Da literatura para os quadrinhos: Guimarães Rosa desenhado por Breccia

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Todas as imagens são retiradas de Antiperiplea, HQ que integra o álbum Versiones (1993), de Breccia e Sasturain.
Todas as citações deste capítulo são de BRECCIA; SASTURAIN, 1993.


RESUMO

Juan Sasturain e Alberto Breccia criaram diversas histórias em quadrinhos a partir da fonte das obras literárias. Pinça-se uma delas em especial que consta em Versiones chamada "Antiperiplea", uma narrativa curta de oito páginas que é uma tradução do conto de João Guimarães Rosa, de seu livro Tutaméia (Terceiras histórias). Esse curioso encontro entre platinos e brasileiros parece um tema propício para ser apresentado por um pesquisador brasileiro em um congresso argentino.
 
O objetivo deste trabalho é lidar com a adaptação de Sasturain e Breccia para as histórias em quadrinhos do conto de Guimarães Rosa como se fosse uma tradução. A base desse pensamento é o conceito de Transcriação de Haroldo de Campos e por isso trata-se aqui tudo como uma tradução, inclusive aquilo a que normalmente se dá o nome de adaptação (muito comum na tradução entre literatura e histórias em quadrinhos).
 
Essa tradução se dá em "Antiperiplea" em, pelo menos, dois níveis: a tradução chamada de interlinguística (a passagem das palavras do português para o espanhol) e a intersemiótica (a transformação do texto de prosa verbal para uma história em quadrinhos), para usar os termos de Roman Jakobson. Interessa-nos avaliar essa relação intersemiótica principalmente, mas sem relegar de forma alguma a relação interlinguística.
 
Se cada mídia/meio de comunicação organiza seus signos em textos (e a partir daí cabe pensar em texto verbal, texto visual, texto musical etc), propõe-se que cada uma dessas mídias/meios de comunicação tem uma linguagem que enuncia esses textos que é diferente das outras. Logo, pode-se dizer que a linguagem de uma mídia a distingue das demais mídias. Desse modo, o trânsito entre linguagens (como no caso de nossa análise) vai exigir diferentes opções expressivas entre as duas linguagens em questão (texto verbal e texto HQ), dada as particularidades das linguagens de cada mídia.
 
Como ferramenta de análise dessa tradução propõe-se aquilo que já foi usado pelo pesquisador em seu mestrado e em outros artigos: a teoria da montagem cinematográfica de Sergei Eisenstein. Mesmo que o diretor russo pensasse em cinema, suas proposições sobre justaposição servem muito bem para as relações imagem-imagem, texto-imagem e texto-texto, pois ele considerava a montagem um processo comum a todas as artes.
 
Com essas teorias principais acima citadas e a análise do conto de Guimarães Rosa, análise da história em quadrinhos de Sasturain e Breccia e uma posterior comparação entre elas se espera desnudar algo do processo dessa tradução e das características próprias de cada uma das linguagens envolvidas nessa troca.

Da literatura para os quadrinhos: Guimarães Rosa desenhado por Breccia
LIELSON ZENI (AUTOR)
Este artigo se propõe a refletir sobre o processo de adaptação de uma obra literária para as histórias em quadrinhos. Para isso, optou-se por entender a adaptação tanto como uma forma de tradução, quanto como um par criativo que une texto de partida e texto de chegada – para utilizar termos da tradução (ARROJO, 2007).
Como objeto de estudo escolheu-se duas obras que, tal qual este artigo de autor brasileiro em um congresso argentino, costuram um encontro similar: um conto de um autor brasileiro adaptado por uma dupla de quadrinistas portenhos. No caso, Antiperipléia, de João Guimarães Rosa (contido no livro Tutaméia: terceiras estórias) transformado na HQ Antiperiplea pelo argentino Juan Sasturain (roteiro) e pelo uruguaio Alberto Breccia (desenhos).
Cada uma das obras será apreciada individualmente e então comparadas entre si, em busca do que haveria de específico em cada um dos meios utilizados para a expressão de uma narrativa que, se espera, é muito próxima. Não se fala em "mesma narrativa" porque parte-se do pressuposto de que não há fidelidade absoluta na relação entre obra de partida e obra de chegada e discutir esse ponto não é preocupação aqui, porque há consenso entre os modernos teóricos da tradução de que isso é impossível (BRITTO, 2012). Além disso,

