo

Abstract

O tema proposto, o conflito entre a Judicialização dos Direitos Sociais e a Reserva do Possível, surge a partir da ADPF Nº 45/DF, cujo Ministro - Relator é Celso de Mello, que provoca uma discussão a respeito da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, quando existe o argumento da Cláusula da Reserva do Possível como empecilho para a concretização dos direitos sociais. O objetivo do presente artigo é desenvolver uma reflexão acerca da temática para demonstrar que a Judicialização dos Direitos Sociais deve ser analisada no caso concreto ponderadamente, pois os direitos sociais, para serem efetivados, precisam de recursos estatais, ou seja, a questão financeira está intrinsecamente ligada à quaisquer direitos sociais. Portanto, inicialmente, o artigo apresentará um breve relato sobre o julgamento da ADF Nº 45/DF com intuito de contextualizar a temática; depois, explicará a noção e a função da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental; e, por fim, problematizará a temática abordada, a fim de que surjam as discussões, para que se possam obter as conclusões necessárias.

The theme, the conflict between the "Judicialization" of the Social Rights and the Reserve of Possible (available resources), arises from the ADPF No. 45/DF, whose Minister - Rapporteur is Celso de Mello, who leads a discussion about the constitutional legitimacy of the control and intervention the Judiciary in the implementation of public policies, when there is the argument of the Reserve Clause of the Possible as a hindrance to the realization of social rights. The purpose of this research is to develop a reflection on the theme to show that the "Judicialization” of Social Rights should be thoughtfully considered in this case, because social rights, to be paid, need to state resources, ie, the financial issue is intrinsically linked to any social rights. So initially, the paper will present a brief report on the trial of the ADF No. 45/DF aiming to contextualize the topic, then explain the concept and function of the claim of Breach of Fundamental Precept, and finally discuss the issue addressed, so that discussions arise, so you can get the necessary conclusions.

Palavras-Chave: Judicialização; Direito Sociais; Reserva do Possível.

Keywords: Judicialization; Social Rights; Reserve of Possible.

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Estudante do sexto período de Direito da UFPB, bolsista PIBIC 2011/2012 do Projeto “Cidadão! Borandá: Educação em (para) os Direitos Humanos e para a Cidadania junto às crianças quilombolas de Paratibe”. Faz parte do Grupo de Pesquisa Marx e os Direitos Humanos, coordenado pelo profº Drº Enoque Feitosa. E-mail: [email protected] T

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1. Introdução O pior mal já está feito quando se tem pobres para defender e ricos para conter. É apenas sobre a mediocridade que a força das leis se exerce completamente: elas são igualmente impotentes contra os tesouros do rico e contra a miséria do pobre; o primeiro as engana, o segundo lhes escapa. Um rompe a rede, o outro passa através dela. (ROUSSEAU, in Discours sur l'Economie Politique)

A idéia do presente artigo surge a partir da decisão monocrática da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) Nº 45/DF, proferida pelo Ministro – Relator Celso de Mello, que provoca uma discussão a respeito da possibilidade de se obrigar o Poder Público, em específico, o Executivo e o Legislativo, quando o próprio alega a Cláusula da Reserva do Possível, a implementar Políticas Públicas, através do Poder Judiciário. Esta pesquisa procura desenvolver uma reflexão acerca do tema da Judicialização dos Direitos Sociais com o propósito de demonstrar que o provimento antecipado para aceitar o cumprimento forçado de implementação de políticas públicas contra a Fazenda Pública deve ser analisado ponderadamente. Isso porque pouco adiantará, do ponto de vista prático, a previsão normativa ou a refinada técnica hermenêutica se absolutamente não houver dinheiro para custear as despesas geradas por determinados direitos sociais. Apesar de o Estado ter o dever de prestar à sociedade a assistência social, a saúde, a educação, o transporte coletivo, dentre outros direitos constitucionalizados, ele se esbarra com a limitação de sua capacidade orçamentária, portanto ingressa no cenário a questão da Cláusula da Reserva do Possível. Essa vem desencadeando o fenômeno da Judicialização dos Direitos Sociais, pois inúmeras ações judiciais surgem impetradas pela população com o objetivo de provocar o Poder Judiciário, para que este obrigue a Administração a cumprir o dever que a Constituição lhe impõe, garantindo, assim, o exercício dos direitos sociais. Entretanto, nasce a celeuma: Até que ponto o Judiciário tem poderes para superar a ortodoxia dos três poderes e interferir no orçamento estatal a fim de valer os direitos sociais fundamentais, quando esses são negados? O Poder Judiciário não pode ser menos do que deve ser, renunciando direitos fundamentais que poderiam ser realizados com a sua atuação, no entanto, não deve querer ser mais do que pode ser, ou seja, concretizar uns direitos fundamentais em detrimento de outros, causando grave lesão a esses últimos da mesma natureza de outros tantos. Nesse campo, o argumento da reserva do possível é legítimo. Antes de ingressar no debate propriamente dito, o artigo apresentará um breve relato sobre o julgamento da ADF Nº 45/DF e os motivos de sua escolha com intuito de contextualizar a temática; depois, problematizará a temática abordada, a fim de que surjam as discussões, para que se possa obter as conclusões necessárias. 1149

2. Um breve relato da ADPF Nº 45/DF e os motivos de sua escolha A ADPF Nº 45/DF foi promovida contra o veto do Presidente da República ao §2º do Art. 55 (posteriormente renumerado para Art. 59) da Lei Nº 10.707/2003 (Lei de Diretrizes Orçamentárias - LDO), destinada a fixar as diretrizes referentes à elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2004. Tal atitude presidencial representou um desrespeito ao preceito fundamental decorrente da Emenda Constitucional Nº 29/2000 que prevê a aplicação de recursos financeiros mínimos a serem utilizados nas ações e nos serviços públicos de saúde. No entanto, o senhor Presidente da República, logo após o veto parcial questionado, remeteu ao Congresso Nacional novo projeto de lei, que se transformou na Lei 10.777/2003. Essa lei restaurou, através do acréscimo de parágrafos ao Art. 59, a integralidade do texto vetado, ainda a tempo de ser aplicado na criação da LOA de 2004. Assim, o julgamento da ADPF Nº 45/DF, reconhecida em decisão monocrática pelo Ministro Celso de Mello, saiu prejudicada devido à perda superveniente de seu objeto, ou seja, o motivo do ajuizamento da ação constitucional foi suprimido. Apesar dessa perda do objeto, é importante frisar que a escolha da ADPF Nº 45/DF para tratar da temática abordada nesta pesquisa não foi aleatória, pois, ao proferir sua decisão monocrática, o Ministro Celso de Mello aproveitou o ensejo para debater pontos importantes, tais como: (a) A legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, quando existe a hipótese de abusividade governamental; (b) A apreciação em torno da Cláusula da Reserva do Possível; (c) A necessidade de preservar a integridade e a intangibilidade em favor do indivíduo, através da Teoria do Mínimo Existencial. Além disso, segundo a pesquisadora Ada Pellegrini Grinover2, a ADPF Nº 45/DF foi o T

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posicionamento mais representativo proveniente do STF a favor da interferência do Poder Judiciário no controle de Políticas Públicas. Isso porque até então os tribunais estavam restritos a verificar se as políticas eram, ou não, legais. Atualmente, é possível convocar o Judiciário, para que este exerça o controle das políticas públicas, caso o Legislativo e/ou o Executivo deixem de cumprir seus papéis. Essa atitude tem o objetivo de evitar que os direitos fundamentais, previstos na Constituição Federal brasileira, sejam violados. Não é impróprio afirmar que todas as pessoas são titulares de direitos fundamentais e que a qualidade de ser humano constitui condição suficiente para a titularidade de tantos desses direitos. Alguns direitos fundamentais específicos, porém, não se ligam a toda e qualquer pessoa. Na lista brasileira dos direitos fundamentais, há direitos de todos os homens – como o direito à vida -, mas há também posições que não interessam a todos os indivíduos, referindo-se apenas a alguns – aos trabalhadores, por exemplo. Isso significa que o constituinte 'também quis privilegiar certos bens que vêm satisfazer necessidades do homem histórico, 2

GRINOVER, Ada Pellegrini. Roteiro de Legislações e Julgados mencionados em 8 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.lfg.com.br/images/congresso/prof_ada roteiro.pdf. Acesso em: 10 de nov. 2011. T

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isto é, de alguns homens na sua específica posição social. A fundamentalização desses direitos implica reconhecer que determinados objetivos vitais de algumas pessoas têm tanta importância como os objetivos básicos do conjunto dos indivíduos.3 T

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No entanto, sabe-se que o fenômeno da Judicialização dos Direitos Sociais não é observado de forma pacífica por respeitáveis doutrinadores, pois estes costumam alegar que a provocação4 e a atuação do Poder Judiciário em prol da efetivação de direitos sociais ferem a T

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Ortodoxia dos Três Poderes e demandam, através de políticas públicas, na maioria das vezes, gastos públicos. Essa última argumentação é o ponto central do debate, visto que uma decisão judicial pode obrigar o Estado, com intuito de tutelar um determinado direito social no caso concreto, a realizar gastos superiores aos seus recursos públicos disponíveis, o que pode prejudicar o amparo de um outro direito compreendido como mais importante pelo Poder Público. Portanto, nota-se, a princípio, um verdadeiro embate entre a Cláusula da Reserva do Possível e a Judicialização dos direitos sociais.

3. O conflito entre a cláusula da reserva do possível e a judicialização dos direitos sociais Antes do surgimento do Estado de Direito Social5, o orçamento público era visto T

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simplesmente como um documento contábil, em que existia a previsão das receitas e a autorização das despesas a serem efetuadas pelo Estado. Tradicionalmente, o orçamento público não prezava pelos planos governamentais e pelos interesses coletivos, pois o importante era manter o equilíbrio financeiro, sem expandir os gastos públicos. Atualmente, o orçamento passou a espelhar toda a vida econômica da Nação, pois No Estado moderno, não mais existe lugar para orçamento público que não leve em conta os interesses da sociedade. Daí porque o orçamento sempre reflete um plano de ação governamental. Daí, também, seu caráter de instrumento representativo da vontade popular, o que justifica a crescente atuação legislativa no campo orçamentário.6 T

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3

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. - 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 274.

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4

O Judiciário é um poder que só atua mediante provocação. Se o Executivo e o Legislativo podem dar início espontaneamente a reformas, o mesmo não se dá com o Judiciário. Este depende de provocação dos interessados. Mesmo nas ações civis públicas, substitutos processuais de interesses coletivos, não havendo, ou não aparecendo interessados na propositura de tais ações, a questão ficará adstrita aos meios individuais de defesa de interesses, fazendo com que se fragmentem decisões que, a rigor, deveriam atingir toda uma política. LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo Faria (org.). 1ªe.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 134.

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5

Este artigo optou por utilizar essa expressão, ao invés de Estado Social de Direito, com intuito de caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a realização dos direitos fundamentais de caráter social, logo é importante manter a expressão Estado de Direito, que já tem uma conotação democratizante, mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado Social de Direito, diríamos Estado de Direito Social. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 117.

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HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 19. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2010, p. 58.

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A partir do Estado de Direito Social, nasce a intervenção positiva do Poder Público, através de políticas públicas e do orçamento, na ordem econômica e social. Entretanto, a relação orçamento público e políticas públicas é dialética, pois enquanto o orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das políticas públicas, estas são limitadas pelas possibilidades financeiras e pelos princípios orçamentários, tal como, do equilíbrio. Percebe-se que, apesar das políticas públicas serem “providências para que os direitos se realizem, para que as satisfações sejam atendidas, para que as determinações constitucionais e legais saiam do papel e se transformem em utilidades aos governados”7, os direitos sociais, assim T

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como todos os outros direitos fundamentais, não podem ser admitidos como conteúdos absolutos e aplicáveis a todos os casos de um modo definitivo, pois é essencial que seus interesses sejam verificados no caso concreto. É comum, já que o Estado não cria recursos, apenas gerencia os que recebe da sociedade, utilizar-se como argumento limitador das prestações estatais, principalmente, no que se refere aos direitos sociais, a Cláusula da Reserva do Possível. O conceito de “Reserva do Possível”, proveniente do direito alemão, estabelece três condições, para que as políticas públicas sejam implementadas: (i) Existência de recursos financeiros suficientes; (ii) Desimpedimento jurídico de dispor desses recursos devido à distribuição de receitas e competências (federativas, orçamentárias,

tributárias, administrativas e legislativas); (iii) Razoabilidade daquilo que está

sendo solicitado. É preciso muita cautela diante do argumento da Cláusula da Reserva do Possível, pois o Brasil, de acordo com dados da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico)8, em 2009, apresentou a 14ª colocação no ranking mundial dos países com maior T

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carga tributária. O brasileiro paga mais tributos do que os habitantes do Reino Unido, do Canadá, da Espanha e dos Estados Unidos, comprovando que o problema não está na falta de recursos públicos para a efetivação dos direitos sociais, mas sim na gestão – ineficiente ou mesmo corrupta. Além disso, o Poder Judiciário, quando provocado adequadamente, pode ser um instrumento essencial para a implementação de políticas públicas. É o caso da previdência social brasileira que se não fosse a reivindicação dos cidadãos, em massa, via judicial, por seus interesses ou direitos, hoje, os brasileiros estariam ainda desprovidos dessa garantia constitucional. Entretanto, faz-se necessário que essas reivindicações não tenham caráter

7

OLIVEIRA, Régis Fernandes de apud Mânica, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas. Disponível em: http://www.advcom.com.br/artigos/pdf/artigo_reserva_do_possivel_com_referencia_.pdf . Acesso em: 20 de nov. 2011. T

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8

AMARAL, Letícia Mary Fernandes do. Brasil sobre no ranking mundial dos países com maior carga tributária. Disponível em: http://www.ibpt.com.br/img/_publicacao/13891/189.pdf . Acesso em: 26 de nov. 2011. T

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meramente individual, mas sim social, ou seja, na defesa de interesses difusos antes de interesses individuais homogêneos, para que efetivamente se fale em políticas públicas. A organização política que nos rege já não está sujeita somente à lei, mas tem ainda a obrigação constitucional de promover ativamente a realização dos valores constitucionais. De mãos dadas com o modelo de Estado Social de Direito vão os princípios de indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, já não havendo lugar para diferenciações entre direitos de primeira, segunda e terceira geração, em matéria de sua proteção e promoção. A passagem de Estado de Direito a Estado Social de Direito representa, além disso, uma mudança na teoria política, passando de uma concepção de competência do Estado a uma concepção axiológica, na qual as normas não são vistas exclusivamente como regras, mas também como princípios requeridos de ponderação e maximização. Um exemplo simples pode demonstrar isso muito bem: antes os juízes não intervinham frente às omissões da administração em matéria de reconhecimento de pensão em virtude de separação de funções entre os ramos do poder público; hoje em dia eles intervêm e analisam o procedimento das autoridades públicas quando sua inação pode comprometer direitos fundamentais.9 T

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No âmbito da saúde, a judicialização tem seus defensores e seus críticos, já que há casos, em que tal fenômeno, provoca a desorganização do SUS (Sistema Único de Saúde) e, até mesmo, o benefício de alguns pacientes em detrimento de outros que estejam, talvez, em maior urgência. Por exemplo, caso um paciente ajuíze uma ação contra a União, exigindo um transplante de fígado e o juiz defira o pedido imediatamente. Na fila de transplantes, ao passar à frente de outros indivíduos que estão na mesma situação daquele paciente, a decisão judicial não afetou apenas as partes envolvidas no processo (a União e o paciente que solicitou o transplante), mas todos os indivíduos que necessitam de transplante de fígado, inclusive os que residem em outro Estado. O mesmo ocorre com a solicitação de medicamentos de alto custo que não estão padronizados pelo Estado, é evidente que o gasto com um determinado indivíduo termina por privar a coletividade de outros tratamentos de assistência à saúde. Por outro lado, há inúmeros exemplos de ações judiciais que proporcionaram a melhoria do SUS ao regularizar o fornecimento de medicamentos excepcionais e ao assegurar o investimento mínimo obrigatório de 12% da receita de impostos pelo Estado em saúde, previsto no Art. 198 da CF/88 e no Art. 77 do ADCT. Sabe-se que o direito à saúde abordado pela ADPF Nº 45/DF é um preceito fundamental que se encontra no rol dos direitos sociais. Estes direitos, expressos na Constituição de 1988, podem ser divididos didaticamente em: a) Direitos à seguridade social (saúde, previdência social, assistência social); b) e outros direitos (cultura, educação e desporto; ciência e tecnologia; comunicação social; meio ambiente; família, criança, adolescente e idoso; índios).

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ARANGO, Rodolfo. Constitucionalismo, Estado Social de Direito e realização integral dos direitos. In: Ortiz, Maria Elena Rodriguez (Org.). Justiça Social: uma questão de direito. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2004, p.28. T

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'linhas programáticas dirigidas ao legislador, e não como autênticas normas jurídicas imediatamente preceptivas e directamente aplicáveis pelos tribunais ou quaisquer outras autoridades'. Essa é a linha que as constituições e a doutrina (alemã especialmente, com reflexo em Portugal) vêm tentando superar.10 T

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Contudo, o debate da presente pesquisa não se limitará a questão do direito à saúde, ao contrário, busca-se promover uma ampliação na abordagem ao englobar uma discussão dos direitos sociais de modo geral.

4. Direitos sociais: direitos públicos subjetivos? Na Alemanha, no final do século XIX, desenvolve-se a figura jurídica do direito público subjetivo em um contexto de uma Constituição do Estado Social de Direito. Segundo o jurista alemão Georg Jellinek, o direito público subjetivo é “o poder da vontade humana que, protegido e reconhecido pelo ordenamento jurídico, tem por objeto um bem ou interesse”11. Na época de seu T

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surgimento, essa figura jurídica trouxe como inovação a possibilidade do indivíduo constranger judicialmente o Estado a executar a prestação devida em benefício de um particular. Atualmente, quando se menciona o direito público subjetivo significa que o cidadão está habilitado a exigir dos Poderes Públicos seja a prestação direta ou a indenização. Entretanto, é fundamental não transformar a interpretação da norma programática em uma promessa constitucional inconseqüente, pois os direitos sociais, para serem efetivados, precisam de recursos estatais, ou seja, a questão financeira está intrinsecamente ligada a quaisquer direitos sociais. Com relação ao direito à educação, o Art. 208 da CF/88 afirma que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo. Porém, no RE-AgR 463.210-1, por exemplo, relativo à matéria de obrigação estatal em oferecer vagas em creches e pré-escolas para crianças de zero a seis anos de idade, o Município de Santo André sustenta que a questão em debate no agravo regimental envolve aspectos de orçamento e depende da disponibilidade do erário público. Nesse caso, é importante visualizar o risco que a qualidade de ensino é exposta pelo ingresso de número de crianças além daquele que a rede municipal pode suportar. O direito à educação é mais do que um direito de não ser excluído de uma escola. Logo, salas superlotadas não garantem uma boa qualidade de ensino e de aprendizado. “Ora, se a vaga não existe, se não existe tempo livre, se não há material escolar a baixo custo, como garantir juridicamente tal direito? Como transformá-lo de um direito à não interferência (permissão, dever 10

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7 e.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 139. T

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11 JELLINEK, Georg apud DUARTE, Clarice Seixas. Direito Público Subjetivo e Políticas Educacionais. Revista: São Paulo em Perspectiva, 18 (2): 113 – 118, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/spp/v18n2/a12v18n2.pdf . Acesso em: 15 de nov. 2011. T

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de abstenção) em um direito à prestação (dever de fazer, obrigação) de alguém?”12 Nos direitos T

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coletivos, não se trata de conservar uma situação de fato existente, como ocorre com os direitos individuais, por exemplo, a privação do direito de liberdade, que é restituído por meio de um remédio constitucional como o habeas corpus, mas sim de criar situações para sua efetivação o que, geralmente, exigem recursos públicos. Contudo, no Brasil, em 2010, destinou-se 44,93% (R$ 635 bilhões) do total do orçamento geral da União (R$ 1,4 trilhão) ao pagamento de juros e amortizações das dívidas do Governo Federal, enquanto que a educação recebeu apenas 2,89% do valor total.13 Segundo a ONU T

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(Organização das Nações Unidas), o Brasil investe em média US$ 959 anualmente por pessoa em idade escolar para a educação, a ciência e a cultura (Unesco). Esse valor fica atrás de países como Argentina (US$ 1.578), Botswana (US$ 2.203), Cuba (US$ 3.322), Portugal (US$ 5.592), França (US$ 7.884) e Noruega (US$ 15. 578). A partir desses dados, verifica-se que a educação não é uma prioridade para o Estado brasileiro. Além disso, de acordo com o Departamento de Patrimônio e Probidade da AGU (Advocacia Geral da União), é essencial uma maior fiscalização nos recursos públicos destinados à educação e, também, à saúde, já que essas áreas são as grandes responsáveis por 70% dos desvios de verbas no Brasil. Outro exemplo, que mostra o quanto se deve ter cautela com relação à interpretação das normas programáticas, é a Lei 9.536/97 (Transferência Obrigatória de Aluno), pois ao obrigar as universidades públicas a aceitarem estudantes oriundos de instituições privadas de ensino superior pode levar a instituição a abrir mais vagas do que sua capacidade financeira permite. Fora que fere o princípio da igualdade, visto que os estudantes ingressam nas universidades públicas sem se submeter ao vestibular como os demais. Em 26 de fevereiro de 2007, a Ministra Ellen Gracie apresentou, através da STA (Suspensão de Tutela Antecipada) Nº 91, uma novidade com relação aos casos envolvendo o fornecimento de medicamentos pelo Poder Público. O Estado de Alagoas solicitou a suspensão da execução da tutela antecipada concedida na Ação Civil Pública Nº 001.06.014309-7, que determinava àquele ente federado o fornecimento de medicamentos necessários para o tratamento de pacientes renais crônicos em hemodiálise e pacientes transplantados. Em um novo entendimento, exposto na STA Nº 91, Ellen Gracie afirmou que o direito à saúde não pode abarcar uma parcela dos enfermos, pois era essencial a efetivação de políticas públicas que atendessem a população como um todo. Logo, só seria obrigatório o fornecimento de remédios que constassem na lista do SUS (Sistema Único de Saúde). Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que 12

FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo Faria (org.) 1e.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 127. T

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Dados extraídos do site BRASIL DE FATO. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/content/10-do-pib-paraeduca%C3%A7%C3%A3o-j%C3%A1. Acesso em: 28 de nov. 2011. T

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alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados '(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)' (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. (...) Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer tratamento aos associados (fl. 59). É que, conforme asseverou em suas razões, '(...) a ação contempla medicamentos que estão fora da Portaria n.° 1.318 e, portanto, não são da responsabilidade do Estado, mas do Município de Maceió, (...)' (fl. 07)14 T

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Os direitos sociais foram dirigidos aos indivíduos mais na perspectiva de grupos, comunidades, corporações e classes a que pertencem do que tomados isoladamente, como cidadãos livres e anônimos. Ao passo que os direitos fundamentais individuais têm um autor que pode reivindicá-los, os direitos sociais representam uma coletividade. O Estado tem o poder de limitar os direitos sociais, logo é o único que pode concretizá-los. Ao contrário da maioria dos direitos individuais tradicionais, cuja proteção exige apenas que o Estado jamais permita sua violação, os direitos sociais não podem simplesmente ser 'atribuídos' aos cidadãos; cada vez mais elevados à condição de direitos constitucionais, os direitos sociais requerem do Estado um amplo rol de políticas públicas dirigidas a segmentos específicos da sociedade – políticas essas que têm por objetivo fundamentar esses direitos e atender às expectativas por eles geradas com sua positivação.15 T

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À primeira vista, a decisão da Ministra Ellen Gracie pode ser entendida como “injusta”, “desumana”, “inconstitucional”, pois o direito à saúde, previsto no Art. 196 da CF/88, é tido como direito de todos e dever do Estado, logo sua proteção, nas constituições contemporâneas, costuma ser inseparável de suas garantias. Contudo, esse tem sido o grande paradoxo dos direitos humanos – e também dos direitos sociais – no Brasil, ou seja, apesar de garantidos formalmente no texto constitucional, em termos de efetivação, concretização, quase de nada valem quando os homens historicamente localizados se reduzem à mera condição genérica de “humanidade”. Por isso é fundamental um Estado capaz de identificar as diferenças e as particularidades dos cidadãos, para que possa promover a justiça social16, a fim de tentar corrigir T

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as disparidades sócio-econômicas.

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GRACIE, Ellen. STA 91 – Ação Civil Pública – Fornecimento de Medicamentos – Ente Federado. Disponível em: http://www.almeidamelo.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3057&Itemid=39 . Acesso em: 15 de nov. 2011. T

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15 FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo Faria (org.) 1e.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 105. T

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Princípio da justiça social, referido no art. 170, caput, e no art. 193, como princípio da ordem econômica e da ordem social; a Constituição não prometeu a transição para o socialismo mediante a realização da democracia participativa, como o fez a Constituição portuguesa, mas com certeza ela se abre também, timidamente, para a realização da democracia social e cultural, sem avançar significativamente rumo à democracia econômica. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 123. T

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Os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento formalmente uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios. Os direitos sociais são politicamente editados com o objetivo de socializar riscos, neutralizar perdas e atenuar diferenças, mediante tratamentos diversificados por parte das múltiplas instâncias do setor público.17 T

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Nas sociedades não tipicamente tradicionais e fracamente integradas, sujeitas a fortes discriminações sócio-econômicas e político-culturais, como a brasileira, as declarações em favor dos direitos humanos e sociais têm uma função apenas tópica, retórica, ideológica nos textos constitucionais. Elas tendem a ficar apenas enunciadas e/ou propostas com o intuito de forjar as condições simbólicas necessárias para uma assimilação acrítica da ordem jurídica, além de exercer um importante papel de instrumento ideológico de controle das expectativas sociais.

5. Conclusão Diante do que foi exposto ao longo da presente pesquisa, não se pode negar, a temática “O Conflito entre a Judicialização dos Direitos Sociais e A Reserva do Possível” não é pacífica. Apesar de o Poder Judiciário ter um direito assegurado pela Constituição de solucionar lesões de direito quando lhe são apresentados, logo sempre haverá algum grau de judicialização, o que se questiona neste artigo é o excesso da judicialização. Isso porque demonstra a ineficácia dos serviços públicos (saúde, educação etc) e mesmo a corrupção na gestão administrativa dessas áreas, o que deveriam ser solucionados de outra maneira. É possível a intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas, porém isso deve ocorrer de forma excepcional, ou seja, sempre quando a omissão estatal se revelar particularmente grave ao ponto de comprometer a eficácia e a integridade de direitos individuais impregnados de competência constitucional, mesmo que tenham sido oriundos de cláusulas revestidas de caráter programático. Entretanto, é fundamental saber em que condições se dariam essa intervenção, quando o Poder Público, em específico o Executivo e o Legislativo, negar a implementação de políticas públicas sob o argumento da Cláusula da Reserva do Possível. Portanto, as condições se traduzem em um binômio que compreende: de um lado (1) a razoabilidade da pretensão individual/ social deduzida em face do poder público e, de outro (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetiva as prestações positivas dele reclamadas. Isso significa que existindo a presença concomitante daquelas duas condições, não poderá ocorrer a negação

17

EDWALD, François apud FARIA, José Eduardo. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo Faria (org.). 1ªe.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 105-106. T

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da tutela jurisdicional. Contudo, sabe-se que, na prática, surgem diversas situações que impossibilitam aferir a existência daqueles requisitos, logo torna difícil a execução do comando emergente do julgado. Além disso, é preciso pensar em propostas de solução para a sobrecarga do Judiciário, pois, em 2008, o STF (Supremo Tribunal Federal), composto de 11 magistrados que julgam todo tipo de caso como última instância, recebeu 65.880 processos, demonstrando que é fácil alegar se a morosidade do Poder Judiciário, porém não se observa o contexto, em que estes profissionais estão inseridos. No Brasil, há uma cultura de litigância que tem a ver com a formação profissional, logo estudantes de direito não costumam ser preparados para usar instrumentos de negociação, tais como, a conciliação, a mediação e a arbitragem, mas para serem adversários, gladiadores, o que pode ocasionar esse congestionamento do Judiciário. Enfim, vale frisar que a presente pesquisa ainda não está concluída, pois inúmeros fatores ainda precisam ser analisados, porém, a princípio, pode-se concluir que o excesso da Judicialização dos Direitos Sociais é prejudicial ao ordenamento jurídico brasileiro, pois, além de sobrecarregar o Poder Judiciário e de assegurar um direito de um indivíduo em particular em detrimento dos direitos de outros, muitas vezes as decisões judiciais favoráveis aos pedidos pela efetivação dos direitos sociais (saúde, educação etc) disfarçam os problemas de gestão pública, o sub-investimento nessas áreas sociais ou mesmo a corrupção.

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LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. José Eduardo Faria (org.). 1ªe.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. - 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. OLIVEIRA, Régis Fernandes de apud Mânica, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas.

Disponível

em:

http://www.advcom.com.br/artigos/pdf/artigo_reserva_do_possivel_com_referencia_.pdf. Acesso em: 20 de U

U

nov. 2011. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7 e.d. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. ___________________. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11.ed. São Paulo: Malheiros, 1996.

1159

O poder judiciário enquanto “última ratio” dos vulneráveis: a judicialização das políticas públicas relativas à previdência social no Brasil Júlia Lenzi Silva1 Juliana Presotto Pereira Netto2 Resumo

Abstract

O presente artigo intenta problematizar o crescente processo de judicialização das políticas públicas relativas à Previdência Social, ressaltando-se as especificidades deste fenômeno e buscando passar ao largo dos argumentos retórico-simplificados, uma vez que estes impossibilitam o alcance de uma compreensão mais aprofundada do complexo contexto em que se insere essa dinâmica social. A partir da categoria de políticas públicas constitucionais vinculadas, discute-se o paradoxo existente entre a constitucionalização dos direitos sociais (essencialmente prestacionais) na Constituição de 1988, e a adoção do Neoliberalismo como política de Estado, cujas diretrizes centrais propugnam pela diminuição do aparelho estatal e redução dos gastos sociais. Contextualizado o grave descompasso entre o ser e dever-ser da legislação social no âmbito da lógica de mercado, passa-se à caracterização do processo previdenciário, salientando-se suas especificidades e denunciando-se que as mesmas não vêm sendo consideradas pela lógica estritamente econômica que orienta a atuação do Instituto Nacional do Seguro Social. Nesse sentido, destaca-se a prevalência do princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial, fundamento da maioria das decisões denegativas de benefícios na esfera administrativa, em contraposição aos demais princípios que conformam a sistemática da Seguridade Social brasileira (art. 194, CF). Postas as premissas teóricas necessárias, foca-se a análise na atuação do Poder Judiciário enquanto ultima ratio dos vulneráveis, destacando-se sua função realizadora, cuja concreção se dá por meio de uma hermenêutica constitucional verdadeiramente comprometida com a efetivação dos comandos normativos na realidade concreta e cotidiana, daqueles e daquelas que ainda permanecem estrangeiros em face da proteção social. T

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This article attempts to confront the growing process of judicialization of public policy relating to Social Security, highlighting the specificity of this phenomenon and trying to pass off the rhetorical-simplified arguments, since they make it impossible to reach a deeper understanding of the complex context in which it appears that social dynamics. From the category of public policies related constitutional, discusses the paradox between the constitutionalisation of social rights (essentially payments) in the 1988 Constitution, and the adoption of neo-liberalism as state policy, whose guidelines advocate the reduction of the central state apparatus and reduction in social spending. Contextualized the serious gap between being and should be 'social legislation within the logic of the market, is the characterization of the pension process, highlighting their specialties and complaining that they do not see it being considered by the strictly economic logic that drives the performance the National Institute of Social Security. Notably, the prevalence of the principle of preserving the financial and actuarial balance, the foundation of most decisions denied benefits at the administrative level, in contrast to other principles that make up the systematic Brazilian Social Security (Article 194, Federal Constitution). Put the necessary theoretical assumptions, the analysis focuses on the role of the judiciary as ultima ratio of the vulnerable, especially fulfilling its function, which sintering takes place by means of a constitutional hermeneutics truly committed to the enforcement of legal standards in the concrete reality and daily, of those who remain strangers in the face of social protection.

Palavras-Chave: Poder Judiciário; Políticas Públicas; Direitos Sociais Prestacionais; Processo Judicial Previdenciário.

1

Bacharel e Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de a Franca/SP, sob a orientação da Prof . Dra. Juliana Presotto Pereira Netto. Bolsista FAPESP. [email protected].

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2

Professora Doutora do Curso de Direito da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” – UNESP, campus de Franca/SP. [email protected]. T

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1. Introdução Não seremos uma nação enquanto um só de nós permanecer estrangeiro face à proteção social, despossuído, despojado de direitos e de liberdade, porque luta, as 24 horas do dia, apenas para sobreviver por um triz.3. T

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Com o advento da Constituição de 1988, o Estado brasileiro restou caracterizado como sendo Democrático de Direito. Tal opção política conceitual pressupõe o respeito, a validade e a concretude de dois signos essenciais a essa forma de organização estatal: a democracia e os direitos fundamentais. Portanto, pode-se afirmar que os direitos humanos e fundamentais são elementos operativos-constitutivos do Estado Democrático de Direito no Brasil, o quê nos permite vislumbrar que esse mesmo Estado tem poderes-deveres de proteção e de efetivação destes referidos direitos normativamente previstos. Todavia, conforme destaca Rogério Gesta Leal: [...] há um profundo esvaziamento do Estado e da Sociedade Democráticos de Direito na terra brasilis na medida em que, mesmo havendo já um significativo esclarecimento sobre os objetivos, finalidades e princípios a serem perseguidos e que informam a República Federativa, em termos de direitos, deveres e garantias, paradoxalmente, inexistem ações públicas e privadas suficientemente capazes de concretizá-los haja vista que o plano desafiante destes compromissos não reside tão somente na dimensão sintática ou semântica de suas possibilidades, mas também na pragmática, profundamente exposta às manipulações de atores sociais (fundamentalmente de mercado) que não partilham do mesmo projeto constitucional de civilidade formalmente instaurado4. T

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Há, portanto, um profundo descompasso entre “uma constituição que reconhece e assegura direitos e uma Sociedade na qual se reconhecem violações constantes e gravíssimas dos Direitos Humanos5”. Tal cenário torna-se ainda mais agravado quando analisado da T

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perspectiva dos direitos sociais, cujos dispositivos aparecem previstos em normas com propósitos compensatórios, redistributivos e protetores, que intentam romper com o primado liberal da igualdade formal6. T

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3

ABRANCHES, Sérgio. Questão social, previdência e cidadania no Brasil. In GOMES, Angela de Castro; SOUZA, Amaury de... [et. al.]. Trabalho e previdência: 60 anos em debate. Angela de Castro Gomes (Org.). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1992. pp. 79-80.

4 LEAL, Rogério Gesta. O controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil: possibilidades materiais. In Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005 / Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS; (coord) Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 176. 5

LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Barsil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 165.

6

Nesse sentido, já não bastava a tradicional remoção dos atos considerados ilegais ou inconstitucionais (direitos de defesa), sendo imprescindível a efetivação concreta de atos promocionais, prestacionais e efetivos (direitos sociais prestacionais) por parte do Estado, a fim de possibilitar a concretude da igualdade material/real: “A marca característica dos chamados direitos humanos de segunda dimensão, então, se encontra na imposição de prestações positivas ao Estado como garantidor da busca pela evolução de um sentimento meramente formal de igualdade para seu sentido material, nos aspectos econômico, cultural e social, como nas áreas de saúde, educação, assistência e previdência social e trabalho”. (UGATTI, Uendel Domingues. Limites e possibilidades de reforma na seguridade social. São Paulo: LTr, 2009. p. 136).

1161

Especificamente no que toca ao nosso objeto de estudo, a Previdência Social, é preciso destacar que muito embora não haja obstáculo ao reconhecimento formal da proteção previdenciária como direito humano e fundamental, o quê, inclusive, já se deu tanto no âmbito internacional - Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, 1948, artigo 16; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966, artigo 9º; Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, mais conhecido como "Protocolo de San Salvador", 1988, artigo. 9º - quanto no interno (Constituição Federal, art. 6º c/c art. 201), ainda persistem os obstáculos à realização concreta dos dispositivos normativos, notadamente em sociedades, como a nossa, em que há a preponderância hierárquica pura e simples dos critérios de crescimento e eficiência econômica como parâmetros da atuação estatal. Desta forma, vislumbra-se que o crescente aumento do ajuizamento de demandas judiciais referentes à Previdência Social constitui parte de um fenômeno complexo de crise de identidade epistemológica do direito7 e de realocação das funções dos Poderes do Estado. Neste contexto, o T

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Poder Judiciário, sensível à pressão dos movimentos sociais, dos advogados populares e de sujeitos cada vez mais conscientes de seus direitos, passa a ser buscado como ultima ratio para a correção das injustiças perpetradas por um Executivo amarrado aos ditames do mercado e por um Legislativo historicamente comprometido com a representação das minorias abastadas. Los jueces aparecen instalados em imaginário de la sociedad como ultima ratio, como garantes finales del funcionamento del sistema democrático. Desacreditado el sistema político que no parece funcionar sin altas cotas de corrupción; ensachada de manera cada vez más profunda la brecha entre representantes y representados; cercada la gobernabilidad por la lógica implacable del mercado y por la sobredeterminación de poderes transestatales y transnacionales, se há depositado, se díria, más por razones sistemáticas que de otra índole, una mayor expectativa en la perfomance del Poder Judicial que en la de otros poderes de Estado8 T

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Nesse sentido, cumpre destacar que a atuação do Poder Judiciário no âmbito da Previdência Social ganha relevo por se tratar, na maioria dos casos, de processos que versam sobre prestações alimentares, porquanto o benefício pleiteado é o garante da subsistência daqueles e daquelas que, atingidos por uma contingência social legalmente prevista, não mais encontram condições de vender sua força de trabalho. Ademais, uma vez que tutela o direito 7

A concepção tradicional do direito como simples técnica de controle e organização social (o que implica um conhecimento jurídico meramente informativo e despolitizado a partir do sistema legal tido como completo, lógico e formalmente coerente) vem sendo contestada a partir da concepção do direito como instrumento de direção e promoção social, que o encara o fenômeno jurídico numa perspectiva histórica, valorizando-o antes como um método para a correção das desigualdades e consecução de padrões mínimos de equilíbrio sócio-econômico do que como uma técnica para a consecução de certeza e segurança, o que pressupõe um conhecimento jurídico multidisciplinar, partindo de indagações sobre a dimensão política, sobre as implicações sócio-econômicas e sobre a natureza ideológica da ordem legal. (Cf. FARIA, José Eduardo. Direito e Desenvolvimento sócio-econômico. In FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. José Eduardo Faria (organizador). São Paulo: Malheiros, 1994. p. 20). 8

CÁRCOVA,Carlos Maria apud LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 177.

1162

fundamental à proteção previdenciária, o processo judicial previdenciário caracteriza-se por múltiplas especificidades, as quais não podem ser desconsideradas no momento da prolação da decisão, pois, conforme leciona José Eduardo Faria, “o preço de uma hermenêutica exclusivamente exegética é o advento de uma jurisprudência coerente, em termos técnicojurídicos, mas socialmente alienada e eticamente “idealista”.9 T

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Ante ao exposto, propugna-se uma análise crítica que, sem desconsiderar as especificidades do processo judicial previdenciário, abarque as condicionantes do fenômeno de judicialização das políticas públicas nesta seara, partindo da concepção de que o direito é complexo, dinâmico e multifacetado, não sendo suficiente considerá-lo tão somente por seu aspecto normativo, e de que, “a Justiça Social é condição e consequência do Estado Democrático de Direito, e portanto suas instituições devem a ela submeter-se”.10 T

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2. A caracterização do processo judicial previdenciário e o conceito de políticas públicas constitucionais previdenciárias: um diálogo necessário 2.1 Os contornos da lide previdenciária: um processo “diferenciado” De início, saliente-se que os objetivos constitucionalmente previstos de erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais e construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I e III, CF), bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, compreendido enquanto vértice interpretativo de todo o texto constitucional, devem fundamentar a atuação judicial na seara dos direitos sociais, notadamente, no âmbito da justiça previdenciária, que é o foco deste trabalho. Nesse diapasão, de acordo com José Antônio Savaris, “a lide previdenciária apresenta singularidades que justificam, em certa medida, a condução do direito processual a partir de critérios outros que não os previstos pelo processo civil comum”11. T

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Fundamentando sua proposição, o autor apresenta quatro características que conformam a singularidade da lide previdenciária12: T

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● a fundamentalidade de um bem jurídico previdenciário, isto é, sua natureza alimentar, correspondendo a um direito de relevância social fundamental; ● a presumível hipossuficiência econômica e informacional da pessoa que reivindica uma prestação da previdência social; 9

FARIA, José Eduardo. As transformações do judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Malheiros, 1994. p. 60.

10

FORTES, Simone Barbisan. Previdência social no Estado democrático de direito: uma visão à luz da teoria da justiça. São Paulo: LTr, 2005. p. 238. 11

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 57.

12

Ao longo deste artigo, ao utilizarmos a expressão lide previdenciária estamos fazendo referência à ação previdenciária, que se diferencia por seu conteúdo: “deve versar sobre a concessão, manutenção ou revisão de um ou mais benefícios previdenciários previstos em lei ou sobre o benefício assistencial, pois, ao que nos parece, ações que tratam de crimes contra a previdência ou que têm como objeto as contribuições para custeio do sistema estão mais afetas aos ramos do direito penal e do direito tributário, respectivamente”. (SILVA, Júlia Lenzi. O Jus Postulandi nos Juizados Especiais Federais: (...). Trabalho de conclusão (bacharelado – Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Franca: 2010. p. 57).

1163

● uma suposta contingência que ameaça a sobrevivência digna da pessoa que pretende a prestação previdenciária; ● o caráter público do instituto de previdência que assume o pólo passivo da demanda13. T

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No que tange à primeira característica, é de relevo destacar que o “o direito material cuja satisfação se pretende no processo previdenciário é um bem de índole alimentar, um direito humano fundamental, um direito constitucional fundamental”14. A lide previdenciária versa, T

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portanto, sobre a possibilidade do segurado sobreviver dignamente sem depender da benevolência de seus pares e/ou sem ter a necessidade de recorrer à assistência social (pública ou privada). Nesse diapasão, salienta-se que “a expressão da dignidade humana não será aperfeiçoada sem um esquema de proteção social que propicie ao indivíduo a segurança de que, na hipótese de cessação da fonte primária de sua subsistência, contará com proteção social adequada”15. T

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Tal co-relação entre o sistema protetivo social e as contingências sociais legalmente estabelecidas dialoga perfeitamente com a terceira característica supramencionada, uma vez que, o autor da ação previdenciária, na maioria das vezes, é o desamparado, o trabalhador acometido de enfermidade, o inválido, o dependente do segurado falecido ou recluso que vem buscar provimento jurisdicional frente à decisão denegatória da autarquia previdenciária. Por conseguinte, é importante esclarecer que “o bem previdenciário não deve ser visto como um prêmio, uma vantagem ou mesmo uma benesse ao indivíduo [...]. Não há demérito algum em estar em gozo de formal proteção social. Mas também não há glória nisso, senão em seu significado alimentar”16. T

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Todavia, talvez seja na caracterização de suas partes que o processo judicial previdenciário mais denote a sua especialidade. Isso porque, conforme exposto, o pólo passivo da demanda é ocupado pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal, dotada de infra-estrutura própria e autonomia financeira, representada por procuradores capacitados, selecionados e contratados por meio de concurso público. Enquanto o pólo ativo é ocupado por um jurisdicionado que, a priori, pode ser considerado hipossuficiente: São, grosso modo, as camadas mais sensíveis e excluídas da sociedade que tem de recorrer à via judicial para alcançarem as benesses da Previdência Social, uma vez que administrativamente tal possibilidade já lhes fora negada. Essa presumida situação adversa dos jurisdicionado fica bem evidenciada justamente por esse fato de que, para baterem às portas do Poder Judiciário, necessariamente antes já lhes cerraram as do Poder Executivo, tendo em vista a negativa do pleito no âmbito interno do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal responsável pela implementação e manutenção dos benefícios previdenciários.17 T

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13

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 87.

14

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 60.

15

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 61.

16

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 48.

17

SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Curso de processo judicial previdenciário. São Paulo: Método, 2004. p. 19.

1164

Ademais, é preciso considerar o que Juliana Presotto Pereira Netto denomina de trabalhadores típicos da atual composição do mercado de trabalho18, cujas vidas laborais estão T

preponderantemente

definidas

pela

característica

da

T

instabilidade,

e

são

sintática

e

genericamente descritas em exemplo ilustrativo: é instável o trabalhador, que, por exemplo, inicia sua vida laboral por volta dos 14 anos, exercendo atribuições de “guardinha”, aos 16 começa a trabalhar com o pai como servente de pedreiro, aos 19 consegue emprego em uma fábrica de calçados onde permanece por três anos antes de ser dispensado, usufrui por cinco meses do seguro desemprego e por mais dois continua procurando emprego até conseguir uma vaga de “calheiro” na qual, “por não ter experiência”, passa dois anos sem registro. Após cinco anos de trabalho regular, é novamente dispensado e, com o dinheiro do FGTS, abre uma micro-empresa de corte e costura com as irmãs, uma também desempregada e a outra que deixa o emprego de doméstica, no qual era registrada com salário menor do aquele que efetivamente recebia, para ajudá-lo e também para tentar melhorar de vida. E daí em diante continua uma trajetória não muito diferente da até então relatada, com fracassos, acertos, indefinições, etc.19 T

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Conforme se vislumbra, serão esses trabalhadores que, na maioria dos casos, por terem encontrado problemas na concessão de benefícios na esfera administrativa, virão a se socorrer da função realizadora do Poder Judiciário. Não nos olvidemos que, além das dificuldades econômicas, esse trabalhador enfrentará os obstáculos técnicos para postular e ver atendida sua pretensão em juízo, notadamente quando não assistido por advogado ou defensor público, conforme possibilita o artigo 10 da Lei n. 10.259/2001, que instituiu e regulamentou o procedimento nos Juizados Especiais Federais20. T

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Ainda quanto à questão, no âmbito do conceito de hipossuficiência informacional (conceituada como a insuficiência de conhecimento acerca de sua situação jurídica perante o INSS, seus direitos e deveres), justificamos nossa opção teórica pelo termo “vulneráveis” presente no título deste artigo – cuja utilização nos diferencia de outros autores, os quais se valem do termo “hipossuficiente” – porquanto compreendamos que, no âmbito da lide previdenciária, muito embora a hipossuficiência econômica seja mais perceptível e acabe sendo fator agravante da informacional, esta última também pode afetar segurados de classes econômicas mais privilegiadas que, por este motivo, também podem ser considerados vulneráveis quando em litígio com o órgão público de gestão da Previdência Social.

18 NETTO, Juliana Presotto Pereira. A previdência social em reforma: o desafio da inclusão de um maior número de trabalhadores. São Paulo: LTr, 2002. p. 125. 19

NETTO, Juliana Presotto Pereira. A previdência social em reforma: o desafio da inclusão de um maior número de trabalhadores. São Paulo: LTr, 2002. p. 127. 20

Para uma discussão mais aprofundada sobre essa temática, SILVA, Júlia Lenzi. O Jus Postulandi nos Juizados Especiais Federais: (...). Trabalho de conclusão (bacharelado – Direito). Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Franca: 2010. 114f. – “Sem dúvida, podemos comparar a lide instaurada entre o jurisdicionado leigo desacompanhado de advogado e a Fazenda Pública, com a mitológica cena do homem comum tentando combater o leviatã. O desequilíbrio existente entre as partes, nesses casos, será absolutamente evidente, afrontando a regra básica e o princípio constitucional da igualdade entre as partes, a respeito do qual o juiz tem o dever de assegurar o equilíbrio processual (art.125, I, CPC)” (TOURINHO NETO, Fernando da Costa. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados especiais federais cíveis e criminais: comentários à Lei 10.259/2001. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 192).

