Da noção de espíritos animais em René Descartes

June 7, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: René Descartes, Corpo, Fisiologia cartesiana, Espíritos Animais, Esprits animaux
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Da noção de espíritos animais em René Descartes Abraão Carvalho1

Introdução Na problemática do corpo, o filósofo René Descartes a partir de suas investigações, sobretudo nas obras O tratado

do

Homem e As paixões da

alma,

pontua

uma

categoria que modernamente a neurociência irá promover estudos,

pormenorizando

e

identificando

aquelas

substâncias que atuam no corpo e que correspondem ao modo através do qual as sensações do corpo nos ocorrem e bem como podem atuar em nossos sentimentos ou afecções. Contudo,

tais

espíritos

animais

para

Descartes

consistem antes de tudo em uma matéria, que circula no próprio corpo, na medida em que tais espíritos correm através do sangue e recaem entre as concavidades do cérebro nos fazendo perceber, no caso específico do corpo, o modo através do qual os estímulos são recebidos. Todavia, ao chamarmos estas substâncias do próprio corpo que correm o sangue e incidem em nosso cérebro, que Descartes

chama

de espíritos

animais, não são

uniformemente compreendidos, de modo que para cada estímulo externo um tipo diferente dentre os espíritos animais são impulsionados no corpo. Em nossa investigação pretendemos indicar que tais espíritos

animais

funcionam

como

uma

espécie

1

Trabalho publicado na Coletânea de Artigos do Grupo de Pesquisa PARTHOS sob orientação da prof. Claudia Murta/ PPGFIL Universidade Federal do Espírito Santo. PARTHOS: FILOSOFIA, PSICANÁLISE, SAÚDE DA MULHER (2014). Organização: Claudia Murta. Pág. inicial: 305/ Pág. final: 321.

1

de mediação entre

corpo

e

alma,

de

modo

que

compreendemos os movimentos dos espíritos animais no corpo como algo que possui não somente sua direção que vai do próprio corpo até a alma, alma que é compreendida como pensamento, bem como, compreendemos que os movimentos

dos

sua direção inversa,

espíritos a

animais

saber,

como

possuem tendo

também início

no

pensamento que por seu turno ativa o movimento de certos espíritos animais no corpo. Dos “espíritos animais” como uma força vital ao corpo para Descartes Na problemática tão arraigada na tradição da metafísica ocidental, a saber, o tema da relação entre corpo e alma, o filósofo francês René Descartes em seu livro publicado postumamente, de nome O mundo ou o Tratado da luz/ O Homem, com a intenção de, por mediação de uma cisão conceitual, entre corpo e alma, assim como através de uma radical reflexão filosófica que converge esforços em definir um e outro, em toda sua amplitude e dimensão, somos levados a despertar para uma compreensão de corpo e bem como o seu modo de mediação com a alma, que de certa maneira nos surpreende. Neste

movimento

de

pensamento,

Descartes

promove sua compreensão e observação em torno da problemática do corpo, para então, em um momento posterior, tratar da alma enquanto problema metafísico. E é esta perspectiva que é promovida na parte do Tratado intitulada “O homem”: “Esses homens serão compostos, como nós, de uma alma e de um corpo. É necessário que eu vos

2

descreva, primeiramente, o corpo à parte, depois a alma também separadamente, e, enfim, que eu vos mostre como essas duas naturezas devem estar juntas e unidas, para compor os homens que se assemelham a nós” (DESCARTES, [1633] 2009, p. 119-120).

Para que nos aproximemos da definição de “espíritos animais” e sua posição e lugar na relação entre corpo e alma, precisamos nos conter, nesta mesma marcha de pensamento, aos limites e observações sobre o corpo, no qual se encontra a sede da alma, sendo o homem aquilo que é o “composto”, de corpo e alma. Nesta perspectiva, as observações de Descartes, como o filósofo, nos ressalta, em relação às partes do corpo humano bem como suas descrições, “podem ser mostradas por

algum

especialista

de

anatomia”

( DESCARTES,

[1633]2009, p.120). No entanto, criar conceitos e definições

a partir do corpo que possam estar envolvidos com a dinâmica através da qual a alma é afetada de súbito pelos sentidos, é o que Descartes nos apresenta de novo e curioso, a respeito da relação entre os afetos, sentimentos, e o corpo, seja em seu ir de encontro aos objetos, seja quando a alma presume estar tomada por este ou aquele estado de ânimo, afeto, ou nos termos de Descartes, paixão, recorrente que é, em sua perspectiva, da ebulição e condução destes tais espíritos animais no corpo. Descartes compreendia que a manutenção da força vital do corpo era conhecida como “certo vento muito sutil, ou antes, uma chama muito viva” que percorre as artérias através de partes do sangue e que prescinde em conservar a substância do cérebro. E que a esta força vital que percorre e mantém vivo o corpo, dá-se o nome de espíritos animais. Assim lemos na seguinte passagem: 3

“quanto às partes do sangue que chegam ao cérebro, elas servem não só para nutrir e conservar a sua substância, mas também, principalmente, para produzir certo vento muito sutil, ou antes, uma chama muito viva e muito pura que é chamada de espíritos animais” (DESCARTES, [1633] 2009, p. 129).

De acordo com o filósofo, neste movimento do sangue

pelo

corpo

em

sua

direção

à

superfície

e

concavidades do cérebro, movidas pelo calor do coração, temos a passagem de simples substâncias que nutrem o cérebro, para o que ele chama de espíritos animais. É o que nos leva a crer a seguinte passagem do texto de Descartes: “Assim,

sem

outra

preparação

nem

mudança, a não ser que elas são separadas das maiores e que retém ainda a extrema rapidez que o calor do coração lhes deu, elas deixam de ter a forma do sangue e passam a se chamar espíritos animais” (DESCARTES, [1633] 2009, p. 130).