Sasturain faz uma interessante analogia à maneira de Breccia versionar obras literárias com o que uma banda de jazz instrumental faz com um tema standard deste estilo. Improvisa ao ponto que, em determinados momentos, a música é praticamente irreconhecível, porém sua essência continua ali. Ou seja, Breccia não tentava realizar um cover de um sucesso, mas sim recriar algo que em algum momento sentiu-se refletido, tornando aquilo parte sua. (FRANZ, 2008: 61)

Trate-se então, primeiramente, da ideia de adaptação como tradução.
Entendendo a adaptação como tradução
Ao expandir a ideia de tradução para além da transposição dos códigos linguísticos, ou seja, de um idioma para outro, surge a noção de traduzir não apenas o enunciado, mas também o meio usado para transmitir esse enunciado, a "tradução intersemiótica". De acordo com JULIO PLAZA, "A primeira referência (explícita) de Tradução Intersemiótica que tive oportunidade de conhecer foi nos escritos de Roman Jakobson. De que tenho notícia, Jakobson foi o primeiro a discriminar e definir os tipos possíveis de tradução: a interlingual, intralingual e intersemiótica." (2003: XI).
Para JAKOBSON (1975), tradução intralingual se dá entre os signos verbais de um mesmo idioma, entendida como reformulação (em português, por exemplo, também se chamam "adaptação" os clássicos literários adaptados para as crianças, ou seja, reescritos de maneira supostamente mais fácil); já a tradução interlingual se dá entre signos verbais de idiomas diferentes, e é conhecida como a tradução propriamente dita; e a tradução intersemiótica é aquela que transforma um sistema de signos em outro sistema de signos (é usado algumas vezes o termo transmutação).
No caso específico do objeto de estudo deste artigo, os quadrinhos são uma linguagem que mescla o verbal e o não verbal, alternando entre eles e justapondo-os. Perceba que o próprio verbal pode ganhar uma significação não verbal adicional pelo uso da tipografia, por exemplo.
IMAGEM 1: a tipografia distingue a voz de Prudenciano da voz dos demais personagens (quadros 4 e 5, página 5)
Há também uma segunda questão, mas não menos importante. Como o texto de Guimarães Rosa foi escrito em português, além da tradução intersemiótica, ocorre aqui também a tradução interlingual, do português para o espanhol. O que, a se considerar as peculiaridades estilísticas da escrita rosiana, traz grandes desafios para quem quiser manter o estilo do autor brasileiro, exigindo bastante criatividade de seu tradutor. Ou como o próprio Guimarães Rosa aconselha o tradutor de sua obra para o italiano, Edoardo Bizzarri: "'A orientação válida é mesmo aquela – de só pensarmos nos eventuais leitores italianos. Não se prenda estreito ao original. Vôe por cima, e adapte, quando e como bem lhe parecer.'" (ROSA, 2003: 7).
Orientação essa que encontra eco na ideia de Transcriação de Haroldo de Campos, um dos mais importantes tradutores de poesia e teórico da literatura brasileira:

Para Haroldo [...] significava que a transcriação do texto, visando à literalidade, deveria levar à transformação criativa do extratexto – à modernização do contexto histórico, muitas vezes através da incorporação de intertextos que aproximam a tradução do presente de criação. Assim, passado e presente, literalidade e criatividade, nacional e estrangeiro não se excluem mas mantém uma relação dialética e vital. (NÓBREGA, 2006: 251)

