Da oficina à faculdade. Contornos do ensino e da ciência do desenho
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Da oficina à faculdade. Contornos do ensino e da ciência do 1
desenho Emília Ferreira 1. Um contexto economicamente favorável às artes “Del primo principio della scienza della pittura. Il principio della scienza della pittura è il punto, il secondo è la linea, il terzo è la superficie, il cuarto è il corpo che si veste di tal superficie, e questo è quanto a quello che si finge, cioè esso corpo, che si finge; perchè invero la pittura non si estende più oltre che la superficie, per 2
la quale se finge il corpo figura di qualunque cosa evidente.”
Foi na passagem do século XV para o XVI que o desenho começou, na zona central da Península Itálica, a deixar de ser visto como processo para ser considerado objecto final, com virtudes artísticas próprias e expressão de individualidade. Antes de 1500 os desenhos não haviam sido mencionados a não ser pelo seu valor prático, não sendo por isso assinados ou datados, a não ser em 3
situações de excepção . No século XV, com a expansão do mundo conhecido, abriram-‐se oportunidades de negócio e novas fortunas surgiram um pouco por toda a Europa. A influência das viagens, das encomendas e circulação de obras estendeu-‐se da Flandres aos países germânicos e à Suíça, chegando também a França, Espanha, Portugal e Itália. No que diz respeito a esta última, seria na Toscânia, com particular ênfase para Florença, que o desenvolvimento teria contornos mais inovadores,
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Texto do catálogo da exposição A Ciência do Desenho, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada, ISBN 978-‐989-‐728-‐002-‐3, 2012, p. 13-‐27. Nesta versão, repus o português anterior ao AO. 2
“Do primeiro princípio da ciência da pintura./O princípio da ciência da pintura é o ponto, o segundo é a linha, o terceiro é a superfície, o quarto é o corpo de que se veste de tal superfície, e isto é quanto àquilo que se finge, isto é esse corpo que se finge; porque na verdade a pintura não se estende além da superfície, sobre a qual finge a imagem de qualquer coisa evidente.” [A tradução para português é minha]. In DA VINCI, Leonardo, Trattato della Pittura di Lionardo da Vinci, Trato da un Codice della Biblioteca Vaticana e Dedicato a la Maestà di Luigi XVIII. Re di Francia e di Navarra, Roma, Nella Stamperia di Romanis, 1817, p. 49. 3
Cf. AMES-‐LEWIS, Francis, Drawing in Early Renaissance Italy, New Have and London, Yale University Press, 1981, p. 2.
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reflectindo o diálogo pictórico existente entre os mestres de várias regiões. Muitos aristocratas e burgueses, endinheirados pelas florescentes rotas comerciais, viviam então em prósperas cidades da península itálica, como Florença. Nesse contexto economicamente benévolo, multiplicaram-‐se as oficinas de inúmeros mestres. De acordo com Benedetto Dei (1418-‐1492), no último quartel do século XV havia em Florença um número tão significativo 4
destes estabelecimentos que permitia suprir as necessidades do mercado interno e alimentar a exportação. Sustentado pela abundância de dinheiro, o fausto alimentava a construção de edifícios religiosos e laicos, com os seus correspondentes elementos escultóricos e pictóricos, e exigia objectos de luxo que povoavam os quotidianos (sacros ou profanos) de famosos mecenas, como as famílias Medici, Tornabuoni, Strozzi, Portinari ou Vespucci. A procura diversificada e exigente desafiava a polivalência dos mestres e a passagem desses saberes aos aprendizes. A existência de oficinas especializadas não significa que não estivessem aptas a responder às diversas encomendas públicas e privadas. Destas saíam pinturas, esculturas, móveis lavrados, ex-‐votos, cofres, peças de cerâmica, peças de ourivesaria, gravuras, têxteis (estandartes, frontais de altar) ou trabalhos em couro. No entanto, começava já a existir uma diferenciação entre as artes, nascida do novo estatuto do artista que se distanciava do artesão. Assim, por exemplo, as artes consideradas mais nobres 5
eram a pintura, a escultura e a arquitectura . Aos seus cultores eram também 6
ensinados assuntos teóricos que sustentam a prática . No atelier do pintor, escultor e ourives florentino Andrea Verrocchio (1435-‐1488), as disciplinas ensinadas são orientados para a pintura, arquitectura e escultura, mas também 4
“[…] quarente ateliers de peintres, quarante-‐quatre d’orfèvres, plus de cinquante de sculpteurs, plus de quatre-‐vingt de menuisiers et d’ébanistes”. In DEBOLINI, Francesca, Léonard de Vinci,Trad. Denis-‐Armand Canal, Paris, Éditions de la Martinière, 2000, p. 10. 5 6
Deixam de ser vistas como artes mecânicas e passam a ser consideradas artes liberais.
Anatomia, perspectiva e cultura clássica. Para tanto, as colecções dos Medici, por exemplo, são preciosas no ensino. Entre as mais relevantes fontes iconográficas clássicas estavam os camafeus, as moedas e as esculturas. Cf. CHAPMAN, HUGO, “The development of drawing during the Italian Renaissance. The importance of classical art”, Fra Angelico to Leonardo: Italian Renaissance Drawings, London, The British Museum Press, 2010, p. 57 e segs.
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para a óptica (fundamental para a boa representação da luz e da sombra), 7
botânica e música . 2. Atenção ao real Neste alargado mercado da arte, a exigência de mimetismo será servida por um desenho rigoroso que lança mão de todos os utensílios possíveis para a melhor execução — e mesmo para a mais adequada reprodução, no momento em que a imprensa multiplica as possibilidades de reprodução da gravura (até então confinada à xilogravura), com particular incidência na matriz de cobre, que melhorará consideravelmente as possibilidades de rigor da composição. Em termos representativos, assiste-‐se simultaneamente a uma clara mudança de paradigma científico, filosófico e artístico. Na Flandres, artistas como os irmãos Hubert van Eyck (1366-‐1426) e Jan van Eyck (c. 1390-‐1441) começam a registar uma clara atenção aos pormenores, tanto da expressão de rostos e gestos, tratamento da luz e texturas, como no registo da natureza. Na pintura e na escultura, a atenção ao real substitui nessa época a figuração medieval de contornos hierárquicos e hieráticos, servida por uma codificação formal que pré-‐ determinava não apenas as composições como as personagens dessas narrativas e a sua importância relativa na economia da obra. Os corpos deixam de ser estilizados, passando a registar os traços particulares de cidadãos concretos. Também a pintura sacra se altera, ilustrando narrativas em que as personagens têm rostos individualizados e corpos que manifestam proporções reais. Assiste-‐ se ao ressurgimento do retrato e à recuperação das cenas mitológicas, bem como à criação do registo de imagens do quotidiano. O novo modelo inspirado na Antiguidade Clássica define-‐se como um Renascimento desse referente e diferencia-‐se em relação às criações dos séculos imediatamente anteriores. 3. Particularidades do desenho 7
Cf.. DEBOLINI, Francesca, op. cit., p. 12.
