DA MODERNIDADE À CONCEPÇÃO DA MODERNA ARTE BRASILEIRA

July 25, 2017 | Autor: C. Alvarenga | Categoria: Sociology of Arts, Modernity
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA CENTRO DE ARTES, HUMANIDADES E LETRAS Núcleo de Gestão de Atividades de Extensão Núcleo de Gestão de Atividades de Pesquisa

ANAIS

I SEMINÁRIO DE PESQUISA E EXTENSÃO DO CAHL

Comissão Organizadora: Prof.a Dr.a Georgina Gonçalves dos Santos (Comitê PIBIC / CAHL – 2011) Prof. Dr. Wilson Rogério Penteado Júnior (Gestor de Pesquisa e Comitê PIBIC / CAHL – 2011) Prof. Ms. Francisco Henrique Rozendo (Comitê PIBIC / CAHL – 2011) Prof.a Ms. Rachel Severo Alves Neuberger (Gestora de Extensão / CAHL)

Dezembro / 2011

Sumário

Trabalhos Estudantis de Pesquisa

1. ADRIANA CARVALHO DA SILVA - Um estudo sobre maternidade a partir de uma problematização de gênero e criminalidade no conjunto penal de Feira de Santana – BA. 2. ALINE DOS SANTOS MAIA - O aspecto racial dos crimes cometidos em Cachoeira (1945-1964). 3. ANTONIO CLEBER DA CONCEIÇÃO LEMOS - Mobilização e repressão: a construção da unidade no processo de emancipação política do Brasil na Bahia. 4. BRUNO MACHADO - A experimentação do dispositivo: a perspectiva auto-reflexiva no documentário. 5. CAMILO ALVARENGA - Da modernidade à concepção da moderna arte brasileira. 6. ELANE CONCEIÇÃO ANIAS - Comunidade remanescente quilombola de Porto da Pedra: turismo e valorização da identidade cultural. 7. FERNANDA FERREIRA DE JESUS - O Programa de Transferência de renda e o processo de envelhecimento: uma análise qualitativa acerca da importância do BPC Idoso na cidade de São Felix e Cachoeira/BA 8. FLAVIA DE ALENCAR PALHA CERQUEIRA - “Com as nossas impurezas menstruais, adubaremos o solo, onde germinará o arco-íris de perfume e flor”: união e conflito entre mulheres na obra Nicketche – uma história de Poligamia, de Pualina Chiziane. 9. FRANCILENE NASCIMENTO DOS REIS - Estudo das representações sociais dos jovens agricultores familiares do Recôncavo da Bahia 10. GERINALDO DA SILVA LIMA - Políticas públicas para o meio rural: percepção dos sindicalizados rurais no baixo Paraguaçu no Recôncavo da Bahia. 11. GLENDA NICÁCIO - Cinema e educação: novos planos para a aprendizagem. 12. GLEYDSON PÚBLIO AZEVEDO - A revolução do direto: estudo sobre o cinema direto. 13. IZADORA DAS CHAGAS FERREIRA - Entre fotografia e cinema: o transe e o tempo do movimento na imagem. 14. JAMILLE OLIVEIRA DOS SANTOS - Tradição e modernidade: os jovens e a sexualidade na cidade de Maputo – Moçambique. 15. JEFFERSON PEREIRA DE LIMA - Celular – dispositivo móvel. 16. LAMONIER ÂNGELO DE SOUZA - A necessidade de animação e o live action se unirem para contar determinadas histórias.

17. LARISSA ANDRADE - Jogos de espelho: reflexões sobre a personagem Buscapé no filme “Cidade de Deus”.

18. LEIDY ANNE DOS SANTOS ALENCAR - (Re)conhecendo a questão do racismo institucional e as vulnerabilidades em saúde da população negra do Recôncavo.

19. LUARA DAL CHIAVON - A música na obra de João Moreira Sales: análise e percepções. 20. MARCUS BERNARDES - Traços cosmológicos da África Central e a identidade banta na musicalidade do Recôncavo - Um Ensaio. 21. MARIA ALICE GOMES ALVES - Estudo do processo de socialização de jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia. 22. MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO - As dinâmicas populacional, econômica e mão de obra: recôncavo/BA – 1820-1835. 23. MARIA DAS CANDEIAS DOS SANTOS - Maternidade no cárcere: uma análise sobre as especificidades da maternidade em instituições prisionais. 24. MIRIA ALVES DA SILVA - Os processos de comunicação social da ciência em Cachoeira. 25. OHANA ALMEIDA DE SOUSA ASSIS - A linguagem dos extremos: diálogos entre teatro e cinema na cenografia do curta Rua dos Bobos. 26. RENATA RAMOS DOS SANTOS - Preservação patrimonial e conservação dos cemitérios de Cachoeira e São Felix. 27. SIDA DA SILVA - Turismo cultural: uma alternativa para a comunidade de Coqueiro.

28. VALDIR ALVES - Moçambique em outra guerra: católicos, islâmicos, pentecostais, neopentecostais e religiões tradicionais na busca de fiéis. 29. VANESSA CUNHA BOAVENTURA - O significado do programa bolsa família para os idosos beneficiários: um estudo qualitativo nas cidades de Cachoeira e São Felix. 30. VIOLETA MARTINEZ - Intercâmbios estéticos: performances do Grupo Mandu. 31. ZENILDA NASCIMENTO SANTANA et alli - Família, escola e Universidade: considerações sobre uma interlocução.

Resumos Expandidos de Extensão 1.

ALBANY MENDONÇA SILVA et alli – Ciclo de debates do fazer profissional: os espaços sócioocupacionais em questão. 2. FABIANA COMERLATO – Arqueologia em tela: o cinema como recurso didático. 3. FABIANA COMERLATO – Vivendo o patrimônio do Recôncavo: ações educativas para a popularização do conhecimento arqueológico. 4. HELENI DE ÁVILA et alli – o Saber dos saberes quilombolas. 5. LÚCIA AQUINO DE QUEIROZ – Mãos que modelam o barro. 6. MARCELA MARY DA SILVA – Grupo de trabalho de serviço social na educação – GTSSDU 7. MÁRCIA CRISTINA ROCHA COSTA – Ciência e telejornalismo no Recôncavo. 8. MÁRCIA DA SILVA CLEMENTE – Saúde mental e serviço social: a extensão universitária nos parâmetros da reforma psiquiátrica no município de Cachoeira. 9. RACHEL SEVERO ALVES NEUBERGER – Reverso: Online: uma ferramenta laboratorial para o ensino do webjornalismo. 10. SUZANA MAIA – Construção de redes sociais entre saberes locais e universidade nas articulações políticas e sociais numa comunidade pesqueira do Recôncavo da Bahia.

Trabalhos Estudantis de Pesquisa

1. MATERNIDADE E CÁRCERE: UM ESTUDO SOBRE AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA MATERNIDADE NO CONJUNTO PENAL DE FEIRA DE SANTANA-BA. Adriana Carvalho da Silva1. Resumo: A pesquisa realizada na ala feminina do Conjunto Penal de Feira de Santana-BA abordou o fenômeno da maternidade. Entendendo-se que, para além das implicações de ordem biológica a maternidade é socialmente construída, podendo seus significados variar de acordo com o contexto sociocultural de que é parte, buscou-se analisar as representações sociais sobre a maternidade produzidas e gerenciadas em uma instituição fechada e regida por normas coercitivas, a partir da perspectiva de gênero e criminalidade. Conforme atesta a bibliografia especializada, as unidades prisionais desempenham o papel punitivo de vigiar, privar e, em certa medida, punir os indivíduos e seus corpos ao subtrair-lhes o direito à liberdade. Neste sentido, a gravidez, assim como outros fenômenos da vida humana, é alvo do controle nas prisões. Controlada e evitada através do uso anticoncepcional injetável – no caso de mulheres que recebem visitas íntimas –, a gravidez não é apagada totalmente do cenário das prisões, uma vez que, com freqüência, mulheres gestantes são conduzidas ao cárcere. Para entender o fenômeno da maternidade no cárcere, procedeu-se, metodologicamente, ao trabalho de campo através da observação sistemática da rotina e funcionamento do referido Conjunto Penal e de entrevistas do tipo semi-estruturadas, e em profundidade, com os atores sociais que compõem a instituição. A partir da análise dos dados coletados em campo e confrontando-os, através de estudo bibliográfico, com dados apresentados em estudos desenvolvidos por outros pesquisadores em outras instituições prisionais, constata-se que cada instituição prisional adota políticas de organização interna que lhes são próprias. Especificamente, no caso do Conjunto Penal de Feira de Santana-BA foi possível constatar que, no que se refere à maternidade, sobressaem dois tipos de princípios organizacionais: 1. Aqueles previstos e instituídos por lei – em que a mulher que passa pela experiência da maternidade tem o direito de amamentar seu filho até os seis meses de idade; tem o direito à puericultura (acompanhamento médico para o nascimento e desenvolvimento sadio do filho) e direito ao mergulhão (instrumento elétrico para ferver a água para o mingau que serve de alimento à criança) e 2. Aqueles que são gerenciados e garantidos através das relações interpessoais, envolvendo detentas e demais agentes da instituição – que vão desde doações a prestação de favores e concessões.

1 Graduando em Ciências Sociais no Centro de Artes, Humanidades e Letras-UFRB e vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica-PIBIC/UFRB-2010/2011. Participa do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura. Cel: 75 9191 5297. [email protected] Orientador Prof. Dr. Wilson Rogério Penteado Júnior.

Palavras-chave: Maternidade; Cárcere; Representação social. 1. Introdução. Aquilo que se entende por ‘maternidade’, para além de suas implicações biológicas e naturais, está revestida de um conjunto de representações que varia culturalmente, a depender do sistema de organização social estudado. No que respeita às representações inerentes à nossa sociedade ocidental moderna, vê-se que a noção de maternidade não apenas assume um lugar representativo de grande peso, como é colocada enquanto fator constitutivo da noção de mulher. A pesquisa realizada no Conjunto Penal de Feira de Santana-Ba (CPFS) propôs compreender os significados sobre a ‘maternidade’ produzidos por mulheres em situação de caráter prisional. Os argumentos defendidos por Marilyn Strathern (1995), são de que a maternidade é algo socialmente construído, já que os pais são “... iguais em termos de doação genética, mas desiguais em termos de papéis que vão representar na vida da criança”. (STRATHERN, 1995, p.306); papéis que podem variar a depender da organização social a ser considerada. Nesta mesma linha de argumentação, Rosely Gomes Costa (2001) aponta para a desigualdade com que os papéis de pai e de mãe são estruturados em nossa sociedade. Segundo a concepção dominante, o homem pode assumir a paternidade sem muito prejuízo, ou seja, em muitos casos ele pode assumir o filho financeiramente, mas pode não querer nenhum vínculo afetivo. Mesmo tomando essa posição ele não será mal visto pela sociedade. Porém, a mulher que abre mão da maternidade será considerada como ‘desumana’, desnaturada’; é como se a maternidade fosse uma experiência de continuidade, ou seja, como se o desejo de ser mãe sempre houvesse existido na mulher, como algo ‘natural’ e ‘instintivo’. Em nossa sociedade, idealmente, ter filhos provém de uma relação estável (casamento), de uma estabilidade financeira, uma participação intensa da mãe na vida criança e de certa conduta moral. Promover o lar significa uma doação completa de sentimentos, valores, deveres e direitos. Este tipo de percepção mostra como a sociedade segrega e considera como desviante mulheres que se encontram na condição de detentas. A mulher na condição de presa só tem o direito de amamentar seu filho por um tempo determinado pela Constituição Federal que varia de três a seis meses dependendo da política adotada pela instituição prisional que ela se encontrar e, nem todos os presídios possuem estruturas físicas adequadas para receber mulheres nestas condições, ficando, portanto, na maioria das vezes provisoriamente com o seu filho em cela comum. Depois do período de amamentação, a criança é encaminhada para a sua família ou para um orfanato. “... perda de autonomia, a mulher, quando inserida no sistema penitenciário, é despojada também, como o homem, de seus papéis e das

relações sociais com o mundo externo às grades. Contudo, a mulher apresenta uma singularidade em relação à quebra dos vínculos e papéis familiares. O fato de ocorrer nascimento e/ou permanência de crianças no interior da prisão já remete a situações que extrapolam a condenação legal e que apresentam reflexos sociais na ultrapassagem da pena para os familiares, impondo a implantação de políticas sociais, criminais e penitenciárias de respeito à diversidade”. (SANTA RITA, 2009, p.208). Em suma, partindo do princípio de que atores sociais em suas relações tecem "teias de significados" em busca, principalmente, de dar sentido às suas próprias vivências, tanto no nível individual quanto coletivo (Geertz, 1978), interessou-nos investigar como mulheres encarceradas, e que passam ou passaram pela experiência da maternidade no cárcere, atribuem significados acerca da condição de ‘ser mãe’. Em outras palavras, e inspirando-nos nas proposições de Clifford Geertz (1978), trata-se de desenvolver um trabalho etnográfico no esforço de apreender a “teia de significados” produzida acerca da noção da maternidade no CPFS. Quais especificidades surgem da noção de maternidade entre mulheres inseridas numa mesma condição, a de detentas? E ainda como tal fator interfere nas relações interpessoais vividas naquele Conjunto Penal – isto é, entre as próprias detentas e, entre elas e agentes penitenciárias? 2. A ilusão de trabalho de campo fácil de um iniciante pesquisador: dificuldades de campo. Ao elaborar o projeto de pesquisa junto com o meu orientador2 para a realização da pesquisa, eu pensava que teria fácil acesso ao presídio. E estabeleceria as mesmas relações com as presas do CPFS que Malinowski (1976) estabeleceu com os trobrians. Faria uma etnografia vivenciando cada momento do cotidiano das presas. Mas, as dificuldades logo apareceram. Primeiro meu estado emocional ficou abalado, o medo em pesquisar mulheres presas tomou conta de mim. Esse medo se assemelhava ao medo sentido por Alba Zaluar (1985) ao pesquisar sobre as relações sociais do Conjunto Habitacional Cidade de Deus. “Não o medo que qualquer ser humano sente diante do desconhecido, mas um medo construído pela leitura diária dos jornais que apresentavam os habitantes daquele local como definitivamente perdidos para o convívio social, como perigosos criminosos, assassinos em potencial, traficantes de tóxicos, etc. Apesar de saber que qualquer campanha não era senão a continuidade de um processo de longa data de estigmatização dos pobres, eu tinha medo. (ZULUAR, 1985, p.10). O meu imaginário estava permeado pela noção de presídio tal como a figura do Carandiru captada nas abordagens marginalizadas de jornais e filmes. A minha inquietação em 2 Dr. Prof. Wilson Rogério Penteado Júnior. Professor Adjunto de Antropologia na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, onde atua como pesquisador nos grupos "Corpo e Cultura" e "Mito", lecionando no Centro de Artes, Humanidades e Letras em Cachoeira-BA.

pesquisar sobre a maternidade era muito grande, mas tinha medo de fazer campo, pois acreditava que as presidiárias poderiam causar algum dano à minha integridade física. Em sessões com o meu orientador fomos trabalhando o tema no sentido de desmistificar todos os meus juízos de valores sobre Sistema Penitenciário através de leituras sobre o tema. Quando iniciamos a execução da pesquisa, eu não estava tão insegura. É tanto quando comentava sobre a minha pesquisa com colegas, amigos e familiares eles se surpreendiam, me questionando “você vai ao presídio mesmo”? “Lá é perigoso”, “se tiver uma rebelião”? E tranquilamente eu dizia que a mesma probabilidade de acontecer algum ato de violência no presídio seria a mesma porcentagem em acontecer na rua, em casa, na universidade e até mesmo em um bar. E para deixá-los mais tranqüilos explicava que meu contato seria intermediado por agentes prisionais. A segunda dificuldade foi encontrar bibliografias que abordassem o sistema penitenciário e especificamente mulheres que passam pela experiência da maternidade no cárcere. Esta dificuldade também foi encontrada por Santa Rita (2009), pois existem muitos estudos sobre criminalidade e violência, mas poucos estudos sobre sistema penitenciário e principalmente falando sobre mulheres presas. Essa escassez de bibliografia que se refere ao sistema penitenciário brasileiro dificultou a pesquisa no sentido do pouco conhecimento sobre as questões de regimes prisionais no Brasil, sendo que todo o meu conhecimento, embora tímido, foram construídos empiricamente, apesar das contribuições de Mirela Brito (2007) e Santa Rita (2009), que abordam sobre o sistema penitenciário feminino brasileiro. A terceira dificuldade era ter informações sobre procedimentos, metodologia e protocolos para execução de pesquisa no referido presídio. Portanto, tive que encontrar um mediador que fizesse a ligação entre mim e o Diretor do Conjunto Penal de Feira de SantanaBA. Por se tratar de uma Instituição Prisional em que a desconfiança é a forma de segurança, a pesquisa, apesar de ser institucionalizada – iniciação científica –, teria que ter como agregador boas referências de pessoas de confiança do Diretor. Meu colega de sala 3 me indicou uma pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS. Entrei em contato com a pesquisadora no início de fevereiro de 2011 pedindo que ela intermediasse o meu contato com o Diretor, ela falou que me ajudaria nesta questão e como procedimento da instituição seria necessário um ofício com todas as informações da pesquisa emitido pelo orientador para ser entregue ao Diretor. Em posse do ofício, a pesquisadora o entregou em mãos ao Diretor. Pensei que então faria a minha etnografia tranquilamente, mas sem retorno do parecer do ofício, iniciou-se outro inconveniente. Foram dias e mais dias telefonando para vários setores do CPFS sem informação coerente a respeito do parecer do ofício. Como as informações não estavam se cruzando, expliquei toda a situação para a assistente social, funcionária da instituição, que tendo conhecimento do meu dilema me 3 Estudante de Ciências Sociais da Turma 2008.2 e colega de pesquisa.

orientou implicitamente a entregar o ofício pessoalmente. Então, decidi – juntamente com Maria Candeias, outra pesquisadora envolvida no projeto do professor – ir pessoalmente ao presídio em busca de respostas concretas sobre autorização da pesquisa. Não tínhamos em mente o que aconteceria, estávamos no espírito aventureiro, tudo poderia dar certo ou errado. Poderíamos falar com o Diretor e ele autorizar a pesquisa como também poderíamos ser mal vistas por ele por não estarmos com o ofício. Porém, continuar aguardando não dava mais, pois já haviam sido seis meses de espera. No dia 15 de abril de 2011, uma sexta-feira, uma data para nunca ser esquecida, fomos ao presídio, eu e Maria Candeias, cheias de expectativas, incertezas e temores. O presídio fica localizado no Aviário, um bairro da cidade Feira de Santana que fica afastado do centro da cidade e não tem suas ruas pavimentadas. O bairro tem aspectos ruralistas em processo de urbanização, no início dele, se vê construção de conjunto habitacional, porém ao longo e principalmente ao final do bairro se vê pequenos sítios. No transporte coletivo o presídio surgiu imponente e sombrio, pois era um muro alto e extenso em uma rua sem movimento. A impressão é a de que ele está localizado em uma área relativamente desértica, pouquíssimo movimentada de carros e de pessoas. A estrutura física do presídio é muito extensa, um quarteirão. À medida que o ônibus se aproximava do ponto que desceria em frente ao presídio avistei um aglomerado de pessoas em frente ao muro muito alto. O ponto de ônibus fica em frente ao portão principal do presídio, local em que estava um aglomerado de pessoas. Ao descer do ônibus estranhei aquela multidão e notei que as pessoas que estavam ali em frente ao portão eram mulheres, com faixas etárias que aparentemente variavam de vinte a sessenta anos. Como todas estavam tensas por algo que não sabia ao certo o que era e de certa forma bloqueavam o acesso ao portão por estarem muito próximas e quase paralisadas, fiquei inibida em me aproximar do portão com medo delas protestarem alegando o fato de que eu poderia estar cortando a fila, pois não sabia quem eram elas e como era a lógica para ter acesso a informações: se era por fila em ordem de chegada ou assunto a ser resolvido no presídio. Então, pacientemente fiquei na expectativa do portão abrir-se e vir um funcionário nos atender. Fiquei perto delas apenas observando cada movimento, decodificando cada conversa. Fiquei imaginando quem eram aquelas mulheres, o que elas estavam fazendo ali; se havia ocorrido uma rebelião e elas estavam ali para ter notícias de presos conhecidos. Passei a desconfiar de tudo. Neste sentido fiquei observando toda ação dos agentes sociais na tentativa de melhor entender parte da lógica que opera no presídio. Notei que em busca de informação as pessoas tinham que ultrapassar esta barreira humana e se aproximar de uma abertura bem pequena do portão principal. Esta abertura é um pouco alta em que apenas dava para ver o rosto do porteiro; como todas as mulheres tinham estatura mediana, tinham que suspender os pés para falar com o porteiro. O olhar e atenção delas estavam voltados para o portão do presídio, apenas desviava suas atenções para quem entrava e saía do presídio, em sua maioria funcionários. Em conversas

entre si falavam na expectativa em fazer e receber carteirinhas (documento expedido pelo setor do serviço social que permite a visita dos parentes aos presos), ou seja, muitas estavam ali para pegar as carteirinhas e outras estavam ali para fazer as carteirinhas. As mulheres que estavam em frente ao presídio transpareciam uma grande expectativa em relação ao portão. Seus olhares estavam centrados no portão. A chuva voltou de novo e eu preocupada com a minha aparência fiz cara que não queria me molhar, uma única mulher que estava com guarda-chuva, solidária, me chamou para abrigar-me em seu guarda-chuva e no impulso chamei minha colega de pesquisa de campo para vir também se abrigar no guarda-chuva. A mulher também chamou outras mulheres próximas dela – inclusive uma mulher que estava com uma criança que aparentava ter entre um a três anos de idade –, dizendo assim, “junta todo mundo aqui”. Neste momento aproveitei e perguntei para a senhora se a entrada era por ordem de chegada, ela disse que sim. Então, para estabelecer um diálogo, falei que iria para o Setor de Serviço Social, ela também disse que iria para lá e perguntou se eu iria fazer a carteirinha eu disse que não; disse que iria falar com a assistente social, então ela me orientou a falar com o porteiro. Atravessei a barreira humana e cheguei até a abertura do portão, no qual mal via o porteiro, apenas seu rosto. Fiquei na expectativa do porteiro se aproximar do portão para poder me ouvir, porém continuou encostado na parede de uma sala que fica a uns três metros. Falando alto disse que iria falar com a assistente social e ele nem deixou concluir e falou de forma ríspida para esperar. Esperamos mais de uma hora e não obtivemos respostas, então, utilizamos outra estratégia. Combinamos que Maria, a colega de pesquisa, iria se identificar como estudante da UFRB. Essa estratégia funcionou, pois assim que Maria mencionou que era estudante da UFRB nossa entrada foi liberada. Ao entrar no CPFS tudo se tornou mais fácil para realização da pesquisa, apesar de um ofício para cada ação e orientação do setor de serviço social supervisionado pelo setor de segurança. 3. Uma breve análise sobre o sistema penitenciário Brasileiro e o CPFS. No final do século XVIII e início do século XIX vai-se extinguindo o suplício (punição física) como a guilhotina e o esquartejamento – fatos que aconteciam para o grande público assistir configurando-se em espetáculo punitivo. Na decadência da punição física surge a prisão. Como o próprio Foucault (2007) define: a punição da alma. A dor corpórea passa a não ser mais o objetivo da punição e sim a privação da liberdade pura. Ainda segundo Foucault (2007) a prisão é uma tecnologia política do corpo que impossibilita a liberdade do indivíduo como forma de punição por um delito cometido. Tem como complemento, a punição sobre o corpo como a diminuição alimentar, a privação sexual etc. “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E entretanto não “vemos” o que pôr em seu

lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.” (FOUCAULT, 2007, p.261). A prisão é a tradução de que o crime tanto lesionou a vítima como a sociedade. O tempo é uma variável para o cálculo da pena. Cada delito tem uma duração de tempo específico. Esta duração pode ser calculada em dias, meses e anos. A retirada do tempo do condenado tem a finalidade de reparar os danos que ele cometeu para a vítima e para a sociedade. A reclusão do condenado em uma prisão além da privação da liberdade tem como finalidade a re-socialização do mesmo. A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente. Esse duplo fundamento – jurídico-econômico por um lado, técnico-disciplinar por outro – fez a prisão aparecer como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. E foi esse duplo funcionamento que lhe deu imediata solidez. Uma coisa, com efeito, é clara: a prisão não foi primeiro uma privação de liberdade a que se teria dado em seguida uma função técnica de correção; ela foi desde o início uma “detenção legal” encarregada de um suplemento corretivo, ou ainda uma empresa de modificação dos indivíduos que a privação de liberdade permite fazer funcionar no sistema legal. Em suma, o encarceramento penal, desde o início do século XIX, recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos. (FOUCAULT, 2007, p.262) Esse mesmo autor argumenta, ainda, que a Instituição Prisional tem como eficácia a resocialização do indivíduo e reintegrá-lo à sociedade novamente. Mas a realidade do Sistema Penitenciário brasileiro contrapõe a eficácia da Instituição Prisional, o que é possível perceber através de estudos como o de Rosângela Santa Rita (2006) que aponta para o não cumprimento nos conjuntos penais dos direitos humanos garantidos pela Lei de Execução Penal - LEP. Rosângela Santa Rita (2006) faz uma discussão de que existem poucos estudos sobre sistema penitenciário e maternidade no cárcere, embora amplos estudos sobre criminalidade e violência. Esta mesma autora fez um estudo no âmbito do Serviço Social sobre a maternidade e cárcere enfocando os direitos garantidos pelo Estado brasileiro às mulheres presas que passam pela experiência da maternidade em presídios e que são violados em grande parte das instituições prisionais brasileiras. Mirella Brito (2007) em estudo etnográfico sobre o cotidiano de mulheres detentas fala sobre a hierarquia do crime. Em sua pesquisa desenvolvida no Presídio Feminino de Florianópolis (PFF) a maioria das detentas cometeu o crime em cumplicidade com o parceiro conjugal. A relação conjugal, como afirmam as próprias detentas, é de submissão aos seus parceiros. Algumas dessas detentas revelam que assumiriam o crime do parceiro para protegê-lo. Quando as detentas se referem ao chefe do crime sempre se referem a ‘o chefe’ e raramente ‘a chefe’.

A ala feminina do Conjunto Penal de Feira de Santana (CPFS) abriga 72 presas, neste universo encontram-se quatro mulheres que passam ou passaram pela experiência da maternidade, sendo que uma se recusou em dar entrevista. A ala feminina é uma adaptação do prédio que era destinado para a visita íntima masculina. O presídio foi construído para abrigar a população cárcera masculina, mas com o aumento da demanda de prisões femininas e como a maioria das delegacias de Feira de Santana e cidades circunvizinhas não possuem estruturas físicas que possam garantir a integridade física das detentas, houve a necessidade da adaptação para abrigar o público feminino no CPFS. Então, baseado nos escritos de Santa Rita (2009) o CPFS é polivalente, pois abrigam em uma mesma unidade homens e mulheres, embora separados por alas. A assistente social sempre frisou a questão das diferenças de gêneros na Instituição, afirmando: “o presídio foi criado por homens para homens”.

Também pude

constatar que há uma diferença no tratamento entre presos do sexo masculino e presos do sexo feminino. As mulheres presas quando querem fazer petições podem fazer pessoalmente com assistente social na sala em que esta profissional exerce sua profissão, sem barreiras de grades ou paredes e sem determinações de horários específicos. Já os homens para serem atendidos pela assistente social têm horário determinado que varia de uma a duas horas por dia. No horário determinado a assistente abre uma janela muito pequena localizada em sua sala e atende os homens presos nesta pequena abertura. Entre a assistente social e os homens presos há um muro de concreto que divide a sala do setor do serviço social e o pátio da ala masculina, enquanto as mulheres presas sentam frente a frente com a assistente social, separadas apenas por uma mesa, sob a vigilância da agente prisional. Quando perguntei por que essa diferença de tratamento, a assistente social afirmou implicitamente que se devia ao fato de ela ser mulher e pelo fato de os homens estarem presos e não ter contato com mulheres com frequência, oferecendo riscos. A assistente social também faz atendimento na ala feminina, porém raríssima vez entrou na ala masculina. Neste aspecto, a Instituição considera – como extensão daquilo que é pensado pela sociedade mais ampla – o homem mais perigoso do que a mulher. Analisando este fato através dos estudos de gênero, podemos entender que a Instituição vê a mulher como o “segundo sexo”, ou seja, como sexo passivo, submisso. A mulher presa no CPFS em sua maioria é aprisionada por associação ao tráfico. O envolvimento destas mulheres no mundo das drogas tem influência com seus relacionamentos afetivos. Como diz Mirela Brito (2007), no “mundo do crime” o papel da mulher é visto como passivo, sempre orientado por homens. A assistente social pontuou que geralmente as mulheres são presas por seus parceiros, quando a polícia chega para averiguação, colocam drogas na bolsa delas, escondem drogas em suas casas sem elas saberem e quando a polícia chega, eles fogem deixando para trás suas parceiras e todas as provas do delito cometido para elas. No CPFS os homens trocam de parceiras com facilidades. Quando suas parceiras são presas, a maioria se envolve com outra mulher que não está na condição de presa. É tanto que os homens presos recebem constantemente visitas íntimas enquanto mulheres pouco

recebem, ou seja, as mulheres presas que possuíam um relacionamento afetivo antes de serem presas, pouco recebem visitas dos seus parceiros. As mulheres envolvidas com o crime parecem ocupar um lugar de importância e funções bem definidas: o número de mulheres que são pegas tentando entrar com objetos proibidos como chips, aparelhos celulares entre outros objetos é grande. Na minha primeira visita ao presídio antes de entrar fiquei mais de uma hora esperando entrar no CPFS, neste período também se encontrava parentes de detentos à espera. Apesar da agitação do ambiente pude fazer observação participante dos parentes dos presos da expectativa de fazer e pegar a carteirinha. Analisei seus comportamentos, ouvi suas conversas e troquei algumas palavras com alguns deles. E uma dessas conversas me chamou a atenção uma jovem, que aparentava ter entre vinte a vinte cinco anos, quando falava a um senhor que tentou entrar com sete chips, mas que foi pega e quase fica presa no presídio. Neste mesmo dia também ouvi o chefe de segurança comentar que uma mulher tinha “parido um celular, pois o pacote era enorme”. Analisando estas duas conversas e a informação da assistente social, percebo que a mulher tem papel de coadjuvante no mundo do crime executando as ordens do seu parceiro. Quando a mulher não tem mais condição de executar o que lhe é ordenado é substituída por outra e assim sucessivamente. 4. Noções de maternidade e suas representações no CPFS. A maternidade na sociedade euro-americana para Marilyn Strathern (1995) estabelecese tradicionalmente com a mãe dando à luz. A gravidez é o desenvolvimento do embrião. Embora a maternidade tenha implicações biológicas, cada grupo social específico promove regras e representações específicas acerca da maternidade. Nos dizeres de Lévi-Strauss (1976) a cultura é a interpretação da natureza, portanto a maternidade é uma implicação biológica, mas cada grupo social a interpreta conforme a sua estrutura organizacional. Mas a maternidade não deve ser reduzida apenas ao ato do nascimento, uma vez que através desse acontecimento desencadeiam-se várias relações como relação de parentesco, relação de gênero e relação moral de afetividade. A maternidade está para além de suas implicações biológicas e naturais, pois está incutida nela representações sociais que variam de cultura para cultura. Para Rosely Gomes Costa (2001) “a maternidade é (socialmente) concebida como a realização de um sonho desde sempre existente no passado feminino” (p.106), ou seja, a mulher é socializada para ser mãe como se esta condição fosse exigência de uma suposta “essência” feminina. O estudo da autora deixa claro que a responsabilidade pela reprodução é sempre atribuída à mulher, ou seja, quando um casal não tem filho, a culpa, via de regra, recai sobre a mulher e somente depois de passar por vários tratamentos é que o homem se propõe a passar por tratamento. Esta concepção é pela associação de esterilidade masculina com a impotência sexual, portanto a esterilidade pode ser

encarada como uma ameaça à virilidade. Alguns homens evitam fazer a vasectomia, pois também a associam à impotência sexual. Por outro lado, a ameaça à feminilidade é a maternidade, pois há a crença social de que a mulher só se completa quando tem filhos. No presídio também existem papéis diferenciados entre maternidade e paternidade. A mulher tem direito de ficar com seu filho até seis meses, mas o homem só pode ficar com seu filho por algumas horas em um único dia da semana determinado pela Instituição. Desta forma entende-se que a Lei considera que a mulher tem mais direito do que o homem sobre os filhos. Este entendimento está vinculado ao biológico, pois o Conselho de Saúde determina que é saudável para o bebê ser amamentado até o sexto mês de vida. Portanto, é a amamentação que garante a mulher presa em ficar com seu recém-nascido por seis meses. A Lei não considera outros tipos de relação como relação necessária. O CPFS exclui de certa forma a maternidade no cárcere, pois adota como medida preventiva da gravidez o anticoncepcional injetável para mulheres presas que querem receber visitas íntimas. Porém não pode evitar receber presas grávidas. Todas as mulheres que passam ou passaram pela experiência da maternidade no CPFS já chegaram grávidas ao presídio. O único tratamento diferenciado que a Instituição oferece às presas grávidas é o direito de não passar pelo processo da disciplina. O processo da disciplina é o rito inicial da prisão em que a Instituição analisa o comportamento do preso para determinar em que cela será encaminhado e também uma forma do preso se adaptar ao cárcere. No processo de disciplina o preso fica em uma cela sozinho, saindo apenas para fazer as refeições. Grande parte das presas considera essa fase a pior situação no presídio, pois ficam isoladas e não mantém contato com ninguém. Além de serem poupadas dessa fase inicial que é o processo da disciplina, as mulheres que passam pela experiência da maternidade no CPFS têm direito ao mergulhão (instrumento elétrico utilizado para esquentar água para mingau do bebê) e ficar com a criança até o seu sexto mês de vida. A Constituição determina instalações de creches e berçários em presídios para atender ao público feminino, porém no CPFS mãe e filho encontram-se presos em celas comuns dividindo o mesmo espaço com outras presas. A representação da maternidade no CPFS produz dois tipos de princípios organizacionais: 1. aqueles previstos e instituídos pelas políticas adotadas pelo CPFS; 2. aqueles que são gerenciados e garantidos através das relações interpessoais, envolvendo detentas e demais agentes da instituição. Além do mergulhão e a garantia da mulher presa ficar com seu filho até aos seis meses para amamentação, como o presídio possui um Posto de saúde que funciona dentro do próprio presídio, a mulher presa tem direito ao pré-natal e a puericultura (acompanhamento do desenvolvimento da criança). Mas, no cotidiano da mãe presa e do bebê quem ampara suas necessidades são suas companheiras de alas, sua família, os visitantes nos dias de visitas e os próprios funcionários da instituição. Fraldas descartáveis, enxoval entre

outros, são fornecidos por tais pessoas. Ao ser entrevistada, Carla4, 34 anos, que estava presa com seu bebê de dois meses, falou-me que iria falar com os funcionários que as fraldas já estavam acabando. Estes princípios organizacionais não instituídos, estão presentes em outras situações no presídio e não apenas naqueles que envolvem as mães detentas. Por exemplo, numa das vezes em que estava em trabalho de campo, presenciei a situação de um preso que tinha cumprido sua pena e estava saindo do presídio e não tinha dinheiro para pagar o transporte coletivo e recebeu uma doação de um vale transporte de um dos funcionários do presídio para pagamento do transporte coletivo. Carla estava na condição de prisão provisória e com bebê de dois meses, além desse bebê possui mais três filhos (13 nos, 11anos e 7anos). Na prisão o que sente mais falta é a presença dos seus filhos e fica bastante preocupada com eles e principalmente com sua filha de 13 anos, pois Carla diz estar em uma fase perigosa, a adolescência. Seus três filhos que estão fora do presídio sentem ciúmes do bebê e reclama que Carla só fica com ele (o bebê). Ao entrar no presídio não sabia que estava grávida e, quando soube que estava grávida teve a sensação que seu mundo tinha acabado. Ela sonhava em ser mãe, para ela quando a mulher se torna mãe fica mais responsável, mas não esperava ser mãe na prisão. Este bebê de dois meses é seu primeiro filho na prisão. Durante a gravidez no presídio não sentia vontade em ver seu parceiro e também não sente vontade em ter relação sexual com ele. Carla relata que o momento mais difícil de sua gestação no presídio é, estar ali e não poder saciar o desejo de comer algo, ela reclama não se alimentar direito no presídio, pois não tem frutas e fala que a comida é uma 'gororoba'. Carla também alega introduzir mingau na dieta alimentar do seu filho porque a comida do CPFS não a sustenta para poder amamentar seu filho só com o leite materno. Ao perguntar como está sendo a experiência de ser mãe no presídio ela responde, “vai empurrando, todo mundo ajuda se não fosse isso seria ruim. Ser mãe lá fora é diferente”. Seu parceiro sempre queria ser pai, mas ela não queria ser mãe do filho dele, pois ela afirma gostar dele, mas amor só por um ex-namorado antigo. A preferência do seu parceiro era que fosse menino. Ele encontrava-se também no presídio e seus encontros acontecem às quartas-feiras, na ala feminina em sua cela, sob a vigilância da Instituição. Luciana5, 21 anos, grávida de oito meses a espera do seu primeiro filho à época em que fiz trabalho de campo, havia sido presa por envolvimento com drogas aos três meses de gestação. Uma vez por mês faz pré-natal no Posto de Saúde da instituição, quando há necessidade de fazer enxame específico faz em unidades de saúde fora do presídio. No que se refere a sua experiência em ser mãe, ela diz ter muito medo do parto. Tanto a condição de presa como a gravidez ela diz ter provocado mudanças em sua vida, prometendo depois que sair da prisão não fazer mais “besteiras” (referindo-se à possibilidade de em não mais cometer atos

4 Nome fictício para a preservação de identidade da presa. 5 Nome fictício para a preservação de identidade.

ilegais). O enxoval do bebê foi sua mãe quem comprou, que, segundo Luciana, está muito feliz com a chegada do seu primeiro neto. Não recebe visitas de seu companheiro porque ele está preso. Luciana está na condição de prisão provisória e se no dia do seu julgamento não for solta, seu filho será entregue a sua mãe. Mariana6 tem 26 anos, é mãe de três filhos e passou pela experiência da maternidade quando foi presa por oito dias, mas ao sair da prisão teve sangramento e abortou, estava grávida de cinco meses e 26 dias. A reincidência de mulheres no CPFS é grande. Das três entrevistadas, Mariana e Carla foram presas outras vezes. Mariana que é de Feira de Santana-BA, é reincidente no presídio, atualmente está respondendo ao artigo 155 (furto). Ninguém vem visitála porque sua mãe saiu há pouco tempo do presídio e, seu companheiro está preso no Complexo Policial. Tem dois meses e quinze dias que não vê seus filhos e morre de saudade deles. Sente saudade de sua liberdade, dos seus filhos e de sua rotina. Quando foi presa por oito dias ao ser presa sabia que estava grávida. No ato que foi declarado sua prisão ficou nervosa por estar grávida e pela experiência que já tinha passado no presídio. Mariana sonhava em ser mãe, para ela toda mulher sonha. Ela cuidou dos seus sobrinhos e sonhava em ser mãe um dia. Para ela toda mulher se torna mulher quando passa pela experiência da dor do parto se tornando mais madura. Para ela quando a mulher sente os sintomas da gravidez como o aumento de peso, desejos, enjôo e a criança se mexendo no ventre é sinal de que a criança está se desenvolvendo saudavelmente, mas quando a mulher grávida não sente nenhum desses sintomas é sinal que algo de errado está acontecendo com a criança. Em decorrência da gravidez não houve mudança na sua vida sexual. Para ela o melhor parto é o normal. Como Carla, Mariana acha que a pior parte da gravidez no presídio é não satisfazer os desejos de comer algo, não ter uma boa alimentação, ficar na expectativa se vai ou não ter o filho no presídio e também o temor da criança aprisionada, pois para ela o presídio não é um lugar para da à luz. 5. Conclusão. Neste espaço não farei apenas as considerações finais, mas também o levantamento de algumas questões. Embora o CPFS adote políticas preventivas de evitar a maternidade em seus espaços, não pode evitar o ingresso de mulheres na condição de gestante, portanto, não pode anulá-la. Outro ponto importante é que apesar do CPFS determinar a maternidade em suas dependências – determinar o tempo em que a mãe pode ficar com seu filho recém-nascido, garantir que a mulher grávida ao ingressar na instituição não passe pelo período de observação, ou seja, não fique na “cela zero”, isto é, ficar sozinha em uma cela para se adaptar a sua nova condição e para que os funcionários da instituição possam avaliar seu comportamento para 6 Nome fictício para a preservação de identidade.

determinar em que cela ele vai ficar (Brito, 2007) –, não pode apagar o ideal de gravidez e de ser mãe comum em nossa sociedade. Quando Mariana fala que “quando a mulher sente os sintomas da gravidez como o aumento de peso, desejos, enjôo e a criança se mexendo no ventre é sinal de que a criança está se desenvolvendo saudavelmente, mas quando a mulher grávida não sente nenhum desses sintomas é sinal que algo de errado está acontecendo com a criança”, esta noção está presente no imaginário de qualquer mulher grávida. Também o ideal de maternidade está presente no discurso de Carla: “na prisão o que sente mais falta é a presença dos seus filhos e fica bastante preocupada com eles...”. Então os órgãos competentes devem dar uma atenção especial para o fenômeno da maternidade no cárcere e procurar compreender a maternidade e paternidade na vida de cada preso. Desta forma pode traçar metas de ressocialização vinculando os ideais de famílias. A especificidade da prisão é privar a liberdade de ir e vir dos apenados, não de privar seus valores, pois como haverá ressocialização sem valores? Tal questionamento se faz porque embora o sistema penitenciário trace medidas coercitivas para limitar a maternidade, tal fenômeno transcende esses limites, visto que emerge na instituição princípios organizacionais não previstos por lei, aqueles que são gerenciados e garantidos através das relações interpessoais, envolvendo detentas e demais agentes da instituição – que vão desde doações a prestação de favores e concessões. A economia de bens simbólicos é marcada pela troca de dádiva, uma seqüência descontínua de atos generosos que se caracteriza em um ato recíproco. Segundo Pierre Bourdieu (1996), os bens simbólicos são marcados pala dualidade material/espiritual situados no campo espiritual. Referências Bibliográficas: BOURDIEU, Pierre. “A Economia Dos Bens Simbólicos”. In: Razões Práticas: Sobre a teoria da ação. Tradução Mariza Corrêa. Paripus. Campinas/SP. 1996. BRITO, Mirella Alves de. O Caldo na panela de pressão: um olhar etnográfico sobre o presídio para mulheres em Florianópolis. Dissertação de mestrado defendido ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2007. COSTA, Rosely Gomes. Concepção sobre maternidade entre mulheres que buscam tratamento para esterilidade. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas/SP, 1995. COSTA, Rosely Gomes. “Sonho do passado versus plano para o futuro: gênero e representações acerca da esterilidade e do desejo por filhos”. Cadernos pagu (17/18)

2001/02: 105-130. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petropolis: Vozes, 2007. HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. “Estudos de Gênero no Brasil”. In: O que Ler na Ciência Social Brasileira. ANPOCS. Sumaré. Brasília. 1999. LÉVI-STRAUSS, Cláude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1976. MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril, 1976. OLIVEIRA, Roberto Cardoso. “O Trabalho Do Antropólogo: Olhar, Ouvir, Escrever”. In: O Trabalho do Antropólogo. UNESP. São Paulo. 2006. ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A Mulher, a cultura e a Sociedade. Tradução de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1999. SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o princípio da dignidade da pessoa humana. Dissertação de mestrado em Serviço Social. Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2006. STRATHERN, Marilyn. “Necessidade de Pais, Necessidade de Mães”. In: Revista de Estudos Feministas. V. 3 n. 2, Rio de Janeiro, UERJ/UFRJ, 1995, PP. 303-329. •

ZALUAR. Alba. “O antropólogo e os pobres: introdução metodológica e afetiva” In: A Máquina e a Revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. Brasiliense. 1985.

2.O aspecto racial nos crimes cometidos em Cachoeira (1945-1964) Aline dos Santos Maia* O presente trabalho visa discutir o aspecto racial nos crimes cometidos em Cachoeira entre os anos de 1945 e 1964. Com isso, intentamos, em primeiro lugar, realizar uma análise geral dos processos-crimes do referido período, encontrados no Arquivo Público Municipal de Cachoeira, a fim de compreender se a justiça cachoeirana tratava de maneira desigual réus negros e brancos. Sendo que este recorte temporal justifica-se pelo fato deste período estar entre o retorno à democracia e o estabelecimento de um regime autoritário, no qual todos os segmentos da sociedade deveriam minimamente ser tratados de maneira igualitária. Situada às margens do Rio Paraguaçu no Recôncavo da Bahia, à aproximadamente 120 quilômetros de Salvador, Cachoeira é uma das cidades baianas que mais preservou a sua identidade cultural e histórica com o passar dos anos. Dentro desta perspectiva é necessário situar o contexto que esta cidade estava inserida, por seu passado histórico e heróico esta cidade reveste-se de suma importância histórica e cultural para a Bahia e para o Brasil. Cachoeira possui um incalculável patrimônio arquitetônico e paisagístico, que é um dos mais importantes de toda a América Latina. Inclusive, é importante salientar, que desde 1971 Cachoeira é considerada Monumento Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Durante o período colonial e imperial o Recôncavo da Bahia possuía grande importância econômica e política para o Brasil, porém esta região entrou em decadência a partir da segunda metade do século XIX. Durante o século XX, esta situação permaneceu inalterada com maior ênfase a partir da década de cinqüenta, que afastou Cachoeira do eixo de desenvolvimento do Estado da Bahia. Assim, com esse afastamento ou até mesmo isolamento, passou a haver muitos desempregados nas esquinas das ruas dessa cidade, encarados pelas autoridades como marginais. Percebe-se em Cachoeira, com o declínio econômico, uma situação de pobreza extrema em muitos povoados e um afastamento de seus distritos, como por exemplo, Iguape e Belém7. Em se tratando de um município cuja historiografia remete a várias temáticas que já foram estudadas, dentre elas o reggae, o candomblé e a Irmandade da Boa Morte. Estudos sobre criminalidade ainda não tinham sido explorados, talvez pela dificuldade de acesso ao Arquivo Judiciário e pela falta de conservação dos documentos no Arquivo Público Municipal. *

Graduanda em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, [email protected] (75) 81069075

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BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia. Sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998.

Pesquisas sobre criminalidade hoje se encontram consolidadas dentro da produção historiográfica internacional 8 . Em se tratando de Brasil, temos grandes obras de destaque, principalmente no campo de estudo da escravidão. Especificamente em recortes espaciais cujo sistema escravista teve grande destaque a exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Contudo, os trabalhos historiográficos destinados a refletir a respeito da criminalidade, encontram nesse objeto de estudo, um amplo campo de pesquisa, que vão além dos estudos voltados à escravidão9. Por muito tempo, os estudos de história ficaram restritos a espaços históricos marcados por grandes transformações e acontecimentos do passado. Contudo, hoje existe a iniciativa de produzir conhecimento histórico sobre espaços antes ignorados por essa área do saber, a exemplo da cidade de Cachoeira. Tomando como referencial teórico Carlo Ginzburg, o qual desenvolveu o método indiciário, que através de indícios segue um indivíduo na sua trajetória de vida, a finalidade do autor com a prática indiciária seria retirar conclusões de determinada cultura em um dado período histórico.10 Sobre a temática que será analisada, o historiador Boris Fausto11 fez uma reflexão de grande importância teórico-metodológica, tendo como recorte espacial a capital de São Paulo na década de 1930. O autor analisa um crime que chocou a sociedade paulista na referida época, sendo as vítimas um casal que era dono do restaurante, no qual ocorreu o crime e mais dois empregados que foram assassinados brutalmente, sendo o principal acusado Arias de Oliveira, ex-funcionário do estabelecimento. Neste sentido, para Fausto a justiça paulista refletia no pós abolição a discriminação contra réus negros, o acusado foi a julgamento por ser negro e pobre, depois de ser considerado culpado por duas vezes, foi inocentado. Fausto ainda aponta como os réus negros eram estigmatizados socialmente e tratados de maneira discriminada pela justiça, eram tidos como “gente suspeita”. Outro historiador, Carlos Antônio Ribeiro12, na década de 1930 no Rio de Janeiro em sua obra “Cor e criminalidade” realiza uma análise comparada em relação a brancos e negros, buscando descobrir se ambos recebiam o mesmo tratamento da justiça, ou se existia discriminação com as pessoas de cor negra. Neste sentido, Ribeiro comprova em sua pesquisa que a justiça tratava de maneira diferenciada pretos e pardos dos brancos a ponto deste ser um

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GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987

9DOSTOIEVSKY, Fiodor. Crime e castigo. Tradução de Luiz Claudio de Castro. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996. 10

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

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RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

elemento que possibilitava aumentar a probabilidade de condenação para os pretos e diminuir as chances de condenação dos brancos, apesar de ambos serem julgados pelo mesmo crime. Dentro desta perspectiva, o objetivo principal desta pesquisa é investigar, através da leitura de processos crime, se o tratamento dado à criminalidade em Cachoeira na primeira metade do século XX sofria influência de questões raciais, ou seja, ligadas a cor da pele e como isso influenciava o tratamento dado pela justiça aos réus negros. Sendo possível assim observar que os indivíduos recorreram à prática de tentativa de homicídio para resolver questões pessoais, refletindo assim, a incorporação da violência na sociedade cachoeirana. O processo que trataremos a seguir indica um exemplo desse caso. Adalberto Oliveira Dias, pardo, vigilante, residente nesta cidade. Segundo os autos do processo, Adalberto, por volta das sete e quarenta e cinco da manhã do dia 08 de fevereiro de 1952 teria disparado quatro tiros em direção ao chefe do trem, Álvaro Tiago Ferreira, sendo que apenas um tiro alvejou a vítima, logo após fugiu do local. O motivo da desavença se deu, pois Álvaro solicitou que Adalberto mostrasse a passagem. No inquérito policial a primeira testemunha a depor é Manoel Marques de Oliveira, pardo, 33 anos, guarda freio da leste, residente nesta cidade. Manoel viu Adalberto no ponto de Belém armado julgou que seria para se vingar já que tinha ouvido comentários que o mesmo tinha se desentendido com Álvaro, pois Adalberto havia se negado a pagar a passagem e havia prometido tirar vinganças contra Álvaro. Adalberto vai ao encontro de Álvaro no trem disparando os tiros atingindo-o na boca e depois fugiu. A segunda testemunha é o comerciário Paulo de Cerqueira Bastos, 28 anos. Paulo diz que Adalberto havia desembarcado do trem e este em movimento, Adalberto caminhou ao lado do trem empunhou uma arma e disparou tiros na direção do carro breque, sem saber contra quem efetuava os disparos. Quanto ao advogado de defesa, o juiz nomeou José Gois da Silva, mas o mesmo não assumiu o caso, pois alegou que mantinham uma relação de amizade com a vítima. Diante disso, o juiz fez outra nomeação, Jorge Watt como defensor do réu, o qual aceitou fazer a defesa, na elaboração desta afirma que houve um incidente entre o chefe do trem Álvaro e o denunciado Adalberto com isso, arquitetou-se uma terrível acusação contra um homem indefeso. No final do processo em 05 de setembro de 1953 foi dada uma sentença condenatória pelo juiz, a partir desse resultado é possível fazer algumas considerações sobre este crime praticado por um negro que foi considerado culpado, demonstrando indícios que a justiça cachoeirana tratava os réus negros de maneira desigual. Quinze anos mais tarde, no dia 07 de outubro de 1968,o Júri popular na cidade de Cachoeira, julgou Braulino de Matos por atentar contra a vida de Adalberto Bispo. O ponto em comum entre os dois processos é os dois Adalbertos envolvidos em tentativa de homicídio, sendo um réu e o outro vítima, ambos os crimes com arma de fogo. Contudo, o resultado do

julgamento difere, apesar de serem julgados pelo mesmo crime, o réu Adalberto Dias foi considerado culpado enquanto que Braulino foi inocentado. Na tarde do dia três de fevereiro de 1959, no distrito de Belém, Adalberto Bispo, menor de 20 anos, preto, lavrador, estava nas terras de seu pai, Eloy, cortando lenha e capim, acompanhado pelas suas irmãs Maria Felipa e Juraci Lurdes. Após terminar este trabalho, foram em direção a sua residência, passando próxima a cerca divisória que Braulino Matos mandou erguer. Braulino era um homem de 59 anos, branco, que se constituiu inimigo declarado de seu pai e, que deixou Adalberto sobre aviso que não saltasse a cerca senão levaria um tiro. Entretanto, como a vítima Adalberto acreditava que pisava em terras do seu pai, saltou à cerca, neste momento o réu disparou um tiro de espingarda que atingiu a vítima na altura do peito e logo após fugiu. A primeira testemunha, João Sabino de Jesus, 28 anos residente no distrito de Belém conta que três para quatro horas da tarde Adalberto Bispo, duas irmãs e um irmão chegou provocando Braulino batendo o facão no arame, nisso Braulino pede pra que ele não faça isso, Adalberto respondeu com insulto e o ofendeu. Nesse momento, Adalberto parte pra cima de Braulino com objeto cortante e Braulino se armou com uma espingarda, detonou o tiro e fugiu. A segunda pessoa a testemunhar é Guilhermino de Jesus, 60 anos, residente no distrito de Belém. Guilhermino estava trabalhando na limpeza do rio quando viu Adalberto acompanhado das irmãs e um irmão armado com um facão, bateu na cerca e Braulino pediu pra que ele não fizesse isso, mas Adalberto o insultou “eu corto você e sua cerca seu corno”, logo após passou a cerca e Braulino disse pra ele não se aproximar senão ele atirava, e foi o que ocorreu disparou um tiro e depois fugiu. O acusado ao depor alega ao mesmo tempo em que estava desarmado, afirma que tinha uma espingarda que havia levado para o mato e a usou pra se defender de Adalberto que estava armado com um facão e ameaçava feri-lo. Depois deste ato voltou pra casa onde encontrou os irmãos e cunhados de Adalberto armados de foice para feri-lo não o encontrando foram embora. Realizados os procedimentos legais, Braulino teve sua prisão decretada no dia vinte e cinco de setembro de 1959. Mas seu advogado de defesa, Fortunato Dória, conseguiu um habeas corpus e o réu ficou em liberdade esperando o julgamento que ocorreu em sete de outubro de 1968, no qual o réu foi inocentado por agir em legítima defesa. A partir deste resumo do processo de Braulino é possível indagar que nesse caso os conflitos entre brancos e negros eram julgados de forma parcial, pelos resultados iniciais da pesquisa evidenciando que, mesmo quando o negro era vitimado, o réu branco tinha privilégios, além de responder o processo em liberdade, era, muitas vezes, considerado inocente. Carlos Antônio Costa Ribeiro sinaliza na sua obra que crimes cometidos por negros tinham maior probabilidade de serem condenados, deixando patente a discriminação que os negros sofriam pela justiça no pós-abolição. Em suas palavras:

Tendo em vista que o fato de o acusado ser preto ou pardo aumentava, mais do que qualquer outra característica, a probabilidade de condenação e que o fato de a vítima ser parda ou preta aumentava a probabilidade de absolvição, há fortes evidências para sustentar a hipótese de que havia discriminação racial nos julgamentos no Tribunal do Júri.13 A partir da análise desse processo criminal é possível fazer reflexões sobre o tratamento diferenciado dado ao réu branco pela justiça cachoeirana, quando julgado pelo mesmo crime que um negro, este é considerado culpado. Dentro deste contexto percebemos que o negro era marginalizado no pós-abolição, além disso, era estigmatizado pela justiça, tido como suspeito e este era um elemento que pesava ao chegar nos tribunais de condenação. Assim como aconteceu nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, havia distinção por parte dos juízes para com os réus negros e brancos, observamos neste processo-crime se tratando de uma tentativa de homicídio, o réu que é branco respondeu o processo em liberdade e ainda foi considerado inocente pelo júri popular com a maioria dos votos, confirmando a hipótese de Ribeiro na qual a probabilidade de um acusado branco ter cometido um “crime de sangue” e ser absolvido. Neste sentido, pelos resultados iniciais desta pesquisa, acreditamos que em Cachoeira, como em outros recortes trabalhados pelos autores supracitados, o tratamento dado a negros e brancos pela justiça era parcial, pois nos processos este elemento é parte de um questionário que deve ser preenchido para identificação da cor do réu. Desta forma, é possível analisar indícios de racismo, ou seja, a questão racial está presente no sistema judiciário como elemento de distinção. A análise dessas fontes permite conhecer um pouco a forma como a justiça julgava os crimes cometidos por negros e brancos, ou seja, a distribuição das sentenças judiciais para crimes semelhantes. Sendo assim, uma das causas dessa discriminação são os resquícios da herança escravista nessa sociedade, ou seja, a justificativa para o negro ser o principal suspeito de cometer crimes seria por viver às sombras do seu passado escravista, ao adquirirem liberdade sem nenhum tipo de estrutura social que os apoiassem, motivo pelo qual foram marginalizados tidos como criminosos, ao passar do tempo foi reforçando cada vez mais essa idéia. Outra autora no qual seu trabalho versa sobre esta questão é Thaís Battibugli14 Polícia, democracia e política em São Paulo, no qual seu recorte temporal está entre 1946 e 1964, afirma que as classes populares e os afro descendentes são considerados os principais suspeitos pela polícia paulista. A autora ainda sinaliza que estes sofriam uma discriminação social por parte da atividade policial. 13

Idem, p. 73.

14

BATTIBUGLI, Thaís. Polícia, democracia e política em São Paulo. São Paulo: Humanitas, 2010.

Neste sentido, apesar de Battibugli analisar outro objeto, no caso a polícia, a autora identifica no período similar ao que estudamos, a discriminação por parte desta corporação para com os negros, sendo considerado perigosos e alvo da repressão policial paulista no período entre 1946 e 1964. Enfim, nosso estudo reveste-se de grande relevância acadêmica no sentido de contribuir para o conhecimento das questões raciais ligadas a justiça cachoeirana no período de 1945 a 1964, já que neste recorte temporal pesquisas sobre esta temática são escassas. Dentro desta perspectiva, analisamos a justiça cachoeirana no tratamento dado aos réus negros e brancos que cometeram crimes semelhantes, percebemos através da leitura dos dois processos-crime a distinção feita pela justiça em julgar ambos, pela sentença dada aos réus pelo mesmo crime.

Referência bibliográfica: BATTIBUGLI, Thaís. Polícia, democracia e política em São Paulo. São Paulo: Humanitas, 2010. BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.). Recôncavo da Bahia. Sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; Universidade Federal da Bahia, 1998. DOSTOIEVSKY, Fiodor. Crime e castigo. Tradução de Luiz Claudio de Castro. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996. DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FAUSTO, Boris. O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das letras, 2009. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995.

3.

Mobilização e Repressão: a construção da unidade no processo de emancipação política do Brasil na Bahia A n t o n i o C l e b e r d a C o n c e i ç ã o L e m o s 15 Introdução Não é novidade para a historiografia atual o fato de que a independência e a formação do Estado no Brasil foram conduzidas e arquitetadas pelas classes dirigentes. Estas elites que constituíam os poderes locais possuíam uma grande autonomia no comando das localidades, sendo que a comunicação entre as capitanias era muito d i f í c i l 16; n ã o é s e m r a z ã o q u e u m g r a n d e d e b a t e q u e e x i s t e n a s d i s c u s s õ e s sobre a independência é o porquê de a América Portuguesa não ter se transformado em vários países após sua emancipação política. Neste texto, procuraremos sintetizar, a partir do que alguns historiadores engajados no referido debate já afirmaram, como se deu a conciliação das diferenças regionais e a repressão e mobilização por parte das elites locais para com as classes subalternas na composição da unidade territorial e nacional no processo de independência do Brasil. Passaremos pela conjuração baiana (1798), além da guerra de independência na Bahia (1822-1823), tentando entender como as classes sociais em seus respectivos movimentos dentro dessas conjunturas de inconfidência e guerra de independência conflitaram a respeito de suas aspirações em relação à construção da nação até alcançarmos o processo de emancipação política do Brasil e a formação do Estado Nacional. Identidades políticas e mobilização popular É necessário entender que a formação do Estado e da nação se deu em processos paralelos e, ao mesmo tempo, convergentes. As possessões portuguesas na América no último quartel do século XVIII abarcavam várias identidades políticas, onde perpassavam as territorialidades e as d i v i s õ e s d e c l a s s e s s o c i a i s 17 . E s s e é u m m o m e n t o d e c r i s e d o s i s t e m a colonial motivado não apenas pelas transformações internacionais onde figuram as revoluções francesa e norte-americana, mas também, pelos elementos de contradição do próprio sistema; entre eles a propriedade e a escravidão. Estes dois elementos eram a base da desigualdade social nas possessões portuguesas na América. A Conjuração Baiana (1798) era um reflexo da crise do sistema colonial, tal crise teve profundo impacto na consciência de indivíduos de vários setores da sociedade colonial b a i a n a 18. As notícias da Revolução Francesa chegavam à Bahia através do porto e das elites letradas. As notícias circulavam junto aos ideais da revolução. Ideais como “igualdade”, “liberdade” e “fraternidade”

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Curso de História (UFRB); fone: (75) 8142 4723; e-mail: [email protected].

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HOLANDA, Sergio Buarque de. A Herança Colonial – Sua desagregação. In:___História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico. Tomo II: O Processo da Emancipação. Ed. 9. – Rio de Janeiro Bertrand Brasil, 2003, p. 13-47.

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JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In:___ Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias / MOTA, Carlos Guilherme (org.). – 2 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 129-174. 18

MOTA, Carlos Guilherme. Ideia de Revolução no Brasil (1789-1801). – São Paulo. Ed. Ática S. A., 1996, p. 105-125.

acabavam ganhando sentidos práticos e eram apropriados pelos indivíduos à maneira como esses ideais eram correspondentes na realidade colonial. As populações pobres viam na revolução uma promessa de melhorar suas condições de vida, pelo estabelecimento de uma política de igualdade. (COSTA, 1999, p. 35) Como seus interesses estavam enraizados em sua localidade, os líderes da Conjuração Baiana não se referiam a um “povo brasileiro”, mas sim, faziam referência a “povo baiense”, nesse caso, os horizontes políticos dos conjurados eram Salvador e seu recôncavo: “Nos termos dos pasquins o povo é o baiense, pelo que é inútil procurar o brasileiro” (J ANCSÓ & PIMENTA in MOTA, 2000, p. 144). O fato de uma conspiração da magnitude da Conjuração Baiana – que contou com a aliança de diversos setores da sociedade – acontecer numa possessão portuguesa como Salvador, é resultante de ali e, em seus arredores, se encontrar uma sociedade colonial cujos pilares de sua estrutura, baseada no latifúndio e no escravismo, estarem em profundo abalo. Pois o final do século XVIII é um momento de aumento da exportação açucareira na Bahia que significava mais prosperidade aos senhores de engenho e comerciantes e mais trabalho para os escravos, além de mais exclusão aos setores pobres e médios da população baiana; esse era um momento de acúmulo de várias injustiças sociais. A Conjuração Baiana acabou sendo a primeira grande experiência política das camadas médias e subalternas da sociedade baiana, porém, seu fracasso resultou em acentuar cada vez mais as rivalidades entre as camadas dessa população que continuava disputando as migalhas da r i q u e z a p r o d u z i d a p e l a p r o s p e r i d a d e d a e c o n o m i a a ç u c a r e i r a 19. Numa sociedade colonial marcada pela escravidão, a noção de pertencimento perpassava o direito de propriedade privada e a posição social no ordenamento do sistema escravista: As sociedades escravistas coloniais repousavam sobre a exclusão de um segmento fundamental – os escravos – das relações que em seu interior eram pactadas, e que definiam a sua feição. (J ANCSÓ & PIMENTA in MOTA, 2000, p. 141) Nisso já se lê uma exclusão dos escravos e daqueles que eram livres e n ã o p o s s u í a m p r o p r i e d a d e s n a s c o m u n i d a d e s i m a g i n a d a s 20 p e l a s e l i t e s letradas; porém, esse ideal poderia ser lido pelos escravos que se engajavam nas lutas pela independência como uma possibilidade de se libertarem junto com o país e serem livres para também serem proprietários de suas próprias vidas, e poderia ser lido pelos homens pobres livres como uma oportunidade de ocuparem uma melhor situação 19

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SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 / tradução Laura Teixeira Motta – São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 375-390.

Quem desenvolve o conceito de nação enquanto comunidade imaginada é ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

na comunidade que também construiriam. Daí é que as populações negra, mestiça e pobre se engajaram não somente na Conjuração Baiana, como também nas lutas pela independência na Bahia. Mas, devemos salientar o fato de que não eram apenas as elites letradas que imaginavam nações: escravos africanos tinham nas referências culturais de suas identidades políticas as experiências vividas nas sociedades tradicionais do seu continente de origem até o momento do embarque no navio negreiro, e outros grupos sociais poderiam imaginar o esboço de suas comunidades humanas a partir de suas demandas, aspirações e experiências de classe. O consenso entre as classes sociais não era simples como talvez p o s s a p a r e c e r 21. H o m e n s p o b r e s l i v r e s e r a m t i d o s p e l a e l i t e e c o n ô m i c a d a colônia como uma classe perigosa. O haitianismo era um traço que marcava a mentalidade da elite senhorial detentora de escravos, este medo os povoava desde as notícias sobre a revolução que havia acontecido no Haiti no final do século XVIII; esta revolução havia sido feita por negros que haviam destruído o poder dos brancos e a vida de muitos destes naquela colônia francesa. O medo de que tal cenário se repetisse no Brasil e o histórico de rebeldia da plebe livre – em Salvador, por exemplo – fazia com que as elites locais fizessem o possível para não deixar tais populações armadas. Manter a ordem numa sociedade em ebulição como era a baiana na virada dos séculos XVIII e XIX era um d e s a f i o p a r a e s s a s e l i t e s 22. Controlar recursos ligados à terra e manter relações baseadas na troca de favores e na gratidão eram formas eficientes na reprodução das relações verticalizadas que conformavam a ordem da sociedade colonial. Na Bahia, a ordem era muito mais fácil de ser representada do que efetivada, o mandonismo, o clientelismo e o paternalismo eram atitudes políticas das classes dominantes que davam conta de ajustar essa ordem c o m p l e x a , a l é m d a l e g i t i m i d a d e d a v i o l ê n c i a 23 q u e , s o z i n h a , n ã o e r a mecanismo eficiente de controle. No caso do anti-lusitanismo, este fenômeno era, em parte, produto de uma tradição de reivindicações da plebe livre contra as especulações dos preços dos alimentos, além das tensões raciais provocadas pelo sentimento de superioridade dos portugueses em relação aos outros grupos da sociedade baiana, a oposição dos patriotas em relação aos portugueses, de certa forma, tinha a ver com a tradição rebelde da população baiana que havia começado no final do século XVIII. Comerciantes portugueses que tinham interesses enraizados no Brasil e r a m f o c a d o s p e l a s m a n i f e s t a ç õ e s d a p o p u l a ç ã o 24 . D e s s e m o d o , é d i f í c i l sustentar a ideia presente no discurso da elite senhorial de que os escravos se aliaram aos portugueses durante a guerra de independência s e n d o i n s t i g a d o s p o r e s t e s a a g i r : “ Protagonismo político era, segundo a visão de

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Sérgio Guerra Filho ajuda a desconstruir o que este chama de “mito do consenso” em sua dissertação de mestrado O povo e a guerra defendida em 2004 no programa de pós-graduação em história social da UFBA e procura avançar em direção à discussão sobre a ação dos escravos na guerra de independência no artigo Escravidão e Rebeldia: a participação escrava na Guerra da Bahia (1822-1823).

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REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia. In:___ Negociação e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista /REIS, João José e SILVA, Eduardo (orgs.). – São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-98.

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JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: História do ensaio de sedição de 1798. São Paulo / Salvador: HUCITEC & EDUFBA, 1996, p. 101-124.

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DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In:___ A interiorização da metrópole e outros estudos. – São Paulo : Alameda, 2005, p. 7-37.

mundo de autoridades e proprietários baianos, coisa exclusiva dos brancos” (GUERRA FILHO, p. 12). Analisando o caso específico das lutas pela independência na Bahia (1822-1823), podemos observar que o contexto da independência não pode ser explicado apenas pela imagem do “herói” D. Pedro, príncipe regente, declarando a independência do Brasil no 7 de setembro de 1822, nem tampouco apenas pela liderança dos oficiais do “exército pacificador”. A guerra que aconteceu na Bahia contou com ampla participação popular, inclusive, de escravos. A agitação que a sociedade baiana vivia preocupava a elite senhorial. Como se tratava de um grupo acostumado a lidar de forma paternalista com seus escravos, a ação dos negros em atos de rebeldia durante a guerra era sempre interpretada pelos senhores como resultado da influência da fome e do convencimento dos portugueses e dos atores sociais mais radicais como Cipriano Barata e S a b i n o V i e i r a 25. Era como se existissem “duas guerras em uma”; uma contra os portugueses, a outra seria em nome da ordem da sociedade baiana. A guerra de independência na Bahia foi um momento em que vários setores da sociedade baiana procuraram um espaço de poder e negociação durante o conflito, e isso ameaçava o status da elite senhorial. Inclusive, houveram escravos que procuraram participar da guerra, e outros sujeitos de mesmo estatuto que tentavam subverter a ordem escravista formando quilombos, fazendo levantes, fugindo de seus senhores; tudo isso atrapalhava a guerra. A realidade da Guerra de In dependência foi construída a partir da luta das classes sociais em torno das questões que l h e s e r a m p e r t i n e n t e s 26. Interesse das elites baianas para com o Império do Brasil: ordem e conformação A vitória no 2 de julho de 1823 sob a bandeira do “Exército Libertador” daria uma ilusão de que a Bahia seria pacificada, mas não foi o que aconteceu. A elite senhorial baiana e de outras localidades do já então Império do Brasil aderem ao pacto de formação do Estado Brasileiro buscando defender seus direitos de propriedade e de mando – não é sem razão que os princípios liberais vão prevalecer na constituição de 1824 – mas tiveram que reprimir os levantes de escravos e as revoltas da plebe livre que continuaram a acontecer durante a primeira metade do s é c u l o X I X 27. Depois de serem mobilizados na causa da independência, plebe livre e escravos estiveram depois de 2 de julho de 1823 ainda lutando por aspirações – que convergiam com o momento político – direitos e, no caso dos escravos, sua principal aspiração era o direito à liberdade. Mas não devemos esquecer que, muitas vezes, a luta dos cativos girava em torno de tentar atenuar a dureza das condições da escravidão, e a população pobre, em geral, lutava por melhores status sociais e condições

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REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia. In:___ Negociação e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista /REIS, João José e SILVA, Eduardo (orgs.). – São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-98.

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GUERRA FILHO, Sérgio A. D. O Povo e a Guerra: Participação das Camadas Populares nas Lutas pela Independência do Brasil na Bahia. Dissertação de mestrado (em história social). Salvador: UFBa, 2004.

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JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um Mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). Op. Cit. 2000, p. 129-174.

de sobrevivência; nem sempre escravos e pobres livres procuravam subverter a ordem. A elite baiana, ao mesmo tempo que foi revolucionária ao tomar o Estado das mãos metropolitanas, foi conservadora ao lutar para manterem conformadas as posições da velha ordem que já estruturava a hierarquia da sociedade baiana baseada nas relações escravistas (MORTON apud REIS in REIS & SILVA, 1989, pp. 82-83). Após a independência, os poderes locais ainda continuaram fortes até a consolidação de uma monarquia unitarista no Segundo Império com D. Pedro II: Se fosse possível marcar mais nitidamente o remate do processo tendente à unidade nacional, depois da dispersão, caberia talvez situá-lo por volta de 1848, ano em que nossos liberais quebram os remos. (HOLANDA, 2003, p. 20) O legado colonial da escravidão ainda permaneceu até 1888, além do tráfico negreiro que foi reforçado até sua extinção em 1850. O Estado c o n s t r u í d o d e p o i s d e 1 8 2 2 f o i e s c r a v i s t a e f o r m a d o c o n t r a a p l e b e l i v r e 28, reproduziu o sistema escravista ao serem estabelecidos em sua constituição princípios baseados na expressão da liberdade como a potencialidade dos indivíduos em serem proprietários, mesmo que de suas próprias vidas, isso “potencializou as ações individuais dos cativos” (SANTOS, 2007, p. 107) que buscavam a autoridade do Estado como intermediador das relações escravistas, porém, não evitou que libertos l i d e r a s s e m r e b e l i õ e s e s c r a v a s c o m o a d o s M a l ê s e m 1 8 3 5 29. Esse Estado ganhou tendência centralizadora, justamente, por precisar desta centralização diante os “inimigos internos” – estes seriam todas as classes subalternas que tiveram que ser reprimidas para se manter a unidade – e os ideais de federação que, para certos segmentos mais conservadores, significaria a ruína do legado português e a insegurança de o projeto de formar um Estado que servisse a seus interesses fracassasse caso a classe senhorial não conseguisse conciliar as classes sociais sob o princípio da ordem do império norteado pelo sentimento aristocrático que referenciava os diferentes critérios que permitiam não só estabelecer distinções – entre a ‘flor da sociedade’ e a ‘escória da população’ (...) – mas também e antes de mais nada hierarquizar os elementos constitutivos da sociedade. (MATTOS, 1987, p. 112) Sendo Assim, ao mesmo tempo em que se buscava centralizar o Estado em torno da figura de um imperador, manter as classes subalternas sob a dependência dos mandos locais e senhoriais ainda continuaria sendo um forte pilar para a permanência de práticas políticas tradicionais 28

JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um Mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). Op. Cit. 2000, p. 129-174.

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Sobre a importância dos libertos enquanto líderes de revoltas escravas na Bahia do início do século XIX leia REIS, João José. O levante dos malês: uma interpretação política. Op. Cit. 1989, p. 99-122.

pautadas no clientelismo, no paternalismo, no mandonismo e na repressão que seriam pilares do pacto da formação de um Estado Brasileiro que asseguraria a propriedade privada. Certamente, as classes dirigentes imaginaram esse Estado como um pacto de repressão e manutenção da ordem para que as tensões internas não repercutissem para além das localidades abalando a unidade em construção. Bibliografia: ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. Tradução Denise Bottman. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. COSTA, Emília Viotti da. Introdução ao estudo da emancipação política do Brasil. In:___ Da monarquia à república: momentos decisivos - 7. Ed. – São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999, p. 19-60. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole. In:___ A interiorização da metrópole e outros estudos. – São Paulo: Alameda, 2005, p. 7-37. GUERRA FILHO, Sérgio A. D. O Povo e a Guerra: Participação das Camadas Populares nas Lutas pela Independência do Brasil na Bahia. Dissertação de mestrado (em história social). Salvador: UFBa, 2004. GUERRA FILHO, Sérgio. A. D. Escravidão e Rebeldia: a participação escrava na Guerra da Bahia (1822-1823). (Texto cedido pelo próprio autor). HOLANDA, Sergio Buarque de. A herança colonial – Sua desagregação. In:___ História Geral da Civilização Brasileira. / HOLANDA, Sergio Buarque (org.). O Brasil monárquico, tomo II: o processo de emancipação. [et al.]. 9a Ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 13-47. JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In:___ Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias / MOTA, Carlos Guilherme (org.). – 2 ed. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p. 129-174. JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: História do ensaio de sedição de 1798. São Paulo / Salvador: HUCITEC & EDUFBA, 1996. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. – São Paulo: HUCITEC, 1987. MOTA, Carlos Guilherme. Ideia de Revolução no Brasil (1789-1801). – São Paulo. Ed. Ática S. A., 1996. REIS, João José. O jogo duro do Dois de Julho: o “Partido Negro” na independência da Bahia. In:___ Negociação e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista / REIS, João José e SILVA, Eduardo (orgs.). – São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 79-98. REIS, João José. O levante dos malês: uma interpretação política. In:___ Negociação e Conflito: A resistência negra no Brasil escravista / João José Reis e Eduardo Silva (orgs.). – São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 99-122. SANTOS, Ianê Lopes dos. Autonomia Escrava na Formação do Estado Nacional Brasileiro: o caso do morar sobre si no Rio de Janeiro. In:___Revista Almanack Brasiliense no 06, 2007, p. 101-113. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835 / tradução Laura Teixeira Motta – São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

4. A experimentação do dispositivo: a perspectiva auto-reflexiva no documentário Bruno Machado30 1. Resumo Vertentes experimentais do cinema surgidas em paralelo à institucionalização do cinema de sala possibilitaram a criação de dispositivos, os quais têm transformado as formas mais tradicionais de concepção e de recepção do documentário realista. Assim, levando em consideração o cinema documentário auto-reflexivo e seus dispositivos artísticos, nossa metodologia será pesquisar essas novas estratégias estéticas nos documentários Rua de Mão Dupla de Cao Guimarães e 33 de Kiko Goifman. Para isso, além da analise das obras indicadas, vamos trabalhar com o suporte teórico dos textos de André Parente, Silvio Da-Rin, Jean-Louis Comolli e Consuelo Lins. Este trabalho servirá como base de reflexão para a proposição de novos dispositivos na pesquisa desenvolvida no grupo sobre cinema expandido no Pet Cinema. PALAVRAS-CHAVE: Cinema dispositivo, documentário, imersão. 2. Introdução No presente texto, buscaremos entender como a constante hibidrização entre diferenciadas mídias influencia no questionamento do dispositivo do cinema, e nas suas múltiplas formas experimentais. Levantar essas questões torna-se necessário para poder traçar um paralelo entre tal ação e os novos caminhos de alguns documentários contemporâneos, que utilizam das noções do cinema expandido e do cinema de museu como ferramentas de exploração e combinação com o seu discurso narrativo. Assim, a proposta é analisar os documentários Rua De Mão Dupla (Cao Guimarães, 2004) e 33 (Kiko Goifman, 2002) e levantar posições que dialoguem com as mudanças ocorridas tanto na organização discursiva quanto na de exposição e leitura dessas obras. 3. O dispositivo e a Multiplicidade do Cinema O conceito do dispositivo do cinema emerge nos anos 70 por Jean-Louis Baudry na busca de definir a posição e a condição particular do espectador, assim como, os efeitos produzidos nele pelo cinema (um estado de alucinação e sonho que faz o espectador confundir 30

Graduando do curso de Cinema e Audiovisual no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Bolsista do PET Cinema, orientado pela Professora Doutora Rita Lima. Email: [email protected] Telefones: (71)87431226; (75)88726282

as representações com a própria realidade). Sendo assim, nasce proposto para ser uma crítica ao cinema de representação clássico (PARENTE, 2007). Na definição do cinema como dispositivo, duas dimensões são apresentadas por Baudry em seus escritos. Na primeira, uma dimensão técnica, onde a produção, edição, distribuição e projeção da imagem, dão ao filme a condição de representar uma determinada impressão de realidade. A segunda é uma dimensão arquitetônica, relacionada às condições de projeção da imagem em uma sala planejada para captar a atenção. (PARENTE, 2007) Essas dimensões possibilitam duas conclusões importantes: primeiro, a ocultação dos processos de representação que o cinema apresenta (o cinema não é percebido como artefato e o trabalho final é tido como a própria realidade); segundo, o formato aprisionador do cinema em sua configuração de sala/projeção (visto como uma máquina de simulações, comparado com a metáfora da Caverna de Platão31). Dessa forma, Baudry (1971 apud VEIGA, 2008) aponta que o cinema possui um dispositivo que tem como efeito básico a produção da impressão da realidade, e esse dispositivo é um aparelho ideológico no que diz respeito a possibilitar que o cinema dominante crie uma cegueira ideológica, remetendo a uma vontade de dominação pelo espectador. “Tal dispositivo tem como objetivo pôr o espectador nesse lugar central onde a produção de sentido se dá naturalmente. O movimento análogo à realidade, a narrativa que liga as imagens numa organização e a concentração criada pela sala de exibição implicarão o idealismo no qual o sentido é pleno e o ser homegêneo.” (VEIGA, 2008: 68) Acrescido ao pensamento de Baudry, Jean-Louis Comolli também tenta compreender o dispositivo do cinema, onde ele “transfere para a organização discursiva o que antes, em Baudry, parecia ser um efeito específico do aparelho de base, pela câmera/projeção” (PARENTE, 2007:8). Assim, uma terceira dimensão do dispositivo é proposta, a discursivoformal. A convergência das três dimensões do dispositivo (uma sala escura onde é projetado um filme que conta uma história e faz o espectador crer que está diante dos próprios fatos) resulta nesse modelo de representação do cinema dominante, que André Parente (2007) chama de Forma Cinema. Um modelo particular de cinema que se tornou hegemônica devido a questões históricas, sociais e econômicas, porém que não deve ser visto como único existente e nem mesmo como realidade incontornável, afinal esse modelo ilusionista existe apenas enquanto concepção ideológica. (PARENTE, 2007) 31

No mito da Caverna de Platão, prisioneiros de uma caverna, que nasceram e cresceram ali, julgariam que as sombras vindas de fora projetadas nas paredes da caverna seriam a própria realidade. Essa alegoria remete o posicionamento de que o espectador é vítima de uma ilusão (impressão da realidade), uma vez que confunde as representações com a própria realidade.

