Da perspectiva dos moradores de favelas: percepções sobre a PMERJ (Meeting COPP-LAB: Circulações de Polícias em Portugal, África Lusófona e Brasil, 2014)

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!1

Polícia, Saberes e Formação. !

!

Evento organizado pela "COPP-LAB: Circulações de Polícias em Portugal, África Lusófona e Brasil. !

!

Universidade de Brasília,16 e 17 de outubro de 2014!

!

! ! Da perspectiva dos moradores de favelas: percepções sobre a PMERJ Dr. Marcus Cardoso INCT-InEAC

!

Neste paper apresento e interpreto material etnográfico obtido

junto

aos

moradores

do

Cantagalo

e

do

Pavão-

Pavãozinho, favelas cariocas situadas entre os bairros de Copacabana e Ipanema, na Zona Sul do município do Rio de Janeiro. Eu realizo incursões etnográficas nas duas localidades desde

2001,

quando

participei

da

pesquisa

intitulada

“Violência, Sociabilidade e Espaço Público”, que tinha como objetivo acompanhar a implantação de um projeto piloto de policiamento

comunitário.

De

modo

básico,

a

pesquisa

procurava mapear a percepção dos moradores das duas favelas sobre a atuação do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (GPAE). Desde então, a percepção nativa sobre a polícia tornou-se objeto do meu interesse. Nos anos de 2001, 2002 e 2004 estive em campo sempre interessado na forma

como

os

moradores

significavam

e

vivenciavam

a

!2 presença policial nas duas favelas, assim como o impacto disso no funcionamento do projeto implementado pelo governo do estado. Em seguida, no ano de 2007, retornei ao campo motivado pela memória dos moradores sobre o GPAE, assim como pelas interpretações que elaboravam para explicar o seu fracasso. Em 2013 e 2014, mais uma vez regresso ao campo de pesquisa, agora interessado na percepção local sobre a UPP. Durante todos esses anos, o eixo de reflexão girou em torno

das

reclamações

sobre

a

polícia

e

demandas

por

respeito à direitos. Isto porque, tal como entendo, para meus interlocutores,

falar das instituições policiais e

seus agentes implica, de forma explícita ou implícita, em falar de concepções locais sobre justiça e direito. Tendo justamente direitos,

isto

em

mente,

abordar

a

insatisfações

meu

interesse

correlação com

a

neste

entre

polícia

e

paper

é

concepções

de

demandas

por

respeito, tal como me foram apresentadas. Passo

agora

interlocutores

As

a

apresentar práticas

as

falas

policiais

dos

apontadas

meus como

problemáticas pelos moradores das duas favelas são aquelas vivenciadas como um ato de desrespeito aos seus direitos e/ ou desconsideração à pessoa. Grosso modo, as reclamações que surgem com maior frequência podem ser dividas em três grupos: acusações de corrupção; uso de violência abusiva

!3 que

pode

ou

não

resultar

em

execução;

e

as

incursões

policiais, que ameaçam a integridade física dos moradores. ** Quando

uma

ou

mais

viaturas

da

Polícia

Militar

percorriam as ruas que dão acesso às favelas, era comum escutar

alguém

expressão resignação



dizendo:

carregada



exprime

“hoje

com bem

é

dia

forte

o

do

pagamento”.

conteúdo

juízo

que

de

tinham

ironia acerca

A e da

polícia. A percepção era de que os policiais que atuavam nas

duas

favelas

mantinham

um

acordo

corrupto

com

o

“movimento”. “Não morador



comércio

faz

nada”

implica de



tal

dizer

drogas

como

que

o

ilícitas,

foi

declarado

tráfico

pode

exercendo

o

por

um

manter

o

controle

coercitivo sobre os demais habitantes das favelas sem que se

sintam

policial.

ameaçados Destarte,

humilhações

por

casos

cometidos

responsabilização

uma de

possível

abusos,

por

compartilhada

interferência

ameaças

traficantes com

os

à

vida

e

tinham

a

policiais.

