DA RAZÃO INSTRUMENTAL EM MAQUIAVEL À TEORIA DO RECONHECIMENTO DE HONNETH: ampliando os conteúdos da cidadania

June 29, 2017 | Autor: Gustavo Batista | Categoria: Philosophy, Social Sciences, Political Science
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DA RAZÃO INSTRUMENTAL EM MAQUIAVEL À TEORIA DO RECONHECIMENTO DE HONNETH:
ampliando os conteúdos da cidadania

Gustavo Barbosa de Mesquita Batista[1]






Introdução





Nicolau Maquiavel viveu numa época de grandes incertezas. Quentin
Skinner define o final do século XV e início do século XVI como a Era dos
Príncipes, ou segunda fase da renascença tardia (2006: 134 -159). A
península itálica encontrava-se nesse período com boa parte do território
ocupada por forças estrangeiras (Nápoles e Lombardia), outro tanto entre às
possessões reclamadas pela Igreja e o restante dividido como cidades-
república ou principados em porções territoriais menores. A guerra havia se
tornado um mal permanente e imperava uma completa instabilidade política.


Em meio à desordem o que propõe as reflexões de Maquiavel é um agir
instrumental que fortaleça o Estado e garanta a sua liberdade diante do
avanço das potências estrangeiras e da expansão do poder temporal da
Igreja. Nesse sentido, como afirma Hannah Arendt, a discussão das formas de
governo, principados ou repúblicas, é uma reflexão secundária no pensamento
do autor florentino, cujo objetivo central é o tema do Estado (2002: 300).
Conservar o Estado é conservar o poder político e insere o pensamento de
Maquiavel dentro de um tema secular, permitindo sua classificação entre os
pensadores do Renascimento tardio italiano.


Para Axel Honneth (2003), existe uma luta por reconhecimento
estabelecida entre relações de pretensões e resistências intersubjetivas.
Estas lutas podem, como resultados históricos, operar ampliações do
conteúdo de cidadania e superar o modelo tradicional moderno de cidadania
aparente. Também se propõe, a partir disto, a superação do modelo racional
instrumental, ao menos nos intervalos históricos do reconhecimento, por um
modelo mais apto a lidar com o conflito de racionalidade complexa e
dicotômica, fortemente baseado no pensamento de hegeliano.






2. Conceitos fundamentais na Obra de Maquiavel






A visão de Maquiavel acerca da natureza humana e dos acontecimentos
históricos é pessimista e cíclica, muito semelhante à tese do eterno
retorno defendida por Friedrich Nietzche. Desta forma, as formas de governo
ou os estados giram na roda da fortuna, sendo tudo um ciclo pelo qual todos
passam (MAQUIAVEL, 2007a: 16 – 17). Daí o que importa é ordenar o Estado de
uma maneira tal a fim de que se possa prolongar sua existência e garantir
sua liberdade (autonomia ou soberania), independente dos humores
historicamente presentes.

Arendt compreende esta preocupação como inerente ao
pensamento de Maquiavel e pressupõe que a partir desta
concepção foi que o pensador florentino resolveu separar a
religião da política e propor um agir público diverso do que
é determinado pela moral cristã. A laicização proposta por
Maquiavel não é apenas simbólica, mas efetivamente prática.
Entretanto, não sendo o autor do Príncipe um ateu, ainda
assim, conforEle quer por em risco sua alma e enfrentar a
danação eterna pelo seu país (...) Talvez haja egoísmo
naqueles que vivem por sua própria salvação ao invés de
redimir seu país. Aqueles que não amam o mundo, mas amam sua
própria alma são maus para o mundo: a maldade do mundo é a
bondade das almas puras (ARENDT, 2002: 300).





Há alguns princípios que se revelam ao longo da obra de Maquiavel como
nucleares para o propósito de descrição das relações sociais e políticas
pretendidas pelo pensador florentino. O princípio de verdade efetiva ou
verità effetuale que compreende que devemos analisar os fatos políticos
como eles são, ou seja, como realmente eles se apresentam no cotidiano
social e histórico, mas não por ideias e abstrações inexistentes. As forças
políticas são medidas pelas relações reais de poder efetivo: exercício de
comando, poder sobre as armas e apoio popular ou de classe. Trata-se de um
princípio que sugere ao pensador político o domínio dos fatos políticos,
históricos e sociais em todas as suas dimensões, sem se espantar com
possíveis horrores ou selecionar apenas alguns aspectos destes para a
gravação de sua análise, construindo conceitos diversos daqueles que
efetivamente acontecem. A política não existe numa dimensão ideal, mas real
e efetiva, pronunciando-se pela força e pelo exercício real de poder. O
poder ou é efetivo ou não é poder.