Espíritos animais e a relação corpo-máquina Segundo Descartes, esses “espíritos animais” na medida em que vão sendo dirigidos às concavidades do cérebro, tendem a realizar um movimento que vai dos poros para os nervos, e nesta posição, os espíritos animais através do sangue produzem tal força de modo a mover e alterar a forma dos músculos, que por sua vez promovem os movimentos dos membros. E é justo neste contexto que surge a associação do funcionamento de uma máquina e o funcionamento do corpo humano. Pois à máquina segue-se a analogia do corpo humano, ao qual abriga uma alma, que, 4

sendo racional, tende a fomentar os movimentos do corpo, como nos demonstra um vestígio encontrado no texto de Descartes a respeito da relação entre corpo e alma: “quando houver uma alma racional nessa máquina, ela terá sua principal sede no cérebro” ( DESCARTES, [1633] 2009, p.131). Logo em seguida, o filósofo nos chama a atenção, que nesta sede da alma, que é o cérebro, deriva-se a capacidade e possibilidade de: “excitar, impedir ou mudar, de algum modo, seus movimentos” (DESCARTES, [1633] 2009, p.131-132), isto é, os movimentos do corpo.

É preciso neste ponto, precisamente em relação à noção que articula o corpo com a figura de uma máquina, certo cuidado, para que um deslize ou deslocamento de compreensão possa ser evitado. Nos deparamos com questões decorrentes dessa articulação entre corpo e máquina, que de certo está no cerne da modernidade, sobretudo a partir da leitura dos trabalhos de Claudia Murta, encontrados no livro Humanização, corpo, alma e paixões. Nos trechos de nome: “Uma nova visão de mundo?”,

“O

homem-máquina”

e

“O

homem-máquina

ocidental”, encontramos um melhor esclarecimento em torno do debate que envolve a compreensão moderna de corpo como uma máquina, e seu decorrente deslocamento para a compreensão de homem-máquina. O que Descartes propõe, com o recurso teórico de aproximar a relação entre corpo e máquina, reside em demarcar princípios filosóficos distintos, que preservam o que o filósofo chama de “privilégio metafísico” do homem, “que consiste no pensamento e que engaja também a imortalidade de sua alma.” O que se afasta da compreensão de homem ocidental compreendido como homem-máquina fundada na modernidade, como nos indica Claudia Murta em relação à proposta de Descartes: 5

“A consequência desse tipo de pensar e viver a realidade do homem-ocidental é aquela que o reduz em seu próprio fazer-se, ou seja, construir-se máquina. O que confirma um monismo radical acreditando ao extremo na força da técnica sobre a vida. Tal ideia vem em muito se distanciar da então proposta

por

Descartes,

que

pensa

o

animal-

máquina ser consequência do dualismo alma-corpo, ‘servindo para garantir ao homem seu privilégio metafísico, que consiste no pensamento e que engaja também a imortalidade de sua alma’”. (MURTA; MAMERI, 2009, p.17).

Esta melhor contextualização do pensamento de Descartes, ainda segundo Murta, se inscreve no século XVIII, sobretudo em relação ao debate entre Descartes e as aproximações e distinções do pensamento de La Mettrie. Para

este

último,

a

compreensão

fundada

desde

o

materialismo, que afirma ser o homem uma máquina, e para aquele outro, a compreensão de que somente o corpo é uma máquina, e que o pensamento resguarda o seu “privilégio metafísico”, resultante de seu dualismo. A linha tênue que pode nos trazer grandes embaraços é melhor demarcada no texto de Murta a fim de situar a distinção entre o pensamento de La Mettrie e Descartes: “Julien de La Mettrie, em sua obra ‘O homem-máquina’, elabora uma tese própria para a sua época. No século xviii, quando o homem, a fim de justificar seu domínio à natureza, dela se distancia,

intuitivamente

associa

a

imagem

do

homem à de uma máquina, denunciando por viés o espírito de manipulação que o conduz. A proposta de Descartes, que descreve o funcionamento do corpo humano como uma máquina, é, assim, derivada

6

numa afirmação outra, a afirmação de ser o homem uma máquina” (MURTA; MAMERI, 2009, p.23).

Contudo, a abertura de compreensão que nos é deixada por Descartes consiste em indicar um círculo de relações do próprio corpo, e que atravessa os nervos, músculos, cérebro, espíritos animais e membros, e se articulam desde uma dinâmica de movimentos muito fugaz e

rápida,

todavia,

permanente

na

organização

e

manutenção da força vital do corpo e de sua condição de afetar a alma. Uma passagem encontrada neste Tratado do Homem, que nos desperta uma mais precisa compreensão acerca deste círculo traçado por Descartes, é a seguinte: “Mas, a fim de que eu vos faça entender tudo isso distintamente, quero, principalmente, vos falar da estrutura dos nervos e dos músculos, e vos mostrar como, unicamente do fato de, os espíritos que estão no cérebro se apresentarem para entrar em alguns nervos, eles têm a força de mover, no mesmo instante, algum membro” (DESCARTES, [1633] 2009, p.132).

Os espíritos animais, todavia, convergem para si uma importante função, neste conceito de corpo instaurado por Descartes. A possibilidade que arriscamos em tomar como fundamental no pensamento de Descartes é a de que os espíritos animais, abrigados no corpo, seria o ponto de mediação entre corpo e alma, ou entre corpo e humores, corpo e pensamento, corpo e paixões ou afetos. Esta nos parece ser a perspectiva perseguida por Descartes. O filósofo promove nesta investida, a seguinte linha de raciocínio: Ora, se os espíritos animais dizem respeito àquele vento ou chama mais sutil, estando os espíritos animais em constante movimento no corpo, este possuirá 7

seus músculos, que podem fomentar ou não, uma força capaz de enrijecê-los de acordo com o movimento dos espíritos animais abrigados no corpo. Nesta perspectiva, aos espíritos animais é atribuída uma

posição

muito

importante,

pois

este

corpo

simplesmente se move, desde que os espíritos animais possam “escoar” do cérebro para os nervos, e assim interferir no movimento dos membros. Assim nos orienta a pensar Descartes quando se refere à relação entre espíritos animais, nervos, cérebro, e por fim, todo movimento do corpo, que realiza seus gestos “somente pela força dos espíritos animais que escoam do cérebro para os nervos” (DESCARTES, [1633] 2009, p.137). Mais adiante, Descartes evidencia a relação entre os espíritos animais e os membros do corpo humano: “os espíritos animais podem causar alguns movimentos em todos os membros onde alguns nervos têm suas terminações” (DESCARTES, [1633] 2009, p.138).