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No final do século XIV, no norte de Itália, o desenho começou a ter um 8
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protagonismo reconhecido e um evidente mérito oficinal e pedagógico . Em 1491, Andrea Mantegna (c.1431-‐1506) regista, a pincel sobre papel, a sua versão de Judite carregando a cabeça de Holofernes, num desenho assinado e datado, perfeitamente terminado, comparável em todos os aspectos ao nível de detalhe 10
e acabamento que o autor dava às suas pinturas . Porém, ainda em Itália, e apenas alguns quilómetros mais a sul, seria preciso esperar até ao final do século XV, para que esta disciplina se afirmasse de modo autónomo. Os registos existentes em torno do seu exercício focam técnicas e objectivos da sua instrumentalização como saber de apoio para a criação das peças artísticas de maior valor. São disso exemplo os escritos de Cennino Cennini (1370-‐1440), reunidos, no final do século XIV, no seu conhecido volume intitulado O Livro da Arte, que insiste na importância do desenho como método inicial (“Como já foi 11
dito, começa pelo desenho.” ), as Notas e o Tratado de Pintura, de Leonardo da Vinci (1452-‐1519), compilação de escritos do artista apenas dados à estampa muito depois da sua morte, e em que se apresentam inúmeros conselhos materiais e técnicos relativos às boas práticas da formação oficinal. Cennino Cennini insistia particularmente no exercício do desenho de aprendizagem a partir dos livros de modelos. Tratava-‐se de treinar a mão e assimilar conhecimento e tradição e como maneira de educar a visão a partir do gesto. Esses exercícios — que deviam começar por aspectos da realidade que
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Embora ainda restringido a um método de estudo, através da produção de cadernos de modelos, como os famosos do milanês Giovannino de Grassi (1350-‐1398) ou do veneziano Jacopo Bellini (1396-‐1470). 9
Sobre a evidência da prática do desenho entre os mestres medievais (e não apenas no final da Idade Média), embora com objectivos e métodos diferentes, ver HOLCOMB, Melanie, Drawing in the Middle Ages, New York, Metropolitan Museu of Art, Yale University Press, New Haven and London, 2009. 10
A relevância desta arte seria também mencionada num escrito do humanista de Pádua, Felice Feliciano (1433-‐1479). Em 1466, referiu a existência de “drawings and pictures on paper by many excellent masters of design”. In AMES-‐LEWIS, Francis, op. cit., p. 4. 11
In CENNINI, Cennino, Il Libro del Arte, tradução do italiano de Fernando Olmeda Latorre, Madrid, Akal, 1988, p. 36. [A tradução para português é minha.]
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agradassem ao autor — não eram ainda vistos como trabalho a preservar, mas como necessário tirocínio, sendo por isso realizados sobre superfícies 13
reutilizáveis, como tábuas de buxo ou de figueira . Esta prática, corrente desde a Idade Média, socorria-‐se de madeira ou de placas de cera ou de xisto como suporte para o ensaio do desenho. No entanto, Cennino trazia também uma novidade: a insistência de trabalhar a partir do natural. Antes porém de vermos como se processava o ensino dentro da oficina renascentista, detenhamo-‐nos brevemente na organização da profissão de artesão/artista. 4. Contornos profissionais Durante a Idade Média, a prática oficinal de qualquer artesão era regulada pela 14
Guilda (associação profissional ). Inicialmente associada também à actividade conventual, esta oferecia a aprendizagem de vários ofícios, da joalharia à iluminura, passando pela metalurgia e pela manufatura de vidro e vitral. É também possível que tenham saído dos saberes monásticos alguns projectos 15
para frescos e outras obras decorativas . Porém, nem todas as encomendas eram realizadas por clérigos nem promovidas por mecenas religiosos. A par da Igreja, as casas senhoriais e as cortes — e as próprias Guildas, com o seu poder económico — eram também importantes patronos. Com o crescimento das cidades e a necessidade de construção de catedrais, parte da mão-‐de-‐obra clerical especializada urbanizou-‐se e entrou também em contacto com os demais artesãos laicos, já organizados nos burgos. Na cidade, num meio laico, as profissões passavam, nesse caso, frequentemente de pais para filhos. Os aprendizes começavam o seu treino por volta dos 12 anos, 12
“Começa então a desenhar com cuidado as coisas mais agradáveis que te ocorram: assim irás acostumando a tua mão a mexer o apáro sobre a superfície da tábua […]”. In CENNINI, Cennino, op. cit., p. 38. [A tradução para português é minha.] 13
Cf. idem, p. 36 e segs.
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As Guildas surgem por volta dos séculos VIII-‐IX e regulam os métodos de aprendizagem. Cf. RUBENS, Godfrey, “Art education”, The Dictionary of Art, volume 2, ed. Jane Turner, London, New York, Macmillan Publishers Limited, 1996, p. 523. 15
Cf. HICKS, Carola, “Studio”, The Dictionary of Art, volume 29, ed. Jane Turner, London, New York, Macmillan Publishers Limited, 1996, p. 851.
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podendo ficar uma média de 7 anos a viver na casa do mestre (mesmo os que não eram da família). No fim, o seu trabalho era julgado pela Guilda que lhes passava um certificado de oficial e, uns anos depois, apresentada a obra-‐prima lhes poderia então conceder o título de mestres. No Renascimento, o modelo organizativo não mudou muito: as oficinas continuaram a ser lideradas por um mestre reconhecido, cuja assinatura observou contudo uma crescente e notória procura de mercado, atraindo inúmeros discípulos. Tal como na Idade Média, estes dispunham-‐se a um amplo tirocínio, entrando como aprendizes, passando a assistentes, até adquirirem o cobiçado estatuto de oficial e de mestre e de poderem montar as suas próprias oficinas e tomar discípulos. A grande novidade é que o ensino das artes deixa de se centrar numa manualidade repetidora de modelos para ganhar um carácter experimental e 16
uma componente teórica que se acentuará com o surgimento das academias . A esse espaço de convívio de artistas e humanistas só chegariam, porém, aqueles que já tivessem dado provas. O que significa dizer que a aprendizagem oficinal se iria manter, durante séculos, nos mesmos moldes existentes na Idade Média, 17
alterando contudo os pressupostos e os objectivos da prática do desenho — uma disciplina cuja relevância se tornava crescente. 5. Oficinas e ateliers Menos populosas do que as medievais, as oficinas renascentistas ofereciam também um treino mais flexível e variável. Um mestre podia ter um ou dois assistentes, embora alguns artistas, como o escultor Lorenzo Ghiberti (1378-‐ 1455), chegassem aos 25; Miguel Ângelo (1475-‐1564), pelo contrário, dispensava
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A academia apenas rivaliza com o atelier como local de ensino oficinal a partir do século XVIII. Mesmo assim, a Académie Royale continua a exigir uma aprendizagem inicial no atelier de um mestre. Cf. HICKS, Carola, op. cit., p. 855. 17
Sobre o modo de trabalhar dos artistas e as condições económicas, religiosas e políticas que os th rodearam e propiciaram a criação ver HARRIS, Ann Sutherland, 17 Century Art & Architecture, London, Lawrence King Publishing, 2005.