Maquiavel dedica ao tema da religião preciosas linhas de suas
reflexões políticas. Primeiramente, exalta a necessidade do aspecto
religioso para o fortalecimento do caráter do homem e sua integração
política. Desta forma, analisa a contribuição positiva da religião pagã
sobre o povo romano, servindo de estímulo e convencimento para os
guerreiros e fórmula básica de ordenação simbólica do espaço social. Há
entre a "religião" e as "armas" uma perfeita simbiose. Neste sentido:





E quem considerar bem as histórias romanas, verá como a
religião servia para comandar os exércitos e infundir o
ânimo na plebe, para manter os homens bons e fazer com que
os reis se envergonhem. De tal modo que, caso houvesse uma
disputa para se saber a que príncipe Roma devia mais, se a
Rômulo ou a Numa, creio que Numa ficaria em primeiro lugar:
porque onde há religião, facilmente se podem introduzir
armas; e, onde houver armas, mas não houver religião, esta
com dificuldade poderá ser introduzida (Maquiavel, 2007a:
50).





O fato é que para se consolidar um Estado é necessário infundir uma
"moral política" fundamentada em regras disciplinadoras das relações
humanas e sociais. A base sobre a qual se constroem estas relações são
muito mais sensíveis de que propriamente racionais. Muito embora, a
aceitação deste princípio sensível para a ordenação social, convirja para
uma construção simbólica garantidora do agir instrumental. Esta é a
principal razão para a utilização simbólica da religião na ordenação do
espaço social. Desta forma:

E, de fato, nunca houve ordenador de leis extraordinárias,
em povo nenhum, que não recorresse a Deus[2], porque de
outra maneira elas não seriam aceitas: pois há muitas boas
coisas que os homens prudentes conhecem, mas que não têm em
si razões evidentes para poderem convencer os outros. Por
isso, os homens sábios, que querem desembaraçar-se dessa
dificuldade, recorrem a Deus. Foi o que fizeram Licurgo,
Sólon e muitos outros que tinham as mesmas dificuldades
(Maquiavel, 2007a: 50)





Por outro lado, no tocante ao papel da Igreja Romana Cristã, Maquiavel
denuncia sua contribuição para a desordem em que se encontrava a Itália.
Isto não por causa de suas cerimônias ou do seu culto divino, elementos
importantes para manter incorrupto um Estado e manter a esperança popular
por intermédio da profissão de fé. Entretanto, o pensador florentino
critica a Igreja por aquilo que ela não conseguiu preservar, ainda que de
forma aparente. Estando a sede do poder temporal católico próxima do povo
italiano, ao invés de fortalecer sua fé, tornou visível todas as humanas
vicissitudes da Corte Pontifícia, realçando os escândalos ali presentes e
não mantendo as aparências, tão necessária à razão instrumental de
ordenação social.


Assim, para Maquiavel, esta proximidade da Itália com a sede do poder
temporal da Igreja foi maléfica, de forma que discorrendo ele acerca do
tema pronuncia o seguinte:





E, como muitos são de opinião que o bem estar das cidades da
Itália provém da Igreja romana, quero expor as razões que me
ocorrem para contrariar tal opinião (...) A primeira é que,
pelos maus exemplos daquela Corte, a Itália perdeu a devoção
e toda religião, o que acarreta infinitos inconvenientes e
infinitas desordens; porque assim como se pressupõe todo bem
onde há religião, pressupõe-se o contrário onde ela falta.
Portanto, nós italianos temos para com a Igreja e os padres
essa primeira dívida, que é a de nos termos tornado sem
religião e maus; mas temos ainda outra dívida e maior, que é
a segunda razão de nossa ruína. É que a Igreja manteve e
mantém esta terra dividida (2007a: 54-55)





A segunda razão da crítica pronunciada em relação à Igreja no tocante
à situação italiana era que esta ao invés de ter contribuído para a
unificação da península itálica, havia, antes, impedido que tal unificação
ocorresse, mantendo o seu território dividido e permitindo invasões
estrangeiras em seu auxílio. Nesse sentido, Maquiavel compara a Itália com
a França e a Espanha e preceitua:





E a razão da Itália não estar nas mesmas condições e de não
ter também uma só república ou um só príncipe para overna-la
é somente a Igreja: porque, tendo ela aqui estabelecido sede
e governo temporal, não teve força nem virtù suficiente para
ocupar o restante da Itália e tornar-se seu príncipe,
enquanto, por outro lado, não foi bastante fraca para, por
medo de perder o domínio das suas coisas temporais convocar
a ajuda de algum poderoso que a defendesse contra aquele que
tivesse se tornado poderoso demais na Itália (2007a: 55).