Dos espíritos animais à alma Todavia, o percurso dos espíritos animais como um “vento ou chama muito sutil” (DESCARTES, [1633] 2009, p.137) que governa os movimentos do corpo e seus membros, coincide mais precisamente ao que os sentidos, enquanto

capacidade

da

percepção

e

sensibilidade,

possuem de importante na recepção dos objetos externos e no modo de atingir a alma. A descrição e as observações daí decorrentes da relação, a saber, a relação entre os espíritos animais

e o aparato sensorial

do corpo humano, é

evidenciada como perspectiva e interesse de Descartes em uma precisa passagem: “os espíritos animais seguem seu 8

curso através dos poros do cérebro, e como esses poros estão dispostos, quero vos falar aqui, particularmente, de todos os sentidos” (DESCARTES, [1633] 2009, p.142). Neste momento do texto de Descartes, temos uma rica conjunção de descrições, um a um, de cada sentido e sua condição de recepção dos objetos externos, uma minúcia de certo muito perspicaz. Contudo, é neste contexto de tentativa de recurso de observação, em tomar o aparato sensorial como ponto de movimento em relação aos espíritos adiante

animais, que acabamos sendo levados mais ainda

do

simplesmente

aparato

sensorial,

e

observar, a partir da leitura de Descartes, ao que os espíritos

animais

também

interferem:

a

saber,

os

sentimentos. E deste modo nos aproximar daquela relação que fundamenta nossa interpretação, e que aponta para a possibilidade de que os espíritos animais em Descartes ocupam posição de mediação da relação entre o corpo e alma. Por outro lado, Descartes procura também nesta parte do Tratado que versa sobre O Homem, em sua compreensão de unidade entre corpo e alma, o interesse em demarcar que neste corpo ao qual temos uma minuciosa descrição de seu funcionamento, há uma possibilidade de unir-se a uma alma racional. O que pode nos levar para a decorrência adversa desta afirmação, a saber, a leitura de que, uma vez podendo esse corpo unir-se a uma alma racional, existirá então a possibilidade desde corpo ser também desprovido de uma alma racional. Vejamos a seguinte passagem do texto de Descartes relacionada a este momento de nossa leitura: “Quando Deus, unir uma alma racional a essa máquina (...), ele lhe dará sua sede principal no cérebro e a fará de tal natureza que, de acordo com

9

as diversas maneiras pelas quais serão abertas as entradas dos poros que estão na superfície interna desse cérebro por intermédio dos nervos, ela terá diversos sentimentos” (DESCARTES, [1633] 2009, p.143).

Ora, se os espíritos animais movimentam-se do cérebro

aos

nervos,

movendo

os

membros

que

se

estruturam nos limites do corpo humano, Descartes nesta passagem dá um passo adiante em demarcar que ao percorrer os limites do corpo, os espíritos animais incidem de modo mediador nos sentimentos aos quais somos tomados. Isto significa: a provocação de sentimentos na alma, causados pelo movimento, força e intensidade destes chamados espíritos animais em nosso corpo. E justo neste ponto a relação corpo, espíritos animais e alma, começa a ganhar outro ajunte. Contudo, devemos avançar um pouco mais na leitura de Descartes na direção de uma melhor precisão da nomeação de “espíritos animais” e sua circunscrição no corpo,

e

nos

compreensão

possibilitar de

que

tais

um

ponto

espíritos

de

mediação

animais

à

também

incidem, por intermédio do próprio corpo, no modo como os sentimentos nos sobrevêm, de maneira a encontrarmos uma perspectiva de unidade entre corpo e alma, enquanto cisões conceituais, na leitura que fazemos de Descartes. Por sentimentos Descartes toma como exemplo a medida e intensidade destes espíritos animais a partir da compreensão de que, uma vez que a estrutura do corpo humano,

que

ele

associa

ao

funcionamento

de uma

máquina, retrai seus nervos abruptamente, de modo aos espíritos animais incidirem de outra maneira no cérebro, isto dará alma, por exemplo, o sentimento de dor. Assim compreendemos a leitura da seguinte passagem: 10

“Assim, primeiramente, se os filetes que compõe a medula desses nervos forem puxados com tanta força que eles se rompam e se separem da parte à qual estavam unidos, de forma a estrutura de toda a máquina se torne de alguma maneira menos completa, o movimento que eles causarão no cérebro dará ocasião à alma, à qual importa que o lugar de sua permanência se conserve, de ter o sentimento de dor” (DESCARTES, [1633] 2009, p.143-4).

Em outra camada de compreensão identificamos a precisa

relação

entre

o

que

Descartes

chama

de

“movimento no cérebro”, e com o que corresponde na alma como possibilidade de dar “ocasião à alma” deste ou daquele sentimento. O que nos chama a atenção é que Descartes

afirma

que,

como

causa

dos

sentimentos,

teremos então esta oscilação e movimento no corpo dos tais espíritos animais. O que leva o filósofo à constatação de que mesmo

o

sentimento

da

dor,

enquanto

sentimento

provocado na alma, e também o sentimento de “volúpia corporal”, que pode ser compreendido como “cócegas” na alma, possuem enquanto causa o mesmo. A saber, o corpo e movimento e intensidade dos tais espíritos animais, entre dor e “cócegas” na alma, possuem uma e mesma origem, no entanto seus efeitos sobre a alma sejam precisamente muito distintos. Segundo Descartes, para recorremos com melhor precisão aos termos utilizados pelo filósofo: “um testemunhando

movimento a

boa

no

cérebro

constituição

dos

que, outros

membros, dará ocasião à alma de sentir uma certa volúpia corporal que chamamos de cócegas, e que, como vós vereis, estando muito próxima da dor em

11

sua causa, é totalmente contrária ao seu efeito” (DESCARTES, [1633] 2009, p.144).