Mesmo que encoberto pela sua vertente dominante, é possível ver o cinema em uma dimensão múltipla. E é a noção do conceito do dispositivo cinematográfico que ajuda a entender como as várias experiências e desvios do modelo dominante possibilitaram essa multiplicidade do cinema, já que buscar transformar as dimensões básicas do dispositivo (arquitetônica, tecnológica e discursiva), através de experimentações, é que se mostra como ponto comum entre as variantes do cinema. O cinema expandido e o cinema de exposição (cinema de museu), duas das várias experimentações com o dispositivo cinematográfico, trabalham em pelo menos uma das suas três dimensões, quebrando com qualquer associação com o cinema de sala. O cinema expandido caracteriza-se, principalmente, pela sua busca em reinventar a sala de cinema em outros espaços assim como associar-se a outras mídias, propondo um cinema hibridizado. “Por meio da realização de ‘happenings’ e ‘performances’ utilizando projeções múltiplas ou em espaços outros que o da sala de cinema, muitas vezes combinando a projeção com outras expressões artísticas, como a dança, a música, a arquitetura, a fotografia etc. O cinema expandido é uma tentativa de criar um processo de participação do espectador, como se o espetáculo do cinema desse um movimento ao seu corpo, liberando-o da cadeira...” (PARENTE, 2008:53) Já o cinema de museu é pensado nos conceitos da vídeoarte, proporcionando instalações, multiplicação das telas, performances, interação com as imagens etc. A vídeoarte renova também a posição do espectador, o qual pode ser utilizado como parte da obra, sendo agora ao mesmo tempo espectador e ator. Porém, é a demarcação e quebra na noção de tempo que caracteriza melhor esse modelo. “Já o cinema de exposição, cinema de museu ou cinema de artista, tem mais relação com a espacialização da imagem e a interrupção do fluxo temporal, seja do filme, seja do espaço instalativo. As instalações são imagens organizadas em um espaço expositivo, enquanto o cinema da sala de projeções, mesmo o cinema de atrações e o cinema expandido, tem as imagens organizadas no tempo.” (PARENTE, 2008:54) 4. Dimensão discurso-formal: o dispositivo nos documentários. Visto como funciona a teoria do dispositivo ao propor ver o cinema como resultante da interação das suas três dimensões. Buscaremos destacar agora não mais o dispositivo como ligado à técnica em que as imagens são dispostas ou à técnica que cria as imagens, mas sim o dispositivo como estratégia narrativa, ou seja, discutido em sua noção discurso-formal. “Pensar de que forma as novas tecnologias do audiovisual são organizadas em dispositivos de criação é pensar também o estatuto da

imagem contemporânea, a possibilidade e o sentido da produção de novas imagens”. (MIGRIOLIN, 2005) Comolli (1971-1972 apud PARENTE, 2007) implica o dispositivo em duas esferas: a das condições do espectador (uma visão parecida com a teoria do dispositivo de Baudry, porém com foco no discurso) e a das maneiras de filmar, onde o autor coloca que o documentarista precisa ter a “obrigação de imaginar, de testar, de verificar dispositivos de escrita – inéditos na medida em que estes só podem estar intimamente ligados a um processo de criação, a uma dimensão do mundo” (COMOLLI, 2008:177), associando o dispositivo a um artifício que o documentarista propõe para a realização da sua obra. No artigo O Dispositivo como Estratégia Narrativa32, Cezar Migriolin comenta que esse dispositivo pensado por Comolli implica em dois caminhos: um de extremo controle, com regras, limites e recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões, ou seja, o documentário deve inventar formas, regras que possibilitem apreender o que não é cinematograficamente apreendido, porém, o não-controle também surge como condição de invenção, destacando-se a fragilidade do dispositivo perante o mundo e seus atores sociais. “Mesmo que quisesse, a obra documental seria incapaz de reduzir o mundo a um dispositivo que ela já daria como pronto. Melhor: ela não pode se impedir, para levar ao extremo esta lógica de aprendizagem, de desejar ver seu dispositivo ‘avacalhado’ pela irrupção de dados inéditos – que não seriam aqueles por meio dos quais o mundo já se oferece a nós. Eis porque os dispositivos do documentário são antes de tudo precários, instáveis, frágeis. Eles são úteis apenas para permitir a exploração do que ainda não é de todo conhecido.” (COMOLLI, 2008:177) No Brasil, Consuelo Lins destacou-se em escrever sobre o dispositivo no documentário, primeiramente nas obras de Eduardo Coutinho, com o qual ela trabalhou. “Dispositivo é um termo que Coutinho começou a usar para se referir a seus procedimentos de filmagem. Em outros momentos chamou isso de prisão, indicando as formas de abordagem de um determinado universo. Para o diretor, o crucial em um projeto de documentário é a criação de um dispositivo, e não o tema do filme ou a elaboração de um roteiro, o que, aliás, se recusa terminantemente a fazer. O dispositivo é criado antes do filme e pode ser: filmar dez anos, filmar só gente de costas, enfim, pode ser um dispositivo ruim, mas é o que importa em um documentário.” (LINS, 2007:115)

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Disponível em http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp; último acesso em Agosto de 2011.

Percebe-se que Consuelo propõe um conceito mais livre e mais amplo, porém ainda com grandes proximidades da definição de Comolli: a de ser uma abordagem do mundo para o filme. Importante também é como ela destaca que a noção de dispositivo não deve ser confundida com a elaboração de um roteiro, assim como que a utilização desses artifícios não proporciona boas ou más obras. Já no texto Tempo e Dispositivos nos Filmes de Cao Guimarães, ela amadurece o conceito ao descrever o dispositivo como uma elaboração de uma ‘maquinação’, um pensamento que institui regras e limites para que o filme aconteça, assim como na construção de uma ‘maquinaria’ para produzir a obra finalizada (LINS, 2005). Teoricamente presente em qualquer documentário, essa noção do dispositivo como artifício de filmagem tem mais destaque em documentários auto-reflexivos 33 , já que o dispositivo funciona em favor de si mesmo, questionando a própria linguagem. Como esclarece Sílvio Da-Rin no texto Antiilusionismo e Auto-Reflexividade, (2006) “Não satisfeito em simplesmente expor um argumento sobre seu objeto, o cineasta passa a engajar-se em um metacomentário sobre os mecanismos que dão forma a este argumento.” (DA-RIN, 2006:170) É possível também um diálogo claro entre a teoria do dispositivo e os documentários reflexivos, pois se o dispositivo funciona para descrever a estética da transparência do modelo representativo clássico, a experimentação das suas dimensões básicas seguiria pelo caminho da quebra do ilusionismo, onde a obra procurará “ressaltar as brechas, os furos e as ligaduras do tecido narrativo (...) e o sentido político, antes atribuído às finalidades, contamina os meios, e desloca-se para o terreno da ‘linguagem’.” (DA-RIN, 2006:170), ou seja, esses documentários não se importam em mostrar seus processos de criação, possibilitando a quebra da ilusão e o questionamento das suas próprias bases. 5. Rua de Mão Dupla: o dispositivo em jogo Proposto primeiramente como vídeoinstalação, o diretor Cao Guimarães lança Rua de Mão Dupla na 25ª Bienal Internacional de São Paulo em 2002. Cao convidou seis pessoas de classe média de Belo Horizonte que, divididos em duplas (um produtor musical e uma oficial da justiça, um construtor e um arquiteto, uma escritora e um poeta), trocariam de casa por 24 horas. Cada um possuía uma pequena câmera digital, a qual eles utilizavam para filmar o que lhes interessava na casa alheia, e assim tentarem construir uma impressão sobre o outro.34 O material editado resultou em três blocos, um para cada dupla. Na elaboração da instalação, dois monitores contrapostos foram utilizados para exibir os dois ambientes (no caso,

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“Estes documentários auto-reflexivos misturam trechos observacionais, letreiros, entrevistas e comentários em voz off, tornando explícito aquilo que tem sempre estado implícito: documentários sempre foram formas de representação, nunca janelas transparentes para a ‘realidade’; o cineasta sempre foi um participante-testemunha e um ativo fabricante de significados, um produtor de discurso cinematográfico e não um repórter neutro e onisciente da verdade das coisas.” (NICHOLS, 1983 apud ROSENTHAL, 1988 apud DA-RIN, 2006: 170) 34 “Tentariam elaborar uma ‘imagem mental’ do outro (a) através da convivência com seus objetos pessoais e seu universo domiciliar”; Cao Guimarães, em texto da contra-capa do vídeo de Rua de Mão Dupla.

as casas das duas pessoas de cada bloco). No final de cada bloco, ocorria o depoimento das duplas, da forma que: uma pessoa de cada vez dava seu depoimento em um dos monitores e no outro, a pessoa descrita ficava em silêncio, olhando em direção a câmera. Depois a ordem era invertida. Após a experiência da instalação, o projeto virou filme em 2004. Os dois monitores foram substituídos por uma divisão da tela em duas, as quais foram utilizadas da mesma forma que o pensado inicialmente. Nessa estratégia, percebe-se um interesse do diretor em criar um princípio, uma lógica, um dispositivo que institui condições e regras para que o filme aconteça. Porém, observa-se que mesmo tendo controle das regras (sendo o princípio ativador do filme), Cao não tem controle sobre os resultados, proporcionado pela total entrega e envolvimento das personagens. “Em Rua de Mão Dupla, o diretor não filma nem dirige, mas concede um jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe jogadores, fornece câmera, transporte, comida. Provê o necessário e sai de campo. (...) propiciando uma espécie de ‘retirada estética’ não propriamente do filme, mas das imagens e sons que seu filme vai conter, atribuindo a seis outros indivíduos a tarefa de filmar e se auto-dirigir. (...) Não se trata em absoluto de abdicar do filme em favor dos personagens, mas de imprimir modificações à concepção de autor, que deixa de lado a fabricação das imagens para se concentrar na estruturação do dispositivo” (LINS, 2005:6) A dimensão do discurso ganha grandes proporções no filme do Cao por ser exatamente algo que está na tela para ser notado, potencializando (e questionando) não só a linguagem do documentário como também desmistificando as personagens em cena, e garantindo a atenção e a imersão do espectador no que é mostrado. Como explana Consuelo Lins (2005), a grande invenção do filme é o fato de os participantes possuírem interesse por outros e não por eles mesmos, o que acaba sendo uma barreira para o desejo de confessar sobre segredos íntimos, o que, muitas vezes, pouco diz sobre as pessoas. Essa mudança de atenção para falar dos outros em vez de falar de si mesmo, resulta em personagens menos atentos a auto-controles, censuras e filtros que normalmente são usados para oferecer a imagem que desejamos de nós mesmos. (LINS, 2005) Assim, é ao filmar as coisas dos outros e falar desse outro, que cada personagem, sem recorrer a falar de aflições particulares, mostrou sua própria identidade, demonstrando suas identidades, interesses, histórias e preconceitos. “Em Rua de Mão Dupla filma-se imagens do outro, imagens que não são mais imagens de algo (uma capa de revista, uma mulher pelada, um cantor na capa de um disco), mas pontes entre aquela imagem e seu dono. Desta forma, as imagens que pertencem aos donos das casas perdem sua conexão única com seu referente para apontarem também para quem as escolheu, quem as separou e a possibilidade de aquelas

imagens conterem pistas de quem as destacou no mundo.”(MIGRIOLIN, 2005) Além do dispositivo narrativo - esse artifício/armadilha que busca maneiras de mostrar o mundo – há também uma quebra da dimensão arquitetônica do dispositivo do cinema. Em sua proposta inicial, Cao Guimarães busca uma relação do documentário com as artes contemporâneas, e aproxima-se do cinema de museu (ou cine-instalação 35 ), utilizando da vídeoarte e dos princípios da instalação para colocar em prática seu objetivo, de forma que a construção da arquitetura de exibição da obra não seja de forma aleatória, mas sim interligada com a narrativa, possibilitando um diálogo com o jogo que ele propõe. “Trata-se de um projeto que emerge de uma trajetória artística ligada à fotografia e á videoarte, mas em diálogo direto com o campo do documentário, apostando na mistura e contaminação de procedimentos estéticos como forma de invenção audiovisual. (...) que se renovam a partir de estratégias extraídas da arte contemporânea e que propiciam outras maneiras de se relacionar com imagens em movimento, redefinindo temporalidade, espaço, narrativa e impondo modificações à interação mental e corporal do espectador.” (LINS, 2005:2) Essas experiências de hibridização com as artes visuais influem no entendimento e envolvimento de quem acompanha a obra. A posição física e mental do espectador nessa instalação o leva para dentro do filme, o que cria uma relação com as personagens e possibilita uma aproximação com seus pontos de vista. “O dispositivo como mecanismo de produção cria uma situação onde os personagens são colocados a agir. Podemos dizer então que nesta ação acontece uma efetivação de potencialidade do real. Há algo que se passa, que acontece, que ganha realidade e que não existe sem o filme; uma fala, um movimento corporal, um pensamento sobre si e sobre o outro. O que está para ser documentado é uma contingência, ou seja: algo que pode ou não ocorrer. O que o filme-dispositivo se propõe a fazer é criar mecanismos para eventualmente captar o que é contingente. O interesse deste tipo de obra é no acontecimento, não na necessidade.” (MIGRIOLIN, 2005) Assim, na medida em que reflete o modelo documentário, Cao o questiona, ao explorar os limites da ilusão e da forma-real, seja pelo dispositivo narrativo ou pela mudança da exibição das imagens. Destacando o cinema como artefato 36 , garantindo-lhe uma nova proposta para filmar a realidade.

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“Filmes criados para habitarem uma arquitetura expositiva pretederminada, em que a espacialização da projeção é algo fundamental”. (MACIEL, 2004).

“Enquanto a arte ilusionista procura causar a impressão de uma coerência espaço-temporal, a arte antiilusionista procura resaltar as brechas, os furos e as ligaduras do tecido narrativo.” (STAM, 1981 apud DA-RIN, 2008:171)

6. 33: novos horizontes do documentário A busca pela mãe biológica em 33 dias. Esse é o dispositivo que Kiko Goifman, antropólogo e roteirista/diretor, se propõe na realização do seu filme. Ele resolveu procurar por ela e documentar essa jornada, limitando a busca em 33 dias (número constante no momento: como sua idade ou o ano do nascimento de sua mãe adotiva), e partiu pelas pistas e informações que pudessem levá-lo ao seu objetivo. É uma obra que mescla linguagens de gêneros, trabalhando entre tênues linhas que separam o documentário da ficção e do experimental. Além disso, nasce também como uma proposta multimediática, sendo “ao mesmo tempo um diário on-line na internet, uma reportagem na televisão broadcast, um vídeo experimental, um road movie e um documentário performático.” (MELLO, 2004) Da ficção, o clima do cinema noir impregna o filme, graças a suas imagens noturnas em preto e branco e sua atmosfera de investigação policial, além da proximidade da personagem Kiko com a de personagens ficcionais 37. Acrescentando-se ainda uma referência a vídeoarte (pelo caráter experimental e ensaístico das imagens) e autobiográfico, afinal, como lembra Ana Rosa Marques, trata-se da história pessoal do diretor contada a partir de seu próprio ponto de vista (MARQUES, 2004)38. “A preocupação maior agora está em desenvolver um discurso que ressalte os aspectos expressivos, poéticos e retóricos do filme. Em 33, portanto, a plasticidade e distorção das imagens, a narração em primeira pessoa, a desconstrução da representação, a fotografia, a luz, a ambigüidade, o estilo do cinema noir, a ironia, etc. não são apenas aspectos formais. São os próprios pilares do filme” (MARQUES, 2004). Na forte presença do Kiko em cena (ou fora dela, mas com a permanência do seu discurso), o filme assume uma postura altamente subjetiva, repensando a posição de sujeito e objeto no documentário. Assim, além de características comuns ao documentário reflexivo, como o de contar as próprias estruturas de construção narrativa do filme, ele transparece uma dimensão performática, onde Bill Nichols elucida “que é o filme que traz, como se fosse pela primeira vez, um mundo cujas aparências e significados nós já pensávamos conhecer” (NICHOLS, 2005:96). Essa amplitude da performance faz-se ver principalmente na relação do diretor consigo mesmo. Representada pelo fato de ele mesmo interferir na sua vida e na troca de posição de

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“O filme tem um personagem cuja estrutura é ficcional, no sentido em que tem um objetivo como têm os personagens da ficção. Ele enfrenta obstáculos, que vai superando ou não. Portanto há uma mescla também entre a atitude documentária e a ficcional.” (BERNARDET, 2004; Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u42369.shtml; Último acesso em Agosto de 2011) 38 Disponível em http://www.revistaav.unisinos.br/index.php?e=1&s=9&a=33; Último acesso em Agosto de 2011.

sujeito39, onde ao mesmo tempo em que é sujeito-realizador (ele comanda a câmera, e mantêm a sua visão como principal) ele é também objeto-personagem (ele é o tema do seu próprio documentário). Kiko garante essa relação ou através de depoimentos dados diretamente para a câmera, ou pela narração off, ou pela constante utilização de seus reflexos, sempre no intuito de se “denunciar” para o espectador, fortalecendo as ligações entre autor, filme e espectador. “Kiko se mostra e esconde: desvenda fragmentos do seu rosto, seu reflexo no espelho com uma câmera, sua imagem ‘deformada’ por uma lente diante da objetiva da câmera. Ao mesmo tempo em que ele mostra, com essas técnicas, a origem enunciativa do discurso, também questiona a sua própria representação. Dessa forma se adiciona uma dimensão não só reflexiva como auto-reflexiva ao relato performático.” (MARQUES, 2004) Jean-Claude Bernardet descreve o artifício utilizado por Kiko como um dispositivo de busca, resultando em um filme-processo (BERNARDET, 2004). Aqui, a obra se ver “dependente” do desenvolvimento de um processo, da busca de uma experimentação. Não se renega um projeto, mas se trabalha com o princípio da incerteza, onde nada do filme está dado logo de início, tudo se constrói no seu desenvolvimento. Tanto para o diretor (e personagem, como é o Kiko) como para o espectador. Além dessa dimensão fílmica (a exploração do dispositivo discurso-formal) que resulta no documentário performático, o diretor optou pela extensão do projeto por outras mídias, repensando o próprio dispositivo do cinema nas suas dimensões mais amplas.

Assim,

modificando a recepção e a leitura da obra. A arquitetura de exibição é repensada, dividindo seu texto pela televisão e pela internet. E sua técnica é modificada ao utilizar diferenciados métodos de apreensão: a filmagem depende das pistas fornecidas pelos internautas e pelos telespectadores dos jornais, a edição é fragmentada, a ilusão é quebrada e a o resultado final é mais amplo do que o filme projetado. “O recurso multimidiático forjou uma espécie de documentário expandido, cujo texto extrapolou as fronteiras do filme. O 33 que se oferece hoje nas telas de cinema surge como obra incompleta, como registro parcial, como fragmento. Assume-se como versão condensada de um processo de investigação desenvolvido para além da câmera.” (LABAKI, 2005:183) Percebe-se então que o principal efeito dessa experiência do dispositivo é exatamente repensar o lugar do expectador. Aqui em 33, ele é convidado para entrar ativamente no destino

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“A grande mudança em "33" é que esse trabalho passa a ser feito não sobre um personagem exterior ao cineasta, mas sobre o próprio documentarista, na medida em que a pessoa/a personagem se fundem”. (BERNARDET, 2004; Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u42369.shtml; Último acesso em Agosto de 2011)

do filme e também no do Kiko Goifman; convidado a influenciar nas decisões do diretor durante o processo de realização do filme. O documentário torna-se não só a representação dos outros, mas também a representação conjunta de quem constrói e de quem recepciona a obra. Como destaca Amir Labaki (2005), assim caminha o documentário. 7. Considerações Finais O presente artigo buscou uma relação entre a teoria do dispositivo e a multiplicidade da forma cinema, relacionado a exploração de suas dimensões básicas na produção de obras híbridas e multimidiáticas, que se projetam em diferentes meios de exibição, e com novas interações com os espectadores e personagens. Na discussão das obras propostas (Rua de Mão Dupla e 33), percebeu-se como as experimentações do dispositivo questionam os modelos clássicos de representação e como a vertente de repensar o dispositivo que o cinema expandido e o cinema de museu propõem é incorporada por esses documentários auto-reflexivos e performáticos contemporâneos ao seu processo de criação, ao tempo que dialogam com seus próprios dispositivos artísticos na dimensão do discurso-formal. Sendo assim, as reflexões aqui desenvolvidas serão utilizadas de forma crítica e construtiva no processo de formulação de novos dispositivos para as pesquisas teótico-práticas sobre cinema expandido e o diálogo com o recôncavo baiano, desenvolvidas como atividade de pesquisa do PET Cinema. Bibliografia BERNARDET, Jean-Claude. 33 traz novos horizontes aos documentários, 2004. Disponível em ; Último acesso em Agosto de 2011. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. DA-RIN, Silvio. Espelho Partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue, RJ. 2006 LABAKI, Amir. É tudo Verdade: Reflexões sobre a Cultura do Documentáro. São Paulo: Editora Lanscape, 2005. LINS, Consuelo. Tempo e Dispositivo nos Filmes de Cao Guimarães, 2005. Disponível em ; Último acesso em Agosto de 2011.

LINS, Consuelo. O Documentário de Eduarto Coutinho. Televisão, cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., RJ. 2007 MACIEL,

Kátia.

Outros

Cinemas,

Outras

Narrativas.

Disponível

em

; Último acesso em Agosto de 2011. MARQUES, Ana Rosa. 33: Entre o diário e a performance. 2004. Disponível em ; Último acesso em Agosto de 2011. MELLO, Christine. Arte e Novas Mídias: Práticas e Contextos no Brasil a partir dos anos 90. In:

ars.

USP,

São

Paulo,

ano

3,

n.

5,

2005.

Disponível

em

. Último acesso em Agosto de 2011. MIGLIORIN, Cezar. O Dispositivo como estratégia narrativa. 2005. Disponível em ; Último acesso em Agosto de 2011. NICHOLS, Bill. Introdução ao Documentário. São Paulo: Editora Papirus, 2005. PARENTE, André. Cinema de Exposição: o dispositivo em contra/campo. Revista Poiésis, n. 12, p.51-63, Nov. 2008. PARENTE, André. Cinema em Trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo. In: PENAFRIA, Manuela & MARTINS, India Mara (orgs.). Estéticas do Digital: Cinema e Tecnologia. São Paulo: Livros LabCom. 2007. VEIGA, Roberta. A Estética do Confinamento: o dispositivo no cinema contemporâneo. 2008. Disponível em ; Último acesso em Agosto de 2011. Filmografia GOIFMAN, Kiko. 33. 2002 GUIMARÃES, Cao. Rua de Mão Dupla. 2004

5. DA MODERNIDADE À CONCEPÇÃO DA MODERNA ARTE BRASILEIRA Por Camillo César Alvarenga Resumo: Este artigo traz como objetivo identificar a relação entre as condições societais modernas de existência e a produção da arte moderna brasileira articulando a análise do método sócio-histórico biográfico de Elias em função da leitura de Bourdieu do processo de formação da arte na sociedade burguesa. Nossa hipótese de trabalho é que há um atrelamento significativo entre a obra de arte, expressão da personalidade de uma cultura, e o artista enquanto elemento que materializa e comunica as tendências estéticas da sociedade possibilitando assim observar o imbricamento das condições sociais de produção e recepção artística e seus desdobramentos. Assim a revisão bibliográfica, através da descrição exploratória dos supracitados teóricos além de outros pontualmente permitem traçar um cenário das correntes teóricas de interpretação sociológica e suscitar a conformação da arte moderna brasileira. Palavras-chave: N. Elias; P. Bourdieu; sociologia da arte; modernismo no Brasil. I. DAS NOVAS FORMAS SOCIAIS DA CIVILIZAÇÃO A constituição da arte moderna e a formulação de seus princípios decorreu de um complexo processo social e histórico que envolveu a emergência da sociedade burguesa na Europa. (Lacombe, 2010.) Primeiro entende-se o desenvolvimento e percurso dos movimentos “estruturais” da sociedade européia suas revoluções incessantes – mais notadamente de interesse as transformações ocorridas no interior dos caracteres econômico, político e cultural no transcorrer da história social da civilização ocidental – estes reordenamentos nas esferas que determinam o “contexto das relações sociais”, ou seja, processos estes que elaboram as “condições sociais de produção e da recepção da obra de arte”. Para tal esclarecimento sobre esta profusão de acontecimentos desde a invenção da imprensa germânica e os conseqüentes redimensionamentos no que tange a religião – protestantismo, reforma, contra reforma – as grandes navegações ibéricas, até o aparecimento das grandes cidades e sua “luta de classe” – formação de centros urbanos para a grande indústria em veloz ritmo – desembocar na dupla revolução – francesa-inglesa, leia-se burguesa-industrial – em voga no continente abrindo assim precedentes históricos para a emergência da cultura capitalista. De modo ainda que sucinto esse conjunto de eventos e seus desdobramentos, o que o weberianismo de Nobert Elias o fez descrever através de seu método 40 histórico-sociológico como “o processo civilizador” ou “a dinâmica do ocidente” deixa perceber com o apoio de Pierre Bourdieu41 dentro do curso dos fatos históricos e sociais que movem a cultura e suas trocas simbólicas – desde o soerguimento da “arte na era da reproductibilidade técnica”, “arte industrial”, “indústria cultural”, queda da sociedade de corte e preservação de sua arquitetura 40

Esta nota é dedicada ao método de Elias, mais precisamente a sua sócio-análise acerca da vida de um artista para entender o social e a história entorno dela. Em Mozart, Sociologia de um Gênio opera-se a investigação científica sobre a égide do método biográfico em ciências sociais ainda que preservando a relação entre a personalidade do artista em face da história e do seu contexto social.

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Tomamos como referencial teórico para o estudo a obra As Regras da Arte, na qual Bourdieu explora as transformações socioeconômicas, políticas e culturais na organização social para engendrar o avatar do artista moderno e quais são os “espaços”, “habitus” e “campos” que configuram a sua sistemática epistêmica no que toca a arte sob o jugo da sociedade burguesa.

ritualística no comportamento burguês principalmente nas cerimônias artísticas (demonstrando a dimensão antropológica observada nos ritos dos salões de arte e eventos como bienais e semanas de arte). Logo a concepção da arte moderna é assim a história social da obra de arte como ponto de crítico das expressões produzidas do certame entre a personalidade do artista e as formas objetivas da cultura, gestadas na matriz econômica delineadas no tecido político conformando um panorama histórico na qual se desenham as condições sociológicas – burguesa moderna – de observação da modelagem do real. De tal maneira explicitadas as premissas que propõem as bases teórico-metodológicas do presente artigo, aprofunda-se a abordagem acerca da sociologia da arte no intuito de entender as repercussões – do fenômeno da modernidade e a emergência da cultura burguesa à luz da teoria social – no desenvolvimento de reflexões acerca do desenrolar da modernidade e suas implicações no modernismo do Brasil. II. ARTÍFICE DE SIGNOS E SÍMBOLOS, O ARTISTA NA MODERNIDADE. Partamos então a nossa revisão de literatura. Na obra As Regras da Arte, Pierre Bourdieu (2002), entrega uma analítica visão da “gênese e estrutura do campo literário” – nos deteremos neste setor das artes, pois que desenvolve fundamental função no modernismo brasileiro – seu “jogo” de “posições, colocações, deslocamentos”, a “questão da herança” o “poder da escrita” todos esses elementos em torno da “conquista de autonomia do campo” e sua “fase crítica de emergência” em face de uma certa “subordinação estrutural” as condições sociais de produção e a condição do artista sendo posto frente a “boêmia” e a necessidade histórica da “invenção de uma arte de viver” – novo habitus – em busca de uma ruptura com o “burguês” subvertendo a ordem de seu mundo econômico através de um movimento entre “posições e disposições” no campo para então fazer surgir uma outra estética sustentadas em novas bases éticas que permitissem ao artista a revolução a uma estética “pura”. Assim aprofundemos a leitura crítica sobre o texto do francês e a “emergência de uma estrutura dualista” de “diferenciação dos gêneros” e “unificação do campo”, destrincha também as relações entre “arte e dinheiro” e suas condicionantes na dinâmica de produção artística na era burguesa industrial. Avistamos então no bojo de sua teoria elementos como a “dialética da distinção” desembocando na “invenção do intelectual” e sua condição diante o “mercado dos bens simbólicos” e seu funcionamento que opera sobre aspectos como “marcar época” propondo uma “lógica da mudança” vinculada a “produção da crença” no ser artista e as experiências do “campo literário no campo de poder” além da atribuição à obra de arte de um “fetiche”. Apontando ainda a existência de “lutas internas” e um espírito de “revolução permanente” como inerente ao “campo” influenciado por “oferta e procura”. E para amarrar a sua incursão, Bourdieu pontua a transcendência como instituição para o artista moderno envolto num campo ainda prenhe de “formas de conservantismo” desaguando de tal forma na análise de “categorias históricas da percepção artística” perpassando assim como Elias os pressupostos weberianos como o “fundamento da ilusão carismática” e uma idéia de “corporativismo universal” no mundo da arte. Logo em todo esse emaranhado de determinações se pode vê a combinação entre o “bacharel” e o “herdeiro”, entre “arte e política”, “política e negócios” criando símbolos de representação do espaço social no qual se desenvolvem “redes” de práticas sociais de cooptação, recepções, saraus tudo isso funcionando a partir daquele movimento social que Elias chama de “figuração” na sociedade burguesa atraindo assim na descrição de Bourdieu “pintores, compositores, caricaturistas, retratistas, poetas, escultores, advogados, críticos de arte, fabricantes de papel, proprietários e personagens da arte, ciência e política”(Bourdieu,2002; p.19) Com a geração deste campo de poder político e econômico a arte, o jornalismo a indústria se mostram enquanto refinado complexo cultural, ante o marchant “industrial da arte”, produzindo teorias estéticas ou políticas que elaboram-se enquanto instâncias de consagração

que governam e regem a produção dos escritores e artistas nesse “jogo” entre arte e dinheiro – “lucros materiais” versus “lucros simbólicos”. Tem-se então uma das máximas do pensador francês como que no mundo das artes “todas as regras e virtudes burguesas são banidas, salvo o dinheiro e a virtude que podem impedir o amor” muita atenção sobre este postulado, pois do entendimento deste axioma sociológico depende todo o entendimento do que acontece no contexto artístico brasileiro e seus artistas que “ lançados nesse espaço, como partículas em um campo de forças e suas trajetórias serão determinadas pela relação entre forças do campo e sua inércia própria”.(Bourdieu, 2002; p.24). Pois que o que em Elias aparece enquanto “economia psíquica” relacionada ao “autocontrole” e sabedoria de comportamento em sociedade Bourdieu aponta este ponto critico na teoria social moderna como um processo de “envelhecimento social” representação do “conjunto das propriedades incorporadas, inclusive a elegância, a naturalidade ou mesmo a beleza, e o capital sob suas diversas formas, econômica, cultural, social”. Confrontam-se “origem” e “trajetória”, “família” e “indivíduo” como produto de uma economia psíquica e social tendo como resultante a mediação entre o amor e os negócios assim como nas relações pessoais inter-subjetivas desempenhadas por figuras centrais do modernismo nacional como Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. A propósito disto as relações de “propriedade” e aspectos psíquicos sociais como a capacidade de fundar identidade social – como no caso dos cabelos de Tarsila como aponta Miceli (2003; p.128) em seu Nacional estrangeiro – através do estetismo e a relação entre os pólos econômico/político e o pólo de prestigio intelectual e artístico. Doravante tal análise elabora-se a fórmula da intuição prática do habitus – o dandismo – da experiência cotidiana para pressentir ou compreender as condutas das pessoas no decorrer do curso de sua vida, ou seja, da história. História esta que organiza a ficção onde a ilusão de realidade dissimula-se sob as interações entre pessoas e suas relações sentimentais de modos operandi “combinatório e sistemático” aonde as “estruturas sociais” são a “chave do sentimento” em função dos bens, das relações, da beleza e inteligência num arranjo da produção da obra de arte enquanto bens simbólicos. III. A ARTE MODERNA E O MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICA Munidos agora de tal esquemática aportamos nossos esforços sobre a teoria da obra de arte de N. Elias e seu método biográfico, sócio-histórico de interpretação, no qual o produto da atividade artística é percebido tal como “expressão das funções e desejos que é comunicada de uma forma inteligível e socialmente adequada e relevante” funcionando assim mediante o processo de civilização, ou seja, socialização servindo de objeto para a identificação de uma “unicidade” entre artista e obra na representação da cultura. Consubstanciado no “habitus” – no entender de Elias uma espécie de segunda natureza formada no processo civilizatório para dinamizar jogos sociais impostos ou não – assim mediando as “pulsões” e “desejos” numa “negociação” entre id, ego e superego diante do contexto social da vida do artista formando as condições necessárias para clarificar por exemplo a “distinção” entre o que “insucesso objetivo” de Mozart e a “consagração” ainda em vida de Beethoven. Avaliando a função social do “mecenato aristocrático” e a produção artística que mira-se na “estética do social” desde as concepções de ritos, cerimônias, funcionando com engenho na relação entre “outsiders” – os que estão fora da configuração oficial mas praticam os jogos sociais ou servem como instrumentos deste – e “estabelecidos” – que no desenvolvimento da teoria de Elias é a representação da sociedade de corte européia frente ao ethos burguês moderno que por ora emerge – apresentando para o artista a necessidade de ter um currículo brilhante e reconhecimento factual de seu lugar na “configuração” social em fase de remodelagem. Dotada de classes sociais caracterizando o indivíduo, a sociedade moderna em gestação tem como conseqüências propostas artísticas que refletem as hierarquias sociais e processos de corrupção formal da arte onde as contradições sociais expressas aparecem aberrações ao gosto

estabelecido, que por outro lado condena o artista a pobreza e dívidas vilipendiando a natureza de suas criações (no caso especifico de Mozart). Tem-se de sobre modo a passagem da “arte de artesão” para a “arte de artista” numa relação entre arte como mercadoria e a instauração de um mercado com um público consumidor difuso, o que, no entanto proporciona a libertação do artista do mecenato rendendo novas bases para a relação estética e a proposição do artista do “gosto” para sociedade. Essa arte então imersa no mercado burguês, desprendida da aristocracia, exige do artista uma “educação estética” e, por conseguinte ao esforço e trabalho do talento, o que produziria o “gênio” – mítico herói burguês, resultado duma construção ideológica da competência burguesa, não sendo esta inata esta condição, mas sim decorrente do processo civilizador de educação artística e social do sujeito, onde objeto de arte é produto da interação entre o indivíduo e seu meio social42. Reconhecendo de forma categórica os condicionamentos da sociedade “por trás” do processo de criação da obra de arte verifica-se em que sentido as relações sociais dos artistas desde suas relações pessoais – envolvendo “estruturas de sentimento43” – como o casamento entre nomes da cena do modernismo brasileiro e o estabelecimento de pontos de convergência estética que se formam no bojo desse grupo44 que se propõem as novas orientações filosóficas, psicológicas e sociológicas no fazer artístico brasileiro pós os movimentos vanguardistas que se desdobram na Europa com a consolidação do campo artístico moderno e seus aspectos “estruturais”. Não obstante as considerações macrosociológicas, o que de fato impressiona na metodologia de Elias é a dimensão que o autor dá a elementos biográficos da vida social do artista, no seu caso Mozart. O método sócio-histórico biográfico acaba sendo recurso utilizado também para explicar e entender como se processa a adoção pela “elite burguesa brasileira” de concepções de mundo gestadas no outro lado do atlântico. Através da percepção de que as “condições sociais de produção da vida material” dos artistas brasileiros e logo, sua produção estética estavam vinculadas a experiências sociais possibilitadas pelo acumulo de capital de suas “famílias” e da posição que ocupavam na hierarquia social mediante suas capacidades intelectuais de expressão da obra de arte.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Rio de Janeiro: Saga, 1969.

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Chamaremos novamente atenção a esse ponto da teoria de Elias onde se funda o postulado que rege o movimento artístico moderno tanto na Europa quanto no Brasil. A vida social dos artistas como ponto de interface entre a produção do objeto artístico e seu público.

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Ver categoria de Raymond Williams, na obra Cultura.

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Leia-se conjunto de artistas plásticos, poetas, escritores, músico compositores que em pleno teatro Municipal (que podemos identificar como espaço de “consagração” da arte moderna segundo a teoria de Bourdieu) da então moderna e burguesa São Paulo expressaram suas inquietações num ambiente de profusão da modernização das relações sociais de produção – metrópole da cultura moderna no Brasil nas palavras de Maria Arminda. Entre os grandes nomes do modernismo nacional estão nomes como Di Cavalcanti, Anita Malfati (que trava contato com nomes como Duchamps e Górki), Mario de Andrade e Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho (este que se envolve no modernismo português com a publicação do número 1 de Orpheu de Fernando Pessoa e Sá Carneiro), e Villa-Lobos (que entra em contato com compositores como Stravinski, Varèse e De Falla) e Guiomar Novaes (aprendiz de Debussy). Lasar Segall e Tarsila do Amaral (esta que trava contato com artistas como Léger, Cocteau, Cendrars e Giraudoux em Paris e influenciada pelo expressionismo e cubismo nascentes culmina por dar contornos permanentes a revolução estética do modernismo plástico nacional) , estes dois últimos retrataram de sobre modo figuras expoentes do movimento.

NORBERT, Elias. Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

BIBLIOGRAFIA ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e cultura: o novo modernismo paulista em meados do século XX. São Paulo: EDUSC, 2001. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. NORBERT, Elias. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1995.

6. COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBOLA DE PORTO DA PEDRA: TURISMO E VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL

Elane Conceição Anias45 Resumo: O Turismo Cultural é apontado como uma alternativa para a promoção do desenvolvimento sustentável de comunidades. Este artigo apresenta o resultado de uma pesquisa sobre as possibilidades de inserção da comunidade quilombola Porto da Pedra- Bahia, na proposta da implantação do roteiro turístico integrado Caminhos do Paraguaçu. Neste trabalho serão apresentados aspectos da organização social e econômica da comunidade. A metodologia seguiu uma abordagem qualitativa, a partir da análise entre o referencial teórico e pesquisa de campo. Em virtude das perdas das tradições culturais, e principalmente pela falta de infra-estrutura ao turismo, constatamos que são remotas as possibilidades de inserção da comunidade de Porto da Pedra no roteiro turístico. Palavras Chaves: Turismo - Cultura - Comunidade 1-INTRODUÇÃO O Turismo atualmente atravessa um contexto de mudanças de modo que esta atividade vem sendo apresentada como fator de desenvolvimento regional, como um segmento propulsor de desenvolvimento econômico e social para comunidades que apresentam um quadro de estagnação. Diante desse contexto, pensar num plano de turismo é levar em consideração a cultura e a tradição local no sentido de prover benefícios e oportunidades para as mais diversas comunidades. O presente artigo objetiva refletir sobre a inserção do turismo cultural na comunidade remanescente quilombola de Porto da Pedra, povoado do município de Maragogipe Bahia. Com bases nas orientações do Programa de Regionalização do Turismo – Roteiros do Brasil adotado pelo Ministério do Turismo do Brasil (MTUR) foi realizado o levantamento e registro dos atrativos turístico da comunidade. A partir de pesquisas bibliográficas e de campo, com aplicação de entrevistas semi-estruturadas e conversação com os sujeitos da pesquisa, buscou-se

45Bacharelanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Bolsista voluntária do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). E-mail: [email protected] Tel:(71) 9157-2317. Projeto Caminhos do Paraguaçu – uma proposta de turismo cultural para o Recôncavo baiano, orientado pela Profª. Dra. Lúcia Maria Aquino de Queiroz.

conhecer as características da organização social e econômica da comunidade bem como, compreender seu processo de territorialização e regularização fundiária. A realização desse projeto esteve intensamente ligada à necessidade de inventariar o patrimônio turístico cultural existente, de forma a analisar as possibilidades de inserção do povoado Porto da Pedra num roteiro turístico que irá abranger comunidades de distintos municípios situadas às margens do Paraguaçu. O presente artigo está estruturado da seguinte forma: em princípio, será feita uma breve exposição sobre a importância econômica já alcançada pelo Recôncavo, o declínio e a estagnação vivenciados no dias atuas. Atualmente uma região de rico patrimônio, dado pelas suas tradições, costumes e celebrações, o que a potencializa para o seguimento do turismo cultural. Em seguida será feita uma breve apresentação de algumas questões que perpassam as discussões contemporâneas sobre turismo e cultura. Por ultimo, se discutirá a viabilidade da proposta de um roteiro de turismo cultural para a comunidade remanescente quilombola de Porto da Pedra assim como, reflexões a cerca do turismo como uma possibilidade de resgate e valorização do patrimônio cultural ainda existente na comunidade. 2- RECÔNCAVO A região do Recôncavo Baiano foi pólo de desenvolvimento econômico, por muitos anos. A posição geográfica atrelada ao processo produtivo açucareiro e do fumo transformaram o Recôncavo numa região de elevada importância para a Colônia. Com efeito, em meados do século XVI a inícios do século XVIII o Recôncavo vivenciou um intenso apogeu econômico. Com base no sistema escravista, os colonizadores europeus iniciaram a exploração agrícola da cana-de-açúcar. A cana era cultivada em grandes extensões de terras, a expansão da produção fez surgir à construção dos engenhos, grades responsáveis pelo aparecimento das vilas, promovendo assim o povoamento, uso e ocupação da região. O Recôncavo Baiano agregava ótimas condições para a produção canavieira devido ao seu solo fértil e a rede fluvial marítima que favorecia a interiorização da produção no entorno da Baia de Todos os Santos. O rio Paraguaçu um marco geográfico da região tornou-se a principal porta de entrada de saída de mercadorias, por onde fazia circular a produção açucareira. De acordo com Mattoso (1992) os solos mais arenosos e situados em terrenos mais elevados de Cachoeira, no Rio Paraguaçu, tornaram-se o centro da agricultura do fumo. O fumo produzido era exportado diretamente para os portos Europeus e americanos e, o de pior qualidade era utilizado como moeda de troca para a compra de escravos, destinados aos trabalhos na lavoura de cana-deaçúcar. Contudo, o Recôncavo também é caracterizado pela diversidade da prática da agricultura de subsistência; logo, a região se subdividia em Recôncavo canavieiro, Recôncavo fumageiro, Recôncavo mandioqueiro e da cerâmica, sem falar nas zonas pesqueiras beirando

mais proximamente o litoral, e do Recôncavo ao norte da cidade, servindo-a de lenha e carvão vegetal (SANTOS, 1998, p.64). Entre o período da Abolição e a década de 1950, o Recôncavo perde progressivamente sua importância econômica e política. Seu declínio ocorre por diversos fatores: à redução significativa da área plantada de cana-de-açúcar e fumo, a falência dos engenhos associados ao processo de modernização da produção açucareira, a abertura de rodovias e redução do transporte fluvial. As usinas e atividades de extração petrolífera e derivados surgem como novas formas de produção do Recôncavo evidenciando a decadência do antigo sistema econômico. A nova produção de sociedade no Recôncavo resulta da reinserção de componentes da velha sociedade tradicional em formas de organização criadas pela economia urbana de Salvador e por atividades realizadas no próprio Recôncavo. A formação da nova sociedade do Recôncavo não é, de modo algum, homogênea o ambiente em que a maioria sobrevive em condições de pobreza aguda é o de uma sociedade do mesmo (PEDRÃO, 2007, P.8). O declínio econômico vivenciado por essa região, ao tempo em que a conduziu a uma estagnação até então não superada, possibilitou que fossem preservados traços marcantes da cultura regional que atualmente se traduzem em um valioso patrimônio histórico cultural. Amplo repositório da cultura de matriz africana no Brasil, o Recôncavo Baiano desponta, diante das novas tendências mundiais da economia do turismo, que preconizam o incentivo à segmentação turística, à valorização do local e dos aspectos culturais enquanto elementos de competitividade turística, como uma região dotada de grandes potencialidades para desenvolvimento do turismo cultural (QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 10).



REFERENCIAL

O turismo vem sendo apresentado como um segmento propulsor de desenvolvimento econômico e social. O Plano Nacional do Turismo reconhece o turismo brasileiro como um setor econômico importante, gerador de divisas capaz de gerar oportunidades de trabalho e renda e de contribuir para a redução das desigualdades regionais e sociais em diferentes pontos do nosso território. Atualmente o turismo atravessa um contexto de mudança profunda; há uma nova concepção estratégica sobre turismo que deve ser entendida como: Um conjunto de bens e serviços que promovam o desenvolvimento socialmente justo e economicamente equilibrado em nível local e regional. Manter, valorizar e proteger as paisagens naturais e os ecossistemas que a compõem, assim como o patrimônio histórico cultural é a base essencial para a sua manutenção em um longo prazo (SALVATI, 2004, p.45).

A cultura em sua totalidade complexa compreende um conjunto de elementos da dimensão cotidiana do indivíduo. Taylor (1871) sistematiza a cultura como um complexo que inclui o conhecimento, crenças, hábitos, artes, leis, costumes e tudo aquilo adquirido como membro de uma sociedade. A busca e o conhecimento pela cultura são antigos e continua a ser uma das principais razões para o turismo. Esta relação turismo e cultura se caracteriza pelo interesse dos turistas na obtenção de novos acessos aos costumes, tradições, a identidade cultural do local a ser visitado. A principal motivação dos turistas é entrar em contato com as manifestações culturais da população. Cabe a reflexão de que a atividade de turismo não é apresentada somente como uma forma de lazer e autoconhecimento, mas, sobretudo, como um fenômeno que relaciona pessoas de diferentes identidades culturais. Assim, valorizando a cultura em toda a sua complexidade e particularidade, o turismo cultural surge como forma contrária ao turismo de massa, visto que o turista dessa modalidade prima pela valorização do saber e por experiênciar a autenticidade do cotidiano de um local (BARRETTO, 2007, p.85). Ainda segundo a autora citada, esse segmento turístico diz respeito às características relacionadas à cultura humana, tais como a história, o cotidiano, ― ou qualquer dos aspectos abrangidos pelo conceito de cultura (BARRETTO, 2007, p. 87). Segundo definição do Ministério do Turismo em parceria com o Ministério da Cultura e IPHAN O Turismo Cultural compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da cultura. (MTur, 2006, p.10). O turismo cultural também se configura pela possibilidade de servir como instrumento de valorização da identidade cultural, da preservação e conservação do patrimônio, e da promoção econômica de bens culturais, de maneira a proporcionar o fortalecimento da cultura e da identidade cultural, despertando o orgulho nas comunidades, o resgate de manifestações culturais, a redescoberta da história dos lugares e a dinamização cultural da região (MTur,2006, p.15). 4- A PROPOSTA DE UM ROTEIRO DE TURISMO CULTURAL PARA A COMUNIDADE DE PORTO DA PEDRA O Recôncavo Baiano é uma região que encanta pela sua diversidade, vasta em tradição popular, monumentos, centros históricos, quilombos, paisagens, rios e manguezais. E, nesta região, as diversas comunidades situadas ao longo do Paraguaçu também possuem um rico patrimônio dado pelas suas tradições, seus costumes e celebrações. De tal modo, que o patrimônio cultural

da região possibilita ser empregado como um elemento potencializador para a atividade turística e o fortalecimento das suas culturas. A partir da proposta de desenvolvimento sustentável do turismo cultural no Recôncavo Baiano, foi elaborado o projeto de implantação do roteiro turístico no povoado de Porto da Pedra. Foram identificadas as potencialidades locais e desafios para o desenvolvimento desta atividade. Objetiva-se com o possível roteiro para a comunidade Porto da Pedra a atração de novas atividades produtivas para esta localidade, propiciando o incremento da renda pessoal e familiar, o resgate de práticas culturais esquecidas e a articulação entre elas, resultando na ampliação do bem-estar social. Isso mediante a sensibilização, o envolvimento e a participação da população no planejamento, e implementação da atividade turística, para que eles possam assim compreender o valor da região como patrimônio e, ao mesmo tempo, obter uma melhoria de qualidade de vida a partir do desenvolvimento do turismo. 5- A COMUNIDADE QUILOMBOLA DE PORTO DA PEDRA A comunidade quilombola de Porto da Pedra localiza-se no Gauí, distrito do município de Maragogipe- Bahia a 155 km de distância de Salvador. Porto da Pedra tem como via de acesso a BA 026. A entrada da comunidade é de chão de terras soltas de difícil acesso. Não há transporte regular por ônibus. Outra forma de acesso à comunidade é por via fluvial, feita por barcos pequenos e canoas. A região é banhada pelo Rio Paraguaçu e o rio Gauí que corta o povoado. Um lugar tranqüilo com paisagens verdes que no findar da tarde pode-se presenciar o espetáculo do vôo e canto dos periquitos. Vivem nesta localidade um total de 26 famílias que, em sua grande maioria, moram em casa de taipa como os seus antepassados. De acordo com a memória histórica coletada, a história da criação de Porto da Pedra começou a partir da fuga dos escravos que não aceitavam viver em regime escravista, assim fugiam para terras a baixo do rio Icagaçu, hoje conhecidas como Guaí onde foram criados diversos quilombos e mocambos ao longo dos povoados de Tabantiga, Porto da Pedra, Giral Grande, Guerém- Baixão do Guaí, Guaguçú e Salaminas. A principal atividade econômica realizada na comunidade é a pesca e mariscagem. Na agricultura destacam-se as culturas de feijão, milho, aipim, mandioca e o dendê, voltadas para a subsistência e para o pequeno comércio. Da palmeira típica da região, conhecida como piaçava, são retiradas as fibras para sua comercialização. A comunidade possui uma escola que dotada de processo de ensino com classe multisseriada, local que também funciona como uma espécie de centro comunitário, onde são realizados cultos religiosos e reuniões, como as da antiga associação de moradores. Há também um pequeno bar, espaço de lazer comunitário, a sede da fazenda e algumas casas de taipas ou tijolos espalhadas pela estrada de terra que corta a mata.

Dentre os aspectos culturais destacam-se os saberes e fazeres do ritual das rezadeiras e o processo de fabricação artesanal da farinha de mandioca e beiju, atividade herdada dos seus ancestrais. Mas, apesar da perda das tradições e manifestações culturais, a comunidade destacase pela própria característica de ser uma comunidade afro-descendente e pelo seu modo de produção sustentável. O grande atrativo de Porto da Pedra não está baseado nos seus aspectos naturais, mas justamente na história e no modo de vida tradicional dos seus moradores. Ao visitante podem ser oferecidas as possibilidades de trocas culturais mediante o contato com as pessoas da comunidade, o conhecimento sobre a organização comunitária e os valores e práticas que ali são desenvolvidos, possibilitando-lhe vivenciar a realidade da vida cotidiana do lugar. Apesar de possuir o reconhecimento como comunidade de remanescente quilombola, Porto da Pedra vivencia um contexto de exclusão social; os seus moradores são continuamente expropriados do acesso a terra. Vivem atualmente em situação de vulnerabilidade devido a falta de acesso às políticas publicas. Suas condições de moradia são precárias; há ausência de serviços de saúde bem como descaso com a área educacional. Só há uma escola de ensino fundamental até a quarta série de modo que, poucas pessoas na comunidade continuam estudando após esse período, pois não há ônibus escolar, as crianças têm que andar até a BA 026 para pegarem o transporte. Outro fator agravante diz respeito à insuficiência de políticas voltadas para a geração de renda e incentivo a produção: a média da renda familiar dos domicílios pesquisados foi de ½ a um salário mínimo, o que significa que a maioria das famílias se encontra em um quadro de pobreza. Tal situação se agrava quando se constata que a grande maioria dessas rendas advém de aposentadorias e do bolsa- família. Logo, estas dificuldades têm feito parte da população migrar para outras áreas, em busca de emprego e mais qualidade de vida, de forma que a comunidade vem perdendo muito de seus costumes herdados por gerações. De acordo com os moradores a comunidade está diminuindo; muito se perdeu da cultura popular local. Segundo os mesmos, antes havia mais manifestações populares, bem como a capoeira, o samba de roda, as quermesses. Para os moradores a inserção da comunidade Porto da Pedra no roteiro turístico regional poderá contribuir para o desenvolvimento local visto que trará mais visibilidade para a localidade que encontra-se esquecida pelo poder público, ao mesmo tempo em que irá contribuir na melhoria da renda familiar. O PROCESSO DE TITULAÇÃO DA PROPRIEDADE QUILOMBOLA O processo de reconhecimento e certificação da comunidade Porto da Pedra como remanescentes de quilombos aconteceu no ano de 2005, pela fundação Palmares. Hoje a

comunidade está em processo de titulação em aberto desde 2007, junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. De forma que, as ações possessórias impetradas na justiça estadual, ainda não tiveram efeitos sobre a comunidade; estão em processo de Produção do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação – RTID. Esse relatório tem a finalidade de identificar e delimitar o território quilombola reivindicado pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas e antropológicas da comunidade. O auto reconhecimento de cada comunidade e as mobilizações caracterizam-se pela: Reivindicação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas de terem suas terras reconhecidas e tituladas, emerge em um contexto onde os Movimentos Negros, exigem do Estado brasileiro políticas de reparação da escravidão e do racismo institucional. A aplicação das políticas de proteção e preservação destas comunidades é dos desafios postos para o Estado, que por muitas vezes ignora sua existência (SILVA, 2000, P.267). O artigo 68 da Constituição Brasileira de 1988, das Disposições Constitucionais Transitórias, determina que o Estado deva titular e registrar a propriedade aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras. As comunidades remanescentes de quilombos desenvolveram, ao longo de sua formação, uma identidade que se define pelas experiências vividas e compartilhadas em relação às suas trajetórias históricas. Mesmo habitando na comunidade por várias gerações toda área da comunidade Porto da Pedra está situada nas terras dos fazendeiros que alegam serem os seus proprietários. Em decorrência, acontecem vários abuso por parte dos fazendeiros, como o cerceamento do acesso à áreas de mangue comprometendo as condições de sobrevivência das famílias pescadoras de Porto da Pedra, pagamento indevido a produção de fibras da piaçava, que são vendidos aos fazendeiros a preços baixos. Em decorrência da morosidade do processo de regularização e também pelo fato dos fazendeiros assediarem constantemente os quilombolas, com promessa de repasse de terra delimitada por eles, a maioria da população já não acredita ao menos que o reconhecimento venha a propiciar ganhos para as suas vidas. Neste passo, o reconhecimento quanto quilombola e apropriação de suas terras são fatores determinante para o modelo de relação que o grupo estabelece com o território em que ocupa. 6- CONCLUSÃO Um dos primeiros passos para a estruturação do turismo cultural é identificar e avaliar na região a existência de atrativos culturais significativos, efetivos ou potenciais, que possa motivar o

deslocamento do turista especialmente para conhecê-los (MTur, 2006, P.27). A partir das pesquisas foram identificados alguns entraves para inserção efetiva da comunidade de Porto da Pedra na proposta de turismo cultural do Recôncavo Baiano. O resultado desta pesquisa aponta para as carências infra-estruturais como um dos fatores que dificulta o desenvolvimento do setor turístico na região. Percebeu-se pouca viabilidade operacional do roteiro turístico dada pela falta de infra-estrutura que não oferece serviços mínimos para a atividade, bem como subsídios a estimular a permanência do turista na comunidade mesmo por um curto período de tempo. Outro fator que torna difícil a possibilidade de um turismo cultural na comunidade se dá pela ausência de aspectos que marcam os laços de reconhecimento cultural e pertencimento da comunidade, e que podem ser utilizados como atrativos culturais, nos seus diversos desdobramentos, expressos na dança, na música, gastronomia, artesanato, história, festas e folclore, o que evidencia a perda da pluralidade e diversidade cultural em Porto da Pedra. Para tanto, um aspecto importante seria a inserção da comunidade em roteiros turísticos culturais de curta duração, com a implantação de um turismo de raízes onde o que se busca são as peculiaridades da comunidade. Este segmento proporciona ao visitante conhecer justamente a história e o modo de vida tradicional do local e aos moradores, a possibilidade de resgate e fortalecimento da identidade cultural. Assim os programas a serem feitos em Porto devem ser marcados por uma curta temporalidade: acompanhar a pesca do marisco, conversar com os moradores sobre a história local, almoçar algum prato típico, de forma que essa seja uma atividade econômica complementar e não a principal fonte de renda dos moradores. Mas, para que esse modelo de turismo seja efetivamente implantado em Porto da Pedra é necessário que a comunidade se organize, e um passo importante para essa organização pode ser o fortalecimento da associação de moradores, aliado ao um trabalho de resgate da identidade e da cultura tradicional da comunidade. Nessa perspectiva, propõe-se uma atividade turística que atue como estratégia de desenvolvimento sustentável para a comunidade, mas, sobretudo, no sentido da valorização e fortalecimento de sua cultura. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério do Turismo. Turismo cultural: orientações básicas. Brasília, 2006. BRASIL. Ministério do Turismo, Plano Nacional de Turismo 2007 - 2010: uma viagem de inclusão. Brasília, 2007. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. BARRETO, M. Cultura e Turismo: Discussões contemporâneas. Campinas-SP: ed. Papirus, 2007.

MATTOSO. Kátia M. de Queirós. Bahia Século XLX: Uma Província no Império. Nova Fronteira-Rio de Janeiro. 2aed. 1992. PEDRÃO, Fernando, “Novos e velhos elementos da formação social do recôncavo da Bahia”. Revista do Centro de Artes, Humanidades e Letras vol. 1. 2007 Acessado em: 27 jul.2011. QUEIROZ, Lúcia Aquino de, SOUZA, Regina Celeste de Almeida. Caminhos do Recôncavo: proposição de novos roteiros histórico-culturais para o Recôncavo baiano. Salvador: Programa Monumenta (Brasil), Unesco, Ministério da Cultura, 2009. SANTOS, Milton. “A rede urbana no Recôncavo”. In: BRANDÃO, M. A. (org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado: ALBa; UFBA , 1998. SALVATI, Sérgio Salazar. Turismo responsável – Manual para políticas públicas. Brasília: WWF-Brasil, 2004. Acessado em: 10 ago. 2011. SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs a luz da noção de quilombo. Revista Afro- Ásia. 23 n. Salvador: EDUFBA. 2000. TYLOR, E. B. Primitive Culture. New York: Abridged. 1871. < mhn.uepb.edu.br/revista_tarairiu/n2/art1.pdf> Acessado em: 10 ago. 2011.

Sítios eletrônicos: www.turismo.gov.br www.palmares.gov.br

7. Programas de Transferência de Renda e o Processo de Envelhecimento: Uma análise qualitativa acerca da importância do BPC-idoso nas cidades de Cachoeira e São Félix-BA Fernanda Ferreira de Jesus46 Marina da Cruz Silva47 Resumo: Este artigo aborda a temática “velhice e acesso a renda, dando enfoque ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)”. O intuito do trabalho consistiu em analisar a importância BPC na vida dos idosos residentes nas cidades de Cachoeira e São Félix – BA. Com vistas a procurar compreender melhor essa temática, o presente texto aborda de que forma vem se dando o processo de envelhecimento no contexto do Sistema de Proteção Social Brasileiro, os arranjos familiares e o significado do benefício para os idosos entrevistados. Ao longo do texto são apresentados fragmentos extraídos das entrevistas qualitativas aplicadas nas cidades supracitadas. Palavras-chave: Envelhecimento, arranjos familiares, acesso a renda.

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Bolsista PIBIC e Acadêmica do sétimo semestre do curso de bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL), Cachoeira - BA. Email: [email protected] / tel.: (75) 9115-9200

Assistente Social e docente do Curso de Serviço Social da UFRB, orientadora da pesquisa PIBIC/UFRB “Política de Assistência Social e Envelhecimento em Cachoeira e São Félix – BA: Estudo qualitativo sobre a percepção dos idosos quanto ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)”

Abstract: This article aims to discuss this theme: old age and access to income, focusing on the Continuous Cash Benefit (BPC). The aim of the study was to analyze the importance in the lives of BPC elderly residents in the cities of Cachoeira and São Felix - BA. Seeking a better understanding of this issue, this paper addresses how has been going down the aging process in the context of Brazilian social protection system, family arrangements and the meaning of benefit to the elderly. Throughout the text are presented excerpts from qualitative interviews applied in the cities mentioned above. Keywords: Ageing, living arrangements, access to income. 1. Introdução O presente artigo tem por objetivo analisar a importância do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para os idosos residentes nas cidades de Cachoeira e São Félix - BA, atentando para a percepção que estes idosos têm do benefício. O BPC integra o sistema de Proteção Social Básica no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), instituído pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS). As reflexões aqui contidas são fruto de uma intensa pesquisa bibliográfica, bem como de uma pesquisa qualitativa, de caráter participativo, realizada nos municípios anteriormente mencionados, realizada no período de 2010 a 2011. O instrumento utilização na pesquisa constou de uma entrevista semi-estruturada aplicada com 15 idosos na cidade de Cachoeira e 10 idosos na cidade de São Félix, considerando que esta pesquisa deu continuidade à pesquisa de caráter qualitativo realizada no período de 2009 a 2011, deu-se preferência em entrevistar os idosos que participaram anteriormente do estudo, quando da aplicação do questionário. Um dos atributos centrais da pesquisa foi identificar qual a percepção que os idosos beneficiários têm do BPC. Durante a aplicação da entrevista foi utilizado um gravador que possibilitou uma transcrição bastante fiel daquilo que foi dito, no entanto lápis e papel não deixaram de ser utilizados para realização de anotações de caráter mais emotivo. Tanto para a realização da entrevista, quanto para a utilização do gravador foi assinado (pelo entrevistador e pelo entrevistado) um termo de livre consentimento em que ficou acordado a não revelação da identidade dos sujeitos participantes, estes que foram esclarecidos de todo o processo de pesquisa bem como do objetivo da mesma. No que concerne à nomenclatura dos entrevistados, utilizou-se termos como F.1. para primeira mulher entrevista, M.1. para o primeiro homem entrevistado e assim sucessivamente. A ordem dos numerais seguiu a ordem a ordem alfabética, e para diferenciar o M.1. de Cachoeira, do M.1. de São Félix, utilizou-se dos nomes das duas cidades para seus respectivos moradores.

As transcrições48 bem como a análise das entrevistas foram feitas de modo criterioso e comprometido, o que não impede que se tenha ocorrido em falhas. Até porque a pesquisa qualitativa necessita de prática, portanto, somente no decorrer da aplicação das entrevistas aprimoraram-se algumas técnicas, tal qual a menor interferência possível e a busca constante pelo não enviesamento das respostas. O presente texto está estruturado em quatro partes. A primeira versa sobre o processo de envelhecimento no contexto do sistema previdenciário brasileiro, no qual se faz um apanhado geral sobre o mesmo. A segunda parte retrata acerca dos arranjos familiares e o BPC, a terceira aborda sobre os diferentes tipos de “velhices” e o acesso a renda. Por fim é feita uma análise geral da pesquisa em que se expõem os desafios e os limites para se ter um Sistema de Proteção Social mais abrangente. 2. Processo de envelhecimento no contexto do sistema previdenciário brasileiro É fato que o aumento do número de idosos se constitui em um processo irreversível, tendo gerado em âmbito mundial, inúmeras discussões acerca de questões relacionadas a essa fração da população. Teixeira (2008) argumenta que na maioria das vezes essas discussões se resumem ao que se denominou de “problemática do envelhecimento’, nas quais este processo é visto como uma ameaça ao sistema de saúde, a assistência social e principalmente ao sistema previdenciário. A autora supracitada afirma que esta visão generalista da “problemática do envelhecimento” além de desconsiderar as diferenças de classes do modo de envelhecer, apaga ainda os processos históricos particulares. Nesse sentido TEIXEIRA (2008:91) expõe que: O traço comum dessa difusão internacionalista das preocupações sociais com o envelhecimento é abordá-lo em sua universalidade abstrata, desconsiderando-se as condições materiais de existência na sociedade do capital; o fato de que há idosos em diferentes camadas, segmentos e classes sociais, que eles vivem o envelhecimento de forma diferente, e principalmente, de que é para os trabalhadores envelhecidos que essa etapa da vida evidencia a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, constituindo o envelhecimento do trabalhador uma das expressões da questão social na sociedade capitalista, constantemente, reproduzida e ampliada, dado o processo de produção para valorização 48

Para a transcrição das entrevistas utilizou-se de alguns símbolos que propiciaram uma melhor compreensão das entrevistas transcritas, tais como: * - quando há uma palavra ou um fragmento que não foi possível ser compreendido; {} Quando houve alguma interferência por parte de terceiro; {*} – quando a entrevista foi interrompida por conta de algum ruído; .. – quando houve uma pausa curta do entrevistado; ... quando houve uma pausa longa do entrevistado; [...] – quando parte da entrevista foi descartada por ter fugido do assunto; ? – quando a pergunta feita foi respondida com outra pergunta; negrito – quando foi dada ênfase a determinada fala; itálico – quando houve uma diminuição do tom de voz; ► quando a pergunta foi acrescentada; e [risos] – quando durante a fala se deu risada.

do capital, em detrimento da produção para satisfazer as necessidades humanas das que vivem ou viveram da venda da sua força de trabalho. Teixeira (2008) explana que a transformação do envelhecimento em problema social não está diretamente relacionado ao declínio biológico e/ou ao crescimento demográfico, mas sim a vulnerabilidade que abarca os trabalhadores, principalmente no momento em que estes perdem seu valor de uso para o capital (momento de aposentar-se), especialmente em detrimento da idade, uma vez que estes, geralmente, são desprovidos de rendas e propriedades e dos meios de produção, sendo, portanto, incapazes de sustentar uma velhice digna. Tanto ao longo da história como hoje em dia, a luta de classes determina a maneira pela qual um homem é surpreendido pela velhice, um abismo separa o velho escravo e o velho eupátrida, um antigo operário que vive de pensão miserável e um Onassis[...] Mas são duas categorias de velhos (uma extremamente vasta, e outra reduzida a uma pequena minoria) que a oposição entre exploradores e explorados cria. Qualquer afirmação que pretenda referir-se à velhice em geral deve ser rejeitada porque tende a mascarar este hiato (BEAUVOIR, 1990:17 apud TEIXEIRA, 2007:77).

Desde seu surgimento através das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs) em 1923 (Lei Elói Chaves) e os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) em 1933, a política previdenciária no Brasil mantém um sistema de capitalização no qual predomina a individualização e a responsabilização do trabalhador pela previdência. A noção de seguro social, portanto, sempre esteve atrelada à noção de seguro privado. Mesmo em 1960 com a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social 49, manteve-se excluído dos sistemas de proteção social brasileiro os trabalhadores autônomos, os trabalhadores rurais e os empregados domésticos. Se para os trabalhadores regulados pela lei de trabalho, o processo de aposentadoria já é bastante dificultoso, quem dirá para aqueles que pouco, ou nunca, estiveram assegurados pelas leis trabalhistas. A estes cidadãos, que durante sua vida tiveram que se inserir no mercado de trabalho “informal”, e que, portanto foram excluídos do sistema previdenciário, por este ser meritocratico e seletivo, por ser um regime em essência contributivo, resta para estas pessoas de baixa renda, durante a velhice, recorrer ao Beneficio de Prestação Continuada (BPC), isto é, quando as mesmas conseguem atender aos critérios para a aquisição do beneficio. Feitas essas considerações, iremos nos dedicar à análise da situação dos idosos entrevistados no decorrer deste estudo. A pesquisa realizada nas cidades de Cachoeira50 e São 49

A LOPS uniformizou os direitos de todos os segurados ampliando os benefícios, segundo o padrão do IAPs, para todos os trabalhadores regulados pela lei do trabalho (TEIXEIRA, 2008:158).

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Cachoeira é um município brasileiro no Estado da Bahia e está localizado na microrregião de Santo Antônio de Jesus. Situado às margens do Rio Paraguaçu, dista cerca de 120 km de Salvador. De acordo com o IBGE, no ano de 2003 sua população era

Félix51- BA demonstrou que os idosos que recebem o BPC trabalharam arduamente durante sua vida e que muitos chegaram até a contribuir para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), na época, ainda Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Todavia, não contribuíram o tempo necessário para que fossem assegurados pelo regime previdenciário, ou mesmo não conseguiram adentrar ao mercado de trabalho formal. Ressalte-se, porém que esses jamais deixaram de trabalhar, visto que sua sobrevivência e da respectiva família foram fruto de trabalho árduo, porém não reconhecido e sem nenhuma proteção social. Esse fato pode ser observado através das citações abaixo: Demais, já trabalhei demais, que coisa que homem não fazia, eu fazia. E hoje eu tô vendo, me acabei em roça trabalhando, até toco eu arrancava, viu? Trabalhei muito, trabalhei muito. Desde nova, comecei trabalhar desde nova, com meus quatorze, quinze anos, já trabalhava. Menina, eu vou te dizer, eu trabalhei muitos anos, agora eu fui parar de trabalhar assim, quando eu já não agüentava mais. Casei, também fiquei a mesma coisa, trabalhando, é assim (F.2, 72 anos, São Félix, L. 92-94 e 100-104). De carteira assinada, no patrimônio. E no final da conta, quando eu fui me aposentar, no tempo de eu me aposentar, então, o que foi que aconteceu? Me deram uma embolada lá que me aposentaram sem eu ter quase direito a nada. Eu não recebo décimo, foi de quando eu comecei, que eu comecei em setembro de dois mil e três, e quando foi em dezembro que eu esperava receber o décimo. “Não, o senhor não tem direito ao décimo, porque o senhor vai se aposentar pela LOAS”. Aí, eu cheguei e disse: “Mas eu pago carteira, o LOAS é para quem não paga carteira”, e ficou nessa conversa: “ah! Porque o senhor se aposentou em setembro e não contou ainda”, sei que no final das contas eu perdi o décimo (M.4, 75 anos, Cachoeira, L. 110-118). O trabalho era importante quando eu tava nova, agora não. Acabou agora. Eu lutava era com tudo minha filha, misericórdia. Eu trabalhava que não eram todos homens. Hum, por isso que eu fui chegando pra idade, a idade vai chegando, chegando, aos pouquinhos, pouquinhos, e agora tá um poucão [risos]. Ave Maria, eu trabalhei pior do que burro de carga. Agora pra me aposentar, foi pra andar, vixe. Andar, a pessoa anda viu? A pessoa anda (F.9, 82 anos, Cachoeira, L. 158-172).

estimada em 31.071 habitantes. Sua área territorial http://pt.wikipedia.org/wiki/Cachoeira_(Bahia)] 51

compreende

398 km².

[Informações

disponíveis

em:

São Félix fica à margem direita do Rio Paraguaçu, a 110 km de Salvador. Surgida durante a expansão da cana-de-açúcar, a cidade possui uma história profundamente ligada aos valores culturais baianos. Marcada pelo desenvolvimento da indústria fumageira, com a instalação das fábricas de charutos Suerdieck, Dannemann, Costa Ferreira & Pena, Stender & Cia, Pedro Barreto, Cia A Juventude e Alberto Waldheis, além do cultivo do dendê e um forte comércio de estivas, secos e molhados.

[Informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_F%C3%A9lix_(Bahia)]

A contribuição insuficiente, ou mesmo a não contribuição desses idosos para o INSS, faz com que alguns destes excluídos do sistema previdenciário, sejam atendidos pelo sistema de proteção social, através do beneficio acima citado, qual seja: O BPC. Este que consiste no repasse mensal de um salário mínimo às pessoas idosas, com idade igual ou superior a 65 anos, e as pessoas portadoras de deficiência, de qualquer idade. Para que se tenha acesso ao benefício é preciso ainda comprovar renda familiar per capita inferior a 1/4 de um salário mínimo52. A exigibilidade de comprovação desse valor de renda é muito criticada por autores como: Potyara Pereira (1998), Ana Lígia Gomes (2001) e Aldaíza Sposati (2008), uma vez que ¼ de um salário mínimo para uma família “trata-se do limite da sobrevivência, referindo-se tão-somente às necessidades de alimentação com uma ração precária, insuficiente pra sustentála durante um mês” (GOMES, 2001: 115). A dificuldade para ser “elegida” pelo beneficio foi também mencionada pelos próprios idosos de Cachoeira e São Félix - BA durante as entrevistas. Quando questionados acerca do acesso ao BPC é notória a dificuldade para se enquadrar nos critérios de elegibilidade. Isso pode ser verificado através das seguintes explicações: Foi a Drª R. que me ajudou, eu me apeguei com ela (com a médica) chorando, chegava dia de sábado não tinha dinheiro pra fazer a feira. Ela (a médica): “não se importe não minha velha, eu vou ajeitar tudo pra senhora”, e a outra moça que ajudou ela (a médica) foi pra Salvador, pra trabalhar (F.5, ?, São Félix, L. 92-98) Eu nunca recebi nada. Aí minha filha, quando eu chegava lá (no INSS) era uma pergunta que eu chegava ficar em tempo de chorar de tanta pergunta (F.4, 69, Cachoeira, L. 215-216). Ah! Deu muito trabalho, deu muito trabalho, levei anos procurando, até que um dia, Deus me .. Até que um dia, que eu tinha uns tempos lá, aí deu um jeito e me ajudou, que meu sofrimento aí e me ajudou (M.2, 78, São Félix, L. 172-175). Diante dos entraves no processo de aquisição do BPC, tais como burocracia e rígidos critérios de elegibilidades, essas pessoas ficam à mercê da ajuda de terceiros, para que possam, enfim, ser beneficiadas. Somado a isso, ressalte-se o rigoroso corte de renda, associado à exigência da comprovação da renda de toda a família, fazendo com que indivíduos que estejam em situação de pobreza crítica sejam excluídos do BPC. A essas pessoas resta persistir e tentar através do “auxílio” de pessoas influentes atender aos critérios estabelecidos. 3. Arranjos familiares e o BPC 52

Considerando o salário mínimo atual no valor de R$ 545,00, para ter acesso ao BPC, o idoso ou o deficiente, bem como os familiares com os quais compartilha moradia não podem obter renda individual mensal superior à R$ 136,25 , o que equivale a um valor diário em torno de R$ 4,54.

Segundo Debert e Simões (2006), quando se retrata da temática envelhecimento e família existe dois mitos que dificultam este processo reflexivo, quais sejam: 1) a suposta universalidade, naturalidade e imutabilidade da família nuclear53; e 2) o mito da família extensa, que corresponderia a uma “Idade de Ouro”. Para os autores supracitados, o modelo de família nuclear tende a ser tratado como um modelo natural e universal de agrupamento humano. No entanto, “pesquisas antropológicas indicam que a família, do tipo nuclear pode ser encontrada em sociedades muito diferentes do ponto de vista das formas de organização social, econômica e política” (DEBERT; SIMÕES, 2006:1367). Ao mesmo tempo existe a tendência de idosos morarem sós, o que segundo Rosenmayr e Koeckeis (1963 apud Debert

e Simões, 2006:1369) “não tem de ser,

necessariamente, percebida como um reflexo de um abandono por parte de seus familiares. Isso pode significar um novo arranjo, a ‘intimidade a distância’”. Este novo arranjo familiar pôde ser percebido em algumas entrevistas aplicadas em São Félix, conforme as citações a seguir: É, eu e Deus. Não viu eu chegar agora, botei a chave na porta, não tenho neto, nem bisneto, nem marido. Quer dizer tenho tudo isso, só marido é que não tenho, mas tenho muito filho, tenho neto, tenho bisneto, mas moram todos em suas casas, já casaram, eu não tenho mais filho pequeno, nem nada disso (F.6. 82 anos, São Félix, L. 18-21). Por enquanto só tem eu só. Tem a menina que trabalha na casa. Um filho que vem assim de vez em vez, viu? Mas só mora por enquanto aqui eu mesmo (M.1. 80 anos, São Félix, L. 9-11) Aqui dentro de casa? Eu, Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo de Deus (M.3. 82 anos, São Félix, L. 9-10) Quanto ao mito da “Idade de Ouro”, Debert e Simões (2006), argumentam que a ideia que se tinha era que a velhice seria supostamente vivida sem queixas, uma vez que os idosos possuíam uma família extensa, teriam na velhice seus familiares que lhes cuidaria com respeito e consideração, algo que muitas vezes não acontece, haja vista que: O fato de os idosos viverem com os filhos não é garantia da presença de respeito e prestigio nem da ausência de maus tratos. As denuncias de violência física contra idosos aparecem nos casos em que diferentes gerações convivem na mesma unidade doméstica. Assim, a persistência de moradias multigeracionais não pode ser vista necessariamente como garantia de uma velhice bem-sucedida. Morar junto não é índice de relações mais amistosas entre os idosos e seus filhos (EVANDROU E VICTOR, 1989; DEBERT, 200 apud DEBERT E SIMÕES, 2006:1369).

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Nesse contexto, entende-se por família nuclear a unidade constituída pelo par heterossexual e seus filhos dependentes.

