DA MÚSICA O MUSICAR E A MUSICAGEM: concepções estéticas e éticas na mobilização de novos conceitos

May 25, 2017 | Autor: C. Benassi (Claud... | Categoria: Musica, Composição Musical, Filosofia Da Música
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO LABORATÓRIO DE INVESTIGAÇÕES BAKHTINIANAS RELACIONADAS À CULTURA E INFORMAÇÃO - LIBRE-CI

Recife e Olinda, 05 à 09 de novembro de 2016

Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.

Laboratório de Investigações Bakhtinianas Relacionadas à Cultura e Informação LIBRE-CI VI CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: literatura, cidade e cultura popular. São Carlos: Pedro & João Editores, 2016. 1343 p. ISBN 978-85-7993-361-5 1. Bakhtin. 2. Rodas de Conversa Bakhtiniana. 3. Literatura. 4. Cidade. 5. Cultura Popular. 6. Organizador. 7. Autores. I. Título. CDD 410 Capa e Diagramação: Hélio Pajeú Editores: Pedro Amaro de Moura Brito & João Rodrigo de Moura Brito.

Conselho Científico Augusto Ponzio (Bari/Itália); João Wanderley Geraldi (Unicamp/Brasil); Nair F. Gurgel do Amaral (UNIR/Brasil); Maria Isabel de Moura (UFSCar/Brasil); Maria da Piedade Resende da Costa (UFSCar/Brasil); Rogério Drago (UFES/Brasil).

www.pedroejoaoeditores.com.br Rua Tadão Kamikado, 296 Parque Belvedere – São Carlos – SP CEP: 13568-878 2016

DA MÚSICA O MUSICAR E A MUSICAGEM: concepções estéticas e éticas na mobilização de novos conceitos Claudio Alves BENASSI Simone de Jesus PADILHA

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RESUMO Este trabalho é um esboço de um novo entendimento a respeito da música e dos fenômenos a ela relacionados. No meio, falar em linguagem musical é atrair para si toda a valoração negativa que o termo encerra, haja vista que os profissionais do meio o rechaçam por sua correlação com a linguística e sua tomada por analogia apenas na área musical para alguns estudiosos. No entanto, como seres esteticamente ativos e regidos pela ética, propomos novas categorias para discutir a música e seus aspectos, assim nos afastamos dos olhares reprovadores quanto ao termo linguagem musical. Com isso, esperamos poder constituir novos horizontes para o pensar sobre a música e os fenômenos a ela relacionados, ampliando o universo teórico musical e rompendo com os rótulos e equívocos que circundam o universo da reflexão musical. Palavras-Chave: Música. Musicar. Musicagem.

INTRODUÇÃO

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istoricamente, a música foi e é tratada como sendo a expressão dos sentimentos. Na Grécia antiga, a música foi a arte atribuída às musas. No entanto, aí a música foi tida como “arte de valor educativo reduzido ou nulo em relação à poesia” que, segundo Benassi e Victorio (2014, p. 32), “reforçou a ideia de que a música é uma arte à parte, com uma história própria.

Doutorando em Estudos de Linguagens. Mestre em Estudos Interdisciplinares de Cultura Contemporânea. Professor Auxiliar A da Coordenação do Curso de Letras-Libras - Licenciatura da Universidade Federal de Mato Grosso. Grupo de Pesquisa REBAK e REBAK Sentidos. Editor gerente da Revista Diálogos (RevDia). E-mail: [email protected] 17 Orientadora. Doutora em Linguística aplicada. Professora Associada do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Relendo Bakhtin (REBAK). Cuiabá. E-mail: [email protected]

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A atividade musical, nessa época, era considerada servil, e indigna ao homem livre. Porém, a reflexão sobre essa arte era reservada aos filósofos “na medida em que ele entende que essa é relevante, do ponto de vista educativa, para o homem e para a sociedade” (FUBINI, 2008, p. 19). Daí decorre a ideia da existência de dois tipos de música, uma praticada pelos servos que se ouve, e outra que não se ouve ligada ao pensamento filosófico, presente, por exemplo, nas obras “República” de Platão e “Política” de Aristóteles. Nesse caso, o interesse do filósofo centrar-se-ia nos problemas psicológicos únicos do indivíduo. A música torna-se, assim, objeto da reflexão filosófica e, posteriormente, do pensamento científico, em virtude de sua natureza físico-acústica e de suas propriedades que podem servir de consolo para a alma humana. Pode-se considerar, ainda, o caráter pedagógico atribuído à música pela Igreja na Idade Média e a estreita relação com a Matemática estabelecida por Pitágoras com o temperamento. Segundo Fubini (2008, p. 70), no pensamento grego a respeito da música, predomina a temática de sua relevância “ética, positiva ou negativa” na sociedade. Há, nessa concepção, o domínio do conceito de harmonia. Filolau afirmou, baseado na metafísica, que a harmonia surge dos contrários e há nela uma “unificação de muitos termos mesclados e acordo de elementos discordantes” Baseada na catarse, Pitágoras atribui à música o poder de reestabelecer a harmonia perturbada da nossa alma. Nessa premissa está fincada as raízes da teoria dos afetos, que contempla na música a capacidade de imitar os efeitos da alma

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de Rameau influenciou a música no Romantismo, expresso principal e particularmente nas últimas obras eivadas pelo uso da tonalidade na música. Apesar do profícuos estudos estruturais linguísticos da música, cujo expoente foi Schloezer, a categoria linguagem musical encontra perene e veemente oposição por parte dos acadêmicos e estudiosos da área musical. Essa oposição está ligada,

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humana por meio de determinadas melodias, ritmos ou harmonias. A intenção de se afirmar que a música significa ou representa algo é antiga, ora é retomada ou refutada e abandonada (BENASSI; VICTORIO, 2014, p. 34). Na premissa dos afetos e das representações, fundamenta-se a ideia na música tonal de que tons maiores estão ligados ao afeto, alegria, e que os menores evocariam a tristeza, a melancolia. O florescimento do pensamento da expressão dos sentimentos na música se deu no Barroco e permanece, de certa forma, até os dias de hoje. Rameau concebeu a música como uma linguagem privilegiada. Em sua concepção, a música é capaz não só de expressar as emoções e sentimentos humanos individuais, como também a divina e racional unidade do mundo. Esse pressuposto

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principalmente, à impossibilidade de se definir léxico na música (BENASSI; VICTORIO, 2014, p. 38). Daí decorre o problema do presente trabalho. Como ir além do estruturalismo musical, levando em consideração a ação do indivíduo sobre o material e não somente o material pelo material? Como pensar a ação do sujeito sem categorias que permitam entender a música além da estrutura e do material puramente organizado no tempo e no espaço? Por meio do presente trabalho, pretendemos estabelecer um diálogo com Bakhtin e com suas categorias relacionando-as com a música e o fazer musical. Rememoraremos a pesquisa que originou a dissertação de mestrado intitulada “Texto musical dialógico: contribuições para a criação musical ampliadas pelas lentes conceituais bakhtinianas” (BENASSI, 2014). Nosso objetivo é apresentar novas categorias para discutir o objeto musical à luz da orientação da ação do indivíduo esteticamente ativo. Com isso, acreditamos que se poderia lidar confortavelmente com alguns problemas decorrentes do pensamento filosófico sobre o fazer musical, temas na área musical controversos e polêmicos. 1. DA ESTÉTICA À ÉTICA: A CONSTITUIÇÃO DO SER Aquilo que hoje entendo por estética do ser começou com um estudo preliminar intitulado “Alteridade e micropolítica: ensaiando novos conceitos na

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convergências que provocam insurgências que constituem divergências” a temática volta a ser discutida considerando a constituição do ser e a materialidade discursiva. Por convergência, entendemos as forças dos agenciamentos discursivos que moldam nosso ser. Assim sendo, mesmo que atribuíssemos um novo sentido ao conceito linguagem musical, não estaríamos livres das críticas daqueles o que

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alfabetização do sujeito visual” (BENASSI et al, 2015). Posteriormente, outro estudo intitulado “Entre dois mundos: a busca pela (des)identidade por meio do social e da linguagem” (BENASSI, no prelo), originado de uma apresentação em mesa redonda que será publicado como capítulo de livro, aprofundou a temática, delineando as categorias que compreendem a convergência, a insurgência e a divergência como constituintes do ser. Tais categorias são desenvolvidas, principalmente, partindo dos conceitos alteridade, exotopia, responsabilidade e unicidade de Bakhtin, juntamente como os de cultura e subjetividade capitalística, micropolítica e singularidade do corpo e do desejo expressos em Guattari e Rolnick (1996). No texto “Estética do ser:

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reprovam, pois é impossível despir do signo todo tecido ideológico que o emaranhou durante as eras, enquanto o mesmo esteve navegando mares do uso social. A insurgência é um platô de recusa e fuga das identidades reconhecidas. É ela que propicia, no processo estetizante do ser, a divergência. Em nosso caso, insurgimos contra a atribuição de sentido ao termo em questão em relação direta com língua e seus estudos, no entanto, não nos é permitido descarregar a ideologia que impregna o termo, sendo-nos mais atrativo divergir e cunhar novos conceitos para tal. Por meio das categorias discutidas nos estudos citados, trazemos sempre nossas próprias experiências de constituição mediante a discursividade, para onde convergem forças constitutivas que repelem o uso do conceito linguagem musical e baseados na afirmação de Salhins de que [...] um conceito específico tal como a regulamentação do comércio, é valorizado em algum sentido seletivo. Um significado é posto em primeiro plano em relação a todos os outros significados possíveis. Ao mesmo tempo a referência é feita a particulares concretos que não são iguais a todos os usos prévios (SAHLINS, 1997, p. 186).

Tomamos que a resolução da problemática passa não por atribuir uma nova roupagem significativa ao conceito em questão, pois acreditamos que, na práxis, toda vez que fosse tomado o conceito, o significado conservador do mesmo seria o primeiro a ser elevado. Insurgimos e na divergência proporemos categorias que nos permita discutir o assunto referente ao fazer musical guiado pelas ações axiológicas

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afastaria a ideologia evocado pelo termo. Para Sahlins (1997, p. 187,188) “do modo como for implementado pelo sujeito ativo, o valor conceitual adquire um valor intencional – que pode muito bem ser diferente de seu valor convencional”. Assim entendemos que, ao atribuir novo sentido ao termo linguagem musical, os valores a ele atribuídos podem não corresponder àquilo que ora se convenciona.

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do indivíduo esteticamente ativo, sem atrair para nós olhares alteros e conservadores que certamente reprovariam o uso do termo. Para concluir, o termo linguagem musical esteticamente como todo enunciado, está prenhe de sentidos (BAKHTIN, 2010). No entanto, seu devir sempre materializa aquele que é rechaçado pelos estudiosos da área por sua correlação com a área da linguística. Ou seja, esteticamente o termo, em seu eterno devir de sentidos, está prenhe de significados outros e poderia outros tantos serem imaginados. Eticamente, a priorização das ideias ligados à linguística delimita o plano da atribuição desses sentidos. Não basta atribuir-lhe uma nova roupagem significativa, pois a mesma não

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Da maneira como o signo for posto em ação, ele estará sujeito a outro tipo de determinação: aos processos de consciência e inteligência humana. Não mais um sistema semiótico virtual ou desencarnado, o significado agora está em contato com os poderes humanos originais de sua criação (SAHLINS, 1997, p. 188).

Assim, um signo pode sempre que posto em ação retomar suas atribuições originais. No caso do termo em questão, poder-se-ia ser retomada a significação ligada à área da linguística e facilmente ser rechaçada devido ao apreço conservador dos estudiosos da área musical. Isso justifica a criação divergente de novas categorias para que se possa discutir a questão sem retomar aquilo que negativamente está consolidado. 2 REMEMORANDO O “TEXTO MUSICAL DIALÓGICO” E AS “CONTRIBUIÇÕES PARA A CRIAÇÃO MUSICAL AMPLIADAS PELAS LENTES CONCEITUAIS BAKHTINIANAS” A pesquisa que originou a dissertação de mestrado, cujo título nomeia esta seção, se iniciou com a ideia de investigar a aplicação dos conceitos de enunciado e diálogo, também ética e estética na criação musical. A peça a ser criada seria dedicada à flauta doce. A pesquisa ainda se ocupava da investigação de um instrumento (flauta doce) que pudesse figurar frente a uma orquestra. Durante a execução da pesquisa, após cursar uma disciplina ministrada pelo professor Luciano Ponzio, o foco conceitual da pesquisa mudou para os conceitos de exotopia,

Flauta doce moderna criada pela artesã holandesa Adriana Breukink que, em potência sonora, foi comparada à clarineta. 18

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O discurso musical é uma malha, na qual se entrelaçam os fios sonoros alheios, que simbiotizamos e aplicamos a nossa própria poética, tornando-os alheiospróprios. Esses, com o decorrer do tempo, se materializam por meio de experiências conscientes como discurso musical próprio (VICTÓRIO; BENASSI, 2014 in BENASSI, 2014, p. vi).

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responsabilidade e (in)acabamento na criação. Criamos, assim, uma obra musical para orquestra de câmara e flauta doce Águia (Eagle)18, para exemplificar a aplicação dos conceitos na gênese musical. No processo de ensino-aprendizagem da composição musical não há “receita” para tal. O professor expõe os gêneros e os estilos de composição e o estudante procura produzir seu discurso musical buscando entender, por meio da análise, a inteligência por trás do discurso musical, da obra que se analisa. Para Benassi e Victório,

Assim sendo, no discurso musical existe uma apropriação do discurso musical alheio por meio de um processo análogo à apropriação da palavra de Bakhtin. O estudante de composição se inicia em procedimentos de “ir ao lugar do outro”, ou seja, ir ao extra-local para compreender a enunciação musical de pares avançados. Esse trânsito se configura como exotopia e, também, como cronotopia, pois além de ir ao extra-local, o estudante de composição vai a um tempo passado, que é rememorado na construção de um tempo futuro. Essa análise que o estudante de composição pretende para a aquisição do discurso musical é um processo de (in)acabamento da obra do seu outro. Acabamento no sentido de compreensão do processo de criação do discurso musical que a obra encerra. Inacabamento no sentido de que a obra de arte está sempre aberta a novas interações. Esse processo envolve a categoria bakhtiniana da responsabilidade, pois o estudante de composição, na aquisição do discurso musical, vai ao extra-local discursivo outro, (in)acaba sua obra e retorna ao seu lugar único ocupado em relação ao mundo para então reacentuar, revalorar e reenunciar o discurso anteriormente alheio que se materializará como alheio-próprio. Para exemplificar, trago um breve relato do processo de concepção da obra Requíem para os pássaros mortos em abril (2014), de autoria do compositor Cao Benassi. A obra foi concebida para exemplificar a aplicação das categorias de exotopia, responsabilidade e acabamento de Bakhtin na música, e deu origem à dissertação que dá título a esse tópico do texto. A obra citada acima teve como fio condutor o número 9, que na numerologia Pitagórica é tido como o número dos iniciados ou da iniciação. O número foi escolhido pois contextualizava o momento da passagem pelo curso de mestrado.

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Refere-se ao Espírito daquela que, na vida terrena, chamou-se Maria de Carvalho Leite (1900-1950). Professora, poetisa e pianista, tem a ela atribuída vasta obra literária espírita. 20 Entidade espiritual concebida no meio religioso espírita como sendo romancista, musicista e pintora. 19

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Após várias outras tentativas fracassadas de iniciar a obra, a composição da primeira se inicia num dia, cujo resultado numérico é 9, e dura um total de 53 dias. O acorde gerador tem como soma numérica o dígito 9 que, segundo Pitágoras, está ligado à iniciação. Quatro enunciados musicais são retomadas aí: Concerto for recorder “Eagle” and orchestra (2013), do compositor italiano Vito Palumbo, que “emprestou” a forma ao acorde gerador e os grandes blocos sonoros quialterados presentes na última parte. Violinkonzert, do compositor austríaco Alban Berg, escrito em 1935, teve suas melodias em arcos retomadas; Requíem a un pájaro, do compositor, maestro e flautista mexicano Salvador Torres, que teve suas melodias em forma de arco rememoradas e o poema Pássaros mortos em abril, cujo texto nomeou a obra e todas as suas partes, é atribuída aos espíritos Maria Dolores19, Maria José20 e Irmão21 (BENASSI, 2014, p. 59).

Figura 01. A direita, fragmento da melodia em arco ascendente e descendente de Violinkonzert. A esquerda, fragmento da melodia timbrística fragmentada de Requíem para os pássaros mortos em abril.

Fonte: Benassi (2014, p. 60).

Como visto, várias obras são rememoradas em Requíem para os pássaros mortos em abril (2014). Isso foi possível graças à análise musical realizada exotopica e cronotopicamente nas obras em questão. O (in)acabamento responsável das obras se reflete na criação de um novo enunciado musical, que traz em seu discurso as ações valorativas de um sujeito esteticamente ativo. Além dessas obras, aparecem ainda Chronos II para flauta solo, de abril de 1998, de autoria do compositor Roberto Victorio; Last Post é originalmente usado para sinalizar o final da excursão do oficial pelo campo de batalha ou quartel. É executado também em funerais militares e cerimônias em homenagem aos mortos em guerra. Figura 02. A esquerda, fragmento de um dos motes de gênese de Requíem a un pájaro. A direita, fragmento de uma das melodias geradoras de Requíem para os pássaros mortos em abril.

Fonte: Benassi (2014, p. 60).

A retomada desses enunciados artísticos só é possível graças a minha viagem exotópica, enquanto autor, ao lugar e ao tempo de enunciação dos autores “outros”. A compreensão desses enunciados só é possível por meio da análise que gera o acabamento que lhes confiro. O ir ao lugar do “outro” e o voltar ao meu lugar de enunciação me permite reenunciar, reelaborar e reacentuar de forma responsável

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Trata-se de uma entidade espiritual concebida no meio religioso apenas como Irmão. Segundo o médium com quem estabeleceu o contato, trata-se de um habilidoso flautista e compositor antigo. Culto do dia 05 de marco de 2011. 21

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essas obras, pois Requíem para os pássaros mortos em abril não é uma cópia dessas obras “outras”.

O trânsito exotópico a esses enunciados traz uma possível cronotopia à obra, ou seja, os olhares de um lugar exterior, lugar fora de mim – exotopia – para um crono-tempo e um topo-lugar outro. E possível também observar uma apropriação do discurso musical, que inicialmente é alheio. A partir da análise, esse discurso pode passar a ser alheio-próprio quando aparece reelaborado e reacentuado na criação musical que, com o passar do tempo, é internalizado e torna-se um discurso musical próprio. Figura 03. Fragmento do mote de gênese da obra Chronos II.

Fonte: Benassi (2014, p. 60). Figura 04. Bloco gerador do da quarta parte de Requíem para os pássaros mortos em abril.

Fonte: Benassi (2014, p. 61).

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Segundo Benassi e Victorio (2015, p. 167), de forma superficial, a categoria música poderia ser definida como sendo sons organizados no tempo e no espaço. Acrescentamos, aqui, a música como sons organizados no tempo e no espaço de acordo com uma sintaxe estilística musical. Ainda a tomamos por um sistema

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3. DA MÚSICA O MUSICAR E A MUSICAGEM

estruturado, ao qual acessamos e adaptamos à nossa realidade de acordo com nossa ética/estética. Assim sendo, como falar em sintaxe musical sem perpassar o termo linguagem musical? Como um ser esteticamente divergente e eticamente ativo, para discutir a questão sem atrair para si a valoração negativa do termo, cabe a nós propor e estabelecer novas categorias que nos permitam lidar confortavelmente com a questão. Assim, propomos, analogamente, os conceitos musicar, musicagem, musicagística e musicagista. Musicar na Língua Portuguesa é um verbo que pode assumir dupla função sintática. Como verbo intransitivo, indica compor música. Como verbo transitivo direto, por sua vez, indica tocar um instrumento musical. Tomamos o termo para o ato de fazer música, que pode ser: compor música; compor arranjo musical; tocar instrumento musical; reger; cantar; performar musicalmente; analisar a música ou a performance musical; criticar a música ou a performance musical; refletir sobre música ou sobre a performance musical. Musicagem é um filme de 200522, cuja estreia se deu em 26 de setembro de 2008. Aqui tomamos o termo para designar o que se tentou com o termo linguagem musical que foi austeramente rechaçado. Musicagem é o uso que se faz do sistema musical, noutras palavras, é uma atividade estética ligada à dimensão da vida. A musicagem é concreta e pode ser entendida em relação aos atos estéticos únicos e particulares executados e ao ser-evento-unitário. A musicagem carrega a expressividade estética, a atitude axiológica (valorativa) dos sujeitos em relação ao

Filme brasileiro, 75 min. sem informações sobre autoria e direção. https://omelete.uol.com.br/filmes/musicagem/. Consulta em 10 de setembro de 2016. 22

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especificamente, o pensar sobre ele. Esse profissional é o musicista musicado nas academias (portador de diploma de curso superior), que possui conhecimento formal da música e dela se apropria musicagisticamente com o objetivo de dissecar e entender os fenômenos decorrentes da musicagem.

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seu objeto estético. A Musicagística na Língua Portuguesa seria um substantivo feminino. Sua definição seria a ciência que tem por objeto de estudo a música e os fenômenos a ela relacionados, sendo eles: 1) a musicagem em seus aspectos sistêmicos constitucionais (ligados aos parâmetros musicais: intensidade, duração, altura, timbre) e suas combinações, aspectos sintáticos (cadências; incisos, semifrases, frases, períodos), aspectos semânticos enunciativos, sociais e psicológicos; 2) as músicas consideradas como estruturas, levando em conta a cultura na qual a mesma está inserida e as divisões etnográficas das mesmas. O musicagista seria então o profissional que se ocupa do fazer musical,

Essas categorias nos permitirão discutir toda a amplitude da música e dos fenômenos a ela atribuídos. Será possível, a partir de agora, pensar o fazer musical e delinear os contornos do mesmo, levando em consideração a ação axiológica do sujeito, sem que caiamos no já rechaçado lugar de valorações negativas em que se encontra o termo linguagem musical, haja vista a tentativa de Benassi e Victorio (2014), que não se fixou. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse trabalho trouxe à baila a discussão a respeito do termo linguagem musical e a sua significação mais recorrente entre os pesquisadores da música. Significação essa envolta por uma névoa valorativa obscura que tem feito com que o termo seja refutado, eliminando, assim, possibilidades outras. Como o signo linguístico está impregnado das valorações sociais, não sendo possível despi-lo delas, não é possível, para nós, retomá-lo sem que atrair a negatividade que o termo evoca. Benassi e Victorio (2014) intentam atribuir ao termo linguagem musical uma outra conotação, no entanto, o intento fracassa e a ideia é abandonada, pois seria impossível para nós e para os autores “limpar” o termo e torná-lo aceitável no meio musical. Assim sendo, propomos neste trabalho o uso dos termos: 1) musicar, para designar o ato de fazer música em sua plenitude; 2) musicagem para definir o uso do sistema musical que é adaptável ou atividade musical; 3) musicagística para designar o estudo da música e os fenômenos a ela relacionados e; 4) musicagista para definir o profissional que estuda o fenômeno musical. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. [1929] Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 14ª ed. São Paulo: HUCITEC 2010. BENASSI, C. A. Texto musical dialógico: contribuições para a criação musical ampliadas pelas lentes conceituais bakhtinianas. Dissertação. Mestrado em Estudos Interdisciplinares de Cultura Contemporânea. Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2014.

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BENASSI, Cao. Requíem para os pássaros mortos em abri. Partitura. Para flauta doce Águia e pequena orquestra. 15 min. aprox. In.: BENASSI, C. A. Texto musical dialógico: contribuições para a criação musical ampliadas pelas lentes conceituais bakhtinianas. Dissertação. Mestrado em Estudos Interdisciplinares de Cultura Contemporânea. Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2014.

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_____. A criação musical guiada pelas ações axiológicas do criador: um olhar através das lentes conceituais bakhtinianas. Anais do 5º Ciclo de Palestras Música e Ciência. Núcleo de estudos de composição e interpretação da música contemporânea. (NECIMC). Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2014. 55-67 p.

BENASSI, C. A.; VICTORIO, R. P. Da teoria dos afetos aos novos olhares através das “lentes bakhtinianas”. Revista Diálogos. V. 2, N. 1, 2014. Disponível em http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia/article/view/2761. Acesso em: 15 ago. 2016 BENASSI, C. A.; DUARTE, A. S.; SOUZA, S. A.; PADILHA, S. de J. Alteridade e micropolítica: ensaiando novos conceitos na alfabetização do sujeito visual. In.: Amorização: porque falar de amor é um ato revolucionário. São Carlos: Pedro & João Editores, 2015. BERG, A. Violinkonzert. 1935. Partitura. Concerto para violino. Acervo particular dos autores. DOLORES, M.; JOSÉ, M.; IRMÃO. Pássaros mortos em abril. Poema. Acervo particular dos autores. FUBINI, E. Estética da música. Lisboa: Edições 70, 2008. GUATTARI, F. ROLNIK, S. Micropolíticas: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1996. LAST Post. Partitura. Acervo particular dos autores. MUSICAGEM. Filme, 75 min. sem informações sobre autoria e direção. Disponível em https://omelete.uol.com.br/filmes/musicagem/. Acesso em: 10 set. 2016. PALUMBO, V. Concerto for recorder “Eagle” and orchestra. 2013. Partitura. Para flauta doce Águia e orquestra sinfônica. Acervo particular dos autores. TORRES, S. Requíem a un pájaro. Partitura. Acervo particular dos autores.

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VICTORIO, R. P. Chronos II. Partitura. Acervo particular dos autores.

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