DA PENA DIVINA PINGOU A PRIMEIRA GOTA DE TINTA: O NARRAR COMO UMA

May 23, 2017 | Autor: Sabrina Paixão | Categoria: Education, Arts Education, Comics and Graphic Novels, Mitologia
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DA PENA DIVINA PINGOU A PRIMEIRA GOTA DE TINTA: O NARRAR COMO UMA JORNADA PARA A VIDA EM HABIBI1 From the Divine Pen fell the first drop of ink: The narrative as a journey for life in Habibi

Resumo O estudo busca analisar na obra Habibi como se estruturam as narrativas da personagem Dodola, enquanto contadora de histórias e narradora de sua própria história, e como o narrar está intimamente conectado ao existir e ao sobreviver para a personagem. O objetivo principal é o de verificar como, a luz das dinâmicas da jornada do herói, o ato de narrar se configura como um reduto da memória e guardião da imaginação simbólica, e, extrapolando a função de resgate do passado, age como salvação da própria personagem em uma aproximação contemporânea a uma Scherazade quadrinizada, permeada pela mítica islâmica e pelo poder da palavra.

Palavras-chave: Imaginário Simbólico. Jornada do Herói. Narrativa.

Abstract This study will analyze in Habibi how the character Dodola’s narratives are structured, as a storyteller and narrator of her own history, and how the action of narrate is intimate connect to exist and survive to this character. The principal objective is investigate 1

Parte de monografia em processo, sob o título provisório de “Histórias em Quadrinhos e Itinerário de Formação”, orientada pelo Prof. Dr. Rogério de Almeida- FEUSP/SP. CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2., 2014, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 2, 2014.

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how, with the Hero’s journey dynamics, the act of narrate operate as a memory’s refuge and guardian of the symbolic imagination, extrapolating the rescue of past only, act as a salvation of the character herself in a contemporary approximation with a drawn Scherazade, permeated by the islamism’s mythic and by the power of the words. Keywords: Imaginary. Hero’s journey. Narrative

Considerações Iniciais O trabalho pretende iniciar a discussão acerca da função da narrativa e suas dinâmicas na graphic novel Habibi de Craig Thompson, e como os recursos imagéticos são trabalhados de modo a construir o significado que o ato de contar histórias assume na esfera do cotidiano e do imaginário das personagens principais. A forma que o autor utiliza ao contar e traduzir em imagens a narrativa nos permite vislumbrar um tratamento para a figura arquetípica da contadora de histórias, em um suporte contemporâneo com um enredo centrado em temas que perpassam o imaginário simbólico e propõe uma reflexão atual sobre o espaço da narrativa. Como parte integrante de uma pesquisa em andamento, o recorte proposto neste artigo priorizará a personagem Dodola e as possíveis conexões com outras personagens míticas presentes na literatura que atuam na mesma chave arquetípica, da tecelã e contadora de histórias e que, como Dodola, se utilizam das narrativas como forma de sobrevivência, de salvação perante a iminência da morte. Assim, iremos discorrer sobre o papel das histórias no itinerário de formação, as recorrências simbólicas e sua influência nas esferas do físico e psíquico e no entrelaçamento do sagrado e o profano. Para tanto, o arcabouço teórico metodológico pauta-se nos trabalhos de Joseph Campbell, nas dinâmicas do imaginário propostos por Gilbert Durand, Mircea Eliade e em ensaios de Adélia Bezerra de Meneses. Habibi: arabescos e uma espiral de histórias A obra de Craig Thompson, lançada em 2011 após seis anos de elaboração, apresenta a história dos escravos Dodola e Zam, e sua jornada pela sobrevivência em uma região CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2., 2014, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 2, 2014.