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assistentes, contratando-‐os apenas nas primeiras fases do corte dos blocos de pedra. As premissas eram estabelecidas pelo mestre, ainda que a obra final não saísse exclusivamente das suas mãos. A assinatura de um dado artista significava que o conceito, a supervisão e a responsabilidade eram suas, mesmo se fosse esculpida ou pintada, em grande parte, pelos seus discípulos mais avançados. Os contratos especificavam mesmo o grau de envolvimento que o mestre devia ter. No caso da escultura, era das mãos do mestre que saíam os modelos em barro que depois deveriam ser seguidos pelos assistentes, os mais habilitados entre os discípulos, que cinzelavam até ao momento de finalização da peça, quando o mestre tomava de novo o comando das operações. Os locais de trabalho, sobretudo para a pintura, deviam ter boa iluminação (sobretudo de norte), e estar preferencialmente num piso alto e equipados com instrumentos (como redes e espelhos) que ajudassem a definir o ponto de fuga como a servir para o auto-‐retrato. O interesse crescente na figuração fez com que os aprendizes posassem para os mestres, servindo de modelos (incluindo de nus). Os modelos de animais eram em geral carcaças esfoladas (revelando os músculos e toda a estrutura interna). Também os panejamentos eram cuidadosamente encenados e, por vezes, ensopados em soluções com cera, de modo a mais facilmente manterem a posição. Tudo isso exigia espaço, mas não várias divisões, podendo a mesma sala ser usada também para guardar telas, tintas e pincéis e mais materiais. Para a escultura, dado o peso do material, era preferível um estúdio térreo, com várias divisões de modo a manter o trabalho e os seus diferentes materiais isolados (barro, madeira, pedra...). Já vimos do que precisava um profissional e que características deviam ter os seus espaços de trabalho. Ora, é chegado o momento de sabermos como e o que se fazia lá dentro. 6. Livros de modelo Antes de Cennino, a maioria dos desenhos dos livros de modelos usados para a aprendizagem — esses, sim, feitos para durar, dados os seus fins pedagógicos — 7
não partiam da realidade, mas de outros desenhos. Cennino foi dos primeiros autores a aconselhar o aprendiz a fazer o seu trabalho a partir do natural. Se, no caso dos animais, sobretudo dos exóticos, é compreensível a necessidade de trabalhar sobre descrições ou livros de modelo, no caso do retrato era aconselhável tomar a imagem directamente do modelo. Com um elenco de elementos a integrar em composições mais alargadas, os livros de modelo eram receituários a seguir: desde posições e gestos das personagens, a expressões, panejamentos, figuração dos animais e elementos simbólicos actualizados (por vezes corrigidos), de acordo com as alterações de 18
gosto . Daí, também, a escassa diversidade que se encontra nas composições finais. No entanto, seguindo esses ensinamentos, o aprendiz alcançava, com o tempo e o exercício constante, o domínio do ofício, primeiro através da prática do contorno e depois do sombreado, a traços ou aguadas, e da experimentação de diversas técnicas e suportes. Ao longo de Quatrocentos, estes livros e o seu carácter codificado começaram a desaparecer. Entre meados do século XV e início do XVI, os livros de esboços foram substituindo os de modelo. 7. Livros de esboços e experimentação Uma nova prática, mais analítica, tornou ultrapassados os modelos fechados, as poses hieráticas e as representações simbólicas. Semelhante quadro garantiu uma maior auto-‐confiança reflectida numa produção gráfica personalizada, mais ágil, para a qual o treino de desenhar a partir do natural foi da máxima importância, e na qual o papel do mestre, embora essencial, não era redutor. A individualização e informalidade do processo de trabalho — que passou também a ser exercido sobre cadernos de esboços, folhas de papel soltas, economicamente mais acessíveis que tornavam a experimentação menos onerosa — também se reviram numa preferência pelas técnicas usadas por cada autor, dando lugar a uma gramática autoral. No Renascimento Pleno, esta 18
Cf. AMES-‐LEWIS, Francis, op. cit., p. 64.
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experimentação já era uma imagem de marca, oferecendo uma multiplicidade de soluções aos problemas com que os artistas se confrontavam. De qualquer modo, a criação de um banco de imagens permaneceu um importante método de estudo. Os mestres faziam a sua própria recolha (a vulgarização da gravura será determinante) e esse legado foi de suma relevância 19
para os seus discípulos e para a continuidade da linha da oficina . A sobrevivência de um maior corpus de desenho a partir do século XV não teve, como se percebe, apenas a ver com uma prática mais extensa, mas com o objectivo de, por razões tantas vezes contratuais, estes se destinarem a ser vistos fora das oficinas. Também não teve exclusivamente a ver com a vulgarização do papel, apesar de se tratar de um marco importante nesta história. Teve, sobretudo, a ver com o propósito de o desenho passar a ser vendido (correspondendo a um gosto do mercado), oferecido, apresentado como projecto aos potenciais compradores das obras finais. No século XVI, o desenho passou também a ter valor comercial, havendo registo de coleccionadores (fora da comunidade artística) que o adquiriam. Depois de Cennino, um dos primeiros artistas a integrar a observação directa no seu registo foi Antonio Pisanello (1395-‐1455). Recorrendo a livros de modelo mas também a cadernos de esboços e folhas soltas, soube integrar o trabalho a partir do natural, mesmo que o resultado — eminentemente mais mimético — ainda 20
mantivesse algum hieratismo ou formalidade pré-‐definida . Contudo, evidencia já um maior rigor, um mais claro realismo figurativo. 8. Informar o olhar, treinar a mão De modo a obter os resultados desejados, o ensino manterá normas claras. Vários mestres compilam os ensinamentos que pretendem passar aos discípulos. Na oficina de Verrocchio, mestre de Luca Signorelli (1445-‐1522), Domenico 19
“The dynastic nature of many Renaissance workshops meant that drawings constituted an important part of an artist’s legacy to his heirs, both as a means of continuing a familial style and as an aid to the preparation of finished works.” CHAPMAN, HUGO, “The function and survival of Italian fifteen-‐century drawings”, op. cit, p. 21. 20
Cf. AMES-‐LEWIS, Francis, op. cit., p. 76-‐77.