que, na percepção do meus interlocutores,

Visto

os agentes se

omitiam, abrindo o caminho para que tráfico se comportasse como bem entendesse. Muitas polícia

o

vezes,

em

cumprimento

suas

queixas,

daquilo

que

eles

cobravam

acreditam

ser

o

da seu

papel: proteger as “pessoas de bem”. A presença da polícia

!4 não estava associada à garantia da integridade física ou à garantia

da

segurança,

tampouco

estava

associada

à

repressão à comercialização de drogas ilícitas ou à busca dos indivíduos que cometeram delitos, mas sim como parte do acordo que permitia o controle do local pelo tráfico e que prejudicava

o

cotidiano

daqueles

que

não

pertenciam

ao

movimento. ** Além da corrupção, denúncias de violência cometida por policiais também são recorrentes. Grosso modo, as práticas que se enquadram nesta categoria são de duas ordens: os abusos

de

excessiva

autoridade e

os

com

homicídios,

a

utilização

sobretudo

de

aqueles

violência nos

quais

havia a suspeita de execução. Segundo

a

percepção

que

têm

da

polícia,

os

assassinatos com características de execução podem vitimar qualquer pessoa: homem ou mulher, criança ou adulto, sejam elas pertencentes ao “movimento” ou sejam “trabalhadores”. Ainda dentro deste universo de significação, os motivos que fazem

com

que

os

policiais

ultrapassem

os

limites

dos

procedimentos legais transitam entrem o “acerto de contas” e – tal como me disse uma moradora – a “pura maldade”, expressão da perversidade e da violência dos policiais. O “acerto de contas” é a motivação atribuída quando se trata

de

casos

que

envolvem

indivíduos

pertencentes

ao

!5 “movimento”,

como,

por

exemplo,

incapacidade

de

pagar

extorsões ou o fracasso de uma negociação corrupta entre os envolvidos.

Também

estão

dentro

do

chamado

“acerto

de

contas” casos em que indivíduos suspeitos da prática de pequenos furtos a lojas do bairro mobilizam a atenção dos policiais. Assim, podemos entender que o “acerto de contas” é quando o assassinato de uma ou mais pessoas abrange o universo das relações entre policiais e pessoas envolvidas com alguma modalidade de crime. Algo bem diferente são as mortes, com características de

execução,

das

chamadas

“pessoas

de

bem”.

É

quando

pessoas que não mantiveram relações consideradas localmente como

promíscuas

com

o

comércio

ilegal

de

drogas

são

assassinadas por policiais que o acontecido é vivenciado como

um

insulto

moral.

Agressões

desta

natureza,

na

perspectiva local, revelam a incapacidade e/ou a recusa dos policiais em reconhecer a diferenciação entre as “pessoas de bem” e os envolvidos com o crime. Justamente por isso, são vivenciados como desrespeito e humilhação. Falta apresentar o último conjunto de reclamações às quais aludi. Refiro-me aos tiroteios e à maneira como as operações policiais são conduzidas dentro das favelas. A partir da década de 1980, o perfil do crime na cidade do Rio de Janeiro transformou-se, e os grupos que dominavam a comercialização das drogas passaram a organizar-se a partir

!6 das áreas pobres. Desde então, episódios de enfrentamentos entre grupos rivais que desejavam controlar determinados pontos de venda de drogas tornaram-se recorrentes, assim como as incursões policiais nas favelas. No Cantagalo e no Pavão-Pavãozinho não foi diferente. Como se percebe a partir das narrativas, episódios desta ordem fazem parte da história local. Viver nas favelas envolve uma parcela de risco que não é passível de cálculo, visto

que

não

se

sabe,

ao

certo,

quando

os

confrontos

explodirão. Se

a

dificuldade

de

antever

esses

confrontos

gera

apreensão, a postura adotada pelos policiais potencializa os riscos. Segundo os moradores, nenhum tipo de precaução é adotada para preservar a integridade física das “pessoas de bem”. Assim como acontece com as outras queixas, a condução das

operações

policiais

Pavão-Pavãozinho

são

nas

favelas

vivenciadas

do

como

Cantagalo

e

do

demonstrações

de

desrespeito com aqueles que não possuem envolvimento com o tráfico. Os depoimentos dos meus interlocutores apontam que o entendimento

que

têm

dos

seus

direitos

guarda

relação

direta com expectativas por tratamentos respeitosos e por demonstrações de cuidado. O primeiro podendo ser traduzido como tratamento que preserve a dignidade dos moradores, e o

!7 segundo, como a adoção de procedimentos que demonstrem a preocupação dos policiais com a sua segurança. A

expectativa

de

ser

tratado

como

esperam

não

corresponde aos preceitos constitucionais que garantem o alcance universal dos direitos de cidadania. Não se trata de conceber que todos tenham direitos e devam ser tradados de forma igual, segundo o que é previsto na lei. Isto fica claro quando se percebe a presença recorrente de categorias como

“pessoa

de

bem”

e

“trabalhador”

nos

depoimentos.