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inóspita e pouco acolhedora para pessoas em sua condição. Desde a captura e venda como escravos, que leva os dois a se conhecerem, a fuga e o refúgio no deserto, a separação e o reencontro dos dois, o leitor é levado por um turbilhão de reviravoltas, apresentado às condições sub-humanas da sociedade no Estado de Vanatólia, onde o luxo e luxúria do palácio do sultão se contrapõem ao lixo e a depravação nas periferias da cidade. Optando por contar uma história centrada no mundo islâmico, e claramente inspirada nas narrativas d’ As Mil e uma noites, o autor direciona toda a arte gráfica para a arte árabe, não apenas na escrita, mas também no tratamento das páginas e dos recursos gráficos. Esta escolha permite que o leitor mergulhe mais profundamente neste ambiente, compreendendo o poder e importância que a palavra e a expressão artística possuem na estética mulçumana, pois se conecta diretamente com o Divino. As letras, signos gráficos, são desmembradas e apresentadas em sua essência com a experiência divina da criação do mundo, demonstrando porque a caligrafia é uma arte tão apreciada no mundo islâmico e sua conexão com os famosos arabescos e mosaicos desenvolvidos pelos muçulmanos. Tal qual a moldura do livro sagrado e dos templos, as páginas do quadrinho vão sendo emolduradas por mosaicos e formas espiraladas, denotando graficamente as passagens da história sagrada contadas por Dodola. A Palavra, no sentido estritamente sagrado, possui no quadrinho sua tradução mais fiel, pois ela é em sua essência imagem, ou representação de uma imagem.

Figura 1.Habibi. Thompson, Craig. 2012, p.405

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Esta forma de contar histórias em quadrinhos é apontada por Santiago García como retomada do “valor da página como elemento visual, como unidade gráfica que não apenas se lê, mas se olha”

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e do intercâmbio entre a palavra e a imagem na busca de um equilíbrio

de importâncias na configuração da página e maior valorização da materialidade do livro em detrimento do formato canônico do quadrinho comercial. Este é descrito como um movimento recente composto por jovens autores, que vem rompendo com a tradição de narrativa cinematográfica, experimentando novos recursos narrativos e produzindo graphic novels com grande volume de páginas em edição de volume único. Craig Thompson é introduzido neste novo movimento com seu primeiro trabalho Retalhos, lançado em 2003, que lhe rendeu um Einser Award. Em Habibi, que significa amado em árabe, é uma história de amor a que acompanhamos a evolução do amor entre uma mulher e um homem, que se inicia nos laços afetivos que unem dois órfãos, passa pelo amor de mãe com o qual Dodola cria Zam (quando eles se conhecem, Zam tem apenas três anos, e ela doze), até o desejo e a satisfação física dos amantes. E o modo pelo qual Thompson trabalha este enredo é que nos conectará com a forte simbologia do fio de histórias. O fio das histórias pode ser relacionado com o fio da vida, um símbolo recorrente e diferentes cosmogonias. Mircea Eliade aponta esta simbologia: De fato, o “fio da vida” simboliza em bastantes países o destino humano. (...). Mas mais ainda: o próprio Cosmos foi concebido como um tecido, como uma enorme “rede”. (...). Daí resulta que um simbolismo bastante ramalhudo exprima duas coisas essenciais: por um lado que no Cosmos como na vida humana, tudo está ligado a tudo por uma textura invisível e, por outro lado, que certas divindades são senhoras destes “fios” que, em última instância, constituem uma vasta ligação cósmica. 3

O destino que está para ser tecido será a trilha. Dodola e Zam se encontram e se separam ao sabor do destino. E a voz que nos narra os percalços do destino é de Dodola. É possível distinguir três fios condutores desta narrativa: o momento presente, tomado como o ponto 2 3

GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p.254 ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Editora Arcádia, 1979,p. 111-112.

