Da Ordem das Sombras: a mimese na filosofia grega

June 14, 2017 | Autor: Leonardo Soares | Categoria: Mimesis, Platão, Aristoteles
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Ref.: SOARES, Leonardo Francisco. Da ordem das sombras: a mimese na
filosofia grega. Asa-Palavra, Brumadinho, v. 1, n.2, p. 73-84, 2004.

Da Ordem das Sombras:
a mimese na filosofia grega



Leonardo Francisco Soares[1]


Resumo: Este ensaio busca rastrear as relações entre os conceitos de mimese
e de representação nos textos República, de Platão, e Poética, de
Aristóteles. O termo mimese, de origem grega, é comumente associado – a
partir da aproximação iniciada por Platão – à noção de imitatio. Como
procuramos demostrar ao longo deste trabalho, tais noções não são
sinônimas. Antes de Platão, a noção de mimese remetia aos cultos e festas
dionísiacos. Tais festas consistiam em uma combinação de dança, música e
palavra; o termo mimese referia-se exatamente ao caráter "performático"
desses espetáculos.

Palavras-chave: Literatura; Filosofia; Mimese; Representação;



"Atrás de cada caverna uma outra que se abre, mais profunda ainda e
abaixo de cada superfície, um mundo subterrâneo mais vasto, mais
estrangeiro, mais rico e sob todos os fundos sob todas as
fundações, um subsolo mais profundo ainda."
Friedrich Nietzsche

Se o processo de criação artística é um acontecimento muito antigo,
a necessidade de se refletir sobre esse processo também o é. Os primeiros
filósofos gregos (século VI a.C.) preocuparam-se em investigar a Natureza,
buscando conhecer os elementos constitutivos das coisas. Físicos, nas
palavras de Aristóteles, esses filósofos procuravam um princípio comum a
todos os seres, que explicasse a sua origem e as eternas mudanças, o vir- a-
ser. Eles fundaram uma tradição de estudo da Natureza. Em se tratando das
reflexões filosóficas acerca da arte, em especial acerca da literatura, é
possível recuá-las até filósofos como Xenófanes (560-478 a.C.), fundador da
Escola de Eléia, e Heráclito (540-480 a.C.).

Segundo Benedito Nunes, foi preciso esperar por Sócrates (470-399
a.C.) para que o ponto de vista reflexivo-crítico, característico da
filosofia, definitivamente se insinuasse nas artes:

"Sócrates, que discorria sobre todos os assuntos humanos, entrou,
certa vez, no ateliê do pintor Parrássio, e a este perguntou o que
a pintura poderia representar. A pergunta de Sócrates era uma
indagação filosófica acerca da essência da Pintura, que
transportava para o domínio das artes a atitude interrogativa que
já tinha sido assumida pelos filósofos gregos em relação às coisas
e aos valores morais." (Nunes, 1989: 8)

Assim, como os primeiros filósofos problematizaram a Natureza,
Sócrates transformou em problema filosófico a existência e a finalidade das
artes e, ainda nas palavras de Benedito Nunes, "já não bastava mais a
simples fruição da Pintura, da Escultura e da Poesia. Agora elas também
passam a constituir objeto de investigação teórica". (1989: 8)

Nesse constante refletir-se acerca do processo de criação
artística, os conceitos de mimese (mimesis)[2] e de representação serão
retomados e discutidos de maneira incessante. Seja para desvalorizar a
arte, no caso de Platão, por não representar senão o mundo das aparências,
seja com o propósito de exaltá-la, no caso de Aristóteles, por revelar-se
um modo extraordinário de ser real, o pensamento grego convida-nos à
reflexão do entrelaçamento entre a criação da obra de arte e a natureza do
real.