As paixões da alma em Descartes: o nexo corpo, alma e espíritos animais A indicação precisa da posição dos chamados espíritos animais como participantes do movimento do corpo para Descartes, entendemos ser o percurso do pensador na obra O tratado do homem no intuito de demonstrar que a força e intensidade da agitação destes espíritos no corpo correspondem a certos movimentos no próprio corpo, bem como sua recepção de objetos por mediação do aparato sensorial, e que envolvem, todavia, a oscilação dos espíritos animais no corpo. Contudo, pretendemos a partir de agora, indicar outro percurso de pensamento que se articula como um todo na filosofia de Descartes, acerca da relação entre corpo e alma, ao passo que até este momento, através da leitura do Tratado do homem, realizamos um movimento de pensamento que investiga o conceito do que sejam estes tais espíritos animais, que atendem pela designação de um movimento ou chama muito sutil em constante circulação no corpo, como encontramos nesta passagem de Descartes em que ele afirma: “sabe-se que todos esses movimentos dos músculos, assim como todos os sentidos, dependem dos nervos, que são como pequenos fios ou como pequenos tubos que procedem, todos, do cérebro, e contêm, como ele, certo ar ou vento muito sutil que chamamos

espíritos

animais”

(DESCARTES,

[1649]1998. Art. 7).

12

Nesta direção, a partir da leitura, sobretudo da primeira

parte

do

Tratado

das

Paixões

da

Alma,

o

movimento descrito nos parece tomar um ponto de partida oposto ao Tratado do homem, se nesta obra o corpo é ele mesmo

pormenorizado,

partes,

sensações

distintas

descritas, nos parece que nas Paixões da alma, a intenção é tomar como ponto de partida a própria alma, que é a casa das paixões, e que em suma não é corpo, e se familiariza com o pensamento. Todavia, Descartes aponta para uma posição em que a indicação da cisão e distinção da natureza do corpo e da natureza da alma, possuem sua tensão na mediação da agitação dos espíritos animais nas paixões. Sendo as paixões o nexo umbilical e o que em sua metafísica lemos como a relação entre corpo e alma. Contudo, para que melhor possamos compreender o lugar e natureza dos espíritos animais cabe-nos agora delimitar de que lado tende a natureza destes espíritos. Por um lado, se nesses espíritos situamos o ponto de mediação entre corpo e alma, por outro, a sua natureza, como nos afirma Descartes, é a condição de serem corpos, como nos demonstra essa passagem ao Tratado das Paixões: “o que denomino aqui espíritos não são mais do que corpos, e não possuem qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito pequenos e se moverem muito depressa, assim como as partes da chama que sai de uma tocha; de sorte que não se detêm em nenhum lugar e, à medida que entram alguns nas cavidades do cérebro, também saem

outros

pelos

poros

existentes

na

sua

substância, poros que os conduzem aos nervos e daí aos músculos, por meio dos quais movem o corpo em todas as diversas maneiras pelas quais esse pode ser movido” (DESCARTES, [1649]1998. Art. 10).

13

Nesta direção, o movimento destes espíritos no corpo, para Descartes, precisa ser identificado quanto às suas causas, isto é, o que pode influenciar a disposição destes espíritos desta ou daquela maneira. E é justo neste ponto que encontramos uma indicação do nexo entre corpo e alma via espíritos animais. Descartes afirma que, uma das causas dos espíritos moverem-se desta e não daquela maneira, é a alma: “a ação da alma, que é verdadeiramente em nós uma dessas causas” (DESCARTES, [1649]1998. Art. 12). A disposição dos espíritos no corpo terá também como causa a “diversidade dos movimentos excitados nos órgãos dos sentidos por seu objetos” (Art. 12), e por fim como causa dos movimentos dos espíritos o seu percurso através do cérebro, músculos e nervos. Neste sentido, Descartes aponta para a compreensão de que também os objetos externos que nos chegam por mediação da sensibilidade, na medida que ultrapassam a sua condição de sensação diante de objetos, nos chega até a alma enquanto pensamento, não de outra maneira senão através da representação. Isto é, tudo que nos chega primordialmente através dos sentidos, é posto para a alma por meio da representação. Em outros termos poderíamos afirmar que os objetos externos, como também os apetites internos, promovem certo movimento e agitação dos espíritos animais no corpo e que esta agitação dos espíritos provoca a alma a tomar o objeto ou o apetite, por meio de uma representação, sendo esta representação o que produz na alma os sentimentos. De acordo com o filósofo: “é fácil conceber que os sons, os odores, os sabores, o calor, a dor, a fome, a sede e, em geral, todos os objetos, tanto dos nossos demais sentidos externos como dos nossos apetites internos, excitam também alguns movimentos em nossos nervos, que

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se transmitem por meio deles até o cérebro; e além de esses diversos movimentos do cérebro fazerem com

que

a

alma

tenha

diversos

sentimentos”

(DESCARTES, [1649]1998. Art. 13).

Assim, o movimento descrito por Descartes, de representação

dos

objetos

ou

apetites

naturais

por

mediação da agitação dos espíritos e que incide até a alma, nos aproxima, sobretudo de sua compreensão acerca da articulação entre corpo e alma que é caracterizada também como percepção. Percepção será então outro contorno ou ajunte do que chamamos paixões, sendo as paixões não tão e simplesmente corpo, ou tão somente pensamento, mas o ajunte entre corpo e alma. Segundo Descartes, as nossas percepções serão de duas espécies; “umas têm a alma como causa, outras o corpo” (DESCARTES, [1649]1998. Art. 19). Às percepções relacionadas ao corpo, designamos os “apetites naturais” ou “afecções” (Art. 24), que sentimos através do corpo. Sendo as percepções relacionadas à alma, as paixões como a alegria ou a cólera. Assim, Descartes entende que tais percepções, seja por intermédio do corpo ou pela alma, podem ser “verdadeiramente paixões com respeito à nossa alma” (Art. 25), mas que a proposta neste trabalho é abordar com certa restrição as paixões mais vinculadas

à

alma,

o

que

podemos

designar

como

sentimentos ou emoções. E que o “curso fortuito dos espíritos”

(Art.