Nos fragmentos das entrevistas é notório ainda que, mesmo diante de famílias extensas, uma vez que a quantidade de filhos variam entorno de cinco a sete, os idosos “optaram’ por morar só. O fato de morarem em casas separadas foi levantado pelos idosos como algo positivo para a relação familiar, pois a visita tornou-se o momento de reencontro e de felicidade. A importância é que tão tudo fora de mim, e às vezes vem dois. Tem um filho que já vai fazer dois anos que eu não vejo. Tá em Carumbá e já vai fazer dois anos que eu não vejo. É importante, não to dizendo a você, que nem eu abuso eles (os familiares) e nem eles (os familiares) me abusam, porque o que eles (os familiares) ganham eu não vou querer que eles (os familiares) tirem deles pra me dar, eles (os familiares) também não querem que eu tire do meu pra dar a eles (os familiares) (M.1. 80 anos, São Félix, L. 40-46). A importância que tem minha família, que quando eles (os familiares) querem vir aqui, eles vêem. Todos são cristãos. Então eles vêem. Sempre eles vêem. Minha filha às vezes vem, que moram longe. Uma em Salvador, uma aí em cima em Capoeiruçu, e o resto aí no Caanga. Eu já tenho bisneto, da minha filha (M.3. 82 anos, São Félix, L. 21-24). Além da tendência de alguns idosos morarem sós, existem nos domicílios arranjos familiares formados por complexas relações de parentes e não-parentes, fruto de casamento, divórcios e recasamentos. Segundo Debert e Simões (2006), “a instabilidade das relações afetivas associado ao número crescente de mulheres solteiras que possuem filhos aumentou o número de crianças vivendo em famílias mono parentais”. Tratando-se especificamente dos arranjos familiares com a presença de idosos, CAMARANO et. al.(2004 apud DEBERT E SIMÕES, 2006:1370) argumentam que: Os arranjos familiares com a presença de idosos no Brasil podem ser divididos em dois grupos: as famílias de idosos, em que o idoso é chefe ou cônjuge, e as famílias com idosos, em que estes são parentes ao chefe ou cônjuge. Nos últimos 20 anos, aumentou a proporção de arranjos familiares com a presença de idosos (de 21,1% em 1980, para 24,1%, em 2000) e esse crescimento se deu principalmente nas famílias de idosos. No mesmo período, as famílias com idosos diminuíram tanto em números absolutos como proporcionalmente, fato que pode ser correlacionado ao declínio geral da dependência (funcional ou financeira) dos idosos. A pesquisa realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix - BA mostrou que a realidade dos idosos entrevistados não difere muito da realidade brasileira. Há uma presença considerável de famílias de idosos. Esse número considerável de famílias chefiadas por idosos pode está associado ao fato de que todos os entrevistados são beneficiários do BPC e, portanto, quando não são os únicos provedores do sustento do restante da família, ajudam de modo

considerável na manutenção da casa. Há que se ressaltar também que alguns dos idosos participantes da pesquisa são responsáveis pela criação dos netos. Aqui são sete filhos, eu e meu esposo, só. Agora não moram todos aqui, alguns filhos já saíram, já casaram. Agora sou eu, o marido e um neto que fica aqui comigo que ta viajando. Só. E um filho que ta passando aqui só dias. Mas o normal é dois, três pessoas, que essa (a filha) mora embaixo (F.1. 70 anos, São Félix, L. 9-12). Eu tenho, eu tive muitos filhos, mas aqui dentro de casa, eu só tenho eu, um neto que eu criei, desde a idade de seis meses, que esse hoje é a minha valência pra ir pagar uma água, pra ir pagar uma luz, comprar um gás, né? Ele (o neto) é a minha valência, mas ele (o neto) tá assim. {} Tem outra neta que eu crio, e mora ele (o neto), eu e essa neta (F.11. 76 anos, Cachoeira, L. 9-13). O BPC foi apresentado pelos idosos entrevistados como fundamental para uma maior qualidade de vida de toda a família, sendo o ítem “alimentação” bastante elencado no quesito “possíveis mudanças no âmbito familiar devido o acesso benefício”. Isso pode ser exemplificado através das respostas abaixo: Se mudou? Misericórdia, mudou sim. Mudou que pelo menos eu não penso mais na comida, né? Não penso em comprar o gás, não penso em comprar o remédio, não penso em comprar fiado, porque todo mês eu recebo. Luz, água, gás (M.3. 82 anos, São Félix, L. 17-20). .. Acredito que mudou, e modificou meu lado, os sugestivos materiais e espiritual, fortaleceu de um lado e enfraqueceu do outro, porque antes eu não era um pouco obeso [...] eu me tornei um pecador, sabe o que é pecador? Um comilão [...] (M.3. 68 anos, Cachoeira, L. 37-41). Os arranjos e as relações familiares constituem em quesito fundamental para compreender melhor o significado do BPC junto aos idosos residentes na cidade de Cachoeira e São Félix-BA, sobretudo por dois motivos: 1) a composição familiar, bem como sua respectiva renda, é crucial para o acesso ao benefício; e 2) os idosos beneficiários ocupam um papel de destaque no que concerne à manutenção da família. Ressalta-se ainda o fenômeno daquilo que poderia ser denominado de “pobreza geracional”. A etapa quantitativa da pesquisa acerca do impacto do BPC na vida dos idosos residentes na cidade de Cachoeira e São Félix-BA, realizada em 2010, através da qual foram entrevistados 38 idosos beneficiários (28 em cachoeira e 10 em São Félix), revelou um dado preocupante. Na cidade de Cachoeira, das pessoas que moravam com os idosos apenas 36% exerciam alguma atividade remunerada. A situação é agravada pelo fato de que destes, apenas 7% eram assalariados. Na cidade de São Félix, os números são bem parecidos, apesar de 40%

das pessoas que convivem com os idosos exercerem atividades remuneradas, somente aproximadamente 17% possuem carteira de trabalho assinada. Os dados revelam que os familiares de idosos beneficiários do BPC, mesmo encontrando-se na chamada “idade produtiva”, não estão tendo acesso ao mercado formal de trabalho, e por sua vez, não estão contribuindo para o sistema previdenciário. Diante disso, estes passam a ser, no futuro, potenciais cidadãos beneficiários do BPC, mesmo este não sendo um “beneficio hereditário”. No caso, o acesso se daria pelo simples fato da continuação da chamada pobreza geracional, cujas medidas na área de segurança social foram incapazes de quebrar esse ciclo vicioso de pobreza. 4. “Velhices” e o acesso a renda A velhice é um fenômeno biossocial que não existe seguramente nem de modo tão evidente quanto se costuma enuciar. Isto é, não existe a velhice, existem; “velhos e velhas”, e em pluralidade de imagens e socialmente construídas e referidas a um determinado tempo do ciclo da vida (BRITTO DA MOTTA, 2006: 78). Segundo Britto da Motta (2006), a imagem que é imediatamente associada à pessoa velha é de alguém com bastante idade, com ideias que freqüentemente se remetem ao passado, alguém de pouca agilidade e/ou inativa. A condição de velho raramente é analisada considerando questões como: sexo, gênero, profissão e classe. Questões essas que são fundamentais na análise das ações de adultos jovens. No mundo contemporâneo, em que a beleza jovem é supervalorizada, a imagem do corpo velho quase sempre representa a proximidade da morte, haja vista que “a velhice é muito mais associada à decadência do que às propaladas sabedoria e experiência, como se costuma recitar. E não apenas o desgaste e decadência física, mas também a fealdade, doença e dependência”. (BRITTO DA MOTTA, 2006:78). Como resposta a essa associação muitos idosos tentam negar a classificação de velhice. A pesquisa realizada nas cidades nas cidades de Cachoeira e São Félix- BA mostrou que os próprios idosos entrevistados vêem a velhice como sinônimo de decadência física e de doenças, e tentam diante disso, evitar ser associados a tal classificação. Como se pode observar nas respostas abaixo, quando perguntados acerca do que a velhice representa: [risos] A velhice .. A velhice é a pessoa que só vive doente, eu mesmo só vivo doente, a perna inchada, tudo. Não tenho saúde. O daí (o esposo) é também doente, né? A velhice é isso, a doença [risos] (F.6. 69 anos, Cachoeira, L. 38-41).

A velhice, eu acho que .. Sei lá. Ela (a velhice) representa muitos anos de convivência, né? Batalhar com a família, e a gente tem que aceitar porque ela (a velhice) vem mesmo, né? Aí eu aceito. Mas que quero ter mais um pouco de saúde, eu peço a Deus todos os dias, que a gente com velhice, com vida e sem saúde não é importante, né? (F.3. 69 anos, São Félix, L. 53-55). Quando perguntados acerca se existe, ou não, diferença entre ser velho e ser idoso, nota-se uma clara distinção entre as nomenclaturas, por parte dos entrevistados, bem como há nítida rejeição ao termo “velho”. Eu acho que não, eu acho que é diferente, né? Sei lá. Porque a gente quando é mais jovem, sei lá, tem mais força, ânimo para fazer as coisas e a gente já na idade, a gente já não é mais assim, né? A gente já fica mais diferente, né? Agora eu, eu sou uma pessoa idosa e não tenho saúde, mas as coisas de dentro de casa tudo eu faço, nunca botei ninguém pra fazer nada, pra trabalhar na minha casa, cuido de minha família, dos meus filhos. Deus me dá força, me levanto, mesmo me arrastando e vou e faço, entendeu? É isso (F.3. 69 anos, São Félix, L. 5965). Eu me acho assim. Eu me acho, sou, sou uma pessoa idosa, né? Que eu já tenho meus 70, meus 68, entendeu. Velha não. Velha eu não sou não! [risos]. Eu acho que velha é uma coisa que não serve mais, sei lá. E eu sirvo muito ainda para minha família [risos] (F.3. 69 anos, São Félix, L. 70-72 e 72-74). Velha, velha, eu não porque tem muitas pessoas aí que são mais velhas do que eu, pior que eu. Eu ando, faço as coisas. Portanto, não tô velha de não fazer nada (F.4. 79 anos, São Félix, L. 41-43) Essas outras formas de categorização dos “velhos” e das “velhices”, tais como: idosos, terceira idade, melhor idade; não são nada mais que tentativas para se obter uma melhor aceitação daquilo que seria um processo natural e que não possui outro termo para designá-lo, ou seja, o processo de envelhecimento. Britto da Motta (2006) alerta ainda para o fato de tais categorizações estarem relacionadas às classes sociais a que estes referidos velhos ocupam. O diferencial de classe manifesta-se até semanticamente quanto às designações dos indivíduos idosos: “pobres velhos”, “senhores idosos”, “pessoa de terceira idade”, cada lugar social aí claramente representado. Velhices... Expressa-se também, quanto ao tipo de serviços ou programas para os mais velhos: os pobres moram em asilos, os de melhor situação financeira vivem em “pensionatos” e em “casas de repouso”. Os “programas para a terceira idade” pretendem oferecer lazer criativo, dinamismo e “novo projeto de vida”, não atuam igualmente para todas as classes (BRITTO DA MOTTA, 2006: 79).

No que tange ao aspecto da identidade, aceitação, ou não, da própria velhice, a pesquisa realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix – Ba evidenciou que os participantes afirmam gostarem de ser idosos, pelo simples fato de a velhice ser um fenômeno sobre o qual não se tem muito controle. Nota-se, ainda assim, uma forte rejeição dos termos velho e velhice. Gosto, gosto. Porque se Deus deixou eu pra ser idoso [risos]. Não vou ser mais moderno (M.1. 73 anos, Cachoeira, L. 48-49). Eu? Ô, minha filha, eu tenho que gostar. Já to na idade mesmo, tenho que gostar (F.2. 70 anos, Cachoeira, L. 49-50). Eu gosto. Mas também não quero ficar velha demais pra tá dando muito trabalho (F.5. 73 anos, Cachoeira, L. 58-59). De acordo, com as afirmações acima, percebe-se que os idosos aceitam e até afirmam gostar da velhice, porém reconhecem os limites que fazem parte dessa etapa da vida. O maior receio de todos é ficar doente e “dá trabalho” aos demais membros familiares. Outro aspecto importante a salientar, corresponde ao fato do BPC proporcionar aos idosos beneficiários uma representação social, até certo ponto inexistente, uma vez que a maioria dos beneficiários antes do acesso ao BPC não possuía quaisquer meio de obter uma renda fixa. O fato de se tornar beneficiário, lhes proporcionou uma maior independência financeira, sobretudo no caso específico das mulheres beneficiárias, visto que essa passaram a ser independentes da renda do esposo, o que lhes suscitou uma maior auto-estima. Há que se ressaltar também que o poder de compra aumentou significativamente, devido à maior credibilidade adquirida. O que pode ser constatado na pesquisa, quando perguntados acerca das mudanças percebidas após o recebimento do BPC: E muito. O povo diz que é pouco. Pra mim não é pouco não, é muito porque me serve, né? Tem me servido muito, peço a Deus que permaneça, né? [...] to aí recebendo, fazendo umas besteiras, besteiras não que já me servem, chega uma pessoa já tem onde sentar, que tinha vontade, mas não podia. Então, serviu muito (F.1. 71 anos, Cachoeira, L. 276-279) Ah! Ficou bom, melhorou. Melhorou assim dentro de casa, compro umas coisas, o que eu quero eu tenho comprado, material eu vou e compro, pago certinho. É melhorou mesmo (F.7. 78 anos, Cachoeira, L. 93-95) Compro minhas besteiras, agora mesmo comprei aquela mesa, ta quebrada, isso aqui (a estante) não é meu não, foi ela (a filha) quem me deu, tem essa geladeira, ela (a filha) comprou pra mim. Tem um fogão, foi ela (a filha) que comprou pra mim, só (F.8. 73 anos, Cachoeira, L. 160-164)

Mesmo com todas as críticas pertinentes em relação ao BPC, é inegável a importância do mesmo para os idosos beneficiários. A falta do décimo terceiro salário e a dificuldade de aquisição foram as críticas mais recorrentes nas entrevistas com os idosos. No entanto, muito pouco se falou a respeito do último aspecto, haja vista que o benefício é mais visto como uma “ajuda” do que como um direito. É uma ajuda que o governo dá (F.2. 70 anos, Cachoeira L. 111). É uma ajuda, porque eu não completei os tempos de trabalho (M.2. 69 anos, Cachoeira L. 112) Percebe-se que os entrevistados encaram o BPC como uma ajuda do governo, diante do não acesso ao sistema previdenciário. A situação de exclusão em que se encontram não lhes dá maiores condições de perceber isso de forma mais crítica. Portanto, a individualização e a responsabilização do trabalhador pela previdência são bastante perceptíveis, pois mesmo tendo trabalhado durante toda sua vida, os idosos não acreditam que o BPC seja um direito pelo simples fato de não terem contribuído para o regime privado de previdência, e muitas vezes não se dão conta que o motivo central que lhes impede de ter acesso à aposentadoria é o fato do Brasil ter um regime previdenciário muito caracterizado pelo princípio do mérito e que uma alternativa diante desse processo de exclusão ao acesso, seria adotar o sistema de aposentadoria por tributos. 5. Considerações finais Com base na análise das entrevistas e do referencial teórico estudado, pode-se afirmar que o BPC é indispensável na vida dos idosos beneficiários, os quais trabalharam arduamente duramente o decorrer de suas vidas, e mesmo assim, não tiveram acesso ao sistema previdenciário privado e seletivo. A quantia de um salário mínimo é significativa para aqueles que antes não tinham antes nenhuma renda fixa. Além disso, por conta do processo de envelhecimento, essas pessoas já não têm mais condições físicas de trabalhar como antes para manter-se. No entanto, melhorias são necessárias no que tange aos critérios de elegibilidade do benefício. A exigência de comprovação de renda familiar per capita de ¼ de um salário mínimo representa a necessidade de se comprovar a miserabilidade de toda uma família. Quando na verdade a maioria das famílias pobres estão em situações críticas de vulnerabilidade social e esperam com ansiedade o momento que um de seus familiares terá acesso a um benefício da importância e da representatividade do BPC.

Na verdade, espera-se que o Brasil possa chegar atingir o tão falado Estado de BemEstar Social, adotando uma política de assistência social menos rigorosa, baseada em uma renda mínima universal, em que todos se sintam assegurados por direitos, que não o vejam como uma benevolência do Estado, tal como vêem o BPC, uma vez que a “assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas” (Art. 1º da Lei 8.742 de 1993). Vale ressaltar que alguns países europeus já adotaram medidas parecidas e obtiveram resultados satisfatórios, a exemplo da Renda Mínima Garantida em Portugal, a qual representa uma “vitória” no que se refere ao sistema de segurança social, pois trata de um mínimo de proteção social universal que se articula com o desenvolvimento de políticas de empregos e de reinserção social, um beneficio que oferece ao cidadão beneficiado um leque maior de direitos. Trata-se de uma política de luta contra a pobreza e a exclusão, orientada para a inclusão social com a promoção de oportunidades de emprego. Outra saída potencial será a adoção do sistema de aposentadoria por tributos, de modo a assegurar a todos, independe da forma de acesso ao mercado de trabalho, uma aposentadoria básica universal. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei Orgânica da Assistência Social. Lei nº. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. BRITTO DA MOTTA, Alda. Visão Antropológica do envelhecimento. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia – 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. DEBERT, Guita Grin. SIMÕES, Júlio Assis. Envelhecimento e velhice na família contemporânea. In: Tratado de Geriatria e Gerontologia – 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006. GIBBS, Graham. “Análise de dados Qualitativos”. Tradução de Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2009. (Coleção Pesquisa Qualitativa coordenada por Uwe Flick). GOMES, Ana Lígia Gomes. O benefício de prestação continuada: uma trajetória de retrocessos e limites. In Serviço Social e Sociedade, nº 68, Ano XXII, novembro, 2001. SANTOS, Silva Maria de Azevedo dos. Idoso, família e cultura: um estudo sobre a construição do papel do cuidador. Campinas, SP: Editora Alínea, 2003. SPOSATI, Aldaíza. Proteção social de Cidadania: Inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal. 2. Ed. – São Paulo: Cortez, 2008. TEIXEIRA, Solange Maria. Envelhecimento e Trabalho no tempo do capital: implicações para a proteção social no Brasil. São PAULO: Cortez, 2008.

8. “Com as nossas impurezas menstruais, adubaremos o solo, onde germinará o arco-íris de perfume e flor”: União e conflito entre mulheres na obra Niketche – Uma história de Poligamia, de Paulina Chiziane.

Flávia de Alencar Palha Cerqueira Orientador: Prof.Dr.Osmundo Pinho Resumo: Diante da ainda pequena quantidade de escritoras africanas de língua portuguesa, ante sua contrapartida masculina, o presente trabalho intenta trazer a baila através de relevantes personagens femininas, a vez e a voz de

parte do complexo emaranhado de

diferentes

possibilidades e vivências, que são experimentadas pelas mulheres moçambicanas. Tentaremos assim, trazer a tona parte deste universo pouco desvelado, o dos conflitos, dos desejos secretos mais íntimos tão bem retratos por esta escritora que se autodenomina contadora de histórias. Palavras - chave: Moçambique, mulheres, literatura. Ante o universo de toda poesia e lirismo presente na literatura moçambicana, cuja maior valoração do romance mais especificamente só ocorreu nos anos 90, nos debruçaremos com mais afinco aos escritos tecidos com maestria por Paulina Chiziane em seu romance Niketche - Uma História de Poligamia. Tal livro trás a baila os fatos narrados por Rami, mulher do sul, que através de uma pedra atirada por seu filho caçula, ao carro de um homem branco, vê-se diante de um mundo que a atormenta, mundo de poligamia, amores sofridos, tensão, rivalidade e esperanças. Estamos cientes de que esta é nossa visão, a própria Paulina em entrevista concedida a Rogério Manjate, afirma que a principal personagem desta obra é Tony, típico homem do sul do país, a possuir inúmeras mulheres. Tal personagem é interessante por que mesmo pertencendo ao sul, e como tal a sofrer maior influência do cristianismo e de todo sistema colonial, porta-se de modo contraditório ao adotar para sua vida, a poligamia de modo intenso. Niketche trata da relação destes homens e mulheres, subverteremos, no entanto a ordem da própria autora e trataremos das relações vivenciadas tão somente por estas mulheres, vendo nestas o pilar fundante da obra. Como Chiziane bem pontua, o livro apresenta mulheres falando sobre mulheres, desta forma entendemos que nos coadunamos com a autora e muito. Toda obra evoca as partilhas tão bem conhecidas pelas mulheres, ou como Chiziane bem diz “... nós como mulheres temos as coisas que falamos só entre nós mulheres e em voz baixa, meio sagrado.” Quando indagada se a obra reflete uma visão feminista a mesma afirma:

“Eu sou uma mulher e falo de mulheres, então eu sou feminista? É simplesmente conversa de mulher para mulher, não é para reivindicar nada, nem exigir direitos disto ou daquilo, porque as mulheres têm um mundo só delas e é isso que eu escrevi, e espero que isso não traga nenhum tipo de problemas, porque há ainda pessoas que não estão habituadas e não conseguem ver as coisas com isenção.” Uma possível causa da recusa em apresentar-se como feminista, estaria atrelada ao fato de que em Moçambique paira junto ao imaginário popular a fortíssima associação do movimento feminista e mesmo dos seus simpatizantes, a possível presença de um traço de malignidade. Mas não só isso, como Maria José Arthur bem nos afirma em “As boas meninas e as feministas”, as feministas chegam a ser demonizadas, apontadas como o outro extremo do machismo, tão danoso quanto este. É propagado ainda que as feministas almejariam criar um reino da supremacia feminina. Tão entranhado mesmo hoje é tal pensar no seio da sociedade moçambicana, que mesmo as mulheres que defendem causas comuns ao feminismo, como o principio de igualdade, são unânimes na negação de qualquer vinculo ao feminismo. Tal pavor a simples associação em qualquer instancia ao feminismo provavelmente tem em sua gênese o fato de não se poder ser bem vista em Moçambique, ao se abraçar o feminismo. A filiação ao Feminismo implica assim, no automático ingresso a um universo onde se lhe será imposto insultos sem medida. Não apresentar-se como feminista, todavia, não esquiva Paulina Chiziane de denunciar praticas abusivas, o patriarcalismo ainda vigente e uma serie de querelas que ainda precisam ser extirpadas da sociedade moçambicana. Adentrando agora mais especificamente no universo das personagens, diríamos que é a poligamia e todos os seus desdobramentos, o elo a juntar estas mulheres e a evocar dissensões na maioria das vezes na obra. Parte da justificativa para sua vivência, encontra-se na idéia de que a mesma se configura proteção para a mulher, algo “natural” seria a possibilidade de um homem possuir inúmeras mulheres, e as mulheres um só homem. “Poligamia é natureza, é destino, é nossa cultura, dizem. No país há dez mulheres para cada homem, a poligamia tem que continuar.” (CHIZIANE, 2004, p102). São os homens os maiores defensores da poligamia em solo moçambicano, e para tanto argumentam que tal pratica

beneficia as mulheres, interessante o fato

deste pensar ser

disseminado tanto entre os sem escolaridade, quanto entre muitos dos ditos homens cultos. Tão delicada é a questão que muitos polígamos não assumem sua pratica, tal qual o caso da personagem criada por Paulina, que custa a assumir sua relação com aquele emaranhado de mulheres. Fato curioso é apontado por Yolanda Sithoe, que ao iniciar suas entrevistas nas

províncias de Maputo e Manica, pedindo o nome das esposas, percebe que a menção das demais esposas só ocorria depois de um tempo, visto que estes a principio não se auto denominavam polígamos, talvez por que algum valor de fato só é concedido a primeira esposa. Em Paulina, através de Niketche temos o constante evocar da tradição, acenando para o fato de que ela ainda é presente de maneira intensa na vida dos homens e mulheres presentes no livro, tal qual na vida que se projeta fora do romance. Pensando nos conflitos presentes na obra, parece evidente que o primeiro ponto sensível entre estas mulheres diz respeito as suas diferenças. Moçambique é um país diverso e como tal as diferenças entre o sul e o norte saltam aos olhos, aqui talvez possamos vislumbrar nossa maior zona de conflito, acreditamos que face a imensidão de culturas presentes neste país, para fins didáticos a autora opta por trazer o norte e o sul do pais como exemplos deste sem fim de possibilidades de mulheres.Interessante que tamanho é o nível de rivalidade entre as mesmas , que as pertencentes a região sul, vêem as nortistas como mulheres frívolas a vestir-se de forma colorida, altivas. As mulheres do norte por sua vez assim vêem as mulheres do sul “ No sul a sociedade é habitada por mulheres nostálgicas. Dementes. Fantasmas. No sul as mulheres são exiladas no seu próprio mundo, condenadas a morrer sem saber o que é amor e vida. No sul as mulheres são tristes, são mais escravas. Caminham de cabeça baixa. Inseguras.” (CHIZIANE, 2004, p 175) Para alem dos gestos, enfeites, as mulheres do norte, a partir da fala de Luísa, assim se colocam: “ Nós do norte, somos praticas. Não perdemos muito tempo com esses rituais de lobolos, casamentos e confusões. Basta um homem estar comigo uma noite para ser meu marido. E quando a relação gera um filho o casamento fica consolidado, eterno. Enquanto o Tony me der comida, cama, alimento, sou esposa legitima, sim.” (CHIZIANE, 2004, p 56,57) Parece evidente que o principal motivo de conflito entre mulheres se situe na abissal diferença presente entre o sul e o norte do país, enquanto as pertencentes à região sul, apresentam-se como mulheres recatadas, sem voz, as nortenhas em contrapartida orgulham-se de sua altivez, brilho e frescor. Em linhas gerais poderíamos dizer que o norte do país, foi menos afetado pelo colonizador, enquanto o sul foi sistematicamente dominado por ele. Luisa aponta ainda para a complexidade das relações destas mulheres presentes nos rearranjos amorosos. Luisa possui um amante, e mesmo quando o amante passa a ser partilhado, a explicação estaria em suas palavras presente na dificuldade em ser fiel ,

quando existe desejo no corpo, quando este mesmo corpo é forçado a se abster do que se almeja ( o companheiro polígamo pouco freqüenta a casa das amadas) conclui que é “ difícil ser mulher, por isso se empresta um amante”.”. - Ô Rami. Aquele homem não é criança nenhuma. És uma mulher carente, mal cuidada, abandonada, vê-se. Ele prestou-te um serviço. “Não há nada de errado nisso.” (CHIZIANE, 2004, p 81) Nunca demais relembrar que é a experiência com o amante da amante de seu marido que a transforma de fato, este elo a faz dependente de carinhos secretos, agora era Rami a possuir um amante, um amante polígamo, um balsamo para alguém onde o universo ao seu redor, percebe as questões de uma mulher como meras querelas, insignificantes e permeadas de caprichos, o que não parece apontar para mudanças imediatas visto que os pais seguem educando os filhos para serem tiranos e as filhas para aceitarem a tirania, segundo a ordem deste mesmo universo. E não só isso, a experiência com o amante da amante de seu marido, fará com que ela conceba uma outra relação de forma única, à maneira como é tecida a relação com Levi, seu cunhado, quando todos imaginam que ela está viúva, dará inicio a uma miríade de inquietações, reflexões, desembocando num dos pontos altos da narrativa, que infelizmente não cabe aqui. “Deste modo o erro ou mesmo a culpa é algo a pairar tão somente sobre a mulher, afinal, como Tony bem diz a Rami:” Traição?Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino. “Só as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami.” (CHIZIANE, 2004, p 29 ) Ante Luísa, terceira mulher de Tony, temos a seqüência de dialogo mais intensa e sublime de toda obra, é ela a vingar o ciúme de Rami ante Julieta. É fato, que ante as quatro mulheres do marido polígamo Rami segue enquanto primeira esposa, casada no civil, na igreja, sinalizandonos que existe uma hierarquia entre as esposas do polígamo, a primeira segue enquanto a principal, reconhecida pela sociedade e meio familiar do marido, é ela a digna de respeito, a lobolada no sul. O fato de ser a primeira esposa, ou como uma das amantes bem dirá : “ Tu és a rainha, a primeira! Há coisas que um homem faz com as amantes e nunca com a esposa.”, não isenta Rami de lutar contra aquilo que acredita ser injusto, dentre outras coisas espancar brutalmente uma amante grávida é uma das coisas que no romance é permitido ao homem fazer com as amantes, mas não com a primeira esposa. Rami se opõe a esta ordem ao fazer com que seu marido reconheça e lobole todas as demais, concedendo-lhes todos os direitos cabíveis, a estas e a seus filhos. É de Luísa, a nortenha, uma das mais claras visões do que passa com as mulheres do norte: “Desde cedo aprendi que homem é pão, é hóstia, fogueira no meio das fêmeas morrendo de frio.Na minha aldeia, poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos, pois

deixar outras mulheres sem cobertura é crime que nem Deus perdoa” (CHIZIANE, 2004, p. 55) Interessante que o que se apresenta como afronta para uma mulher do sul, para uma do norte é encarado como vivencia ultima de partilha, ato de maior, em sua mais cruel face.Importante ressaltar que tal diferença não se pauta tão somente na tradição, mas nas condições diferentes presentes entre estas duas regiões de Moçambique, visto que os homens do norte migram para o sul a procura de emprego e geralmente não retornam, tornando-se peças raras, a serem disputadas, almejadas. Em Saly, quarta esposa, a maconde, podemos vislumbrar um pouco do fantasma que assola tais mulheres, o da solidão e abandono presentes na solteirice, visto que para a mesma sem maridos e filhos não se chega nem mesmo a existir! Tão seria é esta questão que em Moçambique o conceito de pobreza não está atrelado tão somente às carências do mais básico para sobrevivência, é pobre, miserável também quem não constitui família. “Como a própria “dirá”: “ o amor que me dá é quase nada, mas é quanto basta para me fazer florir...” ou ainda “ Se não tivesse roubado teu marido , não teria nem filhos, nem existência ..” As tensões e conflitos pairam principalmente no seio familiar, e de modo tão intenso que o desalento da mãe da personagem principal assegura: “ Mulheres de ontem, hoje e de amanhã, cantando a mesma sinfonia, sem esperança de mudanças”. Não existe esperança de mudança por que se imagina que é obrigação da mulher aceitar o que o marido decide. Um dos argumentos impostos a estas mulheres é que as outras mulheres seriam irmãs, e seus filhos, filhos das outras esposas também, o que Yolanda Sithoe, mais uma vez percebe em seus estudos é que o interesse de fato, nas localidades pesquisadas em se possuir mais de uma mulher, estaria atrelado ao fato da primeira esposa não poder gerar filhos, isto muito mais entre os que detinham uma situação financeira mais cômoda, entre os pertencentes a zona rural, a explicação dada para a existência de mais de uma esposa residiria do fato do serviço no campo ser muito penoso e desta forma mais esposas serviriam como mão de obra. Engana-se quem pensa que o conflito não existe, a despeito da fala destes homens que conscientemente ou não mascaram a realidade, chegando a afirmar que formam uma grande e unida família, onde as mulheres são como irmãs, e os seus filhos, filhos umas das outras também. Tão presente é o conflito que as mulheres casadas com polígamos, revelavam nas entrevistas com Sithoe que os maridos eram indiferentes as suas vontades. Uma questão relevante é colocada aqui, como não havia nada a fazer diante da vontade do esposo em possuir mais uma mulher, a alternativa que lhe restava era a estratégia de escolher enquanto rival, a própria irmã, visto que as mesmas seriam mais subordinadas e elas, que uma estranha. Adentraremos agora nas questões apresentadas pelas cinco mulheres do polígamo, a partir delas intentamos vislumbrar em que medida união e conflito são vivenciadas por estas mulheres, que

de modo intenso e poético, refletem em certa medida o que se passa com suas companheiras no mundo real. Afinal como o próprio romance pontua, “ A poligamia é uma cruz. Um calvário. Um inferno. Um braseiro.” (CHIZIANE, 2004, p 102), algo que em tudo se coaduna com o pensar proposto no artigo já citado de Sithoe. Segundo Tânia Macedo” as personagens femininas de Paulina Chiziane vinculam-se profundamente a tradição, sofrendo as conseqüências de seus aspectos negativos,mas obtendo , a partir da narrativa, a possibilidade a fala que muitas vezes lhes é negada...” Enquanto nossa principal personagem e narradora, Rami mantem dialogo com todas as outras, é ela quem as define, lhes concede voz e tal qual Bentinho, na celebre obra de Machado de Assis, Dom Casmurro, a visão que temos de Capitu, e em Niketche das demais rivais, passarão sempre de algum modo pelo crivo da narradora. No entanto mais a frente, veremos que tão complexas e diferentes entre si, são estas mulheres, e tão acertado o tom e as descrições de Rami, inclusive dos embates verbais travados com estas, que não tememos afirmar que a mesma concede a sua maneira, espaço e vez para as demais mulheres.É nossa narradora a bem definir quem é cada mulher e qual posição ela ocupa nesta teia de relações tão delicada.” Eu, Rami, sou a primeira dama, a rainha mãe. Depois vem a Julieta, a enganada, ocupando o posto de segunda dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de terceira dama. A Saly, a apetecida, é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé , a amada , a caçulinha, recém-adquirida .” (CHIZIANE, 2004,p ) “Rosilda Bezerra bem assinala que “ o romance retrata a busca de Rami como uma incursão pelo desconhecido, e uma tentativa de lidar com a diferença, simbolizada pelas amantes do marido”. Quanto à rivalidade presente entre as personagens na obra, através de fragmentos de falas das mesmas, vislumbramos e discutiremos parte deste universo de disputas e conflitos. Segundo Ana Cristina Monteiro “... As estatísticas mostravam e mostram até hoje que a maioria de nossas famílias com ou sem instrução, nas zonas urbanas ou rurais, não se constituía somente através do matrimônio, mas sim de outras formas, ainda que não registradas ou legalmente reconhecidas.” (MONTEIRO, 2007 ) Aqui nos deparamos com o maior entrave de Rami em sua conjuntura familiar, visto que na caminhada ela percebe que suas rivais também formam família, sendo também esposas e que em mesma medida ele o é delas também, possui filhos com as mesmas, as oprime. O dialogo que apresentaremos a seguir, parece-nos representar o clímax de toda questão envolvendo a situação presente entre esposas e amantes, e ele ocorre entre Rami e Luísa, nele fica claro a posição da mulher ante o homem e como as relações afetivas são travadas. A situação da amante é exposta com crueza, sua invisibilidade para a sociedade, mesmo para o circulo familiar do amante polígamo, entendemos que Luísa neste embate consegue melhor resumir as vivências das esposas e amantes em relacionamentos onde a poligamia é praticada, onde com exceção do homem, não existem vencedoras ou vencidas nestas teias, vejamos:

-Sabes o que significa ser mulher de um homem casado É o mesmo que fazer filhos na sombra de outra mulher. É não ser socialmente reconhecida como esposa. É ser abandonada a qualquer momento, ser usada, ser trocada. Que futuro espera tu ? - E a senhora o que tem lutar com rivais na rua, estar detida numa cela, era o futuro que esperava ? - Mas tu não fazes a instituição, eu sim. Tu és a concubina e eu a esposa. És secreta e eu reconhecida. Tenho segurança, direito a herança e tu não tens direito a nada. Tenho certidão de casada e aliança no dedo. -Mas eu é que tenho prazer, recebo amor e todo o salário do seu marido. Eu conheço a alegria de viver. Acha isso pouco? “- Não tenho ilusões. Quer seja esposa ou amante, a mulher é uma camisa que o homem usa e despe. É um lenço de papel, que se rasga e não se emenda. É sapato que descola e acaba no lixo.” (CHIZIANE, 2004, p.54) Antes que a noção de que as mesmas são meros seres oprimidos pelo marido polígamo se instaure, devemos lembrar que elas travam combates intensos. Primeiro exemplo de embate se dá com Julieta, a dona do segundo lar, também com ela, ele possui filhos, Julieta é bela. É ela a quem Rami bem definirá como gordinha, num claro sinal de que a gordura indicaria fartura, uma vida tranqüila, abastada. É ante a primeira mulher, que Rami se depara com o fantasma da partilha, não só do ser amado, mas dos bens “ Mas esta casa é melhor ainda...” meu Deus esta casa me deixa louca... (CHIZIANE, 2004, p.20) Em Julieta, Rami intenta descobrir aquilo que supostamente lhe falta, para ela ainda Julieta fala do alto, daquela “altura” cruel, dando sinais que em sua opinião a mesma é típica de quem é mais amada. Uma questão, elas chegam as vias de fato, brigam, se agridem, mas é a rival quem depois do embate, concede-lhe o banho quente, estanca- lhe as feridas, dá-lhe para vestir suas melhores roupas, num claro sinal de que se existe conflito, também existe união e amparo umas com as outras.Afinal elas se irmanam, se auxiliam, padecem juntas. “Estamos juntas nesta tragédia. Eu, tu, todas as mulheres.” (CHIZIANE, 2004, p ) Uma mulher que pouco aparece no romance, mas é emblemática é a

tia de Rami, visto

representar o elo com o passado, mostra-nos como era o tempo antigo, tempo de haréns, onde ela dia terem sido verdadeiras famílias, onde havia em suas palavras democracia social, onde as tarefas de agrado ao soberano eram discutidas e partilhadas...“ Somos éguas perdidas galopando a vida, recebendo migalhas, suportando intempéries, guerreando umas com as outras”.

A transformação se dá ante a percepção de que juntas elas podem algo, elas farão como Rami bem dirá no momento do desvelamento das relações ante os convidados de uma grande festa: farão “uma guerra com perfume e flores”. Utilizado-se de armas sutis e engenhosas, o orgulho do macho é trazido a baila e com ele questões como as amantes que serão reveladas, os ministros, homens importantes que fazem o mesmo retiram-se logo com suas esposas para que estas não façam o mesmo, não se rebelem. Ante aquele que lhes oprime, elas se juntam! O sofrimento as une, o desvelamento obriga o homem a conceder-lhes visibilidade, algum direito. “ As minhas rivais entraram todas no paraíso, sim, entraram. De marginais passaram a gravitar dentro do cerco da família. De ignoradas e invisíveis passaram a conhecidas e visíveis... E eu o que ganhei com esta farsa.” Para mais tarde afirmar: “ Nesta guerra ganhou a minha sogra e as minhas rivais, porque eu, Rami, perdi a batalha.” (CHIZIANE, 2004, p116 ) O salto na narrativa ocorre quando encontram trabalho, um meio de se sustentar, não mais precisar do marido enquanto provedor . Elas se unem e não mencionam os verdadeiros ganhos, contam tristes histórias, abrem pequenos negócios, passam a ter mínima segurança. E uma nova inquietação se abate sobre Rami, um outro conflito lhe aflige, fazendo-lhe sentir-se deprimida, visto que então se percebe mais claramente que o marido é retalhado, perde-se os bens com a partilha do mesmo. Quanto a presença do mesmo, o parlamento conjugal, formado pelas tias mais velhas, “cujos lábios não conheceram beijos , só lamentos” ensinam como as relações devem ser travadas, ficando o homem cada dia com uma esposa. “ Mas a realidade do amor é esta. Amar e ser amado é coisa de homem. Para a mulher, o amor recebido dura apenas um sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar da vista. Para a mulher, amar é ser trocada como um pano velho por outra mais nova e mais bela- como eu fui. É ser enterrada viva quando a menopausa chega- está seca , está gasta, estéril , não pode produzir nem prazer, nem filhos , e já não floresce em cada lua- dizem os homens.” (CHIZIANE, 2004,p ) Não dura muito a agonia de Rami, logo a mesma reconhece que: “ Somos cinco contra um. Cinco fraquezas juntas se tornam força em demasia.”. Este poder é bem representado quando as mesmas se aliam num claro exemplo de união, numa atitude que sinalizava afronta ao marido, ao ser exigido que ele as satisfizesse sexualmente, a afronta recairia para o homem do sul, cujo poder deveria ser inquestionável, e o assombro para as mulheres do sul, para quem em primeira

instancia mesmo o pensar tal ação seria inviável. Aqui vislumbramos a riqueza da população feminina em Moçambique! Para as mulheres do norte, um conselho familiar, onde tal querela poderia ser exposta ( a da possível incapacidade deste homem em satisfazê-la sexualmente) poderia vir à tona, destoa das vivências das mulheres do sul, para quem tais praticas eram impensáveis. “ Cinco mulheres, cinco cabeças, cinco sentenças, “ éramos o solo fértil não cultivado, não adubado nem regado, onde o semeador um dia lançou a semente e o abandonou em busca de novas conquistas.” A união de Rami e as amantes de seu marido, elevadas agora ao posto de esposas, nos demonstra que ocorre uma ruptura, uma clara e intensa transformação, no que se espera destas mulheres, enquanto atribuição de seus papeis, são elas a romperem com o que se espera, no lugar de meros seres submissos, vemos no romance a figura de mulheres que unidas umas as outras , deixam paulatinamente que se lhes seja obrigado carregar o fardo de meros objetos, colecionáveis. Percebemos uma clara negociação com a tradição, afinal como SITHOE bem pontua em relação aos homens, eles: “ recusam-se a reconhecer que a cultura é dinâmica e que, à medida que as sociedades evoluem, outros valores surgem, assim como se cria uma nova consciência dos direitos”, as mulheres seguem a frente dos mesmos, entendo que mesmo as instituições e praticas que as oprimem são plásticas, podem sofrer e sofrem mudanças. O romance nos convida a enxergar tais empreitadas rumo às negociações, por meio de eventos como o clube das esposas, que através de meandros sinuosos, subverte a ordem imposta, dialoga com a mesma. Considerações finais Conviver com a diferença não se constitui maior entrave entre estas mulheres. Moçambique é um país culturalmente diverso, antes mesmo dos portugueses aportarem em suas terras, a quantidades de etnias ali presentes já era considerável, algo que de fato pode ser percebido face a infinidade de línguas e vivencias ali presentes. É a imposição no campo amoroso, familiar e mesmo do exercício da sexualidade que se faz problema. Se Niketche enquanto dança é ocasião onde à moça em meio ao gingado do corpo, intenta cativar e capturar o olhar do homem amado, na obra de Paulina ela nos inspira pensar o bailado destes corpos rumo à atenção para o que ocorre com estas a dançarem.

Chiziane ainda ao conceder entrevista a Maderazinco, afirma que não há norte sem sul e vice versa, aponta ainda para o fato que precisamos uns dos outros, fato que leva a cabo até o fim de seu romance, na perspectiva de aquelas mulheres, principalmente as participantes do clube das esposas, sinalizam sempre para unidade, unidade pautada na dureza do dia a dia, unidade firmada

que se coloca para alem do confronto,mesmo quando este segue atrelado as

intimidades de uma cultura tão rica, tão distante e ao mesmo tempo tão próxima da nossa. Vêse na obra de Paulina o intimo de um país. E se na vida nem todos os finais são felizes, para a autora ao final das querelas e disputas entre matriarcado e patriarcado, homens e mulheres, norte e sul, no romance ao menos: “... tudo acaba bem.”. Bibliografia: BAYER, Adriana Elisabete, JORGGE, Adriana. Entre o arcaico e o moderno: A mulher moçambicana busca a celebração da vida em Niketche: Uma história de poligamia. Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, Literatura moçambicana; Paulina Chiziane; Gênero, agosto de 2008. BRAGA, Samantha Simões. Na Dança das convenções: Uma leitura do ROMANCE Niketche: Uma História de poligamia, de Paulina Chiziane. PUC - MG, UFF. CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CUNHA, Raquel Ferro da. A Voz

Feminina: Constituição da Literatura Pós-colonial

Moçambicana. Revista Historiador, Número 03. Dezembro de 2010. FACIO, Alda. A partir do feminismo vê-se um outro direito. Publicado em “Outras Vozes”, n 15, maio de 2006. FORNOS, José Luís. Universalismos teóricos e diferenças culturais em Ventos do Apocalipse de Paulina Chiziane. ANTARES, n°4 – Jul./Dez 2010. GHERARDI, Angélica Sindra. Identidade e erotismo em Niketche: uma historia de poligamia, de Paulina Chiziane. As letras e o seu ensino - anais da IX Semana de letras. 2008. 1ª edição MACEDO, Tânia. Essas mulheres cheias de prosa: a narrativa feminina na África de língua oficial portuguesa. Contatos e Ressonâncias. Literaturas africanas de língua portuguesa. LEÃO, Ângela Vaz (Org.) Belo Horizonte: PUC Minas, 2003. OLIVEIRA, Jurema. Paulina Chiziane e a história da poligamia. Passagens

Literárias:

http://passagensliterarias.blogspot.com/2008/01/entrevista-paulina-

chiziane.html, visitado dia 03 junho de 2011. PALO, Maria José. Confluências discursivas no romance Niketche de Paulina Chiziane: faces e vozes na reeducação de uma escritora denunciada. XI Congresso Internacional da ABRALIC. USP, São Paulo, Brasil, 2008.

PALHA, Flávia. Feminismo em Moçambique: progressos e conquistas. Presente no Relatório Substantivo SITHOE, Yolanda. Poligamia: tudo em nome da “tradição”. Publicado em “Outras Vozes”, nº26, março de 2009. SILVA, da Terezinha, ANDRADE, Ximena, MAXIMIANO, Lúcia, LEVI, BENVINDA, ARTHUR, Maria José. Porque é a poligamia inaceitável na Lei da Família, à luz dos direitos humanos. Publicado em “Outras Vozes”, nº. 4, Agosto de 2003. SOUZA JÚNIOR, José Luiz Foureaux; DONADON-LEAL, J. B.; MENEZES, William Augusto; RIRSH, Irene Ruth e SANTOS, Alexandra (Orgs.). ¹ Ciências Sociais, [email protected], bolsista PIBIC.

9.

Estudo das representações sociais dos jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia.

Francilene Nascimento dos Reis54 Nilson Weisheimer IC- Voluntário Resumo: Este artigo aborda o tema dos jovens agricultores familiares. Entende-se por jovens agricultores uma categoria social especifica devido a sua socialização no processo de trabalho familiar agrícola. E seu principal objetivo foi analisar a participação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia interpretando suas representações sociais referentes ao trabalho agrícola e não-agrícola, ao modo de vida dos pais e suas auto-identificações, comparado por sexo e faixa etária, com o propósito de relacioná-los as disposições dos jovens em permanecerem na atividade agrícola. . Palavras-chaves: Jovens agricultores familiares. Representações sociais. Agricultura familiar.

Introdução Este aborda o tema da juventude e seus principais temas como, por exemplo: como o termo juventude foi construído socialmente, a juventude como faixa etária, o processo da juventude de transição para a vida adulta, dentre outros temas recorrentes. E analisar o atual discurso sobre a chamada juventude rural. Para iniciar a juventude é uma construção social, ou seja, são termos sociais que definem se uma pessoa é considerada jovem ou não e não termos biológicos como se pensa por isso ela (juventude) é uma categoria sociológica e é um objeto de estudo da Sociologia da Juventude. Segundo Weisheimer Sociologia da Juventude é “uma disciplina acadêmica de caráter cientifico tem sua especificidade definida por seu objeto de estudo, ou seja, a juventude como um fenômeno social, cultural e histórico” (WEISHEIMER, 2009; 37). O surgimento dessa disciplina teve a principio seu enfoque na juventude de modo genérico e abstrato se detendo mais tarde sobre a especificidade dos jovens vinculados as suas experiências concretas.

54 Curso Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail : [email protected]. Tel: (75) 9908-7275.

A juventude como é vista hoje é bem diferente de outros períodos históricos, mesmo tendo jovens em épocas passadas os papeis atribuídos a estes e as características eram bem diferentes da atualidade, isso é fruto da modernidade e em conseqüência do processo do capitalismo. Por isso os jovens são sempre considerados como, modernos, diferentes, inovadores ou rebeldes. Alguns autores definem o conceito de juventude para Philippe Aires apud Weisheimer, 2009 a juventude surgiria com a emergência do capitalismo para ele a juventude é uma noção que emerge na modernidade, com base em dois processos fundamentais, distintos e simultâneos e inter-relacionados, isso significa dizer que a organização familiar do século XVII que era mais voltada para a escola detentora do poder de educar as crianças e os jovens, ocorre mudanças. A família volta seu olhar em torno da criança que passa a ser o centro da família nuclear e nesse período a juventude passa a ter um papel social distinto sendo que os pais passam a ter responsabilidade total sobre as condições de existência e sobrevivência dos filhos. Refletindo assim um processo de individualização e racionalização da família. Através do ponto de vista das praticas sociais “o inicio da juventude é representado pelo surgimento da puberdade” WEISHEIMER, p. 22, 2009. Já o fim da juventude é marcado pelo plano cívico (maioridade), por processos conjugais (o casamento) e também domésticos. O período de ciclo de vida caracterizado como juventude envolve um conjunto de fenômenos objetivos e subjetivos, sociais e individuais, que mudam de sociedade para sociedade. O processo juvenil é caracterizado principalmente pela inserção do jovem no mercado de trabalho, o que representa sua autonomia em relação aos pais significando a possibilidade do mesmo exercer seu direito de voz, ou seja, de opinião perante a sociedade e da família. Segundo Weisheimer a definição de juventude seria: “juventude é uma categoria social fundada em representações sociais segundo as quais se atribui sentido ao pertencimento a uma faixa etária, posicionando os sujeitos na estrutura social. A juventude é caracterizada ainda pelo processo continuo de incorporação de novos papeis sociais por meio de diversos processos de socialização, o que se configura a transição da infância à vida adulta”. (WEISHEIMER, 2009; 27) Isso significa dizer que o jovem passa por uma transição, onde ele não é mais crianças e ainda não é um adulto, sendo atribuídas a ele responsabilidades que antes não necessitava. O autor segue definindo jovens;

“Por jovens, designam-se os indivíduos concretos que vivem os processos de socialização específicos. Constituem-se em sujeitos históricos cujas trajetórias implicam a transição de condição social de criança à vida adulta. Em outras palavras, os jovens constituem a unidade de análise por excelência dos estudos da Sociologia da Juventude”. (WEISHEIMER, 2009; 27) E, segundo o mesmo autor há uma separação entre a condição juvenil e a situação juvenil. A condição juvenil traduz as diversas configurações da condição juvenil. Para que sejam feitas as análises das especificidades das juventudes é preciso levar em conta o processo de socialização. Este artigo está disposto além da introdução em: a) jovens e juventude rural: uma categoria sociológica; b) juventudes rurais; c) as representações dos jovens agricultores familiares e as considerações finais. E metodologicamente, traz-se resultados de uma pesquisa exploratória com base em observação sistemática e aplicação de questionário padronizado, ainda em andamento. Jovens e juventude rural: uma categoria sociológica A sociologia da juventude tem seu principal enfoque teórico o estudo das gerações e o seu principal autor é o sociólogo húngaro Karl Mannhein um marxista contemporâneo do século XX. A definição de geração para esse autor segundo Weishaimer é: “uma geração é constituída por aqueles que vivem uma “situação” comum perante as dimensões históricas do processo social, o que caracteriza uma situação de geração, isso porque para Mannheim apud Weisheimer a geração é situacional, ou seja, o individuo vive uma “situação” comum dentro do processo histórico como esclarece o autor nesse trecho; “A ideia de que uma nova geração estabelece um contato original com a cultura previa de uma sociedade é extremamente relevante para o entendimento da juventude e de seu papel como mediadora geracional nos processos de desenvolvimento e mudança social. Isso porque cada nova geração encontra-se em condição de incorporar os conhecimentos produzidos por gerações anteriores e, simultaneamente, acrescentar algo de novo. Essa situação deriva do fato de que as novas gerações estabelecem um relacionamento modificado, distanciado de sua abordagem original, permitindo a

produção de transformações no pensamento e nas práticas sociais”. (WEISHEIMER, p. 61, 2009). Assim as gerações presentes passam a herança cultural para as gerações futuras, contribuindo sempre com algo de novo para essas gerações. Karl Mannheim apud Weisheimer, 2009, também fala da unidade de geração que consiste no jovem identificar a si mesmo sendo possível a construção de grupos concretos. O reconhecimento de si seria os jovens viverem numa determinada época, num mesmo lugar e ter as mesmas vivências. Os grupos concretos seria a “junção” desses jovens, para a criação de uma associação, por exemplo. Ele (Mannheim) também menciona as sociedades estáticas e as sociedades dinâmicas. As sociedades estáticas teriam o desenvolvimento mais lento envolvendo e se destacando as atividades dos mais velhos. E as sociedades dinâmicas seriam mais avanças, sendo que os mais jovens contribuiriam para esse avanço. Em suma, para um estudo detalhado da juventude é preciso levar em consideração todos esses fatores que definem e determinam o conceito atual de juventude. Analisando as diferentes vivencias e as individualizações desse grupo tão complexo e distinto. Juventudes Rurais Este ensaio aborda questões que pautam o debate sobre as juventudes rurais dentre estes temas se destacam alguns: “as condições de vida e de trabalho dos jovens e as diferentes possibilidades de inserção produtiva; a desigualdade de acesso a serviço público; as diferentes formas de sociabilidade juvenil; as desigualdades de gênero; o celibato masculino e tantos outros temas emergentes”. ZORZI, p.149 2009. Neste artigo os jovens rurais serão sempre tratados no plural, pois as vivências destes são distintas não devendo ser tratados no singular. Segundo Weisheimer “por jovens são designados os indivíduos concretos que vivem os processos de socialização específicos”, desse modo compõem-se em sujeitos históricos cujas as trajetórias aludem a transição da condição social de criança a vida adulta. A juventude rural é um tema pouco abordado nas academias brasileiras dentre outros segmentos, por isso há uma invisibilidade acadêmica em torno desse tema. Em um estudo sobre o mapeamento das juventudes rurais no Brasil (WEISHEIMER, 2005) destaca que foram feitos apenas cinqüenta trabalhos acadêmicos entre o ano de 1990 a 2004. Esses dados demonstram que as pesquisas sobre juventude do meio rural não constituem uma produção expressiva em termos de volume, uma vez que não chegam a compor quatro trabalhos por ano. Talvez isso se reflita porque os jovens rurais representam uma porcentagem pequena da população do país, sendo apenas 18% segundo Weisheimer. Assim, pode-se afirmar que existe uma distância entre o acumulo do debate sobre juventude urbana e juventude rural.

Nesse mesmo estudo Weisheimer aponta quatro linhas temáticas gerais que norteiam o desenvolvimento das pesquisas sobre juventude rural no Brasil; 1) juventude e educação rural, segundo o autor esse é o tema mais abordado; 2) juventude rural, identidade e ação coletiva; 3) juventude rural e inserção no trabalho; e 4) juventude e reprodução social. Segundo o mesmo autor “na região nordeste, há um destaque para a temática 2); juventude rural identidades e ação coletiva. Isso se deve provavelmente à relevância política dos movimentos sociais no campo e as experiências de assentamentos rurais ali desenvolvidas”. WEISHEIMER, p.14, 2005. A juventude como faixa etária também é um tema recorrente não só com jovens rurais. No Brasil a faixa etária para que uma pessoa seja considerada jovem é de 14 a 24 anos. Mas segundo Weisheimer a juventude é uma categoria sociológica, ou seja, são fatores sociais e não biológicos que determinam se uma pessoa é jovem ou não. Para que uma pessoa deixe de ser considerado jovem ela precisa adquirir independência financeira, ou constituir sua própria família, saindo da casa dos pais e tendo suas próprias responsabilidades, como afirma Weisheimer: “Socialmente, ele não é considerado “adulto”, pois não se conclui o processo de individualização, que só será efetivado com a constituição de uma unidade produtiva autônoma, após o casamento ou após a passagem sucessória do estabelecimento familiar de pai para filho(a). com efeito, os jovens agricultores, como todos os outros jovens, estão apenas parcialmente integrados no “mundo adulto”, mas não contam com o reconhecimento de um agricultor pleno”. (WEISHEIMER, 2005, 82). No meio rural há uma dificuldade do jovem se estabelecer na agricultura familiar, pois estes são sempre subalternos às decisões dos pais não tendo autonomia sobre a produção agrícola, sendo assim ficam inviável que o jovem possa pensar em projetos para seu estabelecimento no meio rural. A dificuldade torna-se ainda maior para as mulheres, pois seus trabalhos tornam-se invisíveis perante o trabalho masculino, considerado sempre como uma “ajudinha”. Outro problema se dá com o ingresso dos jovens rurais em escolas publicas estas não condiz com a realidade destes, pois valoriza e transmite o padrão de vida urbano. Na realidade esses jovens vão para a escola para concluir o ensino médio e conseguir um emprego na indústria, por exemplo. A atração dos jovens rurais pela cidade, seu estilo de vida é um dos fatores em torno da discussão da saída dos mesmos para a cidade. Esse é um dos temas mais marcantes sobre a juventude rural “a migração do campo para a cidade e a invisibilidade social” como aponta Weisheimer. Essa juventude é invisível

perante a sociedade e principalmente ao poder publico, sendo impossível política publicas para a mesma. “Essas duas dimensões, invisibilidade e migração, parecem fortalecer-se mutuamente, criando um ciclo vicioso em que a falta de perspectiva tira dos jovens o direito de sonhar com um futuro promissor no meio rural”. (WEISHEIMER, 2005; 8) Tomando o tema da migração as mulheres migram mais que os homens, pois se percebe a masculinizarão do campo. Fica mais difícil para esse jovem casar e permanecer na agricultura familiar, pois faltam mulheres no campo e dificilmente uma jovem da cidade vai querer se estabelecer no meio rural. A migração das jovens não quer dizer que elas se destacam socialmente, ao contrário sua invisibilidade torna-se ainda maior, pois a maior parte delas se encontra fazendo trabalhos domésticos desprovidas muitas vezes de garantias e boas condições de trabalho e salário. Com isso se evidenciou que “a situação juvenil na agricultura familiar é marcada por uma baixa autonomia material e uma distribuição desigual de recursos entre os sexos” (WEISHEIMER, 2011; 189). A tão sonhada independência financeira faz com que os jovens rurais sonhem com o ideal urbano, fazendo com que estes percam a esperança em permanecer no meio rural. Ingressar no ensino superior torna-se um sonho distante como afirma Castro: “ingressar numa faculdade privada é considerado inviável para a renda das famílias dos jovens rurais e a universidade publica é percebida como intangível” (CASTRO, 2010; 59). A autora Analisa Zorzi faz uma síntese sobre a situação dos jovens rurais no Brasil nesse trecho: “De um modo geral, os estudos produzidos no Brasil sobre os jovens rurais apontam uma diversidade de abordagens que correspondem a diferentes contextos e condições de vida em que esses jovens estão inseridos. Nesse sentido, a própria condição juvenil se constitui numa construção social, cultural e histórica dinâmica e diversificada, implicando numa realidade múltipla, pois os jovens não formam um grupo homogêneo. O que significa levar em conta, nas interpretações sobre as situações dos jovens rurais, as diferenças de classe social, etnia e gênero. (ZORZI, p. 160, 2009). De acordo com Minayo 1995, p. 89 apud Bertoncello nas ciências sociais as representações sociais “são definidas como categorias de pensamentos que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-a. Isso significa que a representação social segundo essa perspectiva o termo juventude refere-se a um conjunto de relações sociais especificas que são determinadas socialmente, ou seja, a atribuição que se estabelece sobre quem não é ou não pertence a determinado grupo nesse caso de quem é ou não jovem para uma certa sociedade. Esse termo é o enfoque geracional juvenil isso quer dizer o enfoque das

gerações, compreendendo-a através da ideia de situação no processo social, os ritmos de mudanças sociais possibilitam novos valores e ideais que são incorporados mais facilmente pelos jovens por não estarem completamente enredados no status quo. Isso significa que somos sempre novo ou velho em relação a alguém. A necessidade de o jovem ter sua renda própria faz com que estes abandonem o meio rural para conseguir emprego na cidade isso se da pelo processo do capitalismo, pois há uma necessidade de obter bens materiais e deixar a condição de subalternidade em relação aos pais. Os projetos individuais dos jovens estão ligados ao processo de socialização dos mesmos. As representações sociais dos jovens agricultores familiares

As representações sociais se constituem em um importante material para a pesquisa social. Sinteticamente, pode-se tomar o conceito de representação social “como um conjunto de elementos simbólicos, socialmente construídos e compartilhados, que contribuem para a construção da realidade social e que devem ser compreendidos a partir dos contextos objetivos específicos de sua produção e reprodução”(WEISHEIMER,2011 p.20 . Conforme Stuart Hall (2003) apud weisheimer (2011), as representações são entendidas como um sistema de signos, constituindo-se num construto social com dimensões materiais. Esta marca deve-se à reformulação do conceito original, que passa a ser uma expressão exterior dos indivíduos ou coletividades, podendo ser apreendido objetivamente. As representações são a forma de atribuição de sentido, por isto assumem forma material. As representações dos jovens sobre o trabalho agrícola podem ser resumidas na pergunta “O quanto você gosta do trabalho familiar agrícola. As avaliações sobre o trabalho e a disposição de reproduzi-lo apresentam uma relação positiva, isto é, quanto mais o jovem gosta do trabalho mais quer reproduzi-lo. Assim, entre os entrevistados que respondem que gosta muito, na maior parte garante que pretende se estabelecer na agricultura familiar; os que apresentam uma posição ambígua para com a resposta “mais ou menos” não pretendem ser agricultores; os que respondem “não gosto” também respondem que não querem ser agricultores. Constatamos uma coerência entre esta avaliação e a disposição em reproduzir o trabalho agrícola. Entre os que avaliam como “ótimo” e “bom” o modo de vida dos pais, estão os que apresentam os maiores percentuais positivos quanto a ser agricultor respectivamente. Os demais entrevistados apresentam percentuais menores do que a média dos entrevistados para a pergunta Você pretende se estabelecer profissionalmente como agricultor familiar?. Destacam-se os que avaliam como “ruim” o modo de vida dos pais respondem que não querem permanecer na atividade dos pais.

Esta coerência entre representações e projetos, que é uma forma de representação do futuro, pode ser explicada porque ela opera como uma rede de significações que se tecem nas experiências cotidianas dos jovens, no trabalho agrícola e nos demais espaços de socialização, que são produto de condições estruturais, e ao mesmo tempo, agentes da estruturação de representações que lhes permitem e justificam o funcionamento. Assim, representações e projetos são resultados de um esquema de condicionamento cuja coerência é essencial para satisfação da lógica dos indivíduos. Com efeito, podemos perceber que estas representações orientam os projetos profissionais dos jovens agricultores. Tudo ocorre de tal modo que as representações positivas do trabalho e modo de vida dos pais tendem a ser, por forma da lógica das práticas sociais, acompanhada de disposições à reprodução deste trabalho agrícola e seu modo de vida. Considerações Finais Como se viu a juventude é uma categoria sociologia, e é vista através de um enfoque geracional, ou seja, somos sempre velhos em relação a alguém. Muitas abordagens pautam sobre o tema da juventude, pois está é uma categoria bastante complexa e que precisa a todo tempo ser estudada. A modernidade faz com que essa categoria chamada juventude esteja sempre mudando fazendo surgir novos temas que interessam principalmente a sociologia, tendo o seu objeto de estudo os jovens. É percebido que a juventude urbana é mais estudada que a juventude rural, talvez por tratar a juventude de forma generalizada, ou seja, que as juventudes são todas iguais em qualquer lugar, os jovens da zona rural são esquecidos. Como se vê a juventude rural tem suas especificidades e merece a mesma atenção que é dada as outras juventudes. É preciso que o tema da juventude rural tenha mais visibilidade e interesse principalmente nas academias, quem sabe assim através dessa visibilidade acadêmica possa surgir políticas publicas que voltem o olhar para essa juventude, pois nota-se também uma falta de atenção para que a os jovens rurais possam permanecer no campo. A não permanência dos jovens nas áreas rurais é um dos temas abordados nesse ensaio, notou-se que algumas entidades públicas como a escola não contribui para que esse jovem continue a permanecer e criar expectativas, sonhos e projetos no campo, isso significa dizer que a escola valoriza e ensina patrões e estilo de vida urbano. Permanecendo nesses jovens um sentimento de desconforto, e uma falta de identidade, pois eles não se identificam no meio que vivem procurando outros valores e padrões que muitas vezes não condizem com suas realidades. Sem falar na falta de autonomia com a produção agrícola, sendo que os jovens estão sempre subordinados aos adultos.

Estes evidências levantadas por esta pesquisa empírica confirmam os resultados anteriores que demonstram a relação entre projetos profissionais agrícolas e representações positivas sobre este trabalho e o modo de vida dos pais. Permitem demonstrar que estas representações se relacionam com as faixas de idade maiores de 20 anos e, especialmente, com os entrevistados do sexo masculino. Com isto pode-se concluir que, quanto mais positivas fossem as avaliações sobre o trabalho agrícola e o modo de vida dos pais, mais os jovens agricultores familiares desenvolveriam projetos profissionais de permanência na agricultura. Por fim , vale mencionar que esta pesquisa revelou-se muito relevante para superar o atual estado da arte deste tema no estado da Bahia, caracterizada por poucos estudos sobre os jovens rurais e os agricultores familiares em particular principalmente na microrregião de Santo Antônio de Jesus. Acredito que a partir do desenvolvimento da pesquisa possa surgir novos interesses em relação ao tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERTONCELLO, Andressa (et.al.). JUVENTUDE RURAL, MOVIMENTOS SOCIAIS E SUBJETIVIDADES:compreendendo estas interfaces no processo de reprodução social da agricultura. Anais do II Seminário Nacional. Movimentos Sociais, Participação e Democracia. 25 a 27 de abril de 2007, UFSC, Florianópolis, Brasil. GUARANÁ DE CASTRO, Elisa. Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a construção de um ator político. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, Vol. 7, Num.1, enero-junio, 2009, PP.179-208 WEISHEIMER, Nilson. Estudos sobre a juventude rural no Brasil: mapeando o debate acadêmico (1990-2004). _________. Sobre a situação juvenil na agricultura familiar gaúcha. In: Bahia Análise e Dados, v.1(1991-). Salvador: Superintendência de Estudos econômicos sociais da Bahia, 2011. _________.A construção social da juventude. In: Sociologia da Juventude. [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). –Curitiba: Ibex, 2009 _________.História da Sociologia da juventude. In: Sociologia da Juventude. [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). –Curitiba: Ibex, 2009 _________. Jovens Agricultores Familiares: situação juvenil e projetos profissionais em questão. XXVIII CONGRESO INTERNACIONAL DE ALAS. 6 a 11 de septiembre de 2011, UFPE, Recife-PE. Grupo de Trabajo: 22: Sociología de la infancia y la juventud. Fonte:

10.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O MEIO RURAL: PERCEPÇÃO DOS SINDICALIZADOS RURAIS DO BAIXO PARAGUAÇU NO RECÔNCAVO DA BAHIA Gerinaldo da Silva Lima¹ Amílcar Baiardi² RESUMO O presente resumo refere-se ao relatório técnico da pesquisa socioeconômica objetivando avaliar as políticas públicas promovidas pelo Estado brasileiro com foco no meio rural, como as agrícolas, agrárias e de promoção humana ou desenvolvimento rural, e que têm como canal privilegiado de aplicação os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais. A avaliação se limitou geograficamente à região do Baixo Paraguaçu, Recôncavo da Bahia, e tentou mensurar os impactos das políticas na qualidade de vida dos sindicalizados rurais. Trata-se de uma pesquisa empírica contemplando aplicação de questionários a sindicalizados por meio de amostragem probabilística. A análise dos dados sugere que as políticas têm um caráter tipicamente compensatório, no que se refere à renda e que não demonstraram eficiência no aumento da produção, no aumento da produtividade e nem na gestão da unidade produtiva. Palavras-chave: Políticas Públicas, Desenvolvimento rural, Sindicatos. ¹Graduando em Ciências Sociais, bolsista PIBIC CNPq/UFRB ([email protected] 75 9205-9764) ²Professor Titular da UFRB... ([email protected] 71 9977-3579) Introdução As políticas públicas são intervenções feitas pelo Estado com vistas a promover o crescimento econômico e o bem estar, no seu sentido mais amplo. As políticas de aumento da produção, denominadas produtivistas, e de geração de bem estar e promoção humana no meio rural têm como formuladores os Ministérios da Agricultura, Pesca e Desenvolvimento Rural. Na medida em que são os sindicalizados rurais os beneficiários diretos das políticas públicas para o meio rural intermediadas pelas associações sindicais, é de absoluta pertinência a investigação do quanto estas políticas estão mudando seus sistemas produtivos e melhorando as condições de vida. Surge assim a necessidade de verificar quais políticas públicas agrícolas, pesqueiras, agrárias e de promoção social têm sido ofertadas pelo Estado brasileiro, ao meio rural, tendo os Sindicatos como parceiros permanentes, principalmente a eficiência das mesmas no meio rural. Para tal análise foi fundamental o diagnóstico socioeconômico dos municípios envolvidos na pesquisa, o que possibilitou uma visão geral dos diversos aspectos referenciais das políticas dos ministérios acima citados, pois ao iniciar-se a pesquisa empírica já se tinha visão de cada município na sua individualidade, e quais políticas públicas estão presentes em cada um deles. Os Sindicatos Rurais por sua vez são organizações sociais, que se dedicam a defender os interesses de seus associados, interesses econômicos, culturais, públicos e sociais nas diversas esferas públicas. Seus principais interesses se voltam para a defesa da categoria a qual representa, pensando no bem comum e na organização coletiva.

Por meio dos Sindicatos Rurais, muitos dos programas e projetos do Governo Federal são aplicados ao meio rural, com vistas ao aumento da produção e obtenção de melhorias nas condições de vida de toda uma população que está em atividade no campo. 3- BREVE CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO A região do Baixo Paraguaçu é formada pelos cinco municípios banhados pelo rio antes da Foz, que são: Cabaceiras do Paraguaçu, Muritiba, São Félix, Cachoeira e Maragogipe. Do ponto de vista físico, é possível detectar nos mesmos três ecossistemas dominantes na Bahia: o denominado como de Mata Atlântica, hegemônico e caracterizado por vegetação remanescente densa e por um clima úmido, o Litorâneo de Manguezais e o de Transição para o Semi-Árido. O município de Cabaceiras do Paraguaçu foi distrito de Muritiba até 13 de junho de 1989, data de emancipação. Sua população estimada em 2009 era de 18.569 habitantes e sua área territorial compreende 214 Km². É banhado pelo Rio Paraguaçu que proporciona como meio de subsistência a pesca, além da agropecuária. Muritiba foi fundada em 8 de agosto de 1919, e tem como base econômica a agricultura, com a produção de mandioca, fumo, laranja e limão. S sua população estimada em 2009 era de 27.755 habitantes e sua área territorial compreende 111 Km². São Félix está situado à margem direita do Rio Paraguaçu, sua população estimada em 2009 era de 16.208 habitantes e sua área territorial compreende 96 Km². É bastante conhecido pela sua historia que cruza com a de Cachoeira. Sua principal atividade é agropecuária. Destacase também a pesca como meio de subsistência para a população de baixa renda, principalmente no trecho estuário dada à presença de extensas áreas de manguezais. Cachoeira, fica a margem esquerda do Rio Paraguaçu, sua população estimada em 2009 era de 33.782, com área territorial que compreende 398 Km². Bastante conhecida por seu valor histórico, a cidade de Cachoeira tem como principal característica seus antigos casarões e sua principal atividade, além do turismo, são a pecuária e agricultura. Maragogipe, o último , mas não menos importante, localiza-se no ponto de encontro do Rio Paraguaçu com o Rio Guaí. Sua população estimada em 2009 era de 43.291 e sua aréa territorial compreende 436 Km². A sub-região é bastante rica no que diz respeito aos recursos naturais, apresentando um ótimo potencial para o desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo ecológico, rural e principalmente o turismo náutico, incluindo a pesca desportiva. No período colonial, mais precisamente nos séculos XVII e XVIII, parte do Baixo Paraguaçu, sobretudo o trecho navegável do Rio Paraguaçu e o povoado (vila) de Cachoeira, jogaram um papel especial nas rotas de comércio em direção ao hinterland, Sertão do São Francisco e Minas Gerais, e em direção à Europa, constituindo-se em um entreposto do que se produzia para exportar e do que se importava da metrópole. Tentativas de re-escravização, de servilismo e de controle racial com baixos salários foram as condutas mais comuns tomadas pela classe de senhores de engenho e pelos empresários de outros setores, não lhes ocorrendo buscar a viabilidade econômica na modernização produtiva, gerencial e em relações de produção estritamente

capitalistas, é o que sugere Cunha (2004). No momento ainda se percebe na sociedade rural traços da sociedade patriarcal escravista, sobretudo no distanciamento de uma mentalidade mais próxima à burguesa, em termos de assunção de riscos capitalistas e menor dependência do Estado. Os trabalhadores rurais do Baixo Paraguaçu, uma categoria ampla que engloba assalariados, pequenos e médios agricultores, parceiros, arrendatários, meieiros e pescadores artesanais ainda exibem em termos de padrões culturais uma certa herança desse passado. Metodologia A metodologia proposta é a típica de tratamento estatístico de dados. Na primeira etapa da pesquisa, que teve uma dimensão essencialmente empírica e se constituiu de aplicação de questionários aos associados dos sindicatos selecionados por meio de amostragem probabilística e não probabilística, coletou-se um volume considerável de dados. Com os mesmos foram construídos bancos de dados em planilhas Excel e SPSS, a partir de 36 perguntas. Posteriormente foram elaboradas tabelas de freqüência com as variáveis identificadas. O produto da primeira etapa da pesquisa, que envolveu ingentes esforços de coleta de dados, é um conjunto de várias tabelas que informam a freqüência com que respostas acontecem e que permitem inferir, em primeira mão, sobre as características da população pesquisada e sobre possíveis causas de determinados fenômenos ou constatações. Nesta etapa, a segunda e última, pretende-se partir deste ponto para aprofundar a análise estatística, iniciando por utilizar técnicas de distribuição, de medida de tendência central, de medidas de dispersão, seguindo com testes de hipóteses e significância e finalizando com ajustamentos, correlação e regressão. Esta série de procedimentos dará maior consistência às futuras inferências e conferirá um maior power prediction às possíveis causas, até porque se explorará a associação entre variáveis e as possíveis relações de causa e efeito. A metodologia utilizada contemplou nove estágios principais: a) Revisão da literatura de interesse para a pesquisa e definição clara do objeto de pesquisa; b) Elaboração do rol e codificação dos sindicalizados, tendo como fonte os arquivos dos sindicatos que informavam endereços, telefones de contato e outros dados que facilitavam o acesso para a entrevista e o levantamento de variáveis associadas ao nome; c) Construção por municípios de planilhas com a população codificada (N), definição do intervalo de confiança e do tamanho da amostra aleatória simples (n) para pequenas populações, com uso de números aleatórios55; d) Concepção do desenho do questionário e das perguntas sobre variáveis qualitativas e quantitativas e teste do 55

0 n (n= N x n° / N + n°) para os cinco municípios foram: São Félix 40, Maragogipe 28, Cachoeira 23, Muritiba 22 e Cabaceiras 28 e variaram em função do tamanho do N, número total de sindicalizados por sindicato..

mesmo; e) Aplicação do questionário à amostra de sindicalizados; f) Revisão do questionário e re-aplicação em poucos casos; g) formação do banco de dados utilizando planilhas do software Excel e SPSS; h) Construção de tabelas e inferências; i) análise e interpretação dos resultados. A metodologia é também típica de estudos empíricos e consistiu: i) na definição do objeto a partir da problematização expressa na suspeita do baixo retorno dos investimentos públicos na forma de políticas assistencialistas para o meio rural, ii) na concepção e aplicação dos questionários, iii) na construção de bancos de dados em planilhas, a partir das perguntas do questionário e iv) na elaboração de tabelas com freqüência das variáveis selecionadas. A etapa da pesquisa de campo envolveu ingentes esforços de coleta de dados, que se deu a partir de questionários aplicados a amostras de trabalhadores rurais, dimensionadas por municípios, de modo probabilístico. A construção do banco de dados e a elaboração das tabelas seguiram os procedimentos convencionais e permitiram inferências de acordo com o nível de confiança estabelecido. A análise focaliza alguns aspectos da população pesquisada, tipos de benefícios recebidos pelos sindicalizados com a aplicação das políticas públicas e efeitos das mesmas sobre as atividades produtivas. Diante das limitações de tempo e recursos, definiu-se como horizonte temporal de análise dos benefícios recebidos, os anos de 2009 e 2010. Resultado e discussões As análises realizadas para a os municípios integrantes da sub-região estudada tiveram como foco avaliar os efeitos da efetiva aplicação das Políticas Públicas promovidas pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, MAPA, e Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA e por programas compensatórios como Bolsa Família. Procurou-se observar a eficiência dos mesmos no sentido de provocar melhorias tanto nas condições de produção dos sindicalizados como na qualidade de vida. Diversas são as políticas que utilizam a rede de sindicatos de trabalhadores rurais, sua capilaridade, para atingir o público alvo. As tabelas apresentadas a seguir apontam os resultados extraídos das respostas dadas ao questionário, que no total contemplava 36 perguntas das quais apenas uma parte foi considerada para elaboração de tabelas para o presente trabalho. Parte delas tenta representar o perfil dos beneficiados a partir de suas carências e parte avalia, propriamente, os efeitos das políticas.

Quadro 1. Freqüência dos extratos de renda monetária mensal da população investigada na sub-região do Baixo Paraguaçu, Bahia, 2009-2010 Extrato de São renda Félix familiar (R$) Acesso em 01/08/2011 VITA, Ana Carolina Kley. A Ilusão da vida: estudos do Cinema de Animação. Cascavel/PR, Advérbio, n.06, jan. 2010. Disponível em < http://www.fag.edu.br/adverbio/artigos/artigo05%20%20adv06.pdf > Acesso em 18/08/2010. Filmografia 167

de

abril

2010. Acesso

d

D em

2012 (filme). Roland Emmerich, 2009. 158min. son. color. EUA. AVATAR (filme). James Cameron, 2009. 166min. son. color. EUA. OS INCRÍVEIS (filme). Brad Bird, 2004. 115min. son. color. EUA. PIRATAS DO CARIBE: O BAÚ DA MORTE. (filme). Gore Verbinski, 2006. 145min. son. color. EUA. SENHOR DOS ANEIS: O RETORNO DO REI (filme). Peter Jackson, 2003. 210min, son. color. EUA. THE LOST WORLD (filme). Harry Hoyt. 1925. 108min. mudo. Pb. EUA. TRON (filme) Steven Lisberger, 1982. 96min. son. color. EUA. UMA CILADA PARA ROGER RABBIT (filme). Robert Zemeckis, 1988. 104min. son. color. EUA.

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17. Jogo de espelhos: reflexões sobre a personagem Buscapé no filme “Cidade de Deus” Larissa Andrade79 Apresentação O Grupo de Estudos e Práticas em Cinema e Educação (GEPCE) reflete sobre a utilização das imagens visuais e sonoras na formação educacional, pois vivemos atualmente cercados por imagens como a publicidade, a tele-novela, a fotografia, o auto-retrato das redes sociais, entre outras, que nos geram perspectivas e impressões diante da realidade. Na atuação do GEPCE nas escolas públicas das cidades Cachoeira e São Félix, percebemos que ainda existe uma resistência do público em relação ao cinema brasileiro. Quando perguntávamos sobre, sempre ouvíamos a mesma afirmação – “Não gosto, é ruim!” No entanto, a partir dos anos 1990, a produção cinematográfica brasileira atrai nosso olhar, em especial, com a repercussão do filme “Cidade de Deus”. Existem muitas chances do filme “Cidade de Deus” estar presente na bagagem fílmica de um número considerável de educandos e de educadores, devido à sua ampla divulgação. O filme levou três milhões de espectadores às salas de exibição, também foi exibido na televisão aberta e até hoje, após nove anos do lançamento, ainda encontramos nos camelôs. Desse modo, acreditamos na importância em analisá-lo criticamente, partindo de elementos da sua linguagem e expressão fílmica para a construção do personagem Buscapé no filme. Algumas interrogações ainda pairam neste artigo, mas neste momento a mais adequada é: como o negro é representado neste filme? Fade in80: o filme na tela O filme “Cidade de Deus” (2002), dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, e adaptado do livro homônimo de Paulo de Lins (1998), traz um panorama da 79

Graduanda em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Bolsista do PIBEX do projeto “Quadro a Quadro: projetando idéias e refletindo imagens”. E-mail: [email protected]. Contato: (71) 86685709 80 Fade in indicação técnica utilizada para marcar o início de um roteiro cinematográfico. E na montagem, indica o efeito de transição, no qual a imagem surge da tela preta. Enquanto o fade out, ao contrário, a imagem se dissolve na tela preta.