Em seus escritos, que abordam a natureza do fenômeno artístico,
Platão (427-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.) transmitiram ao
Ocidente o que se compreende como a interpretação grega do sentido da
criação artística. Como nos adverte o filósofo Fernando Santoro, essa
compreensão originária do fenômeno artístico reduziu-se a uma única
expressão: "a sentença se banalizou na expressão 'a arte imita a natureza'.
Toda a história da arte e da estética ocidental, pode-se dizer, sustenta
sua compreensão de base, seja explicitamente ou não, no encontro e no
confronto com esta sentença".(1994: 16; grifos do autor)

A arte está sempre em encontro e desencontro com a realidade. Se
originalmente o termo mimese estava relacionado à idéia de representação
teatral, unidade entre palavra, dança e música, a partir de Platão, a noção
de mimese pela primeira vez tem que se despir da máscara teatral, passando
a ser avaliada segundo um prisma disciplinador, no qual é confrontada com o
representado e julgada por seu grau de verdade:

Embora a poesia seja discutida e censurada nos livros II e III da
República, partimos, aqui, do livro X da mesma obra.[3] Falamos do último
livro do tratado político-pedagógico de Platão, porque esse é o lugar no
qual seus argumentos referem-se mais diretamente à criação artística.[4]

As primeiras palavras de Sócrates, na abertura do décimo livro,
apontam para a regra relativa à poesia: toda forma de poesia mimética deve
ser rejeitada. O motivo apresentado por Sócrates ao seu interlocutor
Glaucon é que "todas essas obras parecem causar dano à mente dos que as
ouvem quando não têm como antídoto o conhecimento de sua verdadeira
índole".(Platão, 1996: 217)

Em seguida, passa-se à discussão a respeito da natureza da mimese.
Nas palavras de Sócrates, sempre que um certo número de objetos têm o mesmo
nome, pressupomos para eles uma idéia ou forma comum: "a idéia é uma só,
mas os objetos compreendidos debaixo dela são muitos". (Platão, 1996: 217)

O filósofo introduz, então, o famoso exemplo das três espécies de
cama e dos três fazedores de camas. Primeira, a cama ideal é o comum de
todas as camas e seu autor deve ser um Deus. Segunda, a cama produzida pelo
marceneiro é a cópia da primeira e tem com esta uma relação de
"participação". A idéia una de cama, o que o marceneiro vê ao fabricar a
cama segunda, é o verdadeiro ser, a essência que não muda. Como vivemos num
mundo em permanente devir, essa essência imutável, que não nasce nem morre,
vai existir em uma outra dimensão, que Platão denomina como sendo o espaço
das "Formas/Idéias" (inteligível), oposta ao "mundo sensível", no qual nos
encontramos. Para o filósofo, apenas as "Formas/Idéias" existem
verdadeiramente, sendo a imutabilidade o caráter distintivo dessa realidade
completa e sem falhas. Já as coisas — a cama segunda, no exemplo em questão
—, sujeitas às mudanças, existem, portanto, na medida em que participam das
essências ou "Idéias", que elas refletem e em razão das quais surgiram.
Terceira, a cama produzida pelo pintor é imitação da segunda e por isso
está duplamente afastada da verdade, da essência. A obra do artista, a
pintura da cama, imita a obra do artífice, uma cama qualquer, que por sua
vez imita a obra de um Deus. Sendo assim, Sócrates vai colocar a mimese em
terceiro lugar após a verdadeira natureza (phýsis):

"Bem longe da verdade está, pois, o imitador; e, ao que parece, se
pode fazer todas as coisas é porque não alcança senão uma pequena
parte delas, parte essa que é um mero fantasma (...) [as obras dos
imitadores] estão três vezes afastadas do ser (...) pois não
compõem senão aparências, e nunca realidades". (Platão, 1996: 219-
220)

No sentido em que se encontra no texto de Platão, o termo imitar
surge como sinônimo de fingir, tendo por objetivo produzir um logro, um
engano, uma mentira; algo que não é da ordem do mesmo, mas da ordem do
outro, "três vezes afastado do ser". Assim, a imitação aponta para a imagem
do simulacro, "a má potência do falso pretendente": "(...) a imitação é
determinada a tomar um sentido pejorativo na medida em que não consegue
passar de uma simulação, que não se aplica senão ao simulacro e designa o
efeito de semelhança somente exterior e improdutivo, obtido por ardil ou
subversão." ". (Deleuze, 1982: 263-264)