Buscar os significados que estas e outras categorias ganham no

contexto

em

que

são

acionadas

permite

aprofundar

a

reflexão para que se compreenda quais são as qualidades individuais capazes de preencher os requisitos necessários que tornam uma pessoa merecedora de consideração dos seus direitos. É a adesão à “ética do trabalho” (que distingue a “pessoa de bem” do “marginal”) que habilita os sujeitos a serem

respeitados.

Acioná-la

para

criticar

a

postura

policial sublinha a sua diferenciação em relação àqueles que optaram por aderir ao “movimento”. A

insatisfação

com

o

procedimento

policial

fica

evidenciada quando comparam a condução das operações nas duas favelas com as operações nas áreas nobres da cidade. Segundo entendem, quando os policiais atuam nesses lugares, cercam-se de cuidados de modo a não colocar em risco a

!8 integridade física das pessoas, lançando mão do uso da força, sobretudo no que se refere à utilização de armas de fogo,

apenas

como

procedimentos

último

adotados

por

recurso. policiais

Para

eles,

expressam

que

os as

diferenças nas abordagens derivam da percepção que opõe os moradores de favelas e os do asfalto, quando o que deveria operar é o reconhecimento da oposição entre “trabalhadores/ pessoas de bem”, de um lado, e “traficantes/bandidos”, de outro. Passagens como “a maioria aqui é gente que trabalha”, que associam esta condição à expectativa de ser respeitado e de ter sua segurança considerada, aproximam os moradores das favelas daqueles que moram na Vieira Souto. Os que trabalham

e

não

se

associam

ao

crime

deveriam

ser

respeitados, independente da sua condição socioeconômica. Entretanto,

a

prática

policial

aproximação,

desconsiderando

não

qualquer

reconhece

esta

diferenciação

que

seja relevante a ponto de conduzir estratégias que não coloquem em risco a vida das “pessoas de bem”. Como aludi anteriormente, a prerrogativa de ter seus direitos habitantes

respeitados das

não

favelas.

se

estende

Segundo

a

à

totalidade

percepção

local,

dos há

pessoas que devem ser tratadas de forma que tenham seus direitos preservados – onde os abusos são considerados um atentado à sua dignidade – e há aqueles que, devido ao

!9 envolvimento com o movimento, estão sujeitos a se tornarem alvos de abusos. Isto porque, no entendimento deles, optar pelo crime significa assumir o risco inerente à escolha. Da mesma forma que os moradores não entendem as agressões dos traficantes

contra

os

usuários

de

drogas

ou

contra

indivíduos que pertencem ao grupo rival como um atentado aos

seus

direitos

e

dignidade,

também

entendem

que

a

relação entre polícia e tráfico envolve uma outra lógica. Os

moradores

distinguem

valorativamente

quem

é

do

movimento e quem não é, e nesta distinção eles se colocam numa posição moralmente superior aos traficantes. Em última análise, isto significa dizer que as “pessoas de bem” não deveriam ser objeto do mesmo tipo de tratamento dispensado ao “movimento”. Nos últimos anos tenho me interessado indagar o sentido que

os

moradores

Pavãozinho importância

das

atribuíam que

favelas à

do

atuação

determinadas

Cantagalo policial,

noções

e

e

do

Pavão-

destacando

categorias

a

locais

sobre direitos e justiça adquiriam na estruturação das suas narrativas. destas

Em

outro

concepções,

momento

eles

demonstrei

articulavam

que,

suas

por

meio

demandas

por

tratamento que os reconhecesse como sujeitos portadores de dignidade. Propus então que a chave para o entendimento das demandas dos moradores estava na centralidade ocupada pela categoria

local

de

respeito.