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Ghirlandaio (1149-‐1494), Pietro Perugino 1446/50-‐1523), Lorenzo di Credi (1459-‐ 1537) e de Leonardo, o método parte, mais uma vez, do desenho — insistindo-‐se na perspectiva e nas texturas, com ênfase em estudos de drapeados e flores, e ainda na modelação de barro. Também aí, e como já ia sendo prática corrente, os alunos serviam por vezes de modelos, desenvolvendo a agilidade manual e a capacidade de síntese do observado. Após o domínio destas técnicas, os discípulos experimentavam a têmpera e depois o óleo21. O próprio Leonardo, no seu Trattato della Pittura22, sistematizava o modo como o aprendiz deveria ser orientado de modo a tornar-‐se bom profissional. Tal como para Cennino, o desenho seria o seu ponto de partida. E sobretudo o de figura, cuja abordagem constitui toda uma “teoria da figura humana”23. Para Da Vinci, o discípulo deveria aprender perspectiva, as medidas das coisas, seguir os ensinamentos de um bom mestre, para bem se habituar ao requinte; desenhar do natural para confirmar o que havia aprendido, observar bem a obra dos 24
grandes mestres e praticar muito . Deveria fazê-‐lo sozinho (para não se distrair; embora o exercício acompanhado pudesse estimular a prática, pela vergonha da comparação), compreendendo a natureza do que desenhava. Deveria tratar de cuidar da iluminação, diversificar os temas (um autor que se especializasse não oferecia razões de interesse), não descurar a matemática e conhecer a anatomia. É notória a ênfase no exercício regular e sistemático a partir do natural, seja de objectos, arquitectura, animais, figura humana ou paisagem. O culto do rigor da imagem, o mimetismo e a dedicação extrema são obrigatórios. As novas figuras representadas evidenciavam características individualizadas. As posições 21
Cf. DICKENS, Emma, introdução de The Da Vinci Notebooks, London, Profile Books, 2005, p. 6.
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Existindo diversas versões deste tratado, dada a organização póstuma das notas de Leonardo, seguimos 3 edições, de modo a encontrar o máximo de informação possível e a esclarecer alguns conceitos e preceitos do autor. Assim, consultámos Emma Dickens, op. cit.; DA VINCI, Leonardo, Trattato della Pittura di Lionardo da Vinci, Trato da un Codice della Biblioteca Vaticana e Dedicato a la Maestà di Luigi XVIII. Re di Francia e di Navarra, Roma, Nella Stamperia di Romanis, 1817 e DA VINCi, Leonardo, Tratado de Pintura, edição preparada por Angel González Garcia, Madrid, Ediciones AKAL, 1993. 23
Sobre este assunto ver BORDES, Juan, Historia de las teorías de la Figura Humana: el dibujo/la anatomía/la proporción/la fisiognomía, Madrid, Cátedra, 2003, p. 23. 24
Cf. DA VINCI, Leonardo, Trattato della Pittura di Lionardo da Vinci, Trato da un Codice della Biblioteca Vaticana e Dedicato a la Maestà di Luigi XVIII. Re di Francia e di Navarra, Roma, Nella Stamperia di Romanis, 1817, p. 50.
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variavam, denotando movimento. A codificação manter-‐se-‐ia — relembremos que Leonardo dava indicações claras de como se deviam representar velhos, mulheres, homens, estabelecendo um repertório de gestos, expressões e movimentos —, mas serviria para comunicar de modo mais claro, oferecendo, de igual modo, uma maior adequação ao referente. É assim que devem ser lidas as indicações do artista quanto às proporções da figura humana, a relação de cada parte do corpo com o todo, o modo como os membros são perspectivados de acordo com as posições das figuras. Apesar da sua natureza fragmentária — comum a todos os manuais dos mestres, organizando o corpo de modo gráfico e segmentado —, o Trattato dá uma ideia muito clara do muito que Leonardo se dedicou a investigar a ciência do desenho e da pintura, dos aspectos mais teóricos aos mais práticos, relacionados com os materiais a usar e aos modos como estes deveriam ser manufaturados e utilizados e explicando aos discípulos os muitos modos de observar e desenhar, dos corpos à natureza, sob diversas luzes e perspectivas, e a diversas distâncias. 9. A perspectiva ou o desenho como ciência “La scoltura non è scienza ma arte mecanissima, perche genera sudore, e fatica corporale al suo operatore, e solo bastano a tale artista le semplizi misure de’membri, e la natura delli movimenti, e posati, e così se finisce dimostrando all’occhio quel che quello è, e non dà di se alcuna ammirazione al suo contemplante, come fa la pittura, che in una piana superfície per forza di 25
scienza demostra le grandissime campagne co’lontani orizzonti.”
Assim defendia Leonardo da Vinci a supremacia da perspectiva, ciência que sustenta o exercício do desenho e da pintura, resultado de cálculo. Na realidade, a perspectiva (do latim perspicere, ou seja, ver claramente) linear, inventada por
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“A escultura não é ciência mas arte meramente mecânica, porque provoca suor e fadiga corporal àquele que a cria, e a esse artista apenas são necessárias as simples medidas dos membros, e a natureza do movimento e das posições, e assim se termina demonstrando ao olho o que aquilo é, e não causa qualquer admiração a quem a contempla, ao contrário da pintura que sobre uma superfície plana, através da ciência, mostra grandes campos com horizontes longínquos.” [A tradução para português é minha.] Idem, p. 34.
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Filippo Brunelleschi (1377-‐1446), em Florença, cerca de 1413 , respondeu a uma necessidade crescente, por parte dos artistas quanto à representação do espaço. Ciência de raiz geométrica, inspirada na teoria euclidiana, ela instituiu-‐se de 27
facto como base do trabalho sobre superfícies planas . “Nos modelos de representação perspéctica gregos, a partir da correcta noção de esfericidade do espaço e da visão, propunha-‐se que as diferenças visíveis entre os objectos variassem em função da diferença dos seus ângulos de visão e que a representação destes objectos deveria expor a curvatura da própria visão. Tal conceito, baseado num teorema de Euclides, fundamentou um código de representação na pintura grega, a dita “perspectiva naturalis” ou “comunis” que, embora mantendo uma preocupação realista no sentido ilusionista da representação do visível, não alcança o resultado ilusionista da “perspectiva artificialis” proposta pelos artistas da Renascença. A nova perspectiva resulta da transposição do obstáculo imposto pelo teorema de Euclides, com um artifício que rectifica o cone visual euclidiano, substituindo-‐o por uma pirâmide em que as linhas rectas adaptam a interpretação da variação dos ângulos pela observação de que a distância se traduz em variações aparentes de tamanho, parecendo maior o que está mais perto e menor o mais distante, e pela interposição entre os objectos e a vista de um plano de representação, que o 28
desenho reproduz.” O século XIV já vira surgir várias propostas para contornar o problema da imitação do espaço tridimensional sobre um suporte plano. Giotto (1276/7-‐1337) tinha feito algumas aproximações, como fica patente no seu fresco sobre a Vida de S. Francisco, A Confirmação da Regra, para a Capela Bardi, em Florença29 em que já são bem evidentes os esforços de resolução da colocação das figuras no 26
Já é possível avançar uma data, de acordo com uma carta de Brunelleschi entretanto descoberta, em que o autor refere essa invenção. Cf. KEMP, Martin, The Science of Art, optical themes in western art from Brunelleschi to Seurat, New Haven and London, Yale University Press, 1990, p. 9. 27
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Sobre este assunto ver também BELL, Janis Callen, “Perspective”, The Dictionary of Art, volume 4, ed. Jane Turner, London, New York, Macmillan Publishers Limited, 1996, p.485-‐495.