Para Campos, traduzir o enredo significa pouco como apresentação da obra. Nóbrega chama de hiperfidelidade essa intenção de Haroldo de Campos de traduzir (ou recriar) os elementos extratextuais a despeito daqueles considerados mais comuns para a poesia, como o ritmo, rima e temáticas. Ou seja, Campos não trabalha com a ideia de uma tradução livre, mas com outros interesses de conversão entre o texto de partida e o texto de chegada. A intenção dele é olhar para outros elementos nesse par texto de partida e texto de chegada.
Leva-se tudo isso em conta neste artigo quando se fala da tradução que Sasturain e Breccia fizeram de Guimarães Rosa.
O Antiperipléia do Tutaméia
Antiperipléia é o primeiro conto do livro Tutaméia: terceiras estórias que surge após o primeiro prefácio (o livro conta com quatro prefácios do próprio autor e que são fundamentais para a concepção do todo da obra, espalhados entre os contos). Porém, há um jogo de leitura proposto por Guimarães Rosa que altera a ordem de leitura do livro. Ou melhor, de releitura. Ao terminar Tutaméia, o leitor encontra o segundo índice com a ordem alterada dos contos, em que os quatro prefácios iniciam-se a releitura e a ordem das demais narrativas também é alterada. Mesmo assim, Antiperipléia é o primeiro conto (após os prefácios, agora todos juntos). Portanto, em qualquer das opções de índice sugeridas pelo autor, é o mesmo conto que abre o livro.
Tutaméia: terceiras estórias é o último livro publicado em vida pelo autor e saiu em 1967, com uma reunião de contos curtos (que variam entre três e cinco páginas), sendo que alguns deles tinham sido publicados na revista Pulso. Guimarães Rosa já era autor consagrado por Sagarana, Primeiras estórias e Grande sertão: veredas quando publicou este livro.
Sobre a feitura do livro, "[...] o processo de criação de Guimarães Rosa, em Tutaméia, vai oscilar entre o excesso e a subtração de sentido. Em alguns contos, como Antiperipléia, como veremos, a polissemia é tão grande que o texto acaba desaguando na indecidibilidade semântica." (OLIVEIRA, 2008: 80). Ou seja, a narrativa busca apontar para um elemento único e indiscutível.
A trama do conto pode ser resumida deste modo:

O personagem-narrador de Antiperipléia, primeiro conto das Tutaméia, é um guia de cego acusado pela amante de seu patrão, Seô Tomé, de tê-lo assassinado. Na hora em que aconteceu o crime, o guia estava bêbado. O personagem-narrador tenta então se explicar, defendendo-se das acusações de que teria sido ele o assassino do cego. O guia expõe quais teriam sido as causas do assassinato. Ele imagina que o cego poderia ter morrido por acidente ou ter sido morto pelo marido da amante ou mesmo pela própria amante. (OLIVEIRA, 2008: 94-95).

Isso tudo é narrado pelo guia a um interlocutor que não lhe responde (assemelhando-se nesse aspecto a Grande sertão: veredas) ou pelo menos, os leitores não conhecem as respostas desse personagem. Ou seja, pode-se dizer que há uma estrutura dialógica no conto e que ela não é novidade na obra rosiana. Em Antiperipléia, sabe-se que esse personagem ouve e escreve o depoimento do personagem narrador. Inclusive, há leituras como esta:

Sob um ponto de vista que privilegie a metalinguagem, dir se ia que o narrador sertanejo, com as particularidades de sua visão de mundo e de seu falar, apenas ganha voz e é devidamente valorizado ao entrar em contato com o homem urbano, ou seja, ao ter seu discurso transposto e recriado pelo homem culto, pelo autor. O narratário de "Antiperipléia", Seô Desconhecido, funcionaria, então, como um alter ego de Guimarães Rosa, uma personagem cujas características não são postas em relevo no desenrolar da estória, mas sem a qual não haveria para Prudencinhano a possibilidade de narrar. Análogo ao que ocorre na relação leitor autor obra: para nós, leitores urbanos, também seria muito difícil entrar em contato com a humanidade do narrador sertanejo sem que houvesse a mediação do texto artisticamente construído. (GIOVANNETTI, 2004: 110)