25)

incide

de

maneira

decisiva

na

provocação desta ou daquela paixão na alma, que para Descartes é uma percepção. É nesta direção que Descartes pretende encaminhar a sua definição do que sejam as paixões da alma, sobretudo a partir de sua compreensão das paixões como percepção e o lugar dos espíritos animais em sua definição das paixões. Assim lemos no Tratado das Paixões: 15

“Depois de haver considerado no que as paixões da alma diferem de todos os seus outros pensamentos, parece-me que podemos em geral defini-las

por

percepções,

ou

sentimentos,

ou

emoções da alma, que referimos particularmente a ela, e que são causadas, mantidas e fortalecidas por algum

movimento

dos

espíritos”

(DESCARTES,

[1649]1998. Art. 27).

Justamente neste ponto, encontramos

uma das

passagens na obra de Descartes em que a posição ocupada pelos espíritos animais como mediação entre corpo e alma possui o estatuto de condição necessária para o surgimento das diversas paixões na alma, de maneira que os espíritos animais são lançados à posição de causa das percepções ou paixões da alma, e não somente encontram-se na posição de causa como também participam, todavia, do ciclo que envolve cada paixão específica, de modo que Descartes chega também a afirmar que as paixões são causadas “sustentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos” (Art. 29).

Da noção de espíritos animais como neuromediadores Uma associação levantada, e que precisa ser melhor investigada, é a indicação de que os espíritos animais descritos

por

Descartes

se

aproximam

do

que

as

neurociências modernas irão chamar de neuromediadores. É no texto de Claudia Murta que encontramos esta indicação: os “espíritos animais seriam os equivalentes aos nossos atuais neuromediadores” (MURTA; MAMERI, 2009, p.47). Para que possamos melhor compreender alguns dos traços

dessa

associação

entre

espíritos

animais

e 16

neuromediadoores, faz-se necessário, fazer um recuo em relação aos pressupostos da filosofia de Descartes. De acordo com o que encontramos no texto da filósofa e psicanalista Murta, em seus estudos a partir de Descartes, a filosofia cartesiana se inscreve, sobretudo quando começa a empreender o estudo das paixões, desde a

perspectiva

da

fisiologia

mecanicista,

como

um

importante traço de sua filosofia mecanicista, na qual uma específica noção de organismo é instaurada. Nesta direção, “A concepção cartesiana de organismo inscreve-se no quadro da filosofia mecanicista, que tem como postulado fundamental a interpretação da natureza em termos de matéria e movimento” (p. 39). Ora, a noção de espíritos animais na filosofia de Descartes irá atender, a estes dois traços conceituais: matéria e movimento. Como causa da possibilidade de gerar esta ou aquela paixão na alma, encontramos uma base material, a saber, os espíritos animais que ocupam lugar importante no estudo das paixões da alma e do corpo. Mais adiante nos indica Claudia Murta a respeito da posição importante dos espíritos animais no contexto da filosofia de Descartes que toma mais como referência a física

e

as

ciências

naturais,

diferente

da

tradição

escolástica, que tomava a matemática como principal referência. Deste modo, encontramos a seguinte passagem a respeito do texto cartesiano: “Assim, as explicações cartesianas sobre as funções do organismo tomam por base a física (...) Nos textos que se voltam para o estudo dos seres vivos, as partículas nomeadas espíritos animais estão na base de todo o processo de locomoção e de percepção do homem: elas são produzidas no cérebro e daí vão para os nervos, possibilitando

17

tanto a locomoção como a sensação. (...) Tudo se reduz a partículas em movimento, quantitativamente diferentes, que se chocam e estão na base do funcionamento do organismo” (MURTA; MAMERI, 2009, p.39).

Nesta direção, a associação da noção de espíritos animais

com

o

que

as

neurociências

chamam

de

neuromediadores, ganha uma melhor contextualização, a medida

que

compreendemos

o

traço

de

matéria

e

movimento que perpassa a filosofia cartesiana. Um preciso trecho a respeito dos espíritos animais como corpos, físicos, materiais, partículas, encontramos no Tratado das Paixões, e nos parece este ser um ponto de partida para uma melhor investigação

a

respeito

dos

neuromediadores

e

sua

associação com a noção de espíritos animais, o que seria tema para outro estudo. A passagem de Descartes a qual nos referimos é a seguinte: “o que denomino aqui espíritos não são mais do que corpos e não possuem qualquer outra propriedade, exceto a de serem corpos muito pequenos e se moverem muito depressa....” (DESCARTES, [1649]1998. Art. 10). Desta maneira, encontramos nos espíritos animais, a base física e material da filosofia de Descartes, de modo a situar a agitação destes espíritos no corpo como o ponto de precipitação na alma do universo das paixões. Assim como nos indica o texto de Cláudia Murta a respeito da posição dos

espíritos

animais

empreendimento pesquisadora:

no

“Os

na

teoria

estudo

das

espíritos

cartesiana paixões,

animais

são,

em

seu

segundo na

a

teoria

cartesiana, os elementos materiais, cuja movimentação permite à alma sentir a paixão” (MURTA; MAMERI, 2009, p.47).

18

A glândula pineal como sede da alma: neurofisiologia cartesiana Com sua perspectiva de investigação do corpo como parte de um projeto filosófico mais amplo de compreensão do dualismo corpo e alma, investindo a fundo em uma concepção do corpo através da via da fisiologia e da anatomia, sendo um dos protagonizadores destas áreas de investigação do corpo humano na modernidade, Descartes acredita encontrar uma base material para assentar a sua tese de que a alma se encontra alojada no corpo humano, e a relação entre corpo e alma é mais íntima do que acreditavam os antigos. Através das minúcias do corpo humano, encontradas no Tratado do Homem, e depois no Tratado das Paixões, o filósofo francês admite ser a chamada “glândula pineal” a base bioquímica na qual estaria abrigada a alma. Para as modernas ciências do corpo humano como a neurociência, pode

parecer

ultrapassada

a

ideia

dessa

glândula

promovida por Descartes. Por

outro

lado,

no

artigo

La

neurofisiología

cartesiana: entre los spiritus animalis y el conarium, encontramos uma indicação que aponta para outra direção, a de que não podemos subestimar o valor de tais investigações promovidas por nossos antecessores. Esta passagem do artigo nos demonstra mais claramente o que com isto estamos querendo afirmar: “Cuando se intenta estudiar cual es el concepto que nuestros predecesores en el tiempo tenían del cuerpo humano y su funcionamiento más íntimo, siempre se suele caer en el error de considerarlos

ampliamente

rebasados,

distorsionados o limitados, desde la ciega seguridad

19

que la tecnología y la ciencia actual nos han dado” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p. 2).

O trabalho dos pesquisadores de Madrid, Francisco López,

Cecilio

Alamo

e

Pilar

Garcia,

promove

uma

investigação muito boa sobre o tema dos espíritos animais em Descartes, impressiona pela riqueza da pesquisa. E nos apresenta essa perspectiva que procura demonstrar que na atualidade aparecem diversos “paralelismos” entre as ideias do filósofo francês e os estudos da neurociência moderna.

Como

demonstra

o

artigo

a

respeito

da

“neurofisiología cartesiana”: “Aunque más conocido desde la vertiente de la filosofía, Descartes elaboró un completo cuerpo doctrinal en materia fisiológica de gran influencia en su

época.

Pero

incluso,

prescindiendo

de

sus

consideraciones filosóficas en relación con el alma, en la actualidad se siguen apreciando asombrosos e inquietantes paralelismos entre las propuestas del filósofo

francés

y

descubrimientos

en

materia

neurocientífica habidos durante el pasado siglo XX” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p. 2).

Boa parte destes “paralelismos” apontados deve-se à concepção cartesiana de sua visão a respeito do lugar da alma levando em consideração a sua fisiologia, que encontra na sua noção de glândula pineal, o local da alma no corpo. O interior do cérebro seria onde encontraríamos a glândula pineal. O importante a observar é que historicamente toda a visão inaugurada por Descartes na modernidade a respeito do corpo humano, e sua relação com a alma, investe caminhos de investigação plenamente inovadores para a neurociência

moderna,

e

que

deve

ser

levado

em 20

consideração como bem o demonstra o artigo sobre a neurofisiologia cartesiana citado na passagem anterior. E esta possibilidade de inovação na visão de Descartes nos causa espanto e curiosidade, em aprender com o filósofo o que seriam estes “espíritos animais” que atravessam o corpo humano tendo como ponto aglutinador essa chamada “glândula pineal”, sede a alma. O filósofo procura explorar sua ideia a respeito da glândula pineal no tópico do tratado das Paixões de nome “Como se conhece que essa glândula é a principal sede da alma”, justificando sua ideia através de observações a respeito da fisiologia humana. Neste

importante

tópico

Descartes

afirma

que

“imagens ou outras impressões se reúnem nessa glândula”, o que indica a importância da glândula pineal em seu sistema filosófico e fisiológico, que funciona como ponto mediador do plano sensorial com o mundo exterior. Encontramos essa indicação também em outro trecho que Descartes afirma: “Crer que este corpo (a glândula pineal) preside a passagem do espírito.” (DESCARTES, [1649]1998. Art. 32) Para o filósofo francês, a glândula pineal constituíase como a base física de sua concepção filosófica a respeito da

relação

corpo

e

alma.

Segundo

o

artigo

La

neurofisiología cartesiana entre los spiritus animalis y el conarium mencionado, uma das inovações trazidas por Descartes aparece-nos em virtude de que: “el papel fisiológico desarrollado por los espiritus animales y por la glándula pineal como responsables de la correcta comunicación entre la máquina humana y su entorno, ejerciendo de resorte íntimo en el control del exacto funcionamiento del

21

cuerpo humano” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p. 2).

Antecedentes históricos Descartes

não

somente

apresenta

conceitos

inovadores sobre o corpo com seu sistema filosófico, mas também carrega uma perspectiva, em seus contornos de definições, que assimila noções que já habitam desde há tempos a história da filosofia. Segundo o artigo sobre a neurofisiologia

cartesiana

anteriormente,

quando

ao

qual

procuramos

nos na

referimos

história

do

pensamento ocidental algo a respeito do corpo humano, não o devemos procurar na medicina, mas sim na filosofia: “Las primeras aproximaciones científicas al conocimiento del funcionalismo cerebral hay que buscarlas no en el ámbito de la medicina y anatomía, sino en el de la filosofía, y siempre ligadas al concepto dicotómico cuerpo-alma” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p.2).

Desde a antiguidade clássica encontramos indícios de aproximação conceitual e filológica em relação aos espíritos animais propostos por Descartes. As noções a respeito da alma são conhecidas desde a antiguidade clássica. A compreensão de que a alma, a “psykhé”, é algo completamente distinto em relação ao corpo era comum aos filósofos deste período. Tema não somente abordado pelos grandes filósofos da antiguidade clássica, como também antes mesmo por alguns filósofos pré-socráticos. As noções de alma, associada ao ar como um dos princípios vitais à vida, também encontrada na abordagem 22

cartesiana – “certo ar ou vento muito sutil que chamamos espíritos animais” (Descartes, As paixões da alma) –, já fora citada por diversas maneiras na antiguidade. Para Aristóteles, segundo os estudos do artigo citado, “al cerebro no sería sino una simple glándula que secreta moco o pituita a través de la nariz” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p. 2) O autor menciona também outros filósofos que participam do debate na antiguidade a respeito da problemática da natureza da alma e do corpo: “cabe mencionar a Alcmeón de Crotona (540-500 a.C.). Ya en el siglo VI a.C., este filósofo présocrático admitía la presencia de poros y canales en el cerebro y órganos sensoriales. Demócrito de Abdera (ca. 460 - ca. 370 a.C.), físico presocrático también, defendía la existencia de átomos vitales o psíquicos en perpetuo movimiento dentro de los poros de distintos órganos y tejidos. (...) las teorías de Anaxímenes (585-524 a.C.) sobre el aire como principio vital…” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p.3).