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In “A Revelação”, O Desejo do Desenho, Catálogo da exposição, Almada, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, 1995, p. 30. 29
Cf. KEMP, Martin, op. cit., p. 9.
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espaço. Mas no século XV os avanços na matemática e na ciência (nomeadamente a mistura da herança medieval, em especial os conhecimentos 30
de óptica – ou ciência da visão –, com a recuperação de conhecimentos da ciência clássica, grega) acompanharam outros desenvolvimentos sociais e económicos. Depois da invenção de Brunelleschi, Leon Battista Alberti (1404-‐1472) foi o primeiro a escrever um tratado versando a perspectiva. Dada a sua formação em direito, a sua abordagem foi necessariamente diversa da que seria feita por 31
alguém da área científica ou artística . Contudo, a sua visão é claramente matemática e geométrica. Baseada nos conhecimentos de óptica elaborou duas versões: uma, mais especializada, em latim, De Pictura, e outra, de mais fácil leitura (e dedicada a Brunelleschi), em italiano, Della Pittura. Os conhecimentos partilhados começaram a ser postos em prática. Criadores como Lorenzo Ghiberti ou Piero della Francesca (c. 1415-‐1492) estudaram essas questões e escreveram sobre elas, sendo importantes veículos da sua aplicação em termos práticos, e grandes divulgadores teóricos dos seus princípios. Ghiberti, por exemplo, publicaria, nos seus Comentários, uma importante antologia de textos de vários filósofos, matemáticos e astrónomos especialistas em questões de óptica, como o árabe Alhazen (965-‐1040), os ingleses Roger Bacon (1214-‐1294) e John Pecham (1230-‐1292) e o polaco Witelo (c.1230-‐entre 1280-‐1314). Numa assinalável variante de conteúdos, essa obra incluía ainda os conhecimentos anatómicos dos filósofos e médicos árabes Averróis (1126-‐1198) e Avicena (980-‐1137), constituindo-‐se um volume de referência de saberes de extrema utilidade para os pintores. Também Piero se dedicou a estudos de matemática, em particular, de geometria, centrando-‐se nos escritos de Euclides. Leonardo e Albrecht Dürer (1471-‐1528) prosseguiram essas reflexões, cruzando a investigação das linhas com as questões da luz modeladora do espaço, reveladora da natureza dos corpos na sua volumetria, textura e sensualidade.
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Na Idade Média, a óptica é uma das áreas em que se verificam maiores e mais significativos avanços científicos. 31
Cf. KEMP, Martin, op. cit., p. 21 e segs.
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Reflectindo sobre a essência científica do trabalho do desenhador/pintor (por oposição à do escultor, que entendia como mais artesanal por depender mais da 32
força do que do cálculo e por não carecer da criação de ilusão óptica, já que o seu corpo era concreto e não o resultado de elaboradas linhas e incidências lumínicas), Leonardo colocou deste modo a perspectiva no centro do debate. Aliás, era exatamente pela aprendizagem das suas regras que devia começar, no seu entender, a formação dos jovens. Em seguida, seria necessário que o jovem dominasse a luz, já que a sua maior ou menor incidência, associada à distância a que um corpo se encontra do observador, marca o modo como o olho o percepciona e como, em consequência, deveria ser representado para se revelar o mais natural possível. A relevância da luz — e do ar — nesta equação fez com que Leonardo 33
mencionasse por exemplo, a par da perspectiva linear, a da cor e a importância 34
do ar na percepção quer das linhas quer das cores dos corpos na distância. Ao longo dos séculos seguintes, os estudos sobre a perspectiva avançariam de modo a satisfazer as necessidades e questões relacionadas com a representação 35
do espaço, socorrendo-‐se da geometria e de instrumentos e máquinas , das quadrículas a espelhos, passando por instrumentos ópticos mais sofisticados e 36
pelas conhecidas máquinas perspécticas . Nessa procura seriam fundamentais as novas discussões com astrónomos e matemáticos — com os quais, como 32
“[…] la scoltura, arte degnissima, ma non di tanta eccelenza d’ingegno operata”. In DA VINCI, Leonardo, Trattato della Pittura di Lionardo da Vinci, Trato da un Codice della Biblioteca Vaticana e Dedicato a la Maestà di Luigi XVIII. Re di Francia e di Navarra, Roma, Nella Stamperia di Romanis, 1817, p. 33. Sobre a diferença entre as duas disciplinas, ver as páginas seguintes, nas quais Leonardo se dedica a descrever o ambiente sujo que rodeia o escultor no exercício da sua actividade, em franco contraste com a limpeza que rodeia o pintor que pode exercer a sua arte usando as suas melhores vestes, praticá-‐la em espaços elegantes, decorados com boas pinturas e (enfatizando o lado cerebral desta actividade tranquila e silenciosa) fazê-‐lo enquanto conversa sobre pintura. 33
Cf. Da VINCI, op. cit., p. 119 e segs. Ver também p. 135. De como o pintor deve pôr em prática a perspectiva das cores – ver p. 144. 34
Algumas traduções definem essa forma de perspectiva aérea como atmosférica. Contudo, Leonardo nunca usa este termo, já que o conceito de atmosfera apenas seria definido no século XVII. O termo usado por Leonardo é sempre aéreo. (Cf. idem, p. 90 e segs.) Sobre a definição que Leonardo dá da perspectiva aérea — relativa a ar — ver idem, p. 145. 35
Sobre este assunto ver KEMP, Martin, op. cit.
36
Ver idem, p. 167 e segs.
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referimos, os artistas privavam nas academias —, não sendo por isso de estranhar que os conhecimentos sobre os astros e navegação se dilatassem ao mesmo tempo que os saberes do desenho. Os astrolábios que serviam para orientação no mar eram também usados para medir edifícios e ajudar a calcular as escalas. E os instrumentos e conhecimentos relativos à nova física eram também transferidos para o espaço da pintura. Contudo, em termos gerais, os efeitos resultantes das ajudas das máquinas perspécticas (em geral, estruturas geométricas que, com a ajuda de fios, organizavam o espaço visível de modo a ser mais adequadamente adaptado às duas dimensões criando a ilusão de distância do espaço tridimensional) seriam suplantados pelos dos instrumentos ópticos, que mais tarde fariam nascer a fotografia. 10. A máquina óptica ou câmara escura Se se fizer um buraco na parede de uma sala obscurecida e deixarmos passar através dele a luz exterior, a parede em frente (ou uma folha de papel que se coloque frente ao orifício) reflectirá, pela acção dos raios solares, uma imagem 37
invertida do exterior . Este é o princípio da pinhole (literalmente do inglês buraco de alfinete, embora, para ser eficiente, no caso de uma sala a dimensão do orifício deva ser maior) ou da câmara escura. A observação deste tipo de fenómenos ópticos interessou desde cedo os chineses (cerca do século VIII) e já tinha, também, sido mencionado vários séculos antes, por Aristóteles que observara, através das folhas de uma árvore, a 38
formação de uma imagem do sol, no chão, durante um eclipse , percebendo de imediato estar na presença de um modo de observar fenómenos solares sem danificar a visão. No Ocidente, a evolução dos conhecimentos de óptica foi bastante significativa ao longo da Idade Média, permitindo o claro avanço científico no início do Renascimento. Muito devedora, como vimos, da investigação de estudiosos 37
Esta explicação é devedora da fornecida em STEADMAN, Philip, Vermeer’s Camera: Uncovering the Truth Behind the Masterpieces, Oxford, Oxford University Press, 2001, p. 4. 38
Citado por STEADMAN, Philip, op. cit., p. 4.
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como Alhazen, a ciência óptica teria vários cultores durante a época Moderna, potenciando descobertas da astronomia e progressos artísticos. A máquina óptica, inicialmente utilizada para estudar os fenómenos da luz, começaria no Renascimento a ser usada como instrumento artístico. Leonardo foi o primeiro a perceber as potencialidades deste recurso para o exercício do desenho e da pintura e a usá-‐lo (o que faz com que tantas vezes seja apontado como seu inventor). Nas Notas, da Vinci registou as suas experiências esclarecendo que se podia recolher, numa sala obscurecida, a imagem que passava através de um pequeno buraco, colocando um papel em frente ao orifício. Embora pequena e invertida (devido à intersecção dos raios), essa imagem permitia o reconhecimento das formas e das cores. No entanto, para a ver, o pintor deveria encontrar-‐se atrás do papel e, para a captar, Leonardo aconselhava o recurso a um papel transparente, em cujo verso se podia desenhar, seguindo os traços da projecção. Um dos mais importantes melhoramentos técnicos neste instrumento foi a inclusão, já em pleno século XVI, de uma lente convexa na sua abertura (ou próximo dela). Essa inovação, da responsabilidade do matemático e filósofo Girolamo Cardano (1501-‐1576) e de que seria dado conta pelo erudito cardeal Daniele Barbaro (1516-‐1570), que se debruçaria sobre aspectos de afinação da 39
imagem obtida , tornaria essa máquina crescentemente apetecível para os artistas. Em 1558, a publicação do ensaio Magia naturalis, do investigador italiano Giovanni Battista della Porta (c. 1535-‐1615), mencionava esse instrumento óptico, muito próximo do registo de Leonardo, e apontava também as vantagens da inclusão de uma lente. A evolução dos estudos de della Porta chegaria ao astrónomo e matemático Johannes Kepler (1571-‐1630) — autor do nome câmara escura
40
— que o melhoraria, introduzindo uma segunda lente,
utilizando-‐o nas suas investigações ópticas e criando ainda uma versão portátil que lhe permitiria o uso em locais longe de casa. Estava aberto o caminho para o
39
Cf. KEMP, Martin, op.cit., p. 189.
40
Cf. STEADMAN, Philip, op.cit., p. 4.
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registo de paisagem, natural ou urbana, a que vários pintores recorreriam mais tarde. Ao longo dos séculos seguintes assistiríamos à intervenção de vários investigadores como o também astrónomo e matemático Robert Hooke (1635-‐ 1703), no afinamento desta máquina, perseguindo os mesmos objectivos da obtenção de imagens de maior rigor e definição, que ajudariam simultaneamente ao conhecimento científico e artístico. Mais uma vez, a proximidade dos artistas aos investigadores científicos, no seio das academias (mesmo depois de estas se terem especializado), potenciaria esse diálogo que faria do traço algo mais do que um simples exercício de cópia. No século XVII, o uso deste instrumento estava já vulgarizado, tanto entre os astrónomos como entre os pintores e arquitectos
41
. Um dos casos mais
conhecidos, é o de Johannes Vermeer (1632-‐1675), cujo uso da câmara escura se encontra já bastante estudado. 11. Tratados de anatomia 42
Os instrumentos ópticos, como a câmara escura e a câmara lúcida não esgotariam a busca dos artistas pelas questões científicas da figuração. Um dos principais assuntos que os ocuparia seria o estudo da figura humana. Não só na sua superfície observável, mas também na sua organização intrínseca. Foi o tempo dos tratados de anatomia. Aos cadernos de esboços, como modo de aprendizagem, juntar-‐se-‐iam as estampas impressas, e as cartilhas que os próprios mestres faziam publicar, uma espécie de best of a seguir, para se estudar individualmente. Funcionavam como mostruário dos seus saberes e também como livros de instruções a seguir. Esse método abordaria o corpo de forma fragmentada. A ideia, com essa segmentação, era educar a mão (como vimos) mas também sustentar o traço 41
Cf. HOCKNEY, David, Secret Knowledge: rediscovering the lost techniques of the old masters, London, Thames and Hudson, 2006 e Philip Steadman, op. cit. 42
Por questões da economia do texto, não nos debruçaremos sobre as particularidades desta última, em relação à qual recomendamos a consulta de KEMP, Martin, op. cit., p. 199 e segs.
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com um bom conhecimento de anatomia e fisionomia, e ajudando a decompor o movimento e a estabelecer as bases do cânone, ou harmonia das proporções do corpo humano, medida de todas as coisas. A vulgarização do livro impresso facilitaria a passagem desses saberes muito para além dos limites físicos dos ateliers. As casas editoras viram aí um negócio significativo e dedicaram-‐se à sua publicação, contribuindo para uma maior circulação da informação artística e científica, já que esses manuais serviam diversos interessados. Também neste caso, ciência e arte andaram a par. Manuais utilizados para o estudo da medicina, revelavam aos artistas a estrutura interna do corpo humano, desde os músculos à circulação e ao esqueleto. As Academias adoptariam esses métodos. Um dos mais famosos pintores académicos franceses, Jean-‐Baptiste Chardin (1699-‐1779), daria conta do processo de estudo. Os alunos frequentavam as aulas desde tenra idade (desde os 7 ou 8 anos) e dedicavam-‐se a desenhar fragmentos de corpos: olhos, bocas, narizes, orelhas, pés e mãos. Essa aprendizagem a partir da repetição do fragmento evoluía depois para a da cabeça, de torso, de corpo inteiro. Desenhavam também a partir dos antigos (reproduzindo as formas de esculturas ou de estampas) e só depois de modelo vivo. E passavam ainda pelo desenho anatómico. Com o tempo, muitos manuais especializaram-‐se, havendo alguns que se debruçavam exclusivamente sobre cabeças, pela sua complexidade e poder de comunicação, e atestando desse modo a crescente importância do retrato. 12. A importância das Academias do século XVIII. Alterações na prática artística. Em Setecentos, quando as Academias já se encontravam bem instituídas e 43
ditavam os moldes do gosto , os seus membros tornaram-‐se muito prestigiados. Em Paris, os académicos tinham espaços de trabalho no Louvre, ainda antes de 43
A Académie Royale de Peinture et Sculpture, formada em França em 1648, modelo de quase todas as outras, foi das primeiras academias europeias a estabelecer um programa de aulas teórico, com acesso a uma vasta biblioteca, e prático do desenho.