Outra razão para isto foi o fato de que com o predomínio do poder
temporal da Igreja, multiplicaram-se as "armas mercenárias" atuando na
Itália, motivação exposta no clássico de Maquiavel, o Príncipe, quando ele
discorre que:

Tens que entender, portanto, como o Império rapidamente
começou, nestes últimos tempos, a ser expulso da Itália e
como o Papa ganhou mais poder temporal, e a Itália se
dividiu em vários Estados porque muitas cidades grandes
pegaram em armas contra os seus nobres – os quais,
primeiramente, favorecidos pelo imperador, as oprimiram - ,
e a Igreja as favoreceu para dar a si poder no plano
temporal; em muitas outras cidades seus cidadãos se tornaram
príncipes. Assim, tendo a Itália quase caído nas mãos da
Igreja e de algumas repúblicas, e sendo aqueles padres e
aqueles outros cidadãos não habituados no uso das armas,
começaram a pagar forasteiros. (MAQUIAVEL, 2007b: 135)



Dentro da perspectiva de verdade efetiva que comanda as relações
políticas, o comando das armas torna-se um elemento natural do exercício do
poder. O domínio estrangeiro ou a contratação mercenária das armas
enfraquecem este exercício do poder, tornando-o, no caso italiano,
susceptível às desordens e às revoluções.


Para Maquiavel o homem não é um ser contemplativo capaz de
naturalmente incorporar virtudes ideais provenientes de uma ordem superior.
Todavia, o homem é produto das suas experiências e da história das
instituições que deveriam promover o seu bem estar junto à sociedade.
Obviamente, isto torna o homem apto a transformar estas instituições e
reordená-las de acordo com uma perspectiva histórica de análise e em
virtude de sua busca incessante por justiça e felicidade. Muito embora esta
qualidade, denominada por Maquiavel como virtù não é um atributo de todos
os homens. E, mesmo assim, para além da virtù, no campo político, os homens
devem contar com a fortuna, ou seja, as condições favoráveis que se lhe
apresentem no seu tempo histórico. A virtù sem a fortuna (sorte) não é nada
e a fortuna sem a virtù é incompleta. O homem sempre dependerá de ambas no
exercício do poder político: virtù e fortuna. Qual a contribuição de cada
uma delas em nossas vidas, Maquiavel expõe o seguinte:

Todavia, para que nosso livre arbítrio não seja extinto,
julgo ser verdadeiro que a fortuna seja árbitra de metade
das nossas ações, mas que ela ainda nos deixa governar a
outra metade, ou quase. E comparo a fortuna a um desses rios
danosos que, quando enfurecem, alagam as planícies, arruínam
as árvores e os edifícios, levam terra desta parte e põem-na
noutro lugar: qualquer um foge em sua presença, todos cedem
ao seu ímpeto sem poder impedi-lo de modo algum. E ainda que
sejam assim, aos homens nada impede que, quando os tempos
estão calmos, tomem providências, com proteções e diques: de
modo que, ao se avolumarem depois, ou iriam por um canal ou
o seu ímpeto não seria nem tão violento, nem tão danoso.
Ocorre o mesmo à fortuna, a qual demonstra o seu poder onde
a virtù não é ordenada para resisti-la: e então volta o seu
ímpeto para onde ela sabe que não se fizeram os diques e as
proteções para contê-la. (2007b: 235-237)



Desta forma, o homem de Maquiavel torna-se senhor da ação e do seu
destino. Logo, de acordo com a interpretação de Maurice Merleau – Ponty:





(...) o pessimismo de Maquiavel não é, pois, fechado. Ele
indicou mesmo as condições de uma política que não seja
injusta: será aquela que satisfaz o povo. Não que o povo
saiba tudo, mas, porque, se alguém é inocente é ele (2002:
304)





Por isto:

Deixando de lado a clássica questão com respeito às
verdadeiras intenções de Maquiavel – finalmente, teria ele
sido "maquiavélico" ou não? – Lefort retém insistentemente
uma observação do florentino acerca de "duas tendências
diversas" que se encontram em toda polis: "o povo não deseja
ser governado nem oprimido pelos grandes, e estes desejam
governar e oprimir o povo". Com isso, observa nosso autor
(Lefort, grifo nosso) "o filósofo florentino havia, bem
antes de Marx, percebido a divisão de classes em todas as
sociedades históricas". Só que, à diferença de Marx, ele não
cria a possibilidade de sua superação. Mais do que isso, via
nessa divisão a razão mesmo da polis, vale dizer, de um
espaço público agenciado em sua função. Noutros termos, foi
lançado um olhar positivo sobre os "bons efeitos produzidos"
pelos tumultos que opuseram o Senado e a plebe romana.
(OLIVEIRA, 2010: 47-48)



Numa das passagens mais interessantes do Livro Primeiro dos Discursos,
Maquiavel comenta acerca das desordens oriundas da Lei Terentila (lei
agrária). Nesse sentido, sugere que graças às constantes guerras em virtude
da expansão do Império Romano, a formação de colônias e deslocamento de
parte do povo romano em razão desta expansão territorial e a possibilidade
da plebe ocupar magistraturas, o que lhe permitiu dividir as honras com a
nobreza, houve uma protelação da eclosão da crise originada pelas
determinações da referida lei. Todavia, todas estas "distrações"
(aparências) não evitaram o conflito com base na lei agrária o que implicou
guerras civis e o fim da República Romana com a instalação do Principado.