Ao condenar a arte mimética, Platão está condenando a cópia da
aparência separada do real; e, para comprovar a afirmação de que "o
imitador ou fabricante de imagens nada entende do verdadeiro ser, apenas do
aparente" (Platão, 1996:222), ele desenvolve a teoria das três artes —
utilizar, fazer, imitar —, relacionadas, respectivamente, ao usuário, ao
produtor e ao imitador. A primeira guarda o verdadeiro conhecimento,
enquanto a segunda tem a crença, isto é, o produtor deposita "fé" no
usuário e faz os "objetos" de acordo com as suas prescrições. Já o imitador
não conhece as coisas que imita, "o mais provável é que imite o que pareça
belo à multidão ignorante." (Platão, 1996:223) Daí, a arte mimética ser
considerada um jogo (paidia) de crianças e não uma coisa séria.[5] A idéia
de mimese se dirige, portanto, ao que na alma não é racional, sendo
estranha ao que esta tem de melhor, seu lado sábio e sereno: "(...) a
pintura e, em geral, toda a arte imitativa, realiza o trabalho que lhe é
próprio a grande distância da verdade e é companheira e amiga daquela parte
de nós mesmos que se aparta da razão, e isso sem nenhuma finalidade sã ou
verdadeira." (Platão, 1996:223)

Nesse momento do texto, Platão conclui que o poeta não deve ser
admitido na cidade regida por boas leis, pois este é prejudicial à medida
que demonstra um saber que realmente não possui e educa privilegiando as
aparências, ao mesmo tempo em que oculta a verdade, estabelecendo um mau
governo na alma, ao valorizar sua parte menos sábia.

"O poeta imitativo implanta um regime perverso na alma de cada um,
condescendendo com o elemento irracional que nela existe (...) a
imitação poética rega e alimenta as paixões ao invés de deixá-las
secar e erige em governante o que deveria ser governado, a fim de
que a humanidade fosse melhor e mais feliz e não pior e mais
desditosa." (Platão, 1996:225-226)

Em sua investida contra a poesia, Platão faz exceção apenas aos
hinos aos deuses e aos encômios dos heróis, únicos "gêneros" de poesia
admissíveis na "cidade com logos", enquanto a "musa prazenteira" deve ser
banida, pois se aceita, o prazer e a dor governarão a cidade.

Nesse confronto entre mimese e phýsis, o filósofo grego busca
disciplinar a primeira, controlando-a através da noção de alétheia ("luz,
palavra de louvor, memória e imortalidade"), extraída do mundo das Idéias,
em contraste com a léthe ("noite, silêncio, esquecimento e morte").
Alétheia é verdade, não por demonstração ou por conformidade às coisas e
aos fatos, mas por asserção e eficácia. Segundo Marilena Chaui, o
pensamento platônico irá instalar-se em confluência com duas vias, a
alétheia (mágico-religiosa) e a peithô (retórica); assim, para Platão:

"a dialética será o instrumento primordial do conhecimento, mas
este será visão intelectual sob a luz do Bem. A dialética como
diálogo é a paidéia, a pedagogia para a conversão do olhar que
deverá desprender-se do sensível (o corpo e as imagens das coisas)
para alçar-se ao inteligível, na pura contemplação do
eidós."(Chaui, 1988:47)

Em outras palavras, transportando essa leitura para a nossa
reflexão sobre a Republica, concluímos que, para Platão, o poeta só seria
aceito na "cidade com logos", quando transformado em instrumento passivo
que serviria para perpetuar sob uma aparência sedutora a ortodoxia, a
"palavra do poder" estabelecida pelo Estado. Dessa forma, a arte mimética
deixaria de ser um meio potencialmente nocivo para se subordinar a uma
plataforma "ética e gnoseológica".