As noções empreendidas por Descartes atestam o legado da tradição filosófica inaugurada na antiguidade, como as tentativas de elaborar conceitos e descrições do funcionamento do corpo humano que pudessem articular laços mais precisos entre a dinâmica da vida psíquica e a percepção sensorial. É neste dilema de encontrar justificativas para estas relações

que

encontramos

indícios

de

antecedentes

históricos na abordagem cartesiana. Especificamente em relação ao ar como responsável pela vitalidade do corpo, fundamental em sua noção a respeito dos espíritos animais. Mais adiante no artigo sobre a neurofisiologia cartesiana encontramos importantes demonstrações de que 23

as principais noções cartesianas a respeito da relação corpo e

alma

fundamentam-se,

além

da

originalidade

na

abordagem, em noções que os antigos gregos já haviam iniciado

um histórico

de discussão e formulação

de

conceitos. Surpreende-nos até mesmo a indicação de que mesmo a noção mais específica a respeito dos espíritos animais, encontra antecedentes etimológicos que apontam para a sintonia de Descartes com o pensamento da tradição: “Para estos autores, el aire, una vez dentro de los seres vivos, se transformaría en pneuma (spiritus, en latín). Erasístrato comenta como el aire (pneuma cósmico), una vez transportado de los pulmones al corazón es transformado en el órgano cardiaco en pneuma zootikon (spiritus vitalis, en latín), para ser, posteriormente, vehiculizado, a través

de

la

sangre,

al

cerebro,

donde

se

transformaría, dentro de los ventrículos cerebrales, en pneuma psychikon (spiritus animalis, en latín). Por su parte, Herófilo propuso la teoría, perdurable casi hasta la época de Descartes, de que la glándula pineal ejercía funciones de control valvular, a modo de esfinter, regulando el flujo del pneuma psychikon desde el ventrículo medio al ventrículo posterior….” (LÓPEZ, ÁLAMO, GARCIA, 2010, p. 3).

O aparecimento da expressão “pneuma psychikon”, que em latin corresponde à expressão tão cara a Descartes, como vimos, “spiritus animalis”, já existia entre os gregos. Isso nos demonstra a proximidade das ideias que nos encontramos primeiramente por meio da fisiologia expressa a partir dos pressupostos filosóficos de Descartes, e que na passagem acima, são elucidados desde a perspectiva da

24

gênese histórica dos principais conceitos a respeito do corpo, empregados pela tradição filosófica. Este caminho etimológico nos oferece um curioso caminho de leitura, nos levam a importantes associações dos termos encontrados na linguagem de Descartes, e que como estamos nos deparando, eram comuns a alguns pensadores da antiguidade clássica. O “vento muito sutil” ao qual se referia Descartes, indicando-o como princípio vital à vida, se refere àquilo que era conhecido entre os gregos antigos como “pneuma”, que como vimos em latin significa “spiritus”. O ar, a totalidade do ar, de maneira geral, era chamado de “pneuma cósmico”. Este ar quando nos seres vivos participando da vigência e vitalidade da vida, quando chega ao corpo esse “pneuma” se transforma em “pneuma zootikon”, que na língua latina significa “spiritus vitales”. “Pneuma zootikon” acontece quando o “pneuma cósmico” adentrando no corpo garantindo sua vitalidade, passa pelos pulmões e coração. Depois este “pneuma” (ar, espírito) quando chega ao sangue e ao cérebro, passa a se chamar justamente “pneuma psychikon.” Observamos

que

para

os

antigos,

os

espíritos

animais aparecem quando o “pneuma” chega ao sangue e ao cérebro, e Descartes procura encontrar um lugar mais preciso por onde estes espíritos animais passam, e após o seu percurso pela fisiologia, investigando as minúcias e pormenores do aparato de funcionamento do corpo humano e sua dimensão sensorial, Descartes investe no recurso de base anatômica localizando a alma no interior do cérebro, dando no nome de glândula pineal. E desta maneira, acaba abrindo caminhos para a neurociência moderna. Assim, a neurofisiologia cartesiana de pressupostos filosóficos oferece ainda hoje, preciosas 25

descrições a respeito do corpo na modernidade e que têm despertado entre pesquisadores e profissionais das áreas de medicina, psiquiatria, psicologia, neurofisiologia e filosofia, variados

interesses

e

busca

de

perspectivas

de

compreensão, principalmente de noções como “espíritos animais” e “glândula pineal”, desenvolvidas por Descartes.

Espíritos animais, glândula pineal, melatonina e luz na retina Todo esse debate em torno do funcionamento do corpo promovido na modernidade, do qual o filósofo René Descartes é figura importante, encontramos no percurso de estudo ao qual estamos conduzindo, indicações não só de assimilação de conceitos a respeito do tema do corpo humano a partir de alguns pressupostos encontrados na tradição filosófica, mas também, subsídios científicos para tentar

compreender

melhor

e

mais

detalhadamente,

aspectos mais relevantes de seu funcionamento. Em outro trabalho desenvolvido pelos pesquisadores espanhóis, F. López, do Departamento de Farmacologia, Faculdade de Medicina, Universidade de Alcalá, juntamente com F. Marín, do Departamento de Biologia Celular, Universidade Complutense de Madrid, encontramos com mais detalhes, a aproximação das noções de “glândula pineal” e “espíritos animais”. Estamos nos referindo ao artigo El devenir histórico de la glándula pineal: II. De sede del alma a órgano neuroendocrino. Logo

ao

início

do

artigo

dos

pesquisadores

espanhóis, encontramos afirmações de que apesar de ter ficado um bom tempo de lado a questão da glândula pineal, desprovida de funcionalidade, chegando por um largo 26

período histórico ao absoluto esquecimento científico, essa investigação a respeito do funcionamento dessa glândula volta a tomar destaque a partir da segunda metade do século

XIX.