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de vista da ação e da localização das personagens em cada capítulo; a rememoração, onde Dodola narra fatos do passado que atuam esclarecendo o momento presente e fornecendo ao leitor informações importantes já que a narrativa não é linear, momento marcado graficamente pelas bordas das páginas em preto, e as histórias sagradas, onde Dodola conta ou lembra-se de passagens que se relacionam com os ensinamentos do Corão. São estes os três fios que tecem a história, e quem manipular o tear e entremeia o fuso é Dodola, a tecelã, com suas palavras. Tecelãs das palavras A figura da tecelã é recorrente nas mitologias e cosmogonias de diferentes culturas. O ato de tecer, de urdir a trama é por vezes utilizado como metáfora para a criação do Universo e do destino dos homens, e salvo raras exceções, o papel de trabalhar o fio é ocupado pela mulher. Dentre o rol de personagens humanas e divinas, podemos citar as mais conhecidas pelo mundo ocidental: Penélope, a fiel esposa de Ulisses, que tece um trabalho sem fim, de forma a retardar seu triste destino de escolher um novo marido, na esperança do retorno de seu esposo. Segundo Adélia Bezerra de Meneses em uma análise desta personagem, o nome Penélope denota sua função na narrativa “Penélope: aquela que tece. Seu próprio nome (grego: Penelopéia) revela sua vocação: do grego “pene”, fio de tecelagem e, por extensão, trama, tecido. ”4·. O motivo que leva Penélope a tecer diz respeito ao domínio do Tempo, questão que retomaremos adiante. Ainda no universo da mítica helênica, destacamos Aracne, a tecelã que desafia Athená Penitis5, e que acaba transformada em aranha, cumprindo seu destino de tecer eternamente. A terceira personagem que nos interessa aqui é Filomena, irmão de Procne. Filomena é violentada por seu cunhado Tereu, rei da Trácia, que depois deste ato hediondo corta-lhe a língua e a encarcera em uma torre. Para narrar à irmã o que lhe aconteceu, Filomena tece uma tapeçaria onde conta o fato. Descobrindo assim o que houve, Procne salva sua irmã e as duas buscam sua vingança.

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MENESES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995.p.201 5

Athena tecelã. Referência a uma das artes que Athena era patrona. Meneses, 1995, p. 200. Grifos no original.

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Impossibilitada de falar, Filomena tece. Através dos fios e da arte de bordar, próprio das mulheres, ela conta sua história. Estabelecendo paralelos entre o tecer e o narrar, nos deparamos com as figuras de linguagem que permanecem em nosso vocabulário conectando o fazer narrativo, ou literário, com o ato de tecer: o fio da narrativa, o enredo, a trama, dentre outras. E, tomando a palavra como o fio e a voz como a agulha, nos deparamos com Scherazade. O Livro das mil e uma noites é composto por um compilado de histórias da tradição oral, que se estendem entre a Síria, o Irã e o Egito, e que tornou o Oriente e suas maravilhas conhecidos no ocidente através de diversas traduções a partir do século XVIII. Importante ressaltar que o Oriente do qual se fala não faz referência ao território e organização reais, mas a um Oriente, como aponta Borges, “que não existe” 6. Este é o Oriente dos jinn, dos magos e reis poderosos, de tesouros escondidos, ladrões, amores e violência. O Livro das Mil e uma noites construiu um imaginário acerca do Oriente que é compartilhado e conhecido no mundo ocidental, e que encontraremos também referenciado em Habibi. Filomena, sem o poder da fala, tece. Penélope, sem o poder da escolha, borda. Scherazade, para vencer a morte e salvar a todas as mulheres, conta histórias. E Dodola, como esta personagem se relaciona com suas antecessoras?

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BORGES, Jorge Luis. Siete Noches. Cidade do México: Editorial Meló, 1980.p.24 (livre tradução nossa).

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Figura 2. Dodola e Zam. Habibi. Thompson, Craig. 2012, p.121

Narrar e sobreviver No Livro das mil e uma noites Scherazade vai conquistando um dia a mais de vida, levando o sultão a adiar a sentença de morte para ouvir a continuidade de suas histórias. As narrativas de Scherazade atuam como um bálsamo que cicatriza as feridas e apazigua a ira de Schariar.

De seu sucesso depende a salvação de si, de todas as jovens do reino e do

próprio sultão, e é através do enredo de entremeado de suas narrativas que ela pode vencer. Nesta recorrência simbólica, Scherazade e Penélope tecem como forma de ganhar tempo e de dominar um poder masculino através de uma arte feminina: “A trama da narrativa não é um fio: é uma teia, com todas as suas ramificações, e nessa teia ela enreda o Sultão” 7. Mas não é apenas a habilidade de trabalhar o fio, seja do tecido ou da palavra, que as equipara. Implicitamente encontramos uma artimanha que compõe a forma de resistência feminina nestas histórias: a astúcia.

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Meneses, 1995, p. 46.

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Como sobreviver em um mundo dominado pelo poder masculino, dominado pelo desejo, que subjulga e explora o corpo feminino? Schariar, vítima de uma traição, impõe uma lei na qual ele se desposará uma jovem por noite, e após deflorá-la, a envia para a morte. Penélope, em vista da imposição de um novo casamento, busca um modo proteger seu corpo e sua fidelidade, esperando o retorno de Ulisses. Ambas se utilizarão de astúcia para proteger o feminino da brutalidade masculina. Scherazade oferece seu corpo em função de salvar todas as mulheres do reino, e através do poder da palavra tece uma teia em torno de Schariar. Penélope se refugia na tradição e impõe uma condição para as novas bodas, ganhando tempo. Nestas narrativas, vemos as personagens se valerem dos atributos femininos (o corpo, a voz, a astúcia e a tecelagem) de modo a dominar o Tempo. Em Habibi, a trajetória de Dodola é composta por elementos comuns a esta estrutura mítica, que possui dinâmicas próprias e um pouco distintas das definidas na jornada do herói masculino. A jornada do herói, como definida por Joseph Campbell, nos fornece um itinerário mais ou menos completo de estruturas de organização simbólica presentes na base mítica de diversos povos. Tende-se a relacionar a jornada do herói com a figura masculina e um caráter de domínio do masculino. Contudo, a figura feminina também comunga deste itinerário, que é alterado em alguns de seus passos, por conta da natureza diferenciada da busca feminina pelo (auto) conhecimento que a jornada proporciona. Em Habibi, estas diferenças são apresentadas como constituintes da própria narrativa gráfica, e toda a jornada de Dodola se relaciona com a questão do Tempo, seja o tempo de espera, o tempo das narrativas ou o próprio fluxo narrativo do enredo. Como citado ao começo do texto, o percurso da personagem na história ocorre em um movimento espiralado, sendo a espiral o melhor recurso simbólico para compreensão da narrativa em termos de sua estruturação. Christopher Vogler pontua rapidamente a questão de gênero na jornada do herói na introdução de sua obra: (...) a jornada das mulheres pode se desenvolver em espiral para o interior e o exterior. O espiral pode ser uma analogia mais exata para a jornada das mulheres do que uma linha reta ou um simples círculo. (...) com a mulher fazendo a jornada para dentro na direção do centro e em seguida se expandindo para o exterior outra vez. 8

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VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.20. CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2., 2014, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 2, 2014.