Guimarães Rosa era um escritor atento à ampla gama de sentidos das palavras, levando inclusive aos neologismos, por isso, os títulos do livro e do conto são importantes. Tutaméia, define Paulo Rónai em ensaio contido na edição brasileira da obra, "No Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa encontramos tuta-e-meia definida por Mestre Aurélio como 'ninharia, quase nada, preço vil, pouco dinheiro'." (ROSA, 2001a: 15). Isso é uma referência à curta extensão dos contos, bem como uma autoironia sobre a importância das narrativas, e ainda, liga-se a uma tradição clássica, a das nugae de Catulo, poeta romano do século I a.C., que assim chamou seus pequenos poemas. A palavra nugae pode ser traduzida do latim como "ninharias".
O uso do termo "estória", em vez de "história", aponta para um desejo de ficcionalização e descolamento do factual. Trata-se muito mais do anedótico e do causo que dos fatos históricos. Quanto ao "terceiras", conta Paulo Rónai em introdução à obra:

— Por que Terceiras estórias — perguntei-lhe [a Guimarães Rosa]— se não houve as segundas?
— Uns dizem: porque escritas depois de um grupo de outras não incluídas em Primeiras estórias. Outros dizem: porque o autor, supersticioso, quis criar para si a obrigação e a possibilidade de publicar mais um volume de contos, que seriam então as Segundas estórias.
— E que diz o autor?
— O autor não diz nada — respondeu Guimarães Rosa com uma risada de menino grande, feliz por ter atraído o colega a uma cilada. (ROSA, 2001a: 15-16)

Já Antiperipléia é uma junção de palavras e sufixos:

Ao utilizar o sufixo "eia" à palavra périplo, que designa uma viagem de circumnavegação, pensamos na possibilidade dessa trajetória em algo como uma narrativa épica, com seus caracteres de extensão e heroísmo, mas que desfaz tais requisitos, já que o prefixo "anti" também a acompanha e imediatamente a nega. Pensamos então que temos diante de nós uma narrativa que não perfaz o seu caminho, que acena logo em seguida às suas costas, e não cumpre a sua predestinação circular. Além de dar uma ideia a vislumbrar um retorno inesperado, nos induz a pensar no desconcerto de uma linearidade desmanchada. De um prévio movimento que não se concretiza, não necessariamente como se estipulava. (MELO, 2011: 75)

O conto é o relatório de um personagem bêbado, que precisa se defender da acusação de assassinato contra o cego que ele deveria tomar conta. O título da narrativa, a primeira coisa a ser lida já é uma negação, o "anti-" e ele mesmo põe em dúvida o relato do personagem. E essa não seria a única inversão a ser apontada neste conto:

A estória se constrói a partir da inversão, a começar pelo próprio título (o não caminho); há, também, o olhar do suposto criminoso bêbado, uma perspectiva marginal que continua a denunciar a realidade enquanto construção verossímil legitimada por uma comunidade. [...] Outra inversão evidente em "Antiperipléia" é a desconstrução da imagem simbólica do cego, que tantas vezes aparece como visionário na tradição e, na estória, é o enganado (o que realmente não vê). Há, ainda, a inversão irônica dos nomes das personagens: Prudencinhano é desleal, bêbado, imprudente; o nome do cego é seô Tomé [referência ao santo que só acredita no que vê] e da mulher adúltera e ardilosa, Sa Justa. A trama segue a mesma diretriz: os fatos narrados são organizados em flashback; a abundância de frases interrogativas também seria uma inversão do contar, do afirmar. Enfim, tal procedimento anunciado no título permeia toda a estória. (RAMOS, 2007: 134-135)

Quanto aos temas, o essencial aqui não é a solução de quem matou o cego ou se de fato alguém o matou. Esse conto trata sobre a própria contação, "[...] a narração é o tema desse texto narrativo." (VERRI, 2009: 43), o que seria mais uma inversão em uma estória que se apresenta com diversos elementos de um conto policial tradicional. Portanto, a quebra de expectativas é fundamental para se pensar Antiperipléia.
O Antiperiplea de Versiones
Antiperiplea é uma história em quadrinhos de curta extensão, escrita por Juan Sasturain e desenhada por Alberto Breccia a partir de um conto de João Guimarães Rosa. Sua produção fez parte de uma série de trabalhos de Breccia na década de 1970 com diversos roteiristas, lidando com adaptações literárias.