1165

Em suma, no processo previdenciário, o autor da demanda presume-se hipossuficiente e destituído, total ou parcialmente, de meios necessários à sua subsistência. Esses recursos de natureza alimentar são pressupostos para o exercício da liberdade real do indivíduo e indispensáveis à afirmação da dignidade humana. Temos, portanto, alguém presumivelmente hipossuficiente na busca de um bem da vida de superior dignidade e com potencialidade para colocar um fim no seu estado de privação de bem-estar e de destituição. No pólo passivo da demanda, tem-se a entidade administradora do Regime Geral da Previdência Social, [...], com as dificuldades já notórias no que diz respeito ao atendimento de seus beneficiários na esfera administrativa e cumprimento das determinações judiciais21. T

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Diante do exposto, torna-se lícito sustentar que o processo judicial previdenciário tem características muito próprias que o distanciam dos ditames generalizantes do processo civil. Em especial, porque as ações previdenciárias dialogam de forma muito direta com a realidade concreta de seus sujeitos, não sendo suficientes as abstrações da lógica formal e os reducionismos homogeneizantes da econômica para alcançar-se a justeza da decisão. 2.2 A necessária mudança de paradigma na atuação do Poder Judiciário: substituição da lógica econômica por “lógicas de vida” As discussões acerca dos parâmetros que norteiam a atividade judicial no âmbito previdenciário, como todo debate que toca questões jurídicas, muito além do aspecto dogmático, carrega forte conteúdo ideológico, embora ainda existam atores que insistam em proclamar o discursos falacioso da “neutralidade”do ordenamento jurídico. Lembrando José Maria Gomez, contrariamente ao que defende a doutrina liberal do Estado de Direito, o jurídico é antes de mais nada político; o direito positivo não é uma dimensão autônoma do político e um fundamento do Estado, mas uma forma constitutiva do mesmo e submetido a suas determinações gerais. Neste particular, o culto da lei e a separação dos Poderes se interpõem como véus ideológicos que dissimulam e invertem a natureza eminentemente política do direito22. T

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Nesse sentido, importa ressaltar que, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, tem trabalhado quase que exclusivamente com o aspecto técnico do direito previdenciário, privilegiando questões de cunho dogmático e furtando-se à necessária discussão, mais aprofundada e complexa, acerca dos paradigmas teóricos e princípios conformadores da Previdência Social e, de forma mais abrangente, do próprio sistema de Seguridade Social. Ao que nos parece, há uma prevalência da característica do “seguro” em detrimento do “social”. Essa opção metodológica de abordagem, em geral, funda-se em dois argumentos centrais: a existência do famigerado déficit previdenciário, a ameaçar a saúde econômica de todo o sistema protetivo e, por consequência, a incidência, quase que em posição hierárquica superior, do

21

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 67.

22

LEAL, Rogério Gesta. O controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil: possibilidades materiais. In Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005 / Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS; (coord) Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 171.

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princípio da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial23, única forma apontada para evitar-se T

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o colapso da Previdência Social brasileira. Ocorre que tais argumentos encontram-se “contaminados” pela ideologia liberal24 reinante que, por meio de seu discurso racional, busca T

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convencer-nos da certeza meridiana e da pureza matemática de suas construções. Nesse sentido, conforme os ensinamentos de Marcus Orione Gonçalves Correia, nos últimos anos, devido especialmente a uma obsessiva busca pelo controle da inflação e pela diminuição das dívidas públicas, além da construção do mito do déficit orçamentário da Previdência – no cálculo das receitas e despesas da Previdência, são computados valores negativos que não estão previstos constitucionalmente como de sua competência, e sim do Tesouro Nacional, como é o caso dos gastos com benefícios assistenciais – vislumbra-se a implementação forçada de um programa de aumento da arrecadação, sem qualquer preocupação correspectiva de investimento social dos valores daí oriundos. Tal fenômeno foi definido pelo o autor como uma das faces da “inversão democrática”, ou seja, a falta de harmonia entre o programa social constitucional e sua implementação por meio dos planos infraconstitucionais, e de uma interpretação jurídica verdadeiramente comprometida com a efetivação dos direitos sociais.25 T

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Numa demanda em que há fracos e fortes, impõe-se uma atuação judicial tendente a equilibrar as desigualdades, mas isso não parece tão óbvio quando se está diante de uma entidade pública responsável pela gestão dos recursos da previdência social, em tempos de insegurança econômica, anúncios de crise orçamentária e sucessivas reformas previdenciárias. Nessa atmosfera, emerge um falso dilema: analisa-se a pretensão do autor, que se reportaria a um interesse individual, em face do interesse público na preservação do sistema previdenciário. Mas não há interesse social somente na economia de recursos previdenciários, mas fundamentalmente na sua devida aplicação.26 T

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Nessa toada, é esperado que a Administração Pública avalie a concessão de um benefício a partir de “critérios milimétricos estabelecidos pela legislação previdenciária”27, ou seja, no âmbito T

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28

da lógica positivista , preocupada em alcançar a “verdade”, a “solução universal”, que será T

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aplicada aos casos semelhantes, sob o mote do “tratamento igualitário”. Todavia, é preciso deixar 23 Princípio introduzido via emenda constitucional (EC n. 20/98), em meio ao que Uendel Domingues Ugatti denominou de tsunami neoliberal, ou seja, a política estatal que privilegiou, como diretriz de atuação, o critério de eficiência econômica, em detrimento do de justiça social. (UGATTI, Uendel Domingues. Limites e possibilidades de reforma na seguridade social. São Paulo: LTr, 2009. p. 17-23). 24

Na conjuntura atual de globalização homogeneizante, massiva e opressora, a democracia liberal ou neoliberal surge como único e verdadeiro padrão de organização institucional, baseado na liberdade tutelada pela lei, na igualdade formal, na certeza jurídica e no equilíbrio entre os poderes do Estado. (Cf. LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000). 25

Cf. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Teoria e prática do poder de ação na defesa dos direitos sociais. São Paulo: LTr. 2002. pp. 14-22. 26

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 66.

27

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 51.

28

“Este é o juiz positivista previdenciário: um sujeito que condiciona o direito a um resultado impraticável (juízo de certeza nas ciências humanas), a uma prova insofismável; Avesso às emoções, repudia a dúvida e toda incerteza, as analogias, as presunções e tudo quanto os seus olhos e a sua realidade social não dominem. [...] O grau de certeza que exige uma condenação criminal é a medida de certeza a que condicionará a concessão da sobrevivência. Insuficiente fosse a desgraça, esconde suas incertezas numa retórica que lhe distancia do humano que julga e lhe aproxima da imprudência”. (SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 52).

1167

claro que todo esse discurso escamoteia uma lógica econômica que, levada a efeito, propicia à inversão do pólo fraco na relação processual previdenciária: não será mais o indivíduo vulnerável econômica e informalmente o carente de proteção e de cuidado especial, mas sim o próprio sistema previdenciário, que deve ser preservado para o bem de todos, ainda que esse “todos” implique no sacrifício de alguns (muitos). Diferentemente da verdade do saber das ciências da natureza, não deve haver no processo judicial previdenciário a busca pela universalização do caso individual como condição para o reconhecimento da verdade. [...] na interpretação dos fatos e das normas no âmbito dos direitos socais, a verdade a ser alcançada deve ser aquela que tenha o homem e sua contingência de destituição e ameaça à sobrevivência como referência primeira. Uma verdade que não precisa ser universalizável ou posta à prova da generalização.29 T

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É nesse contexto, portanto, que ganha relevo a atuação de magistrados e tribunais, porquanto, a aplicação estrita das regras previdenciárias genéricas dispostas em lei e em atos infralegais pode ser admitida na esfera administrativa, pois os agentes administrativos, especialmente os que se encontram na frente de concessão da entidade previdenciária, não têm maior espaço para interpretação. Mas não deve ser assim no processo judicial previdenciário, onde temos a figura do juiz como órgão jurisdicional chamado a examinar, na instância derradeira (judicial), o direito da pessoa subsistir por intermédio da proteção social. O processo judicial previdenciário é o campo próprio para soluções de equidade, afastando-se do método cartesiano de reputar falso o que é apenas provável.30 T

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Entretanto, é de relevo ressaltar que esta solução por equidade não se encontra desprovida de parâmetros reguladores, não havendo que se falar em discricionariedade ou, como têm defendido alguns autores, em ditadura do Judiciário. Isto porque a atuação do Poder Judiciário no âmbito das políticas públicas de Previdência Social deve se dar em obediência aos parâmetros pré-estabelecidos pelo texto constitucional, em consonância ao que Rogério Gesta Leal denominou do conceito de Políticas Públicas Constitucionais Vinculadas, as quais são: independentes da vontade ou discricionariedade estatal para que venham a acontecer, eis que condizentes a direitos indisponíveis e da mais alta importância e emergência comunitária, perquirindo imediata materialização, sob pena de comprometer a dignidade humana e o mínimo existencial dos seus carecedores. De certa forma, quando estas políticas públicas ou ações estratégicas dos Poderes competentes não ocorrem, o Poder Judiciário no Brasil é chamado à colação.[...] Daqui resulta que o Poder Judiciário (ou qualquer outro Poder Estatal) não tem o condão de make public choices, mas pode e deve assegurar aquelas escolhas públicas já tomadas por estes veículos, notadamente as insertas no Texto Político, demarcadoras dos objetivos e finalidades desta República Federativa. São tais indicadores que estão a reivindicar políticas públicas constitucionais vinculantes para serem concretizados. Quando não

29

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. pp. 47-51.

30

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 47.

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efetivadas, dão ensejo à legítima persecução republicana para atendê-las, administrativa, legislativa e jurisdicionalmente. [...]31

Portanto, o que se preconiza, em verdade, é a necessidade de substituir o critério de rentabilidade econômica pelo critério de satisfação das necessidades humanas básicas32, com a finalidade precípua de dar efetividade aos direitos humanos e fundamentais constitucionalmente assegurados, no âmbito dos quais, se encontra a proteção previdenciária; pois, conforme atesta José Antônio Savaris “eficiência econômica aplicada à Previdência Social significa obsessão por redução de custos, com desajustes sociais e graves consequências humanas”33. Tal diretriz de atuação jurídico-política tem o condão de afastar a “banalização do mal”, que aparece escamoteada em discursos que atribuem a adversidade do desemprego e da exclusão à causalidade do destino, à causalidade econômica ou à causalidade do sistema, (fenômeno da “naturalização da pobreza”34), não problematizando as origens desses “infortúnios”.

3. A judicialização das políticas públicas relativas à previdência social Antes de adentramos no tema propriamente dito, é preciso tecer considerações iniciais acerca do fenômeno da judicialização das políticas públicas, cuja discussão vem ocupando especialistas das mais diversas áreas nos últimos anos, e, antes ainda, problematizar o próprio conceito e abrangência do conceito de políticas públicas, temáticas essas que fazem parte de um debate inconcluso de grandes repercussões no cenário jurídico nacional. Assim, embora não seja esse especificamente o escopo do presente artigo (e, para tanto, encaminhamos o leitor à obra organizada por Maria Paula Dallari Bucci, intitulada “Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico”35), é fundamental aqui tecer algumas considerações sobre as políticas públicas relativas à Previdência Social. 31 LEAL, Rogério Gesta. O controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil: possibilidades materiais. In Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005 / Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS; (coord) Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. pp. 168-174 (grifo nosso). 32 “[...] não se trata de ignorar a responsabilidade humana com os caminhos da própria existência, mas de contribuir para a construção de uma racionalidade compromissada com o reconhecimento recíproco, de modo não hierárquico – tendo de um lado, os vencedores e de outro, os perdedores – em que o critério vetor contextual seja a democratização do acesso aos bens frutos do labor social, e não a acumulação de capital e a eficiência econômica descompromissada com a erradicação da miséria e a redução das desigualdades sociais”. (UGATTI, Uendel Domingues. Limites e possibilidades de reforma na seguridade social. São Paulo: LTr, 2009. p. 196). 33

“É isso o que buscam as reformas previdenciárias restritivas de direitos e as que promovem elevação de receitas: um sistema previdenciário eficiente, que maximize seus recursos e ademais gere excedentes. Mas na sua face oculta e mais dramática, a busca pela eficiência previdenciária se revela na dificuldade de acesso à tutela administrativa, na falta de mínima inclinação do órgão gestor à solução dos problemas dos administrados, no prematuro encerramento dos processos administrativos e na multiplicação de ilegais óbices à concessão de benefícios. Afinal, o que motiva os agentes previdenciários, senão a eficiência (econômica)? (SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 132). 34

“A adesão à causa economicista, que separa a adversidade da injustiça, não resultaria, como se costuma crer, da mera resignação ou da constatação da impotência diante de um processo que nos transcende, mas funciona também como uma defesa contra a consciência dolorosa da própria cumplicidade, da própria colaboração e da própria responsabilidade no agravamento da adversidade social” (DEJOUS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 21).

35

BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.

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Conforme já exposto, hoje reconhecida e formalizada na própria Constituição Federal do Brasil como direito social e, portanto, direito humano fundamental36, a previdência social é uma técnica de proteção social destinada a assegurar a manutenção de seus beneficiários (segurados e dependentes), em situações de incapacidade para o trabalho. Realiza-se por meio de um seguro social, cujo custeio se dá de forma tripartite (pelo segurado, tomador de serviços e Estado), visando conferir prestações específicas previamente definidas em lei e cujo elenco é taxativo. Sendo assim, qual seria então o conteúdo de uma política pública de previdência social? Considerando-se sua natureza de direito social, e a exemplo do que deve ocorrer com os direitos sociais genericamente considerados, uma vez positivados, é essencial que se busque sua efetivação, manutenção e, se possível, ampliação. Dado aos limites desse artigo e sua pertinência temática (GT7 – O discurso da efetivação dos direitos sociais no judiciário), trataremos aqui apenas da segunda etapa (efetivação), a qual deve ser enfocada a partir de uma análise principiológica, possível com base nos objetivos da seguridade social (macro área onde a previdência se insere), expostos no art. 194, CF. Nesse sentido, por certo a primeira preocupação de uma política pública de previdência social deve estar voltada à efetivação do comando de universalidade de cobertura e atendimento. Diante do atual quadro do mercado de trabalho no Brasil que, apesar de alguns progressos pontuais, ainda apresenta um grande número de trabalhadores irregulares e informais, assume especial importância a política de inclusão previdenciária incentivada a partir da EC n. 47/05 (art. 201, §§ 12 e 13). Essa etapa da política pública de previdência social inclui inicialmente um amplo processo de divulgação e explicação da previdência para a população em geral, pois o acesso à informação é pressuposto essencial do interesse em participar do sistema. Depois, não basta querer, é preciso que esse trabalhador tenha condições econômicas de custear a parte que lhe cabe no seguro, quando então são necessárias – em alguns casos – medidas de redução de alíquotas de contribuição, a exemplo do que vem ocorrendo com a aprovação de leis como a de n. 12.470, de 31.08.2011.37 T

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Na sequência, e após a inserção do trabalhador no sistema previdenciário, é preciso que lhe sejam garantidas as prestações prometidas. Cabe destacar que a política pública de previdência social não enfrenta determinados dilemas como, por exemplo, aquele presente na área da saúde (relacionado às ações de fornecimento de medicamentos), que ao promover os direitos fundamentais de alguns, pode eventualmente vir a causar grave lesão a direitos da

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A propósito, não há mais que se discutir essa realidade. “Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social” (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15.ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 203).

37

Esta lei altera os arts. 21 e 24 da Lei no 8.212/91 (Plano de Custeio da Previdência Social), para estabelecer alíquota diferenciada de contribuição para o microempreendedor individual e o segurado facultativo sem renda própria que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência, desde que pertencente a família de baixa renda. U

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mesma natureza de outros. Na previdência trata-se apenas da necessidade premente de se efetivar o que já está positivado não só na CF, mas também em leis ordinárias, e que, portanto, são medidas reconhecidamente essenciais para a promoção do acesso à justiça social e condição de realização dos direitos fundamentais como um todo38. T

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Nesse sentido, e adotando-se a argumentação do “tudo ou nada”, ocorrendo o fato descrito em seu relato (no caso, a incapacidade para o trabalho por motivo de doença, invalidez, morte, etc), não há outra opção a não ser a incidência da regra, que deverá produzir o efeito previsto (a concessão da prestação previdenciária). Na mesma linha, a posição de Robert Alexy39, para quem T

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“as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve-se fazer exatamente o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regras contêm determinações no âmbito do que é fática e juridicamente possível.” No entanto, nem sempre a prática realiza a teoria. E assim, por todo o exposto no item II deste trabalho, em especial no que diz respeito ao predomínio da lógica econômica/legalista no âmbito administrativo (INSS), é grande o número de segurados que recorrem ao Poder Judiciário em busca da implementação de um direito previdenciário. Essas ações são predominantemente individuais e mais raramente coletivas (em geral, nos casos referentes a reajuste de benefícios). Seu sujeito, os vulneráveis mencionados no título, são segurados do Regime Geral de Previdência Social que no momento da propositura da ação encontram-se doentes, inválidos, com idade avançada, enfim, por algum motivo previsto em lei incapazes de realizar uma atividade laborativa que lhes garanta a sobrevivência. No entanto, há que se ressaltar, eram até então contribuintes do sistema, tendo vertido sua cota de sacrifício (a renúncia sistemática ao consumo, de parte de sua renda proveniente do trabalho) para que exatamente pudessem garantir uma proteção no caso de consumação de um risco social, como os expostos acima. Trata-se aqui, portanto, de acesso à jurisdição, enquanto meio de efetivação de acesso à justiça social, realidade na qual a previdência ocupa lugar de destaque, posto ser direito humano fundamental. Não basta termos normas constitucionais previdenciárias (em sua concepção ampla de princípios e regras) e legislação ordinária abrangente e devidamente regulamentada (sic) se, em alguns momentos, essas normas são simplesmente descumpridas ou interpretadas restritivamente, como costuma acontecer na esfera administrativa. Em suma, o direito apenas atinge seu ápice quando é efetivamente transformador e eficaz na sociedade, o que inclui não somente o seu poder/dever de regulação social, mas a realização 38

Estabelecer as bases para uma proteção social que possa, efetivamente, atender de forma igualitária e satisfatória, no auxílio ao combate da descomunal desproporção de renda, que acaba mesmo por operar, como já se analisou no momento oportuno, deficiências na expressão da própria democracia (pois efetiva democracia só há onde se cumpre a Justiça Social), é a grande tarefa política contemporânea no âmbito da Previdência Social brasileira, a despeito de toda a retórica neoliberal que tem invadido os países latino-americanos. (FORTES, Simone Barbisan. Previdência social no Estado democrático de direito: uma visão à luz da teoria da justiça. São Paulo: LTr, 2005. p. 230). 39

ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. pp. 87 e 88.

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plena desses dispositivos, por meio, quando for o caso, das políticas públicas necessárias a sua efetivação. Quando falha o comando legal, seja pela ausência ou inadequada implantação da política pública correspondente, seja pela indevida aplicação ou interpretação da lei em si, cabe ao Poder Judiciário se manifestar, enquanto guardião maior que é do sistema jurídico de um país40. T

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3.1 Exigência do indeferimento administrativo como condição da ação: discussões em torno do princípio da tripartição dos poderes. Já há muito se discute acerca da (des)necessidade de prévio ingresso administrativo, como condição para a proposição de ação de natureza previdenciária. Parte da doutrina e dos juízes entendia que tal exigência poderia ferir o direito de ação garantido no art. 5º, XXXV, CF. No entanto, até por força desse mesmo dispositivo, é forçoso que se reconheça que somente a “lesão ou ameaça a direito” gozam da proteção referida, necessitando ser provada, o quê acontecerá, via de regra, pelo indeferimento administrativo. Assim se consubstancia o interesse de agir e se completa uma condição da ação que, somada às demais (legitimidade de parte e possibilidade jurídica do pedido), justifica a necessidade de uma prestação jurisdicional. Conforme destaca Humberto Theodoro Júnior Localiza-se o interesse processual não apenas na utilidade, mas especificamente na necessidade do processo como remédio apto à aplicação do direito objetivo no caso concreto, pois a tutela jurisdicional não é jamais outorgada sem uma necessidade. (...) Só o dano ou o perigo de dano jurídico representado pela efetiva existência de uma lide, é que autoriza o exercício do direito de ação.41 T

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Por outro lado, é importante que se lembre que basta a negativa ao requerimento ou mesmo a simples demora injustificada em se dar uma resposta, por parte do INSS, para que se configure a pretensão resistida. No primeiro caso, há inclusive a Súmula n. 9, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, segundo a qual “em matéria administrativa, torna-se desnecessário o prévio exaurimento da via administrativa, como condição de ajuizamento da ação” (basicamente o mesmo teor da Súmula 213, do extinto Tribunal Federal de Recursos). Interessante ainda nesse sentido, a observação de Marco Aurélio Serau Junior, para quem a conduta reiterada da autarquia previdenciária nesse sentido (deduzindo em sua defesa a necessidade do prévio esgotamento das vias administrativas), poderia inclusive ser enquadrada nas condutas tipificadas no art. 17 do CPC, que trata da litigância de má-fé, posto que o objetivo do INSS em alegar a necessidade do prévio esgotamento das vias administrativas para demarcar o interesse 40

“O desafio do Poder Judiciário, no campo dos direitos sociais era, e continua sendo, conferir eficácia aos programas de ação do Estado, isto é, às políticas públicas, que nada mais são do que os direitos decorrentes de uma “seletividade inclusiva” [...]. O progresso da democracia mede-se precisamente pela expansão dos direitos e pela sua afirmação em juízo” (CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do Judiciário. In FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. José Eduardo Faria (organizador). São Paulo: Malheiros, 1994. pp.47-48) 41

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 1.v. RJ: Forense, 1999. p. 53.

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processual só pode ser, nos dias de hoje, o de procrastinar o feito, dado dificultar ou ao menos prolongar a análise dos autos que tramitam perante o Judiciário, uma vez que se rejeita unanimemente essa alegação (...)42 T

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Já no segundo caso (demora na resposta), o Dec. n. 3048/99, art. 174, define o período de 45 dias como data limite para o primeiro pagamento do benefício e, portanto, sua concessão ou negativa deve acontecer em prazo inferior a esse. Finalmente, destaca José Antônio Savaris, que “com essas questões e com outras que dizem respeito ao tema `interesse de agir em matéria previdenciária´, a doutrina e jurisprudência do processo civil clássico nem cuida em preocupar-se”43 e, portanto, cabe aos estudiosos dessa T

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área específica do Direito, o trabalho de sistematizar a matéria, suas dificuldades e tendências, servindo, em especial, como subsídio às decisões jurisprudenciais. No mesmo sentido as ponderações de Marcelo Leonardo Tavares quando, apesar de reconhecer que as características próprias das lides previdenciárias não existem em intensidade suficiente que justifique a existência de uma codificação própria, alega que isso não invalida a necessidade de desenvolvimento de uma teoria do processo previdenciário. Somente assim seriam “evitadas injustiças materiais através de um processo não adaptado à realidade do seguro ou mal utilizado a partir da desconsideração de suas particularidades”.44 T

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Tais posicionamentos se coadunam com a premissa teórica já sustentada no sentido de que, a invocação constante e sistematizada do princípio da tripartição dos poderes enquanto óbice para a judicialização das políticas públicas constitui-se, em verdade, em argumentação retóricoideológica, comprometida com a manutenção da ordem econômica e social excludente45 T

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Historicamente, como afirma Cappelletti, todas as vezes em que a tradicionalmente rígida separação entre poderes independentes e autônomos não permitiu a emergência de um sistema de controle e contrapesos recíprocos, com os magistrados podendo exercer funções mais amplas do que as previstas pelo paradigma liberal clássico de Estado de Direito, o resultado foi “um Judiciário perigosamente débil e confinado, em essência, aos conflitos privados”, apenas onde esse sistema de controles e contrapesos recíprocos se consolidou é que se

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SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio. Curso de processo judicial previdenciário. 2.ed. São Paulo: Método, 2006. p. 221. 43

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2009. p. 65.

44

TAVARES, Marcelo Leonardo. O devido processo legal previdenciário e as presunções de prova. In:TAVARES, Marcelo Leonardo (coord.). Direito processual previdenciário: temas atuais. Niterói: Impetus, 2009. p. 13. 45

Na tradição da Democracia Liberal brasileira, desde os seus primórdios, sempre se designou como único e verdadeiro padrão de organização institucional da sociedade brasileira o baseado na liberdade tutelada formalmente pela lei, na igualdade formal, na certeza jurídica, no equilíbrio entre os Poderes do Estado, forjando uma unanimidade sobre a pertinência de atitudes, hábitos e procedimentos, os quais, geralmente, refletiam a reprodução do status quo imposto pelo modelo de desenvolvimento econômico excludente que até agora se teve. Em tal quadro, competiu ao Estado de Direito tão-somente regular as formas de convivência social e garantir sua conservação; a economia se converteu numa questão eminentemente privada, e o direito, por sua vez, tornou-se predominantemente direito civil, consagrando os princípios jurídicos fundamentais ao desenvolvimento capitalista, como os da autonomia da vontade, da livre disposição contratual e o do pacta sunt servanda. (LEAL, Rogério Gesta. O controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil: possibilidades materiais. In Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005 / Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS; (coord) Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 171)

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conseguiu, “sem perigo para a liberdade, fazer coexistir (...) um Executivo forte com um Judiciário forte46. T

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Por conseguinte, conforme se vislumbra, mesmo sob a perspectiva normativista, não há que se falar em Ditadura do Poder Judiciário, porquanto a própria legislação fixou o critério do prévio indeferimento administrativo como condição para ajuizamento e conhecimento da ação judicial previdenciária. No âmbito organizacional do Estado Democrático de Direito, é crível que se reconheça a todos os Poderes instituídos, inclusive ao Judiciário, a competência e o dever institucional de se comprometerem com a efetivação dos ditames constitucionais, protegendo quem efetivamente detém, em última instância, a soberania do poder (o povo), não por desvio ou excesso ideológico de crença política, mas pautado pela obrigação de garantir a ordem republicana e democrática de desenvolvimento do Brasil, sob pena de aprofundar, ainda mais, suas crises de identidade, eficácia e legitimidade social.47 T

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3.2 A possibilidade de maior amplitude probatória enquanto condição de afirmação dos direitos previdenciários Garantia da ampla defesa, seja no âmbito administrativo ou judicial, a prova em Direito Previdenciário assume a relevância ímpar de condicionante do acesso a um direito fundamental. Ainda antes de qualquer eventual litígio inter partes, quando um segurado requer um benefício, ele se obriga a convencer a autarquia de seu direito. Deixando à parte a discussão de que, em muitos desses casos, essa prova seria absolutamente dispensável caso a própria autarquia tivesse um controle mais eficaz de seus registros, recebimentos e fiscalização, enfim, um banco de dados confiável, em outros casos cabe, em princípio, ao segurado fazer prova do que alega. Identificam-se, na doutrina, três sistemas distintos de produção de provas: o da prova legal, o da livre convicção do juiz e o da persuasão racional (ou livre convencimento motivado), tendo sido este último adotado pelo CPC - Código de Processo Civil Brasileiro. Esse sistema não se baseia na convicção por meio de impressões pessoais, mas sim, na consciência formada pelas provas, condicionadas a regras jurídicas, lógicas e de experiência. Pesam também os princípios constitucionais, os quais têm especial relevância no Direito Previdenciário, no sentido de possibilitar o acesso aos direitos fundamentais por meio da garantia da utilização dos meios de prova necessários para comprovar o direito do beneficiário. Não obstante, a legislação previdenciária supervaloriza as regras legais de produção da prova em detrimento de outros aspectos contidos no sistema da persuasão racional, resultando num retrocesso pela aproximação com o superado sistema da prova legal. Isto tem contribuído 46

FARIA, José Eduardo. As transformações do judiciário em face de suas responsabilidades sociais. In FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Malheiros, 1994. p. 65 47

Cf. LEAL, Rogério Gesta. O controle jurisdicional de políticas públicas no Brasil: possibilidades materiais. In Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005 / Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul – AJURIS; (coord.) Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 176.

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para dificultar a comprovação dos fatos alegados pelos beneficiários, em especial no âmbito administrativo, quando Como consequência de uma suposta aliança de particulares que se lançam contra a Administração Previdenciária, esta opera como uma “cidade sitiada”, de modo que a análise do direito passa por um crivo administrativo que, por vezes, não vê o evidente e enxerga o que não existe.48 (grifo nosso) T

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Tais circunstâncias tornam quase inevitável a remessa dessas lides ao Poder Judiciário, onde, é claro a apreciação das provas também estará vinculada às condições impostas pela lei, mas o magistrado não poderá desconsiderar os fins sociais das normas e a própria realidade social. Como já ressaltado, a convicção do juiz não deve ser resultado de mera atividade lógicoformal, mas sim, de uma apreciação crítica com base no contexto social vigente, utilizando o processo como instrumento de garantia dos direitos fundamentais e não como um fim em si mesmo. Paradigmático nesse sentido, por se tratar de um dos problemas mais reincidentes nos processos previdenciários, o caso da prova de tempo de serviço, em especial dos trabalhadores rurais, no qual o magistrado deverá ponderar dois bens fundamentais: um coletivo (maior segurança na concessão de benefícios previdenciários) e outro individual (o direito ao benefício e à produção das eventuais provas possíveis para assegurá-lo). Considerando que, nesse caso, a legislação é restritiva, posto que impõe a necessidade de “início de prova material, não sendo admitida prova exclusivamente testemunhal” (art. 55, §3º, Lei n. 8.213/91), fica evidente a necessidade da aplicação do princípio da proporcionalidade, o qual, segundo destaca José Antônio Savaris, “se encontra na essência da técnica da ponderação de bens e na aferição da constitucionalidade de algumas leis restritivas”, tornando-se instrumento de verificação de “inconstitucionalidade por excesso de poder legislativo”.49 Ademais, é sempre T

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pertinente a indagação: o que fazer diante de casos em que as únicas provas do trabalho rural são as mãos calejadas do segurado e os olhos de quem testemunhou seu labor? Em resposta a indagações dessa natureza, José Antônio Savaris atesta que: Quando propugnamos a verdade real para o direito processual previdenciário, estamos nos referindo a um conhecimento que não se contenta com o que lhe propicia automaticamente a forma processual, mas busca compreender, mediante aproximação das realidades que cercam os fatos, o objeto que desafia a interpretação.[...] A solução pro misero deve ser aplicada quando, em uma perspectiva formal, qualquer dos resultados dispostos pela sentença pareça razoável. Na dúvida, decide-se casuisticamente evitando-se o sacrifício de direito fundamental50 T

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SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2009. p. 239.

49

SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2009. p. 232.

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SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 48

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Nesse diapasão, os critérios e requisitos legalmente estabelecidos para a concessão dos benefícios previdenciários passam a ser concebidos como diretrizes gerais de atuação, não totalitárias e não passíveis de generalização, representando, pois, pressupostos legítimos para diminuir o risco moral do sistema de proteção social, isto é, a fragilidade da Previdência Social em face de ações oportunísticas por parte de alguns de seus beneficiários51. T

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Mas, caberia ainda mencionar outras situações em que o processo previdenciário se particulariza pela necessidade de admitir maior amplitude probatória. Veja-se, por exemplo, o caso das perícias nas aposentadorias por invalidez, quando então a doutrina52 e a tendência T

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jurisprudencial T

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já se firmam no sentido de que a incapacidade laboral não pode ser aferida

apenas a partir de uma perspectiva médica, devendo sim levar em consideração aspectos etários, de qualificação profissional, de condição socioeconômica, entre outros. Nesse sentido, o magistrado não está adstrito ao laudo médico pericial, devendo considerar outros elementos presentes nos autos, que o convençam da incapacidade permanente para qualquer atividade que garanta a subsistência ao segurado. Mais uma vez sobreleva a importância de se analisar o caso concreto, dentro de todas as suas especificidades, para se aproximar ao máximo da justiça social que se busca. Cada trabalhador é parte de um contexto, com uma histórica de vida única, e para que o direito cumpra sua função transformadora é essencial que sua aplicação se dê dentro de uma perspectiva sistêmica, a qual implica em uma análise mais abrangente, somente possível a partir admissão de diversas possibilidades de prova do fato alegado. Em suma, a necessidade de maior amplitude probatória no Direito Previdenciário aparece também como instrumento que busca uma “paridade de armas” entre segurado e INSS, indispensável, portanto, à tutela do direito à segurança social. Busca-se no reconhecimento do “outro” (no caso o trabalhador) e da realidade onde ele está inserido, uma maior aproximação da verdade real, aferível apenas quando nos dispomos ao desapego dos formalismos e das interpretações normativas literais.

4. Considerações finais Em consonância com a argumentação supra, o que se pretendeu expor foi a necessidade de retomarmos as discussões atinentes a judicialização das políticas públicas em matéria previdenciária a partir outras perspectivas, que não se mostrem indiferentes à conjuntura social, econômica e política que permeiam todo e qualquer fenômeno jurídico. Nesse sentido, propugna51

Cf. SAVARIS, José Antônio. Direito processual previdenciário. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 48

52

Veja-se, a propósito: FORTES, Simone Barbisan; PAULSEN, Lenadro. Direito da seguridade social. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 111; e CASTRO, Carlos A. P.; LAZZARI, João B. Manual de direito previdenciário. 8.ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2007. p. 481, entre outros. 53

Exemplificando, as decisões contidas em: AgRg no REsp. n. 1229.147-MG (2010/0226035-4), julg. em 17.03.11; AgRg no REsp. 1056545-PB - 5ªT, julg. em 18.11.10; e AgRg no Ag 1102739-GO - 6ªT, julg. em 20.10.09.

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se por mudanças nos paradigmas que orientam a atuação de Magistrados e Tribunais no âmbito dos processos judiciais previdenciários, ressaltando-se o fato de que a Previdência Social é direito humano e fundamental já largamente positivado, e cuja efetivação é pressuposto de concretude do princípio maior da dignidade da pessoa humana. Assim, seja no tocante ao seu objeto (direito humano e fundamental); seja quanto à situação fática que a caracteriza (demanda por prestação alimentar, em geral, em condições que exigem urgência na prestação jurisdicional – enfermidade, incapacidade, dependência econômica de segurado falecido ou recluso); ou, ainda, no que tange a disparidade de forças entre suas partes (situação de vulnerabilidade do segurado diante da autarquia previdenciária), o fato é que resta evidenciada a especialidade da lide previdenciária, tornando-se necessário a teorização acerca de um “olhar diferenciado”, menos técnico-econômico e mais demasiadamente humano, um olhar que seja capaz de vislumbrar o Outro e suas condicionantes, compreendendo que não há “medida abstrata de justeza”: a Justiça se realiza em cada decisão. Diante do predomínio de uma lógica de eficiência econômica no âmbito da Administração Pública, em que há o claro predomínio da característica do “seguro” em detrimento da do “social”, o Poder Judiciário acaba se configurando na instância última capaz de socorrer o segurado e seus dependentes, sanando as arbitrariedades, irregularidades e excessos legalistas de interpretações restritivas que, calcadas no falso dilema “individual-coletivo”, só fazem afastar o direito à proteção previdenciária da vida, e do cotidiano, daqueles e daquelas que dela mais necessitam.

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1178

Redes sociais e Constituição Sócio-Política Manuela Fialho Galvão1

Resumo

Abstract

O objetivo deste trabalho consiste em propor uma reflexão acerca do instituto histórico das associações e das redes sociais a partir do rápido desenvolvimento tecnológico, preocupando-se com o seu status e constituição sócio-política. O problema que procuro chamar a atenção é sobre a incorporação das redes sociais no cotidiano e o seu afastamento da formação associativa. O resultado de minha pesquisa inicial aponta para a necessidade de estabelecer um ancoramento valorativo às redes sociais, como solução à crise institucional nas sociedades latino-americanas. Ela também compreende que o aspecto formativo e ético deve estar presente, devendo as redes sociais se portar segundo um sistema educacional e constitucional, no sentido de reparar a história em sua perda de sentido. Ele foi inspirado a partir de um trabalho de iniciação científica que se pautava na observação das redes de solidariedade em contextos urbanos. Em seguida foi inspirado pelas redes de consumidores, mais do que a questão da administração burocrática dos processos judiciais. E por último foi inspirado pela teoria durkheimiana e pelo Movimento Anti-Uilitarista nas Ciências Sociais, aliados a audiência nos debates presenciais ocorridos no curso sobre Redes Sociais a distância ministrado no Brasil-UFRJ pela antropóloga da Universidade Autônoma do México Larissa Lomnitz.

The objective of this study is to propose a reflection on the institute's history of associations and social networks from the rapid technological development, worrying about his status and socio-political constitution. The problem I seek to draw attention is on the incorporation of social networks in everyday life and his retirement from education associations. The result of my initial research points to the need to establish an anchor evaluative social networks as a solution to the institutional crisis in Latin American societies. She also understands that the training and ethical aspects must be present, and social networks to behave in a school system and constitutional, to repair the story in its loss of meaning. He was inspired from a work of initiation to base itself on scientific observation of solidarity networks in urban settings. Then was inspired by consumer networks, rather than the issue of bureaucratic administration of court proceedings. And last was inspired by Durkheim's theory and the anti-utilitarista authors in social sciences, allies face the audience in the debates occurring in the distance course on Social Networks-UFRJ in Brazil taught by anthropologist at the Universidade Autônoma do México Larissa Lomnitz.

Palavras-Chave: Instituto das Associações, Sociais, Durkheim, Anti-utilitarismo.

Keywords: Institute of Associations, Social Networking, Durkheim, Anti-utilitarianism.

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1 T

Redes

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Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected].

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1. Aspectos da Formação Histórica (Associações e Redes) 1) O associativismo na França revela que as associações são criadas a partir da tradição, com funções e objetivos adaptados às necessidades novas, uma alternativa a desordem liberal. Do Antigo Regime - colégio de artesãos romanos e das guildas alemãs - às formas modernas do associativismo cooperativo, as associações “evoluiram”, modificando-se historicamente, não deixando descoberto o sentido da vida coletiva no capitalismo (Meister, 1972). O movimento cooperativo na Grã-Bretanha se caracterizou pela nascente economia moral dos trabalhadores e pelo confronto com a ideologia do capitalismo (Gurney, 1996). 2) Na América do Norte, em seguida ao desenvolvimento europeu, verifica-se uma formação particular, por motivo de investimento econômico centrado na exploração do espaço versus o desenvolvimento da comunidade, o associativismo se caracterizou pelo voluntarismo. As associações voluntárias, como instituição de origem tradicional, adaptada pelos emigrantes para o modo de vida urbano, caracterizou-se por hierarquias naturais, e algumas vezes opressivas; pela união para partilhar a existência, a constituição legal e governo; e pela preservação de valores e costumes, ao mesmo tempo em que os emigrados se adaptavam ao novo ambiente. Comparativamente à Europa, algumas associações não chegaram a se formalizar, formando esta participação os primeiros passos do socialismo e sindicalismo americano (Meister, 1972). 3) Neste caso, se a existência moral do voluntário prescinde de inserção na atividade política e institucional, a compreensão do bem comum é recebida e redefinida em circunstâncias e atividades comuns. De qualquer maneira a mudança operada não é o simples somatório de motivações particulares, ou um consenso alcançado por justaposição nos termos rawlsianos, mas é repleta de relações inter-sociais constitutivas complexas de redes, capazes de conduzir o Estado à atividade primeira de defensor do bem público. 4) As transformações recentes que passa o capitalismo demonstram que o associativismo continua representando uma instituição da sociedade importante justamente por sua diversidade relativa às instituições predominantemente hierárquicas do mercado e do Estado (Caillé, 2002). As corporações profissionais como variedade associativa, próxima e similar a família, têm necessidades duradouras e profundas por destacado papel moral, de estabelecer vínculos morais onde existiam apenas os interesses particulares. 5) A adaptação por que passa diz respeito a forma do modo capitalista atual: “este tipo de capitalismo é profundamente diferente de seus predecessores históricos (...) é global e está estruturado em rede de fluxos financeiros (...) a partir destas redes, o capital é investido em todo o globo e setores da atividade: saúde, educação, transporte...” (Castells, 2007, p.567). 6) O informacionalismo leva, por um lado, a concentração e globalização do capital, por outro lado, a desagregação da mão-de-obra em desempenho, fragmentando o seu poder de organização e, diversificada a existência, foi dividida a ação coletiva: “os trabalhadores perdem a sua identidade coletiva, tornam-se cada vez mais individualizados quanto às suas capacidades, condições de trabalho, interesses e projetos” (Castells, 2007, p. 571). 1180

7) Esta tecnologia informacional amplia o tempo e lugar da produção material até a convivência social, cujas relações se tornaram tão complexas em interações, onde a metodologia das redes sociais sintetiza culturalmente, ao dizer as relações fundamentais a serem cultivadas na comunidade de valores, buscando a segurança, integridade, saúde e qualificação da pessoa.

2. Aproximação comparativa às propriedades das associações e redes sociais A forma de redes sociais no cotidiano envolve problemas conceituais e de constituição sócio-política. A rede não é uma associação, pois o espaço em que se desenvolve não é do domínio lingüístico das instituições, formando as redes um grupo social de institucionalidade aberta, no sentido de pautas públicas amplas e capazes de redefinir a forma lingüística de instituições formais. Ao lado das redes no cotidiano, transmite os elementos do mundo da vida para os sistemas burocráticos e formalistas2, exercitam uma nova configuração para instituições T

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do Estado e do mercado, representando ambos um componente fundamental para a narrativa da justiça social na atualidade: Parmi ces réseaux, Il est utile de distinguer entre lês formes organisées (les associations) et les innombrables liens que nous avons les uns avec les autres, avec notre famille, nos amis, nos voisins, liens directs, non canalisés par des intermédiaires. C’est est tout ce monde que le modele tend à oublier (Goudbout, 2007, p. 96)

A aproximação das associações ao modelo de redes no debate da metodologia das ciências sociais permitiu superar o individualismo metodológico, no sentido de uma teoria da sociedade e das instituições democráticas: a perspectiva do associativismo representa uma instituição objetiva e independente na sociedade civil, de inspiração socialista, um movimento coletivo radical de trabalhadores e consumidores no modo de produção capitalista; as redes sociais são um fenômeno da ordem predominantemente intersubjetiva, relacional nas sociedades liberais, de mesmo sintoma que levam semelhantes a se associarem, isto é, por dependência mútua, em razão da fragmentação e impessoalidade do ambiente capitalista. No sentido de redes sociais, a cooperação e a confiança são elementos importantes ao enfrentar questões de interesse e de liberdade pessoal, sendo parte de relações diversas, da família ao mercado, desenvolvendo atividades comuns segundo acordos e obrigações contratuais (Gambetta, 1996). A perspectiva de redes, na confluência da teorização sociológica, aprofunda o desenvolvimento das relações sociais no interior de associações, compreendido como movimento cooperativo, em atenção às relações pessoais, cujo alicerce consiste na confiança, amor e solidariedade. Estas são as propriedades primárias e positivas, mas não são estas exclusivamente as propriedades responsáveis pela perpetuidade das associações, que dependem de determinações exteriores às pequenas relações, enfrentando questões amplas de organização, 2

Paulo Henrique Martins, “Metodologia de Análise de Redes no Cotidiano”, Setembro, 2008.

1181

relações de mercado e de Estado, que demanda a autoridade e representatividade pública formal do modo de vida associativo. Em democracia, no entanto, a representação é propriedade que caracterizam os partidos políticos, e a natureza da associação fundamentada no princípio da igualdade e da experiência de vida semelhante, capaz de reunir pares sociais com demandas justas que a comunidade política reconhece como vinculante. Deixando este modo de ser uma propriedade interpessoal e interacionista que caracteriza a natureza de rede, para se constituir como a definição durkheimiana de exterioridade como uma existência social objetiva, isto é, além dos indivíduos e de suas relações particulares, composta de representação simbólica, formada com o passar do tempo na narrativa de acontecimentos. A noção de redes permite explicar, devido o paradoxo social, a ambigüidade e fragilidade das relações sociais (Martins, 2004), porque a associação se extingue como modalidade da vida social, ou como pode ser auto-regulada e, dessa maneira, perpetuada a forma tradicional. O fato de estar inserido no contexto de rede contempla outras inserções e formas originais de partilha, como as associações de classe e políticas. Estas formações sociais guardam semelhanças e distinções sociais: “o fato de estes laços abrirem os campos institucionais com a introdução de pontes a partir dos membros de uma rede original explica o fato de que muitas vezes serem produzidas redes de mediação, que introduzem pessoas a outras redes, por exemplo, as de natureza associativa” (Fontes & Stelzig).

A associação e a rede social se

constituem como fato sociológico, isto é, relações, laços, alianças e vínculos sociais em contextos de sociabilidade específicos, além do indivíduo solitário, caracterizado positivamente pelas redes, encontros e circuitos de solidariedade (Fontes & Stelzig). Além da sociabilidade primária, que permite vivenciar o cotidiano de forma singular, para perceber uma existência que vai além de si mesmo, uma biografia que é tecida por acontecimentos biológicos, relacionados à organização política, econômica e social, do qual é sujeito coletivo da mudança social na comunidade em que vive (Martins, 2004). Este indivíduo singular se circunscreve ao espaço primário e doméstico, e estende a rede e associação de que faz parte à esfera pública, definindo segundo esta participação a questão social, neste sentido a vida associativa e a rede social são de natureza política e democrática. As redes são dessa maneira grupos muitas vezes heterogêneos com experiências profissionais e pessoais diferentes, mais ou menos densa, se as diferenças não desenvolvem a separação de laços constituídos. Por outro lado, na associação, circulam pessoas e bens simbólicos (Martins, 2004) que se desenvolvem, segundo uma propriedade específica, seja territorial, seja profissional, seja familiar, ancorada em relações tradicionais, de reconhecimento formal. Uma das maneiras de ancorar as redes é ir além das determinações empíricas, enraizá-las territorialmente, como nas ações relativas à saúde e cidadania, permitindo autonomia nos

1182

processos de melhora, segundo a reconstrução da sociabilidade e dos valores da vida local (Fontes, 2008). Esta natureza implica reconhecer a questão da solidariedade e da interdependência recíproca de sentido popular, sendo essencial ser associado e cidadão, onde se rearticula o espaço público, a esfera econômica, a questão social, a socialização dos meios de produção, dos serviços coletivos, da proteção e seguridade das pessoas (Chanial, 2008). Como a reconstituição dos fragmentos da história mostrou ter colonizado a rede de relações mútuas, a retomada desta dispersão ou dissociação3 explica como os processos sociais são conduzidos com autonomia e T

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cooperativamente uns com os outros em matéria de política, economia e cultura. Por esta sucessão de acontecimentos, a forma associativa se modificou, sobretudo a forma da rede de relações mantidas objetiva e subjetivamente no tempo e no espaço. Dessa maneira, segundo Fontes & Stelzig, há em alguns momentos a sobreposição das associações profissionais sobre as redes sociais de vizinhança. Há, diante do novo contexto, uma nova estrutura social? Ao rever a experiência associativa, em que sentido as redes sociais representam uma metodologia singular no horizonte sociológico? 4 (Martins, 2009). T

T

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REDES SOCIAIS

ASSOCIAÇÕES

Modernidade e adaptação de valores e costumes (capitalismo informacional);

Tradição e preservação de valores e costumes (sociedade de trabalho);

Intersubjetividade (interioridade) e relacionabilidade (afetividade, disputa, mediação);

Objetividade (exterioridade) e independência (solidariedade);

Particularidade (relação pessoal), representação e inovação social;

Auto-regulação, autoridade (relação pública), representação simbólica e formal;

Reconstrução da sociabilidade; estrutura leve e flexível.

Reafirmação e enraizamento social.

3. Redes sociais: instrumentalidade e questões éticas A aplicabilidade e instrumentalidade das redes na compreensão de regularidade e descontinuidade social guardam uma dimensão especial em relação ao Estado e as políticas públicas. Neste sentido, importa observar os imperativos éticos na condução do processo político e cultural que integram as redes, ao articular fenomenicamente uma prática de mercado e de Estado, sem, no entanto, definir-se por instituição social. Na última metade do século XX, sobretudo em sociedades latino-americanas, as redes formam as etnografias em sociabilidades primárias, envolvendo estruturas de parentesco e a sociabilidade secundária (onde as associações e partidos são constitutivos).

3

Ver Philippe Chanial, “Jacques Généreux: La dissociété”, Revue Du Mauss permanente, último acesso, 05 de Janeiro de 2009.

4

Paulo Henrique Martins, “Redes sociais: um novo paradigma no horizonte sociológico?”, 2009.

1183

As redes sociais funcionam na ordem de solução informal devido à inabilidade do sistema formal, integrando-o para satisfazer as necessidades sociais, como “poder de base para alocação de recursos, oportunidades, serviços e segurança coletiva”, isto é, na descentralização do poder, na distribuição de bens e serviços pelo Estado, mercado, caracterizando a segunda economia socialista (Lominitz). Assim as redes operam no nível da informalidade, da colaboração voluntária em contextos de exclusão e marginalidade, de relações assimétricas e hierárquicas (Lomnitz, 1994). Na terceira fase da modernidade, as redes têm a função de articular a vida social, segundo a cooperação interinstitucional que integram as associações e redes à prática institucional: “a construção de redes sociais e entre estas e o Estado se mostra muito mais decisiva que anteriormente, por conta da complexidade que se impôs em nossas sociedades” (Domingues, 2007). No modelo de separação Estado e sociedade, se por um lado o Estado escuta as redes primárias, o mercado faz o papel das normas sociais (Goudbout, 2007). A composição das normas não deve inscrever apenas a rede de mercado espacial e dominante, se o que caracteriza esta rede é a exclusão do público5. Com efeito, esta é uma das questões éticas que se deve T

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observar além das questões corporativas, a questão social. Neste sentido, a constituição da sociedade pode ser compreendida pela oposição entre a burocracia, o mercado e o público; superada esta oposição, o público se modifica “conjunto de membros” em solidariedade orgânica no caso da associação (partido, sindicato, associação profissional e de consumidores) e em redes de “estrutura leve, flexível, auto-regulada”, uma dinâmica particular ao tempo das relações primárias. No estudo de campanha política, as redes sociais tornam claros os agenciamentos sociais, e as configurações simbólicas em regimes presidenciais, onde as relações pessoais e a soberania do indivíduo é um aspecto importante na elaboração da persona pública. No ritual de passagem política, conforme o estudo de caso em um partido político do México, os apoios recebidos, as queixas, petições, e as alianças formadas fazem parte da conciliação de interesses na formação simbólica do partido nacional, compondo uma percepção variada e circunstanciada do eleitorado definida por relações de parentesco, compradazgo, amizade e lealdade a integrar um processo de socialização que irá compor o ambiente e o eleitorado do partido (Lomonitz, 1990). Estas relações no sistema presidencialista são definidas pelas redes pessoais mútuas estabelecidas pela figura política, podem ser egocêntricas ou sociocêntricas, estas últimas definidas por conexões ou “nodos” por um critério realista ou nominalista. Segundo González (2005), as redes pessoais configuram um nível de análise meso, isto é, entre as relações 5 A noção de público “é composta de indivíduos independentes de autoridades (...) têm a capacidade de julgar a autoridade política, bens e serviços ‘públicos’ (...) novo elo social, diferente da solidariedade primária, corresponde à relação produtor – consumidor” (Goudbout, 2004, p. 81-2). A ruptura entre produtor e usuário é fundamental, sendo esta relação utilitarista, afastando o totalitarismo e o autoritarismo da tecnocracia. No entanto, esta ruptura é com o que o sistema representa: “il faut ouvrir la perspective. Il faut prolonger la réflexion jusqu´aux réseaux sociaux” (Goudbout, 2007, p. 94).

1184

individuais,

intersubjetivas

e

mediadas,

instituições

e

estruturas

sociais

observáveis

empiricamente, assim como os novos movimentos sociais. A negociação prevalece em sistemas fortemente corporativos, onde segmentos estão inter-relacionados segundo a hierarquia moral, assim como as relações de mercado e assimétricas, buscando neste processo configurar uma nova ordem simbólica onde as distâncias sociais, políticas e econômica não sejam soberanas, segundo um padrão de harmonia e estabilidade da vida e da sociedade humana no contexto local. Na análise das relações originárias de partidos políticos, as redes sociais compõem o aspecto estrutural e simbólico que os reproduzem, neste sentido a cultura política consiste: “1) la estructura de las redes sociales que tienen relación con el poder y 2) la del sistema simbólico que legitima y retroalimenta ese poder” (Lomnitz, 2002, p.2). Além desta aplicabilidade, em pesquisa de comunidades urbanas, a rede de intercâmbio recíproco permite encontrar referências a estruturas ou instituições sociais (Lominitz, 1975, p. 27), isto quer dizer que as redes integram a institucionalidade política, em grau de formalização inferior às associações, uma institucionalidade geral que identifica sua natureza democrática. Neste sentido compõe a metodologia identificar a conexão com a organização social, isto é, a filiação política que integra e a filiação partidária, segundo a história que compõe a experiência da rede singular, e segundo o conjunto simbólico e a declaração narrativa dos partícipes, como sujeitos com autonomia e de relações mútuas. Estar em rede e em associação revela como os partícipes partilham e articulam no espaço político (cidade) a subjetividade (particularidade) e objetividade (sociedade) do mundo em que vive. Nesta composição da memória a idéia de rede é fundamental, porque não é possível chegar de forma singular a idéia própria, ao compartilhar idéias e modos de pensar do grupo, acionada por lembrança, isto é, a percepção individual é formada de depoimentos que concordam e o envolvimento do narrador o permite reconhecer. Em outras palavras, o indivíduo somente é capaz de recordar porque está inserido na corrente do pensamento coletivo, envolto em malhas de solidariedades múltiplas. Quando as redes de intercâmbio recíproco não fazem conexão com a organização social formam as redes informais, que caracterizam as relações nas barriadas, na adaptação e sobrevivência ao ambiente urbano e além desta, na transformação dos próprios recursos em redes produtivas (Lomnitz, 1975). Por outro lado, as redes e associações ao estabelecerem relações com a forma estatal, comum ao tipo de lógica organizacional que retiram desta o caráter opressor às atividades de economia. Neste sentido, as redes compõem as políticas públicas, de forma complexa recompõe o elo político fragmentado e dispersivo, ao compreender o cotidiano dos usuários do serviço público e a institucionalidade moderna, reflete o signo do registro, a utilidade, e a integridade, dizendo respeito necessariamente a privacidade do usuário de serviços públicos, no direito à memória pessoal e ao mesmo tempo ao ambiente coletivo. Como uma forma de governança (Poweel & Smith-Doerr, 1994), compreende a crítica das relações hierárquicas entre mediadores e usuários do sistema de direitos sociais, em favor do 1185

princípio da igualdade na esfera pública, e da participação no processo de melhora de si, do círculo de convivência, e do ambiente institucional. Caracteriza-se pela variabilidade do instrumento de pesquisa, utilização de mapas e cartelas, que despertam a memória do entrevistado para os problemas já apontados anteriormente pela rede generalista de usuários, assim como a abertura para o registro de problemas inéditos a rede específica capaz de aperfeiçoar o registro institucional. No ambiente de saúde, aplica-se ao mapeamento epidemiológico, recompondo fatores contextuais, tempo, lugar, modo de comunicação, a pessoa, e a biologia molecular (Brewer, 2007). Compreende a crítica ao funcionalismo e utilidade das regras burocráticas para aperfeiçoamento da narrativa institucional, com maior registro da dinâmica da vida, na defesa dos bens públicos como uma defesa dos direitos sociais. Neste sentido, o ambiente instrumental é cotidiano, isto é, o controle laboratorial no que diz respeito à pesquisa sociológica é atenuado e até dispensado no registro de informações como inscrição simbólica e material, de afetos e de sentimentos

compartilhados,

que

são

necessariamente

intersubjetivos,

envolvendo

a

personalidade e a comunidade, quem é o mediador e quem é o usuário, assinando como partícipes conscientes da rede de partilha ou de rede próxima. Finalmente, considerada as questões éticas, a análise de redes permite rearticular a sociedade do trabalho e conceder sentido à justiça social, em sua indeterminação de sistemas abertos e reflexivos, reduz a ingerência e a contingência na investigação continuada e a genealogia relacional.

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Ativismo judicial e materialização das políticas públicas infanto-juvenis na constituição da república Marcus Vinícius Pereira Júnior1

Resumo

Abstract

A pesquisa surgiu da necessidade de apresentação de caminhos a seguir por parte dos atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente (SGD), no que se refere concretização dos direitos infanto-juvenis, pois a legislação em vigor no Brasil atualmente é considerada modelo em todo o mundo e, contraditoriamente, os direitos fundamentais das crianças e adolescentes não são concretizados, mesmo diante da prioridade absoluta garantida na Constituição da República. Assim, o estudo investiga a fundamentalidade dos direitos das crianças e adolescentes, consagrados na Carta da República Federativa do Brasil, bem como as formas de efetivação dos referidos direitos, através da atuação do Poder Judiciário. Com enfoque concretizador, estuda a Teoria Estruturante do Direito (Strukturiende Rechtslehre), de Friedrich Müller, que ressalta a necessidade de análise da realidade social na aplicação da norma jurídica. Por fim, analisa o ativismo judicial, chegando-se conclusão de que o Supremo Tribunal Federal (STF) considera possível a atuação ativista, a partir da constatação da omissão por parte dos Poderes Executivo e Legislativo, no que se refere concretização dos direitos das crianças e adolescentes, bem como que os direitos infantojuvenis não são concretizados, na maioria dos casos, em razão da omissão dos atores do Sistema de Garantia de Direitos.

The research arose from the necessity of showing ways to be followed by the actors of the System Guaranteeing Rights of the Child and Adolescent (SGD), regarding the implementation of rights for young people, because the legislation in force in Brazil is currently considered a model around the world and, paradoxically, the fundamental rights of children and adolescents are not met, even with the constitutionally guaranteed priority. Thus, the study investigates the fundamentality rights for young people, enshrined in the Constitution of the Republic, as well as the ways of effectiveness of these rights through the actions of the judiciary. Focusing realized, study the Theory of Law (Strukturiende Rechtslehre), of Friedrich Müller, who emphasizes the need for analysis of social reality in the application of the rule of law. Finally, it analyzes the judicial activism, concluding that the Federal Supreme Court (STF) can consider the action activist, from finding the omission of the Executive and legislative branches, as regards the implementation of the rights of children and adolescents, as well as the rights of children and young people are not realized in most cases, due to the omission of actors of the System Guaranteeing Rights.

Palavras-Chave: Constitucional; Criança; Ativismo Judicial.

Keywords: Constitutional; Absolute Priority; Child; Judicial Activism.

Prioridade

Absoluta;

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Mestre em Direito Constitucional (UFRN). Área de Concentração: Constituição e Garantia de Direitos. Professor efetivo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CERES (Caicó - RN). Professor da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte. Bacharel em Direito (UnP) e Licenciado em Filosofia (UFRN). Especialista em Direito Processual Civil (Universidade Gama Filho – RJ), Ministério Público e Cidadania (UnP) e Infância e Juventude (UFRN). E-mail [email protected]. T

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1. Introdução A vida das crianças e adolescentes2 no Brasil pode ser vista das mais variadas formas, T

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considerando que estão espalhadas pelas ruas, escolas, praças, fazendas, shoppings, campos de futebol, zona urbana ou rural, existindo uma infinidade de meninos e meninas que têm os seus direitos materializados, e outros tantos com os direitos desrespeitados. Porém, o observado é que a cada dia o direito da infância e juventude é mais estudado e, contraditoriamente, continua a não fazer parte da vida dos pequenos brasileiros. Não existem dados precisos no Brasil para identificar quantas crianças estão fora da escola, são órfãs, sofreram violência sexual, dentre outras violências, isso pelo simples fato de grande parte não ter sequer o direito ao registro de nascimento3, sendo certo que a simbologia de T

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meiguice e beleza das crianças em nada representa a realidade de vida das mesmas, apesar da existência formal de dispositivos legais criados para garantia dos direitos infanto-juvenis na seara nacional e internacional. Assim, o presente artigo tem como objetivo estudar o papel desempenhado pelo Poder Judiciário na materialização das políticas públicas garantidoras dos direitos das crianças e adolescentes, evidenciando, assim, a omissão por parte dos atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente4 sob o manto da Constituição Federal de 1988, no que se T

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refere à concretização dos direitos infanto-juvenis com prioridade absoluta5, eis que é pressuposto T

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da atividade do judiciário a ofensa aos referidos direitos em razão da omissão dos garantidores. Nesse intento, o estudo busca apresentar uma visão crítica acerca do ativismo judicial, partindo da ideia de que a falta de informações por parte da população, aliada ao desinteresse dos gestores dos recursos públicos em aplicar as verbas com os fins legalmente previstos, são dois dos grandes motivos para que os direitos das crianças e adolescentes sejam desrespeitados. Ressalta-se, ainda, que a não materialização dos direitos infanto-juvenis mostra-se como uma contradição no Brasil, tendo em vista que o Estatuto da Criança e Adolescente, seguindo 2

Nos termos do art. 2º da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e Adolescente), considera-se criança a pessoa com até doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Ressalte-se, por oportuno, que apesar de recente modificação no texto do art. 227 da Constituição Federal, ao inserir como sujeitos de proteção referidos no artigo os jovens, o presente estudo será desenvolvido com o escopo de analisar as possibilidades de materialização dos direitos das crianças e adolescentes. T

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3 Apesar de o art. 102 do ECA estabelecer que deve ser garantido o registro de nascimento a todas as crianças e adolescentes, a prática está muito distante da realidade no Brasil, isso em razão de inúmeras crianças e adolescentes não serem sequer registradas civilmente, o que dificulta a garantia de outros direitos. T

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Conforme estabelece a Resolução n. 113/2006, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, órgão público paritário entre governo e sociedade civil, o Sistema de Garantia dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. Esse Sistema articular-se-á com todos os sistemas nacionais de operacionalização de políticas públicas, especialmente nas áreas da saúde, educação, assistência social, trabalho, segurança pública, planejamento, orçamentária, relações exteriores e promoção da igualdade e valorização da diversidade. T

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De acordo com o art. 227 da Constituição Federal, os direitos das crianças, adolescentes e jovens devem ser tratados com prioridade absoluta em relação aos demais direitos protegidos constitucionalmente. T

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diretrizes da Constituição Federal de 1988, adotou a teoria da proteção integral6, o que evidencia T

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a necessidade de estudar o tema com profundidade, possibilitando ao leitor descobrir os caminhos a seguir com o escopo de concretizar os direitos estabelecidos na Carta Federal. Após o desenvolvimento da introdução, apresenta-se, no capítulo 1, um estudo relativo à Constituição Federal e os direitos fundamentais. No capítulo 2 será estabelecido o conceito de ativismo judicial, com a análise jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no que se refere à garantia dos direitos fundamentais. Esse capítulo objetiva dar subsídios aos leitores para que possam compreender a importância da intervenção do judiciário no controle das políticas públicas infanto-juvenis, partindo, em seguida, para as conclusões.

2. Constituição Federal e direitos fundamentais Após a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, o estudo acerca dos direitos fundamentais ganha cada vez mais espaço nas discussões doutrinárias e acadêmicas, o que tem levado à aproximação, mesmo que ainda insipiente, de tais direitos à vida da sociedade em geral. Assim, importa ressaltar que a separação do estudo dos direitos em comuns e fundamentais, por exemplo, visa identificar, dentro de determinado ordenamento jurídico, qual a prioridade de materialização desses direitos, diante da impossibilidade de efetivação simultânea de todos em razão da escassez de recursos. Destaque-se que os direitos fundamentais, de acordo com J. J. Gomes Canotilho, cumprem a função de defesa ou liberdade, de prestação social, de proteção perante terceiros e de não discriminação, sendo importante transcrever o significado de direito de prestação social, de acordo com o referido constitucionalista português, pelos objetivos estabelecidos no presente estudo: Os direitos a prestações significam, em sentido estrito, direito do particular a obter algo através do Estado (saúde, educação, segurança social). É claro que se o particular tiver meios financeiros suficientes e houver resposta satisfatória do mercado à procura destes bens sociais, ele pode obter a satisfação das suas “pretensões prestacionais” através do comércio privado (cuidados de saúde privados, seguros privado, ensino privado). 7

Contudo, dificuldades surgem quando se busca diferenciar os chamados direitos comuns dos fundamentais, sendo certo que a distinção é necessária, pois uma sociedade jamais irá priorizar o direito ao ensino superior, por exemplo, quando existem milhares de famílias que sequer têm acesso às condições mínimas de vida, como educação básica, moradia e alimentação. É necessário, pois, que seja estabelecida dentre os direitos uma escala de prioridade

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Importa esclarecer que o Estatuto da Criança e Adolescente (Lei nº 8.069/90) ao estabelecer, em seu art. 1º, que a lei “dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”, visou dar às crianças e adolescentes uma proteção diferenciada, própria e especial, tendo em vista a condição peculiar de vulnerabilidade das crianças e adolescentes.

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4 ed. Coimbra: Almedina, p. 402, 2000. T

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de materialização, com o objetivo de efetivar conquistas e evitar o retrocesso na garantia dos direitos. Partindo dessa necessidade de diferenciação de classes de direitos, em direitos comuns e fundamentais, são desenvolvidas várias teorias, dentre as quais a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy, esta com o objetivo de estabelecer “um sistema de enunciados gerais de direitos fundamentais, corretos ou verdadeiros, ordenado de forma mais clara possível”8. T

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Enfatiza o autor que a inclusão formal de muitos direitos dentre os direitos fundamentais, sem estabelecer uma forma de ordenação, termina por esvaziar a função da criação de uma Teoria dos Direitos Fundamentais, na medida em que se tornará impossível a materialização de todos ao mesmo tempo. Seguindo essa linha de pensamento, ressalta Alexy, quanto à importância da teorização de direitos fundamentais, que “o conceito de uma teoria integrativa é uma ideia regulativa, da qual a teorização sobre os direitos fundamentais pode se aproximar das mais variadas formas”9, T

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deixando claro, assim, que o aprofundamento do estudo com o escopo de buscar formas de garantia de tais direitos é importante na medida em que serve de embasamento para a evolução na materialização dos chamados direitos fundamentais. Contudo, com o questionamento, dentre as normas, de quais são de direitos fundamentais e com a resposta dada por Alexy no sentido de que “são aquelas normas que são expressas por disposições de direitos fundamentais; e disposições de direitos fundamentais são os enunciados presentes no texto da Constituição alemã10, e somente esses enunciados11”, surge um problema, T

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na medida que não seria possível estabelecer dentre os direitos formalmente constitucionais quais devem ser materializados com prioridade. Para suprir essa lacuna, importantes são os ensinamentos de Vieira de Andrade em sua obra Os Direitos Fundamentais, esclarecedores no sentido de vincular os direitos fundamentais a um ligado à ideia-princípio da dignidade da pessoa humana, baseando-se em três critérios, como se observa nas transcrições abaixo: A nosso ver, é efetivamente possível definir o domínio dos direitos fundamentais, dando assim autonomia institucional ao conjunto que formam. Em primeiro lugar, pela importância do seu radical subjetivo. O núcleo estrutural da matéria dos direitos fundamentais é constituído por posições jurídicas subjetivas consideradas fundamentais e atribuídas a todos os indivíduos ou a categorias abertas de indivíduos. (…) Em segundo lugar, a função de todos os preceitos relativos aos direitos fundamentais há de ser a protecção e a garantia de determinados bens jurídicos das pessoas ou de certo conteúdo das suas posições ou relações na 8

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, p. 39, 2008.

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A obra de Robert Alexy estuda a Teoria dos Direitos Fundamentais com base na Constituição alemã, por isso à referência no texto. Contudo, como o presente estudo analisa os direitos fundamentais de acordo com a Constituição brasileira, onde se faz referência à Constituição alemã, leia-se Constituição Brasileira. T

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ALEXY, Robert. Op. cit., p. 65.

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sociedade que sejam considerados essenciais ou primários. (…) Em terceiro lugar, a consagração de um conjunto de direitos fundamentais tem uma intenção específica, que justifica a sua primariedade: explicar a ideia de Homem, decantada pela consciência universal ao longo dos tempos, enraizada na cultura dos homens que formam cada sociedade e recebida, por essa via, na constituição de cada Estado concreto. Ideia de Homem que, no âmbito da nossa cultura, se manifesta juridicamente num princípio de valor, que é o primeiro da Constituição portuguesa: o princípio da dignidade da pessoa humana. 12 T

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Nesse contexto, com o objetivo de apresentar uma alternativa no que se refere à materialização dos direitos fundamentais de acordo com a ordem de prioridade de importância, Friedrich Müller caracteriza sua teoria como uma teoria da norma pós-positivista, ressaltando que a teoria estrutural da norma jurídica consiste na tese da diferença entre norma e texto normativo, ou seja, de acordo com Müller a norma jurídica é mais que o texto legal, pois a concepção de norma jurídica abstrata, sem a determinção de acordo com o caso concreto, seria apenas uma ilusão formalista dentro do ordenamenteo jurídico, afinal a realidade social faz parte da norma. De acordo com Müller, uma teoria pós-positivista da norma jurídica deveria partir do pressuposto de que a norma jurídica é determinada principalmente pela realidade social, considerada o âmbito da norma, concluindo que o texto normativo expressa o ‘programa da norma’, tradicionalmente entendido como o ‘comando jurídico’, enquanto que a norma propriamente dita deveria ser extraída da realidade social, possibilitando a construção de uma ordem de prioridade de concretização dos direitos fundamentais de acordo com a interpretação constitucional. Pela Teoria Estruturante de Müller é possível estabelecer um grau de hierarquia dos direitos formalmente constitucionais, partindo da premissa de que os direitos fundamentais referidos pela Constituição representam apenas o “texto normativo” ou “programa da norma”. Assim, a interpretação normativa seria determinada pela realidade social, ao definir o âmbito de aplicação da norma, levando o intérprete a concluir que uma política pública para garantia do direito à saúde deveria ser tratada com prioridade em relação à outra política pública garantidora do direito ao lazer, por exemplo, mesmo considerando que saúde e lazer são direitos fundamentais garantidos às crianças, adolescentes e jovens, nos termos do art. 227 da Carta da República. Assim, exatamente como forma de materializar a verdadeira vontade do povo, este deverá ficar a salvo de critérios estabelecidos pelas simples maiorias parlamentares, eis que, de acordo com Müller “a sociedade foi e é uma sociedade de classes. Isso quer dizer que seus elementos são cunhados pela desigualdade da posição de classes. “Cunhados” quer dizer: formados pela

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ANDRADE, José Carlos Viera da. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, p. 79/80, 2009. T

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desigualdade e pelos mantenedores da mesma. O ordenamento jurídico é parte essencial de todo e qualquer nexo social atual” 13. T

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Fica claro, portanto, que a norma é mais que o texto, pois o texto produzido por parlamentares representativos da desigualdade e mantenedores da mesma terminam por tolher os direitos dos materialmente desiguais, ressaltando Müller que “não importa que a legislação em última instância e de qualquer modo invoque o povo; importa, pelo contrário, que o povo tenha feito as leis” 14 e que o povo, diga, através dos Juízes, intérpretes da Constituição, o verdadeiro T

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sentido da lei. Portanto, o grande desafio do aplicador do direito, de uma maneira ampla, não é simplesmente extrair do texto a aplicação necessária para resolução do caso concreto, mas buscar na rua, junto ao povo, a norma, isso como forma de tratar todos em termos iguais, fazendo com que o ato legislativo esteja em consonância com a vontade efetiva do povo, garantindo a materialização dos direitos fundamentais de acordo com a interpretação constitucional extraída da realidade social das crianças e adolescentes brasileiros.

3. Ativismo judicial Diante da dinâmica existente na sociedade, o exercício da atividade jurisdicional mostra-se de fundamental importância na medida em que tem como papel construir através da interpretação, a própria norma jurídica, inclusive quando necessário para a concretização dos direitos das crianças e adolescentes. As lições de Lenio Luiz Streck, abaixo transcritas, são esclarecedoras no sentido de que o Judiciário não legisla, mas simplesmente constroi com a participação da sociedade o sentido normativo da constituição e das leis: De uma perspectiva interna ao direito, e que visa a reforçar a normatividade da constituição, o papel da jurisdição é o de levar adiante a tarefa de construir interpretativamente, com a participação da sociedade, o sentido normativo da constituição e do projeto de sociedade democrática a ela subjacente. Um tribunal não pode paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de a estar garantindo ou guardando. Há, portanto, uma diferença de princípio entre legislação e jurisdição (Dworkin). O ‘dizer em concreto’ significa a não submissão dos destinatários – os cidadãos - a conceitos abstratalizados. A Suprema Corte não legisla (muito embora as súmulas vinculantes, por exemplo, tenham adquirido explícito caráter normativo em terrae brasilis).15 T

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Outra questão que deve ser compreendida, para evitar a alegação de ilegitimidade do Judiciário na interpretação das normas constitucionais, em aparente invasão da esfera de atribuição dos outros Poderes, é que ao concretizar o ato de interpretação, o Judiciário está 13 T

MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 174.

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Ibdem, p. 177.

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STRECK, Luis Lênio. A nova perspectiva do STF sobre o controle difuso: mutação constitucional e limite de jurisdição constitucional. Disponível em: www.jusnavigandi.com.br/doutrina/streck/mutacaoconstitucional.html. Acesso em: 23 jul. 2011. T

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vinculado às normas vigentes, especialmete a Constituição Federal, não podendo paradoxalmente subverter a constituição sob o argumento de estar garantindo ou guardando, ficando evidente a necessidade do exercício da atividade interpretativa pelo Judiciário, inclusive em algumas situações de interpretação judicial de forma ativista, com o fim de suprir omissões dos Poderes Executivo e Legislativo. Ao analisar o julgamento de Recurso Extraordinário relatado pela Ministra Ellen Gracie16, T

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em que foi determinada a obrigação do Poder Executivo em garantir a criação objetiva de condições para a efetiva existência de vagas em creches e pré-escola, fica claro que após o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e Adolescente, o Poder Judiciário passou a ter uma sensibilidade maior ao examinar matérias relativas ao mérito administrativo, intervindo nos casos de omissão dos Poderes Executivo e Legislativo no exercício das suas funções típicas, como forma de garantir a materialização de direitos fundamentais. No Recurso Extraordinário nº 464143, acima referido, o Judiciário declarou que é possível determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questões que envolvem o poder discricionário do Executivo, isso considerando que não faz parte do mérito administrativo a escolha entre implementar, ou não, políticas públicas concretizadores dos direitos fundamentais. Fica clara, dessa forma, a possibilidade de atuação do Judiciário em âmbito coletivo, ao contrário do que se percebia durante a vigência da Política do Bem-Estar do Menor, onde a atuação do Juiz de Menores era direcionada basicamente para a resolução de problemas em âmbito coletivo. Seguindo a mesma trilha, com o objetivo de identificar a atual interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal no que se refere às normas constitucionais relativas aos direitos das crianças e adolescentes, importante é analisar o Recurso Extraordinário n° 482611/SC17, que teve T

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como relator o Ministro Celso de Mello. 16

RE 464143 AgR / SP - SÃO PAULO. AG.REG.NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Relator (a): Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 15/12/2009. Órgão Julgador: Segunda Turma. Publicação DJe-030 DIVULG 18-02-2010. PUBLIC 19-022010. Ementa. DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. GARANTIA ESTATAL DE VAGA EM CRECHE. PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. PRECEDENTES. 1. A educação infantil é prerrogativa constitucional indisponível, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a creches e unidades pré-escolares. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. 3. Agravo regimental improvido. Decisão. A Turma, à unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto da Relatora. Ausentes, justificadamente, neste julgamento, os Senhores Ministros Cezar Peluso e Joaquim Barbosa. 2ª Turma, 15.12.2009.

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RE 482611/SC. RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. EMENTA: CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL. DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA–PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO, PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO. DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819). COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796). IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ T

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O referido processo foi iniciado com o ajuizamento, pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, de Ação Civil Pública com o objetivo de compelir o Município de Florianópolis a implementar o Programa denominado Sentinela (Projeto Acorde), existente como política pública concretizadora dos direitos das crianças e adolescentes vítimas de abuso e/ou exploração sexual, tendo ressaltando o Ministério Público em sua inicial que a inexecução do programa representava típica hipótese de omissão inconstitucional atribuída ao Município, em desrespeito às normas constitucionais garantidoras dos direitos das crianças e adolescentes, que têm caráter cogente. Após o julgamento de procedência do pedido em primeiro grau de jurisdição, o Município de Florianópolis interpôs apelação. No julgamento desta, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina deu provimento ao recurso, considerando que em razão do princípio da separação dos Poderes seria impossível o Judiciário determinar a concretização de política pública, considerada pelo TJSC como derivada de norma programática. Considerou o TJSC que a Administração Pública, com base em seu poder discricionário, teria a competência para estabelecer as políticas sociais derivadas de normas programáticas, sendo vedado ao Poder Judiciário interferir nos critérios de conveniência e oportunidade que norteiam as prioridades traçadas pelo Executivo. Com o julgamento desfavorável, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina ao interpor Recurso Extraordinário sustentou que o acórdão oriundo do TJSC teria transgredido o art. 227 da Constituição da República, baseando-se, inclusive, em jurisprudência do Supremo Tribunal Federal acerca da matéria (AI 583.136/SC, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – RE 503.658/SC, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.), ressaltando, também, que a proteção aos direitos da criança e do adolescente (CF, art. 227, “caput”) deve ser considerada como um dos direitos sociais mais expressivos existentes na Constituição da República. Após analisar as razões apresentadas pelo Ministério Público, em 23 de março de 2010, o Ministro Celso de Mello conheceu o recurso extraordinário e deu provimento ao mesmo (CPC, art. 557, § 1º-A), com base em anterior decisão que proferiu sobre o tema (AI 583.264/SC, Rel. Min. CELSO DE MELLO), restabelecendo a sentença proferida pelo magistrado de primeira instância. Em seu julgamento, o Ministro Celso de Mello afirmou que o acórdão oriundo do TJSC transgrediu o art. 227 da Constituição da República, eis que a proteção aos direitos da criança e do adolescente deve ser considerada como um dos direitos sociais mais expressivos existentes na Carta Federal, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração. Continuando o julgamento o referido Ministro afirmou que o Município de Florianópolis estava inadimplente com a 200/191-197). CARÁTER COGENTE E VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (RTJ 174/687 RTJ 175/1212-1213 - RTJ 199/1219-1220). RECURSO EXTRAORDINÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO. Decisão publicada no DJE de 7.4.2010.

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satisfação de um dever de prestação positiva, ressaltando que era obrigação do Município criar condições objetivas que viabilizassem, em favor das crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, nos termos do art. 227, caput, da Constituição da República. Dentre outras razões, o Ministro afirmou que em julgamentos onde se discute a concretização de políticas públicas garantidoras dos direitos infanto-juvenis, o Supremo Tribunal Federal considerando a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a referida Corte, não pode omitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam - enquanto direitos de segunda geração - com as liberdades positivas, reais ou concretas. Ressaltou, também, que o administrador não tem discricionariedade para deliberar sobre a oportunidade e conveniência de implementação de políticas públicas discriminadas na ordem social constitucional, pois a necessidade de implementação das referidas políticas públicas já foi objeto de deliberação por parte do Constituinte e do legislador infraconstitucional que elaborou as normas de integração. Em seu arremate, o Ministério Celso de Mello destacou que o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivam restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão institucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República, ressaltando que o suprimento de omissões inconstitucionais, realizada em sede jurisdicional, notadamente quando emanada da Corte Suprema, torna-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitucional, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. Após a análise de casos concretos paradigmáticos no que se refere ao exercício da atividade judicial praticado com o fim de suprir omissões dos Poderes Executivo e Legislativo, no que se refere à concretização de direitos fundamentais infanto-juvenis, fica claro que com constitucionalizão de vários direitos, conquistados pela sociedade com muita luta e por vezes com as próprias vidas de idealistas, o ato criativo do juiz, que dá cores ao texto magno com o ato de interpretar, passa a ser considerado como necessário para a concretização dos referidos direitos, surgindo dessa interpretação avançada e progressiva, a expressão “ativismo judicial”, que de acordo com a obra Ativismo Jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal teve o seu primeiro emprego na revista americana Fortune, voltada para não juristas, mas para o público leigo, conforme pode ser extraído da transcrição abaixo: 1196

No artigo “The Supreme Court: 1947”, o jornalista Arthur Schlesinger Jr. traçou o perfil dos nove juízes da Suprema Corte norte-americana: foram classificados como ativistas judiciais os juízes Black, Douglas, Murphy e Rutlege; como campeões de autolimitação, os juízes Frankfurter, Jacson e Burton; e os juízes Reed e Vinson, como integrantes de um grupo de centro. Schlesinger Jr., ganhador do Prêmio Pulitzer e responsável por uma obra dedicada à crítica social americana, com ênfase na exploração do liberalismo exercido por importantes políticos na história daquele país, tinha no ativismo judicial um elemento condicionante de sua análise, ao reconhecer, em uma linha divisória entre juízes ativistas e os de uma autolimitação, um reflexo de uma tendência liberal ou conservadora na atividade judicante de cada magistrado18. T

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Nesse contexto norte-americano, onde a expressão foi utilizada pela primeira vez, o ativismo judicial (judicial activism) é considerado de acordo com o Black's Law Dictionary como “(...) uma filosofia de tomada de decição judicial pela qual os juízes apresentam suas opiniões pessoais sobre a política pública, entre outros fatores, para orientar suas decisões. De acordo com os adeptos desta filosofia, o julgamento tende a ignorar os precedentes ao encontrar violações constitucionais”19. T

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Nesse contexto, atento à dinâmica social e necessidade de exercício da jurisdição para adaptar a norma aos fatos sociais, importa enfatizar que esperar a ação do legislador ou administrador é compactuar com a omissão, surgindo a injustiça por omissão, o que não ocorrerá se o Judiciário estiver atento e aplicar às leis aos casos concretos, de modo a atingir o grande escopo da jurisdição: fazer justiça. Destaque-se, também, que a necessidade da separação dos três poderes – legislativo, executivo e judiciário – objetivando garantir a liberdade dos cidadãos e, ao mesmo tempo, garantir a existência de controle entre os poderes20, como restou positivado na T

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Constitução da República Federativa do Brasil, em seu art. 2°, está fundada exatamente na independência e harmonia dos referidos poderes, o que legitima o Judiciário ao regular os atos praticados pelos outros poderes, com a interpretação constitucional. No caso do controle de constitucionalidade dos atos praticados pelos Poderes Executivo e Legislativo, resta clara a função constitucional do Judiciário de declarar, quando for o caso, a inconstitucionalidade praticada, isso considerando a opção constitucional de incumbir o Judiciário de interpretar, em última instância, as normas integrantes do ordenamento jurídico brasileiro. Como bem explicitado por Otto Bachof, em artigo intitulado Nuevas reflexiones sobre la jurisdicción constitucional entre derecho y política, é necessária a intervenção do juiz para materializar os princípios e valores esculpidos na constituição, eis que apenas após o ato

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VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, p. 19/20, 2009.

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Blacks Law Dictionary, Deluxe 9 th. By Bryan ª Garner (editor). West Group, 2009. Texto original: “a philosophy of judicial decision-making whereby judges allow their personal views about public policy, among other factors, to guide their decisions, usu. With the suggestion that adherents of this philosophy tend to find constitutional violations and are willing to ignore precedent”.

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Sistema de pesos e contrapesos (cheks and balances).

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interpretativo é possível verificar o sentido dos princípios e valores constitucionalmente garantidos, conforme se percebe com as lições abaixo: Uma Constituição não contém nenhuma regulamentação detalhada individualmente, mas é caracterizada por cláusulas gerais e conceitos axiológicos desprovidos de conteúdo. O espaço para o intérprete e, assim, o seu poder para uma decisão autônoma, portanto, é particularmente grande. Conceito como “igualdade”, “dignidade da pessoa humana”, “livre desenvolvimento da personalidade”, “Estado de Direito”, “Estado Social”, “bem comum” – todos os conceitos de direito fundamental podem ser usados como parâmetro para análise de constitucionalidade da uma lei – permitindo diferentes interpretações.21

Com o texto de Bachof, acima transcrito, fica evidente a imperiosa função interpretativa exercida pelo Judiciário, diante da existência de princípios e valores estabelecidos na Constituição, que utiliza expressões como igualdade, dignidade da pessoa humana, livre desenvolvimento da personalidade, Estado de direito, dentre outras, que deverão ser interpretadas em um primeiro momento por qualquer cidadão, inclusive pelos integrantes do Executivo e Legislativo, ressaltando-se que cabe ao Jucidiário, por determinação constitucional, uniformizar a interpretação do texto constitucional.

4. Conclusões Atento ao que no presente estudo restou exposto, formula-se os remates seguintes: 1) a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e Adolescente revolucionaram os direitos infanto-juvenis, considerados como fundamentais, adotando os princípios da prioridade absoluta e doutrina da proteção integral, ressaltando, porém, que o problema da não concretização dos referidos direitos é mais jurídico e político que filosófico, isso considerando que no Brasil apesar da legislação ser avançada, os atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e Adolescente, em regra, não cumprem com suas obrigações legais; 2) para a concretização dos direitos fundamentais infanto-juvenis, necessário se faz interpretar a Constituição da República de acordo com a Teoria Estruturante do Direito elaborada por Friedrich Müller, com o estabelecimento de um grau de hierarquia dos direitos formalmente fundamentais, partindo da premissa de que os direitos fundamentais referidos pela Constituição representam apenas o “texto normativo” ou “programa da norma” e que a interpretação deve ser determinada

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Nuevas reflexiones sobre la jurisdicción constitucional entre derecho y política. Boletin Mexicano de Direito Comparado, ano XIX, n. 57, p.842-843, setembro-dezembro de 1986. Versão para o castelhano por León CortiñasPeláez. Texto original: “Una Constitución no contiene ninguna regulación individualizada detallada, sino que se caracteriza por muy amplias cláusulas generales y por conceptos axiológicos carentes de contenido. El ámbito para el intérprete y con ello su poder para una decisión autónoma son por ello particularmente grandes. Conceptos como “igualdad”, “dignidade de la persona humana”, “libre desarrollo de la personalidad”, “Estado de derecho”, “Estado Social”, “bien común” – todos ellos conceptos de la ley fundamental que pueden ser utilizados como escala para el juezgamiento de la constitucionalidad de una ley – permiten interpretaciones diferentes”. T

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pela realidade social, ao definir o âmbito de aplicação da norma, levando o intérprete a estabelecer uma ordem de prioridades na concretização das políticas públicas; 3) a omissão dos Poderes Executivo e Legislativo na concretização das políticas públicas infantojuvenis, exige do Judiciário, atento à dinâmica social e necessidade de exercício da jurisdição para adaptar a norma aos fatos sociais, uma postura ativista, na medida em que esperar a ação do legislador ou administrador na materialização de direitos fundamentais, significa compactuar com a omissão, surgindo a injustiça por omissão, o que não ocorrerá se o Judiciário estiver atento e aplicar às leis aos casos concretos, de modo a atingir o grande escopo da jurisdição: fazer justiça; 4) de acordo com o Supremo Tribunal Federal é possível o exercício de controle e intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de injustificável inércia estatal ou de abusividade governamental, mesmo que para isso seja necessária a nomeação de experts em áreas de conhecimento específicas, isso em típica postura ativista; 5) o controle jurisdicional no que se refere às leis orçamentárias e políticas públicas concretizadoras dos direitos das crianças e adolescentes se legitima em razão das notórias deficiências do Executivo e Legislativo em materializar o estabelecido pelo povo, na norma jurídica. Visa a atuação do Judiciário, assim, garantir a defesa e concretização dos interesses dos grupos minoritários, acrescendo-se que o exame judicial no sentido de concretizar as escolhas do povo existentes na Constituição da República é representação concreta da democracia.

Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2009. Black’s Law Dictionary, Deluxe 9 th. By Bryan ª Garner (editor). West Group, 2009. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2000. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. STRECK, Luis Lênio. A nova perspectiva do STF sobre o controle difuso: mutação constitucional e limite de jurisdição constitucional. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2011. VALLE, Vanice Regina Lírio do. Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Juruá, 2009.

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O discurso do poder judiciário quanto à atuação das agências reguladoras na concretização de direitos fundamentais sociais: um retrato da experiência no supremo tribunal federal e no superior tribunal de justiça

Maria Clementina Guedes Alcoforado1 T

Marcelo Labanca Corrêa de Araújo

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Resumo

Abstract

O presente artigo objetiva verificar o grau de “chancela” por parte do Poder Judiciário da atuação das Agências Reguladoras, identificando o comportamento do Poder Judiciário quanto à legitimação, ou não, das decisões in concreto das agências reguladoras, de seu poder normativo e de sua competência institucional. Para tanto, inicialmente resgata a tipologia classificatória dos direitos fundamentais e sua efetivação pelo Estado através das Agências Reguladoras, para chegar em uma pesquisa quantitativa e qualitativa desenvolvida nos sítios eletrônicos do Supremo Tribuna Federal e do Superior Tribunal de Justiça que identifique a postura dessas Cortes. A premissa adotada é a de que a atuação da Agência reguladora, tanto no exercício de seu poder normativo, quanto no exercício de seu poder decisório, desemboca na criação de atos abstratos e concretos que são, posteriormente, judicializados. Os resultados conclusivos demonstram que há uma chancela do Poder Judiciário à atuação das Agências Reguladoras o que, partindo-se da premissa adotada, contribui para a concretização de direitos fundamentais sociais. Ou seja, a atuação do Poder Judiciário no processo de judicialização das funções das Agências se inclina para dar respaldo à atuação daquelas entidades, respaldando também, por consequência, o novo modelo de administração gerencial do Estado brasileiro cujo benefício é traduzido no aumento da efetividade de direitos fundamentais à prestação de serviços públicos com qualidade.

This article aims to assess the degree of "stamped" by thejudiciary of the performance of regulatory agencies, identifying the behavior of the judiciary regarding the legitimacy or otherwise of the decisions of regulatory agencies in particular, its legislative powers and its institutional competence. To do so, initiallyrescues the typology classification of fundamental rights and their enforcement by the State Regulatory Agencies, to arrive at aquantitative and qualitative research developed in the electronic sites of Tribune Federal Supreme and Superior Court of Justice to identify the position of said courts.

Palavras-Chave: Poder Judiciário; Direitos fundamentais sociais; Agências Reguladoras.

Keywords: Judiciary and Fundamental Rights, Social, Regulatory Agencies.

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Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Membro do grupo de pesquisa Linguagem e Direito UNICAP/CNPq. [email protected]. T

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Doutor em Direito. Professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. [email protected] T

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1. Introdução: apresentação do objeto da pesquisa A presente pesquisa busca investigar qual é o discurso do Poder Judiciário em relação ao poder das agências reguladoras e em que isso implica na concretização de direitos sociais. Para tanto, será examinado inicialmente a classificação dos direitos fundamentais, com especial atenção à configuração de um direito social como uma espécie do gênero “direitos fundamentais”. A ideia é demonstrar que há uma relação entre a concretização do direito fundamental social e a atuação das agências reguladoras. Em verdade, procura-se demonstrar o que é uma agência reguladora e o que ela tem a ver com o direito fundamental social, notadamente a importância da regulação para a promoção de tais direitos. Também, busca-se averiguar em que medida a reforma gerencial, com a proliferação de Agências Reguladoras, potencializou ou diminuiu a efetivação de direitos sociais, seja por meio de uma atuação normativa (regulação), seja por meio da edição de atos concretos (poder decisório das agências, tido por alguns como uma função quase-jurisdicional). Com a finalidade de averiguar o discurso do Poder Judiciário na temática proposta, foi realizada uma coleta de dados que na base das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. O objetivo era justamente examinar a judicialização da regulação, identificando o comportamento do Poder Judiciário quanto à legitimação, ou não, não apenas das decisões (atos concretos) das agências reguladoras, mas também do próprio poder regulador das agências (atos abstratos). Com isso, criou-se um banco de dados (tabela) que serve de indicativo sobre o grau de “chancela”, por parte do Poder Judiciário, da atuação das Agências Reguladoras.

2. Direitos fundamentais e direitos sociais: caracterização O que caracteriza um Direito Fundamental? A pergunta de partida que se faz nesse tópico é: O que faz esses Direitos serem distintos no universo dos ramos do direito tributário, civil, empresarial, penal, urbanístico, ambiental, processual etc.? Pois bem. O diferencial desses Direitos consiste no fato de que os mesmos estão fincados na estrutura da Constituição formal e material de uma nação, ou do que se denominou como a ideia de uma sociedade justa e igualitária de pessoas, que possuem o atributo da dignidade indissociável de sua convivência, agrupados em um Estado (território) onde prevalece a democracia (governo do povo e para o povo) sob a égide do direito (onde todos se submetem à leis prévias, estritas e escritas) que se realiza tendo por fim o próprio homem e estabelece direitos essenciais que servem de fundamento para essa organização. Tais direitos são estabelecidos de modo escrito em uma constituição que possui supremacia sobre as demais disposições legais e define a Estrutura do Estado, modo de aquisição e limitação do poder, e direitos e garantias a serem observados por todos.; Materiais 1201

porque o direito não basta estar inserido nesta constituição, mas o seu conteúdo ser definidor da igualdade e dignidade do povo, titular do poder e fim ao qual se destinam todas as produções de direitos. Ingo Wolfgang Sarlet3 assenta a fundamentalidade formal em três pilares, quais sejam: a) T

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a positivação na constituição com natureza de supralegalidade, diante de sua localização no ápice piramidal do ordenamento jurídico; b) rigidez constitucional, ou submissão a limites formais (de procedimento diferenciado e dificultoso) e materiais (imutabilidade das cláusulas pétreas – CF, art. 60, §4º) para a alteração constitucional; c) aplicabilidade imediata e vinculante erga omnes (CF, art. 5º, §1º). Quanto à fundamentalidade material, o referido autor aponta que “... decorre da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade.”4. T

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Se é verdade que os direitos fundamentais nascem e morrem nas Constituições, então a sua marca é justamente a previsão constitucional. Em razão disso, há diferenças terminológicas entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos (expressão utilizada para se referir a um âmbito internacional de proteção de direitos). Sobre as nomenclaturas, nos diz Peces-Barba que derechos fundamentales puede comprender tanto los presupuestos éticos como los componentes juridicos, significando la relevancia moral de uma idea que compromete la dignidad humana y sus objetivos de autonomia moral, y también la relevancia jurídica que convierte a los derechos em norma básica material del Ordenamiento, y es instrumento necesario para que el indivíduo desarrolle em la sociedad todas sus potencialidades. Los derechos fundamentales expresan tanto uma moralidad básica como una juridicidad básica. 5 T

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Se por um lado o Direito Fundamental possui morada constitucional, por outro lado é mister reconhecer a sua qualidade de gênero. Com isso, abre-se um leque de espécies de Direitos Fundamentais, como, por exemplo, os direitos individuais, os direitos de nacionalidade e os direitos sociais também. Assim, pode-se dizer que Direito Fundamental é gênero do qual o direito social é uma das suas espécies. Há, claro, diferenças marcantes entre as espécies de Direitos Fundamentais. Por isso mesmo, não se pode comparar os direitos individuais com os direitos sociais. Nos primeiros, era possível observar uma hiper valorização da liberdade; ausência de prestação positiva (prestação negativa); direitos que existem tanto quanto não haja uma oposição a eles; abismo entre o Estado e Sociedade, com privilégio das chamadas liberdades públicas.

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SARLET, 2010, p.74/75.

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4

Idem, ibidem, p. 75

5

“... direitos fundamentais pode compreender tanto os pressupostos éticos como os componentes jurídicos, significando a relevância moral de uma idéia que compromete a dignidade humana e seus objetivos de autonomia moral, e também a relevância jurídica que converte os direitos em norma básica material do Ordenamento, e é instrumento necessário para que o indivíduo desenvolva na sociedade todas as suas potencialidades. Os direitos fundamentais expressam tanto uma moralidade básica como uma juridicidade básica.”(tradução livre) (MARTÍNEZ, 1996, p. 37). T

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Já em relação aos direitos sociais, é possível mostrar um indicativo a partir da mudança de atitude do Estado, para que o direito possa ser exercido. Tais direitos possuem como características: (a) Estado Intervencionista atuando na sociedade – diferentemente do Estado liberal, quando não se regulava a economia; (b) tais direitos sociais não mais são vistos como limites ao Poder do Estado, mas justamente ao contrário; atuação (prestação) positiva do Estado para equalizar desigualdades; Assim, os direitos fundamentais sociais podem ser encarados como espécie do gênero direitos fundamentais. E dentre tais direitos sociais, está aqueles que apenas podem ser exercidos mediante a prestação positiva se serviços por parte do Estado. Assim, natural é que os serviços públicos de oferecimento de água, energia elétrica terminam sendo o próprio reforço e a própria atuação positiva do Poder Público.