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formação da favela Cidade de Deus no Rio de Janeiro, desde início dos anos 1960. A partir das ações dos personagens centrais acompanharemos as transformações da Cidade de Deus, que, segundo a sinopse, é a protagonista da história. Essas histórias são narradas sob a perspectiva do personagem analisado, Buscapé, um adolescente negro, morador da Cidade de Deus que, por fim, torna-se fotógrafo. O fato dele ser narrador e personagem nos permite conhecer a sua vivência, a relação com a sua família, a frequência à escola, as condições de trabalho, os seus relacionamentos e até ouvimos os seus pensamentos. A voz e a trajetória de Buscapé também estão engrenadas às transformações do local. Neste caso, a voz se comporta de duas formas: a voz over e a voz off 81. Na voz over, o narrador tem um poder de onipresença e onisciência, é aquele “que sabe de tudo e tudo vê”, explica- nos os motivos das ações dos personagens envolvidos e os fatos ocorridos, em conjunto aos flashs-back de imagens, uma medida didática. O que também aponta para a consciência do sujeito em conceber a realidade em seu entorno. A voz off nos possibilita ouvir os seus pensamentos, os receios, as tensões, os questionamentos e as suas vontades, inicia a partir da adolescência essa reflexão. E constitui um dos principais fatores para a formação de sujeito do personagem, e para a percepção de estar inserido na realidade e não apenas “sujeitado” a ela. Dentre os estereótipos apresentados no livro O negro brasileiro no Cinema, de João Carlos Rodrigues, colocaremos em questão os seguintes estereótipos para análise: o favelado, o “negão”, o “negro de alma branca” e o marginal. Busca-se fatores para compreender até que ponto este personagem consegue romper e dar continuidade às características destes estereótipos. Os estereótipos são tão reducionistas que nem precisaremos de muitas palavras para explicar de como os personagens são apresentados: o negro de alma branca é o intelectual, mas é negado pelos brancos; o negão tem desejos sexuais insaciáveis; o marginal tem a criminalidade intrínseca; e o favelado é associado também ao marginal ou ao pobre humilde e amedrontado, frente à violência ou às autoridades. Esses estereótipos nos mostram personagens caricaturais, sem profundidade psicológica nem motivação, são engessados em si mesmo e reduzidos em bons ou ruins.

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As funções de voz são; a voz over que caracteriza uma voz superior, denominada também da “voz de deus” é aquele que “sabe de tudo e tudo vê”, totalmente exterior a cena; e a voz off, que está atrelada ao personagem, quando ouvimos os pensamentos ou até mesmo ouvimos uma voz que está no ambiente filmado, mas fora do campo de visão.

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Desta forma, a voz de Buscapé constrói a complexidade psicológica necessária para romper a essência do estereótipo. A sua narração assume uma perspectiva também explicativa diante dos motivos e conseqüências dos acontecimentos da Cidade de Deus, resultando em diversos flashs-backs. A história está dividida em dois períodos que são caracterizados pela fotografia: nos “Anos 60”, no processo da formação da favela, utiliza-se cores pastéis e a luz estourada amarela, tanto nos objetos cênicos quanto no cenário, um local em construção, com estrada de barro; já nos“Anos 70”, quando o tráfico se instaura no local, prioriza-se a luz excessivamente azul, e os objetos e o cenário aproximam-se do cinza e do azulado.

As transições temporais da narrativa resultam no ritmo frenético da montagem, construída também pelos cortes de diversos planos de uma mesma ação. Logo no início do filme, somos apresentados a diversos planos fechados e em flashs, na festa da laje: a faca amolando, o toque do cavaquinho, a faca amolando, pés que sambam, na palma da mão, a faca amolando, a galinha sendo despenada, o toque do pandeiro, a fuga de uma galinha, a corrida pela galinha, tiros e... a imagem congela. Grupo armado do traficante Zé Pequeno de um lado, e do outro a polícia, entre eles está o Buscapé e sua câmera fotográfica. A zona de confronto, presente nesta cena, reincide a todo o tempo na estrutura narrativa do filme, a partir dos anos 1970 a favela se transforma em um verdadeiro campo de batalha, com espaços demarcados. Em todo momento, o personagem Buscapé está entre essa zona, entre o centro e a favela, entre os policias e os traficantes e também entre a fase infantil e a adulta. Ao exemplo da sua infância, quando conversa com Bentinho, o seu amigo, colocam em xeque as referências do local e as projeções em ocupar um espaço: “O que você vai ser quando você crescer?” - pergunta Bentinho - "Ah! não sei não, só não quero ser bandido, nem policial." - responde Buscapé. 171

A transição do infantil para o adulto é marcada também pela iniciação da vida sexual de Buscapé. É algo processual, parte do jogo da conquista, da vontade de desejar e de ser desejado, principalmente pela Angélica, a colega do colégio. Com a cobrança do seu amigo, Bentinho, Buscapé procura qualquer chance para perder a virgindade. A sua primeira relação sexual é inesperada, tornando-se naturalizada, rompe com a sexualidade insaciável e animalesca, do estereótipo nomeado “negão”. “Entre”, é um lugar instável em uma zona de perigo, vemos os personagens que buscaram sair da favela, não conseguem, o que também ocorre com a câmera, apenas sairemos do local com o narrador. Este fator pode indicar uma distância geográfica real na cidade do Rio de Janeiro, como também pode apresentar uma dinâmica de autodestruição da favela e a imobilidade determinada aos personagens. Também determinante para Buscapé, pois mesmo depois de tornar-se fotógrafo e conquistando uma ascensão social, não é possível sair. Conseguiu o cargo de fotógrafo justamente pelo acesso à favela e aos traficantes. A fotografia possibilita transitar entre os estremos da “zona”, o centro e a favela, o que pode caracterizar um olhar mais atento da sua realidade, tornar o seu local objeto alvo. O Buscapé fala no momento que está na zona de confronto - “essa fotografia poderia salvar a minha vida. Mas na Cidade de Deus sempre foi assim, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Após o conflito, registra a morte de Zé Pequeno, o que traz algumas possibilidades para uma nova manchete de jornal: expor as crianças matando o traficante, denunciar o envolvimento dos policias com o traficante, ou exibir a morte de Zé Pequeno. Nós ouvimos seus pensamentos nesse processo de escolha, avaliando as possibilidades e as consequências, por fim, seleciona a ilustrativa, Zé Pequeno morto. A favela parece mais acessível às pessoas que estão no centro, do que a possibilidade de saída da favela. Vemos circular os consumidores de cocaína, as cocotas82, os representantes do poder público, a mídia e a polícia, que “faz sua parte e não perturba”, sujeitos que se favorecem da autodestruição. O local carrega o estigma, ao exemplo do primeiro trabalho de Buscapé no supermercado, o letreiro afirma “trabalho de otário” 83 , e ele é despedido pelo gerente, por achar que Buscapé teve envolvimento com o assalto feito pelos “garotos da caixa baixa” no local.

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Termo que utiliza-se para os jovens brancos da classe média carioca. Termo que na favela referencia ao trabalhador assalariado.

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...a gente chegou na Cidade de Deus com a esperança de encontrar o paraíso, um monte de famílias tinha ficado sem casa, por causa das enchentes e de alguns incêndios criminosos em algumas favelas. A rapaziada do Governo não brincava... não tem onde morar, manda prá Cidade de Deus. Lá não tinha luz, não tinha ônibus, não tinha asfalto... mas num governo dos ricos, não importava o nosso problema. Mas como eu disse, Cidade de Deus não fazia parte do cartão-postal do Rio. (Fala do personagem Buscapé no filme Cidade de Deus de Fernando Meirelles, 2002) Em seguida, Buscapé observa na rua os traficantes Zé Pequeno e Bené se divertindo com a moto, e outro letreiro surge “caindo no crime”. Ele e Bentinho saem para assaltar, primeiro tentam um ônibus, mas reconhecem o cobrador, Mané Galinha, conversam e descem do ônibus, Buscapé justifica – “não deu, ele era legal para caramba?!” Depois, tentam assaltar a lanchonete, novamente uma justificativa – “não deu, ela era gostosa para caramba?!” Depois um carro passa, um paulista pede informações, Buscapé pensa – “Nesse momento eu pensei, aquele paulista vai dançar?!” Não consegue assaltar e novamente justifica - “Ele era paulista, mas era legal pra caramba?!”

Buscapé traz uma gama de elementos que permite romper com o papel do estereótipo. Mas, ao colocarmos no jogo dramático, junto aos outros personagens centrais, ele quase desaparece em cena, o que assume é o personagem mais violento, o mais marcante para o público, – “Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno, porra!”. Este personagem é construído na primeira cena da festa na laje, em plano próximo, câmera lenta demarcando a ação e expressão do personagem, posicionada em contra-plongée, o ângulo engrandece. O personagem é apresentando antes mesmo das suas ações, criando um aspecto de poder e superioridade. 173

Zé Pequeno é animalesco no seu prazer em matar, desde criança, é intrínseco ao personagem, algumas ações até demonstram a possibilidade de quebra deste engessamento, mais são muito pontuais. Ao exemplo, no baile quando convida a garota para dançar e ela diz já estar acompanhada, em um plano parado acompanhamos sua face, fica olhando para um lugar qualquer. Possui duas forças “essencialmente” opostas no filme, o Zé Pequeno e o Buscapé, ou seja, ocupam representações extremas.

Fade out: “no caminho do bem?” Rebobinando um pouco, retornaremos aos personagens do filme, quase todos são interpretados por jovens atores negros, pessoas desconhecidas pelo público, o que chamamos de não-atores. A utilização de não-atores é marcante também no Neorealismo, que através desta escolha, buscavam trazer veracidade nas suas obras de denúncia da situação do país no pós-guerra, fazendo jus ao posicionamento político dos cineastas. Neste filme, segundo o diretor Fernando Meirelles, “a ideia de ter caras desconhecidas é justamente para tirar esse filtro do espectador que se relacionava direto com ator. Agora é direto com o personagem. E poder trazer a verdade que eu queria nesse filme”, neste caso possui o mesmo propósito de veracidade mais com intensões de revelar o “Brasil” desconhecido pela classe média. A veracidade está no nome do filme, que nos remete a uma comunidade existente e já marginalizada também pela mídia, conjunto a outros elementos. A voz de Buscapé é uma delas, o fato de ser uma voz de dentro também contribui para legitimar o fato. Outra questão é a prisão de Mané Galinha, quem anuncia é um famoso jornalista da globo em uma imagem de arquivo, o que também nos remete a existência de um documento. Por fim, o filme e a sua cartela - “Baseado em histórias reais”- e prossegue com os créditos do filme, construído com a foto e o nome dos atores, com as respectivas fotografias das pessoas que interpretaram.

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O filme não apenas alcançou uma grande repercussão, como também trouxe consequências para a comunidade retratada. “Pior, estereotiparam como ficção e venderam como verdade.”, no artigo “a bomba vai explodir?” diz o rapper MV Bill, morador da Cidade de Deus. Ele levanta algumas questões, como o fato do filme aumentar o estigma do local e dos seus moradores, que já o carregam. Partindo para o campo da representação, a construção representa socialmente, compreendendo o valor dos discursos das imagens e de como podem interferir na realidade e o estigma é uma delas, além da forte repressão policial no local após o filme. “O que realmente está em jogo na representação, não é a verossimilhança, mas o fato dos filmes serem ficção não impedem os efeitos reais sobre o mundo” (STUART; SHOHAT, 2006, p.262). Não se refere ao mundo, mas representa sua linguagem e discurso. Em vez de refletir diretamente o real, ou mesmo refletir diretamente o real, o discurso artístico constituia refração de uma refração, ou seja uma versão mediana do mundo sócio ideológico que dá é texto e discurso. ( STUART; SHOHAT, 2006, p.264) A favela, assim como o sertão, já é um cenário bastante “desbravado” pelas câmeras, na análise de Ivana Bentes84, o cinema brasileiro assume perspectivas muito diferentes destes cenários em dois momentos marcantes, de um lado o Cinema Novo e do outro o da Retomada. Segundo a autora, o Cinema Novo (como pode se comprovar com o manifesto “Estética de fome” de Glauber Rocha), terá como propósito expor nas

5 Bentes, Ivana. Sertões e favela no cinema brasileiro contemporâneo: estética da fome e cosmética da fome. ALCEU- v.8 – n.15 – p.242 a 255 – jul./dez.2007

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telas as disputas de classes, a concepção marxista dos jovens da classe média brasileira, com intuito de conscientização de um povo para emancipação do "colonizado". Enquanto que nos filmes do Cinema da Retomada, iniciado nos anos 1990, especificamente o filme “Cidade de Deus”, a câmera irá sobrevoar esses espaços e mostrar a violência em um papel reduzido nela mesma, apresentada de forma espetacular aos olhos de quem vê, a partir também da montagem comparada à montagem de videoclipe e ao gênero de ação do cinema hollywoodiano. Compreende-se que a construção do personagem Buscapé traz possibilidades de romper diversos estereótipos, mas colocando-o junto aos outros personagens centrais, deparamo-nos com a barreira do tradicionalismo, formado por personagens do bem e do mal. Buscapé assume o papel de sobrevivente, pois ele conta uma história já ocorrida, onde todos os outros personagens centrais morreram, mas a forma de representar continua. Referências bibliográficas DE, Jeferson. Dogma Feijoada. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo 2005. BENTES, Ivana. Sertões e favela no cinema brasileiro contemporâneo: estética da fome e cosmética da fome. ALCEU- v.8 – n.15 – p.242 a 255 – jul./dez.2007 NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro no cinema. 3ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. STAM, Robert; SHOHAT, Ella. Crítica a imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Filmografia Cidade de Deus (filme). Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002. 135 min. Som. Color. Brasil.

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18. ÓRUN AIYÊ – Um estudo propositivo em defesa da saúde da população negra no âmbito do Recôncavo Baiano. (Re)Conhecendo a questão do racismo institucional e as vulnerabilidades em saúde da população negra do Recôncavo. Leidy Anne dos Santos Alencar 85 O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre as desigualdades étnicoraciais no Sistema Único de Saúde-SUS, abordando a questão do acesso e da utilização dos serviços de saúde pela população negra oriunda do Recôncavo da Bahia. A pesquisa surge a partir da necessidade de problematizarmos e estabelecermos ações de enfrentamento ao chamado racismo institucional, o qual se manifesta de maneira discriminatória e o seu resultado é o oferecimento de um serviço de saúde desqualificado. Dessa forma, é notório que há um grande desafio pela frente e que o direito à saúde na sociedade brasileira não depende apenas de infra-estrutura, mas também do combate às intolerâncias e à discriminação no intuito de prevenir, identificar e eliminar o chamado racismo institucional para a construção de estratégias eficazes que sejam promotoras da eqüidade em saúde. Palavras Chaves: Saúde, População Negra e Racismo Institucional.

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E-mail: [email protected], discente do Curso de Serviço Social- 5º período CAHL/UFRB, voluntária do projeto de pesquisa Orun Aiyê: um estudo propositivo em defesa da saúde da população negra no âmbito do Recôncavo Baiano. Telefones: 75- 8809-9003/3622-0681. Profa orientadora: Valéria Noronha.

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INTRODUÇÃO O presente artigo emerge a partir das reflexões estabelecidas no projeto Orun Aiyê: um estudo propositivo em defesa da saúde da população negra no Recôncavo da Bahia vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Violência, Gênero, Raça/Etnia Maria Quitéria do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da BahiaUFRB. O trabalho pretende suscitar um debate acerca do racismo institucional e também sobre as condições de atendimento existentes no sistema de saúde e formas de prestação do cuidado à população negra da região. Tendo como principio fundamental que no Brasil, a Constituição de 1988 legitima o direito de todos, sem qualquer discriminação, às ações de saúde, assim como explicita o dever do poder público em prover pleno gozo desse direito, o debate exposto busca elucidar uma prática de saúde ética, que responda não a relações discriminatórias, e/ou de exclusão, mas a efetivação de direitos humanos tais como: a universalidade que consiste na garantia de atenção à saúde a todo e qualquer cidadão e a eqüidade, ou seja, direito ao atendimento adequado às necessidades de cada indivíduo e coletividade. É importante salientar que a discussão a respeito das discriminações étnico/raciais em instituições está relacionada à uma série de outros temas transversais que serão abordados brevemente no decorrer desse artigo, para uma melhor compreensão do tema proposto. SAÚDE PÚBLICA X RAÇA/ETNIA Os anos 80 foram decisivos para o Brasil, pois é a partir dessa década que a história do país é marcada por uma série de mudanças no panorama político e social principalmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e é justamente nesse período que a saúde passa a ocupar um espaço de grande importância na agenda pública, pois é nesse momento que é constituído a lei 8080/90, onde é implantado o Sistema Único de Saúde – SUS, que recebe o desafio de atender universalmente a todas as necessidades de saúde da população. Entretanto é importante ressaltar que mesmo com a conquista social da implantação do SUS, vários impasses surgiram e surgem até hoje no sistema de saúde público gerando com isso uma expressiva ineficácia do sistema, exigindo do mesmo intensas mudanças na ordem político-administrativa. Á questão da saúde no Brasil acompanha o contexto de vida da população. E é devido aos vários problemas enfrentados pelo sistema, que muitos segmentos sociais 178

organizados insatisfeitos com as iniciativas do governo pressionam o Estado a assumir a postura de ativos na busca da melhoria das condições de saúde e a conquista enquanto direito gratuito e universal, um exemplo disso é o Movimento Social Negro 86 que tem como uma das principais pautas a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e a discriminação racial nas instituições e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), referente a esse aspecto Chor e Lima apontam que: É possível que a ascensão do movimento social negro e o debate sobre políticas de promoção da igualdade racial no Brasil contribuam cada vez mais para diminuir “tendências branqueadoras” de autoclassificação étnico/racial.(Chor e Lima, 2005)

É importante salientar que o Brasil é o país que possui em sua formação o maior contingente de negros fora do continente africano e ainda assim é perceptível o alto índice de preconceito e discriminação aos afrodescendentes, diante disso a declaração da Unesco sobre Raça e os Preconceito Raciais, apontam que: [...] o racismo manifesta-se por meio de disposições legais ou regimentais e por práticas discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos anti-sociais; impede o desenvolvimento de suas vítimas, perverte quem o pratica, divide as nações internamente, constitui um obstáculo para a cooperação internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrario aos princípios fundamentais do direito internacional e, por conseguinte, perturba seriamente a paz e segurança internacionais. (UNESCO, 1978)

Este conceito aponta que as iniqüidades raciais refletem-se de maneira negativa na vida da população negra e são decorrentes de condições históricos institucionais que moldaram a situação do negro na sociedade brasileira e isso tem rebatimentos significativos nos serviços de saúde do país, muitos estabelecimentos de saúde oferecem diferentes formas de atendimento, que podem se refletir tanto na qualidade do serviço prestado, como na forma que é prestada a assistência, sobre esse aspecto CHOR e LIMA esclarece que: 86

É o nome genérico dado ao conjunto dos diversos movimentos sociais afro-brasileiros, particularmente aqueles surgidos a partir da redemocratização pós-Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro e São Paulo. In: INSTITUTO AMMA PSIQUÉ E NEGRITUDE.

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As evidências empíricas já acumuladas a respeito das amplas desigualdades étnico-raciais no Brasil, a atuação dos movimentos sociais organizados e o amplo debate a respeito do tema vêm resultando em gradual desmistificação da idéia de “democracia racial87” no Brasil.(Chor e Lima, 2005) É possível perceber que dentre as inúmeras dificuldades que norteiam as discussões sobre saúde da população negra estão: as questões da morbidade 88 e mortalidade nessa população e o racismo como determinante no acesso aos serviços de saúde.

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Democracia racial é um conceito criado no Brasil a partir do pensamento em vigor na década de 30 do século XX e quem tem como principal referência o pensamento do sociólogo Gilberto Freyre. Na perspectiva deste conceito, o Brasil seria um modelo de democracia onde a convivência entre negros, brancos e indígenas se desenvolveria sem conflitos, a partir das trocas afetivas e culturais desenvolvidas ainda no período escravocrata. Ao longo do século passado o conceito de democracia racial foi utilizado amplamente pelas elites nacionais (os brancos) como contraposição às afirmativas da população negra e seus movimentos sociais da vigência do racismo nas relações sociais no país e as lutas por transformação social . Após décadas de mobilização negra, a noção de democracia racial foi derrubada (porém não totalmente), podendo o país, através da palavra de seu Presidente da República, em respostas à Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, Pela Cidadania e Pela Vida, em discurso de posse do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (1995) afirmar o Brasil como uma sociedade racista. A partir daí, se intensifica o desenvolvimento de políticas públicas para o combate ao racismo no país.

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Morbidade é a capacidade de determinado germe ou agravo/acidente produzir doença e/ou seqüela em um indivíduo ou em um grupo de indivíduos (MORBIDADE, 2000).

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RACISMO INSTITUCIONAL E SEUS DESDOBRAMENTOS Um dos maiores desafios enfrentados pelos afrodescendentes ao longo de sua história, especificamente no Brasil, é a luta por uma melhoria nas condições de vida e de saúde que tenha como princípios básicos: a universalidade, a integralidade e a equidade. Apesar dos avanços no campo da saúde, as desigualdades e discriminações étnico-raciais ainda persistem no âmbito dos serviços e essas atitudes discriminatórias são conhecidas como Racismo Institucional.

O Racismo Institucional manifesta-se em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de trabalho resultantes de ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. (PNUD/DFID, 2005 apud AMMA PSIQUÉ E NEGRITUDE, 2007, p. 15)

Esse conceito aponta que o racismo institucional configura-se na prática discriminatória dos sistemas de trabalho, direito, saúde, economia, educação, política e moradia. Basicamente, essa forma de racismo é a institucionalização de crenças racistas individuais. Se há conseqüências racistas das leis, das práticas ou dos costumes institucionais, a instituição é racista, independentemente do fato de os indivíduos que mantêm tais práticas terem ou não intenções racistas, e o resultado dessas atitudes comprometem o atendimento nesses sistemas de saúde, resultando no oferecimento de um serviço desqualificado, que não atenda de maneira a respeitar a todo ser humano independente de sua etnia ou classe social. O racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições organizadas. E tal situação requer enfretamento cotidiano e atuação incansável de todos e todas comprometidos (as) com a luta anti-racista. Dados recentes colocam grandes questões a serem enfrentadas pelo Sistema Único de Saúde, pois as iniqüidades indicam a existência de racismo institucional operando no interior do sistema, isso é confirmado quando analisamos que “as desigualdades quanto à saúde e à assistência sanitária dos grupos étnicos e raciais são óbvias e que, das explicações de tais desigualdades, o racismo é a mais preocupante” (Organización Mundial de la Salud, 2001, p. 7). Um exemplo disso é que segundo 181

estudos empíricos realizados por autores como Martins & Tanaka, em 2000, identificaram taxas de mortalidade materna mais elevadas entre negras. Em 2001, Barbosa mostrou que os coeficientes de mortalidade geral são mais altos entre negros, Cunha, encontrou maior mortalidade infantil e Werneck maior mortalidade por HIVAids, os institutos de pesquisas como o IBGE89 e o PNAD90 constataram que crianças negras com até 5 anos têm 60% mais chances de morrer por doenças infecto-parasitárias do que crianças brancas. De cada mil bebês brancos, 23 morrem antes de completar um ano entre os negros, este número sobe para 40. Mulheres negras são menos anestesiadas durante o parto do que as mulheres brancas da mesma faixa etária e condição social e morrem aproximadamente três vezes mais ao dar à luz. A AIDS chega a matar três vezes mais negros que brancos e a expectativa de vida da população branca brasileira está na casa dos 74 anos, ao passo que a da negra está em 67. Ainda que o debate seja recente e não existam muitas informações sobre esse tema na PNAD, tais desigualdades são ilustradas, aqui, por meio da análise da proporção de mulheres, segundo cor/raça, que realizou exame clínico de mamas, mamografia e preventivo de câncer de colo de útero os dados comprovam que 36,4% das mulheres brasileiras com 25 anos ou mais nunca haviam sido submetidas ao exame clinico de mama, sendo deste percentual 46,3% de mulheres negras. Com o exame de colo de útero não foi diferente: 20,8% das brasileiras não realizaram o exame, sendo a proporção de 17,3% entre brancas e 25,5% em relação às mulheres negras. Pode-se considerar, portanto que as desigualdades raciais nas condições de saúde da população permanecem sendo uma problemática e que os resultados dessas pesquisas estão diretamente ligados ao racismo institucional. Desta forma, é preciso pensarmos na realidade do Recôncavo, especialmente as especificidades do sistema de saúde e suas formas de prestação da assistência no que diz respeito ao acesso e utilização dos serviços de saúde. Pensar o Recôncavo é pensar na saúde da população negra, uma vez que, a maioria da população da região é negra. Sabemos que a Política Nacional de Saúde da População Negra é concreta mas é necessário acompanharmos a sua implementação e efetivação nos diversos níveis de atendimento no sentido de garantirmos a eqüidade e uma melhor qualidade nos serviços de saúde. 89

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

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Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Os dados apresentados nesta seção são oriundos dos suplementos da PNAD de 1998 e 2003, que foram especificamente voltados ao tema Saúde. Cabe destacar que para algumas das informações não se dispõe de dados comparativos no tempo, uma vez que determinadas perguntas somente foram coletadas na PNAD de 2003.

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CONCLUSÃO Em síntese é possível identificar que a problemática do racismo no território brasileiro é algo que se arrasta há mais de 300 anos de nossa história, e a associação entre raça e saúde no Brasil decorre de uma realidade muito concreta, confirmada por estudos e pesquisas que atestam desigualdades sofridas pelos negros na proteção à saúde e que dentro desse contexto o debate acerca do Racismo Institucional se faz necessário e permanente. O enfrentamento ao racismo não se faz apenas com a criação de leis e órgãos de proteção mas também com a implementação de políticas afirmativas sérias que avancem no sentido de que a ação dos profissionais e das instituições de saúde deve ser voltada para uma assistência digna e igualitária. È importante destacar apesar dos(as) profissionais entenderem os agravos causados pelo racismo, ainda é um desafio que os (as) mesmos (as) compreendam que a categoria raça é um determinante social da saúde da população negra e que é preciso entender a saúde da população negra em suas especificidades. De fato a questão do Racismo Institucional é uma realidade que requer enfrentamento e uma atuação conjunta de um Estado efetivo com uma sociedade ativa e fortalecida na busca de ações de valorização da pessoa humana, de maiores investimentos na formação e capacitação dos sujeitos envolvidos no sistema de saúde com ênfase nos determinantes sociais da saúde, entendendo que a saúde é perpassada pelas intersecções de raça, gênero, classe social, orientação sexual, entre outras, e que no atendimento é preciso garantir o respeito à diversidade e as especificidades.

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BIBLIOGRAFIAS: ANVISA - AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Doença falciforme: manual do agente de saúde. Disponível em: . Acesso em: 27 ago. 2011. CHOR, Dóra

e

LIMA, Claudia Risso de Araujo. Aspectos epidemiológicos das

desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública [online]. 2005, vol.21, n.5, pp. 1586-1594. ISSN 0102-311X. CONSTITUIÇÃO DE 1988: Texto Constitucional de 5 de outubro de 1988. Brasília; Ed. Atual. 1988. Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1988, 336p. INSTITUTO AMMA PSIQUÉ E NEGRITUDE. Identificação e Abordagem do Racismo e Institucional. São Paulo: Impresão oficial, 2007. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA - IPEA (2007) Boletim de Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise nº 13, Edição Especial, Brasília: IPEA. FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio século XXI Dicionário Aurélio eletrônico: século XXI versão 3.0. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. CD-ROM NA PRATICA, Jornal laboratório do IESB. em 09/06/2008> Disponivel em http://www.iesb.br/moduloonline/napratica/?fuseaction=fbx.Materia&CodMateria=322 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais.1978 Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/UNESCO Acesso em: 27 ago. 2011. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO – PNUD (2005) Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005: Racismo, Pobreza e Violência, Brasília: PNUD Brasil. ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD. Salud y ausencia de discriminación. Ginebra, 2001. Documento de la OMS para la Conferencia Mundial Contra el Racismo, la Discriminación Racial, la Xenofobia y las Formas Conexas de Intolerancia. (Serie de publicaciones sobre salud y derechos humanos, 2).

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SOUZA, Arivaldo Santos de. Ações afirmativas: origens, conceito, objetivos e modalidades. Jus Navigandi. Teresina, ano 12, n. 1321, 12 fev. 2007. Disponível em: . Acesso em: 26 ago. 2011 WERNECK, Jurema. Incorporação das dimensões de gênero e de igualdade racial e étnica nas ações de combate à pobreza e à desigualdade. Rio de Janeiro. 2006. Disponível em http://www.amnb.org.br acesso: 27 de ago. 2011.

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19. A música na obra de João Moreira Salles: análise e percepções. Luara Dal Chiavon91 Resumo: A partir da análise da obra do documentarista João Moreira Salles, pretendese apresentar a poética musical inquieta que compõe seu trabalho, conferindo assim um papel de extrema importância da música em seus filmes, tanto na estrutura narrativa quanto nos efeitos estéticos e emocionais programados. Visto que o referido cineasta possui uma obra heterogênea e ao mesmo tempo autoral, com filmes sobre diferentes personagens apresentando distintas formas de abordagem.

Introdução João Moreira Salles pode ser considerado um dos grandes documentaristas que temos na cena cinematográfica brasileira contemporânea. Sua obra que consistiu inicialmente em séries para a TV, desde 1999 com Notícias de Uma Guerra Particular pode se revelar para o cinema. O cineasta produziu quatro obras de formatos distintos mas que mantiveram seu caráter autoral mesmo com as suas diferenças: João Moreira Salles fala sobre a guerra do tráfico no Rio de Janeiro, faz cinema-direto num filme sobre o primeiro operário que virou presidente na história do país, nos conta a cerca da sua relação com o mordomo que trabalhou anos em sua casa, narra, ainda que de forma silenciosa, a vida de um dos grandes pianistas brasileiro. Apesar da diversidade temática e de forma ele continua mantendo uma veia autoral forte, que pulsa na tela. E a música é um dos recursos que ele utiliza para construir obras tão profundas e tão diretas. Nesse sentido em cada filme que realiza a música é apresentada de uma maneira e trabalhada de acordo com que o filme solicita.

91 Estudante de Cinema e Audiovisual. (71) 8632 0971 - [email protected]

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O documentário e os usos da Música São poucos os autores que discutem a relação entre cinema e música no Brasil, menos ainda aqueles que analisam essa questão no documentário. Então, muitas vezes partimos de um campo de análise repleto de “achismos”, tanto em relação a música, como em relação ao documentário. Primeiramente o achismo principal em relação ao documentário é que ele possuí uma verdade imanente, representante fiel da realidade. Não por acaso que a maioria dos autores brasileiros que tratam de documentário falam de sua ontologia, mas afinal... o que é documentário? Não apenas um livro de Fernão Pessoa Ramos, essa questão perpassa-se na obra de muitos autores e está presente desde o início das discussões a cerca do tema. Em se tratando das questões sobre a música no cinema, não são poucos os autores e “sensos-comuns” que acreditam que o som esteja necessariamente a serviço da imagem no cinema. Na realidade podemos designar isso, segundo Michel Chion, como valor acrescentado. Por valor acrescentado, designamos o valor expressivo e informativo com que um som enriquece uma determinada imagem, até dar a crer, na impressão imediata que dela se tem ou na recordação que dela se guarda, que essa informação ou essa expressão decorre «naturalmente» daquilo que vemos e que já está contida apenas na imagem. E até dar a impressão, eminentemente injusta, de que o som é inútil e de que reforça um sentido que, na verdade, ele dá cria, seja por inteiro, seja pela sua própria diferença com aquilo que se vê. (pág. 12, 2008) Ou seja, o som também é produtor de sentido e ali está muito mais do que mero acompanhante da imagem. Ao reconhecermos seu real papel no cinema, inúmeras possibilidade surgem para que possamos analisar melhor essa questão que, ainda não se faz presente da maneira como deveria ser, devido a sua importância. Ao compreendermos o papel do som, e portanto, também da música, nos documentários possamos construir análises mais profundas e menos baseadas em sua ontologia e mais na riqueza de sua linguagem.

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A música na obra de João Moreira Salles De quatro formas distintas, assim como o número de filmes que realizou João Moreira trabalhou com a música em seus filmes, respeitando cada modo de fazer que dizia a respeito aquela realidade. Em Notícias de Uma Guerra Particular (1999, 57') juntamente com Kátia Lund, o autor utiliza-se da música para apresentar personagens e reforçar sentidos através da relação música-imagem-cena. Em Santiago (2007, 107') a música é fundamental no processo de construção dos personagens no filme. Tanto Santiago, quanto o diretor-narrador tem a música como base e forma para a construção de seus personagens. Já em Nelson Freire (2004, 103') o próprio documentário exala música por se tratar da história de um dos maiores pianistas que o Brasil já teve. Mas o que nos impressiona é que o que mais nos revela sobre o pianista, aquilo que mais “conta a história” é o próprio silêncio, presente em boa parte do filme. Em Entreatos (2004, 117') música não-diegética não é utilizada pelo diretor. Trata-se de um documentário que se aproxima do cinema-direto, com a câmera acompanhando o candidato a Presidência da República, Lula em seus últimos dias de campanha, mas que possui música, de forma diegética em cinco pequenas aparições. Em sua filmografia, Moreira Salles mantêm uma estrutura muito similar em suas obras, divididas através de capítulos que nos são explicitados através de cartelas, estrutura e organiza de forma sistemática seus filmes, contribuindo assim para a construção de um discurso claro e sólido. Notícias de Uma Guerra Particular: construindo emoções. Notícias de Uma Guerra Particular, filme dirigido por João Moreira Salles juntamente com Kátia Lund, é um marco da forma como o cinema irá abordar a questão do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Assim como nos afirmam Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, (…) e antecipa problemas que serão retomados em filmes da década seguinte, tais como Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund, Quase dois irmãos (2004), de Lúcia Murat, e Tropa de Elite (2007), de José Padilha. É como se o documentário estabelecesse um pano de fundo, destrinchasse os mecanismos da violência e se apresentasse como síntese de uma situação com a qual

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todo filme realizado nas periferias e morros do Rio teria, dali para frente, que se confrontar – ainda que na forma de recusa. (2008) Em quase uma hora de filme, os autores abordam a questão do tráfico sob a ótica a partir de três lócus: o policial, o traficante e o morador. A apresentação do documentário se dá, inclusive, com a apresentação desses três lados da questão. Porém temos ainda a participação do escritor Paulo Lins, compondo a clássica figura do intelectual que problematiza a questão e do delegado da polícia civil Hélio Luz, que exerce um papel muito próximo ao do intelectual. Inclusive, é o próprio escritor que também se inclui nessa posição, quando logo no início do filme falando dos conflitos nas favelas, diz “Não chegava aqui, não atravessava o túnel, a violência não atravessava o túnel”, colocando-se claramente no lugar do outro. A partir dessa estrutura narrativa, pode-se compreender que a forma que os autores estruturam o documentário, de acordo com Bill Nichols, próximo ao modo expositiva, ou seja, enfatiza o comentário verbal e uma lógica argumentativa (pág. 62, 2005). Mas, também podemos analisa-lo como um documentário que se aproxima do modo participativo, onde a filmagem acontece em entrevistas ou outras formas de envolvimento ainda mais direto. Frequentemente, une-se à imagem de arquivo para examinar questões históricas (pág. 63, 2005). Sendo assim, é possível ouvir as perguntas que o/a diretor/a fala em 18 momentos presente no filme, se mostrando clara a presença deles em cena. A música assinada por Antônio Pinto (trilha) e Adão Xalebaradã (música adicional), aparece de forma diegética e não-diegética, ou de acordo com Michel Chion, Chamaremos música de fosso àquela que acompanha a imagem a partir de uma posição off, fora do local e do tempo da ação . (…) E chamaremos música de ecrã àquela que emana de uma fonte situada direta ou indiretamente no lugar e no tempo da ação (…). Ela aparece pela primeira vez no filme logo nos três primeiros minutos iniciais, quando o traficante se apresenta, um dos internos de um centro para menores canta um funk sobre a própria condição deles. Logo em seguida, quando “o morador” se apresenta, a primeira imagem que temos da família que representa esse segmento (o morador enquanto personagem, enquanto fala coletiva), são eles cantando uma música de origem africana, um Ijexá entoando Iemanjá. Nessas duas ocasiões a música perdura para além da imagem, não vemos apenas o interno e os moradores cantando, há imagens de apoio que ilustram aquilo que cantam. Sendo assim, os diretores se utilizam da música, entoada pelos próprios personagens para se apresentar, para serem apresentados ao 190

espectador, no caso do interno, que ali representa o tráfico, o funk/rap e no caso da família da menina Luanda, que ali representam os moradores da favela, um Ijexá. Já a música de fosso está presente durante todo o documentário em diversos momentos. Ela se faz presente no primeiro capítulo, aos oito minutos e se estende até o início do segundo capítulo, praticamente durante seis minutos. Ela inicia-se na fala do escritor Paulo Lins, que dá um panorama geral da situação do tráfico de drogas a partir de um ponto de vista histórico, em seguida vem a entrevista com “O Gordo”, um dos fundadores do Comando Vermelho (fundado na década de 1970, quando presos políticos da Ditadura Militar passaram a compartilhar cela com presos comuns), com homens presos que fazem parte do Comando Vermelho, em seguida vem a fala de Adriano (o traficante que representa o ponto de vista do tráfico no filme), dos moradores Janete, Adão e Luanda e finalizando o capítulo algumas crianças. Durante a fala de todas essas pessoas, que problematizam a questão, a música está presente, essa mesma música se fará presente em outros momentos do documentário. Ela prioriza tons agudos e dissonantes, mas ao mesmo tempo é cíclica, o mesmo conjunto de notas se repetem várias vezes durante esses seis minutos. Ela gera um clima de tensão, chamando a atenção do espectador para aquilo que está sendo dito, justamente no momento em que “os personagens” já nos foram apresentados e a questão está sendo-nos apresentada a partir de um ponto de vista mais histórico-sociológico. Segundo Michel Chion, um som muito rico em frequências agudas criará uma percepção mais alerta – o que explica que, em muitos filmes recentes, o espectador esteja de sobreaviso (2008), claramente aquilo que o Moreira Salles e Kátia Lund escolhem para esse momento. Aos vinte e seis minutos do filme, no capítulo intitulado A Repressão, a música novamente se faz presente. Logo após a fala do chefe da Polícia Civil do RJ, Hélio Luz afirmar que a polícia é uma polícia corrupta e que exerce uma política de repressão, inicia-se o depoimento dos moradores sobre os abusos da polícia, enquanto as imagens mostram a polícia prendendo um morador e várias mulheres atrás deles para que leve o homem para a delegacia, e não que suba o morro numa região de mata isolada. Em voz off a moradora narra a situação, ilustrada pelas imagens, onde as mulheres “tem que ir atrás, entendeu? Pra evitar que aconteça qualquer coisa. Nessas alturas você imagina que o garoto pode tá sofrendo alguma agressão ou alguma execução”. Em seguida, continua o depoimento do delegado Hélio Luz, problematizando a cerca do papel da polícia na sociedade, afirmando que esta é uma polícia política, que tem como objetivo 191

manter a sociedade injusta, pois não é interessante para uma elite, que a polícia aja de acordo com a lei, pois ela seria prejudicada. O que se confirma nas próximas duas falas, de Adriano, o traficante e de um soldado do BOPE responsabilizando as classes mais altas que consomem e mantêm o tráfico. Durante esses mais de sete minutos uma música instrumental grave, praticamente de uma nota só, problematiza aquilo que está sendo dito. Nesse momento, as afirmações de Hélio Luz, são contundentes, é o chefe da polícia civil do estado do Rio de Janeiro que afirma que a polícia é uma polícia corrupta, e que ela é assim para manter a sociedade como está. Grande parte desse capítulo é apenas o depoimento do delegado. A música acompanha e induz o espectador novamente em um clima de tensão, o tom grave e alguns acordes dissonantes que se faz presente na música reforçam esse discurso. A música reaparece no próximo capítulo, As Armas. Alguns minutos depois do capítulo ter iniciado, ouvimos novamente a música apresentada no capítulo anterior, grave com algumas notas dissonantes. Ela dura pouco mais de quatro minutos, adentrando outro capítulo, A Desorganização. Pouco depois de iniciar esse novo capítulo, temos uma mudança na música, que se faz intermitente. É a mesma música que aparece no primeiro capítulo, com tons mais agudos, mais notas, mais dissonante, composta com mais instrumentos, violino e piano. A fala nesse momento assume um tom de desesperança, desde um presidiário que afirma que quando sair da prisão vai continuar cometendo crimes, até o delegado Hélio Luz, falando que o tráfico é um caminho curto e Adão, o morador afirmando que as organizações criminosas já perderam seu cunho social, assim como pregava o início do Comando Vermelho. Ela só reaparecerá no último capítulo, O cansaço. Ela começa como música de ecrã/diegética e torna-se música de fosso/não-diegética, é uma marcha fúnebre tocada pela banda da polícia militar no enterro de um PM morto em conflito. Paralelamente temos o enterro de um menino do tráfico, que foi morto pela PM, nesse momento não temos mais a presença da música. E as imagens se intercalam, a música aparecendo em apenas um enterro e sumindo no outro, enquanto temos alguns depoimentos. O documentário é finalizado com a imagem do túmulo do garoto morto pela polícia e vários nomes de pessoas que morreram decorrentes dos conflitos vão ocupando a tela, enquanto a música utilizada nos capítulos iniciais e no capítulo A desorganização: aguda, dissonante, desesperançosa, assim como é construído o discurso de Notícias de Uma Guerra Particular.

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Mesmo sendo utilizada em boa parte do documentário, a música nesse caso, adota postura semelhante aos filmes hollywoodianos clássicos, feita para produzir sentido, mas não para ser ouvida, ou percebida. Muitas vezes o espectador nem se dá conta do momento em que ela surge, diferentemente da forma como é trabalhada em Santiago, como veremos posteriormente. Nelson Freire: música e silêncio. Nelson Freire é um documentário sobre um dos principais pianistas brasileiro, portanto, também é um documentário sobre música. A maneira como aborda o tema, escolhido por Moreira Salles nesse momento, é, segundo Bill Nichols próximo ao modo observativo, ele acompanha por um longo período de tempo a vida de Nelson Freire, desde suas apresentações pelo mundo até sua amizade com a pianista Martha Argerich. O modo como ele opta por abordar e construir o documentário, sem dúvida interfere na forma como a música é trabalhada. Antes de fazer essa pequena análise, quero aqui ressaltar, a dificuldade de compreender os usos da música em um documentário sobre música, este, inclusive não é o foco da pesquisa. Por uma questão óbvia, a forma como o diretor trabalha com a música não pode estar separada da maneira como escolhe realizar o filme. Por isso, mais que falar da música, quero chamar a atenção para o silêncio. A capacidade de observação do cineasta, e o período de tempo que ele acompanhou Nelson Freire, faz com que o silêncio ganhe uma dimensão muito grande e simbólica, ele nos apresenta Nelson Freire com sua música e seu silêncio. O silêncio narra. Assim como também nos fala Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, O princípio de acompanhar indivíduos durante um certo tempo lhes confere uma existência cinematográfica que não se restringe ao que eles possam eventualmente dizer. E talvez os limites de uma interação mais direta com os personagens, na obra do cineasta como um todo, tenham tido como contrapartida uma intensificação da atenção ao mundo: seus filmes exibem uma capacidade de observação incomum no documentário brasileiro (pág. 34, 2008) Dessa maneira, mais do que suas brilhantes músicas executadas em longos planos, nos mostra

genialidade do grande pianistas, mas o homem nos é apresentado através

daquilo que não foi dito, nem tocado.

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Entreatos: tímida, porém presente. Entreatos, é o filme de Moreira Salles que mais se aproxima do cinema direto norteamericano. Acompanhando o candidato a presidência da República na época, Luís Inácio Lula da Silva, o diretor escolhe uma abordagem baseada na observação, e pretende mostrar ao espectador o Lula nos bastidores, e não o homem público. Ele deixa clara a forma de abordagem logo no início do filme, quando em voz over narra o processo de construção e suas escolhas, afirmando então, que “dos inúmeros filmes que poderiam surgir do material bruto, decidi afinal, montar aquele que privilegiasse essas cenas mais reservadas”, enquanto nos apresenta vemos imagens de um comício, onde uma multidão canta o clássico jingle “Olé, olê, olê, olá, Lula, Lula”. Assim, também, definem Consuelo Lins e Cláudia Mesquita, Em Entreatos, Salles refaz com o então candidato Lula um percurso semelhante ao de Richard Leacock e Robert Drew na campanha que elegeria John F. Kennedy candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, um filme inaugural do cinema direto americano: Primary, de 1960. Podemos classificar essa abordagem, escolhida por Moreira Salles, segundo Bill Nichols como modo expositivo, onde enfatiza o engajamento direto no cotidiano das pessoas que representam o tema do cineasta, conforme são observadas por uma câmera discreta (pág.62, 2005). Dessa maneira, a música não é utilizada como elemento construtor de sentido, o autor opta por não inserir música na pós-produção. Interessante observar, como Cláudia Mesquita e Consuelo Lins, frisam isso em seu texto, Salles inclui bem mais a equipe no filme e evita trilha sonora (pág.35, 2005). Mas, de maneira diegética, ela está presente em cinco momentos. Duas vezes podemos ouvir a música da campanha, um vez o som do carro toca uma música do Zeca Pagodinho. Temos ainda Lula cantando o Hino à Bandeira, e tentando batucar na mesa, aprendendo com Duda Mendonça. Enfim, mesmo que de forma tímida e diegética, até porque a proposta do filme é o menor nível de intervenção possível, a música se faz presente. E não por acaso, a primeira vez que ela aparece no filme é uma música que carrega uma história junto a ela, cheia de emoção, “Olê, olê, olê, olá, Lula, Lula”.

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Santiago: construindo personagens. Santiago é o filme mais maduro na carreira de Moreira Salles. A partir dessa obra, faz uma profunda reflexão sobre o fazer fílmico, sobre a relação do documentarista com que é filmado. A ideia do documentário surgiu em 1992 e treze anos após a tentativa de fazer um filme sobre o mordomo que trabalhou com sua família durante muitos anos, é que o cineasta volta a rever o material filmado. Se, partirmos da abordagem de Bill Nichols, podemos compreender esta obra, a partir de um viés reflexivo, onde os processos de negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco da atenção (pág. 162, 2005). Dentro desse documentário a música tem um papel dotado de força e presença. Ela, não é apenas executada a todo momento, como também é citada inúmeras vezes. Desde o início, quando o narrador afirma construir a primeira cena do filme com uma música dolente92, até quando Santiago cita Bach, Beethoven. A importância se faz presente, quando Moreira Salles opta por deixar a tela preta por 00:45' segundos enquanto ouvimos “O barbeiro de Sevilha”. Sendo assim, tanto Santiago, o personagem, quanto Santiago, o filme são extremamente musicais, o interessante é observar como é trabalhada a música de ecrã/diegética e a música de fosso/não-diegética. Durante as falas de Santiago, a música só aparece em dois momentos, um aos quarenta minutos de filme, quando Moreira Salles problematiza o fazer fílmico, de até aonde eles iam para encontrar o quadro perfeito, mostra Moreira Salles pedindo para Santiago repetir a mesma cena quatro vezes, há música nesta cena. A segunda cena que encontramos música com a fala de Santiago ela está servindo apenas de fusão entre as imagens anteriores, um pouco depois que ele começa a falar, a música desaparece. Portanto, a música está presente no discurso do narrador-diretor. O que nos leva a crer que é uma forma de produzir sentido construindo um discurso através da linguagem. É uma forma de nos fazer mais próximos do narrador, e toda aproximação é uma tentativa de compreensão. É o narrador-diretor que nunca está presente, sempre além da tela quer através da palavra, das imagens de apoio e através da música construir seu discurso. De maneira inteligente, Moreira Salles sistematiza seus filmes e através da música, seja presença ou ausência, constrói um forte elemento discursivo.

92 Dolente (it.) Na partitura, indica expressão: tristemente.

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Considerações Finais O fato de possuir filmes que abordam os temáticas de diferentes formas, não faz com que Moreira Salles se utilize da música de forma única, ele consegue trabalhar com ela de acordo com que cada filme solicita. De maneira brilhante e inteligente, consegue trabalhar com a música enriquecendo a linguagem fílmica, explorando as infinitas possibilidades do fazer documentário. Referências Bibliográficas COMOLLI, Jean-Louis. Ver e Poder – A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. CHION, Michel. A Audiovisão: som e imagem no cinema. Lisboa: Texto e Grafia, 2011. DA-RIN, Silvio. Espelho Partido – Tradição e Transformação do Documentário. Rio de Janeiro: Azougue, 2004. DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de Termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34, 2004. FELDMAN, Ilana. Na contramão do confessional: o ensaísmo em Santiago, Jogo de Cena e Pan-Cinema permanente.In. Ensaios do Real – O documentário brasileiro hoje. Cezar Migliorin(org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010. LABAK, Amir. Introdução ao Documentário Brasileiro. Francis, 2006. LINS,

Consuelo.

Filmar

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Sobre

o

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20. Traços Cosmológicos da África Central e a Identidade Banta na Musicalidade do Recôncavo Baiano – Um Ensaio Marcus Bernardes* RESUMO: Este trabalho foi desenvolvido sob a orientação do Professor Osmundo Pinho como parte integrante da avaliação final do componente curricular Antropologia IV relevante à discussão sobre identidade social. A escolha da temática para este ensaio envolvendo as relações entre cosmovisão e identidade justifica-se pela importância desses elementos para a construção social da música no Recôncavo Baiano, mais especificamente o Samba de Roda. Justamente por seu caráter ensaístico, o texto visa estabelecer conexões entre a construção de uma identidade banta e aplicação de referenciais (simbólicos e estruturais) da África Central na musicalidade do Recôncavo Baiano. Palavras-Chave: Identidade Banta; Cosmovisão; Gêneros Musicais Afro-Brasileiros.

Introdução Entender as construções musicais dos povos implica em perceber além dos aspectos estruturantes da Música (ritmo, harmonia, melodia), a conjuntura histórica do processo, as dinâmicas culturais e, principalmente as manifestações simbólicas “universais” da sociedade. A música podendo ser caracterizada como a exteriorização de uma unidade (bem como de uma diversidade coletivamente aceita) simbólica de determinado grupo através de sons, é percebida como um produto das relações sociais em um dinâmico permanente de ressignificações. Segundo CARVALHO (1994), o processo de criação musical envolve dois níveis, numa tensão permanente e universal. O primeiro nível se refere aos “processos semióticos de produção musical em si”. Tais elementos semióticos estão no domínio do universo simbólico dos agentes sociais; a religião vista como parte integrante da visão de mundo dos indivíduos é uma peça fundamental para entender este nível de construção. No segundo nível estão os idiomas da música, seriam os discursos sobre a música que se resumem em: o discurso dos “nativos” e os analíticos (etnomusicológicos). A produção musical envolve processos complexos entre cantores e 197

instrumentistas, contexto e o próprio “texto” musical e musicalidades e visões de mundo (PINTO; 2001). É substancialmente sobre o último processo que este ensaio versa. As fontes significantes da música encontram-se no arcabouço da cultura¹. As crenças religiosas trazem toda uma filosofia de vida que influencia diretamente os sujeitos nas formas de perceber o mundo. A religião, nesse sentido, desempenha mais do que outros elementos, um papel fundante para captar os sentidos de uma peça musical. Adotando uma perspectiva weberiana, a religião teria um alcance muito maior nas relações estabelecidas pelo grupo social sob sua influência do que outros aspectos da cultura, justamente pela sua capacidade de moldar a visão de mundo dos indivíduos. Este excerto tem uma implicação prática na conduta dos agentes sociais. A análise da mesma, que desemboca nas estruturas simbólicas (a cosmovisão), é fundamental em dois aspectos: primeiro em função de uma interferência direta na música² e, segundo nas suas ligações com a criação e desenvolvimento de identidades. Em seus estudos sobre os Deuses Orixás na África e Novo Mundo, VERGER (1997) descreve várias cerimônias onde a função musical é sine qua non para os processos religiosos. No que tange ao Novo Mundo, os atabaques são responsáveis tanto em chamar os orixás quanto em transmitir suas mensagens. No início das cerimônias de Candomblé os atabaques são tocados sem o acompanhamento da dança ou do fator melódico. A pureza do ritmo associa-se a cada orixá. O elemento melódico destaca-se em cerimônias particulares (sacrifícios, oferendas, louvores). São cânticos (em linguagem ioruba), executados sem os tambores, marcados por singelas palmas. Esses aspectos são importantes para perceber a linguagem musical atrelada aos fenômenos religiosos. No campo empírico há uma confluência do sagrado e do profano. No século XIX na Bahia, era provável que existissem distinções dos ritmos do candomblé e dos batuques. Estes (os batuques) foram expressões musicais que seriam a gênese do samba baiano e por consequência, do carioca (MUKUNA; 2006). Segundo o mesmo autor o termo batuque seria uma denominação portuguesa para samba de umbigada ou dança de roda existente nesse período, que por sua vez teria se originado (dentre outras influências) do Semba (umbigada) da região Congo-Angola. Os batuques lúdicos diferenciavam quanto ao grupo étnico executor, podendo ser distinguidos como originários do Congo-Angola ou crioulo, que possuía uma maior aceitação pelo seu status de “mais civilizado”. Tanto em Angola como no Congo, a presença do círculo na dança é fundamental. Este fato

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pode ser evidenciado num trecho do livro Contribuição Portuguesa para o Conhecimento da Alma Negra, embora seja uma visão etnocêntrica ocidental: Nada têm [...] de extraordinário, estes batuques de Angola. Os dançarinos, só homens, só mulheres, ou uns e outros misturados, formam uma roda e vão andando de lado, a passos curtos, o corpo inclinado para a frente, mexendo os quadris e batendo palmas, ritmicamente, acompanhados pelo ruído incessante dos tambores ou pelo som da marimbas. Em certos casos, uma ou duas mulheres bailam isoladas no meio da roda, mas são sempre simples os passos dessa dança elementar. O que impressiona é o ardor que os pretos põem na dança, como se ela fosse qualquer coisa de essencial. O que inspira é muito mais um sentimento religioso que a sensualidade, ao contrário do que supõem os que confundem com esta o impudor natural. Uma coisa me convence, não só da importância que os pretos dão ao batuque, mas da existência, entre eles, dum sentimento de dignidade e orgulho: é a absoluta indiferença pelos espectadores brancos. (OLIVEIRA, José Osório. Contribuição Portuguesa para o Conhecimento da Alma Negra. 1952, p.11). Assim, batuques de sentido lúdico e batuques de sentido religioso influenciavam-se reciprocamente. É fundamental perceber que no Recôncavo Baiano, a festa de Nossa Senhora da Boa Morte (segundo Verger, a Irmandade da Boa Morte foi fundada por mulheres do grupo étnico Nagô, cuja maioria pertencia à nação Kêto), é um exemplo notável de elementos católicos e dos divertimentos profanos no espaço público, no qual os batuques contavam como parte integrante no programa do evento católico (VERGER, 1997; SANSONE; SANTOS, 1997). A ideia de Nação segundo Vivaldo da Costa Lima refere-se a um “padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia fundados por africanos angolas, congos, gêges, nagôs” (LIMA; 1974; 77). A nação Kêto, desde os mais antigos terreiros da Bahia (Engenho Velho e Terreiro de Alaketu), passou a ser associado a um ideal de pureza nagô; ocorrendo no Recôncavo Baiano um processo valorativo da cultura ioruba. Estas Irmandades Negras expressavam o pacto colonial entre negros e brancos, preservando as tradições africanas, com uma estética própria e padrões de danças referentes à sua musicalidade. Para CARVALHO (2000), a maioria dos gêneros musicais afro-brasileiros está ligada a essas irmandades. A Irmandade da Boa Morte em Cachoeira é um exemplo da ligação entre religiosidade e gêneros seculares tradicionais (samba de roda). A escolha da temática para este ensaio envolvendo as relações entre cosmovisão e identidade justifica-se pela importância desses elementos para a construção social da música no Recôncavo Baiano, mais especificamente o Samba de Roda. Neste momento serão analisados os traços bantos nesta manifestação musical, embora as influências 199

iorubas (nagôs), daomeanas (gêges) – povos da África Ocidental de forma geral que criaram tais identidades no Brasil – tenham sido tão determinantes quanto; este estudo, no entanto, será desenvolvido ulteriormente. A influência lusa também não será contemplada aqui. Tal método mostrar-se-á eficaz na medida em que o estudo das particularidades envolverá comparações entre as diferentes matrizes culturais a posteriori. Elaboração de um Modelo Abstrato O mundo social empírico é complexo e polissêmico, cabe ao pesquisador estabelecer meios para torná-lo mais inteligível. Destarte o universal só pode ser contemplado pelo estudo das particularidades (DUMONT, 1992). É fato que diferentes fatores influenciaram a construção do samba na Bahia; a historiografia da colonização retrata claramente a vinda de diversos povos africanos inseridos em um universo comum, subjugados a uma cultura dominante europeia. Esta questão no plano empírico torna-se impossível de ser analisada observando o todo. É necessária inicialmente a segmentação destas influências para uma melhor compreensão do processo. Outro aspecto importante, é que entendo as manifestações musicais no século XIX na Bahia (sambas e batuques) como uma manifestação de classe social, não relacionado apenas a um grupo étnico específico. Embora a base (material e imaterial) destes sambas é ligada a referenciais africanos, ocorreu em seu desenvolvimento uma apropriação desta música pelas camadas pobres e marginalizadas da sociedade baiana (sujeitos sociais múltiplos: escravos, crioulos, alforriados, brancos pobres, mestiços, prostitutas etc.). Assim os batuques do século XIX representavam uma afronta moral e também musical aos padrões estéticos das elites baianas, fato que se comprova nas proibições oficiais desta manifestação artística já muito popular (SANSONE; SANTOS, 1997). Entretanto o objetivo deste ensaio remete a algumas influências bantas na construção musical na Bahia. A delimitação da região do Congo-Angola foi feita a partir da constatação de que esta é a origem de parte significativa do contingente africano trazido à Bahia (FIGUEIREDO; 2010). Perceber traços da cosmologia destes agentes sociais, analisando suas sociedades, sua conjuntura histórica específica poderá elucidar várias reconstruções e reinvenções destes povos na cultura baiana, no caso aqui latente os sambas e batuques do século XIX na Bahia. Tais manifestações musicais serão determinantes para o ulterior desenvolvimento dos Sambas de Roda no Recôncavo, que 200

foram adquirindo características específicas em função dos lugares sociais em que se estabeleceram, porém mantiveram aspectos universais que as legitimam a denominação de sambas de roda. Esta visão de universalidade é percebida enquanto categoria de análise, ou seja, um modelo abstrato para explicar o fenômeno cultural. Em função desta busca por perceber ligações entre fatores subjetivos de um grupo social e os reflexos imperativos na musicalidade do mesmo, tenho a hipótese de que se existe uma cosmovisão genérica³ (harmonia cósmica, forças espirituais, relações entre vivos e mortos, ciclo da vida) comum aos povos congo-angolanos que no tráfico transatlântico estabeleceram-se na Bahia; talvez tais características tenham influenciado determinadas formas genéricas (a importante função da roda no samba, ideias de circularidade, sentidos religiosos na música, determinadas performances) do Samba de Roda em sua construção social. A cosmovisão congo-angolense (povos falantes de kikongo, kimbundu e umbundu, principalmente) apresentaria uma dupla importância: uma influência mítica na música e principal referencial de criação para uma identidade banta, no movimento de diáspora África-Brasil. A Problemática da Identidade Embora a maioria dos antropólogos tenha insistido, durante o século XIX e boa parte do atual, que a unidade da África Central e Austral era apenas linguística, há razões para pensar que representantes desses povos, quando misturados e transportados ao Brasil, não demoraram muito em perceber a existência entre si de elos culturais mais profundos. (SLENES, Robert. “Malungu Ngoma Vem!”, p. 49, grifo nosso). Tais razões apontadas por Slenes, que extrapolam as similitudes linguísticas, seriam a base para compreender a construção de identidades. Para o autor este é um processo complexo ligado a acontecimentos que precedem a viagem atlântica. A identidade banta só foi possível em função de visões de mundo compartilhadas, em certo sentido, numa busca de semelhanças culturais. A identidade é um conteúdo comunicativo que orienta o desenvolvimento das relações, contendo duas dimensões: uma pessoal (individual) sujeita a interações; e um social (coletiva), onde seria o plano em que a identidade se erige. Assim, “a identidade social surge como a atualização do processo de identificação e envolve a noção de grupo, particularmente a de grupo social” (OLIVEIRA; 2003). A semelhança estrutural da linguagem (entre alguns povos, pois entre outros não existia essa unidade banto preconizada por tantos linguistas europeus) pode ter sido o veículo 201

inicial para as primeiras interações. O termo “malungo” possuindo analogias significantes em três grandes línguas (kikongo, kimbundu e umbundu) da África Central, além do sentido literal – para muitos autores: “companheiro” de barco, de sofrimento, “irmão” – apresentaria significados cosmológicos comuns aos povos falantes dessas línguas. A significação remete a outro termo: Kalunga (mar, rio). Este termo possui uma representação mental que extrapola a sua função literal e que era apreendida por estes povos como uma passagem para o mundo dos mortos. Na região Congo-Angola a cor branca simboliza a morte; enquanto os homens eram pretos (vida), os espíritos eram brancos. Assim a viagem transatlântica simbolizava uma passagem para o mundo dos mortos: o Novo Mundo. No processo do tráfico de escravos diferentes povos em suas pluralidades culturais e historicidades próprias, eram aprisionados e amontoados em um ambiente comum, numa mesma situação de desespero e medo em frente ao desconhecido, sendo brutalizados pela escravidão. Estes momentos comuns lhe conferiam uma identidade que era construída em função de semelhanças como forma simbólica de resistência. A terminologia bantu foi uma referência linguística cunhada na Europa no século XIX (SILVA, 2006), no entanto ulteriormente passou a ser designada pelos próprios africanos e descendentes como afirmação de uma identidade africana na Bahia. Assim, SLENES (1992) afirma: Se num primeiro momento, na travessia da África e do Atlântico, os falantes de línguas bantu começaram a perceber que podiam trocar ideias com outras pessoas (...), no Brasil eles se deram conta de que sua liminaridade provavelmente iria durar para sempre. (SLENES, Robert. “Malungu Ngoma Vem!”, p. 56). O estudo da problemática banto e de aspectos cosmológicos comuns aos povos da região Congo-Angola foi elaborado a partir da constatação de influências decisivas, tanto em aspectos estruturais da música quanto em significação simbólica4, da musicalidade no Recôncavo baiano. Em diversas letras5 dos gêneros tradicionais afrobrasileiros são notáveis as evocações estritamente referentes à África Central (Angola, Congo). Este desejo de retorno à África (Central), “mais do que uma referência histórica, ou espaço de fantasia para fugir das agruras do regime escravo, Angola e Congo podem ser pensados também como uma região mental” (CARVALHO; 2000). Para SODRÉ (1998), a organização formal do samba ou batuque africano “foi trazida para o Brasil por escravos originários de Angola e do Congo, principalmente”. Os mais importantes grupos populacionais desta região, segundo FIGUEIREDO (2010), são: 202

Kongo (ou bakongo, falantes de kikongo) localizado na margem sul do baixo curso do Rio Congo; Mbundu (Ambundo ou Bundu) estabelecidos ao redor da Bacia do Rio Kwanza; e Umbundu (ou Ovimbundu) no planalto Angolano. Estes dados geográficos são relativos a região do Congo-Angola pré-colonial. Ainda segundo o mesmo autor, nos três primeiros séculos de tráfico de escravos para o Brasil, os principais grupos eram da referida região. VERGER (1997) afirma que até aproximadamente o final do século XVII, “no tocante à Bahia, esses contatos foram particularmente intensos com Angola e o Congo”. A respeito da importância desses povos para a construção musical no Recôncavo, no seu artigo Divertimentos Estrondosos: Batuques e Sambas no Século XIX, SANTOS (1997; 18) numa relação comparativa entre África Central e Bahia afirma “o batuque, que aparecia no Congo e em Angola sob a mesma denominação, era tido como uma dança de pretos provenientes das nações conguesa e bunda”. Constatado o fato da importância desses povos congo-angolanos no processo musical e histórico (além de outros aspectos diversos que extrapolam o presente ensaio), a construção de uma identidade africana na Bahia engendrada a partir de referenciais simbólicos compartilhados funcionou como uma espécie de síntese para uma quantidade enorme de significados e significantes culturais existentes em África, mas que na Bahia adquiriram outras feições. Como exemplo, VERGER (1997; 33) encontrou diferenças nas relações estabelecidas entre indivíduos e Orixás na África e no Novo Mundo. Em África, o Orixá é um bem de família, coletivo e que abarca toda uma comunidade. Nos terreiros de Candomblé, os Orixás são pessoais reunidos em torno do orixá do terreiro, “símbolo do reagrupamento, do que foi disperso pelo tráfico”. Este excerto, embora trate mais especificamente na região da África Ocidental, é ilustrativo para perceber que os referencias foram e sempre serão ressignificados. No campo da música não é diferente, o Samba de Roda do Recôncavo nada tem haver com as músicas tradicionais de Angola. Embora as matrizes africanas sejam importantíssimas para compreender o processo de construção social da música no Recôncavo, as ambiências em que se desenrolaram esses processos, os aspectos sociais diversos têm um papel definitivo para a cor de determinada musicalidade. O estudo da identidade banta e suas implicações na música, nesse ínterim, é justamente a preocupação de perceber a aplicação desses referenciais centro-africanos efetivamente no Recôncavo da Bahia.

Notas 203

1. Adotando o conceito de cultura como essencialmente semiótico (GEERTZ; 2008), as atividades antrópicas transmitem significados. A música como uma manifestação coletiva, como um “documento de atuação”, é pública na medida em que seu significado o é. Neste sentido, segundo CARVALHO (1994), “cada peça musical mobiliza um horizonte simbólico e formal próprio e singular, em que contextos culturais vários se entrecruzam”. 2. Em relação à música afro-brasileira pode-se destacar dois modelos básicos de influência estética e simbólica. As tradições religiosas iorubas: a evocação de orixás; padrão de compasso aditivo em 12 – seja 7+5, ou 5+7; estilo antifonal de canto; polirritmia. E as tradições bantas: raízes estéticas angolanas; variações de samba; ritmos binários (CARVALHO; 2000). 3. Esta cosmovisão genérica é vista em sua forma unitária coerente como um modelo explicativo. Robert Slenes (1992) aponta três autores (Craemer, Vansina e Fox) que apresentam aspectos comuns da religiosidade na África Central. O núcleo seria a percepção do “complexo cultural ventura-desventura”, no qual se busca a harmonia, a saúde, o equilíbrio, sendo os seus opostos frutos da interferência de espíritos e pessoas através da feitiçaria. Assim a manutenção destes valores remete a estados de pureza ritual. “As cerimônias e os tabus observados pela comunidade ou pelo indivíduo para atingir esse estado de pureza – associado especialmente à dança, à música e ao transe – geralmente são feitos em torno de um fetiche (charm), que é um objeto feito sob inspiração, incorporando os símbolos mais poderosos do movimento (religioso)”. No Brasil, parte-se desta mesma noção de ventura-desventura, entretanto reinterpretando novos símbolos adquiridos, pois a cultura é dinâmica. 4. “Através dela [sincopa], o escravo – não podendo manter integralmente a música africana – infiltrou a sua concepção temporal-cósmico-rítmica nas formas musicais brancas. Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo o desestabilizava, ritmicamente, através da sincopa – uma solução de compromisso” (SODRÉ; 1998). Embora Sodré não enfatize, é necessário perceber o processo de socialização aos quais os escravos (e seus descendentes) estavam inseridos. Um exemplo, no que tange às práticas do candomblé, os negros eram socializados em um respeito mútuo ao Catolicismo e às suas religiões autóctones. A respeito da estrutura musical, LIMA (1996) destaca a influência banta de forma geral na música popular brasileira, citando o exemplo da célula rítmica de dezesseis pulsações: Versão a: (16) [x.x.x.xx.x.x.xx.] (nove batidas) 204

Versão b: (16) [x.x.x.x..x.x.x..] (sete batidas) 5. Ver CARVALHO (2000). Referências bibliográficas BÉHAGUE, Gerard. Correntes regionais e nacionais na música do candomblé baiano. Salvador: Afro-Ásia, 1976, p. 129-136. CARVALHO, José Jorge; SEGATO, Rita Laura. Sistemas abertos e territórios fechados: para uma nova compreensão das interfaces entre música e identidades sociais. Brasília: Série Antropologia, n. 164, 1994. CARVALHO, José Jorge. Um panorama da música afro-brasileira. Parte 1. Dos Gêneros Tradicionais aos Primórdios do Samba. Brasília: Série Antropologia, n. 275, 2000. DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: O Sistema de Castas e Suas Implicações. Tradução Carlos Alberto da Fonseca. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. FIGUEIREDO, Fábio Baqueiro. História da África. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; Salvador: Centro de Estudos Afro Orientais, 2010. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC. 2008. LIMA, Luís Filipe de. Do Terreiro à Cidade: Elementos da Música Ritual AfroBrasileira. ECO/UFRJ, 1996. LIMA, Vivaldo da Costa. O Conceito de “Nação” nos Candomblés da Bahia. Colóquio Negritude et Amérique Latine. Dacar, 1974, p. 65-90. MUKUNA, Kazadi wa. Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2006. OLIVEIRA, José Osório. Contribuição portuguesa para o conhecimento da alma negra. Lisboa: Oficina Gráfica Limitada, 1952. OLIVEIRA, Roberto Cardoso De. Identidade étnica, identificação e manipulação. Sociedade e Cultura, v. 6, n. 2, jul./dez. 2003, p. 117-131. PINTO, Tiago de Oliveira. As cores do som: estruturas sonoras e concepção estética na música afro-brasileira. África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, São Paulo, 22-23; 87-109; 1999/2000/2001. SANSONE, Livio; SANTOS, Jocélio Teles dos (org.). Ritmos em trânsito: sócioantropologia da música baiana. São Paulo: Dynamis Editorial; Salvador: Programa A Cor da Bahia e Projeto S.A.M.B.A., 1997. SILVA, Alberto da Costa. A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 3ª ed. 2006. SLENES, Robert. “Malungu, Ngoma vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, dez-jan-fev. 1992, p. 48-67. SLENES, Robert. A Grande Greve do Crânio do Tucuxi: espíritos das águas centro-africanas e identidade escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD, Linda M. (org.). Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 193-217. SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 2ª ed. 1998. VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás, deuses iorubas na África e no Novo Mundo. Tradução Maria Aparecida da Nóbrega. Salvador: Corrupio, 5ª ed., 1997.

205

21. Estudo do processo de socialização dos jovens agricultores familiares no Recôncavo da Bahia

Maria Alice Gomes Alves93 Orientador: Nilson Weisheimer Tipo de bolsa: PIBIC-CNPQ RESUMO O tema central deste artigo é a categoria social jovens agricultores familiares. O objetivo deste estudo foi analisar a participação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia enfatizando os processos de socialização dos jovens no trabalho familiar agrícola, na educação formal e nos espaços de sociabilidade juvenil, comparado por sexo e faixa etária, com o propósito de relacioná-los as disposições dos jovens em permanecerem na atividade agrícola. Metodologicamente, Realizou-se análise de estáticas descritivas considerando a participação no trabalho familiar agrícola, na escolarização formal e nos espaços de lazer como variáveis independentes, a disposição dos jovens em permanecerem na agricultura familiar como variável dependente, e sexo e faixa etária dos entrevistados como variáveis intervenientes. Palavras-chave: Jovens agricultores familiares. Processos de socialização. Agricultura familiar. INTRODUÇÃO O tema abordado no presente artigo é o da reprodução social da agricultura familiar através do enfoque geracional (Weisheimer, 2011; 178). O objetivo deste é analisar a participação juvenil na agricultura familiar no Recôncavo da Bahia enfatizando os processos de socialização dos jovens no trabalho familiar agrícola, na educação formal e nos espaços de sociabilidade juvenil, comparado por sexo e faixa etária, com o propósito de relacioná-los as disposições dos jovens em permanecerem na atividade agrícola. De acordo com isto, procura-se demonstrar as disposições destes jovens em continuar a ser ou não agricultores familiares.

93 Graduando em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: [email protected]. Celular: (71) 9976-4013.

206

Weisheimer aponta os processos de socialização nos quais estes jovens estão inseridos como um fator determinante para a decisão dos jovens filhos de agricultores familiares permanecerem ou saírem do campo. Ressalta-se que com o desenvolvimento da economia capitalista houve grandes transformações na vida dos agricultores familiares e, essas mudanças tornam cada vez mais complexo o contexto social rural. A combinação do trabalho assalariado com a atividade agrícola que é denominada de pluriatividade de acordo com Analisa Zorzi, começa a fazer parte da vida dos agricultores familiares. A intensa e histórica presença de grandes latifúndios no Recôncavo da Bahia, assim como, em todo território brasileiro contribui para a redução da possibilidade de permanência dos jovens na agricultura familiar. A não permanência dos jovens na agricultura familiar é relevante porque causa a descontinuidade da reprodução do trabalho familiar agrícola. Pois, a sucessão na atividade agrícola familiar tende a ocorrer no interior das famílias de agricultores familiares, ou seja, endogenamente (Weisheimer, 2011; 178). Sendo pouco provável a inserção profissional de pessoas não socializadas a esta área de trabalho (Weisheimer, 2011; 178). A socialização, segundo Weisheimer (2011; p.190), é um “processo socialmente estruturado de transmissão de saberes, valores e normas sociais, geralmente de uma geração para outra, permitindo a inserção interativa dos indivíduos aos grupos sociais”. Sendo assim, a participação dos jovens nos veículos de socialização, como a inserção no trabalho familiar agrícola, na escola e em outros espaços de sociabilidade é determinante para suas escolhas. Os processos de socialização se dão a partir do contato original que, segundo Mannheim é “a nova geração estabelece um CONTATO ORIGINAL com a cultura prévia de uma sociedade é extremamente relevante para o entendimento da juventude e de seu papel como mediadora geracional nos processos de desenvolvimento e mudança social”. (MANNHEIM apud WEISHEIMER, 2009; 61) Para a obtenção dos dados desta pesquisa utilizamos como método quantitativo à técnica de aplicação de questionários padronizados e como método qualitativo a observação sistemática. A metodologia proposta visa à reconstrução sociológica da situação juvenil na agricultura familiar através de um modelo descritivo que tem como tópicos de pesquisa os processos de socialização no Trabalho familiar agrícola, na Escolarização e na Sociabilidade juvenil. Por sua vez, esse tópico foi submetido a uma 207

dupla comparação, por sexo e faixa etária, uma vez que estes são fatores que produzem situações juvenis diferenciadas dentro deste mesmo segmento social. Metodologicamente, traz-se resultados de uma pesquisa exploratória com base em observação sistemática e aplicação de questionário padronizado, ainda em andamento. Este artigo está disposto, além da introdução nos seguintes tópicos: 1) Juventude: uma definição arbitrária, que se propõe a mostrar algumas definições a cerca da categoria sociológica da juventude; 2) A Sociologia da juventude e a invisibilidade acadêmica das juventudes rurais, no qual se busca demonstrar, resumidamente, as temáticas abordadas desde o início da Sociologia da Juventude e como esses estudos eram voltados, quase exclusivamente, para as juventudes urbanas; 3) Processos de socialização dos Jovens Agricultores Familiares do Recôncavo da Bahia; 4) Considerações finais.

JUVENTUDE: UMA DEFINIÇÃO ARBITRÁRIA Considerando que a categoria juventude é constituída socialmente, concluímos que, cada juventude deve ser entendida e analisada de acordo com os processos de interação e socialização aos quais os jovens aparecem submetidos, ou seja, devem-se considerar as singularidades de cada situação juvenil. Segundo Weisheimer (2009; p-18), as categorias juventude, jovens, condição juvenil e situação juvenil são categorias centrais da sociologia da juventude, abaixo se segue a definição de cada uma:

“Juventude é uma categoria social fundada em representações sociais segundo as quais se atribui sentido ao pertencimento a uma faixa etária, posicionando os sujeitos na estrutura social”. (WEISHEIMER, 2009; 27) “Jovens designam-se os indivíduos concretos que vivem os processos de socialização específicos. Constituem sujeitos históricos cujas trajetórias implicam a transição da condição social de criança à vida adulta”. (WEISHEIMER, 2009; 27) “Condição Juvenil, corresponde ao modo como a sociedade atribui significados às juventudes em 208

determinadas estruturas sociais, históricas e culturais”. (WEISHEIMER, 2009; 28) “Situação Juvenil diz respeito aos diversos percursos experimentados pela condição juvenil, ou seja, traduz as suas diversas configurações”. (WEISHEIMER, 2009; 28) De acordo com o autor, devemos utilizar o termo juventude no plural, pois o termo juventudes abrange as diversidades existentes entre as juventudes, “essas definições estariam incompletas se não incorporassem a multiplicidade dessas representações sociais, o que implica a necessidade de pensarmos mais em termos de juventudes, no plural, uma vez que estas refletem realidades sociais diversas, construindo experiências e identidades juvenis distintas”. (WEISHEIMER, 2009; 28) Dessa maneira, o termo juventude rural também deve ser pluralizado, para assim envolver as diversidades juvenis do meio rural. Considerando que o uso da categoria juventude rural não abrange as singularidades e especificidades das condições juvenis do campo e, segundo Weisheimer (2009), o uso dessa categoria no plural, contribui para a perpetuação da invisibilidade social e acadêmica dos jovens agricultores familiares e dos demais jovens do meio rural. É nítida a necessidade de usarmos o termo no plural: juventudes rurais. Assim, a categoria juventude rural torna-se arbitrária na medida em que é definida por localização geográfica, ela tende a generalizar e homogeneizar as distintas condições juvenis nas quais se encontram os jovens que vivem no campo. Outro modo arbitrário de definir juventude é por faixa etária, contudo este é o mais corriqueiro. Verifica-se que não há consenso entre as organizações internacionais quanto à faixa etária atribuída à categoria juventude. Tomando, por exemplo, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que classifica como jovens pessoas que se encontram entre 15 a 24 anos de idade e, a Organização Ibero-Americana de Juventude que os classificam de 14 a 30 anos de idade podemos observar este dissenso (WEISHEIMER, 2009; 82). Porém, as definições por faixas etárias geralmente atribuem o início da juventude à entrada na puberdade, ou seja, a critérios biológicos. Enquanto, atribuem a “saída” da juventude critérios sociológicos, como a autonomia financeira, relação conjugal estável entre outros (WEISHEIMER, 2009; 90).