En 1973 [Breccia] se embarcó en un singular proyecto: explorar la brumosa región que se extiende entre la Historieta y la Literatura. Los motivos que lo impulsaron son a la vez de orden teórico (como mezclar los géneros sin desnaturalizar la esencia de cada uno), los formales (enriqueciendo la gramática de la historieta con nuevos artilugios narrativos) y estéticos. (FELLINGER, 2012: 263)

Do ponto de vista da forma, Antiperiplea conta com oito páginas. Seis dessas páginas têm oito painéis, sendo exceções à quinta (10 painéis) e a sétima página (seis painéis).
IMAGEM 2 (miniaturas das páginas)
A grade de base da página é de 12 quadros, com quatro colunas verticais e três tiras horizontais, com exceção da página quatro, que tem quatro tiras, parecendo ter uma grade de base de 20 quadros (cinco colunas por quatro tiras). Essas grades têm certa variação de altura e largura, não formando painéis simétricos.
IMAGEM 3 (as grades nas páginas)
Com base nisso, podemos dizer que o ritmo da história a partir dos quadros é regular, cabendo ao texto verbal e ao desenho qualquer mudança de andamento.
O traço de Breccia é bastante pontiagudo ao mesmo tempo em que usa muitas figuras circulares e esféricas na composição. O preto-e-branco em alto contraste reforça a impressão de que há uma dicotomia, uma relação intrínseca de opostos em ação. O desenho não diferencia momentos passados, contados ou lembrados, do presente da história, cabendo essa distinção ao texto verbal.
A existência icônica do texto verbal também é representativa nessa HQ, com três representações visuais distintivas: uma tipografia para Prudenciano, outra para texto anotado pelo personagem sem nome que o ouve e um tipo de letra para os personagens que são as vozes citadas no relato (ver IMAGEM 1). A exceção é a tipografia de quando a mulher feia pede que Prudenciano a ajude a enganar Señor Tomé, indicando que a fala é em voz baixa.
O texto se apresenta em balões no discurso direto de Prudenciano e no discurso citado dos outros personagens, como parte da cena quando anotado pelo interlocutor silencioso de Prudenciano, e como recordatório em algumas passagens.
A HQ se inicia com um quadro de fundo preto com o título e os créditos dos realizadores e se conclui com um quadro também de fundo preto com um balão de fala de Prudenciano e a assinatura de Breccia embaixo. Ironicamente, o texto do personagem nesse quadro de cor chapada é "Veo otras cosas."
Há uma imagem que se repete cinco vezes: o cego Tomé caindo pelo barranco (IMAGEM 4). Além dessa, outros quadros se repetem algumas vezes (a amante acusada por Prudenciano e o marido traído). Isso reforça o centro ao qual a história gira: a morte de Tomé e também enfatiza os seus vai e vens. O anão Prudenciano relata uma versão confusa e cheia de variações sobre o que pode ter acontecido a Señor Tomé, um cego do qual era guia que caiu do barranco e morreu. As acusações se voltam contra ele, mas Prudenciano se defende afirmando que não sabe bem o que aconteceu, pois estava bêbado (repete "yo chupo") e acusa a mulher feia com quem o cego saía de tê-lo matado ou ainda de que o marido dessa mulher o tenha atacado para roubar-lhe a bolsa de dinheiro ou mesmo o suicídio de Tomé ou ainda, um acidente.
Antes disso, uma mulher feia se encanta por Tomé e arma um plano para que Prudenciano, mediante pagamento, minta a seu tutelado sobre a aparência física dela. Tomé se apaixona pela mulher a ponto de acreditar que pode vê-la – o que, segundo o narrador, seria uma das razões da mulher feia querer matá-lo, que ele tivesse descoberto a verdade e também justificaria o suicídio de Tomé, vergonha por ter sido logrado.
Do ponto de vista ético, há uma série de trapaças e mentiras que fazem a vida de todos os personagens funcionar. Quando essas mentiras são descobertas, surge o problema da trama, simbolizado pelo corpo morto de Tomé. Por isso que Prudenciano diz "Peor ciego es el que quieres ver", numa inversão de um ditado conhecido, "pior cego é aquele que não quer ver".
Ou seja, Antiperiplea é uma história confusa, em que o narrador se contradiz e ao final dela não sabemos quem vitimou o cego, nem que fim terá Prudenciano.
Da relação entre obra de partida e obra de chegada