O fato é que a Lei Terentila, resultado da luta de classes presente em
Roma, impunha limites para a ocupação agrária, contrapondo, em definitivo,
os interesses da plebe aos interesses latifundiários da nobreza. E como os
homens estimam mais o patrimônio de que as honras, se outrora a nobreza
consentiu que as honras (magistraturas) fossem divididas com a plebe, o
mesmo não aconteceu com relação ao patrimônio. Observando este fenômeno,
Maquiavel comenta:





(...) as repúblicas bem ordenadas devem manter rico o
patrimônio público e pobres os seus cidadãos, forçoso é que
na cidade de Roma houvesse algum defeito nessa lei: ou ela
não foi bem feita desde o princípio, de modo que não
precisasse ser revista todos os dias (2007a:113).





Assim, os particulares estão dispostos a defender seu patrimônio seja
contra os concidadãos, seja contra o Estado. Nestes casos, se sua riqueza
tiver um patamar extraordinário, acaba-se produzindo violências muito
maiores de que aquelas provenientes do próprio Estado. Produz-se mais
violência para manter e conservar as riquezas de que para garantir o Estado
ou a ordem pública.


Diante de desordens como as originadas pela Lei Terentila, Maquiavel
sugere contemporizar, tendo em vista ser praticamente impossível e perigoso
para o Estado corrigi-la após ter se instalado (2007a: 116). Logo, dentro
da teoria das aparências, defendida por Maquiavel, deve-se buscar dividir
as honras de tal maneira que elas mascarem a concentração do patrimônio, ou
dêem a idéia de que há, ao lado dos méritos conquistados junto ao Estado,
uma igual distribuição das riquezas. Esta aparência cria o moderno conceito
de cidadania, uma vez que, efetivamente nem todos possuem condições
efetivas de poder para o exercício das funções que lhes são atribuídas. Há
uma dicotomia simbólica entre o que pressupõe a ordem estatal e o efetivo
exercício do poder político e social. Todavia, somente podemos exercer esta
cidadania dentro desta ordem aparente, ou seja, dentro do "sistema" criado
paralelo ao "mundo da vida" que nos permite viver em dois tempos: um social
e contínuo e outro particular e finito.


Aqui, mais uma vez Hannah Arendt esclarece que:





Em política: devemos aparecer, ver e ser vistos, ouvir e ser
ouvidos, o que mostramos é o que somos e não o inverso. O
que somos não é importante, é privado. A glória é o apogeu
da aparência e ela só é possível onde outros vêem e onde eu
sou visto (2002:301).





Portanto, a dimensão em que sou visto e, conforme o que os outros
veem, traduz a construção de um espaço social público que se encontra
ordenado por princípios, muitas vezes não correspondentes à realidade da
vida. Em termos políticos, conta aquilo que efetivamente é exercido
enquanto força e poder. Todavia, as funções aparentes expandem as
possibilidades de participação, ainda que não importando uma superação do
conflito. Na verdade, estas funções aparentes adiam os distúrbios e os
tumultos, mas não fazem desaparecer a contradição e o conflito.


A lei das aparências sugere igualdades muitas vezes inexistentes no
campo real e efetivo das relações sociais e políticas. Todavia, é este um
pressuposto necessário para a ideia de cidadania universal e para o
respeito universal, por exemplo, aos direitos humanos. Conscientes de que a
desigualdade econômica sugere um ambiente hostil e desleal de concorrência
social e política, os direitos humanos propõem uma construção simbólica e
aparente da igualdade. O conceito de pessoa abstrai, simbolicamente, as
distinções de classe e de grupos, oportunizando os elementos necessários
para uma aproximação da construção contemporânea dos direitos com as
propostas da teoria das aparências de Maquiavel.






3. O conflito Social e as dimensões políticas da razão instrumental e do
reconhecimento






Por intermédio da teoria das aparências, os pensamentos de Maquiavel e
Arendt se aproximam, especialmente quando esta retrata o conflito entre a
espacialidade pública e privada. Na primeira, espacialidade pública,
permite-se que se utilize das aparências para dizimar ou diluir o conflito,
deixando-o dissolver ao longo do tempo e assim agir politicamente no mundo
das aparências, onde nada conta, senão o que aparece (ARENDT, 2002: 301).


Na segunda, a espacialidade privada, conta-se que o homem mortal
desapareça (ou seja, morