\"Da Natureza do Amor\" (De Substantia Dilectionis), de Hugo de São Vítor (1096-1141)

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Da Natureza do Amor1 (De Substantia Dilectionis) Hugo de São Vítor (1096-1141)

A Caridade representada em um vitral.

Tradução de Gustavo Cambraia Franco2

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Originalmente em J-P. Migne. Patrologia Latina. 176, 15-18. (Institutiones in Decalogum, cap. IV). A versão traduzida encontra-se em HUSSEY, J. M. (Ed.). “Hugh of Saint-Victor: Selected Spiritual Writings”. New York and Evaston: Harper & Row, 1962, pp. 187-191. 2 A reprodução parcial ou total dessa obra é permitida, desde que seja citada a fonte. 1

Nós apresentamos diariamente algumas palavras sobre o Amor, com temor de que, se não lhe dermos atenção, seu fogo talvez se acenda em nosso coração e irrompa em chamas, cuja propriedade é a de tanto consumir quanto purificar inteiramente algo. Pois tudo o que é bom dele deriva, e dele vem todo mal. Um simples jorrar do amor, ao brotar em nós, flui em duas correntes. Uma é o amor do mundo, a cupidez; a outra é o amor de Deus, a caridade. O coração do homem é, de fato, o terreno no qual, quando a inclinação o guia para as coisas externas, irrompe naquilo que chamamos cupidez; no entanto, quando seu desejo move o coração para aquilo que está no interior, seu nome é caridade. Há, portanto, duas correntes que brota da fonte do amor, a cupidez e a caridade. A cupidez é a raiz de todo mal, e a caridade é a raiz de todo bem. Assim, tudo o que é bom deriva dele, e dele vem todo mal. O que quer que ele seja, então, é uma grande força em nós, e tudo o que há em nós deriva dele, pois é por isso que ele é amor. Mas o que é o amor, e quão grande ele é? O que é o amor e qual sua origem? A Palavra de Deus também fala sobre isso. Este não é um assunto mais apropriado para aqueles que depreciam o amor e a decência? Veja como são muitos aqueles que alegremente dedicam-se à questão dos seus mistérios, e quantos são poucos os que se envergonham de discutir sobre ele publicamente! Em que, então, estamos pensando? Talvez, no excesso de licenciosidade nós vestimos uma face de meretriz, pois não ficamos envergonhados de compor algo por escrito sobre o amor, embora estas sejam matérias que até mesmo aqueles que não se envergonham são algumas vezes incapazes de expressar em palavras sem ficarem ruborizados. No entanto, uma coisa é investigar o vício para extirpá-lo, e outra coisa é incitar àquilo que é vicioso, para que a verdade e a virtude não sejam amadas. Nosso propósito é examinar e buscar aquilo que podemos saber – quando saber – e evitar aquilo que alguns outros buscam saber 2

e, sabendo, dele se satisfazem, ou seja, aquilo que está em nós e que divide nossos desejos de tantas formas e guiam nossos corações em diferentes direções. Dessa forma, nós descobrimos que esta coisa não é outra coisa senão o amor, o qual, como um único movimento do coração, é, por sua natureza, uno e único que, no entanto, está dividido em seus atos. Quando ele se move desordenadamente, isto é, para onde não deve ir, é chamado cupidez; mas, quando está retamente ordenado, ele é chamado caridade. Como, então, podemos definir esse movimento do coração a que nós chamamos de amor? Será de bom proveito olharmos mais de perto esse movimento que, quando é mal, muitos males dele procedem e que, quando é bom, muita bênçãos produz, com receio de que, em alguma medida, ele nos iluda e permaneça desconhecido, e consequentemente, inevitável quando ele é mal, e quando ele é bom, não procurado ou desconhecido. Consideremos, então, essa matéria de sua definição e pensemos sobre ela; pois o objeto de nossa investigação é uma matéria escondida e, quanto mais profunda ela repousa, mais ela controla o coração em uma direção ou na outra. O amor, então, parece ser e, de fato, é, o apego do coração à alguma coisa, por alguma razão, seja pelo desejo ou alegria em sua fruição, precipitado em sua direção pelo desejo, tranquilo em seu prazer. Aqui se encontra o seu bem, Ó coração do homem, e aqui também está o seu mal. Pois, se tu és bom, teu bem não pode ter outra fonte; nem pode o seu mal, se tu és mal, exceto que consideras um bem aquilo que deseja, seja bom ou mal. Pois tudo o que existe é bom; mas, quando aquilo que é bom é amado de maneira errada, a coisa em si é boa, mas o amor dela é mal. Assim, não é o amante, nem a coisa amada, nem o amor com que ele ama que é mal; mas é mal o fato de que ele a ama de forma errada que é completamente mal. Ordenada, então, a caridade, não 3

haverá mal algum. É nosso desejo, se formos capazes dessa tarefa, de persuadirvos de um fato importante. Deus Todo-Poderoso, a quem nada falta, pois Ele é o supremo e verdadeiro Bem, Ele que não pode receber aumento de alguém, nem sofrer uma perda pessoa que poderia leva-lo à queda, pois Nele todas as coisas permanecem imutáveis, este Deus criou o espírito racional não por necessidade, mas por amor apenas, para partilhar com ele Sua bem-aventurança. Para que ele possa ser preenchido dessa alegria, Ele colocou o amor nele, um certo sentido espiritual de sabor, para saborear interiormente essa doçura, para que que por esse mesmo amor o espírito possa saborear a alegria de seu verdadeiro gozo, e se apegar a ele com incansável desejo. Pelo amor, Deus uniu as criaturas racionais a si próprio, de modo que aderindo fortemente a Ele, a alma possa ser sugada por sua afeição, bebida por seu desejo e por sua alegria possuir Nele o bem que a faz feliz. Sugai, abelhinha, sugai e bebei da doçura de sua indizível suavidade. Mergulhe nela e seja dela repleta, pois Ele nunca falha, a não ser que tu se canses. Apegue-se a Ele, habite Nele, receba-O e tenha nele a felicidade. Se o apetite for eterno, então eterna será a bem-aventurança. Não nos envergonhemos ou nos arrependamos por termos falado sobre o Amor. Não nos arrependemos em algo onde há tanto proveito; e onde há tanta beleza, não nos envergonhemos. Pelo amor, portanto, a criatura racional é trazida à amizade com seu Criador; o elo do amor é o único que vincula os dois e os tornam um só, e quão mais forte é a união, maior é a bem-aventurança. Essa, também, é a razão pela qual, para estender aquela união indivisível e a concórdia perfeita em ambas as direções, o vínculo é dobrado no amor de Deus e do próximo, na intenção de que pelo amor de Deus todas coisas estejam unidas em uma, e pelo amor do próximo todos estejam unidos uns aos outros. Dessa forma, cada um pode, pelo amor do próximo, possuir mais plenamente e completamente no outro 4

aquilo que ele não poderia possuir por si mesmo do Único a quem todos aderem, o bem de todos se tornando, dessa forma, a soma de todas as posses individuais. Ordenai, então, a caridade. O que significa isso: Ordenai a caridade? Se o amor for desejo, tenha ele pressa. Se for alegria, tenha ele repouso. O amor é, como temos dito, o apego de algum coração à alguma coisa por alguma razão, desejando ele e se alegrando em sua fruição, apressando-se em direção ao seu objeto pelo desejo, e repousando em sua alegria, correndo para ele e repousando nele. Em direção a que, e no que? Apenas ouça, e talvez possamos explicar para onde o amor deve correr e onde ele deve repousar. Existem três coisas que podem amadas de maneira correta ou errada, a saber, Deus, o próximo e o mundo. Deus está acima de nós, nosso próximo é nosso igual, e o mundo está abaixo de nós. Portanto, ordenai a caridade. Quando ela correr, deixe-a correr de maneira correta. Quando ela repousa, deixe-a repousar corretamente. É o desejo que corre e a alegria que repousa. Portanto, a alegria é sempre uma e a mesma, pois ela sempre se trata de uma só coisa e não pode mudar. Mas o desejo é sujeito à mudança e, portanto, ele não confina a si mesmo em um só objeto, mas assume várias formas. Pois sempre que estamos correndo, corremos tanto a partir de um desejo, ou com algum desejo, ou em algum desejo por algum objeto. Como, então, deve correr nosso desejo? Deus, o próximo e o mundo, essas são as três possibilidades. Quando nosso desejo se estabelece, apenas deixa Deus estar nele de três formas, o próximo de duas, e o mundo de uma e, então, a caridade é ordenada. Pois o amor, como desejo, pode correr de maneira boa de Deus, com Deus ou até Deus. Ele flui de Deus quando recebe Dele o poder que o capacita a amá-lo. Ele corre com Deus, quando de nenhuma forma 5

se opõe à Sua vontade. Ele corre para Deus, quando procura repousar Nele. No que diz respeito a Deus, estas são as três formas de desejar. As que dizem respeito ao nosso próximo são duas. Pois o desejo pode correr do próximo (e com ele), mas não pode correr até o próximo. O desejo pode correr de nosso próximo, ao se alegrar com sua salvação, e correr com ele desejando tê-lo como amigo viajante na estrada para Deus e como uma companhia quando a meta é alcançada. Mas correr até ele, colocando sua esperança e confiança no homem, isto ele não pode fazer. No que diz respeito ao nosso próximo, estas são as duas formas de desejar, ou seja, fluir dele ou com ele, mas não para ele. Apenas uma coisa pertence ao mundo, ou seja, fluir dele, mas não com ele ou para ele. O desejo flui do mundo quando, buscando as obras exteriores de Deus, ele se volta mais ardentemente para Ele no seu interior, em admiração e louvor. O desejo fluiria correria com o mundo, se ele se conformasse com o mundo presente e a mudança dos tempos, sendo humilhado quando as coisas se tornam ruins, ou exultante quando eles estão bem. Ele correria para o mundo, se ele quisesse sempre repousar nos seus prazeres. Ordenai a caridade, então, para que o desejo possa fluir de Deus, com Deus e para Deus, de nosso próximo e com ele, mas não para ele, e fluir do mundo, mas não com ele ou para ele. E deixe-o encontrar seu repouso em Deus apenas; pois, se for verdadeira alegria, então o amor repousa de maneira correta; se for um desejo verdadeiro, então o amor está correndo de maneira boa. Pois o amor, como temos dito, é o apego de algum coração à alguma coisa por alguma razão, desejando aquela coisa, e se alegrando em sua fruição, correndo para ele e repousando nele. Esta é a caridade ordenada, e tudo o que fazemos para além disso, não é caridade ordenada, mas cupidez desordenada. 6

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