"Platão assim decide pela frente contrária à gorgiana. Se para o
sofista não há mais que a mistura entre luz e sombras, para Platão
esta mistura empírica é promessa de sua separabilidade. Em termos
do tratamento trágico, diríamos que ambos são possuídos pela mesma
hýbris: persuadir o ouvinte a seguir o modelo que suas respectivas
filosofias lhe propõe. Entre uma e outra, o Ocidente optou pela
hýbris platônica da seriedade". (Lima, 1980: 40)

Mas seria possível encontrar no pensamento grego uma outra visão de
mimese além dessa entrelaçada ao engodo e ao ocultamento? Como a mimese
pode desdobrar-se em representação finita, bem fundada e limitada?

Essa outra visão de mimese é dada por Aristóteles. Em sua Poética,
tomando a arte como poíesis, atividade formadora que tem por fim a
realização de uma obra, Aristóteles propõe falar da poesia em si mesma e
das suas espécies, do efeito próprio de cada uma delas, da composição do
assunto e da natureza dos elementos de cada uma dessas espécies. Seu
propósito é evidenciado logo nas primeiras linhas do texto. Em seguida, ele
levanta a questão que nos interessa mais de perto, a questão da mimese.

A noção de mimese presente na Poética remete à idéia de
verossimilhança. A verossimilhança seria o elo estabelecido com a
realidade, mas não a realidade atual e presente, e sim com o que é provável
ou possível. Para Aristóteles duas causas naturais geram a poesia: a
imitação e o prazer dela decorrente:

"A Epopéia, a Tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior
parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações.
Diferem porém, uma das outras, por três aspectos: ou porque imitam
por meios diversos ou porque imitam objetos diversos ou porque
imitam por modos diversos e não da mesma maneira." (Aristóteles,
1992: I, 2)

Sempre pensando na tragédia, mas sem perder de vista as outras
artes, o autor insiste no aspecto da verossimilhança e da necessidade da
ação ser completa e una, censurando a utilização abusiva do deus ex
machina, isto é, a presença de elementos sobrenaturais ou divinos que
expliquem ou justifiquem a ocorrência de certos fatos. Segundo Luiz Costa
Lima, em Aristóteles:

"(...) supõe-se haver uma homogeneidade entre o representado (o
referente) e o representante (o objeto da mimesis) cabendo ao
artista corrigir, ajustar, modificar relativamente a fonte
representada, sem, no entanto, mudá-la de tal maneira que se
tornasse naturalisticamente irreconhecível." (1981: 226)

Em outro momento do texto, Aristóteles afirma que "não é ofício do
poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia
acontecer, quer dizer, o que é possível segundo a verossimilhança e a
necessidade". (Aristóteles, 1992: IX, 50) Sendo assim, o historiador difere
do poeta não por escreverem em verso ou em prosa, mas sim porque o primeiro
diz as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder.[6] Com base
nessa reflexão, Aristóteles conclui que o poeta "deve ser mais fabulador
que versificador; porque ele é poeta pela imitação e porque imita ações. E
ainda que lhe aconteça fazer uso de sucessos reais, nem por isso deixa de
ser poeta." (Aristóteles, 1992: IX, 54)

Se Platão julgara a poesia nociva à sociedade e a banira da "cidade
com logos" por acreditar que ela veiculava idéias falsas, Aristóteles
mostra que a poesia é verdadeira, séria e útil, alcançando uma verdade mais
instrutiva e mais elevada que a história: "O que lhe interessa, no texto
poético, é sua composição, sua poiésis, isto é, a sintaxe que organiza os
fatos em história e em ficção." (Compagnon, 1996: 104) Ele preocupa-se em
diferenciar os planos do ser real e da imagem representada, estabelecendo
possibilidades de reflexão e de comparação entre um e outro. Em seu texto,
a idéia de mimese supõe uma dualidade entre real e representado. Um exemplo
dessa noção é o momento em que o autor lança mão da imagem do cadáver:
"(...) os homens se comprazem no imitado (...). Nós contemplamos com prazer
as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância,
por exemplo: [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres."
(Aristóteles, 1992: IV, 14)

Ao contemplar o cadáver pintado não se vê mais o "cadáver
original", mas algo da ordem do novo, uma representação. "Como se sofressem
uma transfiguração em seu aspecto natural, adquirindo nova existência por
efeito da arte, tais coisas quando imitadas, tornam-se atraentes, dando-nos
prazer contemplar as suas representações".(Nunes, 1989: 29) E o que chama a
atenção de Aristóteles não é o fato de "espetáculos" aparentemente
idênticos despertarem em seus espectadores sentimentos contrários, é
sobretudo o fato desses "espetáculos" — o cadáver e o cadáver pintado — não
serem, em realidade, idênticos.[7]

Uma outra célebre formulação de Aristóteles vai de encontro à
posição de Platão, a questão da catarse (katharsis) produzida pela
tragédia. Efeito estético da tragédia, a catarse seria a neutralização das
emoções, dos sentimentos excessivos, das más paixões, o que estenderia a
sua influência ao plano moral da vida. Segundo Aristóteles, a tragédia por
"suscitar o terror e a piedade" tem o efeito de purgar-nos dessas emoções,
estabelecendo o equilíbrio. (Aristóteles, 1992: IV, 27) Através da questão
da catarse, Aristóteles mantém, sem se ater às dicotomias platônicas, a
subordinação do estético ao plano ético: "Platão considera más tanto as
paixões desagradáveis quanto as agradáveis e aqui também Aristóteles (...)
tem algo a contrapor à concepção do mestre: a excelência ética se atingiria
não através da supressão das paixões, mas de seu controle."(Achcar, 1988:
5)[8]

Como podemos perceber através da leitura da Poética, a
representação não pretende substituir uma coisa por outra. A obra de arte é
entendida como aparência mesma, nem inteiramente real, verdadeira, nem
completa ilusão. A alegoria, aqui, não produz um engano mas uma evocação.
Em Aristóteles:"(...) toda representação é um repor a presença de algo que
já se apresentou. É uma certa repetição de presença: a evocação de uma
presença anterior. Assim como a memória, que traz de algum modo uma
situação que já se presentou e também já se ausentou." (Santoro, 1994: 51)

Já, na República, Platão se volta contra todo tipo de conhecimento
construído pela memória — o discurso mítico encarnado por Homero —
defendendo sua substituição pelo discurso do logos filosófico encarnado
pela filosofia de Sócrates. No momento em que Platão produz sua obra, a
sociedade grega é ainda dominada por formas orais de armazenamento e
transmissão da cultura. A memória (mnemosýne) constitui a viga mestra da
indagação da verdade. A palavra é uma "palavra una" concebida como uma
realidade natural, desconhecedora das sombras e, como tal, bloqueadora de
qualquer reflexão sobre a mimese. Nesse contexto, o poeta é o que, tomado
pelo sopro divino, fala a palavra digna, ocupando posição semelhante à do
herói, do adivinho, do vidente. (Lima, 1980: 13) Ao atacar a arte mimética,
Platão exige que o espírito grego rompa com a herança poética, o exercício
da palavra fixado pela memória e o substitua pela sintaxe de um novo
discurso lógico e não analógico: "O que Platão combatia, portanto, não era
propriamente a poesia, mas uma forma de doutrinação (...), um estado de
espírito e uma sensibilidade dominantes há séculos, desde provavelmente o
chamado período das trevas da história grega." (Achcar, 1988: 7)

Com o advento da tragédia (a partir de fins do século VI a. C.), a
palavra abandona a posição de "palavra una" e desenvolve a ambigüidade,
mostrando-se biface, "palavra em dobra". Esse período é marcado pela
passagem do domínio absoluto da aristocracia para o da progressiva
democratização das instituições da cidade, o que possibilita a instauração
do debate, da controvérsia, isto é, a anteposição dos pontos de vista.
(Lima, 1980: 17-28)

É no interior de uma plena cultura da escrita,[9] que Aristóteles
libera o mimético da rígida legislação do discurso da verdade. Na Poética,
o "imitar", essência comum das artes, é constituidor da natureza humana e
responsável pelo seu desenvolvimento.