Nos

últimos

anos

tenho

!10 analisado as narrativas dos moradores do Cantagalo e PavãoPavãozinho a partir da contribuição de Cardoso de Oliveira (2002;

2010)

direitos

de

para

a

grupos

discussão socialmente

que

envolve

vulneráveis

demandas no

de

contexto

brasileiro. Com isso, tanto ele quanto eu temos realizado uma aproximação entre aquilo que os moradores das duas favelas chamam de respeito com o conceito analítico de demanda por reconhecimento. Cardoso de Oliveira sugere que, apesar da noção de igualdade sobre

a

ocupar

um

lugar

efetivação

dos

central

dentro

direitos,

das

reflexões

constituindo-se

na

principal medida para a avaliação da cidadania desde o trabalho de Marshall, a apreciação da sua capilaridade no interior produzir

de um

uma

dada

sociedade

entendimento

não

tem

sido

satisfatório

das

capaz

de

demandas

contemporâneas por respeito a direitos. Em outros termos, muitas das demandas por direitos e conflitos que vemos atualmente não são passíveis de entendimento pela simples concepção formalista de que todos são iguais perante a lei. Para entendê-las é necessário enfocar a maneira como as noções de igualdade, justiça e dignidade articulam-se no contexto das relações sociais conflituosas. Em um cenário como este, a noção de dignidade é fundamental. Destarte, as insatisfações

ou

conflitos

apresentados

não

são

frutos,

necessariamente, da percepção de que os direitos, dentro de

!11 uma concepção normativa de igualdade, são desconsiderados. Em muitas situações conflituosas o que está em jogo é o reconhecimento reivindica

um

da

condição

tratamento

moral

do

respeitoso

demandante

que

não

que

fira

sua

dignidade. Mas é necessário indagar das

duas

favelas

chamavam

o que é isso que os moradores de

respeito.

Certamente

suas

reclamações encontram respaldo nas normas constitucionais. Afinal de contas corrupção, violência policial, execuções e adoção de procedimentos que colocam em risco suas vidas são práticas passíveis de punição legal. Todavia, a categoria respeito, tal como elaborada pelos meus interlocutores, não tem este caráter. Isto fica claro quando se observam os recorrentes acionamentos de categorias como “pessoa de bem” e

“trabalhadores”

como

qualificantes

que

permitem

explicitar a insatisfação com o tratamento arbitrário e violento. O

modelo

nativo

revela

uma

concepção

de

mundo

hierarquizada, que atribui status diferenciado para aqueles que

vivem

indivíduo

na a

localidade determinadas

a

partir

da

atividades

adesão

ou

criminosas.

não

do

Dentro

desta perspectiva, quem não aderiu ao tráfico, optando por sustentar a si e sua família por meio de atividades formais ou informais que não a venda de drogas, assaltos ou furtos, se concebe como moralmente superior em relação àqueles que

!12 praticam estas atividades. Trata-se de um entendimento que utiliza

uma

determinada

ética

do

trabalho

construída

localmente como base para atribuição de status, e que, no entendimento daqueles que não se associaram ao bando local, justifica suas reivindicações por tratamento diferenciado. O que as “pessoas de bem” verbalizam querer é serem “respeitadas”. como

um

Tratamento

direito.

presente

na

Mas

desta

não

formulação

um da

natureza direito

é

no

cidadania

reivindicado mesmo

sentido

eurocêntrica,

prerrogativa de todos os cidadãos, estejam eles em conflito com a lei ou não. Trata-se de um direito das “pessoas de bem”. Meu material etnográfico indica que estamos diante de um cenário que revela a presença da concepção de diretos como privilégios de categorias morais e sociais. Neste sentido, o que querem as “pessoas de bem” é serem

alvo

de

justificativa

um o

tratamento

diferenciado

reconhecimento

daquilo

que

que

tem

como

Cardoso

de

Oliveira chamou de substância moral das pessoas dignas. Se conceber como moralmente superior fundamenta a expectativa de

receber

tratamento

“respeitoso”

dos

policiais.

Procedimentos adotados por policiais que não expressem o reconhecimento da diferença entre elas e os “bandidos” são experimentados como um insulto.

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