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É nesta dinâmica espiral que o enredo se enovela. O leitor é apresentado ora a história das personagens em tempo presente, ora as lembranças. Os capítulos podem iniciar em uma narrativa da mítica islâmica, e logo se desdobrar nas relações cotidianas. Cabe destacar que Dodola é a narradora e que suas histórias são, em boa parte da graphic novel, contadas para si. Assim é possível compreender a questão do dominar o Tempo em Habibi. Dodola possui histórias-memórias, que são acessadas em momentos distintos. São os três fios condutores que citamos no início que organizam esta busca por dominar o tempo. O que definimos como momento presente se trata do tempo “real” da narrativa, no qual as personagens estão agindo no que seria o presente. Em cada capítulo este tempo presente se desloca, impedindo a constituição de uma linearidade, ainda que se excluam as passagens de rememoração. Por exemplo, tomamos o primeiro capitulo, no qual Dodola apresenta sua história. Ela é vendida por seu pai a um escriba, que a toma como esposa e a ensina a ler e escrever. É assim que sabemos como ela aprendeu as histórias do Corão e as histórias da tradição oral árabe. Em um ataque, seu esposo é morto e ela levada como escrava. Em seguida ela declara: “Aquilo aconteceu há três anos”9. E a partir desta declaração o leitor é situado no tempo presente deste capítulo: Dodola tem doze anos e mora com Zam em um barco encalhado no deserto. No capitulo seguinte, Dodola tem vinte e um anos e está grávida, presa no harém do Sultão e deste presente, ou seja, neste tempo atual da personagem, ela narrará através de suas memórias como conheceu Zam. A rememoração é a ferramenta que permite ao leitor conectar as pontas soltas entre os capítulos, compondo o painel do passado de Dodola e de Zam, como se conheceram, se separaram e se reencontraram. Nos anos que passou com Zam vivendo no barco, Dodola conta histórias para educá-lo e apaziguar seu medo. Nos anos em que fica separada de Zam, Dodola submerge em suas memórias como forma de se preservar do seu presente terrível no harém do sultão. Dodola se entrega a suas lembranças como forma de sobreviver longe de Zam e suportar sua realidade no harém, e preservar através das memórias a presença dele em sua vida, enquanto espera a passagem do tempo, alimentando a esperança de reencontrá-lo.

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THOMPSON, Craig. Habibi. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2012, p.23.

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Figura 3.Dodola. Habibi. Thompson, Craig. 2012, p.274

Assim com suas narrativas Dodola busca lidar com o tempo, seja de modo a reter os momentos passados com Zam, seja de modo a não sentir a passagem do tempo em que vive aprisionada no harém. Imersa em memórias, a personagem vai tentando sobreviver, e nas histórias da tradição árabe, ela encontra o conforto e salvação que a palavra divina pode proporcionar. A pena divina, a palavra divina “Da Pena Divina pingou a primeira gota de tinta. E aquela gota virou rio” é como se inicia a graphic novel. Tudo advém da Palavra Sagrada, da Pena Divina que traçou o que existe. E compreender como as histórias sagradas se conectam ao destino dos homens é a tarefa empreendida por Dodola ao longo da obra. Como terceiro fio desta trama, as histórias de cunho sagrado contribuem para compor o pano de fundo do espaço no qual o enredo está inserido, o Oriente, alimentando o arcabouço moral, ético e cultural em que as personagens estão inseridas, e reforçam a ação de elementos do Sagrado no cotidiano. As histórias sagradas se articulam de forma a estabelecer conexões com as personagens e o que elas estão vivendo, servindo como um filtro norteador para a compreensão das situações cotidianas. Destacaremos duas passagens a título de exemplo.

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No primeiro capítulo Dodola narra por que Zam tem este nome. Seu nome verdadeiro era Cam, mas, segundo a narradora, este nome não lhe cabia. A palavra Zam possui um significado ligado a encontrar água. E contando a história de como Ismael, filho de Abraão, ao ser abandonado com sua mãe no deserto, fez jorrar uma fonte de água abundante, que é chamada de Zamzam, Cam, que também encontra uma fonte no deserto, tem seu nome trocado para representar seu destino, que será o de prover água. Ao longo do quadrinho, a história da fonte Zamzam é retomada de modo a marcar o destino da personagem.

Figura 4Habibi. Thompson, Craig. 2012,p.42-44

Outra passagem merece destaque, pois trata do poder da palavra e de como Dodola e Zam lidam com esta palavra divina aplicada ao cotidiano. Desde o início da obra, Dodola confecciona para Zam um amuleto, para que ele se sinta protegido dos jinn. Este amuleto é composto por letras que formam a palavra Bismillah, uma fórmula invocativa que abre cada sura do Corão (exceto a nona), e significa, seguindo a tradução que a graphic novel utiliza, CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2., 2014, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 2, 2014.