3. Agências reguladoras e direitos sociais A função do Estado de concretizar direitos sociais ou prestacionais - que estabelece que o Estado tem o dever de utilizar o seu poder de forma ativa, não omissiva, com a função de garantir os pressupostos materiais necessários ao exercício da liberdade dos indivídos e desenvolvimento de suas potencialidades6, impulsionada pela reforma administrativa brasileira delineada no início T

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dos anos noventa, ou administração pública gerencial, desenvolveu no seu entorno as condições para que as Agências Reguladoras atuem em seu espaço como ente concretizador de Direitos Fundamentais, em sintonia com o princípio da juridicidade.7 T

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Dessa forma, adequando seu instituto e instrumentos ao novo Direito Administrativo, as Agências Reguladoras têm encontrado em seus Processos Administrativos Punitivos, nas suas Ouvidorias, em seus Termos de Ajustamento de Conduta e em suas Audiências Públicas mecanismos de efetivação dos referidos direitos, de forma difusa, ou seja, beneficiando com suas decisões uma coletividade ou titulares indetermináveis8, ou, de forma concreta solucionando lides T

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de titularidade individual A análise das decisões das supremas côrtes brasileiras sobre a atuação decisória, normativa e funcional das Agências, irá revelar potencialidade dessas efetivações. Assim, a revelação dessa potencialidade de concretização de direitos fundamentais das Agências Reguladoras passa por uma nova digressão a respeito do princípio das se três formas de administrar o Estado: 1) a “administração patrimonialista”, que corresponde às formas de 6 T

Jellinek, 1892 apud DIMOULIS e MARTINS, 2009

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Nesse sentido Rafael Carvalho Rezende Oliveira doutrina: “Luís Roberto Barroso, ao tratar da constitucionalização do Direito Administrativo, bem demonstra a necessidade de superação da idéia convencional de legalidade como vinculação positiva do administrador à lei pelo princípio da constitucionalidade ou juridicidade. Em sentido semelhante, Gustavo Binenbojm defende a idéia de juridicidade administrativa, traduzida 'na vinculação da Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, a partir do sistema de princípios e regras delineado na Constituição'.” (2010, p.73)

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MAZZILLI, 2008, passim

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Estado pré-capitalistas, ou seja, às monarquias absolutistas, onde o patrimônio público se confunde com o patrimônio privado da realeza e a administração não está voltada para o interesse público; 2) a “administração pública burocrática”, em que há um serviço prestado por servidores públicos que se submetem a procedimentos universalizados e formalizados em normas de procedimentos administrativos que não podem ser transigidas, que promovem o engessamento dos atos administrativos ao promover uma cultura de proibição da iniciativa de mudança na forma de satisfazer as necessidades dos administrados; 3) e a “administração pública gerencial”. Também conhecida por “nova gestão pública” (new public management9) , foi T

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implementada no Brasil no início dos anos noventa, com o país já constituído em um Estado Democrático de Direito, cuja Constituição Federal de 1988 já trazia em seu bojo uma série de inovações que “casavam” com as idéias lançadas pelo “Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado” expedido pelo governo federal Ou seja, explicitamente, a sociedade brasileira passou a ter conhecimento desse novo momento de reorganização em nosso país com uma reforma constitucional ocorrida em 1995, voltada para a instituição administração pública. Contudo, o marco da Reforma Gerencial tem como documento básico o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, expedido pelo Governo Federal e seu Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) em setembro do mesmo ano, que definia instituições e estabelecia diretrizes para sua implantação, propiciando um ambiente de mudança cultural e de gestão pública. Nesse contexto nacional se reordenou o papel do Estado em consonância com o neoconstitucionalismo das décadas que se seguiram: final do século XX e início do século XXI. O instituto da Agência Reguladora aparece, então, com uma função de concretização de direitos fundamentais. Inicialmente cumpre esclarecer que a função de concretização significa não só implementar mas tornar viável, ou seja, criar condições para que se torne efetiva a prestação do serviço público fundamental à dignidade humana10: fiscalizando o serviço prestado, identificando T

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sua ausência ou má prestação, abrindo processos punitivos para apurar as não conformidades do

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BRESSER PEREIRA, 1998, passim.

10

“Viu-se atrás que os direitos fundamentais de natureza econômica, social e cultural dispunham de vinculatividade normativo-constitucional, impondo-se aos poderes públicos a realização destes direitos através de medidas políticas, legislativas e administrativas concretas e determinadas. Embora não se possa, em geral, derivar directamente das normas consagradoras destes direitos prestações sociais (excepcionalidade de direitos originários a prestações), tão pouco a produção dos instrumentos normativo-concretizadores é deixada à livre disponibilidade do legislador. A natureza de norma-tarefa aponta para um verdadeiro dever do legislador de dar operacionalidade prática a estas imposições sob pena de inconstitucionalidade por omissão (CRP, art. 283.°). Se o legislador não é inteiramente livre no cumprimento destas imposições, dispõe, contudo, de liberdade de conformação quer quanto às soluções normativas concretas quer quanto ao modo organizatório e gradualidade de concretizações.” (CANOTILHO, 2003, p.519) T

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serviço inadequado e determinando o ajustamento da conduta/prestação em conformidade com o Direito Fundamental, que é, por sua vez, autoaplicável.11. T

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O encargo público que é conferido às Agências Reguladoras, de controle específico (regulação e fiscalização) da função do Estado de concretizar direitos sociais de forma difusa (para toda a coletividade, de forma transindividual) ou concentrada (para um determinado indivíduo, como se verá adiante), dota-as de poder quase jurisdicional para compelir as concessionárias e permissionárias de serviços públicos a fornecer o serviço prestado em conformidade com o interesse público, seja através da instalação ex oficio de processos administrativos punitivos em face desses agentes privados, seja através de ouvidorias que tem a competência para mediar e dirimir conflitos entre os consumidores e as empresas delegadas, seja determinando ajustamentos de condutas ou instalando o espaço das audiências públicas para que a sociedade se transforme em co-autora desse processo de efetivação e controle dos direitos prestacionais.

4. A judicialização da regulação e dos atos concretos das agências: aspectos metodológicos da coleta de dados no âmbito do STF e do STJ Diante do que foi exposto, e considerando que o exercício da função de regulação e de aplicação de poder punitivo-decisório das agências pode ser considerada uma atuação em prol da concretização de direitos sociais, é importante verificar, empiricamente, como se dá a judicialização dessa regulação, identificando o comportamento do Poder Judiciário quanto à legitimação, ou não, não apenas das decisões das agências reguladoras, mas também do próprio poder regulador das agências. A identificação do discurso do Poder Judiciário em relação ao Poder das Agências passou pela identificação da postura do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, especificamente na função de revisão judicial da atuação jurídica das Agências Reguladoras. Inicialmente, fez-se uma consulta ao sítio eletrônico da Corte STF).Na primeira tentativa de estabelecer um panorama das decisões, utilizou-se a expressão “agência reguladora” como critério de pesquisa, apenas em Acórdãos. Foram excluídas as decisões monocráticas, tendo em vista que o interesse da pesquisa era estabelecer o posicionamento da Corte. Assim, apenas os Acórdãos interessavam, já que uma decisão monocrática poderia contaminar o resultado da pesquisa, tendo em vista que não seria ela representativa do posicionamento da Corte inteira. Assim, com a utilização da expressão “Agência Reguladora”, foram capturados 18 ocorrências. Das 18 ocorrências, foram descartadas aquelas que não tinham nada a ver com o

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Segundo Ingo Wolfgang Sarlet,“... a constatação de que mesmo os direitos fundamentais a prestações são inequivocamente autênticos direitos fundamentais, constituindo (justamente em razão disso) direito imediatamente aplicável, nos termos do disposto no art. 5º, §1°, de nossa Constituição.” (2010, p.280) T

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objetivo da pesquisa, como, por exemplo, o HC 101604, onde se discute o . Crime de desenvolvimento clandestino de atividades de telecomunicação (art. 183, da Lei nº 9.472/97. Nesse caso, a Corte chegou à conclusão de que não há necessidade de espera da finalização do procedimento administrativo para o início da ação penal. Como pode se vê, acima, o caso foi excluído por estar fora do objeto da pesquisa na fase da coleta de dados. Buscou-se examinar apenas as decisões da Corte que realizassem uma revisão do ato da agência reguladora, seja um ato de regulação ou seja um ato de decisão punitiva. Por isso, o HC citado não entrou no bloco de decisões examinadas, pois não tratava de revisão de ato de agência reguladora, mas apenas de revisão de ato de constrição à liberdade. Assim, seguindo o iter procedimental da pesquisa proposta, vê-se que das 18 ocorrências, restaram apenas 3. A imensa maioria das ocorrências (14) referiam-se a disputas judiciais entre concessionárias de serviço e consumidores. Assim, os atos questionados eram da empresa concessionária, e não das agências reguladoras. Remanesceram, então, 3 ocorrências onde se discutia, de fato, o poder das agências, abaixo listadas. As ocorrências foram debulhadas com base em 3 critérios: (A) tipo de ação; (B) tipo de ato questionado, se o ato questionado é regulador ou se é concreto; (C) teor da decisão, se potencializadora ou não potencializadora da conduta das Agências. Rcl 5310 / MT

ADI 1949 MC / RS

ADI 1668 MC / DF

ATO CONCRETO: apreensão de equipamentos radiofôncios

Potencializadora do poder das agências

ATO LEGISLATIVO: Lei que restringe poder de Chefe de Executivo para destituição de dirigente de Agência

Potencializadora do Poder das Agências

ATO LEGISLATIVO: Lei que estabelece competência de Agência na realização de buscas e apreensões.

Não potencializadora do Poder das Agências

Confirmou o Poder de Polícia dos fiscais de regulação, com abse na Lei com base na Lei n. 10.871/2004, na redação da Lei n. 11.292/2006. Não anulou o ato de apreensão, por entender inaplicável o inc. XV do art. 19 da Lei n. 9.472/9, que havia sido julgado inconstitucional em sede de Medida Catuelar na ADI N. 1.668/DF.

Entendeu que há independência administrativa das Agências, não podendo o chefe do Poder Executivo destituir os seus dirigentes sem justo motivo.

O julgamento, em 1999, entendeu que a Agência não poderia violar o princípio do devido processo legal com a determinação de busca e apreensão de bens, suspendendo o art. 19, inciso XV, da Lei n. 9.472/99. Posteriormente, com visto acima, o STF legitimou o ato de apreensão com fundamento em legislação posterior.

Já no Superior Tribunal de Justiça, o processo de pesquisa de dados foi o mesmo utilizado para o Supremo Tribunal Federal. Ou seja, verificação, por meio de critério de busca, no sítio eletrônico de consulta de jurisprudência da Corte. Utilizou-se o mesmo critério “Agência Reguladora”. O resultado foi de 86 ocorrências. Dessas ocorrências, foram retirados todos os julgados que não interessavam por não se ater ao objeto da pesquisa (judicialização de atos de concessionárias de serviço público e conflito com particulares, por exemplo). Restaram, então, 35 julgados, a seguir listados, com base no mesmo critério acima construído para o exame das decisões do STF: 1206

AgRg no REsp 965566

ATO NORMATIVO: delimitação da "área local" para efeito de cobrança de tarifa interurbana

Potencializadora do poder das Agências.

REsp 1178786 / RJ

ATO LEGISLATIVO: a atuação do Procon não inviabiliza, nem exclui, a atuação da Agência reguladora

Potencializadora do poder das Agências.

AgRg na SLS 1297 / RJ

REsp 1210187 / MS

REsp 1122363 / PR

ATO CONCRETO: Mantém decisão de juiz de primeira instância que concede liminar determinando que a concessionária de serviço público estadual restabeleça serviço suspenso por autorização de agência reguladora estadual

Entendeu o STJ que o critério para estabelecer a área local não é geográfico, e sim técnico. Entendeu também que o Poder Judiciário não pode invadir a competência normativa das Agências Reguladoras

Entendeu o STJ que condutas praticadas no mercado de consumo atingirem diretamente os consumidores, é legítima a atuação do Procon para aplicar sanções administrativas, NÃO INVIABILINDO NEM EXCLUINDO A ATUAÇÃO DA AGÊNCIA REGULADORA Não Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que Descabe a suspensão de liminar e sentença judicial pelo STJ na hipótese em que o juiz de primeira instância concede liminar determinando que a concessionária de serviço público estadual restabeleça o serviço de transporte aquaviário no período da madrugada suspenso por autorização de agência reguladora estadual e a concessionária funda seu pedido na grave lesão à economia pública em razão do elevado custo unitário no transporte de passageiro realizado no período da madrugada em comparação com a tarifa cobrada pelo serviço, pois a providência requerida não diz respeito ao interesse público, e sim ao interesse da concessionária que presta o referido serviço.

ATO CONCRETO:

Não Potencializadora do poder das Agências.

Mantém decisão da agência reguladora (sobre boa fé da concessionária e percentual de restituição de indébito)

Entendeu o STJ que trata-se de erro justificável da concessionária, uma vez que a cobrança de valores se deu de acordo com o percentual oferecido pela agência reguladora, não sendo cabível, pois, a imposição da penalidade prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC.

ATO NORMATIVO: delimitação da "área local" para efeito de cobrança de tarifa interurbana

Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que o critério para estabelecer a área local não é geográfico, e sim técnico. Entendeu também que o Poder Judiciário não pode invadir a competência normativa das Agências Reguladoras

EDcl no REsp 976836 / ATO NORMATIVO: A questão RS relativa às atribuições da ANATEL, enquanto Agência Reguladora, foi enfrentada no voto condutor do acórdão embargado.

Potencializadora do poder das Agências.

REsp 1094218 / DF

Potencializadora do poder das Agências.

ATO LEGISLATIVO: Conflito de atribuições entre o BACEN e o CADE

Entendeu o STJ que a Agência Nacional e Telecomunicações (ANATEL), na sua função específica e intervindo como amicus curiae, esclareceu que a tarifa líquida de tributos que homologa não impede que nela incluam-se os tributos; salvo os de repasse vedado pela lei, como o Imposto de Renda e seus consectários

Entendeu o STJ que os atos de concentração, aquisição ou fusão de instituição relacionados ao Sistema Financeiro Nacional sempre foram de atribuição do BACEN, agência reguladora a quem compete normatizar e fiscalizar o sistema como um todo, nos termos da Lei 4.594/64. 2. Ao CADE cabe fiscalizar as operações de concentração ou desconcentração, nos termos da Lei 8.884/94.

REsp 1171815 / PR

REsp 1171688 / DF

ATO NORMATIVO: delimitação da "área local" para efeito de cobrança de tarifa interurbana

Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que o critério para estabelecer a área local não é geográfico, e sim técnico. Entendeu também que o Poder Judiciário não pode invadir a competência normativa das Agências Reguladoras

ATO CONCRETO: reconhece Potencializadora do poder das Agências. o Despacho n. 3/2007 da Entendeu o STJ que “a Anatel é o ente responsável por resolver ANATEL que estipula o valor do VU-M pago pela GVT à TIM eventuais condições para interconexão quando for impossível a solução pelos próprios interessados (v. tb. Resolução Anatel n. 410/05). Trata-se de dispositivo quase óbvio, à luz da extrema especificidade e sensibilidade técnicas que cercam o tema.”

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REsp 1164700 / PR

ATO NORMATIVO: delimitação da "área local" para efeito de cobrança de tarifa interurbana

Potencializadora do poder das Agências.

AgRg no REsp 1134417 / MG

ATO CONCRETO: impossibilidade de aplicação de sanção com arrimo em portaria.

Não Potencializadora do poder das Agências.

REsp 982359 / RS

ATO NORMATIVO: delimitação da "área local" para efeito de cobrança de tarifa interurbana

Potencializadora do poder das Agências.

ATO CONCRETO: Pelo cabimento de ação da ANATEL visando coibir o funcionamento de radiodifusão utilizados indevidamente.

Potencializadora do poder das Agências.

ATO NORMATIVO: Declaração de legalidade da Portaria ANP 201/99, que proíbe o Transportador/revendedor/retal hista-TRR-, de transportar e revender gás liquefeito de petróleo(GLP),gasolina e álcool combustível.

Potencializadora do poder das Agências.

REsp 933979 / SC

REsp 1101040 / PR

REsp 1048317 / PR

REsp 757971 / RS

REsp 551449 / CE

AgRg no REsp 1070923 / SP

ATO NORMATIVO: Declaração de legalidade da Portaria ANP 201/99, que proíbe o Transportador/revendedor/retal hista-TRR-, de transportar e revender gás liquefeito de petróleo(GLP),gasolina e álcool combustível.

Entendeu o STJ que o critério para estabelecer a área local não é geográfico, e sim técnico. Entendeu também que o Poder Judiciário não pode invadir a competência normativa das Agências Reguladoras

Entendeu o STJ que "Só a lei em sentido formal ou material é meio hábil para impor sanção"

Entendeu o STJ que o critério para estabelecer a área local não é geográfico, e sim técnico. Entendeu também que o Poder Judiciário não pode invadir a competência normativa das Agências Reguladoras

Entendeu o STJ que "A pretensão cautelar deduzida pela Anatel – busca e apreensão dos equipamentos da estação de rádio clandestina – está inserida no âmbito da sua competência legal, o que evidencia seu interesse processual de agir e legitima sua atuação em juízo.

Entendeu o STJ que “A Lei 9.478/97 instituiu a Agência Nacional do Petróleo - ANP -,incumbindo-a de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (art. 8º)”. “No exercício dessa prerrogativa, a ANP editou a Portaria 201/99 proibindo o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível. O ato acoimado de ilegal foi praticado nos limites da atribuição conferida à ANP, de baixar normas relativas ao armazenamento, transporte e revenda de combustíveis, nos moldes da Lei 9.478/97. Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que “A Lei 9.478/97 instituiu a Agência Nacional do Petróleo - ANP -,incumbindo-a de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis (art. 8º)”. “No exercício dessa prerrogativa, a ANP editou a Portaria 201/99 proibindo o Transportador-Revendedor-Retalhista - TRR - de transportar e revender gás liquefeito de petróleo - GLP-, gasolina e álcool combustível. O ato acoimado de ilegal foi praticado nos limites da atribuição conferida à ANP, de baixar normas relativas ao armazenamento, transporte e revenda de combustíveis, nos moldes da Lei 9.478/97.

ATO NORMATIVO: delimitação da "área local" para efeito de cobrança de tarifa interurbana

Potencializadora do poder das Agências.

ATO CONCRETO: Pelo cabimento de ação da ANATEL visando coibir o funcionamento de radiodifusão utilizado indevidamente.

Potencializadora do poder das Agências.

ATO NORMATIVO: É legítima a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia fixa".

Potencializadora do poder das Agências.

Entendeu o STJ que o critério para estabelecer a área local não é geográfico, e sim técnico. Entendeu também que o Poder Judiciário não pode invadir a competência normativa das Agências Reguladoras

Entendeu o STJ que "A pretensão cautelar deduzida pela Anatel – busca e apreensão dos equipamentos da estação de rádio clandestina – está inserida no âmbito da sua competência legal, o que evidencia seu interesse processual de agir e legitima sua atuação em juízo.

Entendeu o STJ que a anatel tem competência legislativa e autonomia para regulamentação. Que se trata de regra técnica, com caráter específico. Por se tratar de serviço de telecomunicação e controle da tarifa, com observância do equilíbrio econômico-financeiro de contrato de concessão contrato; impossibilidade do poder judiciário de interferir no poder regulamentar,

1208

REsp 894442 / RJ

ATO NORMATIVO “a ora recorrente, para obter a autorização almejada, deverá preencher todos os requisitos definidos pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários ANTAQ .

Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que “autorização para o exercício da atividade de navegação de longo curso. dever de obediência aos requisitos previstos na resolução antaq 843/2007. Exercício do poder normativo conferido às agências reguladoras.”

REsp 732795 / RJ

ATO NORMATIVO: Potencializadora do poder das Agências. comerciante varejista de combustíveis, volta-se contra a Entendeu o STJ ser legal o “EXERCÍCIO DO PODER NORMATIVO CONFERIDO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS. determinação contida no art. 10, III, da Portaria ANP 116/2000, que proíbe o revendedor varejista de entregar combustíveis no domicílio do consumidor.

AgRg no REsp 979327 / RS

ATO NORMATIVO: É legítima a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia fixa".

Potencializadora do poder das Agências.

AgRg no REsp 942697 / SP

ATO NORMATIVO: É legítima a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia fixa".

Potencializadora do poder das Agências.

REsp 872584 / RS

ATO NORMATIVO: É legítima a cobrança de tarifa básica pelo uso dos serviços de telefonia fixa".

Potencializadora do poder das Agências.

REsp 640460 / RJ

REsp 554498 / RS

Entendeu o STJ pela competência legislativa da ANATEL sobre tarifa, com autorização da constituição federal, 1988;

Entendeu o STJ pela competência legislativa da ANATEL sobre tarifa, com autorização da constituição federal, 1988;

Entendeu o STJ pela competência legislativa da ANATEL sobre tarifa, com autorização da constituição federal, 1988; “a feitura da equação tarifária é atribuição administrativa da Agência. Só poderia o Poder Judiciário interferir em casos excepcionais, de gritante abuso ou desrespeito aos procedimentos formais de criação dessas figuras. Carece o Poder Judiciário de mecanismos suficientemente apurados de confronto paritário às soluções identificadas pelos expertos da Agência reguladora.

ATO NORMATIVO: exigência de certidão de regularidade junto ao sistema unificado de fornecedores - sicaf. portaria 202/99 da anp

Potencializadora do poder das Agências.

ATO LEGISLATIVO: legitimidade da anvisa. art. 40, lei n. 9.782/99

Potencializadora do poder das Agências.

Entendeu o STJ que “traduz manifestação do poder regulatório e fiscalizatório atribuído à ANP pelo art. 8º da Lei 9.478/97.

Entendeu o STJ que “FARMÁCIA. MANIPULAÇÃO DE MEDICAMENTOS. LEGITIMIDADE DA ANVISA. ART. 40, LEI N. 9.782/99. 1. O art. 40 da Lei n. 9.782/99, que criou a Anvisa, normatizou a substituição processual da União pela Agência Reguladora. 2. A intimação da procuradoria da Anvisa, após requerida pela União, é medida que se impõe

AgRg na MC 11870 / RS

ATO NORMATIVO: “Determinação municipal em confronto com ato da agência reguladora: corte de antenas de telefonia móvel. lei municipal em contravenção ao ato da agência reguladora.”

AgRg na MC 10915 / RN

ATO LEGISLATIVO: Concede efeito suspensivo à decisão cautelar para resguardar a utilidade da decisão.

Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que “É cediço no Tribunal não só a excepcionalidade da interrupção abrupta dos serviços concedidos como também a intromissão de outros órgãos nas atividades reguladas, o que se equipara à invasão do judiciário acerca da conveniência e oportunidade dos atos administrativos.”

Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que “É da exclusiva competência das agências reguladoras estabelecer as estruturas tarifárias que melhor se adéqüem aos serviços de telefonia oferecidos. Ao intervir na relação jurídica para alterar as regras fixadas pelos órgãos competentes, o Judiciário corre o

1209

risco de criar embaraços que podem não apenas comprometer a qualidade desses serviços mas, até mesmo, inviabilizar a sua prestação”. REsp 635884 / CE

ATO CONCRETO: Pelo cabimento de ação da ANATEL visando coibir o funcionamento de radiodifusão utilizado indevidamente.

Potencializadora do poder das Agências. Entendeu o STJ que "A pretensão cautelar deduzida pela Anatel – busca e apreensão dos equipamentos da estação de rádio clandestina – está inserida no âmbito da sua competência legal, o que evidencia seu interesse processual de agir e legitima sua atuação em juízo.

REsp 797130 / SC

ATO LEGISLATIVO: Potencializadora do poder das Agências. reconhecimento da legitimidade passiva da ANEEL Entendeu o STJ que "Com base nos termos da Resolução nº 249/2002 da ANEEL,impõe-se concluir que a mencionada agência reguladora é pra figurar na demanda a responsável pelo ato de caráter impositivo que sufragou a cobrança do Encargo de Capacidade Emergencial, cujo valor é por ela definido, sendo também o ente a quem os responsáveis pela arrecadação do adicional tarifário devem prestar contas.”

REsp 551525 / CE

ATO CONCRETO: Pelo cabimento de ação ação cautelar de busca e apreensão de bens. da ANATEL visando coibir o funcionamento de radiodifusão utilizado indevidamente.

Potencializadora do poder das Agências.

ATO NORMATIVO: questionamento da legalidade e inconstitucionalidade da Portaria nº 72/2000 da ANP, que limita o volume de combustível a ser adquirido pelas distribuidoras,

Potencializadora do poder das Agências.

ATO CONCRETO: Pelo cabimento de ação ação cautelar de busca e apreensão de bens. da ANATEL visando coibir o funcionamento de radiodifusão utilizado indevidamente.

Potencializadora do poder das Agências.

ATO CONCRETO: Pelo cabimento de ação ação cautelar de busca e apreensão de bens. da ANATEL visando coibir o funcionamento de radiodifusão utilizado indevidamente.

Potencializadora do poder das Agências.

ATO LEGISLATIVO: reconhecer a legitimidade passiva da ANATEL e, conseqüentemente, a competência da Justiça Federal para julgar a ação civil pública sobre se as ligações locais podem ser cobradas como interurbanas.

Potencializadora do poder das Agências.

ATO NORMATIVO: impugnação a forma de calculo da tarifa de telefone em referencia ao limite geografico e abrangencia do serviço de telecomuni-cação. Hipotese em que se decidiu pela soberania da resolução da anatel, que contém determinação de criterio, objetivo na definição da area.

Potencializadora do poder das Agências.

REsp 676172 / RJ

REsp 696135 / CE

REsp 643357 / CE

REsp 573475 / RS

REsp 572070 / PR

Entendeu o STJ que "A pretensão cautelar deduzida pela Anatel – busca e apreensão dos equipamentos da estação de rádio clandestina – está inserida no âmbito da sua competência legal, o que evidencia seu interesse processual de agir e legitima sua atuação em juízo.

Entendeu o STJ que “O ato hostilizado - a Portaria nº72/2000 - é medida técnica que materializa a atribuição para regular o setor petrolífero (art. 8º, caput e XV da Lei nº 9.478/97) conferida à ANP”

Entendeu o STJ que "A pretensão cautelar deduzida pela Anatel – busca e apreensão dos equipamentos da estação de rádio clandestina – está inserida no âmbito da sua competência legal, o que evidencia seu interesse processual de agir e legitima sua atuação em juízo.

Entendeu o STJ que "A pretensão cautelar deduzida pela Anatel – busca e apreensão dos equipamentos da estação de rádio clandestina – está inserida no âmbito da sua competência legal, o que evidencia seu interesse processual de agir e legitima sua atuação em juízo.

Entendeu o STJ que “À Agência Nacional de Telecomunicações compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade.”

Entendeu o STJ que “A regulamentação do setor de telecomunicações, nos termos da Lei n. 9.472/97 e demais disposições correlatas, visa a favorecer o aprimoramento dos serviços de telefonia, em prol do conjunto da população brasileira. Para o atingimento desse objetivo, é imprescindível que se privilegie a ação das Agências Reguladoras, pautada em regras claras e objetivas, sem o que não se cria um ambiente favorável ao desenvolvimento do setor, sobretudo em face da notória e reconhecida incapacidade do Estado em arcar com os eventuais custos inerentes ao processo”.

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Ultimada a fiscalização, as condutas das Concessionárias que estejam em desconformidade com o bloco de legislação pertinente (contratual, setorial, constitucional) será objeto de notificação, autuação, defesa e imposição de penalidade em caso de não adequação total ou parcial12 T

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Nos casos de penalização através de multa ou advertência, tem-se observado nas fiscalizações posteriores que a “performance” das concessionárias nas áreas de eficiência ou de comercialização tem tido um desempenho pró-ativo, apontando para a implementação de ações preventivas que visam evitar autuações por reincidência específica. Embora os serviços públicos prestados por concessionárias ou, v.g., organizações sociais não alcancem a hipótese ideal, observa-se também que as decisões das Agências Reguladoras nos Processos Administrativos Punitivos têm gerado na prestação do serviço um efeito de proibição de retrocesso, ou seja, desenvolve naqueles agentes uma cultura de exigência de avanço na qualidade e abrangência do serviço fornecido, ou seja, uma vez implementado determinado direito para o usuário, este não pode mais ser subtraído. Quanto ao poder normativo-regulador das Agências, também é possível observar que a sua atuação tem sido legitimada pelo discurso do Poder Judiciário que, nesse tocante, se coaduna com a concretização dos direitos sociais, notadamente quando a regulação tem se dado em relação a áreas sensíveis como fornecimento de energia elétrica e telefonia, sendo a maioria considerada uma prestação de serviço público à sociedade. Assim, chega-se à conclusão final de que o Poder Judiciário legitima a atuação concreta e normativa das Agências Reguladoras, razão pela qual é possível concluir que os direitos fundamentais sociais possuem, nesse discurso de legitimação, um campo fértil para serem efetivados mediante a ação proativa do Estado e da Administração gerencial (o novo modelo de administração pública).

Referências bibliográficas BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. - São Paulo: 34ª ed: Brasília: ENAP, 1998. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. - Coimbra: Almedina, 2003. CRETELLA JUNIOR, José. Prática do processo administrativo. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais – 2. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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12 T

CRETELLA JUNIOR, 2008, passim.

1211

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. MARTÍNEZ. Gregório Peces-Barba. Curso de Derechos Fundamentales: Teoria General. Madri: B.O.E.Universidad Carlos III, 1996. MENDES, Gilmar Ferreira.; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6. ed. rev. e atual.- São Paulo: Saraiva, 2011. MENEZELLO, Maria de Assunção Costa. Agências Reguladoras e o Direito Financeiro. São Paulo: Atlas, 2002. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Constitucionalização do direito administrativo: o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade administrativa e a legitimidade das agências reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2010. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. rev. atual. e ampl.; 2.tir. - Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.

1212

A questão da justa indenização nas ações de desapropriação por utilidade pública (megaventos esportivos): uma discussão a partir do direito fundamental à moradia, do direito à cidade e do princípio da dignidade humana Marise Costa de Souza Duarte1 T

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Ricardo Duarte Jr. T

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Resumo

Abstract

O trabalho pretende colocar em pauta uma discussão sobre o requisito da justa indenização nas ações de desapropriação por utilidade pública, no caso da população de interesse social (de 0 a 3 salários mínimos), considerando o regime jurídico que ampara o direito fundamental à moradia e o direito à cidade. Problematizando esse tema, busca-se inicialmente expor o regime jurídico que fundamenta o direito à moradia e o direito à cidade; procedendo-se em seguida uma abordagem sobre o instituto da desapropriação – em face tanto do domínio quanto da posse – em seus elementos centrais (onde se coloca o requisito da justa indenização), enfocando-se o tratamento da doutrina e da jurisprudência sobre a questão e colocando em pauta o novo tratamento ao direito fundamental à moradia posto na CF/88 e o marco regulatório do direito à cidade, com foco na população de interesse social. Tratando da inaplicabilidade do Decreto-Lei 3.365/41 em face da Carta Magna de 1988 e o Estatuto da Cidade (Lei Federal n.10.257/2001), a discussão traz o foco para o contexto dos megaeventos esportivos (COPA DO MUNDO – 2014 e OLIMPÍADAS – 2016), onde o Estado - ente que tem o dever objetivo de concretizar/efetivar o direito fundamental à moradia - não visualiza a situação de vulnerabilidade de uma população de interesse social, para a qual, em razão de sua exclusão do acesso ao mercado imobiliário formal, o conceito de justa indenização deve ser visto de forma ampliada, relacionando-se, de maneira intrínseca, com o direito à moradia (art.6º, caput, da Constituição Federal, com o direito à cidade posto legalmente no Estatuto da Cidade (Lei Federal n.10.257/2001) e com o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF/88).

This paper pretends to put under discussion the requirement of just compensation on Condemnation by public utility, in the case of population of social interest (from 0 to 3 minimum wage), considering law system that protects fundamental rights to habitation and to city. Problematizing, first we want to demonstrate law system that justify the right to habitation and to city; after we talk about the main aspects of expropriation´s institute, giving priority to how doctrine and jurisprudence deal it and putting under discussion new treatment to fundamental right to habitation on Federal Constitution from 1988 and regulatory framework of right to habitation, focusing on interest social population. Dealing with the inapplicability of the Executive order 3.365/41 by Federal Constitution from 1988 and the City Statute (Federal Law n. 10.257/2001), discussion brings focus to the context of sports mega-events (Word Cup – 2014 and Olympics Games – 2016), in which the State – who should implement the fundamental rights – do not see the vulnerability of interest social population, for which, because of their exclusion from access to formal housing market, the concept of just compensation should be seen in a broad way, relating to fundamental right to habitation (article 6° from Federal Constitution and City Statute anda the principle of human dignity.

Palavras-Chave: Justa Indenização; Desapropriação por Utilidade Pública; Direito Fundamental à Moradia; Direito à Cidade; Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Keywords: Just Compensation, Expropriation by Public Utility, Fundamental Right to Habitation, Right to City, Principle to Human Dignity.

1

Doutora em Urbanismo – PPGAU/UFRN, com estágio de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal. Procuradora do Município de Natal-RN e Professora em cursos de pós-graduação da UFRN e da Universidade Potiguar. [email protected]. TU

UT

2

Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Professor de Direito Administrativo na Faculdade Natalense de Ensino e Cultura (FANEC) e na Faculdade de Ciência, Cultura e Extensão do RN (FACEX) e Advogado. [email protected].

1213

1. Introdução Sabemos que a evolução e a dialética da realidade social provocam o Direito a rever seus conceitos e seus institutos. Por não ser uma ciência estática e descolada da sociedade, mas, ao contrário, vindo regular essa mesma realidade, tendo a prevalência dos direitos fundamentais e princípios correlatos em sua base, cabe ao Direito no enfrentamento dessa realidade visualizar novas idéias, novas concepções, novas teorias. É a partir dessa compreensão que foi constituído esse texto. Considerando um (importante) fato social – a realização de megaeventos esportivos nas cidades brasileiras – e visualizando as conseqüências que esse fato pode trazer na efetivação do direito fundamental à moradia, no direito à cidade e no princípio da dignidade da pessoa humana que ampara a população urbana, especialmente a de mais baixa renda, é que foi necessário rever algumas questões referentes à desapropriação por utilidade pública, prática que se intensificará nas cidades brasileiras a partir da necessidade de viabilizar projetos e obras voltadas àqueles eventos. Em um contexto em que é o Poder Público o grande viabilizador dos megaeventos esportivos, que, embora de natureza privada, possuem total dependência das verbas públicas, é que se faz - mais do que necessário - discutir as questões postas neste estudo, onde a compreensão do termo justa indenização possa ultrapassar apenas o viés monetário, mas venha incorporar as noções dos direitos que se efetivam nas cidades e que suscitam deveres incontestáveis ao Poder Público; tudo com amparo no substancioso regime jurídico dos direitos fundamentais, que possui expressão concreta na Constituição Federal de 1988 e na legislação infraconstitucional, se destacando in casu o Estatuto da Cidade.

2. O direito à moradia e seu regime jurídico de proteção e o direito à cidade Muito falamos sobre o direito à moradia. Porém, por vezes nos esquecemos de dar a devida atenção ao forte suporte jurídico que o mesmo possui e que possibilita uma outra abordagem sobre o seu resguardo, notadamente em uma época (de preparação das cidades para os megaeventos esportivos) onde não raro se ignora absolutamente esse direito fundamental especialmente das pessoas de baixa renda, aqui compreendida como a população de interesse social (de 0 a 3 salários mínimos). Inicialmente registra-se que na trilha da proteção posta em nível internacional, a moradia (inegavelmente)3 passou, no sistema jurídico brasileiro, a possuir status de direito humano T

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3

Destaca-se entendimento de Ingo Sarlet no sentido de que, mesmo antes da vigência dessa emenda constitucional, o direito à moradia já se encontrava posto no Texto Constitucional, de forma expressa ou implícita; sendo decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, inciso II, da Constituição Federal) vez que este reclama, na sua dimensão positiva, a satisfação das necessidades existenciais básicas para uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamento direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais não expressamente

1214

fundamental (tendo como essência o princípio da dignidade humana) por força da Emenda Constitucional n°26, de 14 de fevereiro de 2000, que inseriu aquele direito no rol dos direitos sociais4 contidos no artigo 6°, Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais); compondo, T

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portanto, o quadro de direitos fundamentais constante no ordenamento brasileiro. Mas o que se quer dizer quando se afirma que a moradia se constitui, hoje, um direito fundamental no sistema jurídico brasileiro? E quais as implicações disso quando nos deparamos com ações do Poder Público que parecem ignorar completamente esse preceito? Podemos dizer que a implicação essencial consiste no fato de que o direito à moradia se coloca regido por um regime jurídico especial, que, em última análise, impede que pessoas sejam despojadas sumariamente de seus locais de moradia. Vejamos, juridicamente, como e porque isso ocorre5. T

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Os direitos fundamentais são concebidos sob duas dimensões, quais sejam: de direito subjetivo e de dever objetivo; que suscitam uma relação de correspondência. Como direito subjetivo, os direitos fundamentais se apresentam sob uma perspectiva individual (aplicável a pessoas individualmente consideradas ou a grupos), suscitando o reconhecimento de posições jurídicas aos titulares do direito6, no sentido de determinado grau de T

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exigibilidade (ou justicialidade). Trazendo à tona o conceito de direito subjetivo integrante da teoria geral do direito7, Luis Roberto Barroso8 destaca que as normas constitucionais definidoras de T

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direitos (direitos subjetivos constitucionais) “investem seus destinatários em situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem efetivadas por prestações positivas ou negativas, exigíveis do Estado ou de outro destinatário da norma”. Assim, pode-se dizer que os direitos fundamentais positivados, mas inequivocamente destinados à proteção da dignidade. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), n.20, dez./fev. 2009/2010. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2010. p. 12. 4

Juntamente com os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

5

Ampla abordagem dessa matéria pode ser encontrada em DUARTE, Marise Costa de Souza. Espaços Especiais em Natal (meio ambiente e moradia): um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de proteção aos direitos fundamentais na cidade contemporânea. Rio de Janeiro: Letra Capital. Coleção Metrópoles (Observatório das Metrópoles), 2011.

6

Nos termos postos por Canotilho um direito subjetivo fundamental “é a posição jurídica pertencente ou garantida a qualquer pessoa com base numa norma de direitos fundamentais consagrada na Constituição.” Tomemos a sério os direitos econômicos, sociais e culturais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. p. 184 7 Ensina Barroso, de modo abreviado, que por direito subjetivo se entende o poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à satisfação de um interesse; tendo as seguintes características essenciais: “a) a ele corresponder sempre um dever jurídico por parte de outrem; b) ele é violável, vale dizer, pode ocorrer que a parte que tem o dever jurídico, que deveria entregar uma determinada prestação, não o faça; c) violado o dever jurídico, nasce para o seu titular uma pretensão, podendo ele servir-se dos mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado, notadamente por via de uma ação judicial.”. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 303. 8

O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. p. 303.

1215

têm por objetivo “conferir aos indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, em sua maioria de natureza material, mas às vezes de natureza processual e, consequentemente, limitar a liberdade de atuação dos órgãos do Estado”9. Desse modo, para Sarlet10, quando se fala nessa T

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perspectiva subjetiva, nos referimos à possibilidade que tem o titular do direito (pessoa individual ou ente coletivo) de “fazer valer juridicamente os poderes, liberdades ou mesmo o direito à ação ou às ações negativas ou positivas que lhe foram outorgadas pela norma consagradora do direito fundamental em questão”. Nesse contexto, relevante é o entendimento do Vasco Pereira da Silva11 no sentido de que T

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o reconhecimento dos direitos fundamentais implica o equilíbrio das relações relativas entre o Estado e o cidadão, fazendo com que o individuo deixe de ser tratado como objeto do poder e passe de “súdito” a “cidadão”; transformando-se em sujeito de direito, em condições de estabelecer relações jurídicas com a Administração. Assim, o individuo titular de direitos fundamentais, segundo o autor, não guarda relação de subalternidade perante a Administração, mas o permite ser tratado “de igual para igual”. Considerando que esse reconhecimento de titularidade de direitos subjetivos diante das autoridades públicas se constitui uma projeção jurídica da dignidade da pessoa humana, o autor entende que o mesmo se constitui um princípio essencial do Estado de Direito, que vai importar em consequências práticas no âmbito do Direito Administrativo12. Desse modo, para esse autor, T

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O reconhecimento de direitos subjetivos públicos não é uma simples posição teórica, ou uma mera petição de princípios, antes uma posição jurídica com conseqüências decisivas para todo o domínio público-administrativo13. T

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Por outro lado, na perspectiva jurídico-objetiva14 (ou na dimensão dos direitos T

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fundamentais como dever objetivo), coloca-se a ideia da vinculação estatal às normas de direito fundamental postas na ordem constitucional. Nessa perspectiva, tais direitos “constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento

9

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 54.

10

A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 152

11

Em busca do acto administrativo perdido. reimpr. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. p. 212 12

SILVA, Vasco Pereira. Em busca do acto administrativo perdido. p. 213.

13

Em busca do acto administrativo perdido. p. 213

14

Sarlet afirma que a perspectiva jurídico-objetiva dos direitos fundamentais teve como impulso decisivo a Constituição de Bohn, de 1949. E ainda: o caso Lüth, julgado pelo Corte Federal Constitucional alemã foi um marco na defesa dessa perspectiva, pois afirmou no sentido de que “os direitos fundamentais não se limitavam à função precípua de serem direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra atos do poder público, mas que, além disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos. Em outras palavras, [...], os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais”. A eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 140.

1216

jurídico e que fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos.”15 Isso T

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traduz a ideia central de que ao lado dos direitos subjetivos que comportam os direitos fundamentais encontram-se deveres fundamentais do Estado na concretização desses direitos16. T

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Ou seja, aquilo que para o cidadão constitui um direito, para o Estado constitui uma obrigação. Assim, os direitos fundamentais consistem numa relação de direitos públicos subjetivos de pessoas (cidadãos e pessoa jurídica) e coletividade oponíveis em face do Estado (eficácia vertical17 dos direitos fundamentais); constituindo uma relação de correspondência direito T

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subjetivo  dever objetivo estatal. Constituindo-se numa evolução normativa quanto à proteção ao direito de moradia, o regramento

contido

no

Estatuto

da

Cidade

veio

conceder

as

bases

para

a

sua

efetivação/concretização no meio urbano, prevendo uma série de diretrizes e instrumentos, e tratando expressamente da gestão democrática da cidade como forma da viabilização daquele dever estatal18. T

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Importa considerar que a inclusão do Capítulo da Política Urbana e do direito à moradia na Constituição Federal, assim como a edição do Estatuto da Cidade (que passou a possibilitar a efetivação/concretização das normas constitucionais) e da Medida Provisória n°2220/2001, não se deram como dádiva do Estado, mas foram “decorrentes da intensa mobilização popular em torno de uma cidade mais justa e politicamente democrática, que se tornou conhecida como o movimento pelo direito à cidade”19. T

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Diante desses avanços conquistados, é valioso o pensamento de Saule Júnior20 T

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21 T

no que

se refere à obrigação do Estado Brasileiro em “impedir a regressividade do direito à moradia e de impedir medidas e ações que dificultem ou impossibilitem o exercício do direito à moradia”. Para o mesmo doutrinador, também se constitui como efeito da obrigação do Estado brasileiro, no 15

Nessa análise, o autor destaca o entendimento de Pérez Luno segundo o qual “os direitos fundamentais passaram a apresentar-se no âmbito da ordem constitucional como um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos, e não apenas garantias negativas dos interesses individuais”, posição consagrada pelo Tribunal Constitucional Espanhol. SARLET. A eficácia dos Direitos Fundamentais. p. 140. 16 Nessa mesma trilha, também são as lições de Fernando Alves Correia para quem os direitos fundamentais são entendidos como direitos subjetivos e como princípios objetivos da ordem constitucional. Os direitos fundamentais e sua proteção jurisdicional efectiva. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. LXXIX, 2008. p. 68. 17 Atualmente, fala-se também em eficácia horizontal dos direitos fundamentais; ou seja, quando tais direitos são oponíveis contra os próprios cidadãos. 18

Nessa mesma trilha, veio a Medida Provisória n°.2220, de 4.9.2001, na qual foi reconhecido expressamente o direito de ocupantes de baixa renda ao direito de moradia, através do instrumento da concessão de uso especial, desde que atendidos os requisitos legais ali estabelecidos. 19

FERREIRA, João Sette Whitaker; MOTISUKE, Daniela. A efetividade da implementação de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliação inicial. p. 43. 20

SAULE JÚNIOR, Nelson. O direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro. In: SAULE JÚNIOR, Nelson (Org.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito à cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 123.

21

Observa-se que o autor assim já entendia mesmo antes do direito à moradia ser posto como direito fundamental na Carta Magna, mas tão somente a partir das normas internacionais incidentes.

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sentido da promoção e proteção do direito à moradia, a intervenção e regulamentação das atividades do setor privado no tocante à política habitacional, como a regulamentação do uso e acesso à propriedade imobiliária, especialmente a urbana (no sentido do atendimento ao princípio da função social da propriedade), a regulamentação do mercado de terra, a criação de sistemas de financiamento de habitação de interesse social e a regulamentação e disposição sobre o uso do solo urbano e sobre o direito de construir22. Todas essas medidas se colocam como deveres T

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objetivos estatais (inarredáveis) no sentido da efetivação/concretização do direito fundamental à moradia. Para os municípios brasileiros, com fundamento no regramento constitucional e no Estatuto da Cidade, se evidenciam a obrigação de constituir um sistema municipal de habitação e de instituir, em seus planos diretores, instrumentos voltados a efetivar o direito à cidade, através dos quais possa se efetivar/concretizar o direito à moradia da população em estado de pobreza e miséria. Através dos planos diretores, são adotados e aplicados vários instrumentos voltados a esse fim, dentre os quais se incluem as zonas especiais de interesse social23; que passam a se T

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colocar como instrumentos de efetivação/concretização do direito à moradia, em nível local, adotados no âmbito da atividade estatal de planejamento urbano e gestão urbana. Nesse contexto, destaca-se que as discussões integradas sobre a efetividade desse direito na sociedade contemporânea, essencialmente urbana, trazem à tona a perspectiva do direito à cidade a ser entendido também como direito fundamental. A discussão sobre o direito à cidade foi introduzida, gradativamente, nos Fóruns Internacionais Urbanos e na pauta dos processos globais voltados a tratar dos assentamentos humanos, cabendo destacar o Tratado sobre a questão urbana, denominado “por Cidades, Vilas e Povoados Justos, Democráticos e Sustentáveis”, elaborado na Conferência da Sociedade Civil sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, durante a Conferência do Rio (1992) e durante a mencionada Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos – Habitat II24. T

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Sendo objeto de discussões travadas no Fórum Social Mundial, desde 2001, a ideia de internacionalização do direito à cidade vem, cada vez mais, adquirindo consistência. O principal objetivo da elaboração de uma Carta Mundial do Direito à Cidade é disseminar a concepção do direito à cidade como um novo direito humano com base numa plataforma de reforma urbana a ser implementada pelos países, visando a modificar a realidade urbana mundial mediante a construção de cidades justas, humanas, democráticas e sustentáveis; associado ao seu reconhecimento institucional nos organismos internacionais25. T

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22

SAULE JÚNIOR, Nelson. O direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro. p. 123.

23

SAULE JÚNIOR, Nelson. O direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro. p. 124.

24

Como lembra Saule Júnior. O Direito à Cidade como condição para cidades justas, humanas e democráticas. 2005. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2008. 25 Tratamos dessa matéria em artigo publicado no ano de 2009, colacionado nas referências bibliográficas desta obra.

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Sob essa compreensão, podemos dizer que o direito à cidade26, hoje objeto de amplo T

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reconhecimento em fóruns internacionais, e que no Brasil tomou a denominação de direito à cidade sustentável (nos termos do artigo 2º, inc. I, do Estatuto da Cidade), veio possibilitar uma visão integrada com o direito à moradia, que precisa ser obrigatoriamente considerada quando se trata do seu regime jurídico de proteção. Sob outra ótica, o direito à moradia digna e adequada não significa apenas o acesso a uma unidade habitacional, mas o acesso a todos os benefícios públicos que a cidade oferece a seus habitantes, independente de sua classe social. Disso tudo decorre que os entes estatais (especialmente os municípios), através de suas esferas de poder, na realização de suas ações (incluindo-se a aprovação das leis e viabilização de projetos voltados à preparação das cidades para os megaeventos esportivos) devem não só respeitar o regime jurídico de proteção ao direito à moradia (especialmente das pessoas de baixa renda) e ao direito à cidade, mas cumprir seu dever objetivo de efetivar/concretizar tais normas.

3. Aspectos gerais do instituto da desapropriação No âmbito da perspectiva objetiva do direito fundamental à moradia, como já visto, se coloca o dever do Poder Público de efetivação/concretização desse direito; que deve ser observado em todas as ações e atuações estatais que o envolvam. Nesse sentido, podemos afirmar, desde o início, que no âmbito do procedimento da desapropriação há que ser observado todo o regime jurídico que ampara o direito fundamental à moradia e o direito à cidade, especialmente quando se trata da população de interesse social (que, sem acesso ao mercado imobiliário, se encontra na dependência absoluta das ações estatais). A princípio, importa considerar que a desapropriação se constitui uma das formas através das quais o Estado intervém na propriedade privada, tendo em vista a satisfação de interesses públicos. Assim, sob os ditames legais e com base no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado27, o Estado intervém na propriedade do particular com o fito de adequá-la T

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ou condicioná-la à sua função social. Desse modo, apesar de o direito de propriedade ser previsto em nosso ordenamento jurídico, sendo assegurado ao seu titular o poder de usar, gozar, usufruir, dispor e reaver o bem, de modo absoluto, exclusivo e perpétuo, esse direito obrigatoriamente se vincula à sua função social, com fundamento no art. 5º, XXII, XXIII, da Constituição Federal de 1988. Quanto à função social da propriedade, podemos colacionar as seguintes posições doutrinárias: 26

Que pode ser tido como direito materialmente constitucional, fundamentado no art.5º, §2º, da Constituição Federal de 1988 27

Celso Antônio Bandeira de Mello entende que esse princípio, juntamente com o princípio da indisponibilidade do interesse público, são os princípios basilares do regime jurídico administrativo, no qual todos os outros princípios desse regime são uma decorrência desses dois. Curso de Direito Administrativo. 25ª Ed., 2 ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 69.

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A função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens28. T

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A função social da propriedade, consubstanciada no dever de que a propriedade atenda não apenas os interesses do proprietário, mas também sirva de instrumento para alcançar o bem-estar da coletividade, opera-se internamente o direito de propriedade, como um de seus elementos constitutivos, sem o qual não será plenamente garantida, não se confundindo, portanto, com meras limitações administrativas ao exercício desse direito decorrente do exercício do poder de polícia29. T

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Fica evidente, das sucintas definições acima consignadas, que a função social da propriedade se constitui em um dever imposto à propriedade no sentido de que mesma venha trazer benefícios à sociedade, e não só a seu titular. Em sendo assim, cabe ao Poder Público intervir na propriedade tendo em vista o atendimento dos interesses mais gerais da sociedade; o que ocorre através da utilização do procedimento da desapropriação. Pode-se dizer que este se constitui o modo mais agressivo de intervenção do Estado na propriedade privada, no qual, em virtude de atender ao interesse social e à utilidade pública ou necessidade pública, o Estado toma para si a propriedade do particular, originariamente, mediante indenização prévia e justa. Esse instituto se encontra previsto no artigo 5º, inc. XXIV, da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.

No sistema jurídico brasileiro o instituto da desapropriação possui três espécies distintas: por interesse social e por utilidade pública ou necessidade pública. Conforme Miguel Seabra Fagundes30, a necessidade pública existe “se a Administração T

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está diante de um problema inadiável e premente, isto é, que não pode ser removido, nem procrastinado, e para cuja solução é indispensável incorporar, no domínio do Estado, o bem particular”. Assim, a utilidade pública se configura “quando a utilização da propriedade privada é conveniente e vantajosa ao interesse coletivo, mas não constitui um imperativo irremovível”. E o interesse social31 “quando o Estado esteja diante dos chamados problemas sociais, isto é, T

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daqueles diretamente atinentes às camadas mais pobres da população e à massa do povo em geral, concernentes à melhoria nas condições de vida, à mais equitativa distribuição da riqueza, à atenuação das desigualdade em sociedade”. 28

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: RT, 1991. p. 251.

29

FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Desapropriações Ambientais na Lei nº9.985/2000. Direito ambiental das áreas protegidas: o regime jurídico das unidades de conservação. Antonio Herman Benjamim (coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2001. p. 471. 30

O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 8º edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. p. 404 e ss.

31

A desapropriação por interesse social é regulada pela Lei nº 4.132, de 10/9/1962

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No entanto, embora a Constituição preveja estas três espécies de desapropriação, a legislação infraconstitucional só prevê a desapropriação por interesse social e por utilidade pública. A desapropriação por necessidade pública era prevista no artigo 590, §1º, do Código Civil de 1916, o qual foi abarcado pelo Decreto-Lei n.º 3.365/41, cuja disposição versa sobre as desapropriações em geral e especificamente sobre a por utilidade pública. Ou seja, a desapropriação por necessidade pública agora consiste em uma das espécies da desapropriação por utilidade pública. Observe-se que a norma que disciplina o procedimento de desapropriação por necessidade pública precede, em quase meio século, a Constituição Federal e, muito mais que isso, o Estatuto da Cidade. Ademais, quanto à desapropriação por interesse social, a Constituição a prevê em três dispositivos diversos, correspondendo cada um a diferente legislação ordinária. São eles: a) o art. 5º, inc. XXIV, disciplinado pela Lei n. 4.132/62, cujo artigo 2º dispõe sobre os casos de interesse social; b) o art. 182, §4º, prevê o cabimento quando se tratar de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado e desde que já adotadas, sem resultado, as medidas previstas nos incisos I e II (parcelamento e edificação compulsórios e imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo). Essa desapropriação é de caráter sancionatório e cuida de hipótese nova de desapropriação cujo objetivo é atender à função social da propriedade expressa no Plano Diretor da cidade (Lei nº 10.257/01)32; e c) art. 184 prevê a desapropriação por interesse social, T

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para fins de reforma agrária e que objetiva assegurar a função social da propriedade rural; estando disciplinada na LC 76/93. A respeito desse tipo de desapropriação, podemos dizer ser a mesma é muito pouco utilizada pelo Poder Público; o que se coloca em contradição com as grandes necessidades de moradia da população de interesse social no Brasil e as imposições que se colocam, especialmente a partir do Estatuto da Cidade, no tocante ao cumprimento da função social da propriedade urbana. Com relação ao instituto da desapropriação, necessário ainda serem consideradas as suas características; quais sejam: a) necessidade de um procedimento administrativo. A desapropriação não pode ser feita sem a U

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observância do devido processo legal33, devendo ser observado o contraditório e a ampla T

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Ressalte-se que na desapropriação por descumprimento da função social da propriedade urbana a indenização será em títulos da dívida pública, cuja emissão deve ser previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, asseguradas o valor real da indenização e os juros legais. E no caso da desapropriação para fins da reforma agrária, a indenização será prévia, justa e em títulos da dívida agrária, com a cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de 20 anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. Há aqui uma ressalva que não consta na hipótese anterior: as benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro. 33

A Constituição Federal dispõe em seu art. 5º, inc. LIV, que “ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

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defesa34. O procedimento expropriatório garantirá maior transparência à atuação estatal, T

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possibilitando a defesa do indivíduo e inibindo condutas arbitrárias; b) indenização prévia, justa e em dinheiro. U

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A necessidade imposta pela Constituição de a

desapropriação ser prévia, justa e em dinheiro decorre da necessidade de o ente público não expropriar a propriedade do cidadão antes de lhe pagar aquilo que lhe é devido; obrigando-o a restituir o particular integralmente dos seus bens expropriados e evitando o abuso de poder. Consignados os aspectos gerais pertinentes ao instituto da desapropriação, cabe enveredar sobre duas questões bastante atuais e que derivam de uma abordagem constitucional do instituto, quais sejam: a desapropriação da posse e a justa indenização.

4. Da desapropriação da posse: uma possibilidade em nosso sistema jurídico Como vimos, o objeto da desapropriação é a perda de um bem, a transferência compulsória da esfera do particular para a esfera do Poder Público35. Com a desapropriação o T

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particular perde a titularidade do bem, passando este à propriedade do Poder Público. Dessa forma, o instituto ora estudado possui a natureza jurídica de aquisição originária da propriedade, cujos efeitos são a irreversibilidade da transferência e a extinção de direitos reais de terceiro sobre a coisa. Contudo, apesar de inicialmente, e em regra, a desapropriação só se dar sobre o domínio da propriedade, na atualidade já vem se permitindo considerar a posse como bem a também ser objeto de desapropriação. Isso porque o tempo para o Direito gera direitos: não obstante o lapso temporal ser um fato social, o seu decurso pode gerar efeitos na área jurídica, tornando-se, portanto, em fato jurídico. É nesse sentido - surgimento de efeitos jurídicos em virtude do lapso temporal – que Oswaldo Aranha Bandeira de Mello36 afirma “o decurso de certo lapso de tempo T

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acarreta efeitos jurídicos de relevo, pois através dele se pode adquirir ou perder direitos. Em consequência, surgem os institutos da prescrição extintiva e aquisitiva e da extinção e decadência de direitos”. No caso da posse toma-se como exemplo o entendimento da jurisprudência majoritária no sentido de que a sentença de usucapião é meramente declaratória de direito37, e não constitutiva; T

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34

O artigo 5º, inciso LV, dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”

35

Miguel Seabra Fagundes afirma que “não implica, a rigor, extinguir o direito de propriedade, mas leva à substituição forçada do seu objeto. Converte-o via de regra, em dinheiro”. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. p. 399. 36

Princípios Gerais do Direito Administrativo. 3°. Ed., Vol I, São Paulo: Malheiros, 2007. p. 463.

37

“ CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. JULGAMENTO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. TÍTULO DE PROPRIEDADE. SENTENÇA DE USUCAPIÃO. NATUREZA JURÍDICA (DECLARATÓRIA). FORMA DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA. FINALIDADE DO REGISTRO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. PUBLICIDADE E DIREITO DE DISPOR DO USUCAPIENTE. RECURSO DESPROVIDO. (...) 3. A sentença proferida no processo de usucapião (art. 941 do CPC) possui natureza meramente declaratória (e não constitutiva), pois apenas reconhece, com oponibilidade erga omnes, um direito já existente com a posse ad usucapionem, exalando, por isso mesmo, efeitos ex tunc. O efeito

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onde a constituição do direito se dá em virtude da obediência ao lapso temporal prevista no Direito. Assim, podemos entender que, através do tempo, a posse gera direitos que não podem deixar de ser respeitados pelo Poder Público. Ora, se a posse com o tempo faz com que o posseiro adquira o direito de nela permanecer sem poder ser importunado por terceiros, inclusive o dono da propriedade (o detentor do domínio), porque seria diferente quando o Poder Público estivesse no outro pólo? Ademais, Jéfferson Cárus Guedes38 entende que os pressupostos norteadores da T

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desapropriação de um bem e, por conseguinte, da sua indenização são três: a) a comercialidade; b) o seu valor econômico; e c) o interesse à consecução de política estatal. E quando a posse se integra, se confunde com o direito de propriedade ao ponto de possuir esses pressupostos, é imperioso a sua observância na desapropriação. Por outro lado, registra-se que o Superior Tribunal de Justiça também entende no sentido da possibilidade da desapropriação da posse, não podendo o Poder Público deixar de observá-la no ato expropriatório. É o que podemos inferir dos seguintes julgamentos: O expropriado que detém apenas a posse do imóvel tem direito a receber a correspondente indenização. (REsp 1.118.854/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 13.10.2009, DJe 28.10.2009.) ADMINISTRATIVO – DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA – POSSE – INDENIZAÇÃO – DESNECESSIDADE DE PROVAR A PROPRIEDADE. I – Configura-se desapropriação indireta, quando o Estado, após imitir agricultor na posse de gleba rural, expulsa-o sumariamente, invadindo o imóvel e se apropriando de acessões e benfeitorias implantadas pelos possuidores. II. Não faz sentido exigir de quem pretende ressarcimento por desapropriação indireta de posse, a prova de propriedade. (Resp. 184.762, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, julgado em 16/12/1999) ADMINISTRATIVO – DESAPROPRIAÇÃO – AÇÃO PROPOSTA CONTRA POSSUIDOR – INDENIZAÇÃO – LEVANTAMENTO – PROMITENTE COMPRADOR – SÚMULA 84. - Se o expropriante propõe ação contra o possuidor, é porque não queria desapropriar o domínio, mas, simplesmente, a posse. - O possuidor, titular de promessa de compra e venda relativa a imóvel desapropriado, tem direito ao levantamento da indenização pelo desaparecimento de sua posse. Aplica-se à hipótese, o princípio consagrado na Súmula 84.(Resp 29.006-5, Rel. Ministro César Asfor Rocha, Primeira Turma, julgado em 13/12/1993)

Disso pode-se afirmar que, ainda que o reconhecimento da posse dependa de cada caso concreto, não podemos nos furtar a afirmar a possibilidade de desapropriação da posse em nosso retroativo da sentença se dá desde a consumação da prescrição aquisitiva. (REsp 118360 / SP, Rel. Ministro Vasco Della Giustina, Terceira Turma, Julgado em 16/12/2010, DJe 02/02/2011). Nesse mesmo sentido AgRg no Ag 1319516 / MG; REsp 716753 / RS e REsp 332880 / DF 38

Desapropriação da posse no Direito brasileiro. Revista de Ciências Jurídicas e Sociais. Unipar, Vol. 1, n. 1: jul./dez. 1998. p. 58.

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sistema jurídico, devendo, portanto, ser respeitado o direito à indenização que possui o posseiro nos casos de desapropriação por parte do Poder Público.

5. A justa indenização: da insuficiência do critério estritamente monetário Como vimos, nos termos postos pela Carta Magna de 1988, a indenização decorrente da desapropriação deve ser prévia e justa. Quanto ao primeiro requisito, nenhuma dúvida resta, vez que prévia significa ser anterior à consumação39. Mas, qual seria o significado, a teleologia, da denominação “justa” de que trata a T

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Constituição Federal? Nos termos postos pela doutrina e jurisprudência majoritária, considera-se como justa aquela indenização que visa reembolsar o cidadão do valor do seu bem (patrimônio material desapropriado) com base nos valores mercadológicos. Gasparini40 afirma que justa indenização é aquela T

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paga ao expropriado e que mantém inalterável seu patrimônio. Antes e depois da expropriação tem-se, em valor, o mesmo montante, idêntico patrimônio. Com a desapropriação esse montante não se altera. A quantidade patrimonial é a mesma, embora tenha variado a composição dos bens.

Nesse mesmo sentido é o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho41 e Celso T

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Antônio Bandeira de Mello42. Este último afirma que a justa indenização “é aquela que T

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corresponde real e efetivamente ao valor do bem expropriado, ou seja, aquela cuja importância deixe o expropriado absolutamente indene, sem prejuízo algum em seu patrimônio”. A jurisprudência não é diferente: o seu entendimento se coaduna perfeitamente com a doutrina. Vejamos: CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. UTILIDADE PÚBLICA. INTIMAÇÃO DA PERÍCIA: AUSÊNCIA DE NULIDADE. IMÓVEL URBANO. JUSTO PREÇO. LAUDO OFICIAL CONTEMPORÂNEO AO APOSSAMENTO PRELIMINAR. EQUIDISTÂNCIA DOS INTERESSES DAS PARTES. JUROS COMPENSATÓRIOS. JUROS MORATÓRIOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CORREÇÃO MONETÁRIA. (...) 2.O valor da justa indenização deve corresponder ao preço de mercado do imóvel à época da imissão, uma vez que este é o momento em que o expropriado sofre a efetiva perda de seu patrimônio. (grifo nosso) (Ac 922020044013800/ TRF - 1, Desembargador Federal Carlos Olavo, Terceira Turma, E-Djf1 Data:29/04/2011 Pagina:119) ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. LEI Nº 8.629/93 E LC Nº 76/93. VALOR DA TERRA NUA E BENFEITORIAS. JUSTA INDENIZAÇÃO. 1. Os valores apurados no laudo administrativo quanto à terra nua e acessões naturais atendem à exigência constitucional da justa indenização, prevista no art. 5º, XXIV, da 39

Diógenes Gasparini. Direito Administrativo. 16º ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 903.

40

Direito Administrativo. p. 903.

41

Manual de Direito Administrativo. 21ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.. p. 809.

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Curso de Direito Administrativo. p. 382/383.

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Constituição da República Federativa do Brasil e na Lei 8.629/93, art. 12, pois refletem convenientemente a realidade imobiliária da região. 2. A justa indenização é aquela que reflete o preço atual de mercado do imóvel em sua totalidade, aí incluídas as terras e acessões naturais, matas e florestas e as benfeitorias indenizáveis. (Ac 226020004013600/Trf-1, Desembargador Federal Hilton Queiroz, Quarta Turma, Dj Data:03/09/2004 Pagina:17)

O entendimento é que deve ser pago o valor necessário para recompor integralmente o patrimônio expropriado, de forma a não haver redução para o proprietário. No cálculo da indenização devem ser incluídas as seguintes parcelas: a) o valor do bem expropriado, com todas as benfeitorias que já existiam no imóvel antes do ato expropriatório; quanto às benfeitorias feitas posteriormente, serão pagas as benfeitorias necessárias; as úteis somente se realizadas com autorização do expropriante (art. 26 do DL 3.365/41)43; b) os lucros cessantes e os danos T

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emergentes; c) os juros compensatórios, em caso de ter havido imissão provisória na posse, computando-se a partir dessa imissão; a sua base de cálculo é a diferença entre a oferta inicial do Poder Público e o valor da indenização44; c) os juros moratórios também são incidentes sobre a T

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mesma base de calculo, no montante de 6% ao ano, a partir de 1% de janeiro do exercício seguinte em que o pagamento deveria ter sido feito; d) Os honorários advocatícios, calculados sobre a diferença entre a oferta inicial e o valor da indenização, acrescido de juros moratórios e compensatórios; e) custas e despesas judiciais e f) correção monetária45. 46 T

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Observemos que a questão patrimonial, assentada em critérios monetários, possui ampla atenção e consideração por parte da doutrina e jurisprudência. Porém, uma coisa vem passando despercebida nessa análise e que, diante de todo um novo regramento concedido pelo ordenamento jurídico ao direito à moradia e ao direito à cidade, não pode ser ignorado. Estamos aqui a tratar da perda que ocorre do patrimônio moral constituído a partir do exercício do direito à moradia, durante um longo período, em determinado local da cidade, a ser objeto do desejo desapropriatório por parte da Administração Pública. Sob a compreensão fundamental de que “o tempo gera direitos”, é indiscutível que o morar durante um determinado período em determinado local na cidade gera direitos aos seus 43

A respeito das construções feitas posteriormente, ainda que com licença concedida pelo Município, não são incluídas no valor da indenização, conforme a Súmula n. 23 do STF

44

Sobre esses juros, existem duas Súmulas do STF: a de n. 164, “no processo de desapropriação, são devidos juros compensatórios desde a antecipada imissão na posse, ordenada pelo juiz, por motivo de urgência”; e a Súmula n. 618, segundo a qual, “na desapropriação, direta ou indireta, a taxa de juros compensatórios é de 12% ao ano.”. O STJ, pela Súmula n. 69, fixou o entendimento de que na desapropriação direta, “os juros compensatórios são devidos desde a antecipada imissão na posse e, na desapropriação indireta, a parte da efetiva ocupação do imóvel”. Ou seja, os juros compensatórios são devidos, na desapropriação direta, desde a antecipação da imissão na posse, e na antecipação indireta, a partir da efetiva ocupação na posse; 45 Súmula 61 do STF: “em desapropriação, é devida correção monetária até a data do efetivo pagamento da indenização, devendo proceder-se à atualização de calculo, ainda que por mais de uma vez.” 46

Quanto à desapropriação na área urbana por desatendimento da função social da propriedade, a L. 10. 257/01 estabelece, no parágrafo 2 do art. 8, que “o valor real da indenização: I – refletirá o valor base do cálculo do IPTU, descontando o montante incorporado em função das obras realizadas pelo Poder Público na área onde o mesmo se localiza após a notificação de que trata o parágrafo 2 do art. 5 desta lei; II – não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios”.

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moradores. É o caso da população residente em área reconhecida como de interesse social nos planos diretores municipais (as zonas e as áreas especiais de interesse social – ZEIS e AEIS). Tais zonas/áreas revelam “o reconhecimento do dos assentamentos humanos existentes na cidade, em sua diversidade, e sua inclusão no zoneamento da cidade”47. Através da instituição de T

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ZEIS/AEIS se permite o estabelecimento de um regime jurídico especial de urbanização e regularização fundiária, dando concretude ao novo paradigma inaugurado pela Constituição Federal de 1988 e consolidado pelo Estatuto da Cidade no tratamento dos assentamentos informais.48 T

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Importa destacar que essas áreas geralmente se encontram inseridas na cidade, sendo dotadas da infra-estrutura e situadas próximas aos centros de comércio e serviços; o que garante a seus habitantes o gozo de alguns direitos que compõe o direito a cidades sustentáveis (art.2º, inc.I, do Estatuto da Cidade), entendido como “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”; Assim, podemos dizer que através da instituição dessas zonas/áreas especiais se possibilita a efetivação/concretização do direito fundamental à moradia e o direito à cidade, por parte de uma parcela da população excluída do mercado formal de habitação. Por outro lado, não se constitui novidade a constatação de que, sobretudo nos ambientes de moradia da população de baixa renda (geralmente constituídos através de ocupação possessória), as relações entre os habitantes se entrelaçam por manifestações sociais de apoio e solidariedade entre vizinhos, pertencentes ao mesmo lugar e vivendo sob as mesmas condições. Em termos bem claros, para facilitar a compreensão: é a vizinha que constantemente cuida dos filhos da outra para que a mesma possa trabalhar; são os vizinhos que se apóiam e se amparam nos momentos de doença e de desemprego; são os moradores que fazem acertos com os donos das mercearias do lugar para comprar “fiado” e pagar apenas no final do mês ou quando “o dinheiro entrar”. Ainda que uma série de exemplos pudessem aqui ser compilados para traduzir as relações de vizinhanças que se estabelecem nas comunidades (especialmente as de interesse social), importa no momento considerar que nesses locais existem formas de sociabilidade específicas – um complexo de relações sociais - que se desenvolvem a partir dos locais de moradia dessa população e que refletem, em última análise, uma falta do Estado na promoção de ações básicas e essenciais para tal população (disponibilização de creches em locais próximo à

47 Marise Costa de Souza Duarte. Espaços Especiais em Natal (meio ambiente e moradia): um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de proteção aos direitos fundamentais na cidade contemporânea. Tese aprovada no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, dez. 2010. p.110 48 ROMEIRO, Paulo Somlanyi. Zonas Especiais de Interesse Social: materialização de um novo paradigma no tratamento dos assentamentos informais ocupados por população de baixa renda. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2010. p. 114.

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moradia, de serviços de saúde acessíveis a todos, de acesso ao crédito aos que não possuem empregos formais, etc.). Desse modo, podemos dizer que, em razão de uma especial proteção jurídica conferida ao direito à moradia da população de interesse social (que depende de ações do Estado para atendimento de suas necessidades essenciais, na qual se coloca a moradia) e considerando as relações sociais próprias que geralmente se estabelecem nessas áreas (que muitas vezes vem suprir a omissão estatal), essa parcela da população possuirá um (determinado) patrimônio moral, que não poderá ser ignorado quando se trata de fixar a indenização por desapropriação em casos de utilidade pública. Nesse sentido, nos parece perfeitamente defensável o entendimento de que apenas o critério monetário não pode ser utilizado para a fixação de indenização quando se trata de desapropriação por utilidade pública no caso da população de interesse social. Disso decorre nossa compreensão de que o conceito constitucional de justa indenização deverá levar em conta U

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as condições sociais dos expropriados (especialmente nos casos de desapropriação da posse) e o contexto em que ocorre a desapropriação por utilidade pública, como se constata no caso dos megaeventos esportivos. 1. UMA NOVA E NECESSÁRIA VISÃO DA DESAPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA (EM MEGAVENTOS ESPORTIVOS) E A INAPLICABILIDADE DO DECRETO-LEI 3.365/41.

Vistas algumas questões essenciais quando se pretende analisar o instituto da desapropriação, a partir de uma abordagem constitucional e infraconstitucional (com enfoque no Estatuto da Cidade), e onde os direitos fundamentais estão no centro do ordenamento jurídico suscitando deveres objetivos aos entes estatais; adentramos na última etapa do texto, onde encaminhamos nossa análise para as desapropriações por utilidade pública no caso de projetos voltados a megaeventos esportivos, com maior enfoque às áreas ocupadas por população de baixa renda. Como bem lembra Raquel Rolnik, na década de noventa do século XX, “tornou-se hegemônica a prática de organização de megaeventos como componentes do planejamento urbano estratégico, com vistas a melhorar a posição destas cidades na economia globalizada”. Podemos dizer que durante o século XX os Jogos Olímpicos e outros eventos esportivos passaram de uma situação em que poucas marcas deixavam na paisagem urbana, para outra em que passaram a influenciar fortemente nos processos de transformação urbana49, senão conduzi-lo. T

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Podemos dizer que desde os Jogos Olímpicos de Barcelona (1992) a realização de megaventos esportivos, organizados por poderosas organizações privadas (Comitê Olímpico Internacional – COI e Federación Internacionale de Football Association – FIFA), vem trazendo substanciais transformações nas cidades onde se realizam e na vida de seus habitantes. 49

Tudo como lembra Raquel Rolnik (2010). http://raquelrolnik.files.wordpress.com/2010/11/mega_eventos_portugues1.pdf

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Ainda que a realização de megaeventos sirva habitualmente como catalisador para o início e aplicação de planos de desenvolvimento de moradia nas cidades anfitriãs, às quais se destinam maiores investimentos públicos e privados (especialmente ao setor de construção)50, T

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com incremento nos empregos e na disponibilidade de unidades habitacionais; também pode ocorrer que os ganhos desses eventos esportivos se limitem ao setor privado, sem que a sociedade, como um todo, possa usufruir do legado positivo que o mesmo possa trazer. E o pior: que a preparação e a realização de tais eventos ignorem os direitos fundamentais que possuem a população de baixa renda, especialmente o direito à moradia digna e adequada. No Brasil essa situação passa a ficar mais visível no momento em que nossas cidades se organizam para a realização da COPA DO MUNDO (2014) e das OLIMPÍADAS DO RIO (2016). Ainda que a realização dos Jogos Panamericanos (2007), no Rio de Janeiro, já tenha revelado uma face (cruel) de desrespeito aos direitos de famílias de baixa renda (sumariamente “retiradas” de seus locais de moradia para construção de obras necessárias àquele evento esportivo), é na preparação das cidades-sedes para os eventos de 2014 e de 2016, que começa a se revelar o quanto tais eventos podem se tornar “rolos compressores” sob direitos fundamentais postos na Carta Magna Brasileira, especialmente o direito à moradia da população de baixa renda. Trazendo o foco para nosso objeto de estudo51, se observa que, em razão da premência T

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na execução dos projetos públicos relativos àqueles megaeventos (com enfoque para os estádios e as obras de mobilidade para a COPA 2014), os Poderes Públicos vem praticamente ignorando seu dever estatal de proteção e promoção do direito à moradia da população de interesse social, fazendo vistas grossas às regras que amparam esse direito e o direito à cidade sustentável que possui essa população, para quem o princípio da dignidade humana é, na maioria das vezes, totalmente desconsiderado. Tal constatação advém da percepção de que, por parte do Poder Público em geral, temse a idéia de que as famílias de baixa renda que ocupam informalmente as áreas necessárias à realização daquelas obras devem se “contentar” com o valor oferecido para desocupação de seus imóveis, valor geralmente calculado sem considerar a valorização imobiliária que aquela área passou a ter por estar inserida nos projetos voltados àqueles megaeventos. Valor que ignora o patrimônio moral daquelas populações, valor que não considera (voluntariamente ou não) que aquela população inserida em zonas/áreas de interesse social possui o direito à moradia digna e adequada naquele local (muitas vezes ocupado há anos) e o direito à cidade sustentável (nos termos do art.2º, inc.II, do Estatuto da Cidade), direitos que reúnem um plexo de direitos essenciais àquelas pessoas (como o direito à terra urbana, à infra-estrutura urbana, aos serviços públicos e ao trabalho, para falar apenas de alguns) cujo exercício se possibilita naquele local, por 50

Raquel Rolnik (2010)

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Ainda que se pudesse elencar uma série de fatos ligados à preparação do Brasil para a COPA de 2014, que demonstram o desprezo de seus organizadores com os direitos fundamentais consignados na Constituição Federal.

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sua proximidade com os centros de comércio e de serviços. Como conseqüência, tem-se geralmente a expulsão daquela população para áreas distantes (as únicas onde o valor pago a título de indenização possibilita acessar um novo imóvel), carentes de infra-estrutura e de serviços públicos que possibilitem o gozo do direito à moradia digna e adequada e o direito à cidade, além dos outros direitos sociais. Tudo isso em evidente afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme o artigo que inaugura nossa Carta Magna. Por outro lado, merece enfoque especial o fato de que, quanto à desapropriação por utilidade pública, mesmo após a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, a normatização aplicada (pela ausência de outra) vem sendo a inserida no Decreto-Lei 3.365/41, elaborado sob a égide da Constituição de 1937, e no qual o Direito era visto de forma meramente patrimonialista. Ainda que se pudesse realizar uma ampla análise daquele Decreto-Lei, sob a égide da Constituição Federal de 198852, a partir da qual se instalou no país um plexo de direitos e regras T

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de caráter democrático, que não se coadunam com o sistema anterior, em face das limitações desse texto evidenciaremos apenas alguns aspectos que revelam essa constatação. Vejamos algumas regras contidas naquele Decreto-Lei: Art. 7o Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas autorizadas a penetrar nos prédios compreendidos na declaração, podendo recorrer, em caso de oposição, ao auxílio de força policial. U

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Àquele que for molestado por excesso ou abuso de poder, cabe indenização por perdas e danos, sem prejuízo da ação penal. Art. 9o Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública. U

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A partir de uma simples observação apenas dessas duas regras, podemos, de pronto, constatar que os amplos poderes concedidos ao Executivo, nos casos de desapropriação por utilidade pública, não estão amparados pela ordem jurídica em vigor. Observa-se que, conforme o art.7º, o expropriado pode ser sumariamente expulso de seu imóvel, inclusive submetendo-se à força policial, tão e somente a partir da declaração de utilidade pública do bem. E ainda: sendo vedada qualquer apreciação judicial quanto à verificação ou não dos casos de utilidade pública. Lembremos o que nos diz a Constituição Federal de 1988 no âmbito dos direitos e garantias fundamentais: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante

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Inclusive questionando sua constitucionalidade (também do ponto de vista formal) em face do que dispõe o inc.XXIV do artigo 5º da Constituição, in verbis: a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição. (destacamos). U

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.... XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; ....... LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Ora, no momento em que os expropriados são sumariamente retirados de seu imóvel, sem qualquer oportunidade de contraditório e defesa, e sem que caiba qualquer apreciação, por parte do Judiciário, é evidente que o Decreto-Lei 3.365/41 rompe absolutamente a ordem constitucional instituída para proteção dos direitos e garantias fundamentais. Essa situação se agrava quando se observa que, em se tratando dos megaeventos esportivos, também são totalmente ignoradas as normas de planejamento urbano existentes. Lembremos, neste tópico, o que diz a Constituição Federal de 1988. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (destacamos)

Lembremos que, na regulamentação do capítulo da Política Urbana na Carta Magna, veio o Estatuto da Cidade estabelecer “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (parágrafo único do seu art.1º); prescrevendo que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante diretrizes gerais ali estabelecidas. Contudo, o que se constata é que os projetos e obras referentes aos megaeventos esportivos, em geral, não são elaborados e executados sob a égide do que prescreve a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade; sendo em geral obras pontuais (visando o atendimento de interesses de funcionalidade e operacionalidade dos eventos, em favor dos visitantes ocasionais), desconectadas das regras de planejamento urbano instituídas para a cidade que, em geral, são construídas mediante (obrigatório) processo participativo53. T

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53 O caso de Natal-RN é um bom exemplo desse fato, pois se constata que as obras de mobilidade urbana em andamento para a COPA-2014 não estão conectadas com a Política de Mobilidade Urbana instituída no Plano Diretor de 2007.

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Diante de tudo isso, se encontra um caminho totalmente aberto para que se questione se a desapropriação em tais casos se assenta em seu objetivo fundamental: fazer cumprir a função social da propriedade. Tais constatações se aliam ao entendimento quanto à necessária rediscussão do conceito constitucional de justa indenização, nos casos de desapropriação por utilidade pública (tratandoU

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se de megaeventos esportivos), especialmente quando se trata da população de interesse social.

6. Conclusão Em face de todo o exposto, consideramos possível, no âmbito da discussão doutrinária envolvendo o tema dos direitos fundamentais, propor e promover uma rediscussão do termo justa indenização em nosso ordenamento jurídico, especialmente quando se trata de desapropriação por utilidade pública (tendo como foco o caso dos megaeventos esportivos, eventos de natureza privada onde majoritariamente se utilizarão vultosas verbas públicas para sua viabilização) e considerando, de modo específico, os direitos de uma população (de interesse social) alijada do mercado imobiliário formal, para a qual o gozo dos direitos urbanos, donde se destaca o direito à moradia e o direito à cidade sustentável (com todos os direitos que lhe são inerentes nos termos do art.2º do Estatuto da Cidade) se coloca pressuposto fundamental para a promoção de sua dignidade humana. Nesse sentido, se formulam as seguintes conclusões articuladas: 1. O regime jurídico que ampara o direito fundamental à moradia no ordenamento jurídico brasileiro, que vincula toda a atuação do Poder Público (inclusive quando se trata de projetos e obras referentes a megaeventos esportivos) impede que pessoas sejam despojadas sumariamente de seus locais de moradia. 2. A proteção ao direito à moradia (digna e adequada) está intrinsecamente ligada ao direito à cidade (direito materialmente constitucional e expressamente consagrado no Estatuto da Cidade); o que expressa a compreensão de que esse direito não significa apenas o acesso a uma unidade habitacional, mas o acesso a todos os benefícios públicos que a cidade oferece a seus habitantes, independente de sua classe social. 3. Em razão disso, no âmbito do procedimento da desapropriação (onde deve ser observado o devido processo legal) há que ser respeitado todo o regime jurídico que ampara o direito fundamental à moradia e o direito à cidade, especialmente quando se trata da população de interesse social (que, sem acesso ao mercado imobiliário, se encontra na dependência absoluta das ações estatais). Assim, é no momento do exercício do contraditório e a ampla defesa no procedimento expropriatório que se garantirá maior transparência à atuação estatal, possibilitando a defesa do indivíduo e inibindo condutas arbitrárias que venham afrontar os direitos à moradia digna e adequada e o direito á cidade.

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4. Considerando possível, em nosso sistema jurídico, a desapropriação também da posse, é de se compreender que a “justa indenização” (requisito constitucional para a desapropriação) não pode ser auferida apenas a partir de critérios patrimoniais; sendo necessário que se seja levado em consideração o patrimônio moral gerado pela moradia decorrente dos anos passados no local e pelas relações de vizinhança adquiridas; compreensão que se pauta nos valores resguardados pela Carta Magna, donde se destaca a dignidade da pessoa humana. 5. Diante do novo regramento especial concedido ao direito à moradia (digna e adequada), pautado em um regime democrático consagrado pela Constituição Federal de 1988, aperfeiçoado pela inserção do direito á cidade no ordenamento jurídico brasileiro, fica evidente que as regras para a desapropriação por utilidade pública constantes no Decreto-Lei 3365/41 (elaborado sob a égide da Constituição de 1937 e no qual o Direito era visto de forma meramente patrimonialista) não podem ser aplicadas quando vem esse direito fundamental (aliado ao direito à cidade) e a dignidade da pessoa humana.

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em 8 out. 2010 ROMEIRO, Paulo Somlanyi. Zonas Especiais de Interesse Social: materialização de um novo paradigma no tratamento dos assentamentos informais ocupados por população de baixa renda. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2010. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. ______. O Direito Fundamental à Moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), n.20, dez./fev. 2009/2010. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2010. SAULE JÚNIOR, Nelson. O direito à moradia como responsabilidade do Estado Brasileiro. In: SAULE JÚNIOR, Nelson (Org.). Direito à cidade: trilhas legais para o direito à cidades sustentáveis. São Paulo: Max Limonad, 1999. p. 63-126. ______. O Direito à Cidade como condição para cidades justas, humanas e democráticas. 2005. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: RT, 1991 SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. reimpr. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. Dissertação de Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa.

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Princípio da reserva do possível X direitos sociais: desafio ao Poder Judiciário Rafaela Patricia Inocencio da Silva 1 T

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Jailton Macena de Araújo T

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Resumo

Abstract

O trabalho tem o intuito de discutir acerca da dificuldade do Judiciário brasileiro de decidir matérias que envolvam a concretude dos direitos sociais, ou direitos de 2ª dimensão, diante do princípio da reserva do possível. Mencionado princípio é traduzido pela escassez de recursos financeiros suficientes para realização imediata de uma prestação estatal urgente e por vezes é alegada pela Administração Pública para justificar o descaso com a efetivação dos direitos sociais. Os direitos sociais são, por sua vez, entendidos como prestações estatais para igualação da sociedade, garantindo justiça social. Assim, diante destas situações de confronto que são levadas a Justiça é indispensável uma análise do argumento do limite financeiro, não podendo este ser um entrave para a efetivação dos direitos de segunda dimensão, nem ser atropelado pelo julgador em sua decisão. O que se preconiza é que deverá existir um controle judicial pautado na razoabilidade e proporcionalidade (adequação e necessidade) para que a decisão suprima a ofensa aos direitos em questão sem prejudicar em demasia o orçamento público. Para este estudo fez-se uso como método de pesquisa o dedutivo analisando a perspectiva da realização dos direitos sociais pelo judiciário a partir da análise de casos concretos, com o manejo dos métodos histórico, monográfico e comparativo; bem como a técnica de pesquisa da pesquisa bibliográfica mediante a leitura de obras jurídicas, tudo com o objetivo de trançar a origem dos temas estudados e em seguida comparálos a realidade das decisões proferidas de modo a se compreender a reserva do possível e direitos sociais dentro do contexto social. É de se observar que os estudos permanecem sem conclusão definitiva dada a necessidade de aprofundamento e à complexidade dos posicionamentos exarados na jurisprudência.

The work aims to discuss about the difficulty of the Brazilian judiciary to decide matters involving the concreteness of social rights, or rights of twodimensional, on the principle of reserve for contingencies. Mentioned principle is translated by the lack of sufficient financial resources to conduct an immediate and urgent state provision is sometimes claimed by the Administration to justify the neglect of the fulfillment of social rights. Social rights are, in turn, understood as benefits for state equalization of society, ensuring social justice. Thus, before these confrontational situations that are brought to justice is essential to analyze the financial constraints of the argument, nor can this be an obstacle to the realization of the rights of the second dimension, or being run over by the judge in his decision. What is advocated is that there should be a judicial review ruled in the reasonableness and proportionality (suitability and need) for the decision to abolish the offense to the rights in question without too much harm in the public budget.For this study it was used as the deductive method of research examining the prospect of realization of social rights by the judiciary from the analysis of specific cases, with the management methods of historical and comparative monograph, as well as the research technique of research literature by reading law books, all with the goal of weaving the origin of the subjects studied and then compare them to the reality of decisions in order to understand the reserve for contingencies and social rights within the social context. It is noteworthy that studies remain to be given a definitive conclusion requires further study and the complexity of placements entered in the jurisprudence.

Palavras-Chave: Reserva do possível; Direitos sociais; Poder Judiciário.

Keywords: Reservation possible; Social rights; Judiciary. T

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Graduanda em Direito da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS) – Campus Sousa-PB. – e-mail: [email protected]. TU

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Professor co-orientador do trabalho e do curso de Direito da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS) – Campus Sousa-PB. –Mestrando em Direito Econômico na Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - e-mail: – [email protected]

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1. Introdução Atualmente Poder Judiciário é levado a decidir sobre matérias que direitos sociais de um lado e do outro a reserva do possível. Sendo assim, pretendendo entender a melhor forma de se decidir tais matérias é que se passa a analisar os direitos sociais e a reserva do possível. Os direitos sociais são de caráter fundamental por visarem à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana. Eles juntamente com os direitos econômicos e sociais compõem a chamada 2ª geração ou dimensão de direitos e relacionam-se diretamente com o princípio da igualdade. Todavia, apesar do seu reconhecimento eles ainda encontram dificuldades que agora gravitam não em torno de seu reconhecimento, mais sim de sua aplicabilidade e consequente efetividade. Esta problemática na sua realização e eficácia reside no fato de que para serem postos em prática exigem uma conduta ativa do Estado, por meio de uma prestação material que muitas vezes apresenta valores elevados para sua instalação e manutenção. Como esses direitos apresentam a necessidade de para sua efetivação precisarem de uma prestação positiva, foi criada em 1972 na Alemanha a teoria da reserva do possível. Ela estabelecia que para um direito social ser efetivado era necessário ter disponibilidade financeira para a realização de uma prestação. Todavia, não era este o único fator a ser colocado em avaliação para a satisfação ou não de um direito fundamental (principalmente os de cunho social), também era de se buscar o princípio da razoabilidade. O princípio da reserva do possível com o tempo foi inserido no sistema jurídico nacional, no entanto, não houve uma adequação para tal, o que ocasionou a sua utilização, principalmente pela Administração Pública, como critério meramente financeiro, onde somente se alegava a falta de recurso para não realizar um prestação social, sem levar em consideração a razoabilidade ou não do direito. No entanto, mesmo diante da forte tendência da Administração de levar este princípio somente no viés quantitativo, a jurisprudência vem dando os seus passos firmes para consolidar o aspecto qualitativo da matéria (razoabilidade). Neste esteio ainda exige-se que a alegação da falta de recurso no orçamento para a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo os sociais, não poderá ser somente alegada, mais também terá de ser devidamente comprovada. Assim, para casos que envolvam a reserva do possível é recomendado aos juízes e outros operadores do direito que façam o uso da razoabilidade na busca da efetivação dos direitos sociais. Ao lado desta razoabilidade deve pautar ainda pelo princípio da proporcionalidade de maneira que se observe a adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

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2. Dos Direitos Sociais Para entender do que tratam os direitos sociais é indispensável antes de outras colocações estabelecer o seu caráter de direitos fundamentais. Tal classificação se deve ai fato destes visarem à proteção, bem como a promoção da dignidade da pessoa humana, sendo esta também uma atribuição dos direitos sociais. Todavia, é de se por em destaque que os direitos fundamentais além de conterem em seu rol os direitos sociais em sentido amplo, ainda se observam os direitos civis e políticos e os direitos de solidariedade. Isso se deve a sua evolução histórica que os dividiu em três gerações orientadas pelas palavras símbolos da Revolução Francesa, liberté, igualité et fraternité. Cada uma destas palavras passou a representar uma geração de direto a partir da classificação de Karel Vasak3 proposta em 1979 em Estrasburgo. T

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Aqui é de se salientar que a expressão direitos de 1ª, 2ª e 3ª gerações sofreram críticas com a designação, visto que esta traz a ideia de que uma geração ao nascer acaba por exterminar a geração anterior. Então diante da inadequação terminológica optou-se por utilizar-se a denominação dimensão em substituição ao termo geração, já que aquela não propõe a exclusão e sim a evolução dos direitos por meio da interação entre estes, em vez de se perpetuar a sua unicidade e indivisibilidade. Assim, diante da classificação apresentada escolheu-se por empregar o termo geração, aplicando-lhe o mesmo significado de dimensão, mesmo este sendo o termo mais moderno e atual. Logo, as duas serão tratadas como sinônimos, onde representam a evolução dos direitos em comento por meio da sua interação e não exclusão, como é demonstrado a seguir: Deve-se ter presente, entretanto, que falar em sucessão de gerações não significa dizer que os direitos previstos em um momento tenham sido suplantados por aqueles surgidos em instante seguinte. Os direitos de cada geração persistem válidos juntamente com os direitos da nova geração [...]. 4 T

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Fazendo-se uso destas palavras como sinônimas podem ser as gerações entendidas da seguinte maneira: direitos de 1ª geração como os que tratam dos direitos civis e políticos, que buscam a liberdade em sentido formal, através da abstenção do Poder Público de não intervir na vida pessoal de cada cidadão. Desta maneira, nota-se que há a formação do Estado liberal onde as liberdades adquiridas devem ser respeitadas por serem indispensáveis a todos os homens. Os direitos de 2ª geração surgem devido a pouca atenção que a 1ª geração deu as desigualdades sociais, pois enquanto a liberdade era garantida a todos enquanto a igualdade 3

NETO, Nagibe de Melo Jorge. O controle judicial das políticas pública: Concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: Jus Podivm, p. 36, 2009. 4

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, p. 266, 2009.

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variava de acordo com a classe social. Esta desigualdade ficou mais evidente e agravada a partir da Revolução Industrial, onde havia a exploração da mão-de-obra sem a menor atenção as condições em que os trabalhadores laboravam o que findava com a realização de atividades extremamente nocivas a vida e saúde do então denominado proletariado. A mercê destes problemas começaram a surgir movimentos sociais que passaram a exigir do Estado uma posição mais condizente com o seu poder, a exemplo dos movimentos reivindicatórios que auxiliaram no processo que amenizou a liberalidade estatal, através da substituição da igualdade formal pela igualdade material. Já a 3ª geração dos direitos fundamentais é marcada pelas grandes pressões internacionais oriundas da globalização, avanços tecnológicos, científicos, modernização dos meios de comunicação, dentre outros. Esta geração é dirigida a coletividade, por meio da proteção dos direitos difusos ou coletiva e pode ser traduzida mediante o princípio da fraternidade ou solidariedade. Este também é o ensinamento de Dias5 que assim discorre: T

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Essa terceira geração de direitos contempla os direitos humanos ligados à solidariedade e se apresenta como proteção em relação ao Estado em que cada indivíduo está inserido como também nas relações internacionais. Esses direitos são indicados como direitos voltados para a coletividade [...].

Há ainda uma quarta geração que visa dar proteção as futuras gerações e que se encontra em desenvolvimento pela doutrina. Sua principal incumbência é estabelecer medidas para a atual sociedade no intuito de assegurar a vida dos seres humanos que estão por vir. Feita esta sucinta, mais relevante, apresentação histórica parte-se agora para um maior detalhamento dos direitos que são o foco do estudo, quais sejam os direito de 2ª geração, que compreende os direitos sociais, econômicos e culturais e se traduzem por intermédio das ações positivas que são e devem ser realizadas pelo Estado para efetivá-los, garantindo-se o princípio da igualdade. Para garantir a realização desta igualdade foi indispensável à mudança estatal do eixo liberal para se transformar em Estado Social, que passou a promover a Justiça Distributiva. Isso porque a inércia pública já não correspondia às exigências da população que cobrava por uma atuação mais concreta frente às mazelas coletivas. Como uma consequências disto o Estado deixa de figurar tão somente com abstenção ou omissão para conduzir-se por ações que culminem em prestações positivas. Neste esteio, a igualdade vai tomar relevância a partir da prestação dos direitos de assistência social, saúde, educação, trabalho, cultura, moradia, lazer, etc. Sendo assim, é notório que a designação Direitos Sociais é empregada em sentido amplo, abrangendo os direitos sociais 5

DIAS, Jean Carlos. O Controle Judicial das Políticas Públicas. São Paulo: Método, p. 110, 2007.

1237

em sentido estrito, econômicos e culturais e recebe este título por ter nascido das lutas da coletividade pela Justiça Social. Apesar de todos os percalços enfrentados pelos Direitos Sociais para o seu reconhecimento, hoje eles ainda encontram dificuldades que agora gravitam não em torno de seu reconhecimento, mais sim de sua aplicabilidade e consequente efetividade. Esta problemática na sua realização e eficácia reside no fato de que para serem postos em prática exigem uma conduta ativa do Estado, por meio de uma prestação material, pois eles existem para efetivarem a igualdade material. Diferente situação ocorre com os direitos de defesa ou direitos de 1ª geração que para serem efetivados exigem tão somente a omissão do Poder Público no que se refere às liberdades, limitando assim a atuação do Estado na autonomia pessoal de seus cidadãos. Enquanto os direitos sociais prestacionais invocam uma maior participação pública, pois para que se possa ser materializados exigem um prestação de natureza fática e não uma mera abstenção. Prestação esta que na maioria das vezes implica em investimentos financeiros como menciona Sarlet6: T

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Justamente pelo fato dos direitos sociais prestacionais terem por objeto -em regraprestações do Estado diretamente vinculadas à destinação, distribuição (e redistribuição), bem como à criação de bens materiais, aponta-se, com propriedade, para sua dimensão economicamente relevante.