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este se tornar museu. Com a Revolução, em 1789, vários artistas reclamaram o 44
mesmo direito e inúmeros espaços foram adaptados no Palácio para os acolher. Entre as necessárias acomodações, haveria plintos para os modelos e aquecimento (essencial, para os momentos de desenho de nu). Porém, com o passar do tempo, a Academia tornar-‐se-‐ia excessivamente normativa e teórica. Além de continuar a impedir a entrada às mulheres, intervenientes cada vez mais activas no panorama artístico, a Academia transformara-‐se no oposto do seu programa original. Novos espaços museais, como o Louvre (aberto como museu em 1792) facultaram espaços de aprendizagem de gosto livre e alternativo, acessível a todos os que quisessem desenhar a partir dos mestres da sua escolha. Os salons e os ateliers afirmaram-‐ 45
se, simultaneamente, como lugares de comércio e de pensamento livre. Extintas as Guildas, os artistas começaram a arranjar discípulos que pagavam os seus estudos nos ateliers. Surgiram igualmente novas escolas. A Academia, rejeitada pelos Românticos como antiga e desligada do mundo, tentou ainda adaptar-‐se, criando novas aulas, nomeadamente de pintura de paisagem. Mas o estúdio era cada vez mais apelativo para muitos estudantes e amadores de arte, compondo uma imagem idealizada do artista. No século XIX, esses espaços passaram a ser individualizados; eventualmente partilhado por dois autores, cada um desenvolvia solitariamente a sua obra. Os dos pintores, sempre em busca de luz, eram muitas vezes instalados em águas furtadas, com amplas zonas envidraçadas (como seriam mais tarde imortalizados pelo cinema). Os dos escultores, permaneceram em espaços térreos, com múltiplas funções, necessariamente dividido por áreas e com vários assistentes. Em ambos os casos, mantiveram-‐se as funções formadoras para estudantes além das visitas de profissionais de muitas outras áreas, em animadas tertúlias. 44
Napoleão acabaria com esses estúdios, dada a sua alegada natureza subversiva. Cf. HICKS, Carola, op. cit., p. 856. 45
No século XVII, os estúdios começaram a ser usados como lojas. No caso dos pintores, o estúdio funcionava com frequência numa divisão da habitação e os modelos incluíam os familiares (vejam-‐se os casos de Rubens, Vermeer ou Rembrandt). A partir do século XVIII, num momento histórico em que começaram a desaparecer os grandes mecenas tradicionais, o atelier-‐ loja tornou-‐se comum, trabalhando-‐se com frequência sem qualquer tipo de encomenda e expondo as obras para eventuais vendas. Nos estúdios reuniam-‐se também músicos e literatos.
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13. Ensino artístico em Portugal e seus pressupostos Tardio em Portugal, o ensino artístico organizado teve contudo diversos ensaios, 46
sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII . Em 1779, no Porto, abriu a Aula Pública de Debuxo e Desenho. Em Lisboa, apenas em 1821 foi criado o Atheneo 47
das Bellas Artes, com um sistema de ensino diário , quase igualitário no tratamento dos alunos de ambos os sexos, situação que não se repetiria tão cedo, nem mesmo com a instituição das Academias, apenas acessíveis a estudantes masculinos. Com um programa de estudos organizado em cinco aulas, no Atheneu ensinava-‐se a desenhar do natural, com modelos nus de homem, mulher, rapaz, e velho, além de modelos de esqueleto, anatomia em 48
detalhes e manequim, para o estudo das pregas . Contudo, a aprendizagem era condicionada: "Os Socios applicados do sexo masculino naõ poderaõ ser admittidos ao estudo do Modello do Natural de mulher, nem os do Sexo fiminino ao estudo do Modello do Natural de homem, sem expressa licença do Concelho 49
de Direcção" . As restantes quatro aulas tratavam de modelos (estátuas, bustos, baixos relevos, e anatomia); exemplares de desenho de figura e anatomia; exemplares de arquitectura, perspectiva e estudos de geometria prática; e exemplares de 50
história natural para aplicação a paisagem, ornato e animais . Para estimular o talento, estavam previstos concursos anuais, com as correspondentes exposições 51
e atribuições de prémios . E, para as áreas mais nobres do estudo (pintura,
46
Sobre este assunto ver LISBOA, Maria Helena, As Academias e Escolas de Belas Artes e o Ensino Artístico (1836-‐1910), Lisboa, Edições Colibri, IHA, Estudos de Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2007. 47
Cf. Estatutos do Atheneo de Bellas Artes, Lisboa, s.n.,1823. Cap. IV, §4, p. 12.
48
Idem, capítulo IV, §1, p. 11.
49
Idem, título II, §3, p. 9. As mulheres têm ainda outra restrição: as aulas, além de separadas, só lhes são acessíveis se "acompanhadas de pessoas de probidade, que lhes assistaõ ao estudo". Idem, capítulo II, §3, p. 5. 50
Idem, capítulo IV, §2, p. 11.
51
Idem, capítulos V e VII.
20
escultura e arquitectura) bolsas de três anos para academias italianas e 52
francesas . O projecto, travado pelo miguelismo, adiaria o ensino artístico até à vitória das forças liberais, sendo reposto apenas em 1836, com a criação das duas 53
academias de belas artes de Lisboa (25 de Outubro) e do Porto (22 de Novembro). O ensino, aberto a maiores de dez anos, que observassem adequado comportamento, apresentava os seguintes programas: na capital, era dividido num conjunto de oito aulas (Desenho de História, Pintura de História, Pintura de Paisagem e de Produtos Naturais, Arquitectura Civil, Escultura, Gravura de História, Gravura de Paisagem, e Gravura de Cunhos e Medalhas). Seguindo as normas académicas suas contemporâneas internacionalmente, o ensino introduzia o estudo da pintura de história e do natural, com o sublinhado necessário dos modelos de nu. A base era, portanto, o desenho. Na falta de aproveitamento nesta disciplina nenhum estudante poderia ser admitido em pintura, arquitectura, gravura ou escultura. Ao cabo dos cinco anos, quem quisesse aperfeiçoar-‐se na sua área específica poderia fazê-‐lo com a ajuda de um professor especializado. E, tal como anos antes no Atheneu, para estimular o trabalho dos estudantes, estabelecem-‐se concursos anuais, prémios e a possibilidade de bolsas de aperfeiçoamento no estrangeiro. Limitadas aos estudantes de Pintura, Arquitectura e Escultura, às disciplinas consideradas como mais importantes, atribuem-‐se bolsas a um aluno de cada área, podendo este número ser aumentado. Patrocinados pelo governo e devendo observar uma conduta à altura do esforço financeiro que o Estado faz pelas suas pessoas, os bolseiros ficam no exterior o tempo que o governo decida, estando obrigados a enviar todas as suas provas (cópias do antigo ou originais seus) para a Academia. A Academia Portuense de Belas-‐Artes seria muito semelhante à da capital. Os objectivos e as aulas eram basicamente os mesmos, exceptuando o acrescento
52
Idem, capítulo IX, §4, p. 21.