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Em nome de Deus, Cheio de compaixão, Sempre Compassivo. Quando Zam descobre que Dodola se prostitui para as caravanas em troca de comida, ele tenta encontrar comida por conta própria para que ela não tenha de se prostituir novamente. Como ele se afasta demais da região do barco, Dodola briga com ele, e durante a briga, revela a origem de seu próprio nome. Neste momento, após contar sua história para Zam, ela conclui “Zam se acalmava com as histórias. (...) O que Zam realmente compreendia- por instinto, talvez superstiçãoera o poder das palavras” 10. Bismillah é uma fórmula fundamental na prática islâmica, e sua grafia se desdobra na arte da caligrafia, que cria, a partir da palavra, imagens. Assim, é da tinta Divina que as primeiras histórias são escritas, e recontar as histórias é uma forma de fixar no cotidiano a atuação do Sagrado.

Figura 5.Habibi. Thompson, Craig. 2012, p.38-39

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THOMPSON, 2012, p. 179-182

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Considerações finais São muitas as vertentes de investigação possíveis em Habibi, dado o volume de referências imagéticas que ele trabalha em sua obra. A proposta aqui foi analisar um recorte muito pontual de uma alusão arquetípica que identificamos, a da contadora de histórias, sua relação estreita com a figura da tecelã e a metáfora do tecer com histórias. Dodola compartilha com Penélope, Filomena e Scherazade uma jornada em comum, como personagem feminina que se utiliza da palavra, do corpo e da astúcia para sobreviver em uma situação de domínio masculino. Esta graphic novel se insere em uma recente forma de contar histórias em quadrinhos, tomando a obra em seu todo, imagem e texto intrinsecamente interligados compondo uma leitura mais complexa da história. Ao inserir seu enredo no universo árabeislâmico, Thompson agrega uma cultura que já carrega a habilidade de extrair da palavra sua representatividade gráfico-visual. E por conta disso, o autor consegue moldar uma história que conecta a vivência do sagrado na prática profana das personagens, revitalizando a função que contar histórias tem no cotidiano. Ainda no rol das mulheres que tecem, nos mitos Greco-romanos temos a presença das Moiras (em grego), ou Parcas (em latim). São as três tecelãs atemporais responsáveis por tecer e cortar o fio da vida dos humanos. Esta premissa é estruturante da tragédia grega: não se pode escapar ao Destino. Porém, aqui não há corte ao final da história. Habibi é uma narrativa que se enovela, onde não é possível desembrenhar onde o fio começa e termina. Chegando a página final o autor não releva o que acontecerá a Dodola, Zam e a família que eles constituem. O final é uma história de pontas soltas, esperando para serem tecidas na mente de cada leitor, em uma trama de infinitas possibilidades.

Referências BORGES, Jorge Luis. Siete Noches. Cidade do México: Editorial Meló, 1980. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007. CONGRESSO INTERNACIONAL DA FACULDADES EST, 2., 2014, São Leopoldo. Anais do Congresso Internacional da Faculdades EST. São Leopoldo: EST, v. 2, 2014.

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DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1988. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Editora Arcádia, 1979. GARCÍA, Santiago. A novela gráfica. São Paulo: Martins Fontes, 2012. LESSA, Fábio de Souza. Expressões do feminino e a arte de tecer tramas na Atenas clássica. Humanitas, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, nº 63, p. 143-156. 2011. Disponível em: < http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/humanitas63_1>. Acesso em: 30/06/2014 MENESES, Adélia Bezerra de. Do poder da palavra: ensaios de literatura e psicanálise. São Paulo: Duas Cidades, 1995. NARS, Helmi.Tradução do sentido do nobre Alcorão para a língua portuguesa. AlMadinah: Complexo do Rei Fahd, 2005. THOMPSON, Craig. Habibi. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2012. VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estruturas míticas para escritores. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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