Por fim, o que percebemos é que Aristóteles possuía um interesse
estético-teórico pelo poético, estudando-o como poíesis, isto é, processo
produtivo formador, que encontra na criação de uma obra o seu termo final;
enquanto Platão tinha um interesse prático político-pedagógico. Para ele, a
poesia não pertenceria à ordem da poíesis, mas à ordem do delírio, da
inspiração que dispensa o engenho da arte e o substitui por uma moção
exterior, um poder divino.

Referências Bibliográficas

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1996. (Tese para admissão no cargo de professor titular em língua e
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[1] Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas
Gerais e doutorando em Literatura Comparada pela mesma Universidade.
Professor da Faculdade ASA de Brumadinho.
[2] O termo mimesis é freqüentemente traduzido para o Português como
"imitação" e "representação", e por termos equivalentes em outras línguas
modernas. Segundo Hermann Koller, no artigo "Die mimesis in der Antike",
essa tradução é errônea ou pelo menos foge do sentido original da
palavra. De acordo com o autor, mimesis originalmente remete aos cultos e
festas dionisíacos, que eram uma combinação de dança, música e palavras.
Essas festas deram origem à tragédia antiga. (Cf. LEIDEN, Eva C. Keuls;
BRILL, E. J. "Plato's mimesis doctrine", p. 9-32.).

[3] PLATÃO. Diálogos III: A República, p. 217-236. Ao final do segundo e
no início do terceiro livro da República, Platão trata da educação que
convém aos cidadãos de seu Estado ideal. A partir de exemplos retirados
sobretudo de Homero e de Hesíodo, o filósofo grego volta-se contra os
poetas imitativos e sua maneira de representar os deuses. (Cf. PLATÃO.
Diálogos III: A República, p.31-79.)

[4] Platão também irá se ocupar da literatura e da poesia em outros
diálogos como Ion, Hípias, Fedro, Sofista, Leis e O Banquete.

[5] Em sua leitura do diálogo Fedro, de Platão, Jacques Derrida irá
chamar atenção para a importância da imagem do jogo associada à escritura
na obra do filósofo grego. Retomando Platão, ele afirma:" (...) a
escritura só pode (se) repetir, que ela 'significa (semaínei) sempre o
mesmo' e que ela é um jogo". DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão, p.9.

[6] Sobre a questão da fronteira entre história e ficção, ver: PESSANHA,
José Américo Motta. "História e ficção: o sono e a vigília". In: RIEDEL,
Dirce Côrtes (org.). Narrativas: ficção e história, p. 282-301; BRANDÃO,
Jacyntho Lins. Narrativa e mimese no romance grego: o narrador, o narrado
e a narração num gênero pós-antigo e LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do
tempo: estudos sobre narrativa, p.15-121.

[7] Sobre o prazer estético ante o feio, o repugnante, o terrível na
Poética, ver: MARTINEAU, Emmanuel. "Mimèsis dans la 'poetique': pour une
solution phénoménologique (a propos d'un livre récent)", 444-445

[8] Ainda a respeito da paixão no pensamento grego, ver: LEBRUN, Gérard.
"O conceito de paixão", p.17-33.

[9] Sobre a questão do desenvolvimento da escrita entre os gregos, ver:
HAVELOCK, Erick A. Prefácio a Platão.(1996) e A revolução da escrita e
suas conseqüências culturais. (1996).
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