Numa aproximação entre as obras, o objetivo não é declarar uma delas superior a outra, nem mesmo verificar o grau de aproximação da adaptação em relação à "original". A proposta é um pareamento comparativo entre elas para observar como a linguagem própria de cada um dos meios reage a cenas similares.
As tramas são parecidas: têm os mesmos personagens principais, o mesmo evento central (a morte do cego) e principalmente, o mesmo personagem narrador Prudencinhano/Prudenciano, atribuindo-se a diferença de grafia dos nomes às particularidades dos idiomas português e espanhol.
No conto de Guimarães Rosa, Prudencinhano é o dono da palavra da primeira à última página; já na HQ a voz de Prudenciano está nos recordatórios e todos os balões de fala de outros personagens são encaixados dentro de suas memórias, em uma espécie de discurso citado. Mas além disso, há o texto escrito pelo personagem testemunha. Os textos de Prudenciano são extradiegéticos, ou seja, não fazem parte da realidade material do mundo ficcional, enquanto o texto escrito é intradiegético e existe naquele universo em que se passa Antiperiplea. No conto não há discurso citado, só paráfrase, tudo passa pela voz de Prudencinhano, é tudo intradiegético.
Como nos quadrinhos as imagens representam Prudenciano e sua fala, suas memórias e ilustra seu discurso, a narração não é dele, mas desse narrador onisciente que escolhe a cena a ser apresentada em traço. Essa alteração de perspectiva gera uma diferença significativa entre as obras. Enquanto tudo em Guimarães Rosa vem da palavra de um personagem bêbado e de caráter duvidoso, na HQ o leitor encontra pontos de certeza e discursos, ainda que citados, de outros personagens.
Porém o labirinto que surge das repetições de fatos algo alterados e de frases sinônimas no conto, na HQ é recriado perante a repetição de painéis e de imagens similares, com muita sombra, aumentando a indistinção entre o que ocorre.
Na HQ não há o contorcionismo verbal do conto, e quando comparados, os textos estão em partes diferentes da trama. A frase que encerra a HQ está na segunda página do conto, o personagem diz seu nome na última página do conto e na primeira da HQ. Antiperipléia é mais confuso e mais alucinado, tanto pelo tipo de narrador, quanto pela sua inconclusividade: "Vou, para guia de cegos, servo de dono cego, vagavaz, habitual no diferente, com o senhor, Seô Desconhecido." (ROSA, 2001a: 45). É como se o texto se interrompesse em um momento qualquer, pois poderia continuar a se repetir e se recriar. Só sabemos que Prudencinhano se diz inocente, bêbado e que concorda em ir com o seu ouvinte, seô Desconhecido.
A opção de Sasturain e Breccia de fecharem sua narrativa com "Veo otras cosas." de certa forma amarra a HQ e lhe dá um sentimento de estabilidade. Essa frase conduz a uma conclusão moral do personagem e lhe concede uma redenção irônica: pela bebida ele consegue ver aquilo que sua vida não tem.
Percebe-se que a arte de Breccia se abre a interpretações, e o famoso sertão místico de a obra rosiana está nos quadros. Já o texto e o narrador de certa forma estabilizem e permitam leituras mais direcionadas dos quadrinhos enquanto o conto de Guimarães Rosa se abre de significados pela sintaxe e léxico do português. O texto em espanhol segue a norma padrão do idioma com marcas de oralidade.
A simples inclusão de imagens gera certa estabilidade que a palavra mutante de Guimarães Rosa não se permite. E é justamente na justaposição entre texto e imagem que isso acontece. De acordo com EISENSTEIN "...dois pedaços de filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceito, uma nova qualidade, que surge da justaposição. Esta não é, de modo algum, uma característica peculiar do cinema, mas um fenômeno encontrado sempre que lidamos com a justaposição de dois fatos, dois fenômenos, dois objetos." (2002: 14)
A HQ no trabalho conjunto de imagens e texto verbal justapostos cria um sentido único que só pode ser obtido por essa junção específica. E no caso de Antiperiplea o que se obtém é um narrador onisciente e uma narrativa mais estável. Em Guimarães Rosa a estória abre-se como um sertão verbal no qual o leitor se perde. Sasturain e Breccia concedem um belo mapa a esse leitor.

Referências Bibliográficas
ARROJO, Rosemary (2007). Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática.
BRECCIA, Alberto (desenhista); SASTURAIN, Juan (roteirista) (1993). Versiones. Buenos Aires: Doedytores.
BRITTO, Paulo Henriques (2012). A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
CAMPOS, Haroldo de (2011). Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutória. Belo Horizonte: Viva Voz.
EISENSTEIN, Sergei (2002). O Sentido do Filme. 2 ed. Trad. Teresa Otoni. São Paulo: Jorge Zahar Editora.
FELLINGER, Christian Matias (2012). Alberto Breccia: la pulsión de un ideario. [Tesis doctoral no publicada]. Universitat Politècnica de València, Valencia. Recuperado de http://riunet.upv.es/handle/10251/15177
FRANZ, Pedro (2008). A quarta dimensão do trabalho de Breccia. [Monografia bacharelado em Design]. UFSC, Florianópolis. Disponível em: < http://sobreofim.files.wordpress.com/2009/04/breccia_pfranz.pdf>
GIOVANNETTI, Tadeu Jordão Fernandes (2004). O Narrador em "Antiperipléia", de João Guimarães Rosa. Ao Pé da Letra, Recife, v. 6.1, pp. 107-114, junho de 2004. Disponível em:
JAKOBSON, Roman (1975). Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix.
MELO, Diana Oliveira (2011). Falas oblíquas: o engodo da palavra em Tutameia (Terceiras estórias), de João Guimarães Rosa. [Dissertação de mestrado Letras]. UFCE, Fortaleza. Disponível em:
NÓBREGA, Thelma Médici (2006). Transcriação e Hiperfidelidade. Cadernos de Literatura em Tradução n. 7, pp. 249-255. Disponível em:
OLIVEIRA, Edson Santos (2008). Nicas, nonadas, tutameíces: o percurso da letra na obra de Guimarães Rosa. [Tese de doutorado Letras]. UFMG, Belo Horizonte. Disponível em:
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RAMOS, Jaqueline (2007). Risada e Meia: Comicidade em Tutaméia. [Tese de doutorado Letras] USP, São Paulo. Disponível em:
ROSA, João Guimarães (2001a). Tutaméia: Terceiras Estórias. 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
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VERRI, Valda Suely da Silva (2009). O narratário em alguns contos de Tutaméia (Terceiras estórias), de João Guimarães Rosa. [Tese de doutorado Letras]. UEL, Londrina. Disponível em: < http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000151685 >

IMAGENS
Imagem 1 - variações de letra

Imagem 2 – miniatura das páginas


Imagem 3 – Grade padrão e a página da exceção.

Imagem 4 – Um dos painéis que se repete: Tomé caindo do barranco


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