Segundo

passagem

do

artigo

citado,

importantes descobertas sobre o que Descartes chamava de “glândula pineal” trouxeram o assunto para tomar grande importância na neurociência moderna. “Finalmente, a partir de la segunda mitad del siglo xix comenzó la ruptura definitiva con esa etapa precientífica del conocimiento de la glándula pineal y se inició el período de análisis científico, tal como lo conocemos hoy en día, sobre la naturaleza de este órgano, que culminaría con la evidente confirmación de su naturaleza endocrina tras el aislamiento de la melatonina, en 1958, por el equipo de Aaron B. Lerner (1920-2007).” (LÓPEZ, MARÍN, ÁLAMO, 2010, p.1).

Importantes avanços e descobertas a respeito do tema neste período levantam novamente o olhar científico diante da natureza e funcionamento da glândula pineal, levando a pesquisa científica a voltar atenções para aquilo que Descartes afirmava ser a sede física e material da alma no corpo. Esta nova perspectiva diante da glândula pineal, deixa

de

ser

somente

compreendida

desde

seus

pressupostos metafísicos, e toma mais lugar e importância como aspecto fisiológico do corpo humano durante o século XX. Segundo o artigo consultado, três fatores influenciaram a etapa científica a respeito da natureza e funcionamento da glândula pinel a partir da segunda metade do século xx, como nos demonstra na seção do artigo de nome La glándula pineal como órgano neuroendocrino: 27

“Hacia la mitad del siglo xx concurrieron tres eventos científicos de enorme importancia, que hicieron posible el impresionante avance habido en la investigación pineal desde mediados de la década de lós sesenta: la publicación, en 1954, del libro titulado The pineal gland por parte de Mark D. Altschule y Julian Kitay, de la Universidad de Harvard; el aislamiento de la melatonina, en 1958, por Lerner et al, de la Universidad de Yale; y el descubrimiento estaba

de

que

directamente

este

órgano

controlado

endocrino

por

factores

ambientales externos [29-31].” (LÓPEZ, MARÍN, ÁLAMO, 2010, p. 4 e 5).

Estes

fatores

compreensão

da

importância,

pra

realizaram

glândula

a

pineal

assegurar

passagem

como

sua

real

órgão

da sem

natureza

de

funcionamento de propriedades fisiológicas, chegando ao moderno conceito de “transductor neuroendrocrino”. O que apresenta

a

noção

de

que

a

glândula,

apresenta

propriedades de mediação, atuando como um importante neurotransmissor, que a partir da incidência de luz externa (o que justifica a hipótese da ação de fatores externos), gerando, segundo as pesquisas e descobertas apresentadas, a liberação do hormônio melatonina. Feito este percurso, desde a abordagem cartesiana a respeito da posição da glândula pinel em sua fisiologia associada aos seus pressupostos metafísicos, encontramos agora esta moderna visão científica, que teve como seus antecedentes de investigação, algo da fisiologia cartesiana. Chegando até a constatação de que a ação da luz, que chega

na

glândula

pineal

através

da

retina,

libera

importante neurotransmissor e hormônio responsáveis pela coloração da pele por exemplo. O que consiste de fato, em algo de propriedade vital ao ser humano. E mais adiante no 28

artigo dos pesquisadores espanhóis, acentuam-se alguns dos

desdobramentos

moderna

da

alcançados

glândula

a

partir

pineal

desta

como

visão

transdutor

neuroendócrino: “Con autores

este

concepto,

intentaron

explicar

los el

mencionados

principio

de

la

fisiología pineal, esto es, la transformación de la información

luminosa

externa

que

alcanza

la

glándula desde la retina, a través de un circuito nervioso, en una respuesta endocrina, consistente en la síntesis y liberación de la hormona melatonina, que,

a

su

vez,

actuaría

como

un

potente

neurotransmisor en el sistema nervioso central, haciendo del órgano pineal una especie de ‘reloj biológico’” (LÓPEZ, MARÍN, ÁLAMO, 2010, p.6).

A conclusão disso tudo, além de perceber que o conceito

daqueles

espíritos

animais

em

Descartes

encontrou certa continuidade e reformulação em sua etapa científica da glândula pineal, chegamos às constatações modernas de que essa glândula, agora reconhecido como transdutor neuroendócrino, além de liberar melatonina por meio da ação da luz na retina, pode ser identificada como órgão

de importante

e intensa

atividade

bioquímica,

responsável também pela liberação de outros importantes neurotransmissores,

como

noraadrenalina,

oxitocina,

serotonina, entre outros. A importância desse transdutor, antes conhecido como a glândula pineal proposta por Descartes, ou até mesmo a “pedra da loucura” na Idade Média, é que ela atua, modernamente compreendido, como um transdutor de sinais,

cumprindo

função

de

mediação

e

integração

sensorial com o mundo exterior, tendo como aspecto 29

regulador a incidências dos tais espíritos animais, assim como propunha o filósofo francês. Importante ressaltar esta abertura da investigação moderna da neurociência com os antecedentes históricos que encontram em Descartes um grande marco, e observar, a

identificação

moderna

dos

neurotransmissores

com

importantes propriedades no funcionamento do sistema nervoso

central.

Dos

espíritos

animais

aos

neurotransmissores como importantes mediadores entre a percepção sensorial e o mundo exterior encontrando posição de destaque na vitalidade do corpo, além de todas as etapas de compreensão destes “parelelismos” entre a fisiologia cartesiana e a neurociência moderna.

30

Referências: DESCARTES, R. O mundo (ou o Tratado da Luz) e O homem/ Apresentação, apêndices, tradução e notas: César Augusto Battisti, Maria Carneiro de oliveira. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, [1633] 2009. ______________As paixões da alma, in Os Pensadores, ed. Abril, Rio de Janeiro, [1649]1979. MURTA, C. MAMERI, J. Humanização, corpo, alma e paixões. Nead/UFES. Vitória/ES.2009. LÓPEZ, F. ÁLAMO, F. MARIN. El devenir histórico de La glándula pineal. II. De sede Del alma a órgano neuroendocrino. Rev Neurol (Madrid) 2010; 50: 117 -25. _______, __________, GARCIA P. La neurofisioloia cartesiana: entre los spiritus animalis y el conarium. Arch Neurocien (Mex) Vol. 15, nº: 179-193, 2010.

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