209

Outra maneira de definição da categoria juventude é como a transição para a vida adulta. Esta parte da perspectiva adultocêntrica que compreende a fase adulta como a principal e central fase da vida humana (WEISHEIMER, 2009; 103) . Assim, a juventude como transição para a vida adulta representa a passagem da total dependência da infância para a autonomia e independência da fase adulta (WEISHEIMER, 2009; 105). Geração, segundo (MANNHEIM apud WEISHEIMER, 2009; 62), é um conceito situacional frente ao processo histórico, pois o individuo é jovem ou velho sempre em relação a outro. A juventude para este autor não é conservadora e nem revolucionária, mas sim, uma potencialidade pronta para qualquer oportunidade. Em resumo, ser jovem para Karl Mannheim é ser um ser as margens do processo social. A juventude é responsável tanto pela reprodução quanto pela transformação da sociedade, pois ao mesmo tempo em que ela adquire os conhecimentos das gerações anteriores ela também os transformam. Neste artigo utilizaremos o termo jovens agricultores familiares nos referirmos aos sujeitos pesquisados e, assim, já apontamos para a especificidade das condições juvenis desses jovens. A SOCIOLOGIA DA JUVENTUDE E A INVISIBILIDADE ACADÊMICA DAS JUVENTUDES RURAIS. Pessoas jovens sempre existiram, mas a idéia de juventude surgiu a partir da modernidade,

com

a

emergência

do

modo

de

produção

capitalista

que

conseqüentemente, modificou as relações familiares e sociais. A concentração humana passou do campo para as cidades e a produção agrícola deixou de ser a principal atividade econômica cedendo lugar as atividades industriais (WEISHEIMER, 2009;18). Weisheimer (2009) aponta que na primeira metade do século XX, o estudo que teve destaque na Sociologia da Juventude foi à questão da delinqüência juvenil a qual foi entendida como uma subcultura das “classes baixas” que rejeitam os valores das “classes médias”. A Escola de Chicago é a maior representante desses estudos. Já na segunda metade do mesmo século se destacaram os estudos sobre o papel contestador dos jovens diante da ordem social vigente e o “envolvimento de jovens na violência urbana”, a gravidez precoce e no desemprego. Neste século, a juventude aparece como um problema. 210

De acordo com o exposto, é evidente que há desde o início da Sociologia da Juventude uma invisibilidade dos jovens rurais em relação aos pesquisadores. Atualmente, esta invisibilidade acadêmica da qual sofre as juventudes rurais foi constatada pelo sociólogo Weisheimer (2005) em estudos produzido para o MDA ( Ministério do Desenvolvimento Agrário) por meio do NEAD ( Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural) com o objetivo de mapear os estudos produzidos sobre a juventude rural no Brasil. O autor verificou que entre o período de 1992 a 2004, foram publicados, apenas, 50 trabalhos realizados por 36 pesquisadores como mostra a tabela94 a seguir: Tabela 1 Ano e tipo de publicação em termos absolutos Tipo de publicação Ano Artigo Dissertação Livro Tese 1992 0 1 0 0 1996 0 1 0 0 1998 1 1 1 0 1999 2 0 0 0 2000 1 7 0 0 2001 1 2 1 0 2002 8 2 0 1 2003 9 2 1 1 2004 5 2 0 0 Total 27 18 3 2 Fonte: Levantamento de dados, outubro/2004.

Total 1 1 3 2 8 4 11 13 7 50

Weisheimer, em seu artigo intitulado Estudos sobre a juventude rural no Brasil: Mapeando o debate acadêmico (1990-2004),constatou que nos estudos feitos acerca das juventudes rurais predominam as seguintes temáticas: “1) juventude e educação rural; 2) juventudes, identidades e ações coletivas; 3) juventude e inserção no trabalho e; 4) reprodução social na agricultura familiar”. (WEISHEIMER, 2005; 13) Dentre estas temáticas o autor aponta que impera o tema sobre juventude e reprodução familiar, pois dentre os 50 trabalhos publicados que o autor levantou, dezenove deles são sobre esta temática. O autor ainda observa que há diferença de temáticas mais abordadas entre as regiões do país. No Nordeste, Weisheimer diz que se destaca a temática Juventude rural, identidades e ação coletiva e explica que isso prevalece por conta da importância dos

94 Esta tabela foi copiada do artigo: Weisheimer, Nilson. Juventudes rurais : mapa de estudos recentes / Nilson Weisheimer. – Brasília : Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2005. 76 p. ; 21 x 28 cm. – (Estudos Nead ; 7).

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movimentos sociais no campo e às experiências de assentamentos rurais desenvolvidos nesta região. Na região Norte o autor identifica que o único trabalhoso realizado sobre as juventudes rurais nesta região foi sobre a temática juventude e educação rural. No sudeste do país, segunda região cuja há mais trabalhos produzidos sobre as juventudes rurais, Weisheimer verifica a predominância de três temáticas, a saber: juventude rural, identidade e ação social; juventude e educação rural e; juventude e reprodução social na agricultura familiar. No sul do Brasil, local que tem a maior quantidade de trabalhos publicados sobre as juventudes rurais predominam, de acordo com o autor de referência, as duas temáticas, a seguir: juventude e reprodução social na agricultura familiar e juventude rural e inserção no trabalho, respectivamente. PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO DOS JOVENS AGRICULTORES FAMILIARES DO RECÔNCAVO DA BAHIA

O processo de socialização é um objeto da sociologia por excelência. Trata-se de um processo socialmente estruturado de internalização dos valores e normas coletivas pelo indivíduo e, simultaneamente, de integração do indivíduo a sociedade ou a um setor desta. Ele também possui esta dimensão interacional, considerando-se a socialização como um processo de mão dupla,o que implica em interações que permitem processos reflexivos. As perspectivas interacionistas salientam a dinâmica das interações na aquisiçãode know-how e insistem no vínculo entre conhecimento de si e do outro, construção de si e construção do outro (MOLLO-BOUVIER, 2005, p. 393 apud WEISHEIMER, 2011; 17). Com efeito, a socialização é entendida como: “a ampla e consciente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou setor dela” (BERGER; LUCKMAN, 1973, p.175 apud WEISHEIMER, 2011; 17). Para eles, o processo de socialização, embora contínuo, pode ser percebido em dois momentos distintos. A socialização primária é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e em virtude da qual se torna membro da sociedade. A socialização secundária é qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade, caracteriza-se pela incorporação de novos papeis sociais relacionados agora com uma inserção produtiva e desempenho 212

de papeis específicos da divisão social do trabalho (BERGER; LUCKMAN, 1973, p. 175 apud WEISHEIMER, 2011; 17) Para pensar os processos de socialização entre os jovens agricultores familiares é necessário instituir certas mediações. Estes diferem dos de outros jovens por ocorrerem no âmbito do trabalho familiar agrícola, o que faz desaparecer a cisão entre socialização primária e secundária, ao menos enquanto a família permaneça como agente responsável também pela socialização secundária (WEISHEIMER, 2011; 18). A alternativa proposta é tentar, primeiramente, perceber a emergência de dispositivos e agências socializadoras concorrentes e não exclusivos e muitas vezes contraditórios entre si. Inicia-se analisando que tipo de relação se estabelece entre a socialização no sistema formal de ensino e a disposição dos jovens de serem agricultores. (WEISHEIMER, 2011; 18). Constatamos uma relação negativa entre condição de estudo e projeto agrícola, uma vez que prevalece, entre os jovens que estavam estudando, a recusa de ser agricultor, índice que é bastante superior ao registrado para esta resposta entre o total de entrevistados. Em contrapartida, entre os que não estudavam na ocasião da entrevista a grande maioria afirma querer se estabelecer profissionalmente na agricultura familiar. Isto confirma o que foi identificado em outros estudos: ficam na atividade agrícola os jovens que não estão inseridos no sistema de ensino. Isto também confirmaria a opinião corrente entre os entrevistados que colocam estudos e trabalho agrícola como possibilidades dicotômicas. Sendo o estudo formal e o trabalho agrícola alternativas contrapostas nas praticas sociais dos entrevistados, podem ser esperados efeitos distintos de cada uma destas agências de socialização. Conforme pode ser verificado na pesquisa, quanto maior o a envolvimento com o trabalho familiar, maior será, também, a disposição do jovem de se estabelecer, profissionalmente, como agricultor. Isto pode ser evidenciado relacionando-se a jornada de trabalho diário na agricultura e a disposição de ser agricultor. Entre os jovens com menores jornadas diárias de trabalho, predominam projetos profissionais não-agrícolas. Entre os que desenvolvem jornadas de até quatro horas, predominam os que não pretendem serem agricultores; os jovens que trabalham até seis horas diárias a metade dos entrevistados não querem permanecer nesta atividade. Na categoria com jornadas acima desta carga horária, verifica-se a ascensão de projetos profissionais agrícolas. Esses se tornam mais frequentes entre os jovens na medida em que se constata uma ampliação de sua jornada de trabalho. Ou seja, quanto 213

mais tempo eles dedicam ao trabalho agrícola maiores são as chances de querem permanecer neste ramo de atividade. Isto demonstra a influência do uso do tempo na alocação de papeis - chaves – aquele aos quais se dá prioridade sobre outros papeis – estando este na base da internalização das disposições adquiridas ao longo dos processos de socialização (WEISHEIMER, 2011; 18-19). Desta maneira, entre os jovens com jornadas parciais com quatro horas diárias, pressupõe-se que as horas restantes sejam ocupadas por outras agências socializadoras, produzindo efeitos de incorporação de valores que embasam a busca por realizar projetos profissionais não-agrícolas. Por outro lado, o predomínio do uso do tempo em atividades agrícolas produz a internalização do habitus do trabalho familiar agrícola, fazendo com que eles só tendam a querer reproduzir este processo de trabalho (BOURDIEU, 2005). Os quadros abaixo demonstram as semelhanças e diferenças de acordo com o sexo em relação ao trabalho familiar agrícola. Quadro 1: Não quer se estabelecer como agricultor familiar porque o trabalho é: Homens

Mulheres

• Pesado

• Pesado

• Cansativo

• Cansativo

• Não

tem

retorno

financeiro

garantido

• Não

tem

retorno

financeiro

garantido

• Não tem autonomia

• Não tem autonomia

• Não é valorizado

• Além de trabalhar na lavoura faz os trabalhos domésticos

• Ganha pouco • Só tem acesso ao dinheiro de trabalhos realizados fora da UPF • Não

tem

expectativa

de

crescimento profissional

• Seu trabalho é desvalorizado • Acorda muito cedo • Antes de ir para a lavoura tem que preparar as refeições

• A qualidade de vida é baixa

• Não tem acesso ao dinheiro

• Estão

• É submissa ao pai, irmãos ou

sujeito

climáticas

as

condições

marido financeiramente • Não tem descanso • Não tem dinheiro 214

Quadro 2: Fatores importantes para permanecer na agricultura familiar: Homens

Mulheres

Ter acesso a terra

Ter o reconhecimento de seu trabalho

Obter renda considerada satisfatória

Ter acesso a renda

Ter direitos trabalhistas de acordo com

Ter terra

suas necessidades

Ter conhecimento sobre a produção

Ter a possibilidade de crescimento financeiro Ter uma boa qualidade de vida

agrícola Gostar de trabalhar na agricultura Ter apoio do governo, principalmente,

Ter conforto

no caso de perda da lavoura

Ser dono do próprio negócio Ter apoio do governo, principalmente, no caso de perda da lavoura Ter conhecimento sobre a produção agrícola Fonte: Dados qualitativos da pesquisa No quadro 1, pode-se perceber que os motivos, tanto para os jovens quanto para as jovens agricultoras familiares não quererem se estabelecer como agricultor familiar, inicialmente são os mesmos, porém as jovens demonstram mais insatisfação por sua situação de maior submissão. No quadro 2, percebe-se que as motivações para a permanência dos jovens na atividade familiar agrícola diferem de acordo com o gênero. As jovens tem como principal motivação o reconhecimento de seu trabalho. Enquanto, os jovens almejam o acesso a terra, renda satisfatória entre outras coisas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nos resultados parciais da observação sistemática e aplicação de questionário padronizado, ainda em andamento, concluímos que as jovens aparecem como as mais tendenciosas a saírem do campo. Fato explicado pela sua maior inserção na educação formal e pela desvalorização de seu trabalho na agricultura familiar.

215

Verificou-se que os processos de socialização atuam como um fator objetivo fundamental, visto que é por meio destes que se internalizam os conhecimentos, os valores e a ética própria do trabalho familiar agrícola, gerando as disposições necessárias à sua reprodução geracional. Neste sentido, a socialização no trabalho agrícola pode ser percebida como o principal instrumento de reprodução social na agricultura familiar, porque produz uma nova geração de agricultores familiares. Por fim, podemos concluir que as representações dos jovens sobre o trabalho agrícola e o modo de vida dos pais revelamse coerentes com seus projetos profissionais. A interação entre estas representações permitem-nos compreender melhor as dinâmicas desta reprodução geracional do trabalho familiar que depende da reafirmação não só de uma posição no mundo social, mas também de sua visão de mundo correspondente. Com efeito, pode-se concluir que os jovens agricultores familiares são mais fortemente socializados com as atividades agrícolas, ou seja, sua socialização ocorre mais intensamente no âmbito do trabalho agrícola familiar, no qual esses jovens adquirem, aos poucos, responsabilidades por sua execução e seus trabalhos vão se tornando mais valorizados. Por outro lado, as jovens agricultoras familiares são socializadas com maior ênfase no processo de escolarização, sua participação na agricultura familiar é invisibilizada, percebido apenas como “uma ajuda”. Dessa maneira, as jovens tendem a fazerem seus planos profissionais relacionados a atividades não agrícolas e, também a não quererem se casarem com agricultores, pois isso perpetuaria sua condição de submissão e invisibilidade que é decorrente no processo familiar agrícola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de Sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005. MOLLO-BOUVIER, Suzanne. Transformação dos modos de socialização das crianças: uma abordagem sociológica. Educ. Soc., maio-ago., v. 26, n. 91, p.391-403. São Paulo, 2005. WEISHEIMER, Nilson. Estudos sobre a juventude rural no Brasil: mapeando o debate acadêmico (1990-2004). MDA/NEAD. Brasília, 2005.

216

_________.A construção social da juventude. In: Sociologia da Juventude. [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). –Curitiba: Ibex, 2009. _________. Jovens Agricultores Familiares: situação juvenil e projetos profissionais em questão. XXVIII CONGRESO INTERNACIONAL DE ALAS. 6 a 11 de septiembre de 2011, UFPE, Recife-PE. Grupo de Trabajo: 22: Sociología de la infancia y

la

juventud.

Fonte:

_________.História da Sociologia da juventude. In: Sociologia da Juventude. [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). –Curitiba: Ibex, 2009. _________. Sobre a situação juvenil na agricultura familiar gaúcha. In: Bahia Análise e Dados, v.1(1991-). Salvador: Superintendência de Estudos econômicos sociais da Bahia, 2011. _________.Teoria Sociológica das Gerações. In: Sociologia da Juventude. [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). –Curitiba: Ibex, 2009 ZORZI, Analisa. Juventudes Rurais. In: Sociologia da Juventude. [Obra] organizada pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). –Curitiba: Ibex, 2009

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22. As Dinâmicas Populacional, Econômica e Mão de Obra: Recôncavo-Ba/ 1820-1835. MARIA CRISTINA MACHADO DE CARVALHO

Resumo Esta produção destaca as dinâmicas populacional, econômica e mão de obra no Recôncavo da Bahia nos meados do século XIX. Uma região marcada por um modo de produção diverso: plantação de cana de açúcar, fumo e mandioca. Também possuía uma população diversificada entre escravos, libertos, livres, fazendeiros e senhores de engenhos. Esse espaço territorial desde o século XVI fazia parte do projeto de colonização portuguesa. As Freguesias de São Tiago do Iguape e São Gonçalo de Nossa Senhora da Cachoeira se inscrevem neste contexto dinâmico. A região investigada tornou-se palco de disputas, choques de interesses e ideologias divergentes, que promoveram lutas e resistências. Nesta trama aparece a história lutas dos escravos do Iguape e as fugas e queixas de formação de quilombos em São Gonçalo. Assim, este trabalho aborda as trajetórias de diversos atores que foram responsáveis pela estruturação deste espaço no século XIX e que, especialmente, na Freguesia de São Gonçalo de Nossa Senhora da Cachoeira, nas queixas das autoridades tinha o principal objetivo de manter a ordem daquele espaço social. Palavras Chaves Quilombos, fugas, revoltas, Iguape, São Gonçalo dos Campos e Recôncavo. Introdução A história possui um campo de investigação que possibilita diferentes interpretações e compreensão de um mesmo fato histórico. Por isso, optamos em estudar o Recôncavo baiano nos meados do século XIX, buscando compreender a dinâmica social desvelada nos conflitos e, também, nas formas de produção por proprietários e na mão-de-obra escrava utilizada para a construção da riqueza daqueles. O período escolhido para análise é de 1820 a 1835, marcado por intensos conflitos de Independência, sendo, também, maior e mais intensificado no tocante as fugas e rebeliões dos escravos (REIS, 2003). Segundo alguns autores e, em particular Reis (2003), historiador das revoltas escravas do século XIX na Bahia, as rebeliões escravas se intensificaram porque a classe livre estava dividida e fraca. Além disso, postula que o espírito rebelde haitiano 218

tinha chegado à Bahia, especialmente na Revolta dos Malês em 1835. A Bahia vivencia rebeliões, motins, sublevações, fugas de escravos e diversas revoltas envolvendo diferentes grupos sociais de interesses variados. A interpretação deste campo de estudo é feita entendendo que o conhecimento histórico é construído a partir do diálogo com evidências e marcas deixadas (CHALHOUB, 1990) e pelas questões postas pelo historiador. Neste caso a marca deixada nem sempre pode ser lida de maneira clara e no sentido literal. Para tal, utilizamos o método Indiciário formulado por Ginzburg (2006). No Brasil este método foi utilizado por Chalhoub, o qual salienta que para leitura de documentos do período da escravidão o historiador deve fazer uso das marcas deixadas em tais documentos pelos opressores e, portanto, manifestam o interesse e visão dos dominantes. A formação de quilombo como temática há muito tempo vem sendo discutido pelos historiadores, porém, muitos deles leram os documentos deixados pelas autoridades repressivas reproduzindo-os sem, ao menos questionar os argumentos. Neste caso escondem a dinâmica e a diversidade da formação de quilombos e as relações destes com a sociedade ao entorno. A interpretação é de fundamental importância para a compreensão de como se deu as relações dos aquilombados com a sociedade. Também, compreender a manifestação destes em diferentes regiões, com diferentes tamanhos, economia e número populacional. Por outro lado, podemos perceber o temor incontido da sociedade livre, especialmente, os grandes proprietários de terra e escravos. Com isso, intuir o desajuste social que tais manifestações de resistência escrava causavam ao sistema que no século XIX caducava, mais ainda, sustentava-se vivo. Um ponto importante para nossa discussão de quilombo é o conceito definido pelo Conselho Ultramarino, o mesmo que a séculos era usado pelos donos de escravos, juízes de paz nas denúncias destes ante a presença do elemento ameaçador do sistema escravista. E ainda hoje é usado pelos advogados e representantes de proprietários de terras, empresas particular ou publica para negar que hoje exista comunidades remanescentes de quilombos. Neste caso, os documentos podem ser lidos tendo em vista a pretensão dos senhores escravocratas, e observar a preocupação que as autoridades deixam manifestada diante da presença de escravos fugidos. Também, podemos intuir para a diversidade em torno das relações entre os escravos fugidos e a comunidade 219

circunvizinha através da leitura mais aguçada das correspondências, pois, nelas havia a preocupação das autoridades por conta da proteção que indivíduos do local prestavam aos fugidos. Este artigo tem como objetivo analisar a constituição de comunidades de fugitivos em torno das Freguesias de Iguape e São Gonçalo, ambas da comarca de Cachoeira em meados do século XIX. Esta análise será feita através de documentos do século XIX, que são: Correspondências do Juiz de Paz da Freguesia de Santiago do Iguape e São de Gonçalo. Nelas faço uma discussão acerca do discurso dos senhores de escravos diante da presença de quilombos e as justificativas que eles apresentam para reprimir os quilombolas. Recôncavo _ População/ Economia/ Mão-de-obra Escrava/Revoltas. A mais próspera Província das Américas do século XIX era a da Bahia com sua produção de açúcar e fumo, principalmente no Recôncavo. Sendo, para isso, utilizada a mão-de-obra escrava. Segundo Barickman (2003) o Recôncavo vasto não era homogêneo. Em meio a diferentes tipos de economia havia duas que tiveram destaque. Uma era o açúcar com sua produção tradicional tinha a maior produção nas regiões de Santo Amaro e Santiago do Iguape, Comarca de Cachoeira. E o fumo que era usado especialmente para exportação e escambo de escravos, seu foco principal de produção era nos Campos de Cachoeira (mais tarde São Gonçalo dos Campos da Cachoeira.). Os aspectos econômicos da Bahia exportadora de açúcar, tabaco demonstram a importância da produção destes gêneros, especialmente, para entendermos as relações de trabalho no período. O ponto diferencial destas economias de exportação estava na quantidade de escravos utilizados como mão-de-obra e o tamanho dos plantéis. Barickman chama a atenção para as duas zonas de produção, comparando ambas as Freguesias. Segundo ele a freguesia de São Gonçalo dos Campos predominava pequenos plantéis de fumo concentrados nas mãos de 45% dos proprietários de escravos (fazendeiros). Em Santiago do Iguape a quantidade de plantéis era superior aos de São Gonçalo, sendo que estes se concentravam nas mãos de 10% dos proprietários de escravos (senhores de engenho). Bem como a utilização da mão-de-obra escrava. 220

Na freguesia fumageira a população escrava era de quase quatro mil cativos, distribuída uniformemente entre os proprietários. Em Iguape esta taxa é de 40% dos cativos residentes na freguesia que, por sua vez, ficava nas mãos de 10% dos proprietários de engenhos. Sendo assim, podemos perceber que nas regiões onde existia uma cultura voltada para o cultivo do açúcar a distribuição e utilização da mão-de-obra escrava são bem diferentes das taxas nas regiões onde a economia se volta para a produção de fumo. As características que mais se destacam para a diferenciação da posse de escravos no Recôncavo são as distribuições destes relativamente uniformes e o reduzido tamanho dos plantéis em todas as partes da região. Na freguesia de São Gonçalo dos Campos só 1,7% de todas as propriedades fumageiras tinham plantéis e a média de posse era de quarenta ou mais cativos. Enquanto Iguape, possuindo 11,2% dos plantéis com pelo menos quarenta escravos por plantéis. Isso significa que a quantidade de escravos e de plantéis usados nas diferentes economias não era o mesmo número (BARICKMAN, 2003). Mesmo sendo diferente a quantidade de escravos o trato que os senhores e lavradores davam aos seus escravos não fazia diferença. A autoridade do senhor era confirmada no poder mantido sobre um reduzido número de escravos ou com mais de trinta. Vista a escravidão desta forma podemos atentar para as fugas, revoltas e quilombos como uma manifestação de resistência do escravo a esse poder. Também chamar a atenção para os variados tipos de resistência, tendo em vista o contato entre as duas classes antagônicas. Supor que onde havia maior opressão, a resistência era mais forte. Ainda, nos meados do século XIX, o Recôncavo foi palco de uma série de revoltas que se expressou tanto pela insatisfação da população livre contra o governo do Império, como no seio da população escrava contra a escravidão a qual era submetida. A sociedade baiana deste período estava dividida em quatro camadas (MATTOSO, 1989). Os primeiros grupos formados pelos grandes proprietários, o segundo grupo era composto por funcionários médios, o terceiro grupo por funcionários subalternos, no quarto grupo estão escravos, vagabundos e mendigos, sendo que esses dois últimos na maioria das vezes eram escravos.

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Reis (2005) chama o Recôncavo na primeira metade do século XIX de rebelde. O autor salienta que naquele palco parecia que as revoltas sociais sufocadas no Período Colonial haviam explodido na ocasião, cita que: A Bahia destacou-se como uma das regiões mais agitadas do país. Entre 1820 e 1840, a província foi o palco de um conflito anticolonial, revoltas militares, motins antiportugueses, quebra-quebras e saques populares, rebeliões liberais e federalistas, com laivos republicanos, e levantes de escravos. (REIS, 2003: 43). Diante desse contexto, o autor ainda sugere em outra obra (REIS e SILVA, 1996) que os rebeldes escravos teriam compreendidos através dos conflitos que a população livre estava fraca e debilitada, neste caso, um bom momento para eles rebelarem-se contra a escravidão. Por diversos motivos a população livre se rebelou em toda a Província. Os destaques no Recôncavo foram às revoltas Federalista em 1820 e a Sabinada em 1837. Em ambas houve a participação de escravos entre os soldados. Geralda e Teixeira (1984) apontam para a participação nestes movimentos da população da Freguesia de São Gonçalo dos Campos da Cachoeira. Reis canaliza que os rebeldes não tinham a intenção em transformar a ordem do sistema escravista. Os programas e lutas destes reformadores eram apenas em favor de um novo regime político e justiça social entre os homens livres. Diante dessas revoltas é possível alegar que os escravos que em outras vezes já havia se revoltado, encontrou incentivo para se revoltar novamente. Haja vista, a sociedade se aparentava dividida e, portanto, fraca para enfrentar e ter êxito a um confronto com os escravos revoltados, ou mesmo fugidos e escondidos em quilombos. Supostamente esta teria sido uma das possibilidades percebida pelos Malês, em 1835 e por muitos escravos do Recôncavo que se rebelaram ou “simplesmente” fugiram dos engenhos e senzalas neste período indo em busca de um quilombo ou, então, formando um. Reis (2003: 94) afirma que “em todo o continente americano, os conflitos da Independência abriram brechas na escravidão, quando não a destruíram. Os escravos foram ativos atores em toda parte”. Adiante menciona três revoltas escravas ocorridas na Bahia durante o conflito de Independência. Uma ocorreu em Itaparica em 1822, onde os 250 escravos não

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aceitaram o feitor recém-escolhido pelo senhor. Na Vila de São Mateus, também foi palco de conflitos entre os escravos e senhores. Os pretos forros e cativos se levantaram contra os pardos e brancos. A outra revolta se desenvolveu no Engenho de Santana em 1821, em Ilhéus, onde os escravos largaram o trabalho e se apossaram da propriedade, mas tarde, em 1824, evitando um combate se aquilombaram. O quilombo atraiu muitos escravos e, também, provocou mudanças de muitos senhores nas relações com seus escravos temendo que esses se rebelassem. Muitas denúncias foram feitas ao governo provisório no Recôncavo e por conta delas severas medidas foram implantadas pelo Conselho Ultramarino de Cachoeira para controlar os escravos. Em Cachoeira, também, estourou uma nova revolta em 1826, mas foi sufocada logo. As revoltas e quilombos organizados durante estes anos de disputa e rebelião da classe livre eram muito frequente, ou mesmo, foi diante desse quadro de insegurança, fraqueza e divisão que os escravos se rebelaram em busca de seus projetos políticos de liberdade. Santiago do Iguape Como já pode ser percebido as revoltas de escravos eram comum em todo lugar onde ocorreu a escravidão. No entanto, tem locais que se destaca por sua singularidade. Em meio a um Recôncavo rebelde não é de se estranhar a agitação de escravos na freguesia do Iguape. Como propõe Fiabani (2005), as fugas foi uma das formas de resistência que mais preocupou a sociedade escravista. Sem dúvidas é plausível, mas tais resistências poderiam se diversificar diante do local e contexto em que o fato está inserido. Poderia manter o mesmo nível de preocupação e periculosidade para manutenção da classe escravista ou não. Estamos nos reportando às revoltas ocorridas em Santiago do Iguape no período de lutas pela Independência. As queixas eram muitas. Os juízes de Paz sempre comunicavam ao Presidente da Província a notícia de haver escravos fugidos, rebelados fazendo vítimas nos engenhos da Freguesia. Um fato interessante é que um juiz denuncia maus tratos ocasionados por senhores a seu escravo. Em 1831 foi apresentada uma denúncia pelo juiz suplente 223

Manuel F. da Costa ao presidente da Província Honorato F. de Barros Paim. Segundo o denunciante um escravo chamado João da Cruz havia sofrido maus tratos de seus senhores Manuel Alves e Antônio Vieira de Brito. Eram comuns no período escravista os maus tratos aos escravos, sendo este um dos motivos da fuga: Os escravos fugiam pelos mais variados motivos: abusos físicos, separação de entes queridos por vendas ou transferências inaceitáveis ou simples prazer de namoro com a liberdade. (...) A soma de fugas individuais e coletivas frequentemente resultaram em quilombos onde os fugitivos tentaram inventar a liberdade na ‘terceira margem’ do regime escravocrata. (REIS e SILVA, 1993: 9). Em um documento datado de 13 de dezembro de 1826 o juiz de Cachoeira Antônio Vaz de Carvalho reclama que existia naquela Vila muitos roubos de escravos e gado, e assassinatos, no entanto, não faz menção da cor dos sujeitos da ação, apenas pede providências do Presidente ao caso. Um mês depois da denúncia de roubos e assassinatos, em 17 de janeiro de 1827, o juiz reclama que os escravos do Engenho José do Açu fugiram. Segundo ele esta notícia deixou-o “aterrado”, mas salienta que imediatamente tomou as providências para a execução do caso. Ainda, o juiz aponta para dezesseis engenhos que situam em Iguape além das fazendas de tabaco que corre risco por causa da agitação dos escravos. Com tais circunstâncias pede “pólvora, cartaxumes e armas de fogo”. O pedido de apoio do governo era comum naquela época. Tal pedido vinha sempre como um meio de precaução a tais acontecimentos que já ocorreram várias vezes na história da freguesia. No dia 25 de março de 1827 o juiz da Comarca de Cachoeira escreve dizendo sobre um levante de escravos no Engenho de Vitória do Coronel Pedro Reis Brandão. Afirma que a notícia dessa “sublevação era geral em quarto engenhos”. Podemos perceber que os escravos agiam como em rede de ação que ligava mais de um engenho. Esta denúncia apresenta de forma espetacular a ação dos escravos neste Engenho. Dezoito meses depois outra denúncia foi feita, desta vez, no engenho do Coronel Antônio Brandão. Os escravos queimaram o engenho, saquearam a casa de morar, além do feito, assassinaram duas crianças pardinhas estas escravas do Coronel 224

Rodrigo Antônio Brandão. No confronto contra o corpo repressivo morreram vinte tantos negros e outros quarenta e tantos escravos que não quiseram seguir o partido ficaram feridos. No Engenho da Cruz os mesmos escravos rebelados mataram quatro pretos forros. Na correspondência o Juiz afirma que os escravos rebelados mataram todos os escravos ou forros que não quiseram unir-se a eles. Também os escravos do Engenho Entinga fugiram todos e reuniram-se com os escravos sublevados. Outros escravos dos Engenhos do Tenente Coronel Domingos Américo planejaram fugir e reunir no canavial do Coronel Rodrigo Antônio Brandão. Estes acontecimentos demonstram que os escravos do Recôncavo não eram passivos ao sistema da escravidão. Como já vimos anteriormente, os primeiros cinquenta anos do século XIX foi um período de muita agitação, tanto no que se refere à classe livre como a escrava. As autoridades repressivas logo ficaram sabendo dos escravos dos Engenhos do Tenente Coronel Domingos Américo e imediatamente seguiram rumo à colisão. No entanto, ao chegar ao engenho encontraram tudo arregaçado e os escravos não mais se encontravam ali. Conseguiram, porém alcançar os rebeldes, sendo que alguns fugiram e outros foram presos. Ao que parece estes escravos queriam reunir toda a escravatura contra os brancos e matar todos aqueles que se impusessem no caminho rumo à liberdade. Não foi a toa que eles mataram escravos e pretos forros. Isso revela que o objetivo deles era travar uma luta. Também, as evidências apontam para a formação de quilombos. O ato de se reunir no canavial do Engenho do Coronel Rodrigo Brandão, demonstra que os escravos sublevados buscavam um lugar para se organizar, quem sabe até mesmo, para mais tarde insurgirem contra a escravidão na Freguesia. São Gonçalo dos Campos da Cachoeira.

Em São Gonçalo a resistência escrava passou por caminhos muitos diferentes daqueles percorridos pelos escravos do Iguape. A experiência dos mocambos envolve contatos e relações diversas e complexas mantidas com e pelos quilombolas, além de suscitar uma série de discurso das autoridades da época com a finalidade única de extinguir qualquer elemento que ameaçasse a ordem social em vigor. 225

Em São Gonçalo ao que parece a formação de quilombo teve um caráter permanente e com pouca repressão, apesar das muitas queixas feitas pelos juízes de Paz. Talvez isso possa ser entendido por meio do aspecto econômico e populacional nas duas freguesias. O Juiz de Paz João Paulo Ferreira Gomes escreve ao Presidente da Província em 11 de novembro de 1835 defendendo-se das acusações sofridas pelo descaso com a segurança pública. Nesta Correspondência percebe-se nos argumentos apresentados pelo o Juiz o temor da população pelos fatos ocorridos na Freguesia e um desses temores está relacionado assassinato do Juiz de Órfão Int. o Per. Coronel Manuel Maria Almeida Brito, e dos acontecimentos noturnos as casas de empregados públicos e de pessoas circunspectas com o fim do assassinato. Refere-se à solicitação feita por ele a patrulha para verificar nas matas a presença de negros fugidos e que recebendo uma denuncia do dia 29 dado 8 folhas sobre a insurreição de Africanos escravos dos Engenhos, respondeu de publico que no segundo dia providenciaria patrulha para verificar a denúncia, mas que alguns rapazes, que de sua própria vontade, patrulharam toda a noite e quando ocorreu um tiro as autoridade não procura saber informações sobre o fato. Ele não menciona se foi encontrado quilombo no local ou algum rasto de que houvesse ali algum quilombo. Portanto verificando ou não a presença de quilombos o que interessa é que esses fatos traziam intranquilidade à comunidade. Anos antes na Correspondência datada em 1829 o juiz de Paz alerta que era considerável o números de pretos escravos na Freguesia por igualmente existir neste local um grande número de proprietários, denunciando que as providências deviam ser tomadas pelas autoridades para que assim pudesse evitar eventuais problemas concernentes à presença de quilombos na região. Também, na Correspondência de 27 de fevereiro de 1835 a preocupação do juiz é a mesma, por isso argumenta que é grande o número de escravos que existem nos engenhos que circundam esta Vila e que em outras ocasiões alguns estavam insurgidos. E no dado momento havia noticias de haver escravos levantados no Engenho Sapucaia. Tais preocupações vêm sempre acompanhadas do pedido de um destacamento militar com dez ou doze homens que pudesse inibir os atos desordeiros dos escravos.

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As denúncias não traziam apenas queixas de escravos fugidos e organizados em um quilombo, mas dizia que tais escravos mantinham a Vila em um maior desassossego. Os escravos executavam todas as artes de crimes contra a população livre que ninguém se julga seguro ainda no recinto das suas casas, algumas das quais são trancadas ao por-se do sol, privando-se de quase todas comunicações. A Correspondência de 20 de julho de 1829 o juiz de Paz João Pedreira do Coutto informa ao presidente da Província que os pretos reunidos andão quase sempre de armas de fogo, esses negros são chamados de fugidos, os tais que deixam os proprietários e os habitantes da Vila em maior desassossego possível, fazendo roubo de gado e de cavalo. Novamente as informações vêm após o pedido de um destacamento de 10 a 12 homens. Continuado a descrever a situação da Freguesia afirma que os negros fugidos ocasionavam o terror nos habitantes da Freguesia. Ao que parece o período de 1829 até 1835 a Freguesia experimentou uma grande euforia da população escrava. Os escravos fugidos representavam uma ameaça aos proprietários e, portanto, pode-se atentar para tal argumento como uma forma de repressão aos ditos quilombos. Não nego a existência de roubos, assassinatos praticados pelos negros fugidos, porém tais circunstâncias não podem ser generalizadas. Haja vista que estes argumentos só reforçam a necessidade de repressão aos quilombos. Mas levando em consideração a ocorrência desses fatos nada é mais justo do que o retorno às agressões sofridas durante anos pelo sistema escravista. Flávio Gomes aponta que: A escravidão foi, sem dúvida, violenta. Nela, porém, milhares de homens e mulheres não só sobreviveram como também procuraram, na medida do possível, organizar suas vidas. Recriaram nas através de vários espaços de resistência e busca por autonomia, onde incluíam-se a gestação de comunidades, laços familiares, cultura e em algumas ocasiões até de uma economia própria. (GOMES, 2005: 8) A sociedade não era uníssona estava dividida em diversas categorias tanto no que se refere à população escrava como, também, a população livre. Na Correspondência citada acima em meio às denúncias de desordem ocasionadas pelos os escravos encontra a queixa de “conlôio” destes com parceiros de propriedades que ele chama de “mal administrada”. O que seria conluio? O conluio representava uma ameaça, pois permitia que os fugitivos tivessem condição de sobrevivência fora do sistema escravista. Além disso, poderia elevar o número de fugas e ocasionar a 227

incitação da escravatura. A existência de mocambos possibilitava e seduzia os escravos a fugirem para esses locais. A presença do escravo fugido organizado em um mundo que era contrário a ordem social vigente no período oferecia um ambiente oportuno para ocorrência de insurreição escrava. Até mesmo porque, em muitos desses documentos, o medo dos senhores de escravos era apresentado de maneira explícita nas correspondências. Além do mais, essas correspondências não são os únicos documentos que trata da formação de quilombos por meio de denúncias das autoridades referindo aos quilombolas destruidores da tranquilidade social. Para as autoridades os quilombolas eram grupos de marginais, foragidos nas matas longínquas e que a todo instante roubavam, assassinavam e provocavam uma serie desordens na região. Portanto, o discurso dos senhores de escravos apenas apresenta a pretensão deste diante da ameaça que se fazia presente na vida social __ o quilombo. Através dos argumentos apresentados pelo Juiz ao Presidente da Província é notória a preocupação dos senhores de escravos referentes à existência de redes de solidariedade. As constantes fugas, o possível incitamento decorrente das comunicações com os revoltosos e as invasões predatórias aos territórios dos senhores que podiam ser realizadas pelos quilombos causavam temor entre os fazendeiros. Aliás, a simples existência de alguns negros fugitivos já era motivo de ameaça a autoridade senhorial e ao controle de suas fazendas, tal que a hipótese de fugas era iminente.

Considerações finais As revoltas, fugas e quilombos expunham o limite da dominação senhorial. Diante da possibilidade de não dispor da mão-de-obra dos fugidos, os senhores eram em muitos casos, obrigados a negociar e ceder em alguns aspectos para os escravos, embora não fosse essa a sua pretensão. Em todo País foram muitos os negros rebeldes que se reunião em pequenos ou grandes grupos nos arredores de engenhos, fazendas, freguesias, vilas e cidades, mantendo autoridades e senhores atemorizados.

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A maioria dos pesquisadores quando salienta o medo da classe dominante aponta para os roubos, assassinatos, insultos perpetrados pelos quilombolas como causas dos temores, no entanto, como é possível verificar nas denúncias o que deixava as autoridades e senhores atemorizados era a presença do elemento ameaçador em quase todos os ambientes do cotidiano social. Eles eram facilmente encontrados em senzalas, tabernas, vendas, na roça de um administrador que acolhe com seu empregado, ou rendeiro, nas freguesias, vilas, nas cidades, em meio a população livre e escrava dialogando, fazendo trocas e comercializando. A condição de escravo fugido nas freguesias de Santiago do Iguape e de São Gonçalo dos Campos da Cachoeira constituía uma ameaça à ordem escravista. Levando em conta as denúncias feitas pelos donos de escravos, vê-se que existia uma grande preocupação de possíveis insurreições destes. Além de se notar um clima preocupante, em que negros espalhavam o pavor aos homens livres da Freguesia por conta da presença do elemento negro na sociedade escravista. No tocante a Iguape os documentos deixados são mais completos. Eles demonstram que os escravos desta freguesia não pretendiam apenas forma um quilombo, mas fazer uma rebelião, reunindo para isso toda massa escravas dos muitos engenhos que existiam lá. Em São Gonçalo as pistas em que disponho apenas apresentam denúncias pelos juízes preocupados com uma rebelião iminente. Isso, no entanto, não diminui a luta dos escravos dessa freguesia, mas revela que em todo lugar, em todas as épocas, com a economia e a população diferenciada existia lutas dos escravos contra o sistema escravista.

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23. MATERNIDADE NO CÁRCERE: UMA

ANÁLISE SOBRE AS

ESPECIFICIDADES DA MATERNIDADE EM INSTITUIÇÕES PRISIONAIS. MARIA DAS CANDEIAS DOS SANTOS95 RESUMO Este trabalho procurou analisar, através de pesquisa bibliográfica, as especificidades da maternidade em instituições penitenciárias. Pretendeu-se evidenciar as representações acerca do papel de ser mãe em ambientes coercitivos e regidos por leis. Para tanto, recorreu-se a textos de autores clássicos e contemporâneos sobre o tema. Como resultado da pesquisa, confirmou-se a premissa já sustentada por diversos autores de que a maternidade é um fator construído socialmente, cujas representações variam a depender do contexto social em questão. Através das referências bibliográficas analisadas, conclui-se que a maternidade é um elemento importante que opera nas relações interpessoais nas instituições prisionais e que, embora, possa ganhar configurações diferentes a depender do contexto analisado, sempre conserva sua interface com noções de feminilidade (“ser mulher”). PALAVRAS -CHAVES: Maternidade, Sistema Penitenciário, Mulheres. INTRODUÇÃO Este texto tem como origem relatório final escrito para o Programa Institucional de Bolsas de iniciação Científica da UFRB, no qual estive vinculada de agosto de 2010 a julho de 2011, com o plano de trabalho Um estudo sobre mães detentas na organização interna de instituições prisionais, que é parte do projeto de pesquisa intitulado Mães encarceradas: uma análise sobre as atribuições significativas da maternidade no Conjunto Penal Feminino de Feira de Santana-Ba, coordenado

pelo

Prof.

Dr.

Wilson

Penteado.

Tal

projeto

se

justifica

fundamentalmente, por inexistirem estudos no âmbito das Ciências Sociais voltados para a compreensão dos significados acerca da maternidade no cárcere. Embora abundem estudos sobre o sistema prisional no Brasil, pouco, ou quase nada, se escreveu sobre questões relacionadas à maternidade no cárcere. Portanto esta pesquisa foi um primeiro passo, ainda que tímido, para o aprofundamento da discussão. No 95 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e vinculada ao Programa Institucional de Iniciação Científica PIBIC/UFRB-2010/2011 na condição de estudante voluntária. E-mail [email protected]. Orientada pelo professor adjunto da UFRB Dr. Wilson Penteado Júnior.

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relatório que deu origem a esse texto utilizou-se a metodologia de estudo bibliográfico. Neste sentido, foram analisados os trabalhos das autoras: Mirella Alves de Brito (2007) “O Caldo na panela de pressão: um olhar etnográfico sobre o presídio para mulheres em Florianópolis,” e o ensaio de Rosângela Peixoto Santa Rita (2006) “Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o princípio da dignidade da pessoa humana.” Foram desenvolvidas também leituras sobre as desigualdades entre gêneros como o artigo de Rosely Gomes Costa (2001) “Sonho do passado versus plano para o futuro: gênero e representações acerca da esterilidade e do desejo por filhos e o livro de Michelle Zimbalist Rosaldo e Louise Lamphere (1999) “A Mulher, a cultura e a Sociedade” que analisam o motivo pelo qual as desigualdades dos gêneros estão presentes em todas as sociedades. Houve também a leitura do artigo de Marilyn Strathern (1995) “Necessidade de pais, necessidade de mães”. Esses trabalhos contribuíram para analisar categorias centrais para a pesquisa como “mães” e “mulheres”. Analisou-se também um material bibliográfico mais amplo de clássicos das ciências sociais referentes a sistemas prisionais e instituições fechadas, que serviram como guia durante o desenvolvimento da pesquisa e principalmente para aprofundar o conhecimento sobre o tema. Assim realizou-se leitura do capitulo "Instituições Completas e Austeras”, do livro Vigiar e Punir do autor Michael Foucalt, (1987) e a “Introdução” e “As características das instituições totais” do livro Manicômios, Prisões e Conventos de Erving Goffman (1981). Desta forma, escrevo este texto, buscando fazer uma leitura sócio-antropológica acerca da maternidade em ambientes fechados e regidos por normas coercitivas, isto é, a prisão, a partir de uma discussão de gênero. MULHERES, PAPÉIS DE GÊNERO E MATERNIDADE Entende- se que ‘maternidade’, para além de suas implicações biológicas e naturais, é um fenômeno que está revestido de um conjunto de representações que varia culturalmente, a depender do espaço societário estudado. A antropóloga Marilyn Stratherrn (1995) faz um estudo sobre parentesco pensando na sociedade euroamericana e nas novas tecnologias de reprodução que estão surgindo. Analisa as diferentes formas com que a maternidade é vista e entendida em outras sociedades. Seu estudo começa pela Grã-Bretanha, em 1991, com um caso polêmico que ficou conhecido como “síndrome do nascimento virgem” [mulheres que querem ser mães 232

mais não querem sexo (intercurso sexual)]. Foi um fator que gerou muita discussão, pois para alguns constituía em imoralidade, uma negação do modelo tradicional, uma ameaça a família nuclear, pois iria nascer uma série de crianças sem pai, além de se estar rompendo com a ordem da “natureza”, ou seja, a procriação através do meio elegido como “natural”, isto é, o intercurso sexual. Para Strathern (1995), a razão da polêmica estaria no fato de tais mulheres negarem o intercurso sexual como condição para procriação. Isto porque, na argumentação da autora, a sociedade euro-americana estaria presa a um modelo padrão de parentesco em que o intercurso sexual é colocado como condição necessária para legitimação das relações parentais. Como referência comparativa, a autora analisa a sociedade Trobriandesa, a partir das considerações etnográficas de Malinowski, onde existe separação entre sexo e procriação. As responsabilidades sociais e econômicas da criança ficam a cargo do tio materno. O pai é um “nutridor” e um “facilitador”, isto é, na concepção trobrian através do intercurso sexual ele “serve tanto para dar forma ao corpo da criança quanto para dar passagem pela qual a criança nasce” (Stratherrn 1995, p.323). Com tal comparação, o interesse da autora é mostrar o que é culturalmente pensável em cada sociedade. Na sociedade euro-americana sexo necessariamente está ligado à procriação. Desta forma o pai é aquele que contribui com o material genético e a mulher se torna mãe a partir do momento que dá a luz. O papel materno é classificado pela nossa sociedade como sendo inerente à mulher e o significado da maternidade varia de acordo com o ambiente em questão, é algo construído socialmente. Ainda que se possa desvincular sexo de procriação através do surgimento de práticas anticoncepcionais, desvincular sexo de maternidade não pode ser concebido na nossa sociedade. É Strathern (1995), ainda, que nos traz o argumento de que a paternidade e a maternidade são vistas em níveis diferenciados. Enquanto o pai é aquele responsável pelo sustento financeiro do filho, a mãe é aquela responsável pela relação afetiva da criança. A mulher é responsável pela esfera doméstica, enquanto o homem pela esfera pública. Exemplo: Se, no contexto da sociedade euro-americana, um homem engravida uma mulher ele vai assumir o papel de pai financeiramente falando, pois a lei obriga que ele assuma a paternidade. Porém a lei não pode obrigar que ele cumpra seu papel social de pai (carinho, afeto) e isso não causa tanto estranhamento como no caso da mãe que deixa de cumprir seu papel materno, essa será mal vista pela sociedade.

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Seguindo a linha de Strathern (1995), Rosely Gomes Costa (2001), também nos mostra através de um estudo comparativo com dados de pessoas que buscavam tratamento para esterilidade coletados em laboratório de reprodução humana, que o processo de esterilidade fere tanto a masculinidade quanto a feminilidade mesmo que de formas distintas, ou seja as constituições sociais no caso da paternidade é tida como um plano para o futuro e a maternidade, como algo visto como “natural” à mulher, um ‘sonho do passado’ que a acompanha por toda a vida, um sonho desde sempre existente no passado feminino. “Desta forma, parece que a representação é a de que as mulheres vão se constituindo mães ao longo de suas trajetórias de vida, e que a maternidade é uma experiência de continuidade, de repetição, de realização de um plano desde sempre elaborado no passado feminino. Seria uma perspectiva do passado que se atualiza em cada mulher no presente” (COSTA 2001, p. 121). Ainda segundo a referida autora, parece haver uma cristalização no nível institucional de uma representação em que às mulheres é atribuída a responsabilidade pela saúde reprodutiva cabendo aos homens o sustento através do trabalho remunerado fora de casa. Assim “a paternidade se estabelece em um determinado momento da trajetória do homem que é o casamento, desejo que se amadurece com o tempo. Já a mulher que não consegue ter filhos é sempre vista como culpada pelos seus parceiros”. A idéia da esterilidade masculina está associada, no plano das representações, à impotência sexual, uma ameaça à virilidade masculina. Entretanto, a autora mostra que a “paternidade é atribuição da masculinidade, mas não da mesma forma que a maternidade é atribuição da feminilidade, pois a maternidade para as mulheres é vista como instintiva e essencial. “Assim, como a esterilidade, a masculinidade pode estar associada à impotência sexual e pode ameaçar a virilidade. Como para as mulheres não há associação entre fertilidade e sexualidade (a gravidez independe da excitação sexual e do orgasmo), não conseguir ter filhos não ameaça sua sexualidade, mas coloca em questão sua feminilidade, porque as impede de cumprir sua vocação feminina “natural de mãe” (COSTA, 2001, p.120). A autora constata na pesquisa que a reação das pessoas acerca da incapacidade de ter filhos está marcada pelo gênero, sendo que a mulher é alocada a sensação de desespero e ao homem é alocada a tristeza, mas a superação de forma 234

mais rápida. Isso, segundo essa mesma autora pode servir para explicar os desesperos nas mulheres quando não conseguem ter filhos. O argumento é de que há uma clara desigualdade nos papéis entre os gêneros que pode ser encontrado em várias outras autoras e autores, os quais partem do princípio de que as desigualdades dos gêneros são construções produzidas através das relações sociais. Assim, “os Estudos sobre mulher, Estudos sobre gêneros ou representações de gêneros foram as formulas encontradas para institucionalizar a reflexão impulsionada pelo diálogo com o feminismo na academia brasileira. (Heilborn; Sorj 187). O termo mulher, a partir da década de oitenta, foi aos poucos substituído pelo termo gênero. Desta forma as acadêmicas feministas além de analisar a relação de gênero na organização da vida social, passaram a evidenciar como “o gênero afeta o conhecimento produzido pelas ciências sociais. (Heilborn; Sorj, 1999, p.187). Nesse sentido os acadêmicos podem reproduzir pensamentos machistas nas universidades caracterizados pela desigualdade dos gêneros. A mudança de estudos sobre a mulher para relações de gêneros provocou uma aceitação acadêmica nessa área de pesquisa. Por isso, é importante assinalar que a inclusão ou exclusão da mulher na economia capitalista não dá conta de toda problemática das questões feministas. No Brasil, as concepções marxistas sobre as questões feministas serviram para compreender a inserção da mulher no mercado de trabalho como força de trabalho industrial. Também procurava compreender a baixa remuneração e baixa qualificação das mulheres. Mas, a discriminação da mulher no mercado de trabalho é a reprodução ideológica das relações de gênero incutido na instituição familiar. Há, ainda, um outro recorte instituído pelos Estudos de Gênero que se refere ao fenômeno da violência doméstica. Essas análises permitiram o surgimento de legislação específica – Lei Maria da Penha – de punições para a violência doméstica. No senso comum e em alguns estudos o papel da mulher está associado “como objeto sexual passivo, mãe devotada e esposa obediente”. (Rosaldo ; Lamphere, 1979, p. 18). A biologia não determina a nossa organização social e comportamental. A biologia determina a nossa constituição física, mas os seres humanos têm a capacidade de interpretar o seu condicionamento físico e desenvolver organizações sociais correlacionando com o físico. Ortner (apud Rosaldo e Lamphere, 1999) aborda que os papéis diferenciados entre o homem e a mulher estão ligados à visão que a sociedade reproduz sobre a mulher, tidas como mais 'natural' do que o homem, ou seja, a mulher através da maternidade estaria mais próxima da natureza. Desta forma o homem 235

transcenderia tornando-se “mais culturável”, isto é, não estaria tão preso ao biológico como a mulher. Mas esta concepção é arbitrária, pois a condição física da mulher correlacionada com a natureza é vista como negativa proporcionando assim, a subordinação feminina. “Mas a observação por si só das diferenças físicas nos informam pouca coisa sobre o mundo social onde vivemos; para os homens, a biologia torna-se muito importante se interpretadas por normas e expectativas da cultura e da sociedade humana. Por exemplo, os biólogos podem dizer que, estatisticamente os homens são mais fortes que as mulheres, mas eles não podem nos dizer porque a força e as atividades masculinas em geral parecem mais valorizadas pelas pessoas em todas as culturas. Novamente, é fato biológico a lactação na mulher, porém as conseqüências comportamentais do fato diferirão, dependendo da disponibilidade do leite, da quantidade e qualidade protéica da dieta ou do predomínio de uma ideologia considerando, por exemplo, que a criança seja alimentada cada vez e cada hora” (ROSALDO; LAMPHERE, 1979, p. 21). É consenso que as mulheres em todas as sociedades são vistas como “segundo sexo”. Ainda que em algumas sociedades algumas tenham conseguido se destacar assumindo algum cargo de prestigio. “Enquanto a mulher for definida universalmente em termos de um papel amplamente maternal e doméstico seremos responsáveis por sua subordinação universal ((Rosaldo; Lamphere, 1979, p. 25). MULHERES, SISTEMAS PENITENCIÁRIOS E MATERNIDADE Partindo do pressuposto de que o público alvo deste trabalho – mulheres encarceradas e gestantes – guarda especificidades sociais, visto se tratarem de mulheres que se encontram em privação da liberdade e que apresentam uma trajetória de relação com a criminalidade, busco aqui analisar como a maternidade é vivida e representada em ambientes coercitivos e regidos por leis. Para tanto vale a pena entender um pouco das características do nascimento da prisão através dos argumentos de Foucalt (1985). “A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis criou a instituição prisão antes que a lei a definisse como pena por excelência”(Foucault 1985, p. 102). Há uma transformação da prisão a partir do final do século XVIII e início do século XIX. São trocadas antigas formas de punições, as quais giravam em torno de castigos rígidos e em público, por técnicas de 236

disciplinas específicas, em que o indivíduo é punido e “humanizado” ao mesmo tempo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que há privação de liberdade como forma de castigo, há uma forma de reeducar os indivíduos vigiando-os constantemente para devolvê-los à sociedade, “torná-los dóceis e adaptados à sociedade”. “Na passagem dos dois séculos uma nova legislação define o poder como uma função geral das sociedades que é exercida sobre todos os membros, e na qual cada um deles é igualmente representado; mas, ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz “igual”, um aparelho judiciário que se pretende autônomo, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, “pena das sociedades civilizadas” (FOUCAULT, 1985, p. 102). As instituições fechadas como a prisão apresentam características antagônicas, pois apresentam o discurso de serem corretivas e reabilitar o indivíduo, porém é regida por mecanismos administrativos de controle, punições e rigor. As instituições totais são caracterizadas por Foucault (1985) como instituições complexas e austeras, cuja principal tarefa é treinar os corpos, codificando comportamentos, costumes. O autor Erving Goffman (1981) caracteriza as instituições totais como o local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. Essas instituições totais não permitem qualquer contato entre o internado e o mundo exterior, até porque o objetivo é excluí-lo completamente do mundo originário, para que o mesmo se adapte as regras impostas pelas instituição (1961, p.11). “A instituição total é um hibrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal; aí reside seu interesse sociológico. Há também outros motivos que suscitam nosso interesse por esses estabelecimentos. Em nossa sociedade são as estufas para mudar pessoas; cada uma é um é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu. É Característicos dos internados que cheguem a instituição com uma “cultura aparente”( para modificar uma frase psiquiátrica ) “ derivada de um “ mundo da família”, uma forma de vida e um conjunto de atividades aceitas sem discussão até o momento da admissão na instituição.” (GOFFMAN, 1961, PP 22-23).

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Assim como Foucault (1985), para Goffman (1961) a instituição tem o poder de uniformizar o indivíduo, retirá-los de outros contextos sociais onde possam assumir papeis diferentes daqueles que a instituição lhes imprime. “Aparentemente, as instituições totais não substituem algo já formado pela sua cultura específica; estamos diante de algo mais limitado do que aculturação ou assimilação. Se ocorre mudança cultural talvez se refira ao afastamento de algumas oportunidades de comportamentos e ao fracasso para acompanhar mudanças sociais recentes no mundo externo. Por isso, se a estada do internado é muito longa, pode ocorrer caso ele volte para o mundo externo, o que já foi denominado “desculturamento”, isto, é destreinamento que o torna temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária” (GOFFMAN, 1961, PP 23). Desta forma, podemos entender que um indivíduo preso em uma instituição passa por uma série de transformações na sua vida sociocultural. Em se tratando de mulheres detentas na condição de mães e/ou gestantes, existe toda uma singularidade a se entender, devido ao papel social que a mulher exerce com relação à maternidade na nossa sociedade. Neste sentido, Brito (2007), faz uma análise etnográfica no Presídio Feminino de Florianópolis de como se configuram essas relações maternais em um ambiente penitenciário. No PFF, a experiência de presa que tem filho é destacada como um fator de grande importância, assim como trabalho, indica um status. “Ser mãe sempre as coloca em situação de privilégio sempre que discutem o sentido de ser mulher (2007:65). As mulheres grávidas e as mães que estão com os filhos na prisão ficam em uma galeria denominada berçário, nome dado pelas detentas. Para a autora as práticas dirigidas pelas autoridades prisionais mantêm um modelo que se apóia em construções sociais de gênero e tenta cultivar sentimentos de responsabilidade maternal e competências domésticas. Além disso, considera-se um direito a permissão da criança até 6 meses de idade ao lado da mãe e receber aleitamento materno, o que contribui para a manutenção de um desejo de experimentar a maternidade. No PFF, todas as mulheres que são mães apontam a distância dos filhos como sendo o maior problema enfrentado pela maioria delas. “Os filhos, dizem elas, dão sentido à vida é neles que pensam quando querem sair e é neles que pensam quando resolvem ficar na prisão. O assunto está ligado a ganhos no presídio que correspondem, sobretudo ao afrouxamento da pena ou a saída antecipada para cuidar dos filhos. É comum que demonstre

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saudade, vergonha e constrangimento pela circulação de crianças em casas de parentes e amigos” (BRITO, 2007 p. 69). Através do trabalho da referida autora foi possível compreender todo o contexto de transformação de uma mulher em detenta. No PFF ela nos mostra que, ao entrar na prisão, a primeira cela por onde a detenta passa é a cela zero, a qual é indesejada por todas, pois ficam solitárias, onde se fica um tempo em observação e depois se é transferida para outra cela. Desse trabalho foi entendido que as detentas se organizam como se estivessem na própria casa, há uma divisão de trabalho, todas as tarefas são executadas pelas mesmas, cada dia uma toma conta da cozinha que é o espaço mais importante da prisão; o espaço social é o que determina a posição de cada uma delas. Além disso, existe uma hierarquia de acordo com o tempo de detenção, sendo que as veteranas têm maior autonomia sobre as demais. Elas ficam organizadas em galerias, a cela Maracanã é o espaço em que ficam as ‘barraqueiras’, as celas asilos ficam as mais idosas e nas celas berçários ficam as detentas em final de gestação. As detentas podem se recusar a realizar alguma tarefa desde que assumam as conseqüências, que são na maioria das vezes relatórios sobre suas condutas que serão entregues ao juiz posteriormente. Elas criam também laços de amizade podendo assim perceber que a prisão não é um mundo à parte. Segundo Brito, no PPF, as representações dentro do presídio refletem as experiências fora dele, ou seja, elas não perdem todos os princípios que aprenderam ao longo de suas trajetórias. Entretanto, há uma re-significação em que os papéis são reafirmados a partir de contextos particulares e eventuais. As mulheres que não se dedicam a tarefas domésticas, não são consideradas aptas a exercer a maternidade, a competência doméstica está no mesmo nível que a responsabilidade maternal. No PPF, a permanência da criança até 6 meses junto a mãe se caracteriza pelo direito da criança de conviver com a mãe, mas principalmente para manutenção de um desejo das mulheres de experimentar a maternidade. Ainda de acordo com Brito (2007), ter um filho desperta um sentimento de solidariedade entre as detentas. existem formas diferentes e adaptadas para manter o lugar da maternidade e das relações em torno e através da maternidade. Através das experiências das detentas narradas pela autora existem várias mães e várias formas de ser mãe em um ambiente formalmente administrado. Nos argumentos de Santa Rita (2006) “a maternidade torna-se limitada em razão dos muros (visíveis e invisíveis) de uma prisão. O encarceramento feminino, 239

além de relacionar diversas restrições intramuros, como visita íntima, ultrapassa o ambiente da prisão. Longe de ser um espaço para reintegração, a prisão de mulheres parece ter seus efeitos mais perversos na quebra de vínculos familiares no abandono da criança. Ela aponta para o não cumprimento nos conjuntos penais dos direitos humanos garantidos pela Lei de Execução Penal (Santa Rita, 2006). “Sabe-se que a constituição Federal e lei de Execução Penal não definem um período de tempo mínimo para permanência da criança junto à mãe que cumpre pena de prisão; apenas mencionam o direito que tem a mãe de amamentar seus filhos ou filhas. Assim em termos legais, a mulher presa tem o direito de permanecer com o filho no período de aleitamento, em instalação de berçário. Com isso, a maternidade na prisão pode constituir-se de forma ambígua: de um lado como fator de felicidade de outro como e ao mesmo tempo como dupla penalização, face ao momento de separação entre a criança e a mãe presa” (SANTA RITA, 2006 :210). “A constituição Federal de 1988, marca uma nova ordem democrática incorporando direitos estabelecidos na declaração de 1948, estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos princípios básicos da estrutura constitucional brasileira, ou seja, como fundamento maior da construção do Estado Moderno” (Santa Rita 2006, p.206). Neste sentido, “ao invés de reiteração, a prisão de mulheres produz efeitos perversos como exclusão e quebra de vínculos familiares. Santa Rita constata que apesar do dispositivo legal existem algumas unidades prisionais da Federação que possuem um local destinado para mulheres, ainda que haja uma separação por gênero” (Santa

Rita 2006, p.208). As formas de assistência regida pela Lei de

Execução Penal-LEP, como dever do Estado e de direito da pessoa presa fica a mercê da burocracia do sistema de funcionamento da instituição . “O locus da prisão é concebido como o lugar de perda da dignidade humana, onde injustiças se agravam ainda mais pelas concepções estruturais , arquitetônicas e comportamentais do Sistema Penitenciário . Sobre isso, vale a pena citar Foucault: “O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições cientificas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência” (FOUCAULT,1987, P.40 apud SANTA RITA, 2006, P. 207).

240

“De acordo com a constituição da República são asseguradas condições para que as presidiárias possam permanecer com seus filhos durante a amamentação por esse motivo houve uma alteração na lei de Execução Penal para incluir o mandamento de instalação de berçário e ambientes penitenciários específicos para mulheres” (Santa Rita 2006, p.209 ). A constituição federal por sua vez não define o tempo que a criança deve ficar junto à mãe no ambiente penitenciário, apenas assegura que a criança tem direito a amamentação, o que se torna um fator de ambigüidade, pois se por um lado há uma felicidade da mulher poder amamentar, por outro o sofrimento quando acriança tiver que se ser separada da mãe. (Santa Rita 2006, p.210). “Ao tratar do comprometimento das diversas práticas do encarceramento feminino, verifica-se que há vários problemas que são negados , desconhecidos e que se tornam invisíveis, como mães que não têm com quem deixar seus filhos tendo que entregá-los para estabelecimentos de abrigos para crianças. (Santa Rita 2006, p.210 ). Portanto, além da dissertação de mestrado de Mirella Brito (2007) que dedica um de seus capítulos para tratar da maternidade no cárcere, o único estudo que se propôs a estabelecer analiticamente paralelos entre maternidade e o cárcere, foi o estudo de Santa Rita (2006), desenvolvido como dissertação de mestrado em serviço social, cujo enfoque recai sobre os direitos legislativos garantidos às mulheres e que são violados em grande parte das instituições prisionais brasileiras. Desta forma, procurei chamar atenção neste trabalho sobre a maternidade para além das implicações biológicas e naturais e do que é constituído por leis e sim atentar para suas implicações sócio-culturais (por isso a importância da bibliografia sobre instituições fechadas e desigualdade entre gêneros) visto que as práticas representadas se apóiam em construções sociais de gênero. Nesse sentido podemos concluir que a maternidade é um elemento importante que opera nas relações interpessoais nas instituições prisionais e que, embora, possa ganhar configurações diferentes a depender do contexto analisado, sempre conserva sua interface com noções de feminilidade (“ser mulher”), no sentido de algo que é socialmente construído.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS: BRITO, Mirella Alves de. O Caldo na panela de pressão: um olhar etnográfico sobre o presídio para mulheres em Florianópolis. Dissertação de mestrado defendido ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Universidade Federal de Santa 241

Catarina. Florianópolis, 2007. COSTA, Rosely Gomes. Concepção sobre maternidade entre mulheres que buscam tratamento para esterilidade. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas/SP, 1995. COSTA, Rosely Gomes. “Sonho do passado versus plano para o futuro: gênero e representações acerca da esterilidade e do desejo por filhos”. Cadernos Pagu (17/18) 2001/02: 105-130. GOFFMAN, Erving, Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Ed. Perspectivas, 1961 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2007. HEILBORN, Maria Luiza; SORJ, Bila. “Estudos de gênero no Brasil”. In: O que Ler na Ciência Social Brasileira. ANPOCS. Sumaré. Brasília. 1999. ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. “Introdução”. In: A Mulher, a cultura e a Sociedade. Tradução de Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1979. SANTA RITA, Rosângela Peixoto. Mães e Crianças atrás das Grades: em questão o princípio da dignidade da pessoa humana. Dissertação de mestrado em Serviço Social. Universidade de Brasília (UnB). Brasília, 2006. STRATHERN, Marilyn. “Necessidade de pais, necessidade de mães”. In: Revista de Estudos Feministas. V. 3 n. 2, Rio de Janeiro, UFRJ/UFRJ, 1995, PP. 303-329.

242

24. Os processos de comunicação social da ciência em Cachoeira

Miria Alves da Silva96 Bolsista da PROPAAE Orientadora: Maria de Fátima Ferreira97 Apresentação O objetivo deste texto é apresentar e comentar os resultados dos processos de comunicação social da ciência, que é parte do questionário aplicado em estudantes do último ano do ensino médio do Colégio Estadual de Cachoeira da Cidade de Cachoeira – Ba, com recorte questões fechadas. Esses dados compõem a pesquisa mais ampla intitulada Pesquisa Percepção Pública da Ciência no Recôncavo da Bahia, realizado pelo Grupo de Pesquisa Cultura Científica, Gênero e Jornalismo, coordenado pela PROFª.DRª. Maria de Fátima Ferreira, do qual faço parte como bolsista PROPAAE. O questionário foi aplicado com o intuito de conhecer as idéias sobre ciência e tecnologia entre a população da Cidade de Cachoeira no Recôncavo da Bahia, com questões abertas, respostas livres dadas pelos entrevistados, e fechadas com alternativas previamente estabelecidas. As 47 pessoas que compõem a pesquisa mais ampla, com 300 entrevistados, são estudantes do último ano do ensino médio do Colégio Estadual de Cachoeira, não havendo delimitação de idade, sexo ou classe socioeconômica. A Cidade de Cachoeira situada no Recôncavo da Bahia é tombada há 40 anos como Monumento Nacional, pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, caracterizada por suas formas de expressões culturais afrodescendentes, possuidora de saberes populares de povos antigos remanescentes de quilombos e povos de terreiros que vigoram entre gerações. PROCESSOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA CIÊNCIA Os resultados 96

Acadêmica do Curso de Comunicação Social/Jornalismo, e-mail: [email protected]

(71) 9201-3803 97

Profª. Adjunto do Curso de Comunicação Social/Jornalismo, CAHL, UFRB, Cachoeira - Ba.

243

Os dados socioeconômicos dos entrevistados são de importante relevância, pois é uma maneira para verificar as possibilidades de acesso das pessoas de determinada classe socioeconômica as informações sobre ciência e tecnologia. Os entrevistados tinham idade entre 17 a 51 anos, 57% do sexo feminino e 43% do sexo masculino, em sua maioria pertencentes à classe econômica baixa da população, como mostram as tabelas a baixo:

IDADE

No.

%

17-19 anos

28

60%

20-27 anos

16

34%

43-51 anos

02

4%

NR

01

2%

TOTAL

47

100%

No.

%

Sem renda

27

57%

Até R$ 510,00

14

30%

RENDA INDIVIDUAL

R$ 510 até R$ 1.020,00 TOTAL

06

13%

47

100%

GÊNERO

No.

%

Feminino

27

57%

Masculino

20

43%

TOTAL

47

100%

RENDA FAMILIAR

No.

%

Sem renda

03

6%

Até R$ 510,00

19

41%

R$ 510 até R$ 1.020,00

11

23%

08

17%

R$ 1.020,00 até R$ 1.530,00

244

R$ 1.530,00 até R$

02

4%

Não sabe

04

9%

TOTAL

47

100%

2.550,00

O

O primeiro questionamento da entrevista sobre a comunicação social da ciência traz a pergunta: você se considera uma pessoa informada no que se refere à ciência e a tecnologia? 75% dos entrevistados responderam que se consideram pouco informados e 15 % informados. Como mostra o gráfico 1. Gráfico 1

Na questão em que se pergunta o porquê se informa, quando faz, sobre ciência e tecnologia, 32% das respostas foram porque acham necessário para um bom desempenho na profissão, trabalho ou /e escola. O interesse pela informação sobre ciência e tecnologia ainda está muito ligado às obrigações relacionadas às atividades profissionais e escolares, apenas 2% declaram ter gostos especial pelo tema.

245

Gráfico2

No questionamento, em quais veículos de comunicação buscam informações sobre temas de ciência e tecnologia, escolhendo três veículos que mais utilizavam em primeira, segunda e terceira opções, os números apresentam que a Televisão é o meio mais utilizado obtendo 77% como primeira opção de veículo para a obtenção de informações sobre ciência e tecnologias, e a Internet em segunda opção com 37% e em terceira opção a Internet e o Jornal impresso com 26%. A presença de uma tecnologia relativamente nova como a internet ocupando a segunda e terceira opções de veículo para obtenção de informações sobre assuntos relacionados com ciência em uma cidade do interior da Bahia, sobrepondo-se ao rádio, é um indicativo de poderio desse meio de comunicação, conforme gráficos 3, gráfico 4 e gráfico5. Gráfico 3

246

Gráfico 4

Gráfico 5

247

A televisão, segundo 70% dos entrevistados, tem influenciado a sua vida cotidiana e, um percentual de 30% acha que esse veículo de comunicação não exerce influencia cotidianamente em sua vida, exposto no Gráfico 6. Gráfico 6

No questionamento se o rádio influencia na vida cotidiana, 60% responderam que não oferece influencia em sua vida. Gráfico 7

248

O jornal impresso obteve um índice inferior ao da revista quando questionados se lêem esses dois meios de informação, 36% lêem jornais impressos e 60% lêem revistas como mostram os gráficos 8 e 9. Gráfico 8

Gráfico 9 Você lê revistas?

Sim

40% Não

60% No questionamento escola em que

se

na

estudam

disponibiliza jornais e revistas atualizados para sua informação, 36% responderam que sim e 64% responderam que não. Gráfico 10

249

O resultado apresentado, no gráfico 11, demonstra que 60%, um percentual significante dos entrevistados não possuem computadores em sua residência. Nem todos que possuem computadores têm disponível em sua casa serviços de internet, como mostra o gráfico12. Gráfico11

250

Gráfico12

A internet atualmente é a tecnologia que tem uma representatividade no mundo globalizado, meio ainda mais veloz para comunicar-se em um curto espaço de tempo. A frase se os entrevistados consideravam a internet como uma verdadeira revolução na vida cotidiana tinha por finalidade obter na forma de concordância ou discordância, como percebem essa tecnologia no meio em que vivem. Uma grande maioria, 81% concordam. Gráfico 13

251

A frase questionando se concorda, discorda ou não sabe se a internet é uma nova forma de dominação cultural, vem afirmar com 64% de concordância que essa tecnologia não está sendo vista como um meio democrático em que qualquer cultura teria a mesma visibilidade. Gráfico 14 A internet é uma nova forma de dominação cultural?

10% Concorda Discorda

26%

Não sabe

64%

Questionário social da Pesquisa de percepção Pública da Ciência no Recôncavo da Bahia, aplicado no ano de 2010 pelo Grupo de Pesquisa Cultura Científica, Gênero e Jornalismo, coordenado pela professora doutora Maria de Fátima Ferreira

252

25. A LINGUAGEM DOS EXTREMOS: DIÁLOGOS ENTRE TEATRO E CINEMA NA CENOGRAFIA DO CURTA RUA DOS BOBOS Ohana Almeida de Sousa Assis98 RESUMO: O cinema contemporâneo vale-se da criação de novos dispositivos e

outras formas de diálogo para construção dos seus discursos. O presente trabalho propõe refletir a concepção cenográfica e de mise-en-scène do roteiro de curtametragem Rua Dos Bobos 99 , que surgiu a partir do pensamento sobre os limites existentes em espaços sem paredes. O estudo do tema proposto se dará pela reflexão cenográfica e de mise-en-scène do filme Dogville, de Lars Von Trier (2003) e da construção de conceitos a partir do estudo da passagem entre as formas teatro e cinema, bem como ao processo de comunicação do Teatro Épico e das contraposições da arquitetura cênica de Adolphie Appia e Gordon Craig, tendo em vista como produto final à produção do curta. PALAVRAS-CHAVE: cinema, teatro, cenografia e mise-en-scène.

Introdução

A abertura do teatro para a tela, seja ela direta ou derivada, tem a mesma época do cinema, que se afastou dessa linguagem para realizar obras originais a partir de outras artes como a fotografia e a literatura. As questões decorrentes da passagem do teatro para o cinema se deram em função da história das configurações teatrais, das técnicas cinematográficas, das relações mantidas entre as duas linguagens, da influência da 98

Discente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - Centro de Artes Humanidades e Letras.

Bolsista do Grupo de Educação Tutorial – PET Cinema, coordenado pela Prof. Doutora Rita Lima. [email protected] (75) 9145-9951

99

Roteiro de Ohana Almeida de Sousa e Guido Mintz Dias, aprovado na disciplina de Linguagem e Expressão Cinematográfica I, ministrada pela Prof. Angelita Bogado.

253

mídia e da ascensão das tecnologias de informação. Pode-se constatar na última década do século XX, que do mesmo modo que o teatro está marcado pela cultura cinematográfica, o cinema também continua ligado ao teatro. A divergência que por muito tempo procurou dividir cinema e teatro era sustentada pela vontade de estabelecer a especificidade do cinema e a necessidade de defendê-lo como gênero diferenciado e legítimo, que não poderia se apoderar do teatro pelo preceito de ser uma arte clássica, em geral, caracterizada e marcada pela preponderância do texto, rigidez, exagero na atuação, frontalidade, limitadas unidades de lugar e tempo e, por fim, artificialidade, ou seja, aquilo que o teatro vem tentando se emancipar pelo curso do teatro moderno, que recorre à dramaturgia fragmentada, montagem, valorização do corpo em movimento, a releitura da tradição, novos lugares cênicos e outras formas. No início, o teatro também representou um reservatório de formas, situações e histórias para os cineastas. O cinema atualmente se tornou a memória vívida e comum de gerações de dramaturgos que aprendem parte de sua profissão e realizações assistindo aos filmes. As trocas e interações dessas duas artes podem ser infinitas. O teatro evoluiu ao mesmo tempo em que o cinema se desenvolvia, se movimentando com ele, abrindo algumas propostas ou resistindo a elas. Tais interações dizem respeito aos campos artísticos como encenação, cenografia, escrita, atuação; quanto aos campos técnicos como luz e som, se modificando conforme a época. Portanto, atualmente o contexto das diversas mídias de comunicação abre uma aproximação entre essas duas vertentes. Isso se deve a multiplicação tecnológica dos meios de produção, reprodução e das necessidades de imersão. Teatro e cinema podem se interpelar de maneira nova, em uma cultura na qual as fronteiras entre as artes se misturam, propondo novas visões e sensações. O filme cede ao teatro um espaço de intervenção no fluxo das telas e o possibilita introduzir um tempo que é seu. Esse artigo propõe, a partir dessa perspectiva, trabalhar a junção entre a “linguagem dos extremos” tendo em vista os pontos de cenografia e mise-en-scène do roteiro de curta-metragem Rua dos Bobos, que visa refletir a correlação do indivíduo dentre paredes e a ruptura de convenções. A criação supõe um teatro, visto que o espaço é limitado, com o qual o cinema se confronta e completa.

254

I. Conceitos O Conceito de Cenografia

Seja no teatro ou no cinema, encontramos um elemento fundamental para construção do espetáculo: a cenografia. Podemos considerar a cenografia como uma composição em um espaço tridimensional que utiliza elementos como formas, volumes, linhas, cores e luz. Por ser uma composição, ela agrega movimentos, contrastes, que podem ser equilibrados ou não. Cada espetáculo tem uma proposta e objetivo diferente, pois possui sua linguagem específica. O termo cenografia vem do grego Skenographie, que significa escrever em cena (Skené – cena; Graphein – escrever, pintar, desenhar), podemos encontrar esse conceito em A Poética de Aristóteles, que servia para designar algumas concepções criativas da cena. Posteriormente em De Architectura, de Vitruvio, deparamos com o termo em latim Scenographia, usada para definir no desenho a noção de profundidade. Na época do Renascimento, os textos de Vitruvio foram traduzidos e o termo cenografia foi utilizado para designar a descrição em perspectiva do cenário do lugar teatral100. “A cenografia existe desde que existe o espetáculo teatral na Grécia Antiga, mas em cada época teve um significado diferente, dependendo da proposta do espetáculo teatral. O teatro é, como toda arte, intimamente relacionado com o meio social onde surge, e será definido conforme o pensamento de cada época.” (MANTOVANI, p.14) Na Antiguidade o cenário era fixo, com poucos elementos e servia de ornamentação para a cena. O cenário da Idade Média adquire um caráter místico e religioso, que representava um lugar, seja o céu, a terra, o inferno, onde o ator atuava. Na Itália, o Renascimento trouxe os cenários tridimensionais, utilizava a técnica da perspectiva central e recriava paisagens urbanas ou campestres, diretamente relacionado ao gênero que seria trabalhado (comédia, tragédia ou sátira). O Renascimento na Inglaterra trabalhava a cena elisabetana, onde o cenário construído era imutável, sendo acrescentados alguns elementos cênicos que variavam de acordo com o tipo de encenação. O cenário Barroco tinha como objetivo principal deixar o público

100

Diz-se lugar teatral, pois é onde está apresentado o lugar cênico/lugar do espectador. Teatro constitui o edifício teatral.

255

vislumbrado com os detalhes grandiosos, ricos e cheio de truques, a partir da construção tridimensional também utilizada no Renascimento. A Revolução Francesa transforma o contexto social, a concepção do artista e sua obra. O surgimento da locomotiva e a velocidade na Revolução Industrial mudam o olhar. A fotografia altera o panorama artístico. O sistema de fábrica e a luz artificial, desconfiguram o comportamento da sociedade e o cotidiano. No início do século XX a fotografia ganha destaque e é considerada arte. Os meios de comunicação se transformam e passam a fazer parte do cotidiano. O cinema vira uma indústria que modificará o comportamento das pessoas. A dramaturgia e os espetáculos, sejam teatrais ou cinematográficos, também inovam. Os elementos construtivos de cada gênero agora passam a ser intensivamente questionados. Era grande o contraste dos cenários entre locações externas e ambientes de estúdio nos primeiros filmes. Os cenários construídos nos estúdios eram feitos seguindo as regras cenográficas do teatro popular da época, que não se preocupavam em criar ambientes realistas 101 . Flávia Cesarino diz em seu livro O Primeiro Cinema, que muitos dos cenários construídos em estúdios aproveitavam os painéis, móveis e objetos utilizados em espetáculos teatrais. As produtoras também contratavam carpinteiros e marceneiros de teatro para montar os cenários para os filmes, estes, por sua vez, traziam consigo toda uma referência da estética do teatro. Os cenários compunham-se de painéis pintados que representavam ambientes internos e externos que davam a ilusão de perspectiva. Alguns objetos reais eram colocados para dar sentido à cena, mas ficavam artificiais nos filmes, o que fez com o cinema, dentro do seu processo evolutivo, trabalhasse sua própria constituição cenográfica. Enquanto o teatro pode ser considerado uma arte no espaço, o cinema é uma arte feita do espaço, reproduzindo de forma realista o espaço material real e cria um espaço específico. Existe uma relação de interdependência entre o espaço cênico e aquilo que ele contém, uma vez materializado, ele diz a respeito dos personagens, das suas relações recíprocas e com o mundo. O cinema trata o espaço de modo que, ao reproduzi-lo, faz com que o experimentemos através dos movimentos de câmera. Com isso, produz um espaço global, sintético, através da justaposição e sucessão de espaços fragmentados, formando uma unidade narrativa.

101

Ver Flávia Cesarino Costa, O Primeiro Cinema, Editora Página Aberta, 1995, p-93.

256

Cenografia hoje é um ato criativo, que se alia ao conhecimento de técnicas e teorias específicas, tendo primeiramente a intenção de organizar visualmente o lugar para encenação e que nele se estabeleça a relação cena/público, cena/espectador. O cenário é o produto deste ato criativo e precisa traduzir as intenções desejadas dentro do contexto a ser encenado. Criar e projetar um espaço cênico integrado a proposta central da encenação, quanto o uso adequado dos elementos e materiais propostos significa fazer cenografia.

Os Conceitos de Mise-en-Scéne Mise en Scène: colocar em cena, levar alguma coisa para a cena e mostrá-la. A encenação é o ato de pôr em cena, ou seja, corresponde a ação de representar um espetáculo. Dessa forma, a encenação une diversas manifestações e pode ser entendida como a revelação cênica de um discurso, que utiliza elementos visuais e sonoros a partir de uma idéia central. Para que este discurso seja sustentado, há um conjunto de componentes, como a organização do espaço cênico, a ambientação visual e sonora, o trabalho do ator e do diretor, a linguagem verbal ou não-verbal. “No início do século XX a arte da encenação exigia o apoio de um bom texto. Quanto à arte de representar, ela utilizava, aperfeiçoava e inventava técnicas, cada uma das quais era um meio de visualizar, materializar, encarnar uma ação, situações, personagens, tudo quanto fora previamente imaginado por um escritor.” (ROUBINE, 1998.) A história da encenação teatral é a de um crescimento constante da função do encenador: ele espacializa e gestualiza o texto; em seguida, articula cada vez mais elementos de interpretação e constrói até uma grande interpretação do texto.102 No início do século XIX surgiu o papel do encenador – aquele que comanda a unidade do espetáculo – assumindo o lugar, até então do diretor de cena ou do ator principal. Essa mudança ocorreu quando as técnicas, principalmente as de iluminação, se tornaram mais complexas e o diretor de cena não estava mais preparado para regular a maquinaria e o palco, assim como as convenções do teatro clássico, que dominavam a encenação, foram sumindo gradualmente.

102

Jacques Aumont, O Cinema e a Encenação, Lisboa, 2008.

257

As revoluções e iniciativas para cativar o público nos espetáculos – cenários, iluminação, associação com outras artes – reforçam a importância do encenador como criador e intérprete da obra teatral, que durante o século XX, oscilaram entre o realismo e a convenção clássica, mas nunca deixaram de decidir qual vertente seria trabalhada. Em Film Tecnique, Vsevolod Pudovkin elenca o essencial da história do cinema nas primeiras décadas do século XX. Ele acompanha a passagem do filme em único plano estático para os filmes com diversos planos e variados pontos de vista. Com isso, ele demonstra que a segunda maneira é mais eficaz, visto que elimina os tempos mortos e os espaços vazios vistos na encenação teatral, onde o ator precisa de tempo para trabalhar o espaço no palco, o que permite a construção de narrativas claras que dirigem o olhar do espectador para o que importa na imagem. Na história do cinema, a obsessão pela estrutura e estruturação começou cedo, manifestando-se inicialmente de maneiras diversas, dividindo um tropismo comum pela organização plástica e gráfica na composição do quadro. Nos anos 30, a encenação era uma disciplina que respeitava totalmente o que era exigido por um texto, em certos casos, podia-se recompô-lo, mas a concepção da encenação continuava secundária. A partir dos anos 50, a chegada das formas cinematográficas com a evolução e sofisticação dos meios técnicos, transformaram profundamente o caráter do que se chamava encenação.

II. O diálogo Teatral no filme Dogville de Lars Von Trier

A leitura de obras atuais aponta para uma produção que se destaca por inovação da linguagem. Combinando elementos advindos do teatro com o cinema e a literatura, o trabalho de apropriação e junção de linguagens, vistos em Dogville (2003)103, de Lars 103

Dogville é uma pequena vila a oeste dos Estados Unidos. A personagem principal, Grace, é uma

fugitiva de gângsteres que encontra a cidade e depois decide ficar. Começa a ajudar os moradores de Dogville provando sua bondade. Não mais satisfeitos com a ajuda de Grace, começam a explorá-la, dando a justificativa de que ela os põe em perigo. Após vários abusos, Grace é delatada aos gângsteres dos quais escapava quando chegou à vila. Quando chegam a Dogville, os gângsteres, por serem empregados do pai de Grace, divergem do tratamento dado à protagonista e aferem a ela a oportunidade de se vingar da comunidade. Grace resolve assassinar cada habitante de Dogville, ficando salvo apenas o cão Moisés, o único que tinha razões para ser agressivo com ela.

258

Von Trier, articula alegorias que conduzem o espectador para uma experiência estética nova, dificilmente encontrada nas produções comerciais. Para contar a história de Grace, Lars Von Trier situa toda a ação de Dogville num “estúdio de representação” 104, projetando os fatos em uma ambiente que se assemelha com uma planta desenhada, sem nenhuma parede. As personagens transitam pelo cenário através de portas invisíveis (que muitas vezes percebemos a presença através da banda sonora), podemos ver todos os habitantes da vila fazendo suas ocupações seja dentro ou fora de suas casas, alguns acessórios, também invisíveis, como o cão chamado Dog ou os legumes da horta, são marcados com giz no chão. Nesta cenografia, o cineasta realiza o filme exatamente como poderia fazê-lo em um cenário naturalista, com paredes, portas e acessórios visíveis. Essa variedade de elementos oriundos do teatro confere ao espectador a impressão de um grande palco filmado, até a narrativa ambientar e prender a atenção para as questões socio-comportamentais, foco da discussão do filme. A falta de cenários e a pantomima destacam o cunho narrado das peças. O cenário realista, em si, é sem dúvida um elemento narrativo encoberto, já que apresenta o ambiente que no romance costuma ser descrito pelo narrador e, no texto dramático, pelas rubricas. É como se no romance nos defrontássemos com uma pantomima sem requisitos. O dramaturgo épico aproveita-se da mesma capacidade projetiva do público. Este preenche o que o narrador apenas sugere. 105 É importante salientar que mesmo com a proposta de distanciamento a partir do cenário não naturalista, não há um afastamento absoluto. A maioria das vezes, a “câmera na mão” dá um aspecto documental à encenação, visto que a mesma segue as personagens representando o olhar humano diante do comportamento dos indivíduos. Quando a câmera começa a seguir uma personagem, não podemos evitar a sensação de entrarmos em um mundo irreal, mas suficientemente coerente para existir independentemente de nós.106

104

Aumont, p.161.

105

Anatol Rosenfeld, O Teatro Épico, Perspectiva, 2008.

106

Aumont, p. 163.

259

Para Anatol Rosenfeld, esse tipo de recurso, serve ao propósito da desconstrução do comum, da vida como ela está, contribuem para facilitar certo distanciamento, além de solicitar a imaginação do público e contribuir, pela abstração, para elevar o singular e local ao universal. O ritual géstico acentua-se fortemente - às vezes com certa ironia, chegando mesmo ao grotesco - devido à ausência dos objetos que o movimento deveria deslocar. Há em tudo certa desmaterialização, algo do irreal se infiltra, parecendo transformar a vida humana em dança fugaz.107 A apropriação dos elementos do teatro, de símbolos da literatura e da mitologia vistos no filme, gera contraversões, motivos para reflexão, perante a complexidade de cada personagem, que propõe representar as pessoas que estão do lado de fora da tela. Ao mesmo tempo em que diverge das produções de Hollywood, a obra de Lars Von Trier internaliza alguns princípios do teatro épico, se identifica com o teatro dramático e conclui de forma aristotélica. Ao final de Dogville, a vingança é purificante, mas nem por isso menos reflexiva. Há um desejo de não apresentar apenas relações interhumanas individuais, próprio do drama, mas também os causadores dessas relações. As contradições e significações simbólicas construídas a partir da cenografia e miseen-scène pelo cineasta, não corresponde a regras, nem impõe uma só linha de representação, permitindo, assim, leituras também divergentes. III.Construindo os Conceitos Temáticos do Curta-Metragem Rua dos Bobos

Historicamente, a cenografia atrai o espectador e o impõe ou a desmistificar a descrença ou a aceitar o espaço cênico como um lugar neutro, mesmo sendo talvez simbólico e especial. Certas cenografias modernas tentaram combinar as duas necessidades, mas muitas cenografias pós-modernas contrariam os dois processos.108 A cenografia moderna afastou a imagem do mundo específico para um domínio generalizado e poético, onde a imagem funciona como uma extensão dos temas abordados na narrativa. Essa cenografia moderna começou com os escritos teóricos de Adolphe Appia109 e Edward Gordon Craig 110 , que necessitavam de uma teatralidade caracterizada pela 107

Rosenfeld, p. 133.

108

Cadernos de Teatro, nº 130, p. 14.

109

Adolphe Appia (1862-1928) – diretor, cenógrafo e teórico suíço. Escreveu sobre a obra de Richard Wagner.

110

Edward Gordon Craig (1872-1966) – ator, diretor, cenógrafo, teórico e artista plástico. Produziu inúmeros estudos sobre suas propostas cenográficas.

260

simplicidade, sugestão, abstração e grandeza dentro do cenário tridimensional, que unia o ator ao espaço cênico. Para Craig, o cenário não é a criação de um espaço divertido, e sim, um lugar que esteja em harmonia com os pensamentos poéticos. Ao estar em harmonia com o movimento dos atores, o cenário se torna integrado e participa de sua revelação. Enquanto um cenário naturalista representava a teoria sociológica, o “cenário novo” transmite a essência espiritual do objeto, e o espaço tridimensional esculpido com luzes era essencial para criação de Appia. Appia questionava o teatro à italiana como arquitetura teatral e preconizava um lugar teatral que caminhasse com as novas propostas dramatúrgicas, que fosse leve e transformável para permitir novas relações entre cena e público, abominava qualquer elemento decorativo que não fosse útil, além de priorizar a plasticidade em função da encenação. Ao contrário de Appia, mesmo que ambos fossem preocupados com a situação do teatro da sua época, Craig não privilegiava nenhum elemento, mas a valorização da unidade do espetáculo com todos os elementos reunidos (gestos, linhas, cores, movimento, tecido, atores), utilizava isso como forma de revelação do Universo, belo, simples, e que através dos símbolos trabalhasse a unidade e primazia dos elementos visuais. A partir desses conceitos, a proposta cenográfica vista no roteiro de Rua dos Bobos agrega os valores de ambos. O espaço cênico que será trabalhado a partir de uma ambientação sem paredes; em lugar aberto; com a influência direta da luz do dia; com um cenário que se estabelece a partir de três volumes (armário, mesa e cadeira); objetos cênicos de construção simbólica para a narrativa (papéis, álbum, panela, xícara, baldes, boneca) induz a concepção poética e de revelação em um espaço não naturalista, que prima à reflexão aberta sobre as convenções internas dos indivíduos dentro de qualquer espaço e sua relação material. Tendo em vista o conceito da cenografia, podemos elencar a mise-en-scène como o próximo passo. Existem duas tendências de encenação no teatro: colocar-se na pele do personagem (Stanivlaski - Actor´s Studio-1947) ou desempenhar sem encarnar (Distanciamento- Brecht). Sabemos que a identificação, indispensável na catarse, enraíza-se na escrita e principia com a credibilidade da obra teatral. Nenhuma imperfeição da “imitação” deveria impedir o espectador de acreditar no que é

261

representado diante dele. Por isso, a necessidade do ator de dar vida ao personagem de forma qualificada para que este crie um vínculo com o público111. Para Ryngaert, quando colocamos em evidência esta interpretação da identificação, falamos da doutrina clássica de Aristóteles, na qual se coloca que “é necessário instruir e divertir e convencer o espectador pela imitação da natureza”. Que seja no teatro como imitação, ou no teatro com distanciamento, existe uma identificação do espectador. Mesmo que o espectador não deixe de perceber o teatro como teatro, o ator como um indivíduo que está representando ou atuando, existe uma identificação no sentido que o espectador não é mais passivo, mas se projeta no espaço teatral 112. O receptor distingue o ator da personagem e mantém ao mesmo tempo a consciência de si próprio e de suas próprias idéias. As coisas que vivenciamos na vida podem ser separadas nos reinos do conceito e sentidos. Assim propõe a personagem em Rua dos Bobos, as características que a define (roupa, nenhuma informação direta sobre suas histórias ou meio-social) faz dela o veículo de uma idéia. O receptor preenche este vazio de informações a partir de suas próprias ideias a respeito daquilo que é mostrado em cena, ou seja, da relação que a personagem apresenta na mise-en-scène e sua aproximação com os objetos cênicos. O espetáculo é um espaço de projeção do espectador em relação ao que se passa no palco/cena e de reflexão sobre este ato. A partir da imagem, no modo de mostrar, a perspectiva narrativa dizer respeito à percepção do mundo sentimental mediante um sujeito perceptor: narrador ou ator. Influenciada pelo psiquismo do perceptor, o ponto de vista aqui empregado é da visão de fora ou focalização externa trabalhada no Teatro Épico. “O homem concreto só pode ser compreendido com base nos processos dentro e através dos quais existe. E esses, particularmente no mundo atual, não se deixam meter nas formas clássicas.” (ROSENFELD, p. 147) O intuito didático do teatro brechtiniano prevê um impacto mágico na identificação emocional, elevando essa emoção ao raciocínio. A forma épica de teatro proposto por Brecht trabalha a narração, tornando o espectador um observador que desperta a atividade do raciocínio por impor-lhe em face algo, utiliza o ser como objeto de pesquisa (observação do ser mutável), que se desenvolve a partir de tensões e promove uma mudança processual. Tais processos de comunicação do teatro épico dialogam com a situação da personagem proposta no roteiro. A história de uma mulher, em torno dos quarenta anos, que passa por situações atemporais (dentro do conceito de unidade narrativa visto que o tempo não muda, não há noite), se depara com conflitos internos sobre as convenções que carrega ao longo da vida (seja familiar, ideológico ou material) buscando se desvencilhar do que seria uma “prisão imposta”. Encontrando no fim o seu próprio conceito através da libertação de todos os objetos simbólicos. Considerações Finais Os nossos questionamentos sobre o futuro das novas formas de cinema são inúmeros.

O processo cultural, o avanço tecnológico, a necessidade urgente de outras criações nos deixam uma pergunta: será ainda possível criar obras autênticas? Acredito que no 111

Ryngaert, Jean Pierre- Introdução à análise do teatro.

112

Roubine, J. Jacques A linguagem da encenação teatral.

262

processo da evolução da imagem, seja ela qual for, podemos inventar qualquer dispositivo que nos dê a liberdade de propor novas linguagens. O próprio processo evolutivo nos dá essa abertura. As linguagens mudam, permanecem e se unem, tornando possível outros questionamentos e outras criações. As experiências artísticas e espaciais, proporcionadas por esse conjunto, nos colocam como agentes produtores de uma nova linguagem visual e ambiental. O progresso da cenografia e da encenação ampliou sua ação, permitindo a aderência de novos contextos. Pensar a cenografia hoje é utilizar o instrumental tecnológico para criar e articular seus códigos na construção do espaço. O tempo muda, assim como a mentalidade, o poder crítico, a cultura, sua produção e representação. A Linguagem dos Extremos é isso, um estudo dirigido através da análise e conceitos de linguagens que ao mesmo tempo em que se confrontam se completam, pela necessidade de compartilhar algo através de sensações e reflexões. Bibliografia AUMONT, Jacques. O Cinema e a Encenação. Edições Texto e Grafia, Lisboa, 2006. BAZIN, André. O que é o Cinema? Lisboa, 1992. MANTOVANI, Anna. Cenografia. Série Princípios. São Paulo: Editora Ática, 1989. ROUBINE, Jean Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1998. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. Série Ensaios. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008. ARONSON, Arnold. Cenografia Pós-Moderna. O Tablado – Cadernos de Teatro nº130. COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema. São Paulo: Editora Página Aberta, 1995. WENDELL, Ney. Cuida Bem de Mim, Teatro, Afeto e Violência nas Escolas. Santa Catarina: Editora da UESC, 2009. Bibliografia Internet A Linguagem Cenográfica – Nelson José Urssi (Dissertação 2006) http://www.iar.unicamp.br/lab/luz/ld/C%EAnica/Pesquisa/a_linguagem_cenografica O Cinema de Fluxo e a Mise-en-Scène – Luiz Carlos Gonçalves de Oliveira Júnior (Dissertação 2010) http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27161/tde-30112010-164937/fr.php Diálogos: Teatro e Cinema na Peça-Filme Dogville, de Lars Von Trier – Julie Fank e José Carlos da Costa (Revista de Literatura História e Memória – Vol. 5, Nº 06, 2009 – versão eletrônica) Referência Videográfica TRIER, Lars Von. Direção. Dogville (2003). Anexos Roteiro Rua dos Bobos

263

26. Preservação patrimonial e conservação dos cemitérios de Cachoeira e São Félix

Renata Ramos dos Santos113 Fabiana Comerlato114

O estudo de conservação cemiterial consiste em salvaguardar a memória do sepultado e as formas de construção dos modelos estéticos das sepulturas. Neste sentido, Este trabalho tem como objetivo identificar e registrar as patologias nos cemitérios dos distritos sede de Cachoeira e São Félix, com a finalidade de obter um panorama das características de cada unidade, analisando o potencial informativo dos mesmos, bem como apontar os seus mecanismos de preservação cultural. A pesquisa fundamentou-se na aplicação da ficha de registro para identificar os problemas de deterioração encontrados nas sepulturas e os agentes de alterações. Observou-se que os principais agentes que vêm causando a degradação nas sepulturas são os químico/físico, biológicos e antrópicos, sendo estes dois últimos os mais presentes nos cemitérios estudados.

Palavras – chave: Cemitérios; Preservação patrimonial; Conservação.

113

114

Graduanda em Museologia; E-mail: [email protected]; Tel: (71) 9258-2433; Bolsista Pibic/ Ufrb

Professora do curso de Museologia- UFRB

264

Introdução

Em todas as sociedades sempre houve a idéia de sepultar seus mortos, diferenciando-se apenas quanto aos seus ritos Bastianello³ (2010, p. 12). De acordo com Áries (1981, p. 36), as sepulturas representam a estrutura da cultura material funerária herdada das culturas antigas, como na cultura grega que era empregada para eternizar seus mortos, perpetuando dessa forma a memória do falecido. Antes do século XIX, os sepultamentos eram realizados nas igrejas e em seu entorno, com a expansão urbana, criou-se novos espaços mortuários públicos, denominados de cemitérios Bastianello (2010, p. 29). Estes se tornam um importante marco de representação da vida social, visto que não são apenas depósitos de corpos jazidos, e sim um espaço de expressão da cidade com seus significados culturais tais como: memória pública, étnica e artefactual Halbwachs (2006, p.42). Portanto, os cemitérios por ser um lugar de memória devem ser preservados. Partindo desta necessidade de preservação dos cemiterios, foram definidos os seguintes objetivos para o plano de trabalho: realizar leituras orientadas sobre a temática cemiterial; auxiliar na elaboração da ficha de identificação e registro dos cemitérios de Cachoeira e São Félix (Cemitério da Piedade da Cachoeira do Paraguassu, o Cemitério dos Alemães, o Cemitério da Ordem Terceira do Carmo, Cemitério dos Nagôs e o Cemitério Municipal de São Félix); identificar os agentes de alteração (biológicos, químicos, humanos) que afetam a conservação das sepulturas; e diagnosticar as patologias existentes nas sepulturas dos cemitérios pesquisados. No entanto, foi importante para a pesquisa considerar todo o universo que envolve o bem cultural como os fatores climáticos; as características do solo; as edificações do entorno; as intervenções urbanísticas; os atos de vandalismo; as formas de utilização do bem; as características da construção original e das intervenções que a sucederam. Estudar os cemitérios e sua relação com as áreas tombadas pelo IPHAN e sugerir uma política de preservação dos cemitérios de Cachoeira e São Félix será muito relevante para a comunidade, já que ele se configura como herança cultural da mesma. Portanto, preservar e estudar os cemitérios significa salvaguardar as formas de construção dos modelos estéticos e simbólicos das sepulturas, cuja conservação servirá de testemunha dos marcadores desse passado, que podem ou não permanecer

265

diante dos deslocamentos gerados pelas novas formas de sepultamentos trazidos pela volatilização da contemporaneidade.

Metodologia

A metodologia usada na pesquisa foi realizada dentro do que estava exposto no plano de trabalho. Fichamentos e análise crítica da documentação escrita secundária sobre a conservação e a preservação do patrimônio cemiterial, trabalho de campo, levantamento das características gerais de todos os cemitérios e das informações específicas das sepulturas. Para a realização da pesquisa foram selecionadas as sepulturas com data retroativa ao ano de 1950 e com volumetria tumular (não contabilizando as carneiras). Esta seleção temporal foi aplicada em todos os cemitérios pesquisados, sendo que os cemitérios do Carmo e dos Alemães não apresentam sepulturas após a segunda metade do século XX. Antes mesmo da construção de uma metodologia, realizou-se a observação do estado de conservação das sepulturas para um maior embasamento do objeto a ser trabalhado. Esta primeira aproximação, junto com a equipe, permitiu dimensionar o tempo de trabalho, a diversidade de agentes de alteração, as condições de trabalho em cada cemitério de forma a auxiliar no planejamento das atividades de campo. A metodologia de campo baseou-se no reconhecimento superficial nãodestrutivo das sepulturas, até mesmo, porque eticamente e socialmente seria inadequada qualquer intervenção prospectiva em locais de enterramento. A equipe do projeto optou por examinar e registrar os remanescentes materiais da atividade humana passada sem escavação, através da observação superficial do solo. Esse método é atualmente muito utilizado na arqueologia urbana, também conhecida como arqueologia das cotas positivas. O critério de registro para a aplicação das fichas e levantamento fotográfico se deu da seguinte forma: a partir da entrada do cemitério foi estabelecido como critério o registro sempre da esquerda para a direita formando linhas paralelas ao muro frontal. Para a documentação foram usadas siglas de identificação dos cemitérios estudados.

266

Os trabalhos de campo foram principalmente às seguintes atividades: registro fotográfico, aplicação da ficha de registro de conservação da sepultura, coleta de informações orais e ações educativas. O registro fotográfico foi realizado a partir de várias tomadas do plano geral ao plano específico. Foi documentamos a partir das fotografias: a paisagem; o terreno do entorno dos cemitérios, das sepulturas com vistas frontal, laterais e de fundo de cada unidade sepulcral. As fotografias foram realizadas em ângulo de 90º sem uso de tripé e controle de iluminação. Foram escolhidos horários em que a iluminação natural não causasse muito sombreamento na sepultura. As fotografias subsidiaram avaliar o estado de conservação que se encontram os cemitérios, as sepulturas e as patologias existentes. Para a elaboração da ficha de registro, foram utilizadas bibliografias de várias áreas do conhecimento, visto o caráter interdisciplinar da pesquisa. Referente aos estudos cemiteriais os principais autores consultados foram Elisiana Trilha Castro (2008), Renato Cymbalista (2002), Cibele de Mattos Mendes (2001). Em relação à análise arqueológica de cemitérios adotamos o referencial teórico-metodológico de Tânia Andrade Lima (1994). No tocante a conservação de estruturas edificadas e geologia foram utilizados os seguintes autores: João José Bigarella (1996); Almeida (2005); Cbpm (2002); Frascá (2003); Frazão (1995); Carvalho (2010) ( aqui vc só precisa colocar o último sobrenome e o ano). Devido à pedra ser o principal material construtivo, utilizamos como base de referência o glossário ilustrado de formas de alteração na pedra elaborado pelo Comitê Científico Internacional “Pedra” do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS-ISCS, 2008). A partir de visitas prévias aos cemitérios estudados e do estudo da bibliografia, elaboramos a ficha a seguir: Resultados e Discussão

Para a avaliação dos agentes de alteração e seus impactos negativos sobre o patrimônio cemiterial, faz-se necessário uma descrição dos cemitérios estudados nas cidades de Cachoeira e São Félix. O maior cemitério é o da Piedade, datado de 1874, seu perímetro é murado situado em uma área plana e baixa na zona urbana de Cachoeira. Seu estado de conservação é regular, que com o avanço da ocupação desordenada vem ameaçar a 267

integridade deste bem. Identificou-se uma fonte na parte das primeiras quadras do cemitério, o que vem a contribuir bastante no estado de degradação do cemitério e das sepulturas. O seu portão de acesso é de duas folhas é arrematado com um gradil em arco pleno. Possui cerca de 920 sepultamentos de diferentes categorias, que equivalem a aproximadamente 3.000 mortos. O único cemitério do distrito sede do município de São Félix é o seu cemitério municipal, situado em área urbana e plana de aproximadamente 35m² x 100m² próxima ao rio Paraguaçu, o que influencia no processo de degradação. Esse cemitério também está disposto á incidência solar. A sua entrada apresenta um portão de acesso metálico arrematado com arco pleno ornamentado com uma cruz, data (1888). O cemitério é murado e conta com aproximadamente 575 sepultamentos. O cemitério da Ordem 3ª do Carmo está situado na parte mais elevada da zona urbana com uma área de 40m x 30m, possui uma capela ao centro, com data de 1892. A entrada é constituída por um portão metálico com arco pleno ornamentado com uma cruz ao centro e estrelas em forma de brasão. Apresenta acesso central em alvenaria com revestimento em ladrilho hidráulico, culminando em uma escada até a altura da capela. O cemitério do Carmo, por está localizado em uma área elevada favorece na proliferação dos agentes que contribui para o mau estado de conservação como, por exemplo: umidade, intensidade da luz e o avanço desordenado da população ao seu entorno, outro ponto é o estado de abandono que se encontra o cemitério, com vegetação cobrindo as sepulturas. O cemitério dos Nagôs, fundado em 1864, está situado em uma colina, com área de aproximadamente 35m², apresenta um portão de ferro que dá acesso ao patamar superior do cemitério, localizado na lateral da Capela. Por se encontrar em uma colina, esse patrimônio fica exposto diretamente a uma maior incidência solar, sofrendo também com as correntes de ventos, o que influenciam fortemente no seu estado de degradação. O cemitério dos Alemães, fundado em 1881 situado em área colinar, dentro da zona urbana de Cachoeira. Trata-se de um cemitério murado, com área de 35,80m x 17,81 m; a entrada é dotada de um portão metálico com arco ogival. Quatro colunas em ferro fundido que serviram no passado para sustentação de algum tipo de cobertura. Seus túmulos são construídos em alvenaria e outros demarcados apenas por lápides, a maior parte bastante danificada, todavia há alguns em melhor estado protegidos por um gradil em serralheria de ferro de duas folhas. Outros 268

desapareceram devido à degradação sofrida. Todo o interior do cemitério está tomado pelo mato e completamente abandonado. Já o dos Alemães, pelo fato de ser construído em uma área elevada da cidade, favorecer no aparecimento dos agentes de degradação, contribuindo para o estado de deterioração desse patrimônio, por exemplo: umidade, intensidade da luz e o avanço desordenado da população ao seu entorno, outro ponto é o estado de abandono que se encontra o cemitério, com vegetação cobrindo as sepulturas.

Fig. 1. Cemitérios localizados nos distritos sede de Cachoeira e São Félix. Fotos: Fabiana Comerlato.

A situação que se encontram os cemitérios observados é diversificada, alguns estão em estado de abandono e desativados, outros bem conservados e cuidados e alguns em funcionamento, porém com problemas de infra-estrutura. Outros cemitérios já foram pesquisados neste mesmo cenário por vários autores como, Bastianello (2010); Frazão (1995); situações similares em outros estados. Analisando o estado de conservação dos cemitérios em geral, já podemos ter uma noção de como se encontram as sepulturas destes cemitérios pesquisados.

269

Ao total, foram aplicadas 98 fichas de registros de conservação das sepulturas nos cemitérios, e foram feitos 1142 registros fotograficos dos cemitérios e dos agentes de alteração identificados, como arrolados na tabela a seguir. TABELA. 3. QUANTIDADE DE FICHAS PREENCHIDAS E FOTOGRAFIAS Cemitério

Nº de fichas

Nº de fotografias

Cemitério da Piedade

18

328

Cemitério Municipal de São Félix

26

304

Cemitério do Carmo

06

81

Cemitério dos Nagôs

07

143

Cemitério dos Alemães

41

286

Com a aplicação das fichas, foi possível identificar quais os principais agentes de degradação que agiam nestes espaços. Os agentes de degradação encontrados nas sepulturas foram: agentes biológicos, físico/ químicos e antrópico. As patologias são doenças que se instalam nas edificações, tornando-se difícil sua erradicação. Os agentes biológicos como, por exemplo, algas, os liquens, mofos, musgos e plantas contribuem no processo de degradação dos materiais construtivos das sepulturas, formando colônias na superfície da edificação, alterando a aparência das mesmas e contribuindo no seu processo de degradação. Seu desenvolvimento está relacionado com a presença de umidade e sais minerais (Granato, 2011). Esses agentes produzem ácidos, onde essas substâncias reagem com concreto e argamassas, favorecendo o aumento da porosidade do concreto e de seus revestimentos. Normalmente os liquens são organismos pioneiros em um local, pois sobrevivem em locais de grande estresse ecológico. Podem viver em locais como superfícies de rochas, folhas, no solo, nos troncos de árvores etc. Existem liquens que são substratos para outros liquens, esses agentes produzem ácidos que degradam rochas (vide gráfico a seguir).

270

Presença de agentes de alterações biológico nas sepulturas

Piedade

São Félix

Pi tti ng O ut ro s

M of o M us go

Al te Al ra ga çã o s cr om Ap át ro Al ica de cim veo en liza ç to C de ão re sc m im ad en ei to ra de pl an C ro ta st a ne gr a Lí qu en

45 40 35 30 25 20 15 10 5 0

Carmo

Nagôs

Alemães

A partir da análise do gráfico, foi possível identificar que os agentes biológicos que aparecem com maior incidência em todos os cemitérios estudados são os agentes: crosta negra, alterações cromáticas, algas, líquens e mofo. Sendo que o cemitério de São Félix apresenta maior índice de algas e crosta negras. O cemitério dos Alemães é o que apresenta maior incidência de degradação, pelo fato dele se encontrar em total estado de abandono, o que era esperado pela equipe. Os tipos de microorganismos (líquens, mofos, musgos e algas) são muito complexos para estudar, sendo que o problema deve sempre ser irradicado em sua causa. Geralmente as patologias não têm uma causa única, o ideal seria um estudo minucioso no local para fazer um diagnóstico correto, onde é necessário um aprofundamento sobre as características dos materiais e dos sistemas construtivos. As algas reproduzem em locais onde a água cai em abundância, formando manchas esverdeadas ou marrons nas paredes e rochas. Os musgos e os mofos são agentes que favorecem no processo de degradação das sepulturas. Além deles existe a crosta negra que forma uma camada sobre o atributo, deixando com um aspecto de sujidade. Os agentes de degradação das sepulturas são conseqüências de mudanças químicas e/ou físicas que contribuem para as perdas dos componentes e dos materiais de construção quando potencializado por um fator e exposto a um agente. Um 271

exemplo de fenômeno químico é a ação dos sais e um exemplo de fenômeno físico diz respeito às dilatações e contrações relacionadas às variações de temperatura e do sistema de fixação dos materiais ao substrato, as técnicas de manutenção das sepulturas. Além disso, é necessário compreender o comportamento dos mesmos sobre as mais diversas situações como o ambiente, umidade, presenças de sais, grandes amplitudes térmicas e a exposição à poluição. As rochas utilizadas para fins ornamentais e de revestimento sofrem alterações naturais e artificiais, que provocam desgaste, perda de resistência mecânica, fissuração, manchas, formação de crostas e mudança de coloração. As alterações mais importantes ocorrem pelo ataque químico nos materiais usado nas sepulturas, onde podemos destacar os álcalis, na forma de soda cáustica, usado na limpeza por parte da população que visita o cemitério. Segundo Frascá (2003), esses álcalis atacam os minerais silicados, presentes nas rochas graníticas e granitóides e nas calcitas e dolomita, que são carbonatos e principais constituintes dos mármores. O hipoclorito de sódio também muito usado para a limpeza dos túmulos promove a perda do brilho e rugosidade superficial, descoloração, bem como na formação de fissuras e manchas na superfície das rochas (Frazão, 1995). A vegetação no entorno das sepulturas também contribui na degradação das mesmas. Ela se desenvolve no local onde há uma concentração de substrato adequado ao seu crescimento, um exemplo disso é a vegetação não intencional que age diretamente sobre a edificação, é a que cresce devido ao acúmulo de pó e matéria orgânica em espaços apropriados da edificação, causando danos estruturais, como desagregação no revestimento e fissuras (vide gráfico a seguir).

272

Presença de agentes de alterações físico/químico nas sepulturas 35 30 25 20 15 10 5 Cr De a sc De que as l g ca rad ê m a en çã t De o o sp da tin re Di ndi ta m ác las ent Di o ác e a b las er ta e f Ef ech lo re ada sc ê Es ncia fo lia çã o E Fr r o ag s m ão en ta Fe ção rru ge m Fi ss u In ra filt M raç icr ã of o iss ur a Ou tro

0

Piedade

São Félix

Carmo

Nagôs

Alemães

No caso dos agentes de alteração físico/ químico, maior incidência de alteração nos cemitérios, foram identificados os seguintes: fissuras, infiltrações e ferrugens. Sendo o cemitério de São Félix é o que apresenta um maior índice de ferrugens e infiltração nas suas sepulturas, pelo fato do cemitério está localizado nas proximidades do rio, isso venha a contribuir no surgimento desses agentes de alterações. O cemitério da Piedade também apresenta um estado de degradação avançado, no que diz respeitos às ferrugens. Em relação ao cemitério dos Alemães, foi o único que apresentou quase todos os agentes de alteração físicos e químicos, como por exemplo, as fissuras, as quais estão presentes em todos os túmulos. Os agentes antrópicos são os danos causados pela ação do homem como: desgaste ao uso; falta de conservação preventiva, ou seja, o abandono; intervenções indevidas, vandalismo. Em relação ao vandalismo destacam-se o roubo e os incêndios. Entre os atos de vandalismo destacam-se: pichações; roubo de partes das estátuas, rouba de peças de bronze e alças das tampas das sepulturas. Outro fator de degradação que se pode apontar é que em alguns cemitérios como o dos Alemães é usado como depósito de lixo.

273

A falta de manutenção dos cemitérios é evidente. O total abandono desse patrimônio cultural material por parte do poder público (Castro, 2010) estabelece a impossibilidade de tê-los como fonte para a preservação da história e da identidade daqueles que os construíram.

Presença de agentes de alterações antrópico nas sepulturas 16 14 12 10 8 6 4 2

Piedade

São Félix

Carmo

Nagôs

O ut ro s

R ou bo

Q ue im a

Li m pe za

G ra fit ti

Es co ria çã o

C or te

Ar an hã os

0

Alemães

O cemitério dos Alemães, entre os cemitérios estudados é o que apresenta um estado de degradação avançado, por ele se encontra num estado de total abandono. É importante ressaltar o valor cultura e histórico deste patrimônio. Percebeu-se, que os materiais construtivos e de revestimento mais utilizados nos cemitérios antigos foram o cimento, ferro e azulejo. A granitina, o ladrilho hidráulico e o azulejo, em sua maioria, aparecem como material construtivo, o que caracteriza os sepultamentos mais antigos. Segundo Elisiana (2008), um trabalho de preservação dos cemitérios é imprescindível, principalmente no que diz respeito às lápides, onde estão as informações acerca do sepultado, são as partes em que contem os nomes, datas e frases, as quais se perdem muito rápido. Por isso vale salientar a importâncias das ações de preservação e conservação desse patrimônio, pelos órgãos governamentais e 274

administrativos. Elaborar ações como, por exemplo, seminários que trate do assunto, atividades de educação patrimonial, salientando o valor dos cemitérios como um dos bens culturais e manutenção do espaço e das sepulturas seria um passo relevante para se iniciar o processo de preservação.

Considerações finais

Embora se trate de um tema pouco estudado por profissionais de áreas afins, o plano de trabalho executado contribui com o projeto do orientador por se tratar de um estudo sobre preservação patrimonial e conservação dos cemitérios de Cachoeira e São Félix. Essa temática apresenta uma confluência com um dos principais objetivos do projeto, que é a identificação das patologias presentes nos cemitérios, com a finalidade de obter um panorama das características de cada unidade, analisando o potencial informativo dos mesmos e apontando mecanismos de preservação cultural. Esse estudo acrescenta um relevante volume de dados acerca dos materiais construtivos, agentes de alteração e estado de conservação das sepulturas, o que futuramente poderão ser disponibilizados para consulta, bem como a divulgação dos resultados obtidos por meio de eventos científicos. Este trabalho possibilitará ainda que outras pesquisas sejam desenvolvidas nestes cemitérios através dos resultados obtidos, podendo inclusive subsidiar ações na área do restauro. Referências

ALMEIDA, Frederico Farias Neves. Conservação de cantarias: manual – Brasília: IPHAN, 2005. BASTIANELLO, E. M.T. Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e artefactual (1858-1950)-UFPL, Pelotas– Maio 2010.

BIGARELLA, João José. Ação dos Organismos no Intemperismo. In: Estrutura e origem das paisagens tropicais e subtropicais /João José Bigarella Rosemari Dora

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276

27.

TURISMO CULTURAL: COMUNIDADE DE COQUEIRO

UMA

ALTERNATIVA

PARA

A

Sida da Silva115 Lúcia Maria Aquino de Queiroz116

A partir de reflexões sobre o turismo enquanto uma atividade capaz de propiciar o desenvolvimento econômico em regiões deprimidas economicamente, com a transferência de recursos entre localidades centrais e periféricas, da percepção das potencialidades do Recôncavo enquanto uma região dotada de um vasto patrimônio cultural e de estudos realizados pelo grupo de pesquisa “Mãos que Modelam o Barro117”, este artigo objetiva analisar as possibilidades e os desafios para o desenvolvimento do turismo cultural na comunidade de Coqueiro

118



Maragogipe/BA. Objetiva-se realizar um diagnóstico propositivo, com alternativas para o desenvolvimento sustentável do turismo cultural na comunidade de Coqueiro e para a sua inserção no roteiro turístico integrado “Caminhos do Paraguaçu”. Inicialmente, através de pesquisas diretas realizadas pelo projeto “Turismo cultural na comunidade de Coqueiro – Recôncavo Baiano” no período de agosto-2010 a julho-2011, procurou-se inventariar o patrimônio cultural desta comunidade, levantando informações referentes à produção artística e artesanal, às manifestações e tradições, aos grupos culturais, espaços culturais, bens imóveis e instituições culturais; em seguida, buscou-se aprofundar os conhecimentos sobre a realidade socioeconômica e ambiental bem como em relação às possíveis formas de parceria e/ou gestão compartilhada da produção, 115

visando a partir destas identificações,

Bolsista PIBIC/UFRB. Acadêmica do sexto semestre do Curso de Bacharelado em Serviço Social pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL), Cachoeira – BA. E-mail: [email protected]. Tel: (75)8832-2105.

116 Orientadora da pesquisa “Turismo cultural na Comunidade de Coqueiro – Recôncavo Baiano”. Professora Adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: [email protected] 117

Grupo inserido no núcleo de Pesquisa “Desenvolvimento Regional e Política Social” da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, Centro de Artes Humanidades e Letras – CAHL.

118 Analisando as leis e decretos do Município de Maragogipe/BA, à procura de informações sobre a localidade de Coqueiro, foi encontrado o Decreto nº. 10.724, de 30-03-1938, que versa sobre a mudança na grafia do distrito, alterando o nome de Coqueiros para Coqueiro. Este Decreto é complementar a Lei Estadual nº. 1922, de 13-08-1926 que cria Coqueiro e o anexa ao município de Maragogipe. Apesar da mudança, o distrito é frequentemente grafado como Coqueiros, inclusive na placa afixada na entrada da Comunidade aparece esta grafia, ou seja, a mudança gráfica não foi efetivamente incorporada pela população.

277

contribuir com a construção de ações que influenciem na melhoria da qualidade de vida da população ribeirense. Para se alcançar os objetivos propostos no projeto, de inventariar o patrimônio cultural da comunidade, a metodologia aplicada teve que adotar como foco inicial, as fontes primárias – consulta nos arquivos públicos e particulares, quando autorizados, pesquisa de campo com entrevistas diretas –, mas não descartando as fontes secundárias que tratassem do assunto em realidades similares – artigos, livros e outros estudos-, a fim de se entender a organização familiar e comunitária, nas localidades ribeirinhas. Posteriormente, foram inventariados os agentes e agencias fomentadores do turismo na região com questionários específicos para o inventario, no molde adotado pelo Ministério do Turismo, para levantar informações referentes a aspectos socioeconômicos, e infra-estruturais – sistema de transporte, comunicação, abastecimento de água, energia, etc. - ao patrimônio natural, à produção artística e à artesanal, às manifestações e tradições, grupos, espaços e instituições culturais, e bens e imóveis. A COMUNIDADE DE COQUEIRO: BREVE APRESENTAÇÃO O município de Maragogipe/BA, no qual está inserida a comunidade de Coqueiro, apresenta baixos índices de desenvolvimento, ocupando, no conjunto dos 417 municípios baianos, o 259º lugar, quando se trata de Desenvolvimento Social e de infraestrutura, 163º lugar em relação ao Desenvolvimento Econômico e a posição 354 no índice do nível de Saúde, conforme demonstra a tabela SIDE/2006. MUNICÍPIO ANO INDÍCE Maragogipe 2006 Índice de Desenvolvimento Econômico Índice de Desenvolvimento Social Índice de Infra-estrutura Índice de Produto Municipal Índice de Qualificação de Mão-de-Obra Índice de Renda Média dos Chefes de Família Índice do Nível de Educação Índice do Nível de Saúde Índice dos Serviços Básicos SIDE. Índice de desenvolvimento. 2006

VALOR RANKING 4.994,65 163 4.977,87 259 4.971,99 259 4.993,8 67 5.018,27 86 4.960,48 248 4.990,3 214 4.952,47 354 5.008,42 165

278

A base econômica de Maragogipe é essencialmente constituída pela produção do setor primário, sendo a agropecuária e a pesca as atividades tradicionais do município. O comércio é sustentado pelos artigos de primeira necessidade e o setor secundário é representado, basicamente, pela indústria alimentícia (panificadoras) e pela produção de cerâmica em bases rudimentares, concentrada, em sua maior parte, no distrito de Coqueiro. O setor de serviços, ainda sem grande representatividade, é composto pelos precários meios de hospedagem e alimentação, oferecidos aos poucos turistas que visitam a cidade, sobretudo nos períodos das festas populares, a exemplo do Carnaval de Maragogipe, considerado como patrimônio cultural imaterial 119 do Estado da Bahia, e das comemorações em louvor ao padroeiro São Bartolomeu. A população de Maragogipe, segundo o último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2010), foi estimada em 42.815 habitantes. No que se refere às condições de saúde da população local, o município ocupa o 354º lugar; a desnutrição e a falta de saneamento básico são os maiores causadores de doenças na região. Em face à inexistência de um projeto de prevenção junto à comunidade, estas doenças, muitas vezes, evoluem, causando a morte do seu portador. Muitos dos dados anteriormente apresentados poderiam subsidiar a discussão deste artigo, no entanto o foco desta pesquisa não foi o município de Maragogipe como um todo, ainda que compreendendo a relação de sua totalidade com as partes, e sim a comunidade de Coqueiro, distrito de Maragogipe, localizado às margens do Rio Paraguaçu, Recôncavo Baiano, distante 130 km de Salvador. Esta comunidade faz divisa com a comunidade de Nagé, também pertencente ao município de Maragogipe, e com a cidade de Cachoeira, iniciando no Rio Paraguaçu na foz do Riacho Nagé, subindo por este até sua nascente; daí segue em linha reta até a nascente do Rio Batatan, pelo qual desce até sua foz no Rio Sinunga. Coqueiro, com uma população, segundo dados da Unidade de Estratégia Saúde da Família

da

localidade,

de

2.502

habitantes,

vivencia

graves

problemas

socioeconômicos, que interferem na infra-estrutura, na qualificação da mão-de-obra e acima de tudo na renda média familiar. Ratificando estas informações, identificou-se

119

O conceito do Patrimônio Cultural Imaterial é aqui compreendido como as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural (UNESCO, 2003).

279

que 44% 120 das famílias entrevistadas sobrevivem com renda que vai de ½ a um salário mínimo e 27% com até ½ salário; 32% dos entrevistados sobrevivem da pesca e dos mariscos e 27% da produção de cerâmica utilitária. Em geral, estes serviços são executados em conjunto, por mais de um membro da mesma família. Diante do quadro social revelado através dos dados da pesquisa e da inexistência de cursos de capacitação e qualificação de mão-de-obra na localidade, torna-se premente a necessidade de criação de novas fontes de renda que dêem sustentabilidade a esta população, portadora de um amplo saber, que a singulariza e a possibilita ser considerada como detentora de um expressivo patrimônio cultural imaterial, revelado na arte de modelar o barro, transmitida de geração em geração, através da história oral e das práticas cotidianas; nos sambas de roda 121 , tradição já reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade; nas rezas, nos contos, nos festejos sacros e populares, tais como: Festa do Coração de Maria, Festa e procissão de Nossa Senhora da Conceição, Procissão e bordejo de Nosso Senhor dos Navegantes, Esmola Cantada, bumba-meu-boi; e nas inigualáveis iguarias preparadas com peixes e mariscos pescados nos rios e mangues da localidade, como a Pititinga, que compõe um prato típico local122. Têm-se ainda os atrativos naturais, de rara beleza e pouco explorados, como um manguezal, rico em sua flora e fauna, mas que necessita de cuidados, pois a comunidade tem se estendido em sua direção, com construções e depósitos de dejetos. O Rio Paraguaçu, totalmente navegável, ligando a comunidade ao município de Cachoeira e Salvador, passando por pequenas e belas ilhas, dentre as quais as do entorno soteropolitano, que se encontra com o mar, abrindo-se para o mundo, o que favorece e estimula sua navegação pelos poucos turistas estrangeiros que prestigiam a comunidade durante os festejos de São Bartolomeu e procissão e bordejo de Nosso Senhor dos Navegantes. Este poderia ser um dos grandes focos turísticos da Comunidade.

120 Diante das dificuldades de realização de uma pesquisa censitária, dentre as quais o gasto de tempo e recursos, optou-se pela utilização do método de amostragem aleatória com questionários semi-estruturados, de forma a validar e dar credibilidade à pesquisa, “permitindo que cada elemento da população tenha a mesma chance de ser incluído na amostra” (LEVIN & FOX, 2004).

121 122

“O Samba de Roda de D. Cadú”, que já deu origem ao Samba de roda “Filhos de Coqueiro”. Nome indígena para “peixe pequeno”, usado como isca por alguns pescadores e servido como iguaria nos restaurantes do Nordeste, seja frito ou de moqueca. Geralmente é um peixe de água salgada e/ou de locais em que esta água se encontra com a água doce, como é o caso do Rio Paraguaçu.

280

Embora detentora de um grande arsenal cultural e natural, a comunidade encontra-se ameaçada, pois apesar de 64% dos entrevistados considerarem a qualidade de vida nesta localidade como boa (numa escala de ruim a ótima), quase 100% deles, afirmaram não haver em Coqueiro fonte de subsistência que assegure aos jovens sua permanência na comunidade. Por um lado, o retorno econômico da produção local é restrito; por outro, não existem instituições ou empresas locais que absorvam os jovens. A pouca divulgação do trabalho desenvolvido pela comunidade dificulta o acesso de potenciais compradores; não há suporte educacional de qualificação profissional e as relações com o mercado são fragilizadas pelo despreparo para lidar com o processo de produção-comercialização. O contexto em que estão inseridas essas problemáticas, mesclando a oferta de atrativos culturais e naturais às fragilidades sociais e econômicas, é que justifica a efetividade de uma ação de promoção ao turismo como forma de sustentabilidade123 desta pequena comunidade ribeirinha. Como afirma Christaller (1996) “[...] o turismo pode ser um meio para se atingir o desenvolvimento econômico em regiões periféricas [...]” (CHRISTALLER, 1996 apud QUEIROZ E SOUZA, 2009); entretanto, para que essa condição possa transformar-se em uma realidade faz-se necessário que a localidade apresente, ao menos, um conjunto de condições favoráveis à expansão da atividade turística, dentre as quais infra-estrutura urbanoturística, equipamentos e serviços. O TURISMO NO RECÔNCAVO BAIANO Região de intenso fascínio pelas belezas culturais e naturais, a mistura de povos e costumes europeus e africanos no Recôncavo 124 baiano, aliada a fatores geográficos e econômicos, possibilitaram a implantação de engenhos de açúcar e

123

“O conceito de Sustentabilidade, foi introduzido no início da década de 1980 por Lester Brown, fundador do Wordwatch Institute, que definiu comunidade sustentável como a que é capaz de satisfazer às próprias necessidades sem reduzir as oportunidades das gerações futuras”. (CAPRA in TRIGUEIRO, 2005, 19) Disponível em: http://www.sustentabilidade.org.br/antigo/doku.php?id=portug:redesustent:conceitos:conceitos. Acesso em 25/07/2011.

124

O termo recôncavo, originalmente usado para designar o conjunto de terras em torno de qualquer baía, se associou, no Brasil, desde os primórdios da colonização, à região que forma um arco em torno da Baía de Todos-os-Santos. Essa região se caracteriza não apenas pelas suas incríveis variáveis físiconaturais, mas, sobretudo, por sua história e dinâmica sociocultural. NACIF (2010). Disponível em:

http://www.andifes.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4027:es ta-terra-chamada-reconcavo-baiano&catid=50&Itemid=100017. Acesso em: 22/07/2011. 281

indústrias de fumo125 e a geração de uma riqueza ainda hoje evidenciada nas grandes construções do período, que muito fascinam os que a visitam. No processo de expansão econômica dessa região algumas de suas cidades, importantes núcleos urbanos, passaram a desempenhar funções comparadas aos grandes centros comerciais manufatureiros. No entanto, desde o final do século XIX e início do Século XX, esta região, com o declínio do apogeu do açúcar e das indústrias de fumo, sofrera grandes perdas econômicas, o que sem preparação e apoio financeiro, possibilitou o seu ingresso em um profundo quadro de isolamento financeiro, afetando não só a economia local, mas, sobretudo o desenvolvimento social. A partir da metade do século XX, diante das transformações do pôs segunda guerra mundial, com a diminuição da produção manufatureira, as localidades desta região, outrora privilegiadas para atendimento das demandas da economia mercantil, passaram a atrair visitantes que queriam conhecê-las, guiados pelas mais distintas motivações, como o interesse cultural ou o lazer. O turismo, atividade que até meados do século XX era restrita à elite, passou, ao longo dos anos, por intensas transformações, incorporando a oferta de novos produtos e serviços, a exemplo de novas rotas turísticas. Hoje estas rotas, uma tendência do turismo internacional e também nacional, vêm sendo incentivadas e estão acessíveis a um mais amplo número de visitantes. Inúmeros são os países que apostam no turismo como principal impulsionador para o crescimento econômico, dentre eles, o Brasil, que nos últimos anos vem investindo mais intensamente em Políticas Públicas para a área e conquistando espaços, ainda que timidamente, neste concorrido mercado. Segundo dados da Organização Mundial do Turismo OMT/2010, o Brasil saltou do 50º para 45º lugar entre os países mais visitados no período de 2006 a 2008. Internamente estes dados também foram favoráveis, segundo relatório do Ministério do Turismo126, apontando crescimento na área, em 65 regiões com 584 municípios beneficiados.

125

Em sua maioria de descendência Alemã, o que justifica a diminuição da produção/exportação na pós-segunda guerra mundial.

126

Índice de Competitividade do Turismo Nacional: 65 Destinos Indutores do Desenvolvimento Turístico Regional. Ministério do Turismo. Brasil. 2010. Disponível em: http://www.turismo.gov.br/export/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicacoes/Relatx rio_Brasil_2010.pdf. Acesso em; 25/07/2011.

282

No Brasil, grandes centros se transformaram em pólos turísticos, recebendo não apenas visitantes e turistas nacionais, mas também internacionais. Há que se ressaltar, entretanto, que apesar do inquestionável potencial para o turismo no Brasil, o relatório do Ministério do Turismo 2010, aponta um conjunto de dificuldades encontradas para se obter dados sobre fluxos e atividades turísticas nas regiões brasileiras. Poucos são os responsáveis pelo desenvolvimento desta atividade, que investem em indicadores que possibilitem dimensionar com maior precisão os seus resultados e, assim, direcionar o planejamento das ações e os investimentos dos recursos, a fim de não só receber o turista, mas acima de tudo receber bem e garantir a ampliação e sustentabilidade do mercado. Na Bahia, estado que alcançou em 2009 o terceiro lugar no ranking nacional do turismo127, a região do Recôncavo, embora tenha sido objeto do primeiro plano estadual de turismo, o Plano de Turismo do Recôncavo, elaborado pelas empresas de Consultoria e Planejamento – Clan S.A e Oficina Técnica de Empresas e Ingeniería S.A – OTI, em inícios da década de 1970, com o objetivo de “produzir, finalmente, um planejamento turístico em termos gerais, sugestões de política, de organização e de natureza institucional para o setor” (BAHIA, 1971, apud QUEIROZ, 2002, p. 104), tem sido contemplada de forma restrita pelas estratégias de planejamento turístico implementadas até esse momento. Como analisa Queiroz (2002, p. 105), o Plano de Turismo do Recôncavo, idealizado logo após a criação do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) em 1966, momento em que o governo federal revelou a intenção de utilizar-se também do turismo para viabilizar a sua “estratégia de melhoria do balanço de pagamentos e de ampliação da capacidade nacional de importar, para atender aos objetivos prioritários do desenvolvimento nacional”, não foi implementado integralmente. O momento político-econômico adverso ao turismo, decorrente da confluência dos interesses estaduais e nacionais direcionados para a implantação do Complexo Petroquímico de Camaçari (Copec), terminou por inviabilizar o programa de ação definido. Já nos anos 1990 o Governo do Estado da Bahia, contando com o apoio financeiro do Banco Interamericano

de

Desenvolvimento

(BID),

implantou

o

Programa

de

Desenvolvimento do Turismo da Bahia (Prodetur-Ba), que embora tivesse o Pólo 127

Segundo informações da Secretaria de Turismo da Bahia (SETUR, 2009). O terceiro salto do turismo baiano. Disponível em http://www.setur.ba.gov.br/. Acesso 25 de Julho de 2011.

283

Turístico Salvador e Entorno como uma das áreas prioritárias, canalizou os investimentos aplicados nesta região turística, que também engloba o Recôncavo, destacadamente para a capital do Estado. Além do Prodetur, cujas ações direcionadas ao Recôncavo foram extremamente pontuais, esta região e, mais especificamente, as cidades de Cachoeira e São Félix, se beneficiaram das ações do programa Monumenta, não especificamente voltado para o desenvolvimento turístico, mas, sim, para a recuperação sustentável do patrimônio histórico urbano brasileiro (PDITS, 2002, apud QUEIROZ e SOUZA, p. 32). Na atualidade, o Governo do Estado, objetivando aliar o turismo e a cultura, está desenvolvendo uma proposta de implantação do Distrito Cultural e Turístico (DCT) da Baía de Todos os Santos, o qual deverá ter a região do Recôncavo como um dos seus eixos centrais. COQUEIRO E O TURISMO CULTURAL A segmentação turística tem sido adotada, nas mais diversas regiões, como uma importante estratégia de desenvolvimento da atividade turística contemporânea. E, dentre os segmentos que vem se destacando como de maior interesse, o turismo cultural desponta, sendo amplamente difundido pelas agências de fomento ao turismo e procurado por distintos perfis de turistas, sejam estes interessados em aspectos do patrimônio cultural material ou imaterial. Há que se registrar a inexistência de uma definição precisa de Turismo Cultural, podendo este conceito variar de sociedade para sociedade. As autoras Queiroz & Souza (2009), no livro Caminhos do Recôncavo128, apresentam diversas definições para o Turismo Cultural, conforme as diferentes visões dos seguintes autores: O segmento compreende as atividades turísticas relacionadas à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais da

128 QUEIROZ, Lúcia Mª Aquino de. SOUZA, Celeste de Almeida. Caminhos do Recôncavo: proposição de novos roteiros histórico-culturais para o Recôncavo Baiano. Salvador: [S.n], 2009.

284

cultura. (MINISTÉRIO DO TURISMO DO BRASIL, 2006, apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220). Aquele que proporciona uma experiência do estilo de vida das sociedades visitadas, oferecendo uma compreensão em primeira mão dos hábitos, tradições, ambiente físico, idéias e locais de significado arquitetônico, histórico e arqueológico presentes no grupo local. (ANA CARLA FONSECA S/D apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220). Não é o que se vê, mas como se vê que caracteriza o turismo cultural. (PEDRO PAULO FUNARI E JAIME FINSKI. S/D apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220). Um fluxo de pessoas cujo objetivo principal está relacionado a festivais, música, teatro, eventos, visitas a locais históricos, religiosos ou a sítios arqueológicos, exposições, museus, cursos, conferências, etc. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO TURISMO – 2006 apud QUEIROZ e SOUZA, 2010, p. 220). Apesar dos diferentes conceitos, pode-se perceber que o forte do Turismo cultural está na troca de informação e interação entre as diferentes culturas; é o olhar sobre a cultura do outro, mas acima de tudo é a interação do turista com a cultura do lugar. O turista não quer ser um mero expectador, mas relacionar-se com o contexto, compreendê-lo e vivenciá-lo. Com o desenvolvimento do Turismo Cultural, outras modalidades do Turismo vêm surgindo atualmente, assim como: Turismo de Raiz; Turismo Étnico, Turismo Náutico e Turismo Gastronômico.

285

Turismo de Raiz – iniciado no EUA na década de 70, com os Afrodescendentes; este tipo de turismo busca em outras culturas segmentos de sua própria cultura, ou seja, aspectos da cultura do visitante, tanto na cultura material, quanto na imaterial. Turismo Étnico – um segmento do Turismo de Raiz. O atrativo deste tipo de Turismo está na afinidade linguística, cultural e étnica de determinados grupos, assim como costumes, crenças, religiões e etc. Turismo Náutico – atividade centrada no lazer com navegação no litoral, rios, lagos e atividades afins, incluindo esportes náuticos praticados tanto em grandes navios como em pequenas embarcações de recreio. Turismo Gastronômico – exemplares da culinária local que atraem turistas e visitantes em busca de iguarias que satisfazem o paladar de quem as experimentam. A opção pelo tratamento do Turismo Cultural e suas modalidades, deve-se, sobretudo, à proposta de promoção do Turismo Cultural na comunidade de Coqueiro. Esta decorre da percepção da existência de elementos requisitados neste tipo de Turismo, no Patrimônio Cultural da Comunidade, com ênfase à produção de cerâmica nas olarias existentes, quase que em sua totalidade, fabricadas por mulheres em idade acima dos 40 anos, que aprenderam esta arte, passada de geração a geração, com seus antepassados. A riqueza cultural desta comunidade se expressa ainda, nos Terreiros de religião de Matriz Africana, nas festas populares, nos costumes, nas fabricações artesanais das redes de pesca, etc. No entanto, a proposta não está em simplesmente em atrair turistas para a comunidade, mas, antes de tudo, sensibilizar o poder público para esta possibilidade e fomentar a participação da população como produtora deste turismo, para torná-lo sustentável.

286

É imprescindível que a população e os poderes públicos se mobilizem a fim de erradicar a poluição dos rios e manguezais da localidade. Cerca de 70% dos esgotos sanitários das residências de Coqueiro estão ligados a rede pública de esgoto, porém, o seu destino final é a rede fluvial, sem nenhum tratamento. Conforme informações levantadas pela pesquisa direta, 10% das residências possuem fossas sépticas e 20% não tratam os seus dejetos, jogando-os a céu aberto, favorecendo a proliferação de epidemias, fragilizando ainda mais a saúde da população. É necessário que os poderes públicos possibilitem a melhoria de vida da comunidade, principalmente no que se refere à infra-estrutura, amenizando as carências do sistema de transporte público, equipamentos de lazer, atendimento médico, serviços educacionais de qualidade e acesso a rede de esgoto com o devido tratamento. Estas são condições indispensáveis para que a qualidade de vida desta comunidade possa obter melhorias, com benefícios para a saúde dos moradores, com o resgate e preservação da beleza natural dos açudes e manguezais. Cabe ainda aos poderes públicos, divulgar a produção artesanal, fornecer um suporte às organizações locais, atuar como interlocutor entre os oleiros e os organismos de financiamento, apoiar a implantação de equipamentos de recepção aos visitantes, possibilitando o incremento do fluxo de turistas, consumidores que adquirem as mercadorias por um valor mais elevado do que o praticado pelos atravessadores. Sem ações efetivas para a preservação dos bens culturais e naturais desta comunidade, visando a sustentabilidade, corre-se o risco da extinção das tradições locais e de suas belezas naturais. Por outro lado, a concretização dessas ações será fundamental para que Coqueiro possa vir a inserir-se em uma proposta de roteirização turística para esta área: o roteiro Caminhos do Paraguaçu, englobando não apenas esta, mas, também, diversas outras comunidades ribeirinhas situadas ao longo do rio Paraguaçu. BIBLIOGRAFIA:

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28.

Moçambique em outra Guerra: Católicos, Islâmicos, Pentecostais, Neopentecostais e Religiões tradicionais na luta por fiéis Valdir Alves129 “Não há religiões falsas, todas correspondem a condições dadas da existência humana”. (DURKHEIM). 1. Introdução

Moçambique é um país que tem seu solo manchado de sangue pelas inúmeras guerras. Guerras feitas para colonizar, para libertar ou até mesmo a guerra pela guerra. Os portugueses, em seu processo colonizador, chegaram ao velho mundo como um dos cavaleiros do apocalipse: “Olhei e vi um cavalo, pálido e aquele que o montava chamava-se morte [...]. E foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra para matar pela espada, pela fome, e pela peste” (APOCALIPSE, 6:8 THOMPSON). O estrago feito em Moçambique pela colonização deixou um legado que será preciso muito tempo para sarar as grandes feridas. Tudo começou com uma exploração ultramarina que posteriormente ficaria conhecida como as Grandes Navegações. Espanha e Portugal foram as primeiras a se lançar nessa grande empreitada, vários fatores levaram esses países a serem os pioneiros, um deles foi o pioneirismo na consolidação como Estado. Portugal e Espanha não queriam mais adquirir as especiarias vindas de Veneza, pois essas eram comercializadas com os árabes que por sua vez comercializavam com os indianos, por isso quando as especiarias chegavam a Veneza estava com altos preços. A partir de então, “os aventureiros europeus descobriram um novo caminho marítimo para chegar aos ricos centros comerciais da Índia, contornando a África.” (PERRY, 2002, p. 267).

129

Cientista Social em formação na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Educador de ensino em base Africana (EBA), no Grupo de Ação para Promoção Educacional Científico-Cultural (GAPECC). Membro do Grupo Corpo e Cultura da linha Corpo e Política, membro do Núcleo de estudos africanos do recôncavo da Bahia (NEAB). Bolsista do CNPq, com o Projeto Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO). Políticas de Gênero e Sexualidade.

289

Este contorno em África trouxe muitos estragos, porque onde passaram as naus portuguesas chegaram a peste, a fome e a Guerra feita em busca do lucro. Em Moçambique não foi diferente: [...] os habitantes da costa sul de Moçambique, em algum lugar situado entre as atuais cidades de Inharreme e Inhambane, viram chegar estranhas embarcações, enormes em relação as que até então tinha visto. Delas desceram outros barcos menores transportando gente de pele pálida e vestida de modo insólito. (CABAÇO, 2009, p. 27). Isso seria visto cada vez com mais freqüência pelos nativos, assim como está escrita no livro da escatologia: “E eu vi subir do mar uma besta que tinha dez chifres, e sete cabeças, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.” (APOCALIPSE 12:15, THOMPSON). Tempos mais tarde, os portugueses fundaram uma colônia em solos moçambicanos e instalaram uma grande “Máquina Ideológica” chamada Igreja Católica. Com os portugueses cada vez mais dominando e reprimindo as comunidades moçambicanas, os conflitos começaram a se acirrar. Surge então a Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO, grupo influenciado por ideais marxistas que após dez anos de luta conseguem derrubar o regime opressor de Portugal e assumir o poder, não mais como instância militar mas, como instância política. Mas as lutas e o derramamento de sangue não parariam, pois paralelo à independência de Moçambique surgiu outro grupo armado, a Resistência Nacional de Moçambique, RENAMO, grupo que surge para combater o progresso comunista da FRELIMO. A luta entre a FRELIMO e a RENAMO duraria longos anos até Moçambique tornar-se um país sem guerra, pelo menos no sentido armado. Isso porque ocorria, e ocorre, outra forma de guerra em solos moçambicanos que é a guerra simbólica das religiões por fiéis. Guerra esta, como diz Pierre Bourdieu, sutil, que muitas vezes não é percebida mas tem estragos devastadores. Os católicos foram os primeiros a praticar esta guerra por fiéis impedindo os moçambicanos de professar suas crenças e de estudar. Segundo Zamparoni:

290

Uma das pedras angulares do discurso colonial foi a promoção do ensino a fim de dotar os colonizados deste instrumento “civilizador”. Entretanto, geralmente as palavras não passaram para as ações concretas. Em Moçambique, como de resto nas demais colônias portuguesas, pouco realmente foi feito durante todo o período da dominação colonial em matéria de ensino, principalmente nas décadas iniciais do século XX. (ZAMPARONI, 0000, p 465) Posteriormente, os missionários presbiterianos que em solos moçambicanos atraiam os nativos através da educação que era uma lacuna deixada pelos portugueses Muitos líderes da Frente de Libertação de Moçambique foram educados em escolas presbiterianas. Depois, a FRELIMO com um projeto “ateísta” negou as religiões tradicionais, com a justificativa que só poderia ter progresso com o fim de práticas obscurantistas. Hoje, milhares de religiões estão em solos moçambicanos usando de vários artifícios nesta guerra por fiéis, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus que “negocia” com os fieis a fé em Deus, com frases bíblicas do tipo: Dê que Deus te devolverá. Este trabalho tem por finalidade fazer uma discussão sobre esta guerra Santa.

2. A religião tradicional130 em Moçambique

Segundo Alcinda Honwana, durante a colheita, por exemplo, são feitas oferendas aos ancestrais para que ela seja próspera. Quando os jovens saíam por conta própria ou forçadamente para trabalhar nas minas da África do Sul, na volta eles faziam rituais de limpeza para que todas as impurezas adquiridas fossem deixadas pra trás. Além disso, no ritual da compra da noiva, conhecido como Lobolo, muitas vezes,

130A expressão “religião tradicional africana”, de uso muito corrente em muita bibliografia

africanista, deve ser tomada com muita restrição uma vez que traduz uma operação reducionista da multiplicidade de práticas religiosas e/ou sagradas de povos diferenciados e as considera como um conjunto homogêneo com as mesmas características das religiões estrangeiras (cristianismo e islamismo) e que com elas possa ser comparado. (GASPAR, 2006, p. 26).

291

a família do noivo além de pagar o dote à família da noiva ainda oferece presentes aos ancestrais. Alguns relatos da mesma autora mostram como são surpreendentes as relações com os espíritos e o poder que eles exercem nessa sociedade. Ela diz que quando os mipfhukwa, os espíritos vingadores, atormentam alguma família, esta tem que conceder que uma de suas filhas virgem case-se com ele. Esse espírito teria sido, em algum momento da história, morto por um antepassado dessa família. Concedido o casamento, essa jovem que geralmente tem idade entre doze e dezessete anos, passa a viver na palhota do espírito, local construído no quintal de sua casa. Entre as obrigações da mulher está cuidar da casa, mantendo-a limpa e organizada, além de cuidar de um animal que é oferecido ao espírito. “Algumas nsati wa svikwembu poderão casar com homens vivos se as famílias as apoiarem e, em especial, se os maridos espíritos as autorizarem. Nestas circunstâncias, realiza-se um ritual no qual o homem obtém autorização do espírito para desposar a nsati wa svikwembu.” (HONWANA, 2002, p.68). Essas associações de espíritos com os vivos mostram que as religiões tradicionais exercem total influência na população de Moçambique. Os líderes religiosos são os habitantes mais respeitados, eles são responsáveis pelas principais atividades culturais do país. O ritual para o nascimento de um líder religioso começa quando o indivíduo que foi escolhido pelo espírito fica seriamente doente e a medicina ocidental não consegue lhe trazer a cura. O doente é levado pelos familiares para um líder espiritual que lhe dá o diagnóstico: a doença é a do chamamento e o doente precisa ser “feito” para receber o espírito. A família tem um grande papel no processo de iniciação. A estadia e todos os serviços que são feitos no ritual são pagos por ela. O local, geralmente, ficava em regiões isoladas normalmente em florestas, até que o espírito se desenvolva e assim possa se tornar um novo líder. Com as guerras civis em Moçambique o local de iniciação passou a ser dentro das cidades. Lembrando que este rito pode durar até anos, pois nem todos os iniciados conseguem passar facilmente de estágio já que há uma luta interna dos espíritos. Existe a crença de que os espíritos que possuem um indivíduo são como bebês e que só durante a iniciação se desenvolvem 292

no corpo dessa pessoa[...]. Tal como um embrião, os espíritos crescem no interior do corpo humano. [...]. Não admira que a maioria das pessoas de cujos espíritos “saem”, sejam mulheres (...) (HONWANA, 2002, p. 54). Os espíritos dos anciões são os mais poderosos já que em vida eram os que mais tinha poderes na sociedade, já, os das crianças, não têm o mesmo poder. Afinal, no convívio social elas não estavam na mesma posição. Apesar disso, Honwana afirma que na relação existente entre os próprios espíritos nem sempre as hierarquias estabelecidas socialmente vigoram. Quando o espírito se manifesta através dos médiuns, há situações em que alguns que na sociedade faziam parte de uma escala inferior se manifestam primeiro, mostrando que há uma hierarquia que pode ser diferenciada entre os próprios espíritos. Uma das múltiplas identidades assumida pelas mulheres moçambicanas é a de sacerdotisa. Este título é recebido através da possessão dos espíritos. Como diz Honwana, podemos considerar “os espíritos não só como agentes externos que controlam e mudam as identidades das pessoas, mas como a própria essência da identidade humana.” (HONWANA, 2002, p. 28). Por ser a essência da identidade humana, estas mulheres que recebem em seus corpos os espíritos, acabam exercendo grande poder sobre a comunidade moçambicana. A função do nymusoro é exercida por mulheres, em maioria. Isso acontece porque esses são os espíritos de estrangeiros, ex-combatentes, que pediram essas mulheres em casamento. Honwana afirma que, teorias indicam que a possessão está mais associada a mulher porque ela está mais ligada ao lar e aos costumes. Essa ligação pode ser explicada pela grande emigração dos homens em busca de trabalho, sendo assim, as mulheres acabam assumindo as responsabilidades da casa e da sociedade, ganhando pouco a pouco grande importância nos rituais e práticas religiosas. Outro ponto muito importante nas religiões tradicionais é o tratamento das doenças que é dividido em simples e complexas. As ditas como simples são as causadas por fenômenos naturais tais como má alimentação, bactérias e outros. As complexas são provocadas por forças malignas e feitiçaria. Esta doença é vista também como uma doença social, pois altera as normas e valores. Para os 293

moçambicanos “a saúde é tida como um estado natural de todos os seres humanos. Por isso, estar com falta de saúde indica um estado de anormalidade, de desequilíbrio, não só físico, mas também social”. (HONWANA, 2002, p.208). Os Nyamusoro tem dupla função, a de líder espiritual e a de adivinhos. Nestas situações são as atividades de adivinho as mais procuradas pois são eles que dão o diagnóstico. Se for uma doença simples mandam tomar um chá feito por eles ou feito na casa do paciente, ou até mesmo tomar remédio de origem ocidental, mas se for uma doença complexa, ele avisa ao doente que este tem que ficar para fazer o trabalho para desfazer o feitiço.

3.

O Islamismo em Moçambique

O islamismo teve sua origem na Arábia, atual Arábia Saudita, seu fundador foi Maomé que nasceu em Meca no ano 560. Órfão de pai e mãe foi criado pelo seu tio que era um comerciante. Acredita-se que as influências pra fundar a religião tenham vindo do contato com comerciantes judeus, apesar de não ter escrito nada tal como Jesus – o livro que retrata sua vida foi baseado nas suas vivências e escrito por seus seguidores. O livro da religião tem como base o profeta Abraão que é considerado o pai da fé dos judeus. Maomé disse ter visto a teofania 131 de Deus através de um anjo, o anjo Gabriel, que lhe disse a primeira revelação. Depois dessa foram sucessivas aparições e revelações. Na época Maomé tinha quarenta anos, foram vinte e três anos de revelações, pouco a pouco Maomé começou a ganhar seguidores. Por ter um discurso religioso que pregava a paz e a unidade do povo Árabe foi seriamente perseguido, tendo que fugir para a cidade de Medina, antes de sua morte ele pode ver a unidade de seu povo em Meca. O livro do Alcorão ou Corão, foi escrito pelos seguidores e tinha como prática de fé o comprimento da vontade de Allah. Maomé era o principal profeta, além dele outros patriarcas e profetas do Judaísmo eram classificados como profetas menores, como: Adão, Noé, Moises, Abrão, Davi e Jesus. 131

Teofania é um conceito de cunho teológico que significa a manifestação de Deus em algum lugar, coisa ou pessoa. Tem sua etimologia enraizada na língua grega: "theopháneia" ou "theophanía".

294

O Corão não é apenas um livro religioso, seu conteúdo faz com que ele também seja uma obra política. Por causa deste teor político e da reivindicação de parentesco com o profeta, os Xiitas que são apenas 10% da religião, são o grupo mais conservador do islamismo, sendo a outra parte formada pelos Sunitas que formam 90% da religião, estes formam a parte mais flexível. A proliferação do Alcorão foi igual a sua origem, aconteceu através do contato com outros comerciantes. Segundo José Luís Cabaço: Os Primeiros contatos do Islã com a costa Norte de Moçambique remontam ao século VIII. [...] No século X , as primeiras colônias árabes se fixaram nos fronteiros á atual ilha de Moçambique. [...] Os Islâmicos de Moçambique pertencem a duas confrarias principais Qadiriya e Chadhiliya; a primeira originaria do Iraque e a segunda das Comores. Predomina a influência da escola Shafita da ortodoxia Sunita. As escolas corânicas instaladas no território, ensinando em árabe ou em swahili,

tinham

um

conteúdo

meramente

religioso.

(CABAÇO, 2002, p. 214). A islamização em Moçambique começou em seu litoral mais pouco a pouco foi imigrando para o norte onde hoje se encontra a maior concentração das comunidades islâmicas de Moçambique, entre as tribos Macuas e Macondes.

4.

O catolicismo em Moçambique

A igreja católica teve um papel muito importante na colonização, se não o mais importante, pois era através da igreja que se perseguia as tradições. Eram nas igrejas católicas que funcionavam as escolas onde os nativos eram ensinados. “Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e cantar, não para os fazer “doutores”. [...] As escolas são necessárias, sim, mas escolas onde ensinemos ao nativo o caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os protege.” (MONDLANE apud CABAÇO).

295

A igreja era uma instância do Estado e trabalhava maçicamente no processo de assimilação. Um ponto importante nesse processo de assimilação é a repressão das religiões tradicionais. Os portugueses sabiam que os líderes espirituais que praticavam a possessão, feitiçaria, adivinhação, exorcismo e rituais de cura espiritual, exerciam grande poder sobre a cultura moçambicana. Os portugueses além das religiões tradicionais tinham que combater o islamismo e os pentecostais. Don Teodósio Clemente de Gouveia, cardeal-arcebispo de Lourenço Marques nos anos 50, definira quatro “terríveis perigos pairando sobre África e, portanto sobre Moçambique: o maometanismo, o protestantismo, o comunismo e o nacionalismo indígena” (ALPERS,1999, p165). Sobre esses quatro objetivos se concentrou a ação conjunta da igreja católica e do Estado colonial (CABAÇO, 2009, p.211). Dos quatros terríveis perigos, citado por Don Teodósio Clementes de Gouveia, só o Islamismo não foi perseguido com o uso da força. O que pode ter ocorrido com o islamismo foi uma perseguição política, mas o protestantismo, as religiões tradicionais e o comunismo foram perseguidos com muita força e veemência. Com o islamismo houve uma estratégia política, um plano de “ação psicológica”, um plano de governo que concedia privilégios a comunidade islâmica tais como a divulgação de sua fé. Em 17 de dezembro de 1968, que correspondia ao 27º dia (o dia da revelação do corão) do Ramadan 1388, o governadorgeral Rebello de Souza pronunciou pelo radio, uma mensagem de saudação a todos os muçulmanos da “província”, abrindo sua alocução com a leitura da primeira do livro sagrado. Esse procedimento foi repetido nos anos seguintes. (CABAÇO, 2009, p.216). Tempos mais tarde, o Estado português em conjunto com a igreja conseguiu trazer para seu lado a comunidade islâmica de Moçambique. Há controvérsias sobre a real adesão islâmica ao governo, até mesmo por que este grupo sempre se mostrou 296

contra-hegemônico. Mas, o que podemos afirmar é que este seguimento religioso foi pouco perseguido. As religiões tradicionais foram as que mais sofreram perseguições, isso se dá por diversos motivos. Por ser considerada uma religião obscurantista e primitiva e por ser muito diferente das demais, esta diferença se dá, ou se torna gritante, porque tanto o catolicismo quanto o islamismo e o protestantismo tem uma única árvore religiosa que é o judaísmo e suas práticas acabam sendo muito parecidas uma com as outras. As pessoas que fossem pegas praticando as religiões tradicionais eram severamente punidas com surras, multas e mandados para trabalhar nas minas na África do Sul. Os principais seguimentos das religiões tradicionais que foram perseguidas foram as práticas ligadas aos cultos de possessão pelos espíritos e a feitiçaria. Por causa das perseguições muitos dos nativos aderiram ao processo de assimilação, mais continuaram a praticar suas crenças de forma mais restrita, isso ocasionou uma mudança em muitas práticas religiosas, pois obrigações que eram feitas nas florestas começaram a ser feita em casa para dificultar que as práticas fossem descobertas. Essas mudanças também se deram pelo grande número de imigrantes das zonas rurais para as zonas urbanas.

5. Os Protestantes

Os protestantes são todas as igrejas que surgiram da tentativa de Reforma proposta a igreja Católica por Martinho Lutero na Alemanha, no século VXI. A reforma foi entendida como rebelião de Lutero a Santa Igreja e ele foi excomungado. As igrejas que surgiram após este acontecimento ficaram conhecidas como igrejas reformistas ou igrejas protestantes por causa dos muitos protestos feitos pelos novos cristãos. Segundo Gaspar, os protestantes estão divididos em três: o protestantismo histórico, os protestantes pentecostais e os neopentecostais. No grupo do histórico estão contidas as igrejas, Luterana, Anglicana, Calvinista e muitas outras como as Metodistas, Presbiterianas e as Batistas tradicionais. No protestantismo pentecostal, movimento que surge no início do século XX, nos Estados Unidos, surgem várias igrejas tais como a Congregação Cristã do Brasil e a Igreja a Assembléia de Deus que está entre as maiores igrejas pentecostais do mundo e os neopentecostais que tem 297

como principais expoentes as Igrejas Universal do reino de Deus, a Internacional da Graça de Deus e a Igreja Renascer em Cristo. Os protestantes da linha histórica, de uma forma ou de outra, foram muito importantes para combater o governo e também o catolicismo, e mais tarde tiveram grande influência nas lideranças da FRELIMO, por que muitos dos líderes tiveram formação cristã (protestantes). Alcinda nos dá exemplos do cristianismo e da educação missionária: A expansão das missões cristãs gerou de imediato contradições. Enquanto os católicos usavam exclusivamente a língua portuguesa, considerado pelo poder colonial como veículo de dominação cultural [...] os Protestantes traduziram a Bíblia de inglês para Xitsua e Xironga. Na verdade, a educação nas missões protestantes contribuiu para criar uma atitude

anti-colonial

e

nacionalista

nos

estudantes

moçambicanos que, posteriormente, viriam a confrontar-se com o regime colonial. (HONWANA, 2002, p. 134).

As religiões protestantes em Moçambique se articularam contra os dogmas católicos e na busca por fieis, cada um a sua maneira. As religiões cristãs em Moçambique são divididas em tradicionais, pentecostais e neopentecostais, existe uma hierarquia entre elas, ou melhor, elas representam muito bem as classes sociais existentes em Moçambique. As tradicionais que são os metodistas e os presbiterianos, esses recebem pessoas mais esclarecidas e em situação financeira mais elevada. As pentecostais que são compostas pela, Assembléia de Deus, Deus é Amor, e outras usam um sistema de cura e o culto é mais “dinâmico”, elas recebem as pessoas com pouca ou nenhuma escolaridade. Já as neopentecostais, como a igreja Universal do Reino de Deus, conseguem fieis através de um discurso sensacionalista de prosperidade. Peter Fry faz uma análise sobre o crescimento das igrejas pentecostais e protestantes e as suas relações com as religiões tradicionais africanas, os espíritos e a feitiçaria. Segundo o autor, a crítica à tradição, feita pelos cristãos e não-cristãos, se dá em favor do Espírito Santo que seria o mais forte dos espíritos. 298

A abordagem de Peter Fry começa com o relato de uma cerimônia em que um casal procura solucionar um problema de infertilidade, para mostrar um mito de origem pré-adâmica que é sustentado ainda hoje. Um espírito revoltado que teria sido morto por um dos parentes do homem estava atormentando a vida do casal e impedindo que eles pudessem ter filhos mesmo depois de dez anos de relacionamento. A promessa feita pelo bispo John, responsável pela cerimônia, é a de que após a cerimônia, o espírito revoltado se afastará pra sempre. Após o andamento do ritual com todas as suas ofertas e características peculiares, Fry faz um relato da conversa que teve com o bispo John. Segundo o bispo, o grande problema na África são os espíritos malignos, problema este que os Europeus não têm. Embora o autor tenha tentado mostrar que isso não é verdade, o bispo insiste em dizer que Deus retirou toda a inteligência dos africanos e a mandou para a Europa. O bispo inferioriza os negros e coloca os brancos como seres superiores capazes de gerir os negócios, responsáveis pelas melhores descobertas e atribui aos moçambicanos e a “tradição” toda a culpa dos problemas que acontecem desde o período pré-colonial. O autor diz que as justificativas utilizadas pelo bispo para fazer tais afirmações, segundo o próprio bispo, está no livro do Gênesis. O bispo afirma, tomando como base suas interpretações sobre as passagens bíblicas, que Deus teria criado primeiro o negro para depois criar Adão e Eva que seriam os primeiros brancos da terra. A experiência de Eva com a “serpente” teria gerado um homem mulato, Caim. O segundo filho fruto da relação de Eva com Adão foi Abel que seria branco. O negro teria sido então a serpente que induziu Eva ao pecado, os dois geraram um filho mulato, Caim, que mais tarde foi amaldiçoado por desagradar a Deus com um sacrifício pequeno, ao contrário de seu irmão Abel, a quem Caim matou por ciúme. Segundo o autor, a “teoria” pré-adâmica apresentada pelo bispo traz inovações em relação a outras que foram desenvolvidas ao longo da história, para Fry, ao colocar os negros como primeiros habitantes da terra, Adão e Eva como assexuados e ensinados por um negro, reitera a assertiva colonial sobre a exagerada relação com a sexualidade, enquanto os brancos são mais contidos, já que foi por culpa de um negro que Eva conheceu a sexualidade e o pecado. Além disso, a novidade apresentada pelo bispo diz respeito a paternidade de Caim, filho de um negro com Eva, o que coloca os mulatos em situação de predestinação a lugares de malandragem e trapaça. Diante da diversidade de religiões presentes em Moçambique, o mito pronunciado pelo bispo, segundo Fry, é mais presente nas igrejas protestantes “espiritualistas”. Já 299

nas igrejas evangélicas a crítica recai sobre a cultura, culpando não os negros em geral, mas a tradição seus usos e costumes, referindo-se aos curandeiros e a feitiçaria. O que revela um aspecto interessante mostrado pelo autor, a crítica aos curandeiros e a feitiçaria é uma característica que difere as igrejas protestantes da católica, já que a última é acusada de apenas tolerar, no sentido de ignorar os acontecimentos que estão fora da Igreja. Sendo assim, a crítica a tradição é vista com mais facilidade nas igrejas pentecostais que tem se proliferado cada dia mais na África Austral. Para Peter Fry, o crescimento das igrejas pentecostais se deve a necessidade de formar redes de solidariedade na busca de novos valores para a superação do caos provocada pela guerra civil que terminou em 1992, após uma guerra que deixou quatro, dos 15 milhões de habitantes, refugiados, transportes, escolas e clínicas destruídas. Apesar disso, Fry conta que diferente até do que os mais otimistas pensavam o processo de conciliação foi bem-sucedido, os refugiados puderam retornar às suas aldeias e as atividades foram retomadas. É nesse período que as igrejas católicas voltaram a funcionar após toda a perseguição sofrida na Guerra e as igrejas protestantes começaram a se proliferar. Conforme Fry, “é nessa relação entre a paz e a vitalidade da vida religiosa que os ‘funcionalistas’ baseiam os seus argumentos. A ruptura dos laços de parentesco e das instituições ‘tradicionais’ de ajuda mútua teria produzido a necessidade de estabelecer valores e instituições sociais alternativos”. (FRY, 2000, p. 78). De acordo com o autor essa é uma explicação plausível, já que, as igrejas oferecem grande apoio. Mas só isso não bastaria para explicar tamanha ascensão das igrejas, pois as outras redes de solidariedade não foram totalmente aniquiladas. Outra explicação apresentada pelo autor, para explicar a proliferação das igrejas protestantes, é definida por ele mesmo como cínica. Segundo Fry, a argumentação de que a proliferação do protestantismo se dá pela fácil manipulação pois é feita em uma população que se ilude fácil e é ignorante, parte, principalmente, da Igreja Católica, de alguns setores da FRELIMO e de alguns líderes muçulmanos inconformados com a derrota do socialismo científico. Embora, entre os próprios pentecostais existam acusações mútuas de manipulação. A avaliação que Fry faz sobre a ideia de manipulação é de que ela só poderia ser aceita se for negada a mínima capacidade de senso crítico colocando essa população em posição de total ignorância, o que é uma grande falácia. Contudo, o autor não nega a existência de manipulação, apenas a desmente como total e irrestrita. 300

A explicação “mais generalizada” encontrada por ele foi a de que a popularidade das igrejas se dá pela força do Espírito Santo, que em uma sociedade em que o espírito exerce tanto poder, o Espírito Santo seria o mais forte e capaz de anular o poder dos demais. A proteção do Espírito Santo, estaria aliada a convivência com a Igreja, se fazendo necessário também obedecer as regras da igreja para que o Espírito Santo possa atuar e trazer benefícios. Fry vê essa explicação como sociológica, “pois propõe a supremacia do ‘indivíduo’ autônomo, íntegro e responsável sobre a ‘pessoa’ da ‘tradição’”. (FRY, 2000, p. 86). A distribuição de alegrias e sofrimento está diretamente ligada a capacidade que o indivíduo tem de seguir as normas da igreja, diferente da ‘tradição’ em que alegrias e tristezas dependem das relações desenvolvidas entre o indivíduo e seus familiares. Apesar disso, a relação que o indivíduo mantém com a “família de Cristo”, segundo o autor, não o desvincula das relações de parentesco com seus familiares. Ou seja, a explicação da supremacia do Espírito Santo sobre os demais espíritos por si só não é suficiente para explicar a proliferação das igrejas. A explicação apresentada pelo autor sobre o aumento das igrejas é a de que: O movimento protestante ganha adeptos pela sua promessa de enfrentar o mal da feitiçaria mediante um projeto de adesão às regras cristãs que garantem a proteção do Espírito Santo e a solidariedade

social

das

igrejas.

Nesse

sentido,

a

“modernidade” das igrejas não coloca em questão a “tradição”, apenas se apresenta como uma forma mais eficiente e definitiva de se resguardar contra as demandas dos mortos por retribuição e de se proteger dos inimigos que não deixam de lançar mão da feitiçaria. (FRY, 2000, p. 90).

6. Os Zionistas como exemplo de sincretismo em Moçambique

Etimologicamente, a palavra sincretismo tem a sua raiz no grego antigo que significa mistura. A definição de sincretismo trazida por Howana diz que: “Sincretismo religioso significa, portanto, uma síntese de ideias e praticas de diversas ideologias perigosas. Na Antropologia contemporânea registra-se um certo 301

desconforto em relação ao conceito de sincretismo, em virtude desta ter armazenado uma carga semântica muito pejorativa.” (HONWANA, 2002, p. 155). Como foi supracitado, tanto o catolicismo, islamismo e as religiões protestantes são fragmentos do judaísmo, pois cada uma em sua estrutura tem valores judaicos dando assim um caráter sincrético. Se pegarmos o movimento protestante veremos que a mistura é ainda maior pois saíram do catolicismo levando consigo valores judaicos, católicos e após outras bifurcações, valores luteranos, calvinistas e anglicanos. Outro exemplo de mistura em Moçambique foram as igrejas zionistas que teve sua origem na cidade de Zion, em Illinois nos Estados Unidos, fundada em 1896 como Igreja Cristã Católica Apostólica em Zion (CCAZ), por John Alexandre Dowie. Esta igreja foi introduzida pela primeira vez em África em 1904, chegando às populações negras dos arredores de Johanesburgo e do Natal através de Daniel Bryant. O Zionismo penetrou a região do sul de Moçambique através dos trabalhadores imigrantes que regressaram da África do Sul e que aí haviam sido convertidos. (HONWANA, 2002, p. 146). Essas igrejas integraram a sua liturgia valores das religiões tradicionais tais como os espíritos linhageiros, o uso de banhos com folhas e rituais de cura. Os rituais de cura são feitos através do transe do profeta que é responsável pela cura do indivíduo. “O ritual da cura incorpora rezas e orações bíblicas que, normalmente precedem a profecia.” (HONWANA, 2002, p. 147). Uma forma de chamar adeptos era o slogan em que a cura nas igrejas zionistas eram gratuitas, pois nas religiões tradicionais os materiais para o tratamento espiritual do doente era pago. Outro exemplo do sincretismo entre as religiões tradicionais nessas igrejas é o uso do sangue de animais e ambas usam a água do mar para rituais especiais. Muitos dos praticantes das religiões tradicionais são adeptos das igrejas zionistas. Peter Fry em seu ensaio nos dá uma informação sobre uma visão poligenista realizado em uma dais igrejas zionistas que na verdade é um legado deixado pelos colonizadores:

302

[...] em uma igreja zionista, a Igreja Bethelem de Moçambique, cujo líder, bispo John, me ofereceu uma interpretação poligenista do livro Gênesis, postulando que Deus criou negros e brancos separadamente, condenado os primeiros a uma vida assolada pela ambição e inveja, manifestas e operacionalizadas através do feitiço e da ação de “espíritos e revoltados”. A oposição entre “tradição” e “civilização” fundamenta uam reflexão sobre as causas do sofrimento humano, inclusive a recente guerra civil em Moçambique. (FRY, 1976, p. 01). Estes segmentos da igreja zionistas acreditavam que o jardim do Éden era na África. E que Deus tinha retirado o jardim da terra por causa do pecado de Eva, que tinha se envolvido, ou melhor, que havia sido levado pelo discurso da serpente, que lhe informou como procriar. Por causa disso, Eva e Adão tiveram filhos deixando Deus muito zangado. Deus expulsou os dois do jardim e retirou o jardim do Éden da África. Esta serpente foi o primeiro negro da terra. Os zionistas chamavam ou chamam esta serpente de negro/serpente. Esta exegese do bispo desta igreja em particular possibilitou a aceitação de que o negro é realmente inferior aos brancos e que foi Deus quem mandou os brancos para África para prosperar porque os negros tinham sido gerados do mal. Este relato serve para observarmos como é complexo as relações religiosas em Moçambique.

7. A Igreja Universal negociando a fé em Moçambique

“[...] A umbanda, quimbanda, o candomblé e as religiões e práticas espíritas de um modo geral, é que são os principais canais de atuação dos demônios principalmente em nossa pátria”. (GASPAR, 2006, p. 15). Inicio este capitulo com uma citação de Edir Macedo que está no seu livro, intitulado Orixás, caboclos e guias: deuses ou Demônios?, para demonstrar a clareza do discurso proferido por aquele que é o bispo primaz, líder máximo da Igreja Universal.Desde a sua fundação , em 1977, Edir Macedo vem dirigindo com mão de ferro a maior igreja neopentecostal 303

do mundo que hoje se encontra em 172 países, sendo o coração com uma pomba no centro um dos símbolos mais conhecidos do mundo. Como uma igreja, que tem sem seu regimento combater e demonizar as religiões de matriz africana, conseguiu crescer absurdamente nos países africanos? Ao ponto de inaugurar mega templos como o templo de Moçambique, que foi inaugurado em 13 de março de 2010. Sendo o cenáculo da fé, como assim é chamado o templo de Maputo capital de Moçambique, uma igreja que comporta três mil pessoas sentados e mais 500 pessoas no salão auxiliar. A Igreja Universal do reino de Deus, IURD, chegou em solos moçambicanos em 1992 quando o país acabara de sair de uma guerra. Após 18 anos a igreja conseguiu inaugurar cerca de 305 templos e inaugurar um enorme empreendimento, o cenáculo de fé, que é a sede. O que deve está por trás do sucesso da igreja universal em Moçambique, já que a Frente de Libertação de Moçambique a FRELIMO lutou exaustivamente contra e tradição na construção daquilo que eles chamavam de homem novo e não tiveram êxito? Será a fé em Deus ou serão as promessas da teologia da prosperidade? Muitos indícios nos levam a crer que a busca por prosperidade

por parte dos

iurdianos é muito forte o historiador Dowyan Gaspar em sua dissertação de mestrado vai dizer que: Entretanto, além de sua presença e do rápido crescimento pelo mundo a fora uma preocupação comum à quase todos os autores que pesquisam a Igreja Universal é diagnosticar quais classes ou grupos sociais são abarcados por tal Igreja. Com diferentes classificações ou rotulações, todos os autores apontam que são os segmentos mais pobres que constituem a base social desta Igreja. O presente trabalho não foge a essa regra, na medida em que busca historicizar o perfil social dos crentes da Igreja Universal em Maputo, Moçambique. (GASPAR, 2006, p. 15). A fé na Igreja Universal é negociada com Deus, mas quando digo negociada quero dizer na forma financeira concordando plenamente com o autor supracitado quando este diz:

304

Dentro do discurso da Igreja Universal, a existência de termos relacionados

à

economia,

tais

como

“contrato”,

“investimento”, “sociedade” com Deus, “divida”, “credito”, mostra-nos que a teologia da prosperidade mudar-se-iam as relações do crente com o dinheiro, entendido, a partir de então, como sendo uma “fermenta sagrada que Deus usa na sua obra”. Pois, segundo Edir Macedo, é bom para Deus que nós tenhamos bastante dinheiro a fim de que Ele possa, através de nós, alcançar os perdidos deste mundo com a mensagem salvadora de Jesus Cristo. (GASPAR, 2006, p. 16).

8. Uma Guerra sem fim

Pode-se observar que desde o início da construção da sociedade moçambicana há uma confluência entre as religiões tradicionais dos africanos e a religião islã dos árabes. Mas com a chegada do catolicismo dos portugueses e também dos protestantes histórico, pentecostais e dos neopentecostais aquilo que Èmile Durkheim eu seu livro As Formas Elementares Da Vida Religiosa disse - “No fundo, portanto, não há religiões falsas. Todas são verdadeiras a seu modo: todas correspondem ainda que de maneira diferentes a condições dadas da existência humana.”(DURKHEIM,2003 p VII ) - vai deixar de existir para dar lugar a uma guerra, uma verdadeira inquisição sem fogueira como chamou o teólogo João Dias. Entretanto, mesmo existindo esta inquisição sem fogueira, as religiões continuam vivas e preservando suas liturgias, crenças e cultos, acreditando fielmente em seus Deuses e na salvação que somente eles podem lhes proporcionar. Além de acreditar que as suas religiões são as verdadeiras e que só através delas que se pode ser salvo. Por isso a guerra por fieis em Moçambique nunca irá ter fim. As religiões tradicionais em Moçambique, mesmo sendo perseguidas pelas múltiplas religiões, mesmo tendo passado por centenas de anos de islamização sutil e de sucessivas levas de novas igrejas com novas doutrinas, continuam tendo o principal alicerce para as respostas de todos os problemas sociais da comunidade moçambicana.

305

Revisão Bibliográfica

CABAÇO, José Luís.Moçambique: identidade, colonialismo e Libertação/José Luís Cabaço. – São Paulo: Editora UNESP, 2009. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: O sistema totêmico na Austrália; tradução Paulo Neves. – São Paulo: Martins Fontes, 1996. FRY, Piter. O Espírito Santo Contra o Feitiço e os Espíritos Revoltados: “Civilização” e “Tradição” em Moçambique. FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Disponível http://www.infopedia.pt/$frelimo-%28frente-de-libertacao-de-mocambique%29.

em

GASPAR, Dowyan Gabriel. “É dando que se recebe”: A igreja universal do reino de deus e o Negócio da fé em Moçambique. HONWANA, Alcinda M. Espíritos Vivos, Tradições Modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Tradução de Orlando Mendes; Promédia, 2002. http://www.infopedia.pt/$frelimo-(frente-de-libertacao-de-mocambique)>. MACAGNO, Lorenzo. Política e Cultura no Moçambique Pós-Socialista. 2003. PERRY, Marven. Civilização Ocidental: uma História Concisa/ Marven Perry; Tradução Waltensir Dutra, Silvana Vieira. - 3 - ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-06-13]. Disponível na www: . THOMPSON, Frank Charles. Bíblia de Referência Thompson com Versículos em cada temática. Tradução de João Ferreira de Almeida - Flórida, Vida, 1995.

306

29. O significado do Programa Bolsa Família para os idosos beneficiários: um estudo qualitativo nas cidades de Cachoeira e São Félix – BA132.

Vanessa Cunha Boaventura133 Marina da Cruz Silva134 Resumo: O presente artigo abordará acerca dos programas de transferência de renda

no âmbito do envelhecimento. A pesquisa objetivou conhecer a importância do Programa Bolsa Família para os idosos beneficiários. É feito um breve apanhado sobre os programas de transferência de renda e sobre o envelhecimento; posteriormente é apresentada a análise dos dados obtidos através de uma pesquisa qualitativa, realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix- BA. É perceptível a aprovação do programa Bolsa Família por parte dos beneficiários idosos, porém, não deixam de ressaltar a insuficiência da renda recebida para se obter mais melhorias na vida. Cabe destacar a relevância dos programas de transferência de renda no âmbito do envelhecimento, tendo em vista que se tem comprovado a importância dos idosos no que diz respeito à redução da pobreza familiar. Palavras-chave: Envelhecimento, Programa de Transferência de Renda, Bolsa

Família. 1. Introdução

O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa de transferência de renda que beneficia famílias em situação de pobreza135 e extrema pobreza136. Foi instituído pela Medida Provisória n. 132, de 20 de outubro de 2003, posteriormente transformado na Lei n. 10.836 de 09 de janeiro de 2004. Dentre seus objetivos destaca-se: combater a fome, a pobreza e as desigualdades sociais, através da transferência de um benefício financeiro e promover a inclusão social, visando à 132

Cachoeira e São Félix estão localizadas no Recôncavo Baiano, possuem respectivamente uma população (segundo o IBGE, 2010) de 31.630 e 13.819 habitantes e um IDH (PNUD/2000) de 0, 681 e 0, 657, ambos médio e o índice de desenvolvimento familiar (2009) de 0,52 e 0,54. 133Bolsista voluntária do Projeto Envelhecimento e Programas de Transferência de Renda e acadêmica do sétimo semestre do curso de bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL), Cachoeira - BA. Email: [email protected] / tel.: (75)8803-2335/ (75)9158-1456. Professora orientadora: Marina da Cruz Silva.

134

Assistente Social e docente do Curso de Serviço Social da UFRB, orientadora da pesquisa PIBIC/UFRB “Política de Assistência Social e Envelhecimento em Cachoeira e São Félix – BA: Estudo qualitativo sobre a percepção dos idosos quanto ao Benefício de Prestação Continuada (BPC)” 135 136

Com renda mensal de até R$140,00 por pessoa. Com renda mensal de até R$70,00 por pessoa.

307

emancipação das famílias. Partindo dessa premissa, o presente artigo abordará a importância do Programa Bolsa Família no âmbito do envelhecimento. O estudo em foco é fruto de uma pesquisa qualitativa137, realizada nas cidades de Cachoeira e São Félix- BA; nos quais foram aplicadas trinta entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas 138 e posteriormente transcritas 139 (quinze em cada cidade), no período de fevereiro a abril de 2011. O artigo está estruturado num breve apanhado sobre os programas de transferência de renda e envelhecimento; o perfil dos idosos beneficiários; composição familiar e o acesso aos programas de transferência de renda; visão da própria velhice: significado e imagem; o significado do Programa Bolsa Família para os idosos: o acesso a renda; e notas conclusivas. 2. Breve apanhado sobre os programas de transferência de renda e envelhecimento

A temática programas de transferência de renda140 começou a ser discutida no cenário internacional a partir dos anos de 1980, no âmbito das grandes transformações sociais e econômicas, devido à Revolução Tecnológica. As experiências com Programas de Renda Mínima (PGRM) surgiram nos países desenvolvidos, no século XX, ao mesmo tempo em que o Welfare State se consolidava. O objetivo destes era criar uma rede de proteção social para a população pobre, através de uma transferência de renda complementar. De acordo com Silva, Yazbeck e Di Giovanni (2008), os marcos iniciais da constituição do sistema de proteção social no Brasil se situam no período compreendido entre 1930 e 1943. Nesse período, o país passava por transformações sociais e econômicas e pelo reordenamento das funções do Estado, que passa a assumir o papel de agente dos interesses da comunidade. 137

Busca compreender o problema em um determinado contexto histórico e social. Segundo Minayo (2004, p.21-22) a pesquisa qualitativa “trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. 138

139

Optou-se pela não identificação dos entrevistados.

Critério de identificação dos entrevistados: de 01 à 15 são os idosos entrevistados da cidade de Cachoeira; e de 16 à 30 são os entrevistados da cidade de São Félix. Usou-se F – para as idosas do sexo feminino e M- para os idosos do sexo masculino (EX: 6F – sexta entrevistada, sexo feminino; cidade de Cachoeira; e 17 M- entrevistado dezessete, sexo masculino, cidade de São Félix). As falas dos idosos serão citadas no decorrer do texto, quando estão em negrito significa que o entrevistado deu ênfase na fala; negrito e caixa alta – ênfase maior; itálico – quando diminui o tom da voz.

140

Entende-se por transferência de renda como transferência monetária direta a indivíduos e famílias.

308

Segundo Silva e Lima (2010), a temática dos programas de transferência de renda tem seu desenvolvimento histórico sistematizado em cinco momentos: o primeiro momento, iniciado em 1991, com a apresentação do Projeto de Lei n.80/1991 pelo Senador Eduardo Suplicy, instituindo o Programa de Garantia de Renda Mínima para todo brasileiro a partir de 25 anos de idade; o segundo momento, de 1991 a 1993, quando se propõe uma transferência monetária a famílias que tivessem crianças de 5 a 16 anos em escolas públicas, esse introduziu duas inovações: a família como beneficiária e a articulação da transferência monetária com a obrigatoriedade de crianças de frequentarem escola; o terceiro momento foi iniciado em 1995, com as experiências de implementação nas cidades de Campinas, Santos e Ribeirão Preto (SP) e em Brasília (DF); o quarto momento, iniciado em 2001, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, que foi marcado pela expansão dos programas federais criados em 1996; e o quinto momento, iniciado em 2003, com o governo de Luís Inácio Lula da Silva, marcado pelo Fome Zero, principal estratégia do enfrentamento da pobreza e da fome no Brasil, cujo principal programa é o Bolsa Família (criado em 2003, fruto da unificação de todos os programas sociais até então existentes). O envelhecimento populacional é um fenômeno mundial. Significa um crescimento mais elevado da população idosa com relação aos demais grupos etários, ou seja, a população idosa cresce mais, em face da alta fecundidade e há uma redução da mortalidade. Portanto, o envelhecimento populacional é um grande desafio gerado pelas demandas socioeconômicas, o que faz necessária a adoção de políticas públicas que propiciem dignidade aos idosos. Visto que, aos idosos, devem ser assegurados os direitos sociais, criando condições para promover sua autonomia, integração e efetiva participação na sociedade141. A velhice deve ser compreendida sob o aspecto biopsicossocial. Segundo Lopes (2000) 142, enquanto a longevidade desponta como conquista na área da saúde, o processo de envelhecimento alerta para novas atenções nos serviços e benefícios lazer, médico, assistencial, previdência – prestados pela sociedade. Os velhos são considerados como potenciais beneficiários dos programas de transferência de renda,

141

CAMARANO, Ana Amélia. “Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica”. Texto para discussão nº 858. IPEA. Rio de Janeiro, janeiro de 2002.

142

LOPES, Ruth G. da Costa. “Saúde na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso do medicamento”. São Paulo: EDUC, 2000.

309

haja vista que a realidade brasileira permite afirmar que muitos idosos são chefes de família e assumem o sustento de toda sua família. 3. Perfil dos beneficiários idosos do Programa Bolsa Família residentes nas cidades de Cachoeira e São Félix – BA.

Em Cachoeira, foram entrevistadas quinze idosas, com idade entre 61 e 79 anos. Dessas, duas se autodeclararam pardas, quatro morenas, duas morena escura; sete se denominaram negra/preta. No que se refere à escolaridade obteve-se o seguinte: quatro não-alfabetizadas, duas alfabetizadas, uma participou do antigo programa de educação Mobral; uma nunca estudou, duas - tem primeira série primária; duas - quarta série primária, uma - sexta série, uma - sétima série e uma possui ensino médio completo/técnico em contabilidade. Quanto à ocupação: três – não possui nenhuma ocupação, oito são aposentadas, uma – aposentada pela maré; uma não tem renda nenhuma, uma faz biscate e uma é aposentada pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC). Do total de idosas, sete são católicas, sete são cristãs/evangélicas e uma não tem nenhuma religião. No que se refere aos idosos de São Félix foram entrevistadas catorze idosas e um idoso, com idade entre 61 e 70 anos. No que tange à cor: uma idosa se declarou “branquinha”, um pardo, seis morenas, duas morena clara; duas denominaram-se negras, uma “negona” e duas - escura. Quanto à escolaridade: quatro - não alfabetizados, um alfabetizado, um - primeira série primária; um – segunda série primária, quatro- terceira série primária; dois – quarta série primária e dois – quinta série do ensino fundamental. No que se refere à ocupação: oito pessoas não possuem nenhuma ocupação, três idosos são pensionistas; dois são aposentados, um tem aposentadoria por invalidez e um recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Desses, onze declararam-se católicos, uma pessoa não possui nenhuma religião, um é evangélico, um “toma estudo” e um é espírita. 4. Composição familiar, relação familiar e o acesso aos programas de transferência de renda.

A composição familiar é um elemento-chave para que a família se torne beneficiária do Programa Bolsa Família, uma vez que se calcula o total de pessoas que residem na casa e a renda mensal de cada uma. Segundo Silva e Lima (2010, p. 310

45):“(...) um primeiro indicador que merece consideração é o número médio de pessoas por domicílio, sendo este, no conjunto do Brasil, no ano de 2009, correspondente a 3,97 pessoas”. Ou seja, a média de pessoas por casa chega a quase quatro pessoas, o que demonstra que na constituição dos lares não se tem apenas a família tradicional 143 , mas há configurações de lares como famílias ampliadas 144 , dentre outros. Verificou-se, com a pesquisa, que na cidade de Cachoeira a composição familiar varia, desde a idosos que moram sozinhos à famílias com doze pessoas, residindo na casa dos idosos; dentre os quais destacam-se: (2) dois idosos moram com cinco pessoas; (3) três moram com quatro pessoas e (2) duas idosas moram com doze pessoas. Em São Félix, a realidade não se difere muito da de Cachoeira: moram sozinhos (dois), quatro (4) moram com três pessoas, três (3) moram com cinco pessoas; três (3) moram com quatro pessoas, um (1) mora com sete pessoas, dentre outros. Ao serem questionados acerca de como os familiares veem e os tratam dentro de casa, isto é, quanto ao quesito “relação familiar”, muitos idosos afirmaram viver bem com os familiares, outros, porém, afirmaram ter relações conflituosas, como se pode verificar na fala a seguir: [...]Da minha família quem me respeita são meus filhos mesmo, minha filha. Meus netos.. se eu facilitar ai, eu apanho. [...] Os meus filhos não, que me respeitam, se eu disser: - senta ai, senta! Tem seus filhos, tudo me respeita, mas meus netos? Meus netos? Meu Deus. Eu tenho um mesmo que só falta me bater. Um não, pra lhe ser sincera eu tenho um neto que é até inimigo meu. Passa aí, nem olha pra cá. Pra mim também não existe, peço a Deus que abençoe eles, que tenha pena deles, né? Mas fazer o que (25F, 64 anos, l. 39-48).

Na fala acima, evidencia-se, além de uma relação familiar não muito positiva, a violência contra os idosos. Segundo Motta145 (2009, p.8), muitas são as 143 144

Pai, mãe e filhos. Sobre a constituição das famílias tem-se: famílias com uma estrutura de pais únicos ou monoparental, tratandose de uma variação da estrutura nuclear tradicional devido a fenómenos sociais, como o divórcio, óbito, abandono de lar, ilegitimidade ou adopção de crianças por uma só pessoa; família ampliada ou consanguínea é outra estrutura, que consiste na família nuclear, mais os parentes diretos ou colaterais, existindo uma extensão das relações entre pais e filhos para avós, pais e netos. Dentre outros.

145

MOTTA, Alda Britto da. “Violência contra as mulheres idosas – questão feminista ou questão de gênero?” In: Congresso de 2009 da LASA (Associação de Estudos Latino-Americanos). Rio de Janeiro, 2009.p. 1-19.

311

formas de violência contra o idoso e que, conforme as pesquisas vem demostrando, seus agressores, primordialmente são filhos e filhas, às vezes, os netos. “Portanto, pessoas de gerações mais jovens”. Questionados a cerca das mudanças relacionadas no âmbito familiar após tornar-se beneficiário do Bolsa Família, muitos idosos alegaram a melhoria na renda, tendo em vista que o valor, repassado pelo programa, auxilia na manutenção da casa ou é, até mesmo, a única fonte de renda. Como se pode comprovar nas falas abaixo: Mudou, graças a Deus! Que eu nunca mais passei fome, não dá pra eu comprar os mundos e os fundos, [...] me serve muito, muito mesmo! Passo minha vida e não ando pedindo nada a pessoa nenhuma, como eu vivia pedindo o pão de cada dia a um e a outro. Hoje em dia, depois da minha Bolsa Família, graças a Deus tudo melhorou pra mim! Deus aumente os anos de vida e saúde de quem fez e faz isso por nós! (6F, 63 anos, l.78-85) Recebo vinte e dois reais, somente de um neto. Eram dois, mas o outro ficou maior de idade, aí saiu e só ficou um. Minha filha, esse dinheiro me ajuda muito, porque meu véi [referindo-se ao esposo] não era aposentado, só eu que sou aposentada. Então, meu dinheiro é pra tudo filha, é pra luz, é pra água, é pra gás, é pra comida, remédio. É PRA TUDO! Você sabe um salário como é, né? Porque meus filhos não tem pra me dar, quem sustenta a casa sou eu, minha filha! Eu sou o morão de tudo (20F, 64 anos, l.1015).

Porém, cabe destacar que há pessoas que não perceberam melhoria após o recebimento do benefício. A exemplo da entrevistada 11F (61 anos, l. 12-13), que afirmou: “Quase que não teve mudança nenhuma.”. As pessoas que alegaram não haver muitas mudanças argumentam que o valor repassado é muito irrisório, não ocasionado, pois alterações significativas em sua situação de pobreza. Cabe lembrar, segundo Silva e Lima (2010), que o funcionamento do programa Bolsa Família está atrelado a três dimensões: alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda às famílias mais pobres; a articulação de programas e ações para as famílias; e ruptura do ciclo da pobreza, que passa de geração para geração, por meio do reforço aos direitos sociais básicos. Sobre este último, não se verificou, de acordo com a pesquisa, um grande avanço, tendo em vista que a maioria entrevistados provém o sustento de toda a sua família, de três gerações 312

(filhos, netos e bisnetos) e que, suas gerações não têm trabalho fixo, nem renda, por isso são dependentes dos idosos, perpetuando-se, pois o denominado ciclo da pobreza geracional. Verificou-se, pois, que as idosas, em sua grande maioria, são as responsáveis pela chefia familiar (foram entrevistados trinta idosos, desses apenas um do sexo masculino). Wajnman146 aborda que as mulheres sempre tiveram mais desvantagens que os homens no mercado de trabalho, exercendo ocupações mais ligadas aos serviços em geral, as quais são geralmente mais mal remuneradas e menos protegidas pela legislação trabalhista. Além disso, as mulheres acumulam responsabilidades domésticas decorrentes do casamento e da maternidade, sendo pois as que tendem a experimentar as condições ocupacionais e salariais mais precárias, sobretudo quando estas ocupam a posição de chefia de suas famílias. Conforme Wajnman (2001, p. 2): [...] do ponto de vista da composição etária e por sexo da população, podemos diferenciar a vulnerabilidade das famílias brasileiras com base na sua composição demográfica, especificamente considerando a presença de idosos, crianças e chefes de família do sexo feminino. Verifica-se, assim, que famílias chefiadas por mulheres, sobretudo aquelas em que há crianças pequenas, encontram-se entre as mais pobres, ao mesmo tempo em que a presença de idosos tende a garantir uma condição mais favorável. Esse fato se deve, sobretudo às condições de trabalho as quais, na maioria das vezes, as mulheres estão submetidas (conforme explicitado na citação acima) e que, quando chegam à velhice não são amparadas pelo sistema previdenciário que é excludente, levando em consideração o caráter contributivo. Ao se fazer uma análise mais acurada acerca do perfil dos idosos em Cachoeira - elencados no início do artigo – constatou-se que oito (8) são aposentados e três (3) não possuem nenhuma ocupação. Em São Félix, apenas dois idosos são aposentados, oito dos entrevistados não tem nenhuma ocupação, desses alguns declararam viver apenas com o valor do benefício do Bolsa Família. Alguns idosos alegaram que trabalharam, mas não de carteira assinada e quando o fizeram, o tempo não foi suficiente para garantir a aposentadoria; alguns foram aposentados pela 146

WAJNMAN, Simone. “Envelhecimento, participação laboral feminina e desigualdade de renda no Brasil.” CEDEPLAR/UFMG. Texto para discussão n.788. IPEA, Brasília, 2001. In: http://www.eclac.org/celade/noticias/paginas/5/27255/Wajnman.pdf. Acesso em 26 de julho de 2011.

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colônia/maré, outros pelo fundo rural ou pelo “Benefício de Prestação Continuada”; há ainda aqueles que estão esperando completar sessenta e cinco anos de idade para se “aposentar” pelo Benefício de Prestação Continuada, estabelecido pela Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS). Diante disso, cabe destacar a relevância da aposentadoria para o sustento familiar. E o caso dos idosos entrevistados, que a maioria está excluída desse processo, fazendo com que os mesmos permanecam numa condição de extrema pobreza. Sobre isso, Camarano (2002, p.23)147 no relatório sobre o envelhecimento da população brasileira, do IPEA148 afirma que: Foi visto que as aposentadorias desempenham um papel muito importante na renda dos idosos e essa importância cresce com a idade. Pode-se concluir que o grau de dependência dos indivíduos idosos é, em boa parte, determinado pela provisão de rendas por parte do Estado. Como uma parcela importante da renda familiar depende da renda do idoso, sugere-se que quando se reduzem ou se aumentam benefícios previdenciários, o Estado não está simplesmente atingindo indivíduos, mas uma fração razoável dos rendimentos de famílias inteiras. 5. Visão da própria velhice: significados e imagens.

Os idosos foram questionados acerca da visão que tem da própria velhice. Alguns apontaram a relação entre idoso e trabalho, ou seja, ser idoso significa não trabalhar mais; outros estabeleceram a relação com a idade, com as dores, com a dependência. Foram inúmeros fatores apontados, dentre os quais destacam-se os seguintes: Pra mim, a idade só é ruim porque a gente não tem mais idade pra fazer as coisas que fazia antes, eu mesma não agüento mais trabalhar, essa minha perna aqui é doente. [...] A velhice é ruim em um ponto, porque a gente precisa dos outros, não pode mais trabalhar. Dependo de botar minha água, minha luz, ainda não tive condições, fico pedindo pros outros [...] (6F, 63 anos, l.86-93) [...] Ah, é muito bom também. Quer dizer que.. é boa e não é porque.. é bom porque eu tenho meus filhos que não me 147

CAMARANO, Ana Amélia. “Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica”. Texto para discussão nº 858. IPEA. Rio de Janeiro, janeiro de 2002. 148

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

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respondem, não me maltratam, vivo muito bem com eles; não me preocupo porque eles são uns meninos respeitados, então quer dizer aí que eles me tratam bem e minha saúde fica cada vez mais/ aumenta mais. É melhor ainda pra mim. Só o problema que eu tenho é aquelas dores, como é? ... É problema de osso e a pressão alta e agora que tô com o açúcar alto, coisas da idade. Sinto uma dor no peito, tô fazendo tratamento com um médico aí, médico de coração. Essas coisas são também do tempo de jovem, trabalhei muito. Negoço de lavação de roupa, né? Acaba com a pessoa. [...] Vim colher agora. (22F, 61 anos, l. 12-21) Essa vida de ser idoso é uma vida ótima, porque o idoso, no principio da infância ele já viveu muitas coisas e tem muitas coisas para dedicar aos jovens, muitas coisas que os jovens não sabia e não sabe, o idoso ensina. Mas acontece que hoje a maior parte dos jovens não quer se comunicar com o idoso, porque o idoso tem uma sabedoria, coisa que a juventude de hoje não sabe fazer, o idoso sabe fazer. As palavras/os conselhos que um jovem não tem hoje pra pronunciar pra outro, o idoso tem. Agora acontece que eles não querem se misturar, o idoso com a juventude, e ai o idoso tem tanta coisa boa pra oferecer, mas eles desperdiçam tudo (24F, 69 anos, l. 11-19)

Como se pode notar nas falas supracitadas, todos os entrevistados usam um claro “marcador” para a velhice. Há falas que reconhecem algum ganho na passagem da idade (experiência, conhecimento, descanso), a maioria sinaliza, porém as perdas (não ter saúde, perder a autonomia; vividas direta ou indiretamente e, sobretudo, temidas). Isso pode ser explicado pelo fato, da imagem da velhice, no geral, ser associada a aspectos negativos. Essas imagens também influcenciam na maneira que os próprios idosos caracterizam essa fase da vida. Ao perguntar aos entrevistados se gostam de ser idosos, percebeu-se que alguns gostam dessa fase da vida em que estão vivendo, argumentado o fato de não ter mais que trabalhar ou não poder mais trabalhar, e poder enfim descansar. Outros, porém, não aceitam a idade que tem como se pode comprovar nas falas: Eu gosto sim, porque a pessoa chega a essa idade e tem que dar graças a Deus que chegou, né? Não precisa mais trabalhar, fica em casa, descansa, né? A gente cansa né? Quando trabalha demais, então agora descansa (1F, 68 anos, l.24-27).

315

Eu não gostaria, mas eu sou. Eu tenho que gostar né? (risos) [...] (3F, 75 anos, l.24-25) Ô que jeito.. tenho que gostar, porque a idade de qualquer um quando chega tem que aceitar, né? Aceitar o que a gente é, não é verdade? Tem gente que diz que eu não tenho essa idade, tenho sim. Eu aceito minha idade como eu sou (26F, 64 anos, l. 22-25).

O sentir-se velho para a maioria dos sujeitos está fortemente vinculado à dependência física, as dores e doenças, dentre outros. Questionados se se consideram pessoas velhas, obteve-se as seguintes respostas: Não. Velha não! Me considero uma pessoa madura, assim uma coroa mais ou menos. Aí quando eu tiver bem velhinha, de cacetinho eu digo: Aí eu to velha! Não faço mais nada! (7F, 68 anos, l. 29-31) Eu me considero já como velha. Eu me considero como velha porque já tô com esses problemas todos, né? Aí já não tenho mais força mais pra fazer as coisas. Aí eu tenho que/ as coisas que eu tenho que fazer que é varrer uma casa, mas tem dia que eu tô atacada da coluna, com as pernas, aí eu já deixo aquela coisa pra mais tarde pra aliviar. Quando aliviar eu varro a casa, já lavo um prato, só faço mesmo isso (22F, 61 anos, l. 39-44)

São usadas várias nomenclaturas para designar a pessoa que já tem sessenta anos ou mais, quais sejam: idoso, velho, 3ª idade, novos velhos, maior idade, idade da experiência, maturidade, estágio avançado de vida, melhor idade, entre outros. Normalmente elas tentam suavizar, no discurso, a estigmatização que os idosos vivem no cotidiano. Maltempi (2006, p.06)149afirma que “mais que o rótulo, o que importa é a superação do estigma a que os idosos são submetidos e a significação que adquirem na construção do espaço de cidadania como sujeitos históricos”. Diante disso, perguntou-se aos idosos se há diferença entre os termos idoso e velho. Os mesmos argumentaram da seguinte forma: Tem. PORQUE O VELHO NÃO AGUENTA MAIS NADA NA VIDA, [...] TEM IDOSO ASSIM NA MESMA 149

MALTEMPI, Maria Angela C. de Souza. “Co-educação: uma proposta intergeracional”. ETIC ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA- v.2, n.2, 2006. p. 1-15. In: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1321/1261, acesso em 25 de julho de 2011.

316

IDADE, IGUAL A EU, QUE JÁ É VELHO PORQUE NÃO AGUENTA FAZER MAIS NADA, é por idade, doença, qualquer coisa, E TEM VELHO, MUITO MAIS DO QUE EU QUE NÃO DEPENDE DAS PESSOAS E FAZ DE UM TUDO, como eu vejo aí, [...] quer dizer o velho só é ruim por isso, porque depende das pessoas e eu aqui, graças a Deus, só dependo de Deus e eu mesmo! [...](6F, 63 anos, l. 127-139) Eu acho que é a mesma coisa, não é não? Velho e Idoso é tudo igual, já tá velho mesmo, não pode fazer mais muita coisa mesmo. É igual mesmo!(8F, 74 anos, l. 24-25) Há, porque velho eu considero assim, não tem aquele papel velho que não presta mais, você machuca, machuca e diz: ah, esse papel não presta pra nada, você joga fora. E o idoso ele ainda tá/ainda tem boca pra falar, ainda tem coisa pra lhe ensinar, tudo isso. Muitas vezes ele não pode fazer, mas ele ainda lhe orienta, tudo isso. (24F, 69 anos, l. 81-85). Eu acredito que seja mesma coisa (28F, 64 anos, l. 24)

Então, pode-se perceber que alguns idosos acreditam que as terminologias são iguais, outros, porém, atribuem à palavra velho um significado extremamente negativo, isto é, “sem utilidade”, descartáveis, coisas estragadas. Alguns acham, pois, que é um termo até certo ponto agressivo. Por outro lado, consideram que a palavra idoso é mais aprazível: “mais decente”, visto que não enfatiza a inutilidade. O que se pode perceber é que os idosos constroem a visão acerca da própria velhice pautandose no seu papel na sociedade, a partir do como as pessoas os olham, dentre outros. Sob esse aspecto Lazaeta (1994, apud SILVA; GÜNTHER, 2000, p.32)150 afirma que: durante o envelhecimento, os principais fatores de influência da sociedade sobre o indivíduo são a resposta social ao declínio biológico, o afastamento do trabalho, a mudança da identidade social, a desvalorização social da velhice e a falta de definição sociocultural de atividades em que o idoso possa perceber-se útil e alcançar reconhecimento social. Ao perguntar aos entrevistados, como eles acham que as pessoas vêem o idoso, os mesmos responderam da seguinte forma:

150

SILVA, Iolete Ribeiro da; GÜNTHER, Isolda de Araújo; “Papéis Sociais e Envelhecimento em uma Perspectiva de Curso de Vida”. In: Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, jan-abr, 2000, v. 16 n. 1, p. 31-40.

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Até aqui que eu tô, me tratam muito bem, porque eu vou numa fila e todo mundo me respeita, aí eu não tenho o que dizer/reclamar nada.(7F, 68 anos, l.16-17) A maioria das pessoas respeitam sim, outras não. Porque hoje é difícil, as vezes um adolescente até mesmo criança mesmo, adulto porque são mais novos acham que o idoso não tem valor. Mas somos seres humanos e eles também vão chegar onde nós já estamos. Toda criança, adolescente vai ficar adulto e vai chegar também na idade que nós estamos (9F, 61 anos, l.13-17). [...] alguns tratam bem, né ? Alguns tratam o idoso bem e respeitam, mas alguns acham que o idoso não é nem gente, é um bicho né? Mas outras pessoas respeitam e consideram que são gente mesmo, né? Porque a gente não nasceu velho, a gente nasceu novo, depois que a gente vai ficando velho, né? Existe dessas coisas, né? Tanto faz o velho como o novo. Tanta gente trata mal né? (17M, 66 anos, l.25-29)

Tem muita gente que não faz caso não, algumas pessoas considera o idoso, tem respeito, e tem muitos que o idoso não tem valor nenhum. Tem muitos que dizem que a pessoa tá até fora da validade, como teve uma pessoa que me disse isso que eu tô fora da validade, mas eu não tô fora da validade não. O que está fora da validade se joga fora, tá podre, entendeu? (25F, 64 anos, l.34-38) Portanto, pode-se notar que alguns entrevistados alegam ter boa relação com as pessoas da sociedade, que essas os respeitam, fazem a associação do respeito pelo fato de os deixarem passar na frente nas filas dos bancos, loterias, dentre outros. Outros chamam a atenção para o fato de que algumas pessoas da sociedade tratam o idoso mal, como se não tivessem valor e como se eles também não fossem ficar velhos. 6. O significado do Programa Bolsa Família para os idosos: o acesso a renda.

Procurou-se estutar a percepção social que os idosos têm acerca do programa Bolsa Família, tendo em vista aspectos como importância do programa, avaliação e significado para suas vidas. Dentre as variadas e valiosas respostas, destacam-se as seguintes: É muito bom. Ajuda tanta gente. Tem gente que se não fosse essa Bolsa Família nem sei como ia dar conta de tanta gente dentro de casa. Olha aí, quanta gente mora aqui e é só o meu

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dinheiro e essa Bolsa Família que quebra um galho (2F, 79 anos, l.39-42) .... Pra mim é, porque se eu não trabalho, eu não tenho quem me ajude, eu não tenho nada, só pego mesmo o dinheiro dessa Bolsa Família, quer dizer que não dá para nada, porque eu com esse dinheiro, quando ver dizer que é a despesa de uma casa, tudo é comigo aqui [...] ninguém vai passar com sessenta/ com sessenta e oito reais por mês pra comer, pra pagar água, luz, fazer der tudo com aquele dinheiro, pode? Tem condições? Não tem (11F, 61 anos, l. 48-55) Coisas boas, né minha filha? Porque ajuda muito a pobreza, tem muita gente que vive só desse dinheiro. Tem muitas pessoas aqui por esse mundo que vive desse dinheiro (20F, 64 anos, l.46-48) Ah, eu acho que deveria ser mais um pouco, porque eu só recebo sessenta e oito reais, né? E eu acho muito pouco pra uma pessoa que, as vezes precisa comprar um remédio, porque nem todo remédio tem na farmácia da Farmácia Popular, né? [...]O Bolsa Família é bom. Eu falo que meu padrinho (risos), eu falo assim: meu padrinho é o Lula, né? Ô meu Deus que dê vida e saúde ao meu padrinho Lula. [...] Então esse dinheiro já ajuda (21F, 65 anos, l.3241)

Através das falas, pôde-se perceber que o Bolsa Família, para alguns idosos, é a única fonte de renda, da qual eles tiram o sustento de toda sua família; porém, o baixo valor do benefício é sempre questionado pelos entrevistados, tendo em vista que o valor repassado varia de vinte e dois reais à cento e oitenta reais, sendo que esse valor também muda de acordo com o número de filhos, em idade escolar, dentre outros fatores. Há aqueles, para os quais, o Bolsa Família representa tudo. Outros, porém, destacam que não houve mudanças significativas em suas vidas, devido ao baixo valor que é repassado, diante das inúmeras contas que se tem que pagar com o valor auferido. Percebe-se, contudo, o aumento do poder de compra, uma vez que, segundo os beneficiários, eles podem comprar a crédito que depois terão o dinheiro para quitar a dívida. Quanto ao uso do valor do benefício, os idosos afirmaram que, na maioria das vezes, o dinheiro é utilizado para pagar as contas (água, luz), comprar material escolar, gás, remédios, etc. Conforme se pode comprovar: 319

Compro o remédio, ou senão pra ajudar dentro de casa, comprar alguma coisa que falta, o que precisa dentro de casa: um pão, um açúcar, um café, um gás, nisso assim. Ajuda a comprar sim! (4F, 70 anos, l.51-54) Eu compro o gás, pago o gás, luz; água. Já alguma coisinha pra comer (risos). (29F, 67 anos, l.32-33)

Questionados se o Bolsa Família é um direito ou uma ajuda, obteve-se por resposta: Eu acho que é uma ajuda. Porque ... antigamente não tinha nada do Bolsa Família e hoje em dia o governo tá ajudando as pessoas, então acho que é uma ajuda, né? É UMA AJUDA BOA PRA O POBRE! (4F, 70 anos, l. 7678)

... Se é um direito ou uma ajuda, né? .... Uma ajuda, porque se eles fizeram não é obrigatório, eles fizeram esse plano pra ajudar as pessoas necessitadas e que precisa, então eu entendo assim, como uma ajuda, que Deus abençoe a quem pensou em fazer essa ajuda, porque [...] quantos como é que diz? Autoridades que entraram e saíram no Brasil, e nunca existiu um que fizesse isso, cada um em seu mandato e hoje não, pensaram [...] e fizeram isso por nós, tão ajudando, é uma ajuda sim! (9F, 61 anos, l.54-90) Eu acho que é uma ajuda que o governo tá dando a gente. Porque tem tantas famílias pobres ai, inclusive a minha, que não trabalha; já é uma ajuda. (28F, 64 anos, l.32-64) Os beneficiários idosos, em suas explanações, afirmaram que o Bolsa Família é uma ajuda. O programa pode ser assim considerado tendo em vista que é temporário, no qual as pessoas estão sujeitas a condicionalidades e caso não as cumpram podem deixar de ser beneficiados, portanto, não se configura como direito. Silva e Lima (2010, p. 106) afirmam que, apesar dos limitados impactos produzidos pelo Bolsa Família, “o

principal mérito do programa é contribuir para

ultrapassagem da Política de Assistência Social enquanto uma política emergencial, situando-a enquanto uma política pública de Estado, embora o BF ainda não tenha se transformado, de fato, num direito”. Outro fator relevante para tal afirmação é o sistema de cotas, ou seja, há um número restrito de pessoas por cidade que podem ser beneficiários e os critérios de acessibilidade.

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Os idosos foram convidados a expor suas opniões acerca do que o governo/Estado deveria fazer para melhorar a vida dos pobres. Foram levantadas as seguintes questões: investimento em educação, construção de casas populares, aumento do valor do benefício e da aposentadoria, expansão do Bolsa Família a todos que precisam. Além disso, deram ênfase a medidas para aumentar a oferta de emprego, principalmente, porque nas cidades onde se realizou as pesquisas, é muito difícil as pessoas conseguirem empregos formais, diante disso, muitos deles vivem de empregos temporários. As falam a seguir servem para ilustrar as recomendações feitas: Aumentar mais o dinheiro! O dinheiro dos aposentados e a Bolsa Escola também, né? Agora, a pessoa aposentada ganha um salário, o que dá pra fazer? Pra pagar tanta coisa de casa? Luz, comida, remédio, tanta coisa pra fazer né? [...] Ninguém aqui trabalha, acha trabalho, [...] minha filha de 31 anos tá sem trabalhar, a outra aí também não tem trabalho. [...] Eu que sustento tudo, faço tudo. (15F, 74 anos, l. 61-68) O governo deve ajudar, dar o Bolsa Família a todos que precisam. (3F, 75 anos, l.13-74)

O mais importante é ajudar bastante, boa educação, colégio, essas coisas pro menino estudar, pra não ter tempo de ficar sem estudar, aí na rua; e ficar fazendo coisa errada. Eu acho que o importante é isso aí. (19F, 62 anos, l.92-94) [...] eu acho que eles deveriam fazer é dar emprego, dar emprego pros pobres, porque a maioria é desempregado. Pobre não tem condição [...] não são todos que tem condição de ir estudar pra pegar um emprego bom. Só é emprego ruim mesmo. Esse ruim mesmo que o pobre tem hoje. Se o pessoal não tiver um nível elevado hoje, se não tiver um primário completo hoje, fica difícil pra arranjar emprego. Então, o que o governo deveria fazer era isso, olhar pra essa parte, porque as vezes a pessoa não estudou, porque agora ele [o governo] está dando condições para a pessoa estudar, mas antigamente não tinha condição, né? Da pessoa estudar assim. Os que eram mais caprichosos estudavam e botavam os filhos e outros que facilitavam os filhos não aprendiam bem. (17M, 66 anos, l.25-29)

Além disso, os idosos expuseram críticas e sugestões ao Bolsa Família, dentre elas destacam-se: o aumento do valor repassado (mencionado anteriormente), a universalização do acesso, ou seja, todos que precisassem deveriam ter direito ao programa, haja vista que muitas pessoas passam por dificuldades e não são 321

beneficiárias. Pereira (2003 apud Silva e Lima, 2010, p.66): “entende que a focalização não considera a idéia de prevenção e de universalidade inerente ao conceito de direitos sociais”. Ademais, acreditam que deveria ser revistos os critérios de acesso e não se restringir a um número fixo, como é feito atualmente. 7. Notas conclusivas.

As políticas sociais, através dos programas de transferência de renda, têm por objetivo contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, através da emancipação e autonomia dos sujeitos. No Brasil, as políticas públicas têm assumido caráter compensatório e paliativo frente às situações de vulnerabilidade social, uma vez que se apresentam através de ações fragmentadas, descontínuas e focalizadas para o atendimento de determinados segmentos sociais, o que fere o princípio de universalidade e como direito de todos os cidadãos. Conforme Silva e Lima (2010, p. 63) apontam que as políticas neoliberais acabam pressionando para: “adoção de políticas sociais focalizadas, cuja orientação era direcionada para o desenvolvimento de medidas meramente compensatórias para fazer face aos efeitos do ajuste estrutural sobre as populações mais atingidas”. De um modo geral, a aprovação do programa Bolsa Família por parte dos beneficiários idosos é grande, no entanto, não deixam de ressaltar a insuficiência da renda recebida para se obter mais melhorias na vida. Reivindicam mais renda diante da ausência de perspectiva de empregos regulares para seus familiares. Cabe ressaltar que, para a grande maioria dos idosos entrevistados, o Bolsa Família representa o único rendimento monetário percebido, e que os idosos provém não só seu sustento, mas, muitas vezes, de toda a sua família. Por isso, o programa é muito importante em suas vidas. Através da pesquisa, pôde-se comprovar que ainda é grande o número de idosos sem aposentadoria diante do sistema de Previdência Social brasileiro, com forte caráter meritocrático. Diante disso, restam aos idosos excluídos desse sistema, recorrer à Assistência Social, através do Benefício de Prestação Continuada, regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social, a fim de garantir para si e os seus uma renda fixa. Quanto à percepção sobre a velhice, os idosos usam um marcador para mesma, quais sejam: 1) ganhos na passagem da idade, possibilitados pela experiência 322

e conhecimentos adquiridos, pelo fato de não precisarem mais trabalhar e descansar; 2) perdas, devido à falta de saúde, autonomia e da dependência de outras pessoas. Tem-se, então, uma percepção ambivalente da velhice, tendendo para as chamadas perdas e ganhos inerentes a qualquer fase da vida humana. Outro fator observado refere-se à diferença entre os termos idoso e velho. Percebeu-se que alguns idosos afirmaram que as terminologias são iguais, outros, porém, atribuem à palavra velho um significado mais negativo e consideram, pois a palavra idoso como mais “decente”. Reafirma-se, portanto, que as várias terminologias existentes tentam suavizar a estigmatização que os idosos vivem no cotidiano; e que a construção acerca da própria velhice é pautada na visão e na forma como as pessoas da sociedade os “rotulam”. Diante das várias críticas feitas ao Programa Bolsa Família pelos entrevistados, verifica-se a necessidade de implementação da renda básica universal como direito fundamental permanente, principalmente para aqueles que se encontram inseridos no ciclo vicioso da pobreza, pois se tem comprovado que é preciso quebrar a pobreza entre as diversas gerações, para que se possar sanar de fato esse problema. Silva e Lima (2010, p. 106) afirmam que, conforme tem mostrado nas pesquisas a nível nacional, “a natureza e o nível dos impactos do Bolsa Família nas famílias beneficiárias são limitados ao atendimento de necessidades imediatas, sem possibilitar a introdução de mudanças mais profundas no padrão de vida dessas famílias”. As medidas adotadas pelo Programa Bolsa Família estão aquém de alcançar tal objetivo, diante do irrisório valor repassado às famílias e aos critérios extremamente rigidos de corte de renda. Nesse caso, seria mais adequado adotar políticas sociais de caráter mais universal, com valores mais generosos e que fossem de fato capazes de quebrar o chamado ciclo vicioso da pobreza. Ademais, deve-se destacar a importância da adoção do sistema de aposentadoria por tributos, tendo em vista o grande número de idosos que jamais terão acesso ao sistema meritocrático de aposentadoria. Essa medida seria de fundamental importância, tendo em vista o papel dos idosos na chefia familiar. 8. Referências

CAMARANO, Ana Amélia. “Envelhecimento da população brasileira: uma contribuição demográfica”. Texto para discussão nº 858. IPEA. Rio de Janeiro, janeiro de 2002. 323

LOPES, Ruth G. da Costa. “Saúde na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso do medicamento”. São Paulo: EDUC, 2000. MALTEMPI, Maria Angela C. de Souza. “Co-educação: uma proposta intergeracional”. ETIC - ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA- v.2, n.2, 2006. p. 1-15. In: http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1321/1261, acesso em 25 de julho de 2011. MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.) et al. “Pesquisa Social: teoria, método e criatividade.” 23. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. MOTTA, Alda Britto da. “Violência contra as mulheres idosas – questão feminista ou questão de gênero?” In: Congresso de 2009 da LASA (Associação de Estudos Latino-Americanos). Rio de Janeiro, 2009.p. 1-19. SILVA, Iolete Ribeiro da; GÜNTHER, Isolda de Araújo; “Papéis Sociais e Envelhecimento em uma Perspectiva de Curso de Vida”. In: Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, jan-abr, 2000, v. 16 n. 1, p. 31-40. SILVA, Maria Ozanira da Silva e; LIMA, Valéria Ferreira Santos de Almada. “Avaliando o Bolsa Família: unificação, focalização e impactos”. São Paulo: Cortez, 2010. SILVA, Maria Ozanira da Silva e; YAZBEK, Maria Carmelita; GIOVANNI, Geraldo Di. “A política social brasileira no Século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda”. São Paulo: Cortez, 2004. WAJNMAN, Simone. “Envelhecimento, participação laboral feminina e desigualdade de renda no Brasil.” CEDEPLAR/UFMG. Texto para discussão n.788. IPEA, Brasília, 2001. In: http://www.eclac.org/celade/noticias/paginas/5/27255/Wajnman.pdf. Acesso em 26 de julho de 2011.

324

30.

INTERCÂMBIOS MANDU

ESTÉTICOS:

PERFORMANCES

DO

GRUPO

Violeta Martinez151 RESUMO

O Grupo Mandu Performance-art vêm buscando há dois anos uma produção de trabalhos em performance que dialoguem com as matrizes culturais do Recôncavo da Bahia. Os processos criativos do grupo partem da necessidade de pesquisa sobre a cultural performance, já que o grupo está situado na cidade de Cachoeira-Ba, onde encontramos grande riqueza cultural de matrizes africanas. Desta forma, o artigo se propõe analisar alguns trabalhos e atividades realizadas pelo grupo, tendo em vista os intercâmbios estéticos encontrados nas performances produzidas, bem como sua importância para a arte contempoânea. Palavras –chave:Performance-art; Cultural Performance; Recôncavo da Bahia.

ABSTRACT The group Mandu Performance-art have been searching for two years ago a production in performance that discussions with the cultural matrixes of Recôncavo da Bahia. The creative process start from the need for research on the cultural performance, as the group is located in Cachoeira, Bahia, where we find rich cultural African-origin. The article proposes to examine some work and activities of the group, in view of the exchanges produced aesthetic found in the performances as well as its importance for contemporary art. Key words: Performance art; Cultural Performance; Recôncavo of Bahia. O Grupo Mandu Performance-art e o delineamento da pesquisa

Em dois anos de desenvolvimento da pesquisa, o Grupo Mandu, vem demarcando um numero de produções consideráveis que dialogam com a cultural performance, ou seja, as diversas práticas espetaculares e/ou culturais, principalmente de matrizes africanas, que encontramos no Recôncavo da Bahia. Marcado pelo sincretismo religioso, o Recôncavo Baiano possui intensa presença negra, com inúmeras expressões performativas matriciais, como o candomblé, o samba de roda, a

Acadêmica de Cinema e Audiovisual da UFRB. Faz parte do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Arte, Audiovisual e Patrimônio (GAAP), num projeto intitulado “Performance-art e Matrizes Culturais do Recôncavo da Bahia: diálogos estéticos” com orientação do Mestre Ayrson Heráclito. É bolsista PIBIC/FAPESB e integrante do Grupo Mandu Performance-art. E-mail: [email protected]. Tel: (75) 8147-3731 151

325

capoeira, as festas populares, etc. Expressões de caráter performático podem também ser identificados nos modos comportamentais dessa população, no cotidiano, no ritual, em sua estética, em seus modos de vida. Para não perder de vista os conceitos e entendimentos do termo cultural performance, esclarecemos: a performance (logo a prática de espetacular e/ou cultural) não é mais fácil de definir ou de localizar. O conceito e a estrutura se estendem para toda parte. Ela é étnica ou intercultural, histórica e não-histórica, estética e ritual, sociológica e política. A performance é um modo de comportamento, uma abordagem da experiência concreta; ela é um jogo, esporte, estética, divertimentos populares, teatro experimental, e mais ainda (TURNER, 1982)152.

A pesquisa está baseada também na diferenciação dos conceitos de performance-art e cultural performance, sendo que em sua primeira etapa foi realizado um mapeamento de artistas do Recôncavo da Bahia que trabalham com a performance-art. Além disso, foi feita uma análise de algumas obras realizadas por cada um, no intuito de saber se esses trabalhos dialogavam ou não com a cultural performance. Nesta segunda etapa, o pesquisador Tiago Sant’ana demarcou um plano de trabalho no qual realizou uma pesquisa mais aprofundada sobre as práticas performativas espetaculares, encontradas no Recôncavo. Enquanto que eu me concentrei nas atividades e produções do Grupo, bem como nos registros (fotográficos e videográficos) e conceituação dos trabalhos. O grupo, antes formado por Júlio Cesar Sanches, Tiago Sant’ana e Violeta Martinez, ganha dois novos membros que auxiliam na pesquisa e nas atividades práticas: Flávia Pedroso (Artes Visuais -UFRB) e Elder Luan dos Santos Silva (História –UFRB). Com uma formação maior, pudemos organizar melhor nossas funções e, desta forma, melhorar o funcionamento do grupo. Atividades do Grupo Mandu

No dia 15 de agosto de 2010 o grupo Mandu Performance-art realizou a Mostra Mandu de Intervenções Urbanas em diversos pontos da cidade de Cachoeira, durante a festa da Nossa Senhora da Boa Morte. Foram convidados os artistas João Matos (Coletivo Osso – Salvador) e Tina Melo (Cachoeira), que juntos com Tiago Sant’ana,

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O conceito de cultural performance pode ser encontrado em PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007.

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Júlio Cesar Sanches e Violeta Martinez realizaram performances em diferentes pontos da cidade. O convidado João Matos realizou a performance Transborde, na ponte D. Pedro II que liga as cidades de São Felix-Cachoeira. Utiliza o barro e a linha como material, sendo que o primeiro remete a origem do homem e da mulher e o segundo material está representando a união entre os dois gêneros. É um corpo em trânsito, transfigurado pelo desejo em visitar outros gêneros.

Fig.1 – Transborde– Mostra Mandu de Intervenções Urbanas - Cachoeira, 2010.

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Fig.2 – De: para - Tina Melo - Mostra Mandu de Intervenções Urbanas - Cachoeira, 2010. O performer Tiago Sant’ana realizou a performance Nas coxas na escadaria da Casa de Câmara e Cadeia. Utiliza o charuto e o fumo de corda nas ações, fazendo referência a produção deste produto pelas charuteiras negras do Recôncavo. O artista queima os pulsos e os tornozelos com o charuto e acaricia as coxas com o fumo de corda, que lembra o formato de um pênis. Este trabalho remete a violência de gênero, a exploração da imagem da mulher negra, vista como escrava sexual, e também aos crimes de trabalho que aconteciam dentro destas fábricas, como a violência sexual contra a mulher.

Fig.3 – Nas coxas -Tiago Sant’ana- Mostra Mandu de Intervenções Urbanas Cachoeira, 2010. A performance Salube, de Júlio Cesar Sanches consistiu numa saudação a Nanã, deusa dos mistérios no candomblé, tendo relação com a festa de Nossa Senhora da Boa Morte, pois representa o nascimento, a vida e a morte. O performer utiliza dois repolhos, comida sagrada para a orixá e uma faca virgem para cortá-los, escrevendo o nome Salube no solo. A performance foi realizada na Praça 25 de junho.

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Fig.4 – Salube - Júlio César Sanches- Mostra Mandu de Intervenções Urbanas Cachoeira, 2010. Violeta Martinez realiza a performance numa praça, próximo ao porto de Cachoeira. A performance consiste na imagem da artista tomando um banho de caldo de cana e em seguida de açúcar. Este trabalho remete aos canaviais e ao trabalho escravo, no período colonial, onde o corpo do negro foi explorado nessa região pelo senhor de engenho, para a produção do açúcar, maior fonte de renda e riqueza nessa época.

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Fig.5 – Violeta Martinez – Mostra Mandu de Intervenções Urbanas - Cachoeira, 2010.

O grupo organizou e realizou também o Seminário Corpo em Prospecção II: performance art e outros dispositivos, que aconteceu nos dias 3 e 4 de maio de 2011, no auditório do CAHL, com apresentação dos resultados parciais da pesquisa e mesas com apresentações de pesquisas de convidados como Rose Boaretto, Aroldo Fernandes e Carol Érika Santos, além da exibição de vídeos, mostra de performances e apresentação de DJs e Vjs. Tiago Sant’ana apresentou um bloco da performance Reencantamento do discurso do corpo. O primeiro momento da performance consistia no caminhar do performer entre o público, segurando uma bandeja com uma jarra de água com gelo, e um copo. Logo depois o artista se serviu com água, secando de vez em vez a língua com um guardanapo de papel. Lentamente, o copo era suspenso até a boca, à medida que se encarava o público. Superando a expectativa de beber a água, o copo era levado à cabeça e o líquido despejado, promovendo a sensação de um banho gelado no performer. Este ato consiste no discurso do corpo frente a uma necessidade vital para o homem. O corpo quer água, quer vida, mas isto é sacrificado pela necessidade de outro alimento, o estético. A água fria congela o corpo, que deixa de insistir devido ao susto provocado que anestesia os sentidos e desejos

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Fig.6 – Tiago Sant’ana– Seminário Corpo em Prospecção II- Cachoeira, 2011. Corpo aberto, corpo fechado

O grupo participou da Mostra de Performance - Corpo Aberto, Corpo Fechado na Galeria Cañizares - Escola de Belas Artes - UFBA 
(Salvador – BA), no dia 19 de maio de 2011, com a performance Proposições para o Recôncavo n. 2. Dois performers contrastam seus corpos com frases projetas na parede que remetem à ações deslocadas do seu contexto comum. Portando um recipiente com carvão moído e óleo, um dos integrantes pinta com esse material o rosto do outro e depois tinge a língua de vermelho do performer. Após essa ação, blocos de rapadura são presos nos pés do participante, que tenta sambar em cima dessa plataforma.

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Fig.7 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011 Enquanto acontece a tentativa da dança, num ritmo cadente, outro performer orna seu pescoço com pimentas malaguetas vermelhas. Em seguida, o participante saca um vasilhame de adoçante, volta o seu rosto para cima e começa a pingar o líquido em seus olhos.

332

Fig.8 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011 Proposições para o Recôncavo n° 2 é a reunião de ações que remetem à memória, ao imaginário do Recôncavo da Bahia. Essa região é marcada pela forte matricialidade afro. No período colonial consistiu num grande sítio da cana de açúcar e, consequentemente, um lugar escravocrata. A proposta apresentada remete à uma forma diferente de fruição de algumas cenas

da

escravidão

brasileira

e

do

imaginário

popular

percebido

na

contemporaneidade do Recôncavo. A pintura no rosto consiste num ato realizado durante a teatralogia do Nego Fugido – um cena popular do Recôncavo que trata da relação entre escravo e capitão do mato (responsável por capturar cativos fugidos). Também tem relação com os conflitos raciais travados nessa região por negros escravos e brancos escravizadores. Pintar o rosto do outro aqui está intimamente relacionado com propor uma relação e o entendimento do que é ser negro. Os materiais utilizados nesta performance estão intimamente ligados à memória da região. A rapadura é um dos derivados da cana de açúcar e tomamo-la como um alimento que carrega em si a rigidez do trabalho escravocrata. O samba também é uma das cenas populares mais fortes no Recôncavo e neste trabalho sugere uma ressignificação através da proposta de ser executado com os tamancos de rapadura.

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Fig.9 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011 A pimenta e o adoçante remetem a uma expressão comum falada cotidianamente: o “olho gordo”. A pimenta seria responsável por repelir os maus fluidos e a inveja dos olhos que a vêem. O adoçante é tomado no seu sentido literal e de forma bem humorada – aludindo a um possível emagrecimento do olho.

Fig.10 – Proposições para o Recôncavo n. 2. – Corpo Aberto, Corpo FechadoSalvador, 2011 A memória e os materiais estão presentes nesse trabalho que foi também realizado por meio de telepresença no Circuito Regional de Performance Bode Arte, no dia 8 de julho em Natal (RN) – numa proposta de globalização do Recôncavo, esgarçando os limites entre o local e o global, e entre a matricialidade e a tecnologia. REFERÊNCIAS

BIÃO, Armindo J. Etnologia, uma introdução, in: GREINER, Cristiane e BIÃO, Armindo J. (Org) Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999. COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. FERREIRA, Ayrson Heráclito Novato. MARTINEZ, Violeta. Grupo Mandu Performance-Art: Uma experiência de intercâmbios estéticos. Trabalho apresentado no 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios” – 20 a 25/09/2010 – Cachoeira – Bahia – Brasil. Acessado em 12 de fevereiro de 2011. Disponível em http://www.anpap.org.br/anais/2010/pdf/cpa/ayrson_heraclito_novato_ferreira_2.pdf 334

GLUSBERG, Jorge. A arte da Performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. GOLDBERG, Roselee. A arte da Performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MELIM, Regina. Performance nas Artes Visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

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31. FAMÍLIA, ESCOLA E UNIVERSIDADE: CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA INTERLOCUÇÃO

Zenilda Nascimento Santana 153 Mariana Leal dos Santos154 Georgina Gonçalves dos Santos155 RESUMO:

Qual a relação que as famílias brasileiras de camadas populares estabelecem com a educação dos seus filhos? Quando se trata da continuidade dos estudos, do ingresso no ensino superior, relatos na literatura apontam para sentimentos relacionados como sendo essa uma meta historicamente inatingível por estudantes pobres. A relação entre família, escola e universidade ocupa um espaço importante nos estudos realizados pelo Observatório da Vida Estudantil na UFRB que tem, entre seus objetivos, estimular em alunos, professores, gestores e famílias a idéia da educação superior como projeto de futuro. Este estudo, de caráter qualitativo, analisa as objetivações que os atores sociais fazem de seu mundo familiar e cotidiano e busca, através da observação participante e de ferramentas tomadas de empréstimo da etnografia – conversas informais, entrevistas compreensivas e escritas de diários de campo – construir entendimentos a respeito da interlocução família/escola/universidade e como isso determina a entrada dos estudantes da escola na universidade. PALAVRAS CHAVE: família; ensino médio; educação superior 1. INTRODUÇÃO

Qual a relação que as famílias brasileiras de camadas populares estabelecem com a educação dos seus filhos? Esta questão tem se tornado tema de estudo para muitos pesquisadores nas ciências da educação (BRANDÃO, 2010 156 ; PORTES, 2010 157 ; VIANA, 2010 158 ; ZAGO, 2010 159 ) e ganha relevo, sobretudo em um 153

Estudante do 7º semestre do Curso de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras e integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Vida Estudantil. Email: [email protected]. Contato: (75) 91894571.

154

Estudante do 7º semestre do Curso de Bacharelado em Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras e integrante do Grupo de Pesquisa Observatório da Vida Estudantil. Email: [email protected]. Contato: (75) 81236065.

155

Professora do Centro de Artes, Humanidades e Letras, no Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, bolsista de produtividade do CNPq. [email protected]

156

BRANDÃO, Zaia. Entre questionários e entrevistas. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. 157 PORTES, Écio Antônio. O trabalho escolar das famílias populares. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

336

momento em que no Brasil se convive com o cenário de democratização de acesso ao ensino superior e ampliação do número de universidades públicas, espaço historicamente ocupados por setores da elite de nossa sociedade. Em um país que só viu surgir seus primeiros cursos superiores no século XIX e sua primeira universidade no século XX (PINTO, 2004) 160 , a ponte ensino secundário - ensino superior se viu marcada por várias rupturas. Quando se trata do acesso de estudantes das camadas populares, as rupturas se apresentavam de forma mais fecunda. Ingressar nas universidades públicas era mais difícil ainda para alguns, meta inatingível para os estudantes pobres (PORTES, 2010; VIANA, 2010; ZAGO, 2010). Mas, diante do atual quadro brasileiro de reforma do ensino superior, essa realidade vem ganhando novas configurações.

As políticas de acesso ao ensino

superior e os números do Programa Universidade Para Todos tem possibilitado aos estudantes de camadas populares o ingresso a esse nível de ensino em instituições privadas. Entre 2005 e 2008, o PROUNI já havia beneficiado mais de trezentos mil jovens. Para o segundo semestre de 2011 estão previstas a oferta de mais de noventa mil bolsas de permanência. Também registramos como marco o Programa de Expansão Fase I, iniciado em 2003 e com forte caráter de interiorização das universidades federais e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), implementado em 2008, que representaram um ganho expressivo no que toca ao acesso a seus espaços, principalmente para as populações das cidades interioranas que dificilmente podiam custear os estudos dos filhos na capital. Como resultado desse processo, observamos um aumento considerável do número de universidades e campi no Brasil – o número de municípios atendidos pelas universidades passou de 114 em 2003 para 237 em 2011, com a implantação de 100

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VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidades. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

159

ZAGO, Nadir. Processos de escolarização nos meios populares: as contradições da obrigatoriedade escolar. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010

160

PINTO, José Marcelino de Rezende. O acesso à Educação superior no Brasil. In: Rev. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 88, p. 727-756, especial-outubro de 2004

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novos campi e 14 novas universidades 161 – e junto com essas universidades foi desenhado um conjunto de políticas que permitiram a entrada de estudantes pobres na vida universitária: em 2007, o número de vagas em cursos presenciais em graduação totalizava 132.45 e em 2008 as universidades federais ofertaram um total de 147.277 vagas, o equivalente a um aumento de 14.826 novas vagas162. A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia está representada por estes números. Com seus quatros campi espalhados pela região do recôncavo baiano, a UFRB atende a cerca de 8.200 estudantes em seus cinco anos de existência, contribuindo para a mudança de um paradigma presente no interior da Bahia: o de não ter acesso ao ensino superior gratuito, laico e de qualidade. A autorização para a implantação de mais duas universidades federais na Bahia – a Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOBA) e a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFESBA) – e de três novos campi – um campus da UFBA em Camaçari; um campus da UNILAB em São Francisco do Conde e um campus da UFRB em Feira de Santana – vem contribuir ainda mais para a mudança dessa realidade163. Criada em 2005, como desdobramento da Escola de Agronomia da Universidade Federal da Bahia, esta instituição de ensino superior ofereceu em 2007, 620 vagas em seu processo seletivo. Em 2008, conforme descrito no documento Plano de Consolidação Acadêmica – PCA, a UFRB projetou um crescimento da ordem de 130%, passando a ofertar 1420 vagas. Terminada sua fase de implantação, e ainda conforme o mesmo documento de planejamento, a universidade pretende contar 8.304 estudantes matriculados, ofertando 1800 vagas por ano em seu processo seletivo. O grupo de pesquisa Observatório da Vida Estudantil da UFRB tem, entre os seus objetivos, estimular em alunos, professores, gestores e famílias a idéia da educação superior como projeto de futuro. Atuando em uma escola do Recôncavo há aproximadamente dois anos, o OVE encontrou nesta região um campo fértil para a realização de seus estudos. Diante da constatação do número reduzido de estudantes deste estabelecimento que demonstram interesse em continuar seus estudos, a relação entre família, escola e universidade tem ocupado um espaço importante em nossa

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Dados retirados http://reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=100&Itemid=81 162

de:

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais/Reuni 2008 – relatório de primeiro ano, 30 de outubro de 2009.

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Informações retiradas de http://www.ufrb.edu.br/portal/

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pesquisa, buscando compreensões acerca da relação que as famílias de camadas populares estabelecem com a escolarização dos seus filhos. Para alargar nossos entendimentos acerca do assunto, realizamos entrevistas com a família de três estudantes concluintes – duas meninas e um menino – que pretendem pleitear uma vaga na UFRB. A escolha não foi feita aleatoriamente. Foram construídas a partir das conversas que tivemos com os estudantes do terceiro ano e das narrativas que apontavam para a existência de fatores impulsionadores ou impeditivos de suas escolhas. No decorrer dessas conversas, identificamos algumas situações que poderiam ser importantes para o nosso estudo: uma em que o ingresso está relacionado ao fato de não desapontar a mãe; outra em que o ingresso requisita também a entrada no mercado de trabalho; e a última em que o ingresso surge a reboque, pois para a mãe entrar na universidade, na narrativa da estudante, é perda de tempo. Percebemos que acompanhar esses estudantes nos ajudaria nesse processo de compreensão e então nos propomos a investigar como suas famílias se relacionam com sua escolarização, a fim de levantar algumas considerações em torno da uma interlocução entre família, escola e universidade e como tal interlocução determina a entrada desses estudantes na universidade.

2. TRAÇANDO OS CAMINHOS DA PESQUISA: UMA QUESTÃO DE MÉTODO

Levantar algumas considerações sobre a relação que as famílias de camadas populares estabelecem com a escolarização dos seus filhos exigiu de nós um entendimento em torno da relação família, escola e universidade. Para construir esse entendimento, precisávamos compreender como os métodos utilizados por estas famílias podem alavancar, retardar ou barrar as possibilidades do sucesso e da longevidade escolar desses filhos. Um estudo com essa característica solicitava de nós um posicionamento teórico, mas um posicionamento que desse conta de compreender como é que os indivíduos vêem, descrevem e propõem uma definição para as situações do cotidiano. Encontramos esse apoio na etnometodologia (Garfinkel, 1967; Coulon, 1993, 1995, 2008; Santos, 2007) uma vertente teórica que considera os fatos sociais como realizações práticas e não como coisas: uma abordagem que, segundo Coulon 339

(2008)164 se interessa mais pelo social se fazendo que pelo social consolidado, que reconhece e analisa as objetivações que os atores sociais fazem de seu mundo familiar e cotidiano. Se os nossos estudos apontam que as pessoas não agem com base em respostas predeterminadas, mas que as interpretam e as definem, precisávamos então adentrar nesse universo de comportamentos cujas características e modos de funcionamentos queríamos investigar. Tínhamos um vínculo com a escola e os estudantes, mas não com as famílias. Era exigência nos aproximarmos delas. Assim o Fizemos e fomos ao campo, considerando que O autêntico conhecimento sociológico nos é concedido na experiência imediata, nas interações de todos os dias. Deve-se em primeiro lugar levar em conta o ponto de vista dos atores, seja qual for o objeto de estudo, pois é através do sentido que eles atribuem aos objetos, às situações, aos símbolos que os cercam, que os atores constroem seu mundo social (COULON, 1995, p.15). Para a entrada no campo, realizamos observações intensivas, conversas informais e entrevistas compreensivas com os estudantes e os pais, instrumentos que a etnometodologia toma de empréstimo da etnografia e que nos permitem encontrar e retirar do campo aquilo que buscamos, afinal, é no campo que o pesquisador dá sentindo à sua investigação, é onde os sentimentos, as vivências e os significados que os sujeitos atribuem aos seus atos e à sua própria vida ganham materialidade. O momento das entrevistas, enquanto fase importante no processo de realização da pesquisa, nos obrigou, utilizando-se das palavras de Brandão (2010), a nos colocarmos intensamente à escuta do que foi dito, a refletirmos sobre a forma e o conteúdo da fala dos entrevistados, os encadeamentos, as contradições, as expressões, os gestos e etc. Seguimos os caminhos apontados por Laplantine (2007, p. 156): “no campo, tudo deve ser observado, anotado, vivido, mesmo que não diga respeito diretamente ao assunto que pretendemos estudar”. O diário de campo apareceu como um elemento essencial para o esteio dos nossos passos na pesquisa: o que estava dando certo, o que não estava dando certo, o que poderíamos melhorar, como deveríamos nos comportar se nos deparássemos com a mesma situação lá na frente e ainda, como 164 COULON, Alain. A Condição de Estudante: a entrada na vida universitária. Tradução de: Georgina Gonçalves dos Santos, Sônia Maria Rocha Sampaio. Salvador: EDUFBA, 2008.

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sustenta Macedo, (2010, p. 133, grifos nossos), nos possibilitou o “aprofundamento reflexivo das experiências vividas no campo de pesquisa e no campo de nossa própria elaboração intelectual, e a apreensão, de forma profunda e pertinente, do contexto do trabalho de investigação cientifica. 3. FAMÍLIA,

ESCOLA

E

UNIVERSIDADE:

UMA

RELAÇÃO

DE

APROXIMAÇÃO E DISTANCIAMENTO

Pensar sobre uma interlocução entre família, escola e universidade, algo que a princípio pode parecer impossível entre famílias de camadas populares, exigiu que entendêssemos essas instituições como entidades autônomas, mas que apresentam um ponto em comum na medida em que tem, no ato educacional, as bases para a sua existência. Estudos na literatura apontam para a família como sendo o lugar privilegiado onde o indivíduo vivencia suas experiências, tanto nos aspectos sociais quanto afetivos, psíquicos, educativos e emocionais: nela ocorre a transmissão de valores morais e culturais que são vivenciados no dia-a-dia e internalizados pelos entes que a compõe. Somado a estes aspectos, ela se configura como o elo entre o cidadão e a sociedade, pois é nela que se ensaia o aprendizado para a vida. Como o primeiro lugar de socialização do saber, a família tem um papel determinante na tomada de decisão dos filhos. A escola, importante instituição de transmissão de valores e saberes – valores e saberes para além do adquirido no núcleo familiar, mas não dissociado dele – é o espaço onde o indivíduo, ainda na infância, aprende a lidar com as normas e comportamentos da sociedade e adquire habilidades que se fazem importantes para a convivência em grupo: a introdução no mundo da leitura, da arte, da história e da cultura da humanidade. Ambas – família e escola – enquanto espaços de socialização e transmissão de conhecimentos são, portanto, responsáveis pela formação do sujeito em sociedade. A universidade, como um espaço que recepciona esses sujeitos, vem inaugurar uma nova fase de vida: uma fase em que eles (os sujeitos) devolvem à sociedade todo o conhecimento adquirido ao longo da formação e produzido nos bancos da academia. Ao elencar essas características, fomos aos poucos percebendo que não estávamos realizando um estudo a estanque, que não dissesse nada sobre a realidade 341

com a qual lidamos todos os dias ao chegar à escola onde atuamos e quando nos deparamos com as expectativas dos estudantes quanto ao futuro, principalmente daqueles que estão concluindo o ensino médio. Mas, para início, temos duas questões a colocar. Primeiro, o mesmo discurso que aproxima as famílias pobres da escola não é o mesmo discurso que as aproximariam da universidade. Concordamos com Zago (2010) de que a escola ocupa um lugar importante no universo simbólico da família e do estudante, ainda que muitos pais não se façam presentes na escola e que muitos estudantes passem por processos irregulares de escolarização. Mas, no que toca à universidade, ela se situa num campo mais distante, mais inacessível. Essas duas questões de confirmam nas falas das mães dos estudantes investigados neste estudo. D. Valéria165 apesar de uma infância difícil na roça, onde a possibilidade de estudar se fazia impossível devido à distância da escola e que culminou com a interrupção dos estudos na 4ª série do primeiro grau, somados à concepção do pai que achava que o estudo não significava nada, mesmo com as interferências da mãe, dizendo o contrário, hoje, aos 39 anos de idade, retomou os estudos e já no segundo ano (mas não cursando) reconhece a importância do estudo para os seus filhos porque hoje em dia é muito triste você ser analfabeto, não conhecer as coisas [...], o estudo é tudo na vida de uma criança, é tudo. Estudar tem um significado real para D. Valéria e aparece como uma necessidade indispensável no seu imaginário e no imaginário de suas duas filhas, uma na 1ª e outra na 3ª séries do ensino médio. Nas demais famílias isso também é visível. O estudo se resume a uma frase: “é tudo”. D. Cristilene, por exemplo, acha importante que a filha vá à escola, porque tudo que você tem que fazer tem que ter estudo. Hoje aos 38 anos de idade, D. Cristilene, que estudou até a 2ª série do ensino médio, reconhece a importância do estudo e diz se arrepender de não ter se formado, pois se “tivesse formada seria bom [...], talvez estava trabalhando. Curso eu nunca tive vontade de fazer, mas eu queria ter me formado, para trabalhar. Por isso, o incentivo por parte da mãe, que queria vêla formada é o mesmo que a impulsiona a ver a filha formada. Mas, esse sentimento atribuído à formatura, tanto para ela quanto para D. Valéria não ultrapassa a barreira do ensino médio.

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Todos os nomes aqui apresentados são fictícios.

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Diferente ocorre com D. Nicinha. Aos 47 anos de idade D. Nicinha, que já foi professora de Artes da escola onde atuamos, chegou a cursar dois semestres de pedagogia, mas o interesse pela área da saúde e a aprovação em concurso público a fez retomar os estudos na área de enfermagem e ingressar no curso técnico. A experiência que teve com os pais, principalmente o pai, durante os estudos: a participação constante nas atividades promovidas pela escola, o apoio na realização das atividades, mesmo tendo cursado somente até a quarta série do ensino fundamental, o valor que era dado à escola e aos estudos contribuiu para o seu aprendizado e consequentemente para o aprendizado dos seus filhos. Como ela mesma sustenta, os pais contribuíram muito para o seu sucesso, pois eles não queriam que a gente passasse pelas mesmas necessidades que eles passaram. Então, estudar se fazia mais do que necessário: era obrigatório e é com esse mesmo teor que D. Nicinha criou os três filhos, um deles já cursando Gestão Pública na UFRB. Para D. Nicinha, a escola é a segunda família, é o lugar onde se constrói parte da personalidade [...] no meio, na profissão, no desenvolvimento de todas as formas. [...] Ficar ali dentro de casa restrito num mundinho não pode. Se não for pro o colégio vai pra rua, vai aprender o que não deve. A relação que D. Nicinha e também as outras mães estabelecem com a escolarização dos seus filhos caminha para as direções apontadas por Zago (2010), uma que corresponde a uma lógica prática ou instrumental da escola (domínio dos saberes fundamentais e integração ao mercado de trabalho) e o outro voltado para a escola como espaço de socialização e proteção dos filhos do contato com a rua, do mundo da droga, das más companhias, indicando a inseparabilidade entre instrução e socialização (ZAGO, 2010, p. 24). Ir à escola, para essas mães, se faz uma prática indispensável, afinal, não tem porque os filhos não ir ao colégio. Isso nos pareceu determinante no discurso de D. Valéria. O significado que é atribuído ao diploma, o desejo de ver os filhos “formados”, de vê-los superar a sua condição social é o mesmo desejo que a faz estabelecer estratégias para que os filhos não a frustrem: o acompanhamento do filho menor, que é menos interessado e as idas esporádicas à escola das meninas, pois são

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mais interessadas. Os elogios vindos por parte dos professores e diretor da escola reforçam essa confiança que D. Valéria deposita nas filhas. Para D. Nicinha, esse acompanhamento se faz imprescindível, independente do interesse, da idade e do grau de aprendizagem dos filhos. Como ela mesma sustenta, o filho mais velho que está na universidade tem que lhe dá conta dos trabalhos, quanto mais o que está concluindo, quem mais lhe dá trabalho. Ademais, afirma D. Nicinha, eles vão envelhecer me dando conta das coisas porque quando tropeçar lá na frente não vai dizer ah! Meu pai nem minha mãe não me deram isso, eu não fiz porque meus pais não me deram! Por isso, o acompanhamento nas tarefas, as cobranças na escola diante da falta de aulas e do descompromisso de alguns professores se faz necessário sempre, afinal, o colégio já não dá, se eu largar de mão também...! O lamento de D. Nicinha é a falta de cobrança da escola e dos professores, o que redobra a sua preocupação com a educação dos filhos. Essas narrativas mostram claramente o quanto a escola ocupa um lugar importante para as famílias investigadas, mesmo sendo um espaço contraditório como o diz Dubet (2004). As interferências de D. Nicinha são exemplo dessa característica: para ela, é o compromisso que está faltando nos professores. Professor são os segundos pais e eles se esquecem disso. Se preocupam apenas em greve, no dinheiro. Eu acho que ninguém vive sem dinheiro, mas assim já é demais, colocar o dinheiro em primeiro lugar. Para D. Nicinha, essa falta de compromisso foge ao controle da escola. O que está ligado a isso é a formação da personalidade de cada um – referindo-se aos professores – como se a escola não fosse feita de professores. No que toca a essa questão, Dubet (2004)166 é bem claro: A escola trata menos bem os alunos menos favorecidos: os entraves são mais rígidos para os mais pobres, a estabilidade das equipes docentes é menor nos bairros difíceis, a expectativa dos professores é menos favorável às famílias desfavorecidas, que se mostram mais ausentes e menos informadas nas reuniões de orientação (DUBET, 2004, p. 542).

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DUBET, François. A Escola e a Exclusão. Tradução: Édi Gonçalves de Oliveira e Sérgio Cataldi. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 539-555, set./dez. 2004. Retirado de: em 20 de agosto de 2011.

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Viana (2010) ao investigar os percursos escolares que possibilitaram o acesso e manutenção dos estudos em instituições de ensino superior de estudantes provenientes de meios sociais cuja probabilidade estatística de chegar à universidade é reduzia, reforça as considerações de Zago no que toca ao lugar e ao significado que a escola assume para pais e filhos. Mas, a autora chama a atenção para alguns aspectos: a importância dos processos familiares de mobilização escolar, os grupos de referência, os modelos socializadores familiares ou tipos de presença educativa das famílias nessas camadas como fatores importantes para o sucesso escolar. Não foi possível realizar a entrevista com os pais de duas estudantes por estar trabalhando em outra localidade167, mas percebemos no comportamento de D. Valéria e de D. Cristilene, bem como na narrativa das estudantes o apoio por parte do pai, o que favorece o sucesso e a relação positiva que elas estabelecem com a escola. Isso é um fator importante, pois a escola, com seu caráter seletivo, tem um papel decisivo na definição do sucesso ou fracasso escolar. Essa característica, quando contrastada com situações de desapoio por parte da família, se constitui num fator determinante para os percursos escolares acidentados – o que não é o caso dos alunos investigados –, tanto pelas reprovações quanto pelas interrupções temporárias da escola, seja por ingressar no mercado de trabalho, seja pela interiorização do fracasso, o que não favorece uma relação positiva com a escola. Nesse descompasso “a escola da qual o aluno obtém resultados nãosatisfatórios pode ganhar um lugar marginal frente a outras solicitações, como o lazer e a conquista de maior independência dos pais mediante a obtenção de sua própria renda” (ZAGO, 2010, p. 31). Assim como outros estudos mostraram (Zago, 2010; Viana, 2010; Portes, 2010), não ficou clara a existência de uma prática de “mobilização escolar familiar” nas famílias investigadas à luz das práticas encontradas nas camadas médias de acompanhamento minucioso da escolaridade, a escolha dos estabelecimentos de ensino, o contato frequente com professores, a ajuda regular nos deveres de casa, a participação frequente em reuniões, a utilização do tempo fora da escola com outras atividades que favoreçam o sucesso escolar, até porque as possibilidades de escolhas são limitadas.

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Por esta questão, resolvemos entrevistar apenas as mães dos três estudantes. Como se trata de um estudo que pretendemos dar continuidade, manteremos o vínculo com as famílias, sem perder de vista a figura do pai.

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Existe uma relativa ausência da figura dessas famílias na escola. Portanto, optamos por seguir as orientações de Viana (2010) de que existe um tipo particular de presença familiar na escolarização dos filhos, o que não elimina a possibilidade de longevidade escolar nesses meios. Mais uma vez retomamos os estudos de Zago (2010), Viana (2010) e Portes (2010), que põem em cheque a idéia de que o superinvestimento educativo, por si só, é a garantia do sucesso e a obtenção de diplomas rentáveis, afinal, uma trajetória escolar está também relacionada a um querer e uma autodeterminação, condição indispensável de sobrevida escolar nos meios populares (Viana, 2010). É possível perceber esse querer e essa autodeterminação nos estudantes investigados. Diferente dos dois primeiros estudantes, o querer do terceiro tem um quê a mais: a “dívida que ele tem com a mãe em continuar estudando”. Quanto a este último, para a mãe, entrar na universidade é algo indispensável. Para os demais, o querer se vê esbarrar em duas características: uma porque continuar estudando requisita também trabalhar; a outra porque a mãe não legitima a importância da universidade, se apresentando então como uma instituição dispensável na vida da filha, afinal, a mãe “queria que ela trabalhasse! D. Valéria, por exemplo, reconhece a importância dos estudos, apóia a decisão da filha em continuar estudando, concorda até que “ela tá pensando bem em continuar os estudos, porque não vai poder parar, tem que continuar mesmo”, mas reconhece também as dificuldades da família. Não vai interromper o sonho da filha, mas prefere que ela trabalhe e estude, pois Toda mãe, se pudesse, fazia tudo pelos filhos, mas eu não trabalho, dependo do pai dela. Às vezes eu vejo o interesse dela e eu fico [pausa: um pouco emocionada] não posso nem falar nada porque eu não tenho condições de pagar, mas eu sempre também tô olhado o interesse dela. Se ela achar essa oportunidade [oxente] de trabalhar e estudar... Eu queria [rs]. Essa passagem da narrativa de D. Valéria nos abriu uma deixa para pensar a ligação que é feita entre universidade - dinheiro e da discussão de que tudo que está ligado à qualidade é pago. D. Valéria desconhecia a possibilidade de a filha cursar uma universidade gratuita, fato que, ao término da entrevista, quando ainda conversávamos sobre universidade – pois a outra filha estava a conversar conosco 346

sobre sua opção de curso – ela nos interpelou várias vezes com a pergunta “mas é de graça”? “Não paga nada”? D. Cristilene, mesmo reconhecendo a importância dos estudos, afirma não ser contra que a filha siga o desejo de entrar numa universidade, mas sustenta: acho que demora muito continuar estudando. Ela fala que quer se formar, trabalhar logo, então eu acho que como ela quer, faculdade vai demorar. Para D. Cristilene, sua filha deveria só trabalhar. Mas, se ela tomar essa decisão, claro que vou apoiar. Qualquer coisa que ela decida em benefício para ela eu apoio, reforça. No entanto, se a decisão estiver ligada à saída de casa, o problema se instala. Ir morar em outra cidade é o problema! D. Cristilene até então não deixaria. A estudante queria cursar enfermagem na UFRB, que fica no Campus de Santo Antônio de Jesus e acaba lamentando: “pena que não é aqui”. Mas já pensa em História como segunda opção. Quanto a esta questão, Viana (2010) toma de empréstimo a noção de tríplice autorização formulada por Rochex (1995): primeiro, o aluno-filho se autoriza a deixar a família, a se distanciar cultural e socialmente dos pais; segundo, os pais autorizam o filho a se emancipar; terceiro, há um reconhecimento recíproco, entre pais e filhos, de que a história do outro é legítima, sem ser a sua. No caso da filha de D. Cristilene, o prolongamento da vida estudantil pode vir a acontecer sem essa autorização, como que um puxar para trás, face ao interesse da estudante em cursar enfermagem. Portanto, é possível perceber o quanto a opinião e o posicionamento da mãe tem interferido nas suas decisões. Em entrevista, a estudante esclareceu que a mãe acha uma perda de tempo entrar na universidade. O incentivo que ela recebe vem da parte do pai. D. Cristilene não disse isso abertamente, mas seu discurso foi aos poucos caminhando para esta direção. Em um momento da entrevista ela afirmou que o marido pensava diferente. Se ele pudesse, todos os filhos dele faziam faculdade. O pai, que teve uma escolarização acidentada porque precisou trabalhar muito cedo, quer que os filhos tenham o que ele não teve. Para a estudante, o pai é um exemplo de vida: quando criança estudou até a quarta série e mesmo com o trabalho duro na construção civil, conseguiu chegar até a sétima série, mas teve que largar os estudos e atualmente trabalha fora do Brasil. Para o filho de D. Nicinha, não resta outra saída: entrar na universidade é uma obrigação e ele tem consciência disso. Mesmo sendo mais desleixado, como sustenta a mãe, ele sabe o quanto é importante continuar os estudos e desde muito 347

cedo já havia escolhido sua profissão: deseja ser biólogo e vai pleitear uma vaga no curso de Biologia da UFRB. Para a mãe, isso é fundamental. Melhor ainda quando se trata de uma universidade pública, porque a universidade pública ela é como um caminho para a maioria das pessoas quem não tem recursos. Em compensação, quem entrava e quem entra são as pessoas que tem condições financeiras. D. Nicinha conhece essa realidade, mas também reconhece que já assistimos a algumas mudanças nesse quadro, tanto que faz algumas reflexões pertinentes a cerca da reforma do ensino superior no Brasil, tocando na questão do PROUNI e do surgimento de novas universidades e é isso que a estimula ainda mais para chamar o filho para a realidade. Correr é a palavra de ordem, quanto mais cedo melhor, afinal, toda hora eu digo: vai esperar chegar à minha idade? Aí vai ser pior, aí é que não vai achar nada mesmo porque outros já passaram na frente e já levou tudo.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização desse estudo veio reforçar que a família, por intermédio de suas ações materiais e simbólicas, tem um papel importante na vida escolar dos filhos. Ainda que não se tenha percebido uma prática de mobilização escolar familiar, um planejamento sistemático de prolongamento da vida estudantil (a exceção de uma família), as famílias reconhecem o valor social da escola e, portanto, como um lugar onde seus filhos devem estar. Eles sabem que a porta de acesso à escola é mais larga e consegue abarcar todos que nela desejar entrar. Com a universidade as coisas não caminham nesse sentido. Sua porta é estreita e nem todos que nela quer entrar podem entrar. Podemos

apontar

então

que



interrupções

na

interlocução

família/universidade. O caminho entre a família e escola é mais estreito: os pais sabem que com ela pode contar; mas, o caminho entre a família e a universidade é mais longo, é mais difícil, é bom (para uma mãe, mas tem que trabalhar), é indispensável (para outra mãe), é dispensável (para outra mãe), é possível (para os estudantes investigados) e impossível (para alguns estudantes da escola). Isso, em certa medida, nos dá conta de esclarecer o quanto essa relação interrompida pode barrar o interesse e a possibilidade desses estudantes – e de outros estudantes da escola – de prolongar a vida estudantil.

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Mas, é importante ressaltar algo: ainda que existam situações que representem percalços para a continuidade dos estudos, que para algumas das famílias a continuidade dos estudos não se faça tão urgente ou tão importante, a esperança no apoio dos pais se constitui num fator indispensável nesse processo. Não foi identificada, em conversa com as famílias, a existência de uma prática que eliminasse por vez a possibilidade de continuar estudando, o que nos possibilita dizer que, para os estudantes investigados, a porta da universidade começa e se “alargar”.

4. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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349

PORTES, Écio Antônio. O trabalho escolar das famílias populares. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. SANTOS, Georgina Gonçalves dos. L'implication dans l'action éducative des jeunes brésiliens à risques. Esprit Critique Revue Intenationale de Sociologie et de Sciences Sociales. Printemps. Vol. 9 Nº. 1, p 113 – 121. 2007. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA. Plano de Desenvolvimento Institucional 2010-2014. UFRB: Cruz das Almas, 2009. Retirado de: em 21 de agosto de 2011. VIANA, Maria José Braga. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidades. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. ZAGO, Nadir. Processos de escolarização nos meios populares: as contradições da obrigatoriedade escolar. In: Família e Escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Maria Alice Nogueira, Geraldo Romanelli, Nadir Zago (orgs.). 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

350

Resumos Expandidos - Atividades de Extensão

351

1.

Ciclo de debates do Fazer Profissional: os espaços sócio-ocupacionais em

questão

Albany Mendonça Silva168 Márcia

Clemente169 Andreita dos Santos Pedra de Souza 170 Ângelo Vinicius C. de Carvalho171 Ana Carla 172 Damasceno Jacibarbara de S. Oliveira 173 Leila Karina dos S. Machado174 Larissa Barbara Rodrigues de Oliveira175 Luana Braga Machado176 Palavras-chave: Trabalho; Mercado de Trabalho; Serviço Social Introdução

A realização dos Ciclos de Debates do Fazer Profissional integra as ações do projeto de pesquisa e extensão “Seso no Recôncavo”, do curso de Serviço Social, que consiste na caracterização do trabalho e mercado de trabalho dos assistentes sociais, cuja finalidade é fomentar o processo de reflexão acerca dos desafios e dilemas da formação e do exercício profissional na região, na perspectiva de compreender melhor o cenário do trabalho profissional, face ao desafio de sintonizar a formação às demandas postas ao mercado de trabalho, o que implica ter como premissa que as 168

Professora Assistente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Coordenadora do projeto de extensão-pesquisa Seso no Recôncavo estudo Trabalho, Mercado de Trabalho e Serviço Social no Recôncavo da Bahia. 169 Professora Assistente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Mestre em Serviço Social e colaboradora do projeto de extensão Seso no Recôncanco: os ciclos de debates sobre o fazer profissional em debate. 170 Discente e membro da equipe do projeto de extensão- Seso no Recôncavo estudo do Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB. 171 Discente e membro da equipe do projeto de extensão e pesquisa Seso no Recôncavo estudo do Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB. 172 Discente e membro da equipe da pesquisa Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB. 173 Discente e membro da equipe do projeto de extensão e pesquisa Seso no Recôncavo estudo do Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB. 174 Discente e membro da equipe da pesquisa Mercado de Trabalho e Serviço Social da UFRB. .l-. 175 Discente e colaboradora do projeto de extensão Seso no Recôncavo: os ciclos de debates sobre o fazer profissional em debate. . 176 Discente e colaboradora do projeto de extensão Seso no Recôncavo: os ciclos de debates sobre o fazer profissional em debate

352

profissões sofrem os rebatimentos das transformações societárias em curso, daí a necessidade de elucidá-las e colocá-las em debate. Ademais, a proposta consiste em estreitar as relações entre os profissionais que atuam na região com o corpo discente e docente, favorecendo assim um ambiente propicio para o debate acerca do processo de trabalho do assistente social e das estratégias coletivas para sua materialização na direção da garantia dos direitos sociais.

Objetivo

Fomentar o debate sobre o trabalho do assistente social nos espaços sócioocupacionais, a partir da realização dos ciclos de debates, numa perspectiva de analisar os rumos da profissão, identificando suas particularidades, demandas e desafios postos, levando em consideração as dimensões teórico-metodológica, éticopolítica e técnico-operativa.

Material e Métodos

A proposta em questão respaldou-se nos fundamentos da pesquisa participante, a partir da inserção dos discentes da disciplina Processo de Trabalho e Serviço Social em todas as etapas: elaboração, planejamento e execução dos ciclos de debates. Para sua consecução, fez-se necessário o levantamento dos assistentes sociais que atuam na região, realização de visitas institucionais, articulação com os profissionais, realização de reuniões sistemáticas para planejamento, organização e avaliação das ações do ciclo de debates. Resultados e Discussão

Por meio dos ciclos foram realizados debates sobre o trabalho profissional nas áreas de seguridade social, habitação, assistência social, movimentos sociais, campo sócio jurídico e empresa. Tais ciclos de debates têm possibilitado o conhecimento acerca das experiências profissionais, instigando os assistentes sociais e os discentes a refletirem sobre as demandas e os desafios postos a profissão. Além de se constituir numa estratégia pedagógica essencial para viabilizar a aproximação do colegiado do curso com os assistentes sociais do Recôncavo, bem como, apreender as particularidades do trabalho profissional nos diversos espaços sócio-ocupacionais, ampliando assim a busca de conhecimento qualificado acerca das práticas cotidianas na sua totalidade, desvendando as mediações para sobrepujar a sua imediaticidade. 353

Por outro lado, tem possibilitado dados concretos sobre a rede socioassistencial na região. Conclusão

Por fim, conclui-se que a realização dos ciclos de debate constitui uma das estratégias que tem assegurado o estudo do mercado de trabalho, com vistas a qualificar seu debate e, conseqüentemente contribuir no processo de retroalimentação e mapeamento dos campos de atuação na região.

Referências

ARANHA, L. et. al. Transformações Contemporâneas e o trabalho do assistente social em Sergipe. Cadernos UFS/ Serviço Social, São Cristóvão, SE, v. V, fasc. 4, 2003. Editora UFS. _______ Trabalho e Mercado de Trabalho do Assistente Social em Aracaju/Se nos últimos quatro anos. São Cristovão, Se. 2005. Mimeo. GUERRA, Y. e FORTI, V. Serviço Social: Temas, textos e Contextos. Coletânea Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen e Juris. 2010. IAMAMOTO, M. V. A.O Serviço Social na contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo: Cortez. 1999. NETTO, J.P. . Transformações societárias e Serviço Social: notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil. Serviço Social e Sociedade, n. 50, São Paulo: Cortez, 1996. SILVA. A. M. Caracterização do Trabalho e Mercado de Trabalho do Serviço Social no Recôncavo. Cachoeira – BA. 2011. Mimeo.

354

2. Arqueologia em tela: o cinema como recurso didático Fabiana Comerlato177 Palavras-chave (3): Arqueologia; Cinema; Educação Patrimonial

Introdução

O cinema arqueológico inclui gêneros diversos, à exemplo do documentário, do docudrama e do cinema de ficção pretérita; todos estes com amplas possibilidades para o ensino e socialização da ciência arqueológica (Zapatero & Castaño, 2008, p. 21-22). No Brasil, é bastante recente o debate acadêmico em torno do cinema de arqueologia (Matos & Muller, 2006; Zapatero & Castaño, 2008; Amaral Silva, 2009). No âmbito internacional, as discussões e recopilações sobre este gênero têm sido realizadas somente nos últimos dez ou quinze anos por não arqueólogos (Zapatero & Castaño, 2008, p. 22). Contudo, identificamos algumas atividades na área de ação educativa em museus: o projeto Arqueologia no Cinema do Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa e o projeto Arqueologia e Cinema do Museu Arqueológico de Sambaqui de Joinville em Santa Catarina. Contribuindo para a ampliação deste cenário, o projeto Arqueologia em tela realizou suas ações durante a vigência do edital PIBEX 2010 com a participação da estudante do curso de graduação de Museologia, bolsista Evamy Conceição dos Santos.

Objetivo

O objetivo consistiu em proporcionar aos diversos públicos – interno e externo – um espaço para apropriação de novos conhecimentos de forma lúdica, por meio da exibição de filmes e documentários sobre temas arqueológicos.

177

Doutora em História. Professor Adjunto I da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

355

Material e Métodos

A metodologia do projeto seguiu os seguintes procedimentos: leituras relacionadas com a temática da arqueologia e do cinema; pesquisa de um tipo do gênero do cinema arqueológico (neste caso os documentários e os filmes de ficção pretérita); elaboração das sinopses; preparação da logística para os encontros; mobilização e divulgação das exibições e debates; exibição da produção fílmica seguida de debate; controle da freqüência e registro da atividade. Os materiais e infra-estrutura necessários foram desde os próprios documentários, máquina fotográfica, preparação de textos complementares de arqueologia e exercícios lúdicos para público infantil até o uso dos equipamentos de projeção como aparelhos de televisão, DVD, datashow e computadores.

Resultados e Discussão

Quantitativamente, foram organizadas dezessete (17) exibições de documentários de arqueologia com debatedores convidados. Destas, oito (8) aconteceram no Centro de Artes, Humanidades e Letras com a comunidade interna e, nove (9) foram realizadas em escolas da comunidade de Cachoeira. O projeto conseguiu provocar discussões fundamentadas e motivadoras, até mesmo porque apresenta uma proposta nova de visualizar a arqueologia. Na comunidade externa, sobretudo, o público além de ser numeroso demonstrou interesse pela área e contribuíram com questionamentos, discussões e apresentação de idéias sobre a arqueologia e a função do arqueólogo na sociedade.

Conclusão

O projeto permitiu ao público participante a (des)construção de uma visão sobre a arqueologia através do cinema arqueológico com ênfase nos documentários. A realização deste projeto de extensão também permitiu a divulgação das atividades de pesquisa e ensino em Arqueologia, concretizadas pelo grupo de pesquisas Recôncavo Arqueológico, contribuindo para a divulgação científica e engajamento da comunidade local na proteção do patrimônio arqueológico.

356

Referências

AMARAL SILVA, Margarida do. A reinvenção de práticas do ver: o arqueólogo como ficção verossímil no cinema. Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais/LAV (Universidade Federal de Santa Maria/UFSM) , v. 2, p. 1-21, 2009. RUIZ ZAPATERO, Gonzalo & MANSILLA CASTAO, Ana Maria. Arqueologia e Cinema, uma História em Comum. Revista de Arqueologia Pública, São Paulo, nº3, 2008, pp. 19-31. MATOS, Felipe; MÜLLER, Letícia Morgana. Boris Karloff e a Arqueologia: a representação dos arqueólogos na Hollywood dos anos trinta. Anais do V encontro do Núcleo Regional Sul da Sociedade de Arqueologia Brasileira – SAB/Sul. Rio Grande (RS), 20 a 23/11/2006.

357

3. Vivenciando o patrimônio do Recôncavo: ações educativas para a popularização do conhecimento arqueológico

Fabiana Comerlato178 Palavras-chave: Arqueologia; Educação Patrimonial; Recôncavo.

Introdução

O projeto “Vivenciando o patrimônio do Recôncavo: ações educativas para a popularização do conhecimento arqueológico” busca a partir da metodologia da educação patrimonial aproximar o resultado das pesquisas arqueológicas do ensino fundamental e médio. Para isso, selecionamos escolas dos municípios de Cachoeira, São Félix e Muritiba para promover a sensibilização da importância do estudo, preservação e reapropriação das comunidades de seu patrimônio cultural, em especial o arqueológico. A realização de parcerias com as Secretarias de Educação será fundamental neste processo. A metodologia do projeto consistirá em um amplo espectro de abordagens educativas, que estimulem o aprendizado dos alunos e sua criatividade. A metodologia das ações educativas tem como eixo a participação do aluno no processo de ensino aprendizagem, através de oficinas, dinâmicas, exercícios, círculos de leituras e atividades artísticas. O impacto do projeto visa abranger o maior número de estudantes, estima-se que aproximadamente 500 alunos passem pelo projeto, além de seus respectivos professores e administradores das instituições de ensino. Objetivo

O objetivo geral está em popularizar a ciência arqueológica no Recôncavo da Bahia através de ações educativas. Os objetivos específicos consistem em: sensibilizar os alunos das instituições de ensino para a importância da preservação dos sítios arqueológicos; mapear qual a visão e percepção de arqueologia pelos mesmos; reforçar seus laços de pertencimento perante seu patrimônio cultural; e, elaborar de maneira participativa materiais didáticos sobre a temática. 178

Professora Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

358

Material e Métodos

Os pressupostos metodológicos do projeto estão embasados na metodologia trazida por Maria de Lourdes Parreiras Horta e colaboradores (1999) e através da reflexão de experiências brasileiras em projetos de Educação Patrimonial em projetos de arqueologia preventiva e em programas educativos de instituições museais. A apropriação de conhecimentos advindos da arqueologia e sua reflexão e transformação em conhecimento coletivo ligado as necessidades sócio-culturais darse-á por meio de oficinas, exercícios de percepção, manipulação de objetos, dramatização e interpretação das atividades arqueológicas. Esta vivência da arqueologia visa estimular o interesse dos alunos da rede escolar do Recôncavo da Bahia para a preservação do seu próprio patrimônio. Neste sentido, a Educação Patrimonial pode provocar uma consciência, já que mostra o indivíduo como produtor do patrimônio cultural e não somente como consumidor, inserindo-se em uma trajetória cultural que reforça os veículos entre passado e presente (Alencar apud Lima, 2005, p. 7). Resultados e Discussão

O projeto está em fase inicial, mas já podemos apresentar um rol de resultados almejados durante o processo de consolidação da prática extensionista, são eles: 

A inclusão das discussões acerca do patrimônio cultural como tema curricular nos níveis fundamental e médio;



A intensificação do diálogo entre educadores e a instituição (UFRB);



Sensibilização da comunidade escolar e seus administradores para a importância da educação patrimonial;



Realizar atividades educativas em que o público infanto-juvenil tenha uma experiência direta com o patrimônio arqueológico, estimulando o processo de criação cultural;



A divulgação científica através da produção do conhecimento arqueológico brasileiro.

359

Conclusão

A título de considerações preliminares, vemos que o papel desafiador das práticas extensionistas pode caminhar em dois sentidos no caso do projeto Vivenciando o patrimônio do Recôncavo: o primeiro, para uma revisão crítica da prática arqueológica no Recôncavo sob o crivo das demandas sociais locais e, em um segundo percurso, para a socialização efetiva do conhecimento arqueológico produzido na UFRB, em especial pelos integrantes do Grupo de Pesquisas Recôncavo Arqueológico. Referências

BEZERRA DE ALMEIDA, Márcia. O australopiteco corcunda: as crianças e a arqueologia em um projeto de arqueologia pública na escola. São Paulo: MAE/USP, 2002. (Tese de Doutorado) COMERLATO, Fabiana; COSTA, Carlos Alberto Santos; ETCHEVARNE, Carlos Alberto; FERNANDES, Henry Luydy Abraham. Caderno de educação patrimonial – patrimônio arqueológico da Bahia: material didático para professores do ensino fundamental e médio. Salvador: MAE/UFBA, 2007. GRUNBERG, Evelina. Educação Patrimonial: utilização dos bens culturais como recursos educacionais. In: Cadernos do CEOM, nº 12. Chapecó: Argos, 2000. Pp. 159-180. HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN/Museu Imperial, 1999. LIMA, Janice Shirley Souza. Educação Patrimonial e Arqueologia de Contrato – a experiência do Projeto Sossego em Canaã dos Carajás (PA). In: Anais. XIII Congresso da SAB: arqueologia, patrimônio e turismo. Campo Grande, MS: Ed. Oeste, 2005. Pp.1-12. SANTACANA, Joan; HERNÁNDEZ, Xavier. Ensenanza de la arquelogía y la prehistoria. Lleida: Milênio, 1999.

360

4. Saber dos sabores quilombolas Heleni de Ávila179 Jucileide Nascimento180 Palavras-chave: Economia Solidária; Quilombolas; Políticas Públicas

Introdução

A proposta abrange as 14 comunidades quilombolas da Bacia e Vale do Iguape, em Cachoeira com atividades de incubação a partir do processo de organização social, produtivo e ambiental voltadas para o fortalecimento das estruturas de geração de trabalho e renda. Essas comunidades buscam estratégias de organização em um modelo contextualizado de convivência com a Mata Atlântica, para se contrapor a realidade de exclusão que permeiam suas vidas. Entre essas estratégias, as comunidades se organizaram em núcleos produtivos interdependentes a partir das atividades de cultivo de ostra, de mariscagem, de pesca artesanal e de produção de sementes e de mudas de espécies florestais integradas com a apicultura, articuladas no ambiente do Conselho Quilombola. Esse Conselho integra o ambiente territorial e buscou a parceria com a UFRB para potencializar as práticas seculares das comunidades com propósito de construção de estratégias sustentáveis. Desenvolve-se como estratégia conduzir à estruturação dos núcleos produtivos na Rede do Conselho Quilombola e no ambiente territorial, com definição coletiva da proponente a INCUBA\UFRB a partir do Campus de Cachoeira.

Objetivo

Contribuir para o fortalecimento da organização produtiva nas áreas de maricultura, ostreicultura, pesca artesanal e produção de sementes e mudas de espécies florestais da Mata atlântica, contribuindo para a sustentabilidade ambiental das comunidades quilombolas da Bacia e Vale do Iguape, no município de Cachoeira BA do Território do Recôncavo da Bahia. 179

Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

180

Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

361

Material e métodos

A partir das trocas de saberes quilombolas e da equipe técnica interdisciplinar da UFRB foi utilizado o planejamento estratégico para sistematizar o projeto. Promovendo

interação entre o saber das comunidades quilombolas através dos

núcleos produtivos e da UFRB, desenvolvendo assim conhecimentos que propiciem uma melhoria das condições sociais, econômicas e ambientais. A equipe interdisciplinar além das atividades de planejamento, de monitoramento e de avaliação, realiza ações formativas com a representação dos núcleos produtivos e do Conselho Quilombola para as temáticas de metodologia de incubação, economia solidária, sustentabilidade ambiental, aqüicultura, inspeção sanitária, saúde ambiental e segurança do trabalhador, gestão ambiental, políticas públicas, legislação ambiental e cooperativista. As atividades de acompanhamento técnico, de qualificação e de capacitação são desenvolvidas nas comunidades quilombolas em oficinas, com exposição teórica e exercícios vivenciais praticando a identificação as potencialidades de fortalecer a gestão empreendedora e sistema de comercialização coletiva, além da preservação do meio ambiente.

Resultados e Discussão

Desenvolvimento de processos participativos que contribuam para o fortalecimento dos núcleos de produção existentes a partir da estruturação da produção com a valorização e resgate do conhecimento tradicional com a promoção de intercâmbios de saberes com a comunidade acadêmica; Incorporação de tecnologias no sistema produtivo,no cultivo de ostras, da maricultura e da pesca artesanal, de produção de sementes e de mudas de espécies florestais com incentivo na diversificação da produção, com dinamização econômica de agregação de valor e de desenvolvimento de novos produtos; Garantia de infra-estruturas adequadas de produção dos núcleos produtivos quilombolas com inspeção sanitária para o beneficiamento de ostras, de mariscos e de pescas artesanais e para produção de sementes e de mudas de espécies florestais da Mata Atlântica certificadas, com a recuperação de áreas degradadas que 362

contribuam para a produção apícola; Geração de trabalho e renda contínua com a ampliação da base social a partir da Rede Solidária, com a integração de políticas públicas e acesso a mercado institucional, voltadas ao fortalecimento das ações do Território do Recôncavo da Bahia. Conclusão

Não cabe a UFRB executar políticas publicas, no entanto, por meio dos seus programas e projetos de extensão e pesquisa a mesma deve cumprir o seu papel social e contribuir com estratégias que minimizem a pobreza e a desigualdade social na região do Recôncavo da Bahia. Iniciativas públicas e privadas devem atuar na perspectiva

da

complementaridade

visando

aperfeiçoamento

das

ações

governamentais no que tange aos processos de geração de renda e trabalho em realidades de comunidades que historicamente convivem com sucessivos processos de exclusão e negação de direitos.

Referências

COSTA. F. X. P. de. OLIVEIRA, I. C. de. MELO NETO, J.F. de. Incubação de empreendimento solidário popular: fragmentos teóricos. João Pessoa: Universitária, 2006. MAGALHÃES, R. S. A nova economia do desenvolvimento local. In: 2a CONFERÊNCIA DA WORK AND LABOUR NETWORK, 2000, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: 2000. s.p.

MANCE, Euclides André. A revolução das redes: A colaboração solidária como uma alternativa pós-capitalista à globalização atual. Petrópolis: Vozes. 2 ed., 2001. MTE. Ministério do Trabalho e Emprego. Programa em Economia Solidária em Desenvolvimento – PRONINC. Disponível em: < http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/ prog_incubadoras_proninc.asp>. Acesso em: jan 2011.

363

SINGER, P. Economia solidária: um modo de produção e distribuição. In: SINGER, Paul e SOUZA, André Ricardo de (Orgs). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto, 2000. p. 11-28. VELLOSO, T. R., VALADARES, J. H e SOUZA, J. R. Mulheres de fibra: a experiência do artesanato tradicional no território do sisal da Bahia. In: V Encontro Nacional de Economia Solidária. São Paulo: NESOL/USP, 28 e 29 julho de 2007.

364

5. Mãos que Modelam o Barro Lúcia Aquino de Queiroz181 Palavras-chave: Coqueiros; Patrimônio; Turismo

Introdução

O Recôncavo Baiano é uma região de relevante importância histórica por se constituir em um amplo repositório da cultura de matriz africana no Brasil. Seu declínio econômico, ao tempo em que conduziu a uma estagnação não superada até o presente momento, possibilitou que fossem preservados traços marcantes da cultura regional, que hoje se traduzem em um valioso patrimônio intangível. Dentre esses patrimônios podemos inserir a produção de cerâmica de Coqueiros. Apesar da riqueza cultural, as ceramistas vivenciam uma série de dificuldades socioeconômicas que hoje comprometem a continuidade da sua produção. De modo a preservar este patrimônio e garantir melhoria da qualidade de vida dessa comunidade, faz-se necessário o desenvolvimento de um conjunto de ações que possibilite a conscientização e preservação do patrimônio imaterial, a valorização e divulgação do seu trabalho com vistas à manutenção e ampliação de mercados, estimulando as relações de cooperação e gerando novas oportunidades de trabalho e incremento da renda e a minimização do grau de vulnerabilidade da população local. A preservação pretendida deverá estar articulada aos objetivos de resgate da auto-estima da comunidade de Coqueiros, da construção da cidadania, da cooperação, de ganhos mútuos. Objetivo

Contribuir para a preservação doϖ patrimônio imaterial de Coqueiros, viabilizando a sustentabilidade das ceramistas, através de um conjunto de ações direcionadas à Educação Patrimonial, ao Turismo à Cidadania. Material e Métodos

O projeto Mãos que Modelam o Barro objetiva contribuir com a preservação do patrimônio imaterial de Coqueiros, com a estruturação e fortalecimento do fazer 181

Professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

365

artesanal da cerâmica utilitária produzida por cerca de 40 pessoas, em sua maioria do sexo feminino. A metodologia proposta, a ser desenvolvida de forma participativa, contempla

as

seguintes

ações:

1) Promoção de ações educativas junto a juventude, contribuindo no processo de incorporação do patrimônio ao sistema público de educação; 2) Qualificação dos guias de turismo em Educação Patrimonial, Cidadania e Conscientização Turística para que possam atuar divulgando o patrimônio existente em Coqueiros, e, com isso, possibilitando o incremento da demanda para a produção artesanal da comunidade local. 3) Capacitação, através da realização de oficinas, alunos da UFRB que irão atuar como monitores nos cursos de qualificação dos jovens de Coqueiros e dos guias de turismo do Recôncavo Baiano, contribuindo para a sua formação profissional e fortalecendo a sua cidadania. 4) Realização de feiras de promoção do patrimônio material e imaterial de Coqueiros, objetivando uma maior valorização, divulgação e comercialização da produção artesanal de cerâmica. 5) Produção de cartilha de Educação Patrimonial, Turismo e Cidadania direcionada para a comunidade de Coqueiros, guias de turismo, estudantes, professores, turistas e demais interessados em cultura, turismo e temas correlatos. Resultados e Discussão

Realização de pesquisa socioeconômica com as ceramistas e a comunidade de Coqueiros Maior valorização do patrimônio cultural pela juventude de Coqueiros; Valorização do papel do idoso na comunidade de Coqueiros; Reuniões com os guias de turismo para definição das atividades a serem desenvolvidas em parceria Visitas à comunidade de Coqueiros para sensibilização e divulgação do programa e capacitação dos estudantes da UFRB, através de um maior conhecimento da realidade local. Produção de cartilha eletrônica, devido à impossibilidade de impressão gráfica do material conforme planejado inicialmente, dado os entraves no processo licitatório da UFRB. Planejamento de um evento de patrimônio, cidadania e turismo. 366

Realização de seis oficinas junto aos alunos da Escola Nossa Senhora da Conceição, na comunidade de Coqueiros. Publicação de artigos, apresentação de trabalhos em seminários, simpósios e outros eventos. Conclusão

O projeto ainda não foi concluído, mas observa-se que são muitos os desafios ao alcance da sustentabilidade da produção de cerâmica de Coqueiros, dentre esses, a dificuldade de despertar à comunidade para os benefícios oriundos de um trabalho em parceria; a necessidade de mais amplas ações junto à juventude local e também de um trabalho mais amplo com os guias de turismo. Quanto ao desenvolvimento do projeto, cabe registrar as dificuldades operacionais referentes à impossibilidade de acesso aos recursos definidos e aprovados pelo Programa SIGPROJ/MEC, dado aos entraves burocráticos da UFRB que impediram o acesso a itens orçados e aprovados, como: - Transporte – combustível, motorista, automóvel - Material para as oficinas – papel ofício, papel metro, cartolina, lápis, caneta, pastas, piloto, apagador e outros - Material e apoio e divulgação do evento - Recursos para realização da feira de exposição do artesanato das ceramistas - Impressão gráfica para as cartilhas. Em decorrência, o desenvolvimento deste projeto está sendo realizado com recursos próprios da equipe, o que resultou na redução das atividades previstas. Referências

BAHIA. Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural. Inventário de Proteção do Acervo Cultural. Salvador: IPAC, v.1, 1975. BAHIA. Secretaria de Turismo do Estado da Bahia. Proposta preliminar para o turismo étnico afro: marco conceitual. Salvador: Coordenação de Turismo Étnico Afro, 2007a. BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: ______. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. PEDRÃO, Fernando Cardoso. Novos rumos, novos personagens. BRANDÃO, Maria de Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; universidade Federal da Bahia, 1998. p.219-239. 367

PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo, brasiliense, ------------ Evolução Política do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1988. QUEIROZ, Lúcia Aquino de. A gestão pública e a competitividade de cidades turísticas: a experiência da cidade do Salvador. 2005. 632 f. Tese (Doutorado) – Universidad de Barcelona, Espanha. ____. Turismo urbano, gestão pública e competitividade. Salvador: P555, Fapesb, 2007, 304 p. ____. Turismo na Bahia: Estratégias para o desenvolvimento. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2002, 236 p (Coleção selo Turismo). QUEIROZ, Mércia Maria Aquino de. Turismo de Raízes na Bahia. Um estudo sobre a dinâmica do Turismo Étnico (Afro) na Bahia: os do Pelourinho / Salvador e da Festa da Boa Morte / Cachoeira. Dissertação (mestrado). 230 f.; Salvador: Biblioteca Central Reitor Macedo Costa, Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicação, 2008. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. SANTOS, Milton. A rede urbana do Recôncavo. In: BRANDÃO, Maria de Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; Academia de Letras da Bahia; universidade Federal da Bahia, 1998. p. 61-100.

368

6. Grupo de Trabalho de Serviço Social na Educação – GTSSEDU Marcela Mary da Silva182 Palavras-chave: Serviço Social; Educação; Mobilização Social

Introdução

O Grupo de Trabalho de Serviço Social na Educação – GTSSEDU, em fevereiro de 2010. Desde então vem desenvolvendo ações na perspectiva de materializar articulação entre ensino, pesquisa e extensão com o objetivo de tornar mais porosa as paredes que separam para alguns, o espaço universitário do cotidiano da vida das comunidades. A partir da discussão da inserção do profissional de serviço social na educação, o GTSSEDU influenciando e possibilitando algumas transformações a da realidade social local, a partir da luta pela educação enquanto direito social, capaz de ser o elo que possa articular a formação da autonomia dos sujeitos e a escola como espaço da articulação entre as políticas sociais. Através das atividades de extensão o grupo vem atendendo não só as diretrizes internas da universidade como também reafirmando o papel social que a universidade assume de transformação, mobilização, formação e construção de políticas publicas. Tendo como alvo atingir a comunidade escolar

entendida

como

a

família,

coordenadores,

professores,

técnicos

administrativos, gestores e alunos o GTSSEDU vem aglutinando parceiros e produzindo resultados em rede. Objetivo

Publicizar a discussão da educação como um direito coletivo e mobilizar os sujeitos sociais para a efetivação da inserção do Profissional de Serviço Social na educação como forma de ampliação da proteção social, tendo a comunidade escolar como centro. Material e Métodos

O GTSSEDU trabalha com seis linhas de atuação: Curso de Extensão de Serviço Social na Educação: desafios e perspectivas, Plenárias Populares, Audiências Publica, 182

Professor assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

369

reuniões com o poder público e com a sociedade civil, divulgação das atividades desenvolvidas através de artigos e realização de pesquisas nos municípios aonde o mesmo vem atuando. As atividades são desenvolvidas a partir da mobilização social, onde todos os sujeitos que fazem parte da comunidade escolar, conselheiros, secretários, vereadores e membros da sociedade civil organizada e “desorganizada” são convidados a participar dos cursos, do NESSE e das ações subsequentes. E como estratégias de mobilização e discussão com a comunidade para isso são realizados cursos de extensão que já foram realizados nas cidades de Cachoeira, Feira de Santana, Salvador, Santo Amaro, Camaçari, Cruz das Almas, São Félix e Santo Antonio de Jesus, Plenárias Populares nas cidades de Santo Amaro, Cachoeira, São Félix e São Gonçalo dos Campos e Audiências Públicas nas cidades de Santo Amaro, Salvador, Cachoeira, São Félix e Feira de Santana. Como forma de divulgação das atividades o GTSSEDU mantem um blog que é atualizado frequentemente com as atividades a serem realizadas e noticias das atividades realizada no endereço digital gtssedu-ufrb.blogspot.com. Folder com resumo das atividades já realizadas como forma de publicizar as atividades realizadas pelo grupo e como forma de divulgar a luta pela inserção do professional de Serviço Social na Educação e notas informativas das reuniões Artigos aprovados nos seguintes eventos: EVENTO

PERÍODO

FORMA DE PARTICIPAÇÃO

Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais/CBAS Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social/ENPESS—2010 II Jornada de Extensão Universitária UFRB/UEFS Congresso Internacional de Educação do Estado da Bahia

2010.2

1 artigo – Apresentação Oral

2010.2

1 artigo – Apresentação Oral

2011.1

1 artigo – Apresentação Oral

2011.1

SEMOC

2011.2

3 artigos: 2 Apresentações Orais 1 Pôster 3 artigos Apresentações Orais 2 artigos 1 Apresentação Oral 1 Pôster 7 artigos Apresentações Orais

4º Seminário Nordeste

Regional

da

ABEPSS

2011.2

II Fórum Regional de Serviço Social na área da Educação – UNESP/FRANCA/SP

2011.2

370

RECITEC -UFRB Livro da Rede Marista-Sul sobre Serviço Social na Educação

2011.2 NO PRELO

2 Mini-cursos 1 Artigo

Resultados e Discussão

Construção de 8 núcleos Núcleos de Serviço Social na Educação-NESSE, nos municípios de Feira de Santana, Salvador, Santo Amaro, São Félix, Cruz das Almas, Santo Antonio de Jesus, Camaçari e na cidade de Cachoeira. No do curso de serviço social da UFRB foi inserindo a disciplina: Serviço Social e Educação. Em Cachoeira depois de 2 Cursos, 1 Plenária Popular e uma Audiência Publica, foi elaborado um Projeto de Lei que regulamentava a Inserção do Profissional de Serviço Social nas Escola de Cachoeira que foi sancionado pelo prefeito em Julho de 2011 transformando a cidade de Cachoeira no primeiro município da Bahia a regulamentar a profissão na Educação. Em São Félix Plano de Cargos e Carreiras e VencimentosPCCV incluiu o profissional de serviço social foi incluído como profissional de educação. Em Salvador foram realizados 4 cursos e uma Audiência Publica. Existe um indicativo de Projeto de Lei que esta em tramite e foi organizado um grupo de discussão na SECULT para discutir o serviço social na educação bem como de outros profissionais para atender às demandas sociais que se manifestam nas escolas. Em Cruz das Almas, Camaçari, Santo Antonio de Jesus foram cursos em 2011. Conclusão

As atividades realizadas pelo GTSSEDU vêm desenvolvendo nos municípios uma mobilização pela inserção do profissional de serviço social na educação no intuito de reconstruir a espaço escolar e tornar a escola como um eixo articulador das comunidades, ao mesmo tempo em que discute a assistência estudantil e seus impactos sócio-territoriais. Referências

ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira de. O Serviço Social na Educação: novas perspectivas sócio-ocupacionais. Disponível em: www.cress-mg.org.br/ textos e arquivos. Acessado em 08/01/2009.

371

BRASIL. POLÍTICA NACIONAL DE EXTENSÃO. 2007. Disponível em: http://www.renex.org.br/documentos/COOPMED/02_Politica_Nacional_Extensao_C OOPMED.pdf. Acessada em: 03/02/2010. BRASIL. MEC. DIRETRIZES CURRICULARES DO CURSO DE SERVIÇO SOCIAL. 1999. Disponível em: http://www.abepss.org.br/briefing/documentos/legislacao_diretrizes.pdf. Acessado em: 10/03/2003. ALMEIDA, Ney Luiz Teixeira. Parecer sobre os projetos de lei que dispõem sobre a inserção do Serviço Social na Educação. CFESS. Caderno Especial nº 26. Edição: 04 a 25 /11/2005. SOUZA, Iris de Lima. Serviço social na educação: saberes e competências necessárias no fazer profissional. Tese de Doutorado. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2008.249f.

372

7. Ciência e Telejornalismo no Recôncavo Márcia Cristina Rocha Costa183 Palavras-chave: Ciência; telejornalismo; divulgação científica

Introdução

Este projeto de extensão foca a sua ação em reportagens sobre assuntos de ciência e tecnologia, que possam aproximar o conteúdo da ciência do contexto local e contribuir para a divulgação científica na região, iniciando com uma série de entrevistas com os pesquisadores da UFRB dos diferentes campos do conhecimento. Segundo a mais recente pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, realizada em 2010 com 2.016 brasileiros – homens e mulheres com mais de 16 anos e de todas as regiões do país – 65% dos entrevistados tem interesse por assuntos de C & T. A idéia é que os vídeos produzidos, além de exibidos e discutidos em sala de aula para subsidiar as discussões sobre a importância de tornar público o conhecimento científico, também sejam disponibilizados no site da UFRB, além de espaços voltados para divulgação científica. Material e Métodos

Os estudantes deverão realizar reportagens e série de entrevistas para TV sobre assuntos de ciência e tecnologia que priorizem o contexto local e a pesquisa na UFRB,

a partir de discussões prévias em reuniões de pauta para definição de

abordagens alinhadas às premissas do jornalismo científico. Nessa mediação entre o mundo da ciência e o telejornalismo, os alunos deverão realizar um minuncioso trabalho de pesquisa sobre os temas abordados e leitura de textos que vão subsidiá-los no diálogo com os pesquisadores e a comunidade. Resultados e Discussão

Ao verificar, de forma orientada pelo professor, a relação entre o ensino e a prática do jornalismo, a relação entre os temas de ciência e tecnologia e o nosso cotidiano, esperamos que o aluno sinta-se capacitado e estimulado a aplicar o seu conhecimento 183

Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

373

teórico e prático na produção de reportagens e/ou entrevistas que contribuam para o debate público e a divulgação científica local. Conclusão

Em andamento Referências

BUENO, Wilson da Costa. Jornalismo científico: resgate de uma trajetória. Comunicação da Ciência: análise e gestão. Taubaté:Cabral Editora e Livraria Universitária,2004.p.11-23. COSTA, Márcia Cristina Rocha. O Jornalismo Científico na Bahia. A experiência da seção Observatório do Jornal A Tarde no Estado da Bahia. Artigo publicado na Revista Diálogos & Ciência, ano IV, n.12, março 2010, p. 10-22. VOGT, Carlos. Espiral da cultura científica. Disponível em: ZAMBONI, L. M. S. Cientistas, jornalistas e a divulgação científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Autores Associados, 2001.

374

8. Saúde Mental e Serviço Social: a extensão universitária nos parâmetros da Reforma Psiquiátrica no município de Cachoeira

Márcia da Silva Clemente184 Maria Aparecida Linhares dos Santos Silva185 Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica; Saúde Mental; Arte-educação

Introdução

A UFRB caracteriza a extensão universitária como um processo educativo, artístico, cultural e científico que se articula as atividades de ensino e pesquisa de forma indissolúvel, viabilizando uma relação transformadora nos diversos setores da sociedade. O projeto intitulado- Saúde Mental e Serviço Social: a extensão universitária nos parâmetros da Reforma Psiquiátrica no município de Cachoeira- buscou realizar atividades de cunho artístico, cultural e de cidadania na cidade de Cachoeira. Esta cidade tem um CAPS 186 que atende no seu ambulatório cerca de 600 usuários. O projeto atendeu cerca de 25 usuários do semi-intensivo. O CAPS é um serviço de saúde preconizado pelo SUS, sendo uma referência no tratamento de pessoas que possuem algum tipo de transtorno/doença mental, tais como neuroses (depressão, síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivoTOC) e psicoses (esquizofrenia, transtorno bipolar) entre outras doenças mentais. Objetivo

Possibilitar a inclusão social dos usuários do CAPS na cidade de Cachoeira, realizando atividades de arte-educação e cidadania junto aos usuários do semiintensivo. Estimular o desenvolvimento de oficinas de arte-educação e cidadania junto aos usuários do semi-intensivo do CAPS.

184

Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

185

Professora Adjunto da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

186

Informações da equipe técnica do CAPS, Ana Nery do município de Cachoeira.

375

Material e Métodos

As oficinas de arte-educação com ênfase na dança criativa tiveram inicio no mês de junho de 2010 e foram concluídas no mês de junho 2011. Em concomitância a este processo, formam realizadas oficinas de temáticas envolvendo as famílias, a equipe técnica, estudantes do curso de serviço social, bolsistas do projeto. Ao mesmo tempo em que ocorriam as oficinas de arte-educação com ênfase na dança criativa, aconteciam atividades com o objetivo de potencializar as atividades do projeto, conforme explicitamos abaixo: •

Realização de reuniões com a equipe interdisciplinar do CAPS, UFBA, UFRB para a consecução de estudo social sobre os aspectos teórico-metodológicos que envolvem os beneficiários do projeto.



Realização pesquisa qualitativa e documental para traçar o perfil do trabalho interdisciplinar do CAPS



Realização de oficinas de arte-educação junto aos usuários do CAPS.



Realização no CAPS do seminário para a socialização dos resultados do projeto. Resultados e Discussão

Os resultados do projeto estão vinculados a produção de catálogo bibliográfico, pesquisa documental e bibliográfica, a sistematização teórico-metodológica das atividades desenvolvidas pelo projeto, a participação efetiva dos usuários e familiares do CAPS/ Cachoeira, buscando o resgate da cidadania e o atendimento dos parâmetros da reforma psiquiátrica. Podendo ser assim descritos: A consolidação de um intercâmbio de conhecimentos entre as áreas de conhecimento vinculadas a dança e ao serviço social na área da saúde; Realização de pesquisa e debates sobre as tecnologias sociais área da saúde corporal; Produção conhecimentos sobre as principais categorias teóricas que envolvem a temática da saúde corporal; Contribuição para a inclusão social dos usuários do CAPS - Cachoeira e cidades do Recôncavo Baiano, na utilização dos equipamentos sociais. Sistematização e análise dos dados da pesquisa e da metodologia desenvolvida no projeto.

376

Conclusão

A relevância do projeto está na busca de conceber, executar e avaliar as atividades em consonância com os beneficiários do projeto, sendo uma proposta que busca o enfrentamento da questão social vinculada à “loucura”, questão esta, permeada por pré-concepções, que dificultam o convívio social de pessoas com algum tipo de sofrimento mental. A parceria do CAHL/UFRB com a Escola de Dança da UFBA, caminha no sentido de propiciar aos beneficiários do projeto uma oportunidade de inclusão social. Referências

AMARANTE, Paulo (org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica o Brasil. Rio de Janeiro: Panorama/ENSP, 1995. BASAGLIA, Franco (org.). A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Legislação em saúde mental. Ministério da Saúde, Coordenação Geral de Documentação e Informação. Brasília, 2000. FOUCALT. Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo, Editora, Perspectiva, 1978. GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. 8ª edição. Editora Perspectiva, 2008. VASCONCELOS, Eduardo Mourão. (org). Saúde Mental e Serviço Social: o desafio da subjetividade e da interdisciplinaridade. 4ª edição, Cortez, 2008.

377

9.

Reverso Online: uma ferramenta laboratorial para o ensino do

webjornalismo

Rachel Severo Alves Neuberger187 Palavras-chave: Comunicação; Jornalismo; Internet Introdução

O jornalismo online ou webjornalismo é uma prática profissional que envolve todas as exigências de responsabilidade social que o jornalismo de mídias tradicionais (TV, Rádio, Jornal) possui. Por ser um universo de competência recente e em constante mutação, o conhecimento não se encerra em análises das teorias que fundam as bases do webjornalismo, mas se constitui como um espaço de práticas novas, libertadoras, colaborativas, ciberdemocráticas, principalmente no âmbito da universidade, cuja função é, muito além de ensinar, promover mudanças e desenvolvimento social. Nesta perspectiva, foi criado o projeto Reverso Online (www.ufrb.edu.br/reverso), que é um blog colaborativo de práticas jornalísticas vinculado à disciplina de Jornalismo Online, mas que se torna um projeto extensionista sempre que a disciplina não é oferecida. Assim, um grupo seleto de estudantes produz matérias sobre as mais diversas áreas e que tenham vínculo direto com a região. Objetivo

O principal objetivo do Reverso Online é proporcionar aos estudantes do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) a prática do webjornalismo, tendo como base o universo informativo cultural, político e social do Recôncavo, o que se constitui não só como uma experiência de cunho profissional, mas principalmente um canal de comunicação com as pessoas da região, que também passam a ser protagonistas de suas próprias histórias. Material e Métodos

O projeto é desenvolvido por meio de uma plataforma livre, chamada WordPress, e que permite a publicação de conteúdo multimidiático (textos, videos, fotos) de forma 187

Professora Assistente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

378

gratuita na web. A hospedagem do Reverso Online é feita na página da UFRB, com o objetivo de dar institucionalidade à ação extensionista. Em relação aos estudantes, todo final de semestre da disciplina Jornalismo Online é feita uma seleção de alunos que tenham tido maior afinidade com a área a fim de que o projeto seja desenvolvido. Resultados e Discussão

O projeto tem mostrado resultados surpreendentes no que diz respeito à prática do webjornalismo, já que a produção é diária, e também tem demonstrado ser um veículo importante de comunicação com a comunidade que, além de ser fonte de informações, é beneficiada com dados sobre a sua própria realidade. Estes fatores são relevantes, pois a região sofre com a falta de notícias tendo-se em vista que os veículos de comunicação são escassos. Os estudantes notam que é preciso praticar o jornalismo e o Reverso Online é uma forma simples e gratuita de alcançar seus objetivos. De uma forma geral, é o único veículo do curso de Jornalismo que proporciona uma visibilidade imediata dos conteúdos produzidos. No que diz respeito à orientação acadêmica deste trabalho, sempre é muito prazerosa, já além de permitir uma prática diária de edição, proporciona uma imersão à rica realidade do Recôncavo por meio das matérias jornalísticas produzidas pelos estudantes. Conclusão

O presente projeto de extensão foi elaborado para durar até o final de 2011, mas, pela sua relevância em termos de ensino, pesquisa e extensão, deve ser tornado um projeto permanente. Quer-se, com isso, que a prática do webjornalismo seja valorizada e constantemente reinventada e que a região obtenha a visibilidade jornalística que merece por sua riqueza histórica e cultural. Referências

BORGES, Juliano. Webjornalismo: política e jornalismo em tempo real. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. FERRARI, Pollyana. Jornalismo Digital. São Paulo: Contexto, 2010.

379

PISANI, Francis & PIOTET, Dominique. Como a web transforma o mundo. São Paulo: SENAC, 2010. PRADO, Magaly. Webjornalismo. Rio de Janeiro: LTC, 2011. RODRIGUES, Carla (org.). Jornalismo On-line: modos de fazer. Rio de Janeiro: Sulina, 2009.

380

10. Construção de redes sociais entre saberes locais e universidade nas

articulações políticas e sociais numa comunidade pesqueira do Recôncavo da Bahia

Suzana Maia188 Palavras-chave: redes sociais; articulações políticas; recôncavo

Introdução

Este projeto se desenvolverá junto à população da Comunidade Remanescente de Quilombo de São Brás, localizado no município de Santo Amaro, Recôncavo da Bahia. Este grupo está situado na localidade de São Brás, distando aproximadamente 80 km de Salvador, banhada pelos rios Subaé e Traripe e pelo mar da Baia de Todos os Santos. Esta coletividade é composta por 446 famílias que vivem da pesca 189 , mariscagem 190 e agricultura de subsistência. Tendo recebido a certidão de autoidentificação como remanescente das comunidades dos quilombos da Fundação Cultural Palmares em 2009, a comunidade solicitou ao INCRA a regularização de suas terras naquele mesmo ano. No entanto, só recentemente, o INCRA deu sinais de dar início ao processo de regularização fundiária. A urgência do processo se dá tendo em vista que Comunidade de São Brás poderá ser afetada pela implantação de um grande empreendimento turístico na Ilha de Cajaíba e a inexistência de trabalhos que avaliem suas conseqüências limita as possibilidades de sensibilização dos agentes públicos e privados quanto à importância de considerar a perspectiva desse e de outros grupos sociais sobre esse processo. Neste sentido, o projeto de extensão proposto vem atender a necessidade de contrapor os interesses desenvolvimentistas e agir como mediador nas negociações entre empresas transnacionais, o Estado e a comunidades. A instauração do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), com os cursos de Ciências Sociais, dentre outros, na 188

Professora Adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

189

Pesca de subsistência, não há produção em larga escala, com locais para armazenar o pescado. Trata-se da pesca artesanal, onde utiliza-se tarrafas, linha, anzol e redes pequenas. A produção é limitada pelo processo artesanal. 190 Mariscagem, caracterizada como pesca artesanal, inclui a captura de moluscos bivalves, caranguejos, siris e aratus.

381

cidade de Cachoeira, gera a expectativa, tanto por parte da comunidade local e dos municípios vizinhos, quanto por parte dos estudantes, de que sejam realizados trabalhos sobre a realidade socioeconômica e cultural da região. O grupo de pesquisa “Memória, processos identitários e territorialidades no Recôncavo” (MITO), do qual os integrantes desse projeto fazem parte, foi criado por um conjunto de professores do CAHL com o objetivo de desenvolver e divulgar pesquisas relacionadas à memória, identidade e território na região do Recôncavo, produzidas no âmbito das Ciências Sociais. Deste modo, a execução desta pesquisa insere-se num contexto mais amplo de relação da UFRB com o seu entorno, podendo subsidiar uma reflexão sobre as políticas desenvolvimentistas em curso, que atraem grandes empreendimentos turísticos internacionais para regiões consideradas economicamente atrasadas, e seus impactos sobre comunidades tradicionais. Neste sentido, pesquisa e extensão se confundem, pois, a presença de membros da universidade, realizando levantamento sobre atividades produtivas e história oral, por exemplo, empresta legitimidade a causa quilombola, ao mesmo tempo em que constrói, junto à esta comunidade instrumentos de luta e resistência. Assim, ao criar e ativar articulações e alianças entre a universidade, lideranças locais, agentes intermediários, o presente projeto almeja subsidiar e assessorar a comunidade quilombola em suas negociações com o Estado e interesses transnacionais presentes na área. Objetivo

Promover a democratização do saber incentivando a integração da universidade com a comunidade de São Brás, possibilitando a troca de informações entre os pesquisadores e os integrantes da comunidade. A pesquisa contribuirá para a comunidade nas suas dinâmicas fazendo uma conexão entre a o local, o regional e o global, a comunidade, o estado e interesses transnacionais. Considerar-se-á não apenas os aspectos mais marcadamente econômicos, mas também aspectos culturais e subjetivos. Como objetivos específicos, enumeramos os que seguem abaixo: 1.

Entender como processos identitários acontecem em contextos de disputas por territórios e acesso a recursos escassos,

2.

Observar como homens e mulheres, de diferentes gerações e posições sociais, reagem aos impactos socioeconômicos e fluxos culturais globais,

382

3.

Compreender as múltiplas referências, locais, regionais e globais, na formação de identidades individuais e coletivas,

4.

Assessorar a comunidade em sua negociação e demarcação do território quilombola de São Brás, em disputa com duas grandes empresas: a Penha (fábrica de papel) e a Property Logic (setor turistico).

5.

Colaborar com as negociações entre a comunidade e o INCRA no processo de delimitação, demarcação e titulação do Território Quilombola de São Brás. Material e Métodos

A pesquisa se fará através de diversos procedimentos metodológicos. Num primeiro momento, a pesquisa envolverá o estabelecimento de um processo de negociação, aceitação e empatia durante o trabalho de campo. Sendo assim, os pesquisadores se familiarizarão com o campo, conhecendo a dinâmica e os códigos locais a fim de lograr sucesso na busca de compreensão da realidade estudada e de definição de quais as informações são imprescindíveis, que pessoas devem ser entrevistadas ou tomadas como informantes, dentre outras escolhas a serem feitas no decorrer da investigação. Para atingirmos os objetivos propostos realizaremos um estudo de caso junto a Comunidade Remanescente de Quilombo de São Brás, no município de Santo Amaro, estado da Bahia, identificando os diversos dispositivos e categorias de identificação e organização política acionados pelos integrantes dessa comunidade em diferentes contextos de interação social e suas articulações e conflitos. A investigação se apoiará na observação sistemática, compartilhada, realizada em etapas distintas, no decorrer das quais lançaremos mão de entrevistas semiestruturadas (individuais e com grupos), através das quais poderemos reconstituir micro-histórias de vida, privilegiando, além das relações de gênero, conceitos como relações inter-étnicas, de raça, classe. Os dados serão analisados à luz de uma bibliografia mais geral de gênero, e mais especificamente, daquela que versa sobre os impactos de grandes empreendimentos em comunidades locais, assim como sobre processos de organização política e de construção e afirmação de identidade étnica. Igualmente importância será conferida aos aspectos ideacionais, através da realização de entrevistas em profundidade e histórias de vida. Do mesmo modo em que aspectos relevantes da organização política do grupo poderão ser destacados com o acompanhamento sistemático de reuniões da associação, em nível local e regional, 383

suas conexões com redes de apoio, instituições, e o debate sobre a arena política nacional. Resultados e Discussão

Num primeiro momento do projeto procuramos estabelecer uma aproximação com a comunidade, participando das reuniões promovidas através da Associação dos Pescadores e Pescadoras de São Brás. Nestas reuniões, a própria comunidade nos solicitou a realização de um levantamento de dados socioeconômicos e demográficos da localidade, que fornecesse um quadro panorâmico sobre sua situação atual,e que pudesse fazer frente aos estudos que estavam sendo realizados por empresa contratada pela transnacional Property Logic _ que tem interesses na Ilha de Cajaiba _ para dar o parecer socioambiental da região. Para tanto, elaboramos um questionário contendo dados quantitativos, com informações demográficas, educacionais, atividades produtivas, instrumentos de trabalho, migração, renda média, saneamento básico, acesso a meios de comunicação e transporte, assistência e previdência pública municipal, estadual e federal, assim como dados iniciais de ocupação do território. Este questionário foi realizado durante duas idas a campo, com a participação de outra professora, Jurema Machado, e de 7 estudantes, entre estes, Maria das Candeias, bolsista PIBEX. Estes foram momentos de próxima convivência com os membros da comunidade, sendo que na segunda etapa, realizada no início de dezembro, o grupo permaneceu na área por três dias. Neste período, participamos também de uma reunião com o INCRA que se encontrava na área para a abertura do processo que tem por objetivo a demarcação e titulação do território quilombola de São Brás. Não podemos minimizar a importância de ter a Universidade Federal do Recôncavo fazendo parte de um momento tão decisivo na luta por direitos sociais e territoriais que esta comunidade está vivenciando. A importância de ter universidade em São Brás se dá em duas frentes. Em primeiro plano, a própria presença da universidade num contexto de política de reconhecimento, faz com que a luta da comunidade ganhe ainda maior legitimidade e visibilidade. Num segundo plano, os membros da pesquisa estarão também contribuindo, enquanto agentes sociais, na construção de conhecimentos que servirão de base para a reivindicação étnica e para

o

fortalecimento da luta por seus direitos constitucionais e por acesso a uma cidadania plena e a um território juridicamente reconhecido e protegido. Neste sentido, e num próximo momento, planejamos realizar oficinas de cartografias sociais, em que os membros da comunidade, juntamente e com o auxílio dos membros do projeto, 384

possam identificar os elementos significativos na formação de seu território, um território historicamente construído através de relações simbólicas, materiais e de parentesco, que conferem legitimidade às suas reivindicações. Conclusão

Ainda não há conclusões do projeto. Referências

ARRUTI, José Maurício. Mocambo: Antropologia e História do Processo de Formação Quilombola. EDUSC, 2006. ACSELRAD, Henri (org.) Cartografias Sociais e Território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2008. AGIER, Michel. “Distúrbios Identitários em Tempos de Globalização”. MANA 7(2):7-33, 2001. ALMEIDA, Alfredo Wagner. “Os Quilombos e as Novas Etnias”. Revista Palmares. Brasília, n.5, 2000. AVRITZER, Leonardo. “A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70”. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 12, n. 35, out. 1997. Disponível em:
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