Por sua vez os direitos de 1ª geração não apresentam este caráter de investimentos pecuniários imediatamente, pois regulam mais matérias que tratam mais das liberdades, e que podem ser colocadas em prática sem a destinação de recursos financeiros bastando apenas à proteção jurídica. Um exemplo disto pode ser elucidado com o emprego da liberdade religiosa presente no artigo 5º, VI da CF/887, pois para sua efetivação ao administrador basta apenas não T

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intervir de modo que limite este direito em comento, lembrando que o mesmo já é protegido legalmente pelo texto constitucional, dispensando-se gastos para sua proteção material (como uma guarda especializada em proteger as religiões), salvo em caso de violação a esta liberdade. O mesmo não ocorre quando se está diante de um direito social prestacional que apresentam valores elevados para sua instalação e manutenção, sendo evidenciada para a efetivação da saúde, educação, previdência social, assistência social, da cultura, auxílios financeiro a empresas em dificuldade econômicas, dentre outros casos que exemplificam bem a necessidade de se efetivar direitos sociais graças aos seus custos.

6

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma teoria geral dos Direitos Fundamentais na perspectiva constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 284, 2010. 7

BRASIL. Constituição Federal do Brasil. Brasília, Rideel, 2009.

1238

3. Princípio da Reserva do Possível O princípio em comento é uma criação que surgiu na Alemanha em julho de 1972 fruto de uma decisão proferida pelo Tribunal Constitucional daquele país. Este se traduzia na ideia de que a prestação dos direitos sociais estaria limitada aos recursos que o Estado apresentasse, logo a efetivação dos direitos sociais só seriam concretizados até atingir-se o valor estabelecidos para os seus gastos. A teoria levantada pelos alemães nasceu a partir da analise do direito ao acesso ao ensino superior sendo este pleiteado por estudantes que não foram admitidos no curso de medicina da Universidade de Hamburgo e Munique. Por meio do direito alegado eles questionaram a constitucionalidade referente a limitação do número de vagas para o ingresso no curso, para tal se ancoram no direito assegurado pela sua constituição nacional que dispunha que todo alemão poderia escolher a sua profissão bem como o local de sua formação. A Corte daquele país ao estudar a problemática que lhe fora apresentada traça um posicionamento jurisdicional adverso ao que lhe fora pedido. Sendo este um trecho da decisão apresentado por NETO8·: T

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[m]esmo na medida em que os direitos sociais de participação em benefícios estatais não são desde o início restringidos àquilo existente em cada caso, eles se encontram sob a reserva do possível, no sentido de estabelecer o que pode o indivíduo, racionalmente falando, exigir da coletividade.

Entendeu o Tribunal por meio de controle concentrado que os direitos individuais que foram demonstrados se configuravam como direitos sociais capazes de exigirem uma prestação aos diretamente interessados, prestação esta que está vinculada a realização de gastos pelo Estado para o seu oferecimento. Neste caso então era mister se observar a realidade dos recursos financeiros presentes nos cofres publico antes de qualquer coisa. Desta forma optou-se por ponderar-se os direitos individuais constitucionais frente aos demais serviços coletivos e chegou-se ao entendimento que garantir o direito de vagas a todos os alunos que pleitearam acabaria por sacrificar outros serviços públicos pois, ocasionaria uma onerosidade excessiva bem como a escassez de recursos9. T

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Logo é de se ressaltar que a razoabilidade foi o que norteou a decisão, pois levou em consideração os limites racionais a serem suportados pelo recurso da coletividade. Visto que mesmo que existam recursos suficientes não é plausível que haja a prestação de direitos que excedam um padrão de razoabilidade. 8

NETO, Nagibe de Melo Jorge. O controle judicial das políticas pública: Concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: Jus Podivm, p. 148, 2009. 9

OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível. Curitiba: Juruá, p. 215, 2008.

1239

Assim, fica bem visível que o princípio da reserva do possível (“Vorbehalt des Möglichen”) nasce ligado a um juízo de disponibilidade financeira para a realização de uma prestação. Todavia, não é este o único fator a ser colocado em avaliação para a satisfação ou não de um direito fundamental (principalmente os de cunho social), também é de se buscar o princípio da razoabilidade. Com algum tempo a teoria em apreço começa a fomentar a doutrina nacional, isso por volta de 1990, sendo que antes já se discutia a seu respeito, porém de forma mais tímida limitando-se a tratar dos direitos sociais que necessitavam de prestações10. T

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Ademais, é de se mencionar que mesmo esta sendo fruto de importação da doutrina germânica o Direito nacional não levou em consideração a situação do deste país, a eficácia do princípio ou mesmo a sua adequação ao sistema jurídico que aqui vigora. Este descaso teve repercussão e acabou por gerar distorção na aplicabilidade da reserva do possível. Tal colocação é também trazida por Andréas Krell11 que é enfático ao dizer que a realidade da sociedade T

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brasileira que não pode ser comparada com a existente nas nações que compõe a União Européia sendo também sua a afirmação que: [...] os estudiosos do Direito Comparado insistem em lembrar que conceitos constitucionais transplantados precisam ser interpretados e aplicados de uma maneira adaptada para as circunstâncias particulares de um contexto cultural e sócio-econômico diferente, o que exige um máximo de sensibilidade 12. T

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O autor ainda continua tecendo comentário acerca da importação de institutos de outras nações que nem sempre são adequadas para o Brasil e comenta da premente necessidade de se elaborar normas jurídicas brasileiras13. Cumpre ainda destacar que além de não haver se moldado T

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o princípio importado antes de colocá-lo em uso, ele também teve a sua extensão ampliada como se pode perceber com o ensinamento abaixo elencado: No Brasil, conforme o entendimento doutrinário, a reserva do possível alargou seu âmbito de influência, arrastando outros conceitos diversos, na tentativa de blindar o erário público da interferência do Poder Judiciário em relação à efetivação de direitos prestacionais. A preocupação inicial, referente à proporcionalidade e à razoabilidade “deu lugar para a questão da disponibilidade de recursos, e para os custos dos direitos”14. T

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10

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, p. 263, 2008. 11

KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 53-54, 2002.

12

Idem, p. 54.

13

Idem, p. 56.

14

OLIVEIRA, Rafael Sérgio Lima de; CALIL, Mário Lúcio Garcez. Reserva do possível, natureza jurídica e mínimo essencial: Paradigmas para uma definição. Anais do XVII Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Brasília: Conpedi, 2008, p. 3723.

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Desta maneira, o argumento da reserva do possível por vezes foi fundamentado pela Administração Pública como só se constituísse de um padrão financeiro sem se pôr em debate a razoabilidade da medida, “funcionou muitas vezes como o mote mágico”15. Todavia, mesmo diante T

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da forte tendência da Administração de levar este princípio somente no viés quantitativo, a jurisprudência vem dando os seus passos firmes para consolidar o aspecto qualitativo da matéria (razoabilidade). Neste esteio ainda exige-se que a alegação da falta de recurso no orçamento para a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo os sociais, não poderá ser somente alegada, mais também terá de ser devidamente comprovada pelo que a alega conforme estabelece a Suprema Corte brasileira através do trecho da ADPF 4516: T

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É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a correta ponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais”, p. 245-246, 2002, Renovar): Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição.

Assim só poderá a reserva do possível ser usada para restringir a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo os sociais, quando for devidamente comprovada à falta de recurso nos fáticos, bem como a falta desta previsão no orçamento. Isto se deve a fato de que havendo uma autorização, que não possa ser realizada pela falta de valores poderá ela comprometer os valores 15 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, p. 261, 2008. 16

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 45. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=45&processo=45. Acesso em 29 nov. 2011. TU

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destinados a outras áreas e consequentemente suas ações programadas e indispensáveis a sociedade. Neste sentido a reserva do possível deverá também de ser estudada em observância com a economia, uma vez que se a escassez de recursos é o maior empecilho argumentado como barreira a efetivação dos direitos sociais. Havendo ainda a limitação das leis orçamentária que também restringem a disponibilidade de valores reais para a aplicabilidade dos direitos fundamentais prestacionais. Logo, a questão econômica há de ser levada em consideração, pois na discussão da teoria da reserva do possível é mister análise da escassez de recursos e os limites orçamentários, matérias estas que são eminentemente econômicas. Todavia, o critério econômico nunca poderá ser o único a pautar a decisão que envolva direitos sociais, pois a razoabilidade será também muito relevante em causas deste assunto.

4. Do Controle Judicial A escolha da forma, do destino e onde os recursos públicos serão aplicados para satisfazer as necessidades da coletividade é uma função típica do Poder Legislativo. Função esta decorrente da tripartição dos poderes proposta por Montesquieu17, logo a opções de destinação T

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feita pelos legisladores influencia consideravelmente no orçamento nacional. Assim, as situações em que o judiciário atua para sanar questões que envolvam a prestação de direitos sociais é alvo de duras críticas. A principal delas reside no argumento de que uma vez resolvendo conflitos desta seara o Poder Judiciário estaria descumprindo o princípio da separação dos poderes (art. 2º da CF/88)18. Pois estas matérias envolvem o orçamento publico, que compete T

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aos poderes Executivo e Legislativo. Este argumento onde se propõe que o princípio constitucional da separação dos poderes estaria acima da efetivação dos direitos fundamentais, também de caráter constitucional, não encontra fundamentos sólidos, pois há de se mencionar que em um Estado Democrático de Direito o fim a que se busca é garantir a sociedade a melhor e mais digna condição de vida, que deve ser protegida de toda e qualquer violação. Assim, o Estado deve almejar de todas as formas resguardar a dignidade da pessoa humana, por meio do estabelecimento de um mínimo existencial. Atuando desta maneira o Estado estará também colaborando para concretização dos direitos humanos e consequentemente também para os direitos fundamentais, que se tratam dos direitos humanos reconhecidos e positivados em cada país.

17

NETO, Nagibe de Melo Jorge. O controle judicial das políticas pública: Concretizando a democracia e os direitos sociais fundamentais. Salvador: Jus Podivm, p. 60, 2009. 18

BRASIL. Constituição Federal do Brasil. Brasília, Rideel, 2009.

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Outro fator que faz a atuação judicial ser plenamente cabível é trazido por meio da Constituição Federal que estabelece por meio do art. 5º, XXXV19 “que a lei não excluirá da T

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apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Então não restam dúvidas que diante de violações de direito pouco importará a o poder envolvido sendo indispensável à atuação judicial. Nesse contexto de superação de teorias é que deve o Judiciário assumir uma posição plausível para dá a melhor solução possível, pois de um lado está a norma constitucional que propõe a máxima efetividade aos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º da CF/88) e do outro os limites que o orçamento impõe por falta de numerário suficiente para a efetivação dos direitos em comento. Para casos que envolvam a reserva do possível é recomendado aos juízes e outros operadores do direito que façam o uso da razoabilidade na busca da efetivação dos direitos sociais. Para tal deve-se fazer uso da proporcionalidade frente aos bens objetos da demanda observando que os recursos são escassos e que as necessidades por outro lado são muitas para que sua decisão seja o mais adequado e que os seus impactos negativos na economia e também sociais sejam os menos. Este é o pensamento de Mânica20 que discorre que “o custo direto T

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envolvido para a efetivação de um direito fundamental não pode servir como óbice instransponível para sua efetivação, mas deve ser levado em conta no processo de ponderação de bens”. Para a ponderação da decisão sobre direito fundamental versus orçamento é se notar que a proporcionalidade

seja

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acordo

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adequação,

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proporcionalidade em sentido estrito. Tal relato é corroborado por Gilmar Mendes citado por Mânica21 que assim dispõe: T

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Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

Em relação a esta ponderação que utiliza o princípio da proporcionalidade de maneira mais pormenorizada é de bom tom tecer alguns comentários. O primeiro destina-se a entender a adequação como faceta da proporcionalidade, pois na decisão o juiz deve ter em mente se o que 19

BRASIL. Constituição Federal do Brasil. 8. ed. Brasília, Rideel, 2009.

20

MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 169-186, jul./set. 2007. 21

MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n. 18, p. 169-186, jul./set. 2007.

1243

ele decidiu produzirá os resultados desejados. A segunda máxima destina-se a avaliar se a medida é realmente necessária, ou se não pode ela ser substituída por outra forma que produza os mesmos resultados sem tanta gravidade que a substituída causaria. Por último é trazida a proporcionalidade em sentido estrito, sendo esta a verdadeira ponderação, visto que examina o direito fundamental requerido em contraponto com a limitação do orçamento, esta devidamente comprovada pela Administração que a alegou. Assim, resta novamente enfatizar que nas ações que exijam do Poder Judiciário uma resposta que concretize as prestações de direitos sociais diante de orçamento bastante limitados é indispensável que julgador analise a ponderação dos meios para dá sua decisão. Sendo apropriado que ainda ele observe os elementos que compõe o princípio da proporcionalidade, quais sejam adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

5. Considerações Finais Diante do que fora aqui narrados propõe-se que as causas que forem levadas ao Poder Judiciário e que tratem da de direitos sociais prestacionais frente ao argumento da reserva do possível devem ser solucionadas com o uso da razoabilidade da prestação e dos recursos e orçamento do Estado. Por fim, se indica que além de levar em consideração à razoabilidade a decisão também se paute no princípio da proporcionalidade através da análise da adequação, necessidade bem como a proporcionalidade em sentido estrito para então condizer com a atual realidade.

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Violência homofóbica, processo de criminalização de condutas e efetividade de direitos fundamentais Robson Cosme de Jesus Alves1 T

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Resumo

Abstract

Este trabalho apresenta como escopo a análise da proposta de criminalização da homofobia no Brasil, materializada no PLC 122/2006. Tem como objetivo discutir a viabilidade do uso da norma penal e, consequentemente, do aparato do sistema criminal, como forma de enfretamento da violência contra as minorias sexuais e de afirmação de seus direitos fundamentais. Para isso, por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental foram levantados dados sobre a diversidade sexual e homofobia no Brasil e realizada uma revisão de literatura acerca dos fundamentos do sistema penal, da racionalidade das leis penais, do expansionismo penal, da função simbólica do direito penal, da observância aos princípios penais constitucionais e aos direitos fundamentais. Para demonstrar a realidade dos crimes homofóbicos no Brasil tomou-se como referência os dados publicados anualmente pelo Grupo Gay da Bahia. Já para situar a homofobia enquanto fenômeno social, buscou-se a pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil – Intolerância e Respeito às Diferenças Sexuais, realizada pela Fundação Perseu Abramo, por meio de seu Núcleo de Opinião Pública (NOP), em parceria com a fundação alemã Rosa Luxemburgo, na qual se procurou identificar e medir o preconceito contra a população LGBT considerando a percepção da própria comunidade e da sociedade em geral. O presente trabalho tem ainda como marco teórico de referência José Luis Diéz Ripollés, Jesús-Maria Silva Sanchéz eVera Regina Pereira de Andrade, nos aspectos jurídicos penais e criminológicos. A pesquisa faz parte do projeto de dissertação de mestrado do autor e encontra-se parcialmente concluída.

This paper presents the analysis and scope of the proposed criminalization of homophobia in Brazil, embodied in the PLC 122/2006. Aims to discuss the feasibility of using the criminal standard, and thus the apparatus of the criminal justice system as a way of coping violence against sexual minorities and to assert their fundamental rights. To do so, through a literature search and document data were collected on sexual diversity and homophobia in Brazil and performed a literature review about the fundamentals of the criminal justice system, the rationality of the criminal law, criminal expansionism, the symbolic function of law criminal law, observance of the principles of criminal and constitutional rights. To demonstrate the reality of homophobic crimes in Brazil was taken as reference data published annually by the Grupo Gay da Bahia. As for placing homophobia as a social phenomenon, the research sought to Homophobia and Sexual Diversity in Brazil - Intolerance and Respect for Sex Differences, held by Abramo Foundation, through its Center for Public Opinion (NOP), in partnership with German foundation Luxemburg, in which we tried to identify and measure the prejudice against LGBT people considering the perception of the community and society in general. This work also has the theoretical reference José Luis Díez Ripollés, Jesus-Maria Silva Sanchez and Vera Regina Pereira de Andrade, in criminal law and criminological aspects. The research project is part of the dissertation of the author and is partially completed.

Palavras-Chave: Homofobia; Criminalização; Fundamentais; Simbolismo Penal.

Keywords: Homophobia, Criminalization, Fundamental Rights, Criminal Symbolism.

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Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Especialista em Direito Processual pela UNAMA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Professor de Direito Penal e Direitos Humanos do curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Pio Décimo e da Pós-Graduação Lato Sensu em Direito da Universidade Tiradentes (Aracaju-SE). E-mail: [email protected]. TU

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1. Considerações Iniciais Marco distintivo dos Estados Modernos que emergiram a partir da derrocada do Estado Absolutista, o primado da legalidade ainda não se consolidou em definitivo no Estado brasileiro. Nesse sentido, vale ressaltar a contribuição do movimento do constitucionalismo que justifica o princípio da legalidade como estruturante do Estado de Direito na convicção de que todos os seres humanos têm direito a ser igualmente respeitados, pelo simples fato de sua humanidade, nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, como regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada2. T

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Por conseguinte, a tutela constitucional de proteção dos direitos fundamentais pelo ordenamento jurídico brasileiro deve pautar-se na universalidade, na aplicação imediata e na garantia do valor dignidade da pessoa humana para todos os indivíduos independentemente de quaisquer formas de discriminação. Diante disso, adota-se o pressuposto teórico de que a sexualidade integra a própria condição humana e, dessa forma, entende-se que a realização do indivíduo como ser humano perpassa no respeito ao exercício de sua sexualidade, incluindo a liberdade sexual e como corolário a livre orientação sexual. Neste sentido, a sexualidade é, assim, um elemento integrante da própria natureza humana, seja individualmente, seja genericamente considerada. Sem liberdade sexual, sem o direito ao livre exercício da sexualidade, sem opção sexual livre, o indivíduo humano – e, mais amplamente, o próprio gênero humano – não se realiza, resta marginalizado, do mesmo modo quando lhe falta qualquer outra das chamadas liberdades ou direitos fundamentais3. (DIAS, 2000, p.164). T

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Todavia, ao analisar o direito à livre orientação sexual numa perspectiva ontológica observa-se que, de fato, um breve levantamento nos registros das investigações policiais e nas manifestações jurisprudenciais nesta seara, leva, inequivocamente, à constatação de que há um considerável descompasso entre os casos de autoria de crimes homofóbicos e a efetiva punição de seus responsáveis, especialmente quando diz respeito a casos que envolvem indivíduos de classe menos favorecidas e/ou de vítimas que não possuem sua orientação sexual publicamente clarificada por temer as repercussões sociais do preconceito e da discriminação à sua sexualidade. Tem-se presente, portanto, o fenômeno da cifra oculta nesses tipos penais, mas as razões determinantes para ocorrência de tal fenômeno certamente guardam uma especificidade das mais

2

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva, p.12, 2008.

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DIAS, Maria Berenice. Liberdade sexual e os Direitos Humanos. Revista Jurídica da Universidade de Franca, n.

05, ano 03, p. 164, novembro, 2000.

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interessantes, a saber, a reiteração do olhar seletivo das agências de controle penal na tipificação e na apuração dos crimes, bem como na punição dos respectivos agentes. Considerando que toda sociedade possui uma estrutura de poder (político, econômico e social) com setores da sociedade mais próximos ou mais distantes dos núcleos de poder, é esse grau de aproximação ou de mais estreita identificação com as estruturas ou agentes que as operam que definirá as condições de maior ou menor vulnerabilidade de alguém ao praticar conduta tipificada em norma penal sujeitar-se ao poder punitivo estatal. Vale destacar que os casos pontuais que se afastam desse cenário, ou seja, situações que são apresentadas à sociedade pelo espetáculo midiático, seja pela posição de prestígio social e/ou econômico da vítima, seja pela suposta comoção pública com o ato de violência noticiado. Ainda na seara da intervenção estatal penal, um fenômeno que merece registro é a defesa da criminalização da homofobia pelos movimentos sociais reivindicadores dos direitos das minorias sexuais, os quais de forma teoricamente contraditória à afirmação histórica dos direitos humanos apoiada nas liberdades públicas, no garantismo e na menor intervenção estatal penalista, reafirmam o ideário do direito criminal máximo, da hiperinflação legislativa, do recrudescimento das penas e do direito penal simbólico. Assim, analisar as razões determinantes para o descompasso entre o campo da normatividade e da efetividade do controle penal das condutas ofensivas a minorias sexuais com base na homofobia, é questão das mais relevantes e prementes. É nesse panorama que o presente artigo busca discutir se a estratégia de criminalização da homofobia é a forma mais adequada para o enfrentamento da violência homofóbica, se existe a real necessidade de criminalização primária desta conduta considerados os institutos penais normativos já existentes, a exemplo do art. 121, §2º, CP, que tipifica o homicídio qualificado, e ainda o foco dado pelos movimentos sociais de defesa dos direitos humanos no enfrentamento dos atos de violência contra as minorias sexuais.

2. Um Cenário da Violência Homofóbica Preliminarmente, é oportuno registrar que inexistem números oficiais na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República acerca dos crimes motivados por homofobia. Diante disso, com o propósito de apresentar um panorama da violência homofóbica no Brasil recorre-se ao Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais elaborado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) e à pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil – Intolerância e Respeito às Diferenças Sexuais, realizada pela Fundação Perseu Abramo, por meio de seu Núcleo de Opinião Pública (NOP), em parceria com a fundação alemã Rosa Luxemburgo, na qual se procurou identificar e medir o preconceito contra a população LGBT considerando a percepção da própria comunidade e da sociedade em geral. 1247

Segundo o último relatório divulgado pela ONG baiana, em 2010, foram documentados 260 T

assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil, 62 a mais que em 2009 (198 mortes), um aumento 113% nos últimos cinco anos (122 em 2007). Dentre os mortos, 140 gays (54%), 110 travestis (42%) e 10 lésbicas (4%). O Brasil confirma sua posição de campeão mundial de assassinatos de homossexuais: nos Estados Unidos, com 100 milhões a mais de habitantes que nosso país, foram registrados 14 assassinatos de travestis em 2010, enquanto no Brasil, foram 110 homicídios. Anota ainda o supracitado relatório que nos três primeiros meses de 2011 já T

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foram documentados 65 homicídios contra homossexuais . T

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Ainda conforme os dados apurados pelo Grupo Gay da Bahia, o Estado Baiano pelo segundo ano consecutivo lidera a lista com 29 homicídios, seguida de Alagoas, com 24 mortes, Rio de Janeiro e São Paulo com 23 cada. Rio Grande do Norte e Roraima registraram apenas um assassinato cada. Se relacionarmos a população total dos Estados com o número de LGBT assassinados, aponta o relatório, Alagoas repete a mesma tendência dos últimos anos: é o Estado que oferece maior risco de morte para os homossexuais, cujo número de vítimas ultrapassa o total de todos os estados juntos da região Norte do país. Maceió igualmente é a capital onde mais gays são assassinados: com menos de um milhão de habitantes, registrou 9 homocídios(sic), contra 8 em Salvador (população de 3 milhões de habitantes) , 7 no Rio de Janeiro (população de 6 milhões de habitantes) e surpreendentemente, 3 mortes na cidade de São Paulo, com 10 milhões de habitantes. Destaque para a região Nordeste como sendo a mais homofóbica: abriga 30% da população brasileira e registrou 43% dos LGBT assassinados. 27% destes crimes letais ocorreram no Sudeste, 9% no Sul, 10% no Centro-Oeste, 10% no Norte. Por conseguinte, conclui o relatório que o risco de um homossexual do Nordeste ser assassinado é aproximadamente 80% mais elevado do que no sul/sudeste 36% destes homicídios foram cometidos nas capitais, 64% nas cidades do interior. Já quanto à idade, 7% das vítimas eram “menor de idade” ao serem assassinados, 14% com menos de 20 anos; 46% menos de 30 anos, 6% na terceira idade. A faixa etária que apresenta maior risco de assassinato situa-se entre 20-29 anos: 28%. A vítima mais nova tinha 14 anos: a travesti Érica, morta com 14 tiros no Centro de Maceió e o mais velho, Josué Amorim, 78 anos, aposentado, assassinado por três rapazes a golpes de facão em sua residência em União dos Palmares (AL). Por fim, tem-se que 43% dos homossexuais foram mortos a tiros, 27% com facas, 18% vítimas de espancamento ou pedrada e 17%, sufocados ou enforcados. Vários destes crimes revelam o ódio da homofobia, sendo praticados com requintes de crueldade, tortura, empalamento ou castração. A partir dos dados acima explicitados, inferem-se os aspectos de violência física a qual as minorias sexuais estão expostas no cotidiano brasileiro. No entanto, não menos importantes são 4

Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais no ano 2011. Disponível em: http://www.ggb.org.br/Assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20Brasil%20relatorio%20geral%20completo.html. Acesso em: 22/11/2011. TU

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os dados auferidos na pesquisa Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil5 que apontam para um T

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cenário de violência do discurso, de negação de direitos e de preconceito velado da população brasileira em geral contra LGBT. Nessa pesquisa foi verificado que, para 70% da população em geral, a discriminação contra LGBT é ou seria um problema das pessoas, não exigindo nenhuma ação do governo para combater essa situação. 54 % da população em geral não sabe da existência de lei no Brasil que considere crimes atos de discriminação contra LGBT e 83% não conhece ou nunca ouviu falar do Programa do Governo Federal “Brasil sem Homofobia”. Ademais, destaque-se que somente 5% dos entrevistados da população geral acredita que os direitos de LGBT’s são totalmente respeitados no Brasil, o que denota uma crença social de que a criação ou a efetividade dos direitos das minorias sexuais não seriam problemas do Estado, legitimando um discurso discriminatório socialmente aceito pela maioria. Em contrapartida, ficou evidenciado que, para 33% dos LGBT’s entrevistados, a criação de leis criminalizando a homofobia deveria ser a medida a ser adotada pelo governo. Para 59% desse mesmo segmento existe lei no Brasil que considere crimes atos de discriminação contra LGBT e 51% desse mesmo segmento não conhece ou nunca ouviu falar do Programa “Brasil sem Homofobia”, o que aponta para uma carência de conscientização dos direitos e das políticas públicas do governo federal de curto, médio e longo prazo previstas para as minorias sexuais. Outro aspecto relevante apontado pela pesquisa é o descompasso entre percentual médio de 90% da população em geral quando questionada acerca da existência de preconceito na população geral contra LGBT e o percentual de 70% desse mesmo universo que afirma não ter preconceito contra LGBT, quando perguntado sobre a admissão de preconceito pessoal contra as minorias sexuais. Tal situação revela uma notória incongruência do discurso dos entrevistados e a existência de forte preconceito velado contra LGBT. Diante disso, é constatada uma cultura homofóbica que se manifesta no tratamento violento sofrido pelas minorias sexuais, seja por meio da violência física, seja através da violência do discurso, da estrutura heteronormativa e das práticas institucionalizadas de preconceito e discriminação a essas minorias. Dessa forma, considerando os marcos do Estado Democrático de Direito e de um Direito Penal Mínimo, entendido como última instância de resolução de conflitos, o problema que se impõe para enfrentamento dessa violência não é o processo de criminalização da homofobia, mas de efetividade das leis penais e processuais penais já vigentes. 3. A Criminalização da Homofobia como Estratégia de Enfrentamento da Violência contra as Minorias Sexuais Observa-se que a partir de meados dos anos 90 do século XX até a atualidade, parte da doutrina internacional (com destaque para os Estados Unidos e a Inglaterra) sobre criminalização, 5

VENTURI, Gustavo; BOKANY, Vilma (orgs.). Diversidade Sexual e Homofobia no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, p.193-251, 2011.

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segurança pública e justiça penal tem substituído a política criminal fundamentada na tradição liberal dos direitos humanos e no ideal de ressocialização do criminoso para uma política penal mais recrudescedora, expansionista e agora mais voltada para a defesa social no enfrentamento do crime6. Assim, considerando a atual sociedade de riscos, configura-se uma situação em que o T

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controle, a prevenção e a gestão de riscos gerais são vistos como tarefas que devem ser assumidas pelo Estado e este as assume efetivamente de modo relevante. As características desses novos riscos são tanto suas grandes dimensões como a indeterminação do número de pessoas potencialmente ameaçadas. Diante desses novos riscos, a sociedade apresenta uma forte demanda de segurança por parte do Estado e este tem respondido com o recurso penal de criminalização de comportamentos que se desenvolvem nessas novas esferas de risco7. No T

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entanto, vale ressaltar que ainda assim o funcionamento do sistema penal não perdeu as suas principais características, a saber, a seletividade e a estigmatização de seu público alvo. Outro aspecto que não deve ser negligenciado é o lugar comum que se converteu a alusão a que o Direito Penal está “em crise”. Tal afirmação se respalda, segundo Sánchez, dada a frequência com que são iniciadas as exposições de temas de fundamento ou de política criminal abordando os motivos de referida crise e seus contornos concretos. Apesar de reconhecer a parcela de razão que assiste a tais concepções, Sánchez adota a hipótese de que classificar a “crise” como um fenômeno característico unicamente do Direito Penal contemporâneo é incorreto ou, no mínimo, inexato8. T

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A crise, em realidade, é algo congênito ao Direito Penal como conjunto normativo, surgido da ilustração e plasmado nos primeiros Estados de Direito. Neles, com efeito, a antinomia entre liberdade e segurança (expressa no âmbito penal na tensão entre prevenção e garantias, ou mesmo entre legalidade e política criminal), começa a não ser resolvida automaticamente em favor da segurança, da prevenção; assim, já se detecta um princípio de crise, de tensão interna, que permanece em nossos dias. [...] tal crise ou tal tensão permanente não constitui, em si, um fenômeno negativo; ao contrário, provavelmente é este o motor que impele a evolução do Direito Penal. Uma evolução que, segundo compreendo, apresenta traços significativamente dialéticos, e se plasma em sínteses sucessivas de caráter ascendentemente humanitário e garantista, ainda que alguns momentos de antíteses possam exigir reflexão. Mais que a própria realidade, portanto, seria negativo tentar ocultá-la, criando cortinas ideológicas que tratam de aparentar harmonia justamente onde essencialmente há um confronto”9. T

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É sob esse pano de fundo do expansionismo penal que, ao se referir a pauta do Congresso Nacional em matéria de política criminal entre os anos de 1989 e 2006, Marcelo da Silveira Campos constata em sua pesquisa que nela foram apresentadas coexistências na política 6

CAMPOS, Marcelo da Silveira. Crime e Congresso Nacional: Uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006. São Paulo: IBCCRIM, p.06, 2010.

7

MARTIN, Luis Gracia. Prolegômenos para a Luta pela Modernização e Expansão do Direito Penal e para a Crítica do Discurso de Resistência. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, p.49, 2005.

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SÁNCHEZ, Jesús-Maria Silva. Aproximação ao Direito Penal Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.29, 2011. 9

Idem, p.30.

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criminal entre criminalização, recrudescimento penal e leis que despenalizaram ou buscaram efetivar direitos dos réus. Apesar da coexistência ou (e) sobreposição entre estes domínios na política criminal, o Parlamento e o Executivo “escolhem” o uso simbólico do Direito Penal como forma fundamental de resolução de conflitos, a partir de demandas estatais (ou da sociedade civil) por maior (ou mais pesada) criminalização de condutas10. T

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Constata-se o movimento de expansão do Direito Penal nas leis que criminalizaram condutas, antes não criminalizáveis, em cinco normas: criminalização do racismo, lavagem e ocultação de bens; crimes ambientais; criação do código de defesa do consumidor; e a que definiu os crimes contra a ordem econômica, tributária e as relações de consumo. Em seguida verifica-se o processo penal de emergência, também chamado de uso simbólico do Direito Penal através do recrudescimento penal para determinados crimes, têm-se como exemplos as Leis de Crimes Hediondos; Leis contra o denominado “Crime Organizado”, totalizando cinco normas. Seriam, portanto, tendências de cunho repressivo inspiradas no movimento law and order11. T

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O movimento dos homossexuais cresceu no Brasil na década de 90 com o impulso nas ruas, a organização de passeatas e atos de protesto. É oportuno lembrar que esse segmento possui demandas específicas e diferentes dos demais movimentos de gênero que focam suas ações nas relações entre homens e mulheres. Numa sociedade marcada pelo preconceito, pela discriminação e pelo machismo. As minorias sexuais além da discriminação, “são criminalizados, alvos de atentados à vida, são perseguidos e morrem em atentados de grupos fascistas e nazista”12. Por isso, com o intuito de dar visibilidade à causa dessas minorias, foram criadas e T

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intensificadas as paradas gays, as quais seja pela a forma com que a mídia retrata o evento, seja pelo próprio nível de compromisso dos participantes com as pautas políticas do segmento, não é raro o descrédito desse tipo de manifestação para os políticos e até mesmo a sociedade civil. Todavia, vale registrar que o tema “Homofobia é crime”, foi levado à Avenida Paulista na Parada de 2006 e a partir daí foi intensificada a pressão por parte dos militantes LGBT para aprovação do PCL 122/2006 que versa sobre a criminalização da homofobia. Posteriormente, em 2008, foi realizada a 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em Brasília, que marcou a inclusão da comunidade LGBT em políticas públicas específicas para o segmento de curto, médio e longo prazo, consolidadas no Programa “Brasil sem Homofobia”, como desdobramento do Plano Nacional de Direitos Humanos do Governo Federal. Assim, apesar do clamor da população LGBT pela criminalização da homofobia em uma lei específica, é preciso discorrer sobre pelo menos dois aspectos: o primeiro é a necessidade de se (re)discutir a função legitimadora do Direito Penal, em que deve limitar-se ao mínimo necessário, não podendo ser utilizado para finalidades utilitaristas e simbólicas, o Direito Penal somente 10

CAMPOS, Op. cit, p.07.

11

Idem , p.122.

12

GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil Contemporâneo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, p. 99, 2010.

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estará legitimado quando desviar sua atenção para a criminalidade graduada, altamente lesiva aos valores constitucionais, e o tratamento executivo-penal daquela cidadão submetido a esta fatia repressiva do Direito esteja aparelhado para o ideal tratamento13; o segundo é a T

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racionalidade das leis penais e a dinâmica legislativa penal na qual se dá a criminalização primária de condutas e que se estrutura em três fases do processo legislativo: pré-legislativa, legislativa e pós-legislativa. A fase pré-legislativa tem início quando se problematiza socialmente a falta de relação entre a realidade social e sua correspondente resposta jurídica, e termina com a apresentação de um projeto ou proposta de lei diante da Câmara. A fase legislativa começa com a recepção pelas casas legislativas da proposta legal, e finaliza com a aprovação e publicação da lei. Por último, a fase pós-legislativa se inicia com a publicação da norma e termina, fechando o círculo, com o questionamento pela sociedade em geram, ou por grupos relevantes da mesma, sobre se a lei guarda adequada relação com a realidade social e econômica que pretende regular. Embora estruturalmente a fase legislativa constitua o núcleo do processo, já que nela propriamente que se toma a decisão legal, enquanto as outras fases se limitam a preparar e avaliar o processo decisório, [...] resulta equivocado subestimar a relevância operativa das fases restantes, principalmente da fase pré-legislativa14. T

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Por conta da importância da fase pré-legislativa destaca acima, entende-se que é também necessário rediscutir o conceito de direito. Lembre-se que o gênero a que o direito pertence é o dos complexos normativos que regulam as ações livres (dependentes da vontade) dos homens. Em decorrência disso, a questão principal reside na diferença específica do direito em relação às outras ordens normativas que também regulam estas ações (religião, moral, bons costumes, boa educação). É comum a opinião de que a diferença específica reside na coercibilidade estadual das normas jurídicas. Esta opinião liga indissociavelmente direito e Estado e, por isso, é característica das concepções legalistas do direito, marcadas por limitações e irrealismo. Mas há mais. Será, realmente, que basta que o Estado ameace, com uma sanção, quem violar uma norma, para que, por esta simples característica externa (ou formal), essa norma se torne numa norma jurídica? Por outras palavras: não haverá nada de substancial, de interno – como, por exemplo, uma certa fonte de legitimidade (gerando uma razão específica para obedecer), a referência a um certo valor a proteger (a uma certa finalidade a prosseguir), distinto dos outros, protegidos (ou prosseguidos) por outras ordens normativas -, no conceito de direito? E será que, por outro lado, tudo o que estiver privado dessa estampilha estadual está, irremediavelmente, fora do direito? Perguntar isto significa, nomeadamente, questionar se o direito não se distingue por estar ao serviço (por ter

13

SBARDELOTTO, Fábio Roque. Direito Penal no Estado Democrático de Direito: Perspectivas (re)legitimadoras. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 204, 2001. 14

RIPOLLÉS, José Luis Díez. A Racionalidade das Leis Penais: Teoria e Prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 19, 2005.

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como função assegurar a realização) de certos valores específicos (digamos, a justiça deste mundo, a ordem da cidade), seja ele formulado por quem for15. T

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É sob essa pauta reivindicativa de direitos fundamentais das minorias sexuais e o supramencionado panorama legislativo penal que se insere a criminalização primária proposta pelo PLC 122/2006 o qual, segundo seus defensores, está amparado constitucionalmente no mandamento constitucional criminalizador do art. 5º, XLI, da Constituição Federal, in verbis: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e na vedação de quaisquer formas de discriminação, conforme o art. 3º, IV, da Carta Magna. Palazzo ao se referir ao problema das obrigações constitucionais de criminalização, afirma que as vertentes orientadas no sentido de criminalização traduzem a expressão de uma visão bem diversa do papel da Constituição no sistema penal: as obrigações de tutela penal no confronto de determinados bens jurídicos, não infrequentemente característicos do novo quadro de valores constitucionais e, seja como for, sempre de relevância constitucional, contribuem para oferecer a imagem de um Estado empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecução de maior número de metas propiciadoras de transformação social e da tutela de interesses de dimensões ultraindividual e coletivas, exaltando, continuamente, o papel instrumental do direito penal com respeito à política criminal, ainda quando sob os auspícios – por assim dizer – da Constituição. As manifestações mais unívocas no sentido da criminalização provêm das chamadas “cláusulas expressas de penalização”16. (grifos do autor) T

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Cabe destacar o entendimento de que a obrigatoriedade de criminalização decorrente da Constituição não se coaduna com os princípios informadores de um Direito Penal mínimo, devendo a Constituição não ser tomada como fundamento do Direito Penal, mas como seu limite. E dessa forma, a consagração constitucional do bem jurídico não importa em obrigatoriedade de incriminação, pois há outras formas de tutela dos mesmos que não pela via penal17. T

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No entanto, independentemente de se analisar a extensividade da interpretação do mandamento constitucional criminalizador supracitado à luz de uma concepção de Direito Penal Mínimo, entende-se que a lei a qual se reporta o supracitado mandamento criminalizador, especialmente no que se refere ao crime de homicídio motivado por homofobia já existe, é o próprio Código Penal em seu art. 121, §2º e seus incisos ao qualificar o homicídio cometido por motivo fútil ou motivo torpe. Assim, compreende-se que a criminalização dos homicídios homofóbicos reitera norma penal já existente, destaca a importância do símbolo como forma de prevenção geral do delito e 15 HESPANHA, António Manuel. O Caleidoscópio do Direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2. ed. Coimbra: Almedina, p. 81, 2009. 16

PALAZZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, p.103, 1989. 17

PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.9, 2003.

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de dar visibilidade social da causa LGBT. Ou seja, tal situação aponta para a ilusão de segurança jurídica apoiada no direito penal simbólico caracterizado pela oposição clara entre o declarado na norma jurídica e o latente na realidade social. Em outras palavras, é evidente o engano entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido. No entanto, afirmar que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica (e não empírica) destas18. T

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Vale ressaltar ainda que para a crítica, Direito penal moderno em geral é sinônimo de Direito penal simbólico, no qual essa função simbólica, assim como a produção de certos efeitos simbólicos, são consubstanciais ou inerentes a toda lei penal, e, ademais, que os mesmos têm que ser reconhecidos, em princípio, como legítimos. Entretanto, “a opinião dominante considera que os efeitos simbólicos do Direito penal teriam uma valoração negativa quando comprovado que sua produção constitui a única finalidade real da lei penal, ou quando predominem de modo relevantes sobre os efeitos instrumentais”19. T

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4. Efetivação de Direitos Fundamentais das Minorias Sexuais: Ausência de Normatividade ou Uma Questão de Vontade Política? Diante disso, os movimentos de direitos humanos, e especialmente o das minorias sexuais, apresentam-se num impasse de reivindicações contraditórias, se por um lado criticam a radicalização repressiva e demandam uma (re)legitimidade da intervenção do sistema penal proveniente do Lei e Ordem; por outro demandam intervenção penal, como primeira instância de resolução de conflitos, para fazer valer de forma diferenciada os seus direitos fundamentais. E dessa maneira, retroalimentam a história da legitimação do sistema penal apesar do fracasso já apontado na dialética do verdadeiramente desejado da norma penal e o diversamente acontecido. O que se propõe como primeiro passo para uma possível solução do problema da efetividade dos direitos humanos e/ou fundamentais das minorias sexuais é o enfrentamento ao preconceito institucionalizado nas instâncias de poder que devem assegurá-los. Uma vez que no contexto das Nações Unidas, a legitimação dos “direitos sexuais” das mulheres não foi acompanhada por avanços equivalentes no que se refere aos direitos da diversidade sexual (homossexuais, lésbicas, bissexuais, transexuais, transgêneros, trabalhadoras e trabalhadores do sexo). Nos debates das Nações Unidas se constata um persistente clima de homofobia institucional, marcado pela negativa de inclusão da orientação sexual como base injustificável de discriminação e intolerância, pela objeção quanto à participação da representante da Comissão 18

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 293, 2003. 19

MARTIN, Op. Cit., p.105.

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Internacional para os Direitos Humanos de Gays, Lésbicas e Trasngêneros em uma mesaredonda envolvendo governo e sociedade civil e a acreditação da Internacional Lesbian and Gay Association (Ilga) também foi questionada pela Conferência Islâmica Internacional durante a preparação para Conferência Internacional contra o Racismo, Discriminação Racial e Formas de Intolerância20. T

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Além disso, para que tais direitos das minorias sexuais se efetivem no âmbito interno é indispensável vontade política manifestada no equilíbrio entre democracia, enquanto vontade da maioria, e constitucionalismo, como limites ao arbítrio e proteção às minorias. Em outras palavras, é necessário compromisso institucional das instâncias de poder com a pauta de direitos fundamentais constitucionalmente positivada para todos, além do papel da mídia e da conscientização e comprometimento da sociedade civil com a efetividade dos referidos direitos. Diante dessas premissas, pode-se inferir que talvez, a concepção de direito como instrumento de punição que impregna nossa cultura explica, parcialmente, a falta de uma discussão sistemática na fase pré-legislativa de criminalização primária, entre os atores do campo, quanto aos significados, limites e riscos da lei penal. Além disso, Côrrea afirma que a corrente intelectual pós-moderna forneceu aos atores da política sexual um poderoso instrumental analítico para compreender os mecanismos através dos quais instituições, leis, percepções e práticas sociais eram fontes de exclusão e estigma. Mas não oferece alternativas fáceis para programas de mudança social, cultural e política na medida em que expressa um marcado ceticismo em relação à concepção clássica do “sujeito político” – universal, racional, autoconstituído – bem como em relação à “lei” e ao “direito” como instrumentos potenciais de correção de injustiças.

Diante disso, infere-se que o problema, especialmente quando se trata de homicídio motivado por homofobia, não é de ausência de normatividade, mas de ausência de vontade política no processo de criminalização secundária (aplicação da pena) e de (dis)funcionamento do sistema penal, quando o Tribunal do Júri de forma soberana não reconhece a homofobia, como um motivo fútil ou torpe, o que inevitavelmente qualificaria o crime de homicídio.e em conseqüência etiquetaria como um crime hediondo, sem a necessidade de norma penal específica para isso. Dessa forma, com o propósito de possibilitar uma exposição mais técnica dos atores jurídicos e minimizar a influência de preconceitos e discriminação no julgamento, poderia se discutir a viabilidade de uma reformulação no mecanismo de formação do júri, mas tal aspecto não faz parte do escopo do presente artigo.

5. Considerações finais 20

CORRÊA, Sonia. Cruzando a linha vermelha: questões não resolvidas no debate sobre direitos sexuais. Horizontes Antropológicos, n 26, ano 12, p. 103, jul/dez 2006.

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Adotando como premissa que as conquistas do Estado de Direito conseguidas com tanto custo, não podem ser afastadas diante de contingências políticas ou do clamor social. O respeito aos princípios fundamentais constitucionais penais e processuais penais deve ser resguardado com toda a firmeza, mesmo diante dos mais intensos brados pela punição irracional e a qualquer custo. Isso não quer dizem impunidade ou complacência com condutas criminosas. Ressalta tão somente a necessidade do mais estrito compromisso com o texto legal para o enfrentamento do práticas delitivas. A consolidação de um sistema democrático impõe ao poder público o respeito às normas que ele mesmo produz. Dessa forma, entende-se que a defesa da criminalização da homofobia é incompatível com a afirmação histórica dos direitos e garantias fundamentais, em especial com o desenvolvimento do (neo)constitucionalismo, uma vez que eles foram construídos, através de uma agenda reivindicativa de direitos pelos movimentais sociais, como forma de impedir a intervenção estatal nas liberdades individuais. Assim, os movimentos sociais de minorias sexuais passam a negar a historicidade dos direitos fundamentais, reiteram e legitimam as políticas estatais de maior intervenção do direito penal pautadas no recrudescimento das penas, na hiperinflação legislativa, na adesão a um direito penal simbólico e na própria seletividade do sistema punitivo das quais essas mesmas minorias são vítimas. Além disso, os institutos normativos existentes no Direito Penal brasileiro, a exemplo das qualificadoras do homicídio previstas no art. 121, § 2º, do Código Penal, e das circunstâncias judiciais consideradas na fixação da pena do agente, dispostas no art. 59, caput, do Código Penal, já tutelam os bens jurídicos requeridos pelas minorias sexuais e influenciam na majoração da pena em concreto, nos casos de crimes homofóbicos. Consequentemente, não há necessidade de elaboração de novas leis penais com a mera finalidade de dar visibilidade à causa da violência motivada pela discriminação fundada na orientação sexual e de reforçar um simbolismo do direito penal, uma vez que o foco a ser dado pelos movimentos sociais de defesa dos direitos das minorias sexuais não deve estar centrado no campo da normatividade com a defesa de mudanças nas leis penais, mas antes no campo da efetividade diante da constatação de que a desfuncionalidade do sistema de justiça criminal favorece o incremento dos índices da cifra oculta de crimes dessa natureza ou da impunidade daqueles que chegam a ser processados pelo aparato do sistema penal. Por fim, a defesa da criminalização da homofobia pelos supracitados movimentos sociais legitima o discurso de uma maior intervenção penal do Estado através de hiperinflação legislativa e maior recrudescimento de penas, o que se confronta com os fundamentos do Estado Democrático de Direito e do Direito Penal Mínimo pautados no princípio da intervenção penal mínima do Estado e no respeito às garantias constitucionais e processuais penais.

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Referências bibliográficas ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. CAMPOS, Marcelo da Silveira. Crime e Congresso Nacional: Uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006. São Paulo: IBCCRIM, 2010. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. CORRÊA, Sonia. Cruzando a linha vermelha: questões não resolvidas no debate sobre direitos sexuais. Horizontes Antropológicos, n 26, ano 12, jul/dez 2006. DIAS, Maria Berenice. Liberdade sexual e os Direitos Humanos. Revista Jurídica da Universidade de Franca, n. 05, ano 03, novembro, 2000. GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil Contemporâneo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010. HESPANHA, António Manuel. O Caleidoscópio do Direito: o direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2009. MARTIN, Luis Gracia. Prolegômenos para a Luta pela Modernização e Expansão do Direito Penal e para a Crítica do Discurso de Resistência. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2005. PALAZZO, Francesco C. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989. PASCHOAL, Janaína Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal Mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. RELATÓRIO ANUAL DE ASSASSINATO DE HOMOSSEXUAIS NO ANO 2011. Disponível em: http://www.ggb.org.br/Assassinatos%20de%20homossexuais%20no%20Brasil%20relatorio%20geral%20co U

mpleto.html. Acesso em: 22/11/2011. U

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O Poder Judiciário e o Direito Social à Saúde do Preso: estudo de caso Rogério de Araújo Lima1 T

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Resumo

Abstract

A judicialização do acesso à saúde no Brasil tem avançado significativamente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que assegura a todos o direito social à saúde e atribui ao Estado o dever de garanti-la a toda a população, sobretudo àqueles em condições de vulnerabilidade, a exemplo dos apenados, que devem ser assistidos, no próprio estabelecimento prisional, por equipe multidisciplinar de saúde. É nesse contexto que se desenvolve o presente trabalho, tendo-se eleito como objeto a manifestação do Poder Judiciário em decorrência de Ação Civil Pública (Autos nº 000307419.2003.8.20.0101), na qual se propugna pelo cumprimento, por parte do Estado-membro do Rio Grande do Norte, da prestação e manutenção de assistência à saúde dos apenados do Presídio Regional do Seridó, localizado no Município de Caicó. O escopo é verificar, no bojo dos pronunciamentos dos membros do Poder Judiciário em tal Processo, o discurso acerca dos direitos humanos e a garantia da sua efetivação em face da omissão do Poder Público estadual. Verificar-se-á, ainda, a atual interpretação do Poder Judiciário pátrio relativa aos institutos da “reserva do possível” e do “mínimo existencial”, recorrentes nos processos que buscam garantir a efetividade dos direitos sociais. Para tanto, será realizada uma revisão das decisões proferidas no Processo, analisando-se o eixo argumentativo das mesmas, além de outros elementos relevantes, tais como as referências bibliográficas existentes nas decisões dos agentes políticos e sua relação com a defesa, promoção e efetividade dos direitos humanos.

The judicialization of access to health care in Brazil has advanced significantly since the promulgation of the 1988 Federal Constitution, which guarantees everyone the right to health and social attributes and to the State the duty to guarantee it to all people, especially those in vulnerable conditions, like the inmates, who must be assisted in their own prison by a multidisciplinary health team. In this context, this paper develops, having been elected as its object the manifestation of the judiciary as a result of public civil action (case No. 0003074-19.2003.8.20.0101), in which he advocates for compliance by the State of Rio Grande do Norte, the provision and maintenance of health care for the inmates of the Seridó Regional Prison, located in the city of Caicó. The scope is to verify, in the midst of the statements of members of the judiciary in this process, the discourse about human rights and ensuring their effectiveness in the face of failure of the State Government. It will be also checked the current interpretation of the Judiciary on parental institutes of "possible reserves" and "existential minimum", recurring processes that seek to ensure the effectiveness of social rights. To this end, there will be a review of decisions in the Process, analyzing the argumentative axis thereof, and other relevant factors, such as the existing references in the decisions of politicians and their relation to the protection, promotion and effectiveness of human rights.

Palavras-Chave: Direito à saúde; Saúde do preso; Poder Judiciário.

Keywords: Right to health; Health of the prisioner; Judiciary.

1

Professor Assistente III e Chefe do Departamento do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em Direito Tributário pala Universidade Anhanguera-UNIDERP. Ex-Coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos no Estado da Paraíba (MNDH/PB). Ex-Coordenador da Campanha Nacional de Combate à Tortura e à Impunidade no Estado da Paraíba. Membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Advogado. E-mail: [email protected].

1258

1. Introdução Ao analisar como a sociedade financia o Estado para que este implemente os direitos humanos, Fernando Facury Scaff2 traça com clareza a intersecção entre os vários setores que T

T

necessitam funcionar harmoniosamente para que seja alcançada a tão almejada efetividade dos destes fundamentais, principalmente aqueles cujo cumprimento requerem ação mais diretamente ligada ao dispêndio de verba pública para a sua concretização, a exemplo do direito à saúde. Para o autor: É imprescindível a realização de um esforço para que se esboce uma compreensão desses mecanismos de financiamento que a Sociedade realiza (direito tributário) a fim de permitir ao Estado (direito financeiro) a concretização dos direitos humanos (direito constitucional) estabelecidos em seu ordenamento jurídico, especialmente os de 2ª dimensão (direito econômico).

Nessa perspectiva, observa-se a predominância, no antecedente e no conseqüente da realização dos direitos fundamentais sociais, do conteúdo jurídico que, não sendo observado pela Administração Pública responsável pela oferta de tais direitos, resulta não raras vezes em ações judiciais. O magistrado sabe que existe um financiamento por parte da sociedade para o atendimento dos direitos sociais e compreende que para tanto deve haver uma dotação orçamentária que comporte tal demanda. No entanto, como se trata de políticas públicas vem à tona a faculdade de que goza a Administração Pública de traçar prioridades no planejamento e execução de tais políticas, utilizando-se do denominada “discricionariedade” administrativa. Ora, se de ato discricionário se trata, em tese não caberia ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito administrativo. Isso em tese, porque em se tratando de direitos que preservam a dignidade da pessoa humana, e em face da omissão do Estado, o Judiciário pode (e deve) decidir pela prática compulsória de uma política pública garantidora de um direito humano fundamental. E assim tem sido diante de demandas que versam acerca de exercício de direitos humanos que exigem um facere por parte do Poder Público. Até porque, diferentemente dos agentes públicos responsáveis pela realização das políticas públicas, “a função do magistrado não é discricionária, mas sim vinculada, e ele tem o dever de atuar visando a efetivar aqueles direitos3”. T

T

Assim, no contexto do discurso que o Poder Judiciário vem adotando em face das demandas que possuem conteúdo de direitos humanos em sentido estrito, optou-se pela pesquisa em torno daqueles direitos que, para serem efetivados, exigem do Estado uma prestação positiva com conseqüente dispêndio orçamentário, a saber, os direitos sociais e, especificamente, o direito fundamental social à saúde em estabelecimentos prisionais. 2

SCAFF, Fernando Facury. Como a sociedade financia o estado para a implementação dos direitos humanos no Brasil? In: SCAFF, Fernando Facury (org.). Constitucionalismo, tributação e direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, p. 2, 2007.

3

SIQUEIRA, Dirceu Pereira. Tutela coletiva do direito à saúde. Franca: Lemos e Cruz, p. 261, 2010.

1259

A metodologia de abordagem adotada para desenvolvimento do tema proposto foi o “estudo de caso”, por meio do qual se buscou aferir, a partir dos pronunciamentos do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte, o discurso que se tem adotado em face do direito à saúde do apenado e a conformidade deste discurso com a jurisprudência que vem se consolidando no Brasil. A pesquisa consistiu na análise da Ação Civil Pública identificada sob o nº 000307419.2003.8.20.0101, de 26/06/2003, ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte e no mérito da qual se propugna pelo cumprimento, por parte do Estado do Rio Grande do Norte, da prestação e regularização da assistência à saúde dos detentos e internos do Presídio Regional do Seridó, localizado no Município de Caicó/RN. Os aspectos catalogados para exame foram basicamente o direito fundamental social à saúde dos detentos e internos do Presídio Regional do Seridó e a interpretação, por parte do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte, dos institutos da “reserva do possível” e do “mínimo existencial”. Passamos a analisar cada um desses aspectos doravante.

2. Direito fundamental social à saúde do preso: estudo de caso Os direitos fundamentais sociais, direitos humanos de segunda dimensão, correspondem às “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais4”. T

T

Dentre os direitos sociais presentes na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, encontra-se o direito à saúde5, inclusive daqueles que se encontram aprisionados sob T

T

custódia do Estado. A esse respeito, a saber, a promoção dos direitos humanos no sistema penal, interessante síntese nos é apresentada por Maria Cristina Fernandes Ferreira6, que cataloga os seguintes T

T

instrumentos normativos internacionais, regionais e internos que versam sobre o tema: I – Sistema Universal: a) Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 1º, 3º, 5º, 21 e 22); b) Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigos 9º e 12); c) Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (artigos 6º, 10 e 26); d) Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (artigos 1º e 10); e) Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (artigos 9º, 10, 15 a 16, 19 a 24, 45, 62 e 63; e f) Conjunto de Princípios para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão (princípios 1, 3, 4, 6, 24 a 26); II – Sistema Regional: a) Carta da Organização dos Estados 4

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, p.285, 2004.

5

Ver artigos 6º, caput, e 196 a 200.

6

FERREIRA, Maria Cristina Fernandes. Necessidades humanas, direito à saúde e sistema penal. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Política Social. Brasília: Unb, p. 36-60, 2008.

1260

Americanos (artigos 3 e 45); b) Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (artigos 4º, 5º, 7º e 24); c) Convenção Americana para Punir e Prevenir a Tortura (artigos 5º e 7º); e d) Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigos 3º, 10 e 11); III – Sistema Nacional: a) Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (artigos 5º, III, XLVIII, XLIX, LIV, LXIII e LXIV; 6º, caput; 194 a 197); b) Lei de Execução Penal (artigos 1º, 3º, 8º, 10, 11 a 14, 40 e 41, 82 a 89, 120); e c) Resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (5/1994, 14/1994, 16/1996, 1/1995, 3/1995, 5/1999, 7/2003, 3/2004, 6/2006, 7/2006, 11/2006). Dos documentos jurídicos internos acima citados, regulamentam particularmente a saúde no sistema penitenciário as Resoluções nº 7, de 14 de abril de 2003, e nº 2, de 8 de maio de 2008, bem como a Portaria Interministerial nº 1.777, de 9 de setembro de 2003, esta criando a Equipe de Saúde do Sistema Penitenciário. Nos textos constitucionais pátrios, o direito à saúde foi previsto desde a Constituição de 1934, mas “somente com a Constituição de 1988 disciplinou-se de forma correta [...], pois foi quando ganhou destaque enquanto fundamentais7”. Todavia: T

T

[...] não se realiza na prática. Mais uma vez estamos diante de uma frustração constitucional, pois a integral saúde física e mental do homem é algo, até o momento, inalcançável. O exemplo brasileiro é esclarecedor a esse respeito, porque a incolumidade do indivíduo, nos casos de doença ou mal-estar, não tem sido, do ponto de vista efetivo, direito de todos, nem, tampouco, dever do Estado8. T

T

Uadi Lammêgo Bulos descreve, no excerto acima, um cenário fiel do contexto em que se insere o direito à saúde no Brasil atualmente, contexto no qual grassa a omissão estatal e urge a ingerência do Poder Judiciário. Dada a inércia do Poder Público no cumprimento das políticas públicas na área da saúde, coube ao Poder Judiciário se pronunciar no domínio das diversas ações civis públicas que se multiplicaram acerca do tema, construindo, com isso, o que se poderia denominar de “discurso do Poder Judiciário em face do direito fundamental social à saúde”, fenômeno que “do ponto de vista sociológico, [...] tem sido referido como processo de judicialização da política e politização da justiça9”. De fato, questiona-se: T

T

[...] Quando pode o Poder Judiciário determinar que o Estado implemente políticas públicas? Quando e como pode (se é que pode) uma sentença judicial determinar a realização de uma obra ou política pública para assegurar direito difuso ou coletivo? Até onde pode uma ordem judicial “invadir” o âmbito da discricionariedade dos atos políticos de governo?10 T

T

7

SIQUEIRA, Dirceu Pereira. Tutela coletiva do direito à saúde. Franca: Lemos e Cruz, p. 280, 2010.

8

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição federal anotada. 8 ed. São Paulo: Saraiva, p. 1338, 2008.

9

MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Ação civil pública, o direito social e os princípios. In: MILARÉ, Édis (Coord.). A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: RT, p. 563, 2005. 10

Idem, p. 150.

1261

Foram questionamentos como os acima descritos que conduziram à pesquisa em comento, optando-se, porém, pelo estudo de caso concreto, a saber, os pronunciamentos do Poder Judiciário do Rio Grande do Norte na Ação Civil Pública identificada sob o nº 0003074-19.2003.8.20.0101, da lavra do Ministério Público do Rio Grande do Norte contra o Estado do Rio Grande do Norte.

3. Poder Judiciário: entre a reserva do possível e o mínimo existencial – o caso dos detentos e internos do Presídio Regional do Seridó/RN O plano teórico por meio do qual principiamos o estudo de caso que ora passamos a descrever partiu da recorrente discussão, que avulta nos juízos monocráticos e nos tribunais, acerca dos critérios da reserva do possível e do mínimo existencial aplicáveis às ações, privadas ou coletivas, que têm como objeto a efetivação do direito social à saúde. Buscou-se observar, na prática, como o discurso acerca do direito social à saúde dos detentos e internos do Presídio Regional do Seridó foi construído pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Norte a par dos critérios da reserva do possível e do mínimo existencial. Tratou-se de análise dos pronunciamentos do Judiciário em face da Ação Civil Pública (Autos nº 000307419.2003.8.20.0101), na qual se propugna pelo cumprimento, por parte do Estado-membro do Rio Grande do Norte, da prestação e manutenção da assistência à saúde dos apenados do Presídio Regional do Seridó, localizado no Município de Caicó. Tal ação foi ajuizada em 26 de junho de 2003, tendo como objeto obrigação de fazer com pedido de antecipação de tutela. Após inúmeras diligências e atuação de cinco magistrados11, somente em 12 de agosto de T

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2010, mais de sete anos depois, foi proferida sentença, da autoria do magistrado André Melo Gomes Pereira. No mérito, o magistrado indaga “se a saúde pode ser tida como direito público subjetivo titularizado pelos cidadãos em face do Estado” (fls. 2), respondendo, ato contínuo, que “a relevância do direito fundamental social à saúde é incontestável” (fls. 2). Fundamenta o discurso que passa a construir com a teoria da efetivação dos direitos humanos de Norberto Bobbio, no contexto da qual questiona “se seria realmente direito um direito cuja efetivação é adiada sine die” (fls. 3), se porventura os direitos prestacionais, que exigem uma atuação positiva do Estado, ficassem sempre na pendência de numerário suficiente, na visão do Poder Público, para a sua efetivação. Como contraponto, citando Robert Alexy, faz menção a parte da doutrina estrangeira que “considera que a efetivação desses direitos estão sujeitos a eleições de índole legislativa e 11

Tânia Vilaça, Rossana Maria Andrade de Paiva, Luiz Antônio Nascimento, Maria Soledade de Araújo Fernandes e André Melo Gomes Pereira.

1262

administrativa a serem exercidas pelo Legislativo e Executivo, o que impediria a exigibilidade judicial desses direitos” (fls. 03), retirando-lhes o caráter de direito público subjetivo. Arremata o raciocínio originário fundamentado na doutrina de Ingo Wolfgang Sarlet e Andréas Krel, vociferando afirmativamente a qualidade de direito público subjetivo do direito fundamental social à saúde (fls. 3). Trabalha, ainda, os conceitos de mínimo existencial e dignidade da pessoa humana em Ricardo Lobo Torres e Eduardo Ramalho Rabenhorst, respectivamente (fls. 04), Doutrinariamente munido dos fundamentos que conduziriam o seu discurso ao dispositivo da sentença, passa o magistrado à fase de subsunção, adequando, ao fato, a norma: Constituição Federal, Lei de Execuções Penais e Portaria Interministerial nº 1.777/2003. Por fim, busca na jurisprudência o enlace do seu raciocínio jurídico, momento no qual invariavelmente adentra na seara das cláusulas da reserva do possível e do mínimo existencial, que definiria com predominância, sem prejuízo de outros argumentos, o desfecho da sentença. Lugar comum nas ações que envolvem direitos fundamentais prestacionais, a exemplo do direito social à saúde objeto deste ensaio, o critério da reserva do possível consiste na pressuposição, por parte do Poder Público, de que os direitos fundamentais cuja efetividade necessite de uma prestação positiva materializada em gastos públicos, seria ressalvada pela inexistência de disponibilidade financeira ou por falta de razoabilidade no pedido para aplicação de uma dada despesa pública. Tal instituto remonta aos anos 70, no contexto do qual: [...] sedimentou-se a sustentação de que a implementação dos direitos sociais prestacionais está sujeita ao princípio da reserva do possível, relacionada não somente à escassez de recursos materiais, mas a outros princípios, como o da razoabilidade [...], da separação dos Poderes, do pacto federativo, da reserva da lei orçamentária12. T

T

É originário da jurisprudência alemã, precisamente do julgamento do caso BverfGE nº 33, S. nº 333, “no qual uma ação judicial então proposta visava a obter uma decisão que permitisse a um estudante cursar o ensino superior público, com fundamento no disposto na Lei Federal alemã que garantia livre escolha ao trabalho, ofício ou profissão13”, ao que obteve daquele juízo a decisão de T

T

que não havia, no caso, direito de prestação absoluta pelo Estado, prestação que deveria ser respaldada na razoável petição do indivíduo em face do Poder Público. As referências à reserva do possível feitas pelo julgador na ação nº 000307419.2003.8.20.0101 dão conta de que a sua alegação “não justifica as omissões do Poder Público na implementação de Políticas Públicas de Saúde” (fls. 05). Como reforço, cita jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no ensejo da qual o Ministro Celso de Mello enuncia que: 12

SILVA, Ricardo Augusto Dias da. Direito fundamental à saúde: o dilema entre o mínimo existencial e a reserva do possível. Belo Horizonte: Fórum, p. 189, 2010.

13

Idem, p. 188.

1263

O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se reveste o direito à saúde não podem ser menosprezados pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal, o seu precípuo destinatário. [...] Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais (fls. 06).

Nesse contexto, o magistrado decide por não acolher a cláusula da reserva do possível, “tendo em vista a supremacia do direito à vida e à saúde do cidadão, inclusive dos presos” e que “a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal não pode servir como subterfúgio para o descumprimento de políticas públicas que se correlacionam com a dignidade da pessoa humana” (fls. 06). No que se refere ao instituto do mínimo existencial, cláusula “relacionada às condições mínimas que o indivíduo necessita para viver dignamente”, em citação indireta de Robert Alexy, o magistrado André Melo Gomes Pereira assevera que “a própria existência de um direito ao mínimo existencial, a um direito fundamental a um mínimo vital, tem sido reconhecido pelo Tribunal Federal Constitucional Alemão, país que não consagrou em catálogo os direitos sociais” (fls. 04). Conclui, no mérito da fundamentação, pelo deferimento do pedido feito pelo Parquet, nos seguintes termos (fls. 07): Posto isso, defiro o pedido de antecipação de tutela específica para condenar o estado do Rio Grande do Norte na obrigação de fazer, consubstanciada na oferta da assistência à saúde (médica, odontológica e farmacêutica) aos detentos e internos da Penitenciária Estadual do Seridó [...]. Ademais, deve a parte ré garantir o internamento adequado aos detentos acometidos por transtorno mental e submetidos à medida de segurança em Unidade Prisional de Tratamento Psiquiátrico [...].

No dispositivo, além de ratificar o que fora explicitado no mérito da fundamentação, deu prazo de 30 dias para cumprimento das medidas, estabelecendo multa diária pessoal no valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) ao secretário estadual da Justiça e da Cidadania, bem como de R$ 3.000,00 (três mil reais) à governadora de Estado. Em que pese o zelo do magistrado com o direito à saúde dos apenados e internos do Presídio Regional do Seridó tendo, antecipando, inclusive, a tutela e determinando a execução provisória da sentença, até o presente momento nada foi realizado por parte do Estado e o processo encontra-se em grau de recurso junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte.

4. Conclusões Achando-se o processo em grau de recurso, sem pronunciamento do relator no Tribunal de Justiça, percebe-se que se está diante de pesquisa inacabada, mas que oferece material para se chegar a algumas conclusões. 1264

A primeira e mais evidente delas é a falta de razoabilidade na duração do processo sob exame, que envolve o direito a saúde (e, portanto, à vida) de pessoas que se encontram em situação vulnerável, a saber, aprisionadas ou internadas compulsoriamente no Presídio Regional do Seridó. A ação foi ajuizada em 2003 e até o momento, 2011, só há uma sentença recorrida com efeito devolutivo que nenhum efeito surtiu até o momento, porque nada foi realizado por parte do Estado do Rio Grande do Norte. A segunda conclusão, positiva ao nosso sentir, diz da prevalência na jurisprudência pátria – e no cerne da ação em estudo –, da aplicação do princípio do mínimo existencial em detrimento da cláusula da reserva do possível em face de ações que têm por objeto o resguardo e a efetivação do direito fundamental social à saúde. A terceira e última conclusão a que se chega é a de que somente um Judiciário “ativista” (para se usar um termo em moda) não basta para a concretização dos direitos sociais, a exemplo do citado direito à saúde dos apenados e detentos. Deve haver compromisso do Poder Público com a efetivação destes direitos e, não havendo, punição aos agentes políticos que se desviarem, injustificada e dolosamente, do seu dever de guarda, promoção e aprimoramento dos bens e serviços públicos.

Referências bibliográficas BULOS, Uadi Lâmmego. Constituição federal anotada. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. FERREIRA, Maria Cristina Fernandes. Necessidades humanas, direito à saúde e sistema penal. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós Graduação em Política Social. Brasília: Unb, p. 36-60, 2008 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Ação civil pública, o direito social e os princípios. In: MILARÉ, Édis (Coord.). A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: RT, 2005, p. 559-565. RIO GRANDE DO NORTE. Poder Judiciário do Rio Grande do Norte. Sentença. Ação Civil Pública nº 0003074-19.2003.8.20.0101. Ministério Público do Rio Grande do Norte e Estado do Rio Grande do Norte. Magistrado André Melo Gomes Pereira. Caicó/RN, 9 ago. 2010. Disponível em: . Acesso U

U

em 01 0ut. 2011. SCAFF, Fernando Facury. Como a sociedade financia o estado para a implementação dos direitos humanos no Brasil? In: SCAFF, Fernando Facury (org.). Constitucionalismo, tributação e direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 1-35. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. SILVA, Ricardo Augusto Dias da. Direito fundamental à saúde: o dilema entre o mínimo existencial e a reserva do possível. Belo Horizonte: Fórum, 2010. SIQUEIRA, Dirceu Pereira. Tutela coletiva do direito à saúde. Franca: Lemos e Cruz, 2010.

1265

Disponibilidade de recursos: um debate na esfera do poder judiciário Tiago Soares Vicente1 T

T

Resumo

Abstract

A escassez de recursos públicos tem sido um dos grandes obstáculos para a concretização e efetividade dos direitos fundamentais sociais, e daqueles que são chamados pela doutrina de mínimo existencial. Como forma de aplicação desses direitos, muitas ações judiciais tem sido impetradas visando sua efetividade, inclusive chegando a interferir no planejamento governamental dos poderes executivos, responsáveis pela elaboração de políticas públicas para efetivação dos direitos sociais. Inspirado por isso tem-se como objetivo geral abordar acerca da justiciabilidade do direito à educação, demonstrando formas de sua efetiva aplicabilidade e obrigatoriedade, que é garantido pela Constituição Federal de 1988. Com base em conhecimentos de Direito Constitucional, Educacional, Financeiro e Teoria dos Direitos Fundamentais, parte-se da previsão legal e constitucional do direito à educação, passando pela caracterização como direito fundamental e como mínimo existencial. Depois se estuda a utilização das ações judiciais e dos remédios constitucionais como formas de exigibilidade do direito à educação, bem como o impacto orçamentário que as decisões judiciais podem causar na gestão pública, como o cumprimento da decisão judicial em detrimento de políticas públicas, em razão da escassez de recursos públicos existente. Por fim, ressalta-se a importância da atuação responsável dos Poderes Executivo e Legislativo, principalmente durante a discussão e execução do orçamento público, e da intervenção responsável do Poder Judiciário para a efetividade do Direito à Educação, primordial para a Justiça Social.

The scarcity of public resources has been a major obstacle to the implementation and effectiveness of fundamental social rights, and those who are called by the doctrine of existential minimum. As a way of applying these rights, many lawsuits have been filed seeking their effectiveness, including coming to interfere with the executive powers of government planning, responsible for developing public policies for fulfillment of social rights. Inspired by this has been aimed at the general address about the justiciability of the right to education, ways of demonstrating their effective applicability and obligation, which is guaranteed by the Constitution of 1988. Based on knowledge of Constitutional Law Education, Financial and Theory of Fundamental Rights, part of the forecast is legal and constituional right to education, through the characterization as a basic right and existential minimum. After studying the use of lawsuits and constitutional remedies as forms for claiming the right to education, as well as the budgetary impact that court decisions may have on public management, and compliance with the court at the expense of public policy, because the existing shortage of public funds. Finally, we emphasize the importance of responsible action by the executive and legislature, especially during the discussion and implementation of public budgets, and the intervention of the judiciary responsible for the effectiveness of the Right to Education, Social Justice for the primary.

Palavras-Chave: Efetividade dos Direitos Fundamentais; Atuação do Poder Judiciário; Disponibilidade de Recursos Públicos.

Keywords: Effectiveness of Fundamental Rights; Action of The Judiciary; Availability of Public Resources.

1

E-mail: [email protected]. Discente do curso de Direito da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Bolsista do Programa Institucional de Iniciação Científica PIBIC/FAPEAL/UNEAL, vinculado ao projeto: “Efetividade Administrativa do Direito à Educação de Crianças e Adolescentes no Município de Arapiraca: a execução do orçamento público como instrumento de efetividade do direito à educação”, sob a orientação do Prof. Gilson Sales de Albuquerque Cunha.

1266

1. Introdução A Constituição Federal de 1988 consagra o direito à educação como Direito Fundamental, Social, Prestacional e Subjetivo Público. Ela proclama o discurso do direito à educação como direito de todos (art. 205), garantindo, além do ensino, a oferta de recursos como material didático escolar, transporte, alimentação para permanência do aluno na escola (Art. 208, VII), entre outros. A Administração Pública, porém, nem sempre cumpre com seu dever constitucional de garantir a educação básica para crianças e adolescentes. Quando acionado judicialmente para o cumprimento do respectivo direito fundamental, o Poder Público apresenta diversos argumentos na tentativa de adiar ou de não efetivar o seu cumprimento, o preferido é o argumento da escassez ou ausência de recursos, doutrinariamente chamado de reserva do possível. O presente trabalho tem por escopo analisar o debate judicial em torno da disponibilidade de recursos públicos para efetividade do direito à educação básica de crianças e adolescentes, tendo em vista a escassez de recursos públicos para efetivação de todos os direitos fundamentais. O direito à educação básica é considerado uma parcela indissociável de uma existência digna de tantos quantos vivem em território brasileiro, integrando o mínimo existencial. Contudo, para ser efetivado, o mínimo existencial precisa ser prestado pelo Poder Público. As prestações positivas para a proteção dos direitos sociais e mínimo existencial implicam sempre despesa para ente público, e a escassez de recursos públicos tem se estabelecido como o principal obstáculo para a criação e execução de políticas públicas que visam à efetividade do direito à educação básica de crianças e adolescentes, mesmo em se tratando de pessoas com prioridade absoluta.

2. Educação como direito fundamental e mínimo existencial Os direitos fundamentais podem ser compreendidos como o “conjunto de direitos e liberdades

institucionalmente

reconhecidos

e

garantidos

pelo

direito

positivo”2, T

T

sendo

indispensável para o sistema jurídico no Estado de Direito. A educação constitui um desses direitos fundamentais, sendo previsto de forma expressa na Constituição Federal de 1988. A Carta Magna declarou o acesso à educação básica3 (de forma obrigatória e gratuita) como direito T

T

público subjetivo e fundamental.

2

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 34, 2010.

3

É importante ressaltar que a Constituição considerava apenas o Ensino Fundamental como obrigatório e gratuito. Porém, com o advento da Emenda Constitucional n.º 59/2009, a educação básica passou a ser prevista como obrigatória e gratuita das crianças e adolescentes dos 4(quatro) aos 17(dezessete) anos. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei n.º 9.394/96), artigo 21, a educação básica é formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio. A própria Emenda 59 determinou que a obrigatoriedade e gratuidade se dará de forma progressiva até o ano de 2016, nos termos do Plano Nacional de Educação. Assim, neste trabalho será utilizada a expressão “Educação Básica”.

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Parte da doutrina entende o direito à educação básica como norma programática, na qual a norma não tem força vinculante para sua imediata aplicação, pois a norma programática apenas traça princípios a serem cumpridos pelo Poder Público. Contudo, o parágrafo 1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 estabelece que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, seja qual for este direito, e dentre esses direitos está incluso o direito à educação básica. Tais direitos possuem força vinculante, podendo ser diretamente aplicáveis pelos poderes constituídos, tendo reconhecida sua eficácia máxima e imediata. Mesmo àqueles direitos previstos em normas de eficácia limitada possuem aplicação imediata. A Constituição não delega ao legislador competência para conceder aqueles direitos; concede-os ela própria. Ao órgão legislativo cabe, tão-somente, instrumentalizar sua realização, regulamentando-os. Faltando a esse dever, dá ensejo à inconstitucionalidade por omissão, disfunção para a qual a doutrina e o direito positivo vêm buscando soluções eficazes.4 T

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José Afonso da Silva5 diz que o parágrafo 1º do Artigo 5º “não é, pois, só a garantia dos T

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direito políticos, mas de todos os direitos fundamentais: individuais, coletivos, sociais, de nacionalidade e políticos”. O direito à educação básica é um direito público subjetivo, ou seja, pode ser demandado judicialmente por aqueles a quem são garantidos o direito à educação básica, a saber, a criança e o adolescente. É também um direito social e prestacional, tendo que ser prestado pelo Poder Público em favor da coletividade, sendo um instrumento necessário ao alcance dos objetivos da Republica Federativa do Brasil, elencados no artigo 3º da Constituição Federal de 1988. O direito à educação como direito social exige do Poder Público a elaboração de políticas públicas educacionais, estas que por sua vez demandam despesas que devem ser satisfeitas pelos recursos disponíveis no orçamento público da Administração competente. Contudo, a doutrina6 entende-se que os direitos sociais prestacionais, como direitos subjetivos a prestações, T

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têm certos limites de eficácia, principalmente a reserva do possível, pois o Poder Público tem recursos escassos e não teria como cumprir com todos os direitos sociais previstos no texto constitucional. Esta escassez de recursos públicos é a maior expressão da teoria da reserva do possível, que condiciona a execução das políticas à disponibilidade de recursos financeiros.

4 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, p.108, 2009. 5

SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 30ªed. São Paulo: Malheiros, p.467, 2008.

6

SARLET, Ingo Wolfgang. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações in Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. TIMM, Luciano Benetti & SARLET, Ingo Wolfgang (org.). 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 27, 2010.

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A reserva do possível surgiu num julgamento promovido pelo Tribunal Constitucional Alemão, em decisão conhecida como Numerus Clausus. No caso, a Corte alemã analisou demanda judicial proposta por estudantes que não haviam sido admitidos em escolas de medicina de Hamburgo e Munique em face da política de limitação do número de vagas em cursos superiores adotada pela Alemanha em 1960. A pretensão foi fundamentada no artigo 12 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”. Ao decidir a questão o Tribunal Constitucional entendeu que o direito à prestação positiva, no caso aumento do número de vagas na universidade, encontrava-se sujeito à reserva do possível, no sentido daquilo que o indivíduo pode esperar de maneira racional, da sociedade. Diante das dificuldades financeiras e do reconhecimento de que o Poder Público não pode arcar com todos os direitos sociais, doutrinadores sustentam que existem direitos sociais não estariam condicionados à disponibilidade de recursos públicos e/ou de reserva orçamentária. Esses direitos são chamados de mínimo existencial. A doutrina do mínimo existencial teve como um dos precursores no Brasil o professor Ricardo Lobo Torres. Este, reconhecendo a impossibilidade econômica do Estado de prestar todos os direitos sociais previstos na Constituição, alega que existem direitos sociais que são tão necessários à sociedade que o Estado não pode se esquivar de realizá-los, pois se tratam de um mínimo necessário à vivência digna humana. O mínimo existencial não tem conteúdo especifico. Abrange qualquer direito, ainda que originariamente não-fundamental (direito à saúde, à alimentação, etc.), considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Sem o mínimo necessário à existência cessa a possibilidade de sobrevivência do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes podem ser privados.7 T

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A educação básica constitui um mínimo existencial, um direito público subjetivo, exigível judicialmente, necessário à vivência digna humana.

3. Direito da criança e adolescente à educação básica Como direito da criança e do adolescente, a educação básica está prevista no artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 7

TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18ªed. Rio de Janeiro: Renovar, p.69, 2011.

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O direito à educação da população infanto-juvenil é preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente visando o pleno desenvolvimento da criança como pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Desde a mais tenra idade, a educação se faz presente na vida dos indivíduos, quando os pais começam a ensinar aos filhos o que julgam ser certo, a maneira adequada a se comportar e respeitar as pessoas. Porém, em um determinado momento da vida, a criança também deve começar a adquirir conhecimentos relacionados a algumas áreas especificas do saber e é a partir daí que entra o papel da escola na continuidade do processo de desenvolvimento humano. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil através do Decreto nº 99.710/1990 e pelo artigo supracitado da Constituição Federal, deu ênfase não apenas ao ensino escolar, mas também a aspectos pertinentes aos direitos conexos àquele direito, tais como: o direito à matrícula, o direito à assiduidade e pontualidade dos professores, o direito à oferta de ensino de qualidade, entre outros. A proteção integral é o princípio que fundamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente, e tem como base a idéia de que as crianças devem ser consideradas pessoas em desenvolvimento, sujeitos de direitos e destinatários de proteção integral. Dessa forma, os menores têm seus direitos defendidos contra qualquer tipo de agressão. Sempre que houver ameaça ou violação, seja pela família, sociedade ou até mesmo pelo Estado, algumas medidas de proteção deverão ser observadas, pois, a proteção integral lhes garante defesa ampla e irrestrita. Além da proteção integral, o caput do artigo supracitado da Constituição Federal assegurou às crianças e aos adolescentes, com absoluta prioridade, o gozo de inúmeros direitos. O princípio da prioridade absoluta estabelece que os direitos das Crianças e dos Adolescentes devem ser protegidos em primeiro lugar em relação a qualquer outro grupo social, inclusive com a possibilidade de tutelar judicial de seus direitos fundamentais. Considerando a proteção integral como princípio inspirador dos direitos da criança e do adolescente,

e

uma

vez

consagrada

constitucionalmente

a

prioridade

absoluta,

a

discricionariedade da Administração Pública é suprimida, não havendo espaço para uma opção distinta daquela que acolha a absoluta prioridade da infância e da adolescência no atendimento, posto que foi eliminada a possibilidade de ponderar quaisquer outros direitos com aqueles garantidos à criança e ao adolescente. O não-atendimento, o atendimento irregular ou a violação dos direitos enseja a responsabilização tanto do Estado, quanto da sociedade e da família.

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4. Utilização de instrumentos processuais como forma de exigibilidade do direito à educação O artigo 208 da Constituição Federal de 1988, §1º, preceitua que “o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Isso quer dizer que O direito à educação básica tornou-se tão importante quanto o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, todos evidenciados pelo caput do artigo 5º da Carta Magna, tendo como consequência a possibilidade de demanda independentemente de qualquer política pública que o evidencie.8 T

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Assim, a sociedade tem o direito de Ação. Para garantir o acesso ao sistema de ensino, a sociedade pode fazer uso de instrumentos jurídicos, tais como o Mandado de Injunção e a Ação Civil Pública. O Artigo 5º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, lei n.º 9394/1996: Art. 5º O acesso ao ensino fundamental é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público, acionar o Poder Público para exigi-lo. (...) § 3º Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigo tem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente. § 4º Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.

O mandado de injunção, previsto no artigo 5º, inciso LXXI da Constituição do Brasil de 1988, também é um remédio constitucional, sendo, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), uma ação constitucional usada em um caso concreto, individualmente ou coletivamente, com a finalidade de o Poder Judiciário dar ciência ao Poder Legislativo sobre a omissão de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e garantias constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania e cidadania. Contudo criticas existem ao mandado injunção, afirmando a carência de força mandamental do instrumento jurídico. No campo dos direitos sociais que se registram os principais casos de omissão legislativa, como, v. g., o tema da participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. Note-se que dificilmente ocorrerá um caso de impetração de mandado de injunção para asseguramento de liberdades constitucionais, haja vista que elas se traduzem, normalmente, numa abstenção do Poder Público, ou seja, em hipóteses em que a omissão é o comportamento devido.9 T

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LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, p.29, 2003.

9

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, p.256, 2009.

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Os remédios constitucionais visam garantir os direitos fundamentais frente aos abusos de autoridade, às omissões legislativas, e às lesões e ameaças de lesão a direitos. A Ação Civil Pública é o principal instrumento processual utilizado para a efetivação do direito à educação básica. Destina-se à proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos. Portanto qualquer direito coletivo ou difuso, indisponível, de relevante interessante social e de importância na tutela coletiva pode ser objeto da Ação Civil Pública. A legitimação para as ações de responsabilidade civil por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente está regulada no inciso V do artigo 201 e no artigo 210, ambos do Estatuto da Criança e do Adolescente. O objeto dessas ações civis públicas está elencado no art. 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Onde houver oferta irregular ou não-oferta do serviço de educação da criança e do adolescente, o Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e as associações legalmente habilitadas poderão propor ação civil pública.

5. O debate da disponibilidade de recursos no poder judiciário O problema da concretização dos direitos sociais, especificamente do direito à educação básica, não está na omissão do Ministério Público em promover o Inquérito Civil ou em acionar o Poder Judiciário através da Ação Civil Pública. A problemática se dá quando o Judiciário é acionado e, no decorrer da discussão processual, o juízo analisa os argumentos jurídicos das partes e as possibilidades de efetivação do direito à educação da criança e do adolescente. Como visto anteriormente, as políticas públicas para efetivação de direitos sociais, prestacionais como a educação básica, demandam despesas, gasto de recursos públicos. Esse é o ponto central no debate a respeito da exigibilidade judicial do direito à educação básica, pois uma decisão judicial para a tutela de um determinado direito social fundamental no caso concreto pode obrigar o Estado a realizar gastos públicos e, uma vez que os recursos públicos disponíveis são menores do que o necessário para oferecer a todos os cidadãos todos os direitos que a Constituição prevê, muitas vezes o Poder Público alega não ter ou não poder dispor dos recursos necessários para atender o direito demandado judicialmente sem prejudicar a tutela de outro direito que a Administração Pública entende ser mais importante. Diversos posicionamentos podem ser identificados na Jurisprudência brasileira quando se está diante de uma demanda judicial em que é debatida a obrigatoriedade do Poder Público de promover um direito social. O principal posicionamento é quando se é reconhecida a limitação fática do cumprimento de todos os direitos sociais diante da indisponibilidade e/ou inexistência de recursos públicos. Importante ressaltar que o argumento da reserva do possível não pode ser simplesmente alegado, como constantemente é feito pelo Poder Público, constituindo assim numa 1272

falácia, um escape para a não realização de direitos fundamentais. A insuficiência de recursos deve ser algo fático, real, devidamente comprovada. Contudo, quando se trata do direito da criança à educação fundamental as decisões têm sido unânimes, como no Supremo Tribunal Federal10, no sentido de reconhecer a prioridade T

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absoluta que a criança tem de satisfação de seu direito. Apesar de se reconhecer a prioridade absoluta dos direitos da infância-adolescência, a maioria dos julgados não analisa alguns argumentos financeiros, o que pode resultar num problema orçamentário, visto que a referida inexistência de recursos para a política pública determinada judicialmente pode ocorrer de duas maneiras. A primeira é de ordem jurídica, diz respeito à ausência de previsão orçamentária da despesa. A segunda é de ordem fática, diz respeito à total inexistência de recursos a satisfação dos direitos. Tratando-se de impossibilidade jurídica, o que decorreria não da ausência de receita, mas da ausência de previsão orçamentária para a realização da despesa, deverá prevalecer o entendimento que prestigie a observância do mínimo existencial. Restando incontroverso o descompasso entre a lei orçamentária e os valores que integram a dignidade da pessoa humana, entendemos deva esta prevalecer, com o consequente afastamento do princípio da legalidade da despesa pública.11 T

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Assim, em casos de inexistência fática de recursos públicos, como o Executivo cumprirá a decisão judicial que determinou a realização de um direito daqueles que tem prioridade absoluta, a criança e o adolescente? A proteção positiva do mínimo existencial não se encontra sob a reserva do possível, pois a sua fruição não depende do orçamento nem de políticas públicas, ao contrário do que acontece com os direitos sociais. Em outras palavras, o Judiciário pode determinar a entrega das prestações positivas, eis que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discricionariedade da Administração ou do Legislativo, mas se compreendem nas garantias institucionais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na organização de estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas, escolas primárias, etc.).12 T

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Os direitos fundamentais da criança e do adolescente não se expõem a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública. O Poder Público não pode deixar de promover os direitos da criança com alegação de que não há previsão orçamentária da despesa, pois as crianças têm constitucionalmente proteção integral, não tendo a Administração a opção de não prestar (cumprir) o direito constitucional da criança.

10

Supremo Tribunal Federal. RE 410715 AgR/SP. RE 463.210 AgR/SP. RE 431916 AgR/SP. AI 410646 AgR/SP. RE 384201 AgR/SP. 11

GARCIA, Emerson. O direito à educação e suas perspectivas de efetividade. Justitia, São Paulo, v. 64, n. 197, p.114, jul./dez., 2007. 12

TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária in Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. TIMM, Luciano Benetti & SARLET, Ingo Wolfgang (org.). 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 74, 2010.

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A criança tem prioridade na formulação de políticas públicas e na destinação de recursos13, T

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nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, não prevalece a alegação de inexistência fático-absoluta de recursos, pois a política pública para crianças devem ser prioritárias e anteceder as demais políticas públicas, prevalecendo em casos de necessidade de escolha de políticas sociais a serem efetivadas. Além da vinculação de receitas tributárias previstas na Constituição Federal para a garantia do direito à educação, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)14, por ocasião da I Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, T

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determinou a obrigatoriedade de se garantir um mínimo de 5% (cinco por cento) do Orçamento Público de um município para a promoção dos direitos da infância e da juventude. Referida percentagem consiste num piso a ser observado pela Administração e condição para resguardo dos princípios constitucionais da proteção integral e prioridade absoluta. A mesma conferência determinou a destinação de 2% (dois por cento) do Fundo de Participação dos Municípios ao Fundo Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes. Assim, tendo sido destinado os recursos na forma prevista pelo CONANDA e pela Constituição Federal, ao Poder Público não restaria outra opção a não ser cumprir a decisão judicial, com a prestação do direito fundamental. Porém, a previsão (redação) orçamentária não é suficiente para a efetivação de direitos fundamentais, porque o orçamento necessita ser executado, isto é, o dinheiro precisa ser gasto, pois nem sempre o recurso é gasto na forma como foi prevista no orçamento, pois ainda há uma discricionariedade que permite à Administração aplicar, remanejar, alguns recursos em setores distintos daqueles previstos inicialmente. É preciso se pensar na diminuição dessa discricionariedade do administrador público [...]. isso passa pela valorização da decisão tomada pelo Poder Legislativo, de forma que o que foi votado seja efetivamente realizado na sua maior parte, excepcionando-se apenas quando esse cumprimento não for possível ou absolutamente impróprio para os interesses do Estado. Isso se deve ao fato de que a Constituição brasileira criou obrigações para a Administração Pública, e seus gestores não podem considerar as disposições orçamentárias como meras autorizações sem considerar que o interesse público deve sempre prevalecer.15 T

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13

Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. 14

O CONANDA é integrante da política de atendimento aos infantes, na forma do artigo 88, inciso II do Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo-lhe competente, na forma da Lei 8.242/91, a elaboração das normas da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando as ações de execução, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos artigos 87 e 88 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 15

CHRISTOPOULOS, Basile Georges Campos. Orçamento e efetivação dos direitos sociais. Revista de Direito do Estado. Salvador, n. 19, p.10, set./nov., 2009.

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Nisto a execução do orçamento público constitui um verdadeiro instrumento de efetividade do direito à educação da criança e do adolescente. Importante salientar que o Poder Judiciário, no momento de proferir a decisão, não pode extrapolar os limites da razoabilidade e da proporcionalidade, elaborando ele próprio políticas públicas sociais, passando a ocupar habitualmente a atividade executiva e legislativa, para que a decisão que seria para garantir um direito fundamental da criança e adolescente não seja mais um instrumento de ineficiência da máquina estatal, colaborando para a desorganização das receitas e despesas públicas. O Judiciário deve se ativer àquilo que é de sua competência, somente intervindo diante das omissões e ações que afrontam e desrespeitam os princípios e regras constitucionais.

6. Considerações finais Pretendemos investigar o debate judicial acerca da disponibilidade de recursos públicos para efetividade do direito à educação básica da criança e do adolescente. Partindo de tudo acima desenvolvido, infere-se que o direito à educação da criança e do adolescente constitui mínimo existencial, não se sujeitando a reserva do possível nem à discricionariedade administrativa, posto que foi conferida pela Constituição Federal o caráter prioritário das políticas públicas educacionais para crianças e adolescentes, bem como a destinação privilegiada de recursos para a concretização dessas políticas. Tamanha a importância desse direito fundamental social na ordem jurídica brasileira não se pode desvinculá-lo dos fundamentos e objetivos da República, previstos na Carta Magna. A dignidade da pessoa humana, certamente princípio maior do neoconstitucionalismo, deve pautar o Direito público. O direito à educação tem estreita ligação com uma vida digna, parte do mínimo existencial. O direito à educação é fundamental, prestacional e subjetivo público. A efetividade do Direito à Educação junto à sociedade é primordial para o alcance da justiça social. A Constituição de 1988 exige uma educação plena e de qualidade. A legislação infraconstitucional complementa o instrumental normativo para alcançar esse direito público subjetivo de todas as crianças e adolescentes do Brasil. A efetivação do direito à educação depende da atuação responsável dos Poderes Executivo e Legislativo e da fiscalização e da intervenção do Poder Judiciário e Ministério Público. A própria sociedade deve cobrar corretas políticas educacionais por parte dos governos e aplicação e execução dos recursos definidos no orçamento público do ente federativo. Toda a comunidade deve clamar por vagas na escola, merenda escolar e de qualidade, infra-estrutura adequada ao aprendizado pleno, qualidade no ensino, etc. A cidadania depende da educação, e a

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educação depende dela. Enfim, a prestação de educação plena é urgente para o desenvolvimento do Brasil.

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. CHRISTOPOULOS, Basile Georges Campos. Orçamento e efetivação dos direitos sociais. Revista de Direito do Estado. Salvador, n. 19, set./nov., 2009. GARCIA, Emerson. O direito à educação e suas perspectivas de efetividade. Justitia, São Paulo, v. 64, n. 197, jul./dez., 2007. LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. ___________. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações in Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. TIMM, Luciano Benetti & SARLET, Ingo Wolfgang (org.). 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível in Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. TIMM, Luciano Benetti & SARLET, Ingo Wolfgang (org.).. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 30ªed. São Paulo: Malheiros, 2008. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. 18ªed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. ___________. O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária in Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. TIMM, Luciano Benetti & SARLET, Ingo Wolfgang (org.). 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. WANG, Daniel Wei Liang. Escassez de recursos, custos dos direitos e reserva do possível na jurisprudência do STF. Revista Direito GV. São Paulo, n. 8, jul./dez., 2008.

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A materialização da dignidade da pessoa humana e o cumprimento das penas privativas de liberdade – Estudo acerca das possibilidades de responsabilização interna e internacional do Estado brasileiro, em decorrência da violação dos direitos humanos dos apenados Uliana Lemos de Paiva1

Resumo

Abstract

O presente artigo objetiva abordar a violação ao princípio da dignidade da pessoa humana no sistema penitenciário pátrio, analisando a possibilidade de responsabilização do Estado, no âmbito interno e internacional, por sua omissão em cumprir os tratados internacionais, a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional, que determinam o cumprimento das penas privativas de liberdade com dignidade. Com esse desiderato, primeiramente, trará considerações sobre o conceito de dignidade da pessoa humana e o seu conteúdo essencial na Constituição da República, relativamente à forma de cumprimento das sanções penais. Em seguida, fará breve abordagem sobre a normativa constitucional e infraconstitucional disciplinadora do cumprimento das penas no Brasil, partindo também para a análise crítica da normativa internacional, que proíbe as penas ou tratamentos cruéis ou degradantes. Por fim, verificará a possibilidade de responsabilização do Estado, no plano interno e internacional, por violações à dignidade humana nos estabelecimentos penitenciários pátrios, estimulando a atuação daqueles que deveriam zelar pelo cumprimento da Constituição, dos tratados internacionais e das leis, em especial analisando o papel do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da sociedade civil, como possíveis agentes transformadores dessa realidade, no afã de concretizar os direitos humanos e fundamentais dos apenados.

This article aims to approach the violation of the principle of human being dignity in the penitentiary system of the country, to analyse the possibility of accountability of the State, in the internal and international sphere, and for its omission in to comply with international treaties, the Federal Constitution of 1988 and the infraconstitutional legislation, which determine the fulfillment of custodial sentences with dignity. With this aim, first, it will bring considerations about the concept of human being dignity, and its essential content in the Constitution of Republic, relative to the form of the fulfillment of the penalty sanctions. Also, it will do a brief approach about the constitutional legislation and infraconstitutional disciplinarian of the fulfillment a penalty in Brazil, also to do a critical analysis of the international norm, which forbids penalty or cruel or degrading treatments. Finally, it will verify the possibility of accountability of the State, in the internal and international sphere, for violations to the human dignity in the penitentiary establishments of the country, to stimulate the activity of those who should ensure the fulfillment of the Constitution, international treaties and laws, especially to analyse the role of the Judiciary, Public Prosecutor, the Public Defender and civil society as potential agents of change the reality, in the desire to achieve the fundamental human rights of inmates.

Palavras-Chave: Constitucional; Internacional; Dignidade; Penas; Responsabilização.

Keywords: Constitutional. International. Dignity. Penalty. Responsibility.

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Mestranda em Direito pela UFRN, área de concentração em Constituição e Garantia de Direitos; Especialista em Direitos Fundamentais e Tutela Coletiva, pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FESMP/RN). Professora da Pós-Graduação da UNP (Universidade Potiguar). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); e-mail: [email protected]. Artigo escrito sob a orientação da Professora Doutora Maria dos Remédios Fontes Silva. T

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1. Introdução O pensamento humano não é estanque no tempo, não sendo diferente quando se reflete sobre o Direito Penal e a forma do cumprimento das suas penas. Ao lançar um breve olhar sobre a história, pode-se compreender como se consolidou a construção hoje dominante sobre a forma de cumprimento das sanções penais, qual seja, em sintonia com o respeito ao direito fundamental à dignidade, como limite ao poder punitivo estatal, e ao mesmo tempo dever do Estado, uma vez que mantém os apenados sob a sua custódia. Essa concepção parte do princípio de que cada ser humano tem um valor intrínseco, que não é perdido pelo fato de se estar cumprindo uma sanção penal, daí porque o valor dignidade humana foi considerado como limite à ação repressiva estatal. Na verdade, esse afastamento dos castigos corporais, historicamente característico do cumprimento das penas, está em sintonia com a construção histórica dos direitos humanos. De fato, verifica-se que, após o horror vivenciado pelo nazismo vigente à época da Segunda Guerra Mundial, em que a dignidade humana foi trucidada, a concepção clássica sobre o Direito Penal e os limites de intervenção estatal na liberdade humana foram mais uma vez repensados. Traduzindo esse pensar, desenvolveu-se um verdadeiro sistema internacional de proteção dos direitos humanos, global e regional, a nível convencional, a partir da assinatura de tratados, convenções, dentre outros instrumentos legais, e não-convencional, como no caso das medidas voltadas à intervenção humanitária, além de medidas visando à paz e segurança internacionais. E o Brasil acompanhou essa proteção, tendo assinado e ratificado inúmeros tratados internacionais de proteção aos direitos humanos. No que diz respeito especificamente ao cumprimento das penas com dignidade, vários foram os tratados e convenções internacionais que estabeleceram regras mínimas a serem cumpridas pelos Estados, visando a proteção da dignidade humana do apenado, ao lado de inúmeros dispositivos constitucionais e legais, na ordem interna, que garantem essa proteção. Apesar da premissa do cumprimento das penas com dignidade ter sido abraçada por nossa Constituição Federal, pela Lei de Execuções Penais e pela normativa internacional, na realidade, na maioria dos casos, tudo não passou de meras palavras não materizadas na realidade. O objetivo deste artigo é analisar a referida normativa, cotejando-a com as hipóteses de responsabilização, diante da conduta do Estado brasileiro em ignorá-las, impunemente. Para efetuar essa análise, inicialmente este artigo analisará a dignidade humana como direito humano e fundamental, estudando o seu conteúdo essencial. Em seguida, abordará a normativa constitucional e infraconstitucional disciplinadora do cumprimento das penas no Brasil, partindo também para a análise crítica da normativa internacional, que proíbe as penas ou 1278

tratamentos cruéis ou degradantes. Por fim, verificará a possibilidade de responsabilização do Estado, no plano interno e internacional, por violações à dignidade humana nos estabelecimentos penitenciários pátrios, no afã de concretizar os direitos humanos e fundamentais dos apenados.

2. Princípio da dignidade da pessoa humana: conceito e conteúdo essencial Grande parte da doutrina que se debruça sobre o princípio da dignidade da pessoa humana revela a sua dificuldade conceitual. Muitos preferem não estabelecer um conceito, o qual se mostra deveras aberto, sob pena de incidirem na incompletude ou mesmo de refletirem imposição autoritária de determinada cultura. Em verdade, faz-se necessário que se ingresse no tormentoso terreno da conceituação de dignidade humana, para que se possa, com maior eficácia, coibir eventuais violações ao princípio. Na visão de Stein, “dignidade” significa a materialização de um valor, sendo o homem o valor supremo2. Ingo Wolfgang Sarlet traz um conceito próprio de dignidade humana, embora T

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reconheça que ele não seja estanque no tempo: [...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano, que o faz merecer do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.3

O conceito de Ingo Sarlet traz postulados fundamentais, como a ideia de que o conceito de dignidade humana é inerente à natureza do homem, ou seja, o valor próprio que identifica o ser humano como tal. Dito isso, é tempo de apresentar o conceito de dignidade humana construído neste trabalho. A dignidade humana pode ser conceituada como direito e garantia existencial de proteção e respeito ao ser humano, em seus aspectos físico, psíquico e social, proteção tanto em relação ao Estado como em relação aos particulares. Portanto, o conceito aqui construído de dignidade humana remonta a uma obrigação de fazer (como garantia) e não fazer (como respeito), por parte do Estado e da comunidade em geral. Em seu aspecto físico e psíquico, o ser humano deve ser inviolável em sua dignidade corporal e mental (obrigação de respeito, de não fazer – impedimento de tortura física ou psicológica, de

2

SEGADO. Francisco Fernández. La dignidad de la persona como valor supremo del ordenamiento jurídico español y como fuente de todos los derechos. In: Jurisdição e direitos fundamentais: anuário 2004/2005. Cood. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul e Livraria do Advogado Editora p. 103, 2006. T

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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 37-39, 2010. T

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tratamentos desumanos, cruéis ou degradantes), indicando a existência de um núcleo intangível que não pode ser alcançado pelo poder punitivo estatal, tampouco por particulares. Em seu aspecto social, o conceito de dignidade humana envolve um fazer (dever do Estado de concretizar certas prestações positivas, de modo a garantir o mínimo existencial aos indivíduos, como saúde, educação e segurança). No dizer de Ernesto Benda, a obrigação do Estado de respeitar a dignidade humana implica que o indivíduo espera não ser arbitrariamente tratado, mas também se espera do Estado a obrigação de garantir a sua existência material, ou seja, garantir ao indivíduo os recursos indispensáveis a uma existência digna.4 Assim, seguindo T

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Ingo Sarlet, entende-se neste artigo que a dignidade da pessoa humana deve ser compreendida como “limite e tarefa do Estado, da comunidade e dos particulares” 5. T

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Há de se perguntar se o princípio da dignidade da pessoa humana é absoluto, ou se admite ponderações. Em verdade, o referido princípio revela um núcleo mínimo inatingível, haja vista que, quando, por exemplo, o homem comete um crime, há de ser cerceada a sua liberdade em nome do bem comum, porém, sem que esse núcleo mínimo seja atingido. Sobre o tema, Edilson Nobre, embasado noutros doutrinadores, traz com maestria qual seria o núcleo essencial desse princípio: Disso resulta que a interferência do princípio se espraia, entre nós, nos seguintes pontos: a) reverência à igualdade entre os homens (art. 5º, I, CF); b) impedimento à consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, a implicar na observância de prerrogativas de direito e processo penal, na limitação da autonomia da vontade e no respeito aos direitos da personalidade, entre os quais estão inseridas as restrições à manipulação genética do homem; c) garantia de um patamar existencial mínimo.6

Assim, para Edilson Nobre, falar em dignidade é falar primeiro em igualdade (todos são iguais perante a lei e em dignidade); em não degradação da pessoa, não “coisificação”, inclusive quando do cumprimento de sanções penais, e na garantia de uma patamar existencial mínimo aos seres humanos. Com efeito, essa perspectiva da não “coisificação” se faz presente mormente na seara do Direito Penal e aplicação das penas. Discutido o conceito e limites do princípio da dignidade da pessoa humana, convém adentrar na análise da normativa aplicável ao cumprimento das penas no ordenamento jurídico nacional e internacional.

4 BENDA, Ernesto et al. Dignidad humana y derechos de la personalidad. In: Manual de Derecho Constitucional. Madrid: Marcial Pons, p. 126, 2001. T

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SARLET, Ingo Wofgang. Op. cit. p. 126.

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NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O Direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio 2000. Disponível em: . Acesso em: 09 abr. 2010. T

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3. A normativa constitucional, internacional e legal a respeito do cumprimento das penas no ordenamento jurídico pátrio A Constituição pátria de 1988 foi promulgada em um cenário de repulsa à ditadura militar e a toda a barbárie que ela representou, ao violar os mais preciosos direitos humanos, colocando-se por terra toda a construção da humanidade no sentido do enaltecimento da dignidade da pessoa humana. Assim, a dignidade da pessoa humana não foi prevista como um direito fundamental na nossa Constituição, mas foi encartada em seu Título I (Dos Princípios Fundamentais), como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III). Para Ingo Sarlet, o princípio da dignidade humana é o “núcleo essencial de nossa Constituição formal e material”7. Com efeito, a dignidade humana se mostra como um valor T

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normativo superior; um valor insuperável, acima, mesmo, de qualquer norma. Ocorre que o princípio da dignidade humana, embora não previsto como um direito fundamental, relaciona-se diretamente com inúmeros direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, mormente com relação aqueles que devem ser respeitados pelo Estado no cumprimento do seu dever punitivo. A Constituição de 1988, em seu art. 5º, traz inúmeros direitos fundamentais e princípios, que devem ser observados pelo Estado no cumprimento de seu dever punitivo, diretamente ligados à noção de dignidade, tais como: vedação ao tratamento desumano ou degradante (inciso III); respeito à integridade física e moral do preso (inciso XLIX); separação dos presos de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado (inciso XLVIII – princípio da individualização das penas); proibição de penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, banimento e cruéis (inciso XLVII – princípio da humanidade da pena), dentre outros. Explicita Jorge Miranda que “o valor eminente reconhecido a cada pessoa” explica a “garantia da integridade pessoal contra a tortura e os tratos e as penas cruéis, degradantes ou desumanas”. Ensina, ainda, que “a dignidade da pessoa permanece, independentemente dos seus comportamentos, mesmo quando ilícitos e sancionados pela ordem jurídica” 8. T

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Os dispositivos constitucionais que tratam sobre execução penal são normas de aplicabilidade imediata, posto que, em geral, contêm vedações e proibições de violação ao princípio da dignidade do apenado, deixando bem claro qual a conduta positiva ou negativa que o Estado brasileiro deve seguir, ao executar as sanções penais. E o cumprimento dessas normas deveria estar sendo exigido, mormente, pelos atores responsáveis, como Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, e sociedade civil organizada, mas o que se vê, no mais das 7 T

SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit. 2010. p. 71.

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8

MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marcos Antonio Marques da (coordenação). Tratado luso-brasileiro da dignidade humana. 2ed. São Paulo: Quartier Latin, p. 171 e 174, 2009. T

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vezes, é o vazio do silêncio e da omissão. No âmbito do Direito Internacional, o marco da valorização da dignidade humana no cumprimento das sanções penais é a Declaração Universal de Direitos do Homem, de 1948, a qual previu em seu art. 5º que ninguém será submetido à tortura, ou a pena ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Após a barbárie nazista, a comunidade internacional passou a priorizar a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana, mormente por meio da assinatura de tratados internacionais disciplinadores do poder punitivo do Estado. Na seara do cumprimento das penas com dignidade, destaca-se a formulação das Regras Mínimas para Tratamento dos Prisioneiros, adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, realizada em Genebra em 1955, e aprovada pelo Conselho Econômico e Social da ONU através da sua Resolução 663 C I (XXIV), de 31 de julho de 1957. O referido documento traz premissas mínimas a serem observadas pelos estabelecimentos prisionais no trato com os presos, sempre com foco no princípio da dignidade humana. Sobre a matéria, houve, também, a formulação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos pela Assembleia Geral das Nações Unidas, concluído em 1966. O referido pacto veio a consagrar inúmeros direitos já previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, além de ampliá-los. Em seu preâmbulo, realiza verdadeira exortação ao princípio da dignidade humana. Relativamente à pena privativa de liberdade, o referido Pacto declara, em seu artigo 10, 1, que toda pessoa privada de liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana. Ainda nesse contexto, foi celebrada também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). A referida convenção foi concluída e assinada pelos Estados-Partes em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Sofreu adesão pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, sendo promulgada pelo Decreto nº 678, de 06/11/1992. Em seu artigo 5º, a Convenção Americana consagra o direito à integridade física, psíquica e moral do preso, proibindo a tortura, bem como penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, garantindo o respeito “inerente ao ser humano”. Ainda, lembra que a prisão deverá ter por finalidade essencial a “reforma e readaptação dos condenados”. O instrumento mais relevante sobre a matéria é a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, concluída e assinada em Nova York, em 10/12/1984. Ela Entrou em vigor no Brasil em 28/10/1989, sendo promulgada por meio do Decreto nº 40, de 15/02/1991, publicado no DOU de 18/02/1991. A Convenção contra a Tortura é dividida em três partes: a primeira, em que traz conceitos essenciais como a definição de tortura; a segunda, na qual se destaca a criação de um órgão de 1282

monitoramento dos Estados-Partes - o Comitê contra a Tortura (arts. 17 e 18), e, a terceira, que esmiúça os procedimentos de adesão e denúncia pelos Estados. Segundo a Convenção, para que um ato seja considerado tortura, deverão estar presentes os seguintes elementos: imposição de grande sofrimento físico ou mental; finalidade do ato (para obtenção de informações ou confissão, punição, meio de intimidação ou coação contra a pessoa ou outrem, ou por qualquer razão baseada em discriminação de qualquer espécie); e desde que o ato seja praticado, instigado, consentido ou aquiescido por agente estatal (funcionário público) ou por alguém no exercício de função pública. Outro grande destaque da Convenção são as formas de monitoramento, que podem ser petições individuais, os relatórios e as convenções interestatais.9 Com efeito, o artigo 17 criou o T

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Comitê contra a Tortura, órgão de supervisão. E o artigo 22 confere ao Comitê a competência de examinar petições individuais, comunicando violações da Convenção por Estado-Parte. Dentro da normativa internacional, tendo por foco o sistema regional, destaca-se, ainda, a Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura (conclusão e assinatura em Cartagena das Índias (Colômbia), em 09/12/1985). A referida Convenção foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo nº 05, de 31 de maio de 1989. Conforme se verificou, inúmeros são os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, no que diz respeito ao cumprimento das penas com dignidade, mas que são solenemente descumpridos em grande parte dos estabelecimentos prisionais pátrios, tratando-se de dado evidente e inegável. Por outro lado, várias recomendações foram feitas ao Governo Brasileiro, no sentido de garantir a dignidade aos apenados, mas muito pouco foi feito. A questão que se coloca neste trabalho é até quando o Brasil vai continuar desrespeitando os tratados internacionais que disciplinam o cumprimento das penas com dignidade, além da própria normativa interna. Relativamente ao polêmico tema a respeito da hierarquia e eficácia dos tratados internacionais de direitos humanos no direito interno, Flávia Piovensan defende a tese de que todos os tratados internacionais de direitos humanos são materialmente constitucionais, por força do parágrafo 2º, do artigo 5º, da Constituição de 1988, “com a observância do princípio da prevalência da norma mais favorável”10. T

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Quanto ao quorum qualificado trazido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, no parágrafo 3º, do art. 5º, da Constituição de 1988, segundo o qual os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes a emendas constitucionais, bem explicita Flávia Piovesan que esse quorum apenas confere a tais

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PIOVESAN, Flávia, op. cit. p. 268.

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PIOVESAN, Flávia. op. cit. 116.

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instrumentos internacionais o caráter de serem formalmente constitucionais, posto que já são materialmente constitucionais, por força parágrafo 2º do artigo 5º da CF/88. Assim, nada obstante a posição dominante no Supremo Tribunal Federal, o qual recentemente consolidou a tese da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, no julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-1/SP, referente ao tema da prisão do depositário infiel, compartilha-se neste artigo do posicionamento do Ministro Celso de Melo, de Flávia Piovesan, dentre outros, para quem os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, por força do art. 5º, § 1º e 2º da Constituição de 1988, têm natureza materialmente constitucional e aplicação imediata. Portanto, toda a normativa internacional, devidamente ratificada pelo Brasil, relativamente aos direitos humanos dos presos, têm aplicação imediata, não havendo nenhuma justificativa plausível para a omissão continuada do país em lhe conferir o devido cumprimento. Ora, como bem coloca Nguyen Quoc Dinh, “as consequências da violação de um tratado devem ser encaradas à luz do direito da responsabilidade internacional”11. T

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Quanto à legislação ordinária interna, esta caminhou no mesmo passo trilhado pela normativa internacional e constitucional a respeito do cumprimento das sanções penais com dignidade. Com efeito, no Brasil, a execução das sanções penais foi regulamentada de forma minuciosa pela Lei nº 7.210, de 1984, a chamada Lei de Execução Penal (LEP), promulgada antes do advento da Constituição de 1988. A LEP sofreu grande influência da normativa e doutrina internacional a respeito, conforme se verifica da leitura de sua Exposição de Motivos, de autoria do então Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, ao partir do pressuposto, escrito em seu artigo 14, de que “as penas e medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade”, de modo que “o sistema atende não somente aos direitos do condenado, como também, e inseparavelmente, aos interesses da defesa social” (art. 29). O espírito da LEP está bastante claro a partir da leitura do seu artigo 1º, o qual reza que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. O preso, em decorrência do cometimento de um crime, pode ser privado de sua liberdade, mas jamais de sua dignidade, razão pelo qual o artigo 3º da LEP determina que ao condenado e ao internado sejam assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei, ou seja, pela perda de sua liberdade, caminhando no mesmo compasso do previsto no artigo 38 do Código Penal.

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DINH, Nguyen Quoc, et al. Direito Internacional Público. 2ed. Trad. de Vítor Marques Coelho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 229, 2003. T

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O artigo 41 da LEP enumera os direitos do preso, quais sejam: alimentação suficiente e vestuário; atribuição de trabalho e sua remuneração; previdência social; constituição de pecúlio; proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, descanso e a recreação; exercício das atividades intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; entrevista pessoal e reservada com o advogado; visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados, dentre outros. O problema é que, na prática, quase nenhum desses direitos é assegurado. Basta visitar algum estabelecimento prisional pátrio, salvo raras exceções, para se deparar com presos amontoados em cubículos, sem ter um local para dormir e sem saber sequer o quanto de pena ainda lhe resta por cumprir. E dentre todos os direitos do preso previstos em lei, mas ignorados na realidade prática, os que mais se destacam, pela omissão das autoridades, são os direitos à assistência jurídica e à saúde. O direito fundamental de acesso à Justiça é negado ao preso sem condições financeiras, pela ausência ou insuficiência de defensores públicos na grande maioria dos Estados brasileiros. Em decorrência disso, muitos presos permanecem na prisão por mais tempo do que era devido, muitos perdem benefícios como a progressão de regime, por falta de quem os requeira. Em toda penitenciária deveria haver um local destinado ao atendimento pela Defensoria Pública, porém, na realidade fática, os apenados permanecem sem a mínima assistência jurídica. Quanto à assistência à saúde, prevê o art. 14 da LEP que ela compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico, e, quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover tal assistência, esta deverá ser prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento. Estabelece, ainda, que será assegurado acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido. No entanto, na prática, na maioria dos estabelecimentos prisionais, essa assistência não é feita minimamente, quer dentro do estabelecimento, quer fora, sob o argumento de falta de recursos financeiros e de viaturas para conduzir o preso até um local adequado à realização de um tratamento. E, por consequência,

tem-se

um

amontoado

de

presos,

muitos

portadores

de

doenças

infectocontagiosas, abandonados à própria sorte. Quanto ao trabalho, além de ser um direito, previsto no art. 41 da LEP, é, também, um dever, estabelecido no art. 39 da mesma lei. Dentre os deveres do apenado, destacam-se a disciplina, obediência e respeito, urbanidade, conduta oposta aos movimentos de rebeldia, fuga ou subversão à ordem e disciplina, execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas, submissão à sanção disciplinar imposta, indenização à vítima e ao Estado, quando possível, quanto às despesas realizadas com sua manutenção, higiene pessoal e asseio cela e conservação dos seus objetos pessoais.

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O trabalho é de suma importância, mormente para preparar o apenado ao retorno ao convívio social, bem como para que ele gere renda para ressarcir à vítima e ao Estado, além de possibilitar que ele auxilie no sustento de sua própria família. A LEP incentiva o trabalho em seu artigo 126 e seguintes, ao prever que o condenado, ao cumprimento de pena em regime fechado ou semiaberto, poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena, à razão de 01 (um) dia de pena, por 3 (três) de trabalho. Quanto à educação, o art. 11, inciso IV, da LEP, a previu como direito do preso, e, para incentivá-la, foi editada a Lei nº 12.433, de 29 de junho de 2011, modificando a redação do art. 126 da LEP, para determinar, também, a remissão da pena pelo estudo. No âmbito interno, cumpre também destacar a chamada “Lei da Tortura”, editada em cumprimento aos ditames da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradante. Com efeito, quase oito anos após a ratificação interna da referida Convenção, ocorrida em 1989, o Brasil editou a Lei nº 9.455/97 (Lei da Tortura), tipificando a conduta delitiva nas suas diferentes nuances, o que representa importante marco para a defesa dos direitos humanos no Brasil. A referida lei pretendeu coibir, principalmente, a violência policial, tipificando como tortura, em seu art. 1º, dentre outras hipóteses, a conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, a fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou terceira pessoa. O que antes era, quando muito, punido como mera lesão corporal ou abuso de autoridade, passa a ser considerado crime inafiançável, quer comissivo, quer omissivo, punível com pena de reclusão de dois a oito anos, sendo que a condenação implicará em perda do cargo. Porém, na prática, nada obstante o rigor da lei, ainda reina a barbárie nos estabelecimentos prisionais. Nem a Constituição, nem a legislação infraconstitucional, tampouco a normativa internacional são cumpridas, e o Estado Brasileiro vem se omitindo, solenemente. Nesse passo, convém indagar o que deve ser feito diante da violação ao princípio da dignidade humana no cumprimento das penas privativas de liberdade. Há que se destacar a atuação tímida de órgãos como o Ministério Público, que pouco tem movido ações visando o cumprimento do estabelecido na Constituição Federal, na normativa internacional e legislação infraconstitucional, quando é perfeitamente possível e cabível responsabilizar o Estado brasileiro por omissões e ações violadores do princípio da dignidade humana dos apenados, mormente na seara cível, visando a garantia de direitos mínimos, como a assistência material, jurídica e à saúde do apenado, além do preparo para o seu retorno ao convívio social, por meio da educação e do trabalho. Esclarecida a visão do ordenamento jurídico interno e internacional quanto à forma de execução das penas, em contrataste com a realidade oposta ao que a lei consagra, convém analisar os recursos existentes à guisa de concretizar tais direitos consagrados. 1286

4. Das possibilidades de responsabilização do estado brasileiro Diante da constatação de violações aos direitos dos presos, de vilependiamento de sua dignidade, em frontal descompasso com a normativa interna, como pode ser efetivada a responsabilização do Estado (seja do Estado federado ou da União) descumpridor da lei? O tema a respeito da responsabilidade civil do Estado guarda complexidade tamanha que não cabe aprofundá-lo no âmago deste trabalho. Entretanto, há que se traçar algumas linhas, no afã de elucidar a sua possibilidade, quando se está diante de patentes violações às normas constitucionais e legais que tratam sobre a forma de cumprimento das penas, mormente para fomentar a utilização prática das devidas ferramentas pelos atores hábeis a manejá-las. Como é sabido, relativamente à concepção sobre responsabilidade civil do Estado, partiuse, num primeiro momento, da visão do Estado absolutista, onde reinava a ideia da absoluta irresponsabilidade total do Estado (“o rei não erra”), até se chegar à concepção de responsabilidade subjetiva (necessidade de comprovação de dolo ou culpa por parte do agente estatal), e, por fim, a da responsabilidade objetiva (que prescinde da aferição de dolo ou culpa do Estado, bastando que o prejudicado comprove o nexo causal entre o fato e o dano). 12 T

Para a maioria dos doutrinadores, a teoria da responsabilidade objetiva do Estado foi a tese adotada pela Constituição de 1988, via de regra, ao determinar em seu art. 37, § 6º, que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável no caso de culpa ou dolo. No mesmo sentido caminhou o art. 43do Novo Código Civil pátrio. Para Carvalho Filho, o dano é o pressuposto da responsabilidade civil, lembrando que esse pode ser tanto patrimonial, em que o patrimônio do indivíduo é atingido, como moral, entendido como aquele que “atinge a esfera interna, moral e subjetiva do lesado, provocando-lhe, dessa maneira, um fundo sentimento de dor” 13. Em se tratando de responsabilidade objetiva, sua configuração exige três pressupostos: o fato administrativo (qualquer tipo de conduta, comissiva ou omissiva, atribuída ao Estado); o dano (patrimonial ou moral) e o nexo causal (o dano ocorrido deve derivar de uma ação ou omissão estatal) 14. Entretanto, adverte Carlos Roberto Gonçalves que a Constituição de 1988 adotou a teoria da responsabilidade objetiva do Estado sob a modalidade do risco administrativo, de forma que a responsabilidade pode ser afastada ou atenuada em sendo configuradas excludentes (fato exclusivo ou concorrente da vítima; caso fortuito ou força maior – fatos imprevisíveis), não sendo 12

Sobre o tema, ver CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 522-524, 2009. T

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CARVALHO FILHO. Op. cit. p. 521.

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Ibidem, p. 531.

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adotada a teoria do risco integral, que obrigaria sempre o Estado a indenizar, sem a análise de qualquer excludente. 15 Ocorre que ainda existe outra diferenciação feita pela doutrina e jurisprudência pátria, a respeito da natureza dessa responsabilidade quando se está diante de um fato comissivo e de um fato omissivo da Administração Pública. Entende-se que perante um ato comissivo do Estado, sua responsabilidade é objetiva, sob o manto da teoria do risco administrativo, já mencionada acima. Entretanto, quando se está diante de uma omissão do poder público, ou seja, de inércia, negligência, quando tinha o dever de agir e não o fez, o assunto é polêmico. A doutrina majoritária entende que em caso de omissão a responsabilidade é subjetiva, posto que dependerá da comprovação de comportamento ilícito, doloso ou culposo, pendente da verificação de existência de negligência, imperícia ou imprudência. Ou seja, é subjetiva porque pendente de comprovação de que haveria um dever jurídico de agir por parte do Estado, diante de um comando normativo que impunha uma ação da Administração Pública. Celso Antônio Bandeira de Mello aprofunda ainda mais a questão. Para ele, há que se distinguir entre três espécies de responsabilidade do Estado: por ação, em que o próprio comportamento do Estado gera o dano (responsabilização objetiva); por omissão, em que o dano é causado por um comportamento alheio ao Estado, mas que esse tinha o dever legal de evitar (exige, para a maioria, a responsabilização subjetiva) e aquela em que não é uma atividade do Estado que provoca o dano, “contudo é por atividade dele que se cria a situação propiciatória do dano, porque expôs alguém a risco” 16. Nesse último caso, por exemplo, o Estado se coloca numa situação de garantidor daqueles que estão sob a sua vigilância, ocasião em que a responsabilidade será objetiva. E o presente artigo compartilha da tese de Celso de Mello, no sentido de que, em se tratando de responsabilidade do Estado por omissão, via de regra ela é subjetiva, carecendo da prova do dever de agir do Estado; porém, se o Estado criou uma situação propiciatória do dano, por ter, por exemplo, o dever de guarda sobre pessoas ou coisas, aqui sua responsabilidade será objetiva. É o que ocorre, por exemplo, quando um detento é assassinado por outro, dentro do estabelecimento prisional, sem que o Estado tenha agido para evitar o dano, quando tinha o dever de fazê-lo. Relativamente ao tema em estudo, no qual se evidencia a violação constante às normas que dizem respeito ao cumprimento das penas, com o total desrespeito à dignidade dos apenados, tem-se que, na seara interna, é tranquila a responsabilização do Estado brasileiro, em hipóteses de prejuízos causados por “erro judiciário”, como no caso expressamente previsto na

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 7ed. São Paulo: Saraiva, p. 172, 2002.

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MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26ed. São Paulo: Malheiros, p. 1000, 2008,

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Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso LXXV (“O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”). Ou seja, nos casos em que ocorre um erro judiciário em prejuízo do condenado, ele poderá ser indenizado. Porém, o que ocorre quando o Estado brasileiro malfere a dignidade do apenado? Nesse aspecto, é gerado um dano moral ao apenado, que, conforme visto, é elemento gerador da responsabilidade civil do Estado. Entretanto, o assunto ainda aparece de forma tímida nos tribunais, notadamente em casos individuais extremos, quando ocorre a morte do apenado, hipótese em que é reconhecida a responsabilidade objetiva do Estado, por omissão no seu dever de cuidado, conforme já visto nas linhas acima.17 T

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Porém, outro caminho está sendo trilhado nos tribunais superiores quando se trata de ofensas à dignidade humana ocorrida por outros fatores, como superlotação e condições precárias dos estabelecimentos prisionais, causando sofrimento e dano moral. Com efeito, há registros de ações movidas por detentos, de cunho individual, pleiteando a condenação do Estado por danos morais, devido às precárias condições a que foram submetidos quando do cumprimento das penas, como a superlotação, alegando ofensa à dignidade humana. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça tem sido contrário a tais pleitos, acolhendo os argumentos do Estado da reserva do possível, diante de alegadas dificuldades orçamentárias. À guisa de exemplo, no julgamento do Recurso Especial nº 962.934/MS, o Ministro Herman Benjamim negou o pedido de indenização feito por detento que alegou ter sido submetido a condições indignas na prisão, em decorrência da superlotação e ausência de melhoramentos estruturais (condições insalubres), ao argumento de que indenizações pecuniárias individuais em nada contribuirão para a melhoria do sistema prisional pátrio, ao contrário, apenas irão onerar ainda mais o Estado, e ainda traçou outras medidas que ele entende que deveriam ser tomadas tanto pela Defensoria Pública, quanto pelo Ministério Público, no afã de promover essa melhoria. Este trabalho pactua da tese de que a defesa coletiva é o melhor caminho, haja vista que possibilita a melhoria do sistema como um todo, para todos os encarcerados. Mas, para tanto, é preciso que o Poder Judiciário esteja preparado para o trato com as ações coletivas, incorporando o seu espírito e princípios próprios, não consagrando teses arcaicas como a “separação absoluta dos poderes”, a tese da “discricionariedade absoluta por parte do Poder Público” e o culto cego à tese da “reserva do possível”, como pretexto para sanar todas as omissões do Estado, mesmo diante de mandamentos constitucionais, sob pena de não se conseguir transformar esse terrível estado de coisas, relativamente ao cumprimento das penas. No entanto, não parece razoável excluir a indenização em casos de pleitos individuais, posto que, conforme já visto, o Estado tem o dever de assegurar o cumprimento das penas com 17

A esse respeito, consultar STF - RE 215981 / RJ – 2ª Turma – j. 08/04/2002 - DJ -31-05-02 - Rel. Min. Néri da Silveira e STJ - RESP 5711 / RJ – 1ª Turma - DJ:22/04/1991 – Rel. Min. Garcia Vieira. T

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dignidade; se não o faz há que ser responsabilizado, uma vez presentes todos os pressupostos para tanto: fato administrativo, dano moral e nexo causal. A ofensa à dignidade do apenado pode ocorrer tanto por ação (quando pratica condutas atentatórias à dignidade do Estado, submetendoos, por exemplo, à superlotação e condições insalubres), ou por omissão do Estado, quando esse, por negligência e inércia, descumpre as normas legais e, por exemplo, não garante assistência médica e jurídica aos apenados. Ocorre que, na realidade, não se tem efetivado a contento nem a defesa coletiva, nem a defesa individual da dignidade dos apenados, o que é inadmissível. Daí a importância de se analisar as funções dos atores responsáveis, no afã de propor ações que visem a mudar essa triste realidade. Vista a possibilidade de responsabilização no âmbito interno, convém traçar algumas linhas sobre a responsabilidade da União no âmbito internacional. Ensina Dinh18 que, ao contrário da lenta aceitação, no âmbito interno, a respeito da possibilidade de responsabilidade do Estado por atos ilícitos, no âmbito internacional “o princípio da responsabilidade dos Estados é tão antigo como o da sua igualdade”. Com efeito, na ordem internacional há muito que reina o princípio, de natureza consuetudinária, no sentido de que os Estados são iguais, tanto em direitos, como em obrigações, cabendo a devida responsabilização quando se verifique ofensas ao pacto firmado. Mas de quem seria a responsabilidade internacional por descumprimento dos tratados de direitos humanos? Doutrina Flávia Piovesan, que, em havendo o descumprimento de tratados internacionais, notadamente os de direitos humanos, objeto deste trabalho, eventual responsabilidade internacional será da União, e não dos Estados federados, pois aquela dispõe de “personalidade jurídica na ordem internacional”.19 T

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Portanto, no caso específico ora em estudo, seria da União, representando o Estado brasileiro soberano, a responsabilidade internacional pelo descumprimento dos tratados e convenções internacionais que disciplinam a forma de cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil. Em verdade, faz-se inevitável a responsabilização internacional do Estado brasileiro, diante da violação aos tratados internacionais ratificados, que proíbem a violação do princípio da dignidade da pessoa humana no cumprimento das penas. E quais seriam os elementos configuradores dessa responsabilidade face a tal violação dos direitos humanos? Ensina a doutrina que para configurar a responsabilidade internacional do Estado, devem estar presentes os seguintes elementos: fato, nexo da causalidade entre fato e dano e o esgotamento dos recursos internos (necessidade de ser buscado primeiramente o esgotamento 18 T

DINH, Nguyen Quoc, et al. Op. cit. p. 776.

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PIOVENSAN, Flávia. Op. cit. p. 373.

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de todos os recursos internos disponíveis para a tutela de um direito, para, só então, partir para a responsabilidade internacional, quando não haja a devida resposta pelo ordenamento interno). Entretanto, pontua Cançado Trindade que a regra clássica do esgotamento dos recursos internos por parte dos indivíduos reclamantes, em se tratando de direitos humanos, ganhou uma nova feição na jurisprudência internacional. Com efeito, a referida regra passou a ser considerada “em conexão com a obrigação correspondente dos Estados de prover recursos internos eficazes; a ênfase passa a recair na tendência de aprimoramento dos instrumentos e mecanismos nacionais de proteção judicial”20. Assim, cabe ao reclamante da violação, a um direito humano garantido em um tratado, primeiramente buscar os meios do direito interno disponíveis. Doutra banda, o direito interno tem a obrigação de disponibilizar e efetivar os meios adequados para a tutela desse direito; caso contrário, será devida a responsabilização internacional. André de Carvalho Ramos esclarece que o Direito Internacional estabelece que, em havendo violações aos direitos humanos por parte de um Estado signatário de um tratado de proteção, deve haver a devida reparação ao indivíduo, a qual pode ser dar de diversas formas, como a restituição integral (retorno ao status quo ante), indenização, satisfação, garantias de nãorepetição da violação, dentre outras.21 T

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Cançado Trindade pontua que quando um Estado assina e ratifica um tratado de direitos humanos, além de contrair obrigações específicas relativas ao tratado, também se obriga, perante a ordem internacional, a “respeitar e assegurar o respeito aos direitos protegidos, o que quer medidas positivas por parte do Estado”.22 A afirmação de Cançado Trindade é de fundamental importância. Ora, não basta ao Estado assinar e ratificar um tratado, aparentando boa intenção perante a comunidade internacional, e, na ordem interna, não tomar uma medida sequer que efetive o cumprimento das obrigações traçadas pelo tratado. Trindade critica duramente essa postura dos Estados, apregoando que sejam tomadas medidas para promover a responsabilização do Estado descumpridor, por ação ou omissão, seja do Poder Executivo, do Legislativo ou do Judiciário.23 Relativamente à responsabilidade internacional do Estado brasileiro, tem-se que ela pode ser buscada tanto no sistema global de proteção aos direitos humanos, também denominado de “sistema internacional”, como no sistema regional interamericano.

20

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado Trindade. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. V. 1. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p. 532, 2003. T

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RAMOS, André de Carvalho. Responsabilidade Internacional por violação de direitos humanos: seus elementos, a reparação devida e sanções possíves. Rio de Janeiro: Renovar, p. 251-252, 2004. T

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TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, Op. Cit, p. 551, 2003.

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TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Op. Cit, p. 551-552, 2003.

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No sistema global, relativamente ao descumprimento dos tratados de direitos humanos que regem a forma de cumprimento das penas privativas de liberdade, essa responsabilização poderá ser buscada por meio dos seguintes instrumentos: Carta das Nações Unidas (ratificada pelo Brasil em 21/09/45); Declaração Universal dos Direitos Humanos (assinada em 10/12/1948); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ratificada em 24/01/1992) e seus Protocolos Facultativos e a Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes (ratificada em 29/09/1989), acompanhada de seu Protocolo Facultativo. Em busca dessa responsabilização, em âmbito global, destaca-se a via da Corte Internacional de Justiça, conforme prevê o artigo 92 e seguintes da Carta das Nações Unidas de 1945. Porém, o sistema global peca por raramente condenar os Estados ao cumprimento de obrigações jurídicas, pouco estabelecendo sanções para o caso de descumprimento, bem como por apenas admitir que os Estados sejam partes em sua jursidição. Ocorre que, relativamente ao objeto deste estudo, a responsabilidade internacional do Estado brasileiro poderá ser buscada, também e de forma mais eficiente, no sistema regional, que funciona no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Ensina Rodrigo Meirelles24 que o sistema interamericano é formado por dois procedimentos: um geral, aplicável a todos os membros da OEA, com base nas disposições genéricas da Carta da OEA e nas determinações da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem; e o procedimento estabelecido na Convenção Americana ou Pacto de São José da Costa Rica, aplicável somente aos Estado-partes, e que é melhor estruturado. Os dois sistemas se baseiam no trabalho da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, previstas no art. 33 do Pacto de São José da Costa

Rica (Convenção

Americana de Direitos Humanos). O Estado brasileiro reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por meio do Decreto Legislativo nº 89/98. Segundo o art. 1º do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão é um órgão da Organização dos Estados Americanos, criado para promover a observância e a defesa dos direitos humanos e para servir de órgão consultivo da Organização nessa matéria. Suas atribuições estão delineadas no artigo 18 do citado Estatuto, dentre as quais destacam-se a formulação de recomendações aos Governos; a preparação de estudos e relatórios; atendimento às consultas formuladas pelos Estados-membros; apresentar relatórios anuais; fazer observações in loco em um Estado, com a anuência ou a Convite do Governo respectivo. Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o órgão jurisdicional do sistema interamericano. O art. 23 do Estatuto estabelece que qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade governamental legalmente reconhecida pode apresentar à Comissão Interamericana de direitos 24

COELHO, Rodrigo Meirelles Gaspar. Proteção Internacional dos Direitos Humanos. A Corte Interamericana e a implementação de suas sentenças no Brasil. Curitiba: Juruá, p. 62-63, 2008. T

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humanos petições em seu próprio nome ou no de terceiros, sobre supostas violações dos direitos humanos reconhecidos, conforme o caso, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, na convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, dentre outros instrumentos normativos. Assim, diferentemente do sistema global, no regional amplia-se a possibilidade de acesso à Justiça Internacional. Aqui se ressalta o papel do Ministério Público, da Defensoria Pública, da sociedade civil organizada, enfim, da comunidade jurídica nacional, a qual caberia provocar a Comissão, noticiando a barbárie dos nossos estabelecimentos prisionais pátrios. Ressalte-se que a sociedade civil organizada, mormente por meio de ONGs e pastorais carcerárias, tem provocado a comunidade internacional a respeito do descalabro reinante no sistema prisional brasileiro, o que culminou com a realização de visitas ao território nacional, formulações de relatórios e recomendações por parte dos organismos internacionais, mas urge que esse tipo de comunicação seja ainda mais pulverizada, inclusive pelos outros agentes que deveriam garantir tais direitos, como o Ministério Público e a Defensoria Pública. Interessante mencionar que o artigo 31 do Estatuto da Comissão prevê o requisito do esgotamento dos recursos da jurisdição interna, como pressuposto para a admissibilidade da petição, prevendo, entretanto, as seguintes exceções à regra: se não existir na legislação interna o devido processo legal para a proteção do direito que se quer proteger; se não tenha sido permitido ao suposto lesado o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou haja sido impedido de esgotá-los ou haja atraso injustificado na decisão sobre os referidos recursos. Portanto, conclui-se que, no sistema interamericano, a regra do esgotamento dos recursos internos não é absoluta, o que só vem a facilitar o acesso à justiça internacional. Segundo Adriana Estigara, em qualquer etapa do exame de uma petição ou caso, a Comissão poderá iniciar procedimento de solução amistosa (art. 40), com a emissão de recomendações ao Estado-parte, “quanto à adoção de medidas legais e administrativas”, bem como para a promoção de “pagamento e indenização às vítimas e seus familiares”.25 T

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Se a Comissão entender que não foram adotadas as medidas cabíveis por parte do Estado reclamado, submeterá o caso à Corte (se o Estado respectivo tiver aceitado a jurisdição da Corte). A mesma medida poderá ser feita atendendo a pedido do próprio Estado interessado (art. 61 da Convenção). A Corte interamericana, instituição judiciária autônoma, está sediada em San José da Costa Rica, podendo realizar reuniões em qualquer Estado membro da OEA. Suas atribuições, estrutura e forma de funcionamento estão fixadas no Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 25

ESTIGARA, Adriana. O dever de adotar políticas públicas em decorrência da atuação do sistema interamericano de direitos humanos: uma análise a partir dos casos ‘Maria da Penha’ e ‘Damião Ximenes’. In: PIOVESAN, Flávia e IKAWA (COORDENADORAS). Direitos humanos: fundamento, proteção e implementação. Curitiba: Juruá, p. 459-460, 2009. T

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Uma vez apresentando um caso à Corte, será aberto prazo às partes interessadas, inclusive às supostas vítimas, para que apresentem petições escritas, com argumentos e provas. Após a devida tramitação do caso perante a Corte, esgotada a produção de provas e o devido processo legal, será proferida uma sentença pela Corte (art. 65, Estatuto da Corte), que conterá, dentre outros elementos, os fatos, os fundamentos de direito e a decisão sobre o caso e o pronunciamento sobre as reparações devidas. O artigo 68, § 1º, do Pacto de São José da Costa Rica, determina que os Estados-Partes se comprometem a cumprir as decisões da Corte em todo caso em que forem partes. Seguindo as lições de Mazzuoli, tem-se que, de acordo com o art. 68, ponto 1, da Convenção Americana, “as sentenças da Corte têm eficácia imediata na ordem jurídica interna, devendo ser cumpridas de plano (sponte sua) pelas autoridades do Estado condenado”.26 E se o Estado-parte não cumprir a sentença da Corte, como fazer para garantir o cumprimento da obrigação?

No caso brasileiro, Mazzuoli indica que caberá à vítima ou ao

Ministério Público Federal apresentar a ação judicial para dar cumprimento à sentença da Corte, tratando-se de título executivo válido no Brasil, de aplicação imediata, obedecendo às normas internas de execução contra o Estado.27 T

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Em matéria penitenciária, o caso que se tem notícia de petição formulada à Comissão foi o referente às barbáreis noticiadas no presídio Urso Branco, em Rondônia, no qual ocorreu a chacina de inúmeros apenados. A petição foi encaminhada à Comissão Interamericana pela Comissão de Justiça e Paz (CJP) de Porto Velho e movimento Justiça Global, em 2002, após a chacina de vinte e dois apenados, no interior do referido presídio, em janeiro de 2002. O caso foi levado à Corte Interamericana, a qual determinou ao Estado brasileiro a adoção de inúmeras medidas visando a garantia da proteção da vida integridade física de todos os apenados do referido estabelecimento. Desde 2002 a Corte vem acompanhando esse caso, havendo alguma melhoria nas condições do presídio, mas não a solução definitiva. Outro problema que surge nesses casos é a dificuldade de fiscalização e efetivação das decisões da Corte Internacional de Justiça, ponto que merece a devida atenção e estudo por parte dos internacionalistas. De todo modo, urge que ocorra a dinamização dessa responsabilização internacional. Afinal, a partir do momento em que houver mobilização perante a Corte Interamericana para denúncias de ferimento do princípio da dignidade humana nos presídios, em todo o Brasil, talvez, assim, a União assuma, perante a comunidade internacional, a sua responsabilidade no cumprimento da Constituição, dos tratados internacionais e da Lei de Execuções Penais, e passe

26

MAZUOLLI, Valério de Oliveira. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: pacto de San José da Costa Rica. 3 ed. São Paulo: RT, p. 345, 2010. T

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MAZUOLLI, Valério de Oliveira. In: GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos: pacto de San José da Costa Rica. 3 ed. São Paulo: RT,. p. 345, 2010. T

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a cumprir o seu papel de fiscalizar os presídios brasileiros, cobrando dos Estados federados o cumprimento de sua obrigação de promover a execução das penas com respeito à dignidade humana.

5. Conclusão Diante de todo o exposto neste artigo, formula-se os seguintes remates, à guisa de conclusão: 1) O sistema normativo brasileiro, constitucional e infraconstitucional, adotou os postulados da humanização e o princípio da dignidade da pessoa humana na execução das penas, em consonância com a normativa internacional, essa por meio da assinatura de tratados e convenções, devidamente ratificados e incorporados pelo direito pátrio; 2) Não obstante toda a normativa interna e internacional em vigor a respeito do cumprimento das penas com dignidade, verifica-se, na prática, que o Estado brasileiro, de um modo geral, faz letra morta à Constituição Federal, à normativa internacional e à LEP; 3) O Estado brasileiro tem o dever de assegurar o cumprimento das penas com dignidade; se não o faz, há que ser responsabilizado civilmente, tanto em âmbito nacional como internacionalmente; 4) Havendo violações aos direitos humanos dos apenados consagrados nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, em se verificando inércia ou demora injustificada da jurisdição interna, cabe aos atores responsáveis provocar os organismos internacionais, visando à promoção da responsabilidade internacional do Estado brasileiro pelo descumprimento dos tratados que regem a forma de cumprimento das penas privativas de liberdade; 5) É preciso fortalecer os mecanismos existentes, a fim de que jurisdição internacional possa impor-se à jurisdição nacional, sempre que esse última não tenha agido com a devida eficiência para a promoção e garantia dos direitos fundamentais; 6) O sistema internacional regional de proteção aos direitos humanos admite o amplo acesso à Justiça Internacional, à medida em que permite a qualquer pessoa formular uma petição perante a Comissão Internacional de Direitos Humanos, a qual poderá levar o caso à Corte Interamericana, promovendo a responsabilização internacional do Estado violador dos tratados; 7) Tanto o ordenamento interno como o internacional dispõem de meios de acesso à Justiça, com vistas a efetivar os direitos fundamentais e humanos dos apenados, cabendo ação por parte dos atores responsáveis, notadamente ao Ministério Público, a Defensoria Pública e a sociedade civil organizada, seja por meio do manejo dos recursos internos disponíveis, seja por meio de formulação de petições aos organismos internacionais, noticiando as graves violações aos direitos humanos ocorridas nos estabelecimentos penais pátrios.

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Disponível

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em:

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