53
Ver Collecção de Legislação Portugueza, 2º semestre de 1836, p. 79.
21
54
da arquitectura naval . Além disso, também aos oficiais e aprendizes das artes fabris era facultada a entrada em qualquer aula da academia. A mesma facilidade era dada, em certos dias da semana e em horário nocturno, "a algumas pessoas 55
curiosas" que não pudessem frequentar o curso diurno. Com o tempo, a Academia começou a manifestar problemas. Em 1875, Sousa Holstein, vice-‐inspetor da Academia, produziu um documento que fazia o balanço de quatro décadas de actividade da instituição e propunha a sua 56
modernização . Entre as suas críticas salientavam-‐se a falência de um ensino aberto às mulheres e dedicado à indústria. Criticaria também a inexistência de museus, instrumentos pedagógicos incontornáveis para o desenvolvimento cultural e económico da nação. Em 1881, foi decretada a Reforma das academias de bellas artes de Lisboa e 57
Porto . Embora nem todas as reivindicações do anterior documento fossem satisfeitas, surgia uma proposta de mudança. A Academia dividia-‐se em academia e escola. Os objectivos deveriam igualmente ser aplicados à Academia Portuense, com algumas alterações, sobretudo no número de académicos. Além do ensino, à Academia caberia a promoção de um museu e de exposições e a preservação e restauro do património. À Escola, o ensino de belas artes e de artes industriais. Mas a mudança seria insuficiente. Os novos currículos escolares viram introduzidas as disciplinas de História da Arquitectura, História da Arte e Estética, mantendo-‐se o ensino através da cópia, e de Pintura de História, de Género, e de Paisagem, ou a Arquitectura Grega e Romana. A escola teria, por fim, cursos nocturnos, para operários, oferecendo uma breve introdução à história natural e flora ornamental, anatomia humana aplicada às artes, fisiologia, higiene dos edifícios e a modelação de ornato, aplicado à decoração de arquitectura e às artes industriais. 54
Cf. Collecção de Legislação Portugueza, 2º semestre de 1836, p. 148.
55
Idem, p. 150.
56
SOUSA HOLSTEIN, Observações sobre o actual estado do ensino das artes em Portugal, a organização dos Museus e o serviço dos Monumentos Historicos e da Archeologia offerecidas á Commissão nomeada por decreto de 10 de novembro de 1875 por um vogal da mesma commissão, Lisboa, Imprensa Nacional, 1875. 57
In Collecção de Legislação Portuguesa, 1 semestre de 1881, p. 41-‐45.
22
A frequência da escola, no texto da reforma, traria também a novidade de as 58
mulheres poderem frequentar as aulas, sem quaisquer ressalvas . Parecia, portanto, haver uma tentativa de adequação às necessidades do país, numa nova concepção do ensino que, além de uma abertura ao sexo feminino, se propunha também atingir uma democratização mais geral: não apenas nos horários nocturnos, como também no facto de as matrículas, exames, certidões e diplomas serem gratuitos. 14. Últimas notas e pretexto para uma exposição Haveria ainda mais alterações ao ensino académico em Portugal, ainda no início do século XX. Em termos do ensino formal, depois de uma rejeição inicial da escola pelos modernistas no início do século XX, muitas academias tradicionais sentiram necessidade de se adaptar. Em muitos casos, transformaram-‐se completamente primeiro em Escolas (caso das Academias em Portugal, após a legislação 59
republicana de 1911 ) e, mais tarde, em Faculdades. Apesar das tentativas de modernização, não deixa de ser curiosa a manutenção de uma divisão das Belas Artes/Artes Plásticas/Artes Visuais (conforme o tempo e os conceitos) e da Arquitectura — assim perpetuando uma cisão instituída com a criação da Académie Royale d’Architecture, em Paris, em 1671. De todos os modos, com maior ou menor insistência, o ensino do desenho tem sido um eixo importante nestes novos estabelecimentos de ensino, embora com alguns desvios curriculares, por vezes mais vocacionados para novas tecnologias que, aparentemente, dispensam o exercício da mão. Encontramo-‐lo, porém, em franco e refrescante retorno, como origem e eixo do pensamento plástico em muitos autores do século XX e destes primeiros anos do XXI, revelando-‐se um número crescente de cultores que, utilizando por vezes
58
"Serão admitidos á matricula em qualquer d'estas classes, os indivíduos de ambos os sexos que requererem ao inspetor da academia." Idem, Título II, Capítulo VIII, Artigo 54º. 59
Ver também LISBOA, Maria Helena, op. cit., p. 83 e segs.
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materiais não convencionais, se reportam à tradição e ao cânone como instrumentos teóricos para a criação das suas obras. Foi também o que pretendemos mostrar na presente exposição. Temas de sempre são retomados, quer em citação directa (caso das Pietà de David Oliveira e Paula Rego), quer em irónica apropriação (Rui Macedo). O retrato surge aqui revisitado e actualizado por Alexandre Farto, Pedro Gomes e Ricardo Leite que aborda também o modelo de nu. A guerra é pretexto cenográfico e antropológico para Catarina Patrício. A narrativa literária e histórica e a interrogação sobre a justiça de algumas questões sociais (caso do drama do aborto clandestino) e a arte sacra são interpeladas por Paula Rego. Por vezes, o material é também clássico: o suporte é o papel, os riscadores são grafite e carvão. Ou o suporte é tela e a pintura é executada a óleo. Mas o ponto de vista ou a escolha do tema transformam os pressupostos do discurso. Noutras situações, a abordagem de jogos contemporâneos de revelação/oclusão (Rui Macedo), são os elementos dissonantes em relação à tradição. Outras vezes, o suporte é o papel, mas os temas abordados revelam inquietações outrora tabus ou participações sociais antes não declaradas (mais uma vez, Paula Rego e Catarina Patrício). Em algumas obras, o desenho é operado por recorte do suporte (Pedro Gomes) ou através da remoção de camadas ou do uso do stencil (Alexandre Farto), criando texturas, ou jogos lumínicos e gráficos que completam a sua definição formal. Noutras, ainda, é a pura manutenção dos elementos clássicos, nos materiais e nas técnicas, mas com um olhar contemporâneo que assume o exercício do desenho como processo e fim (Ricardo Leite). E, em outros casos, o desenho é uma estrutura escultórica, que se eleva do gesto para se afirmar no espaço em exercício de pura luz (David Oliveira). Seja como for, em alguns dos seus muitos modos, eis o desenho. Um conceito, uma ciência e um fazer que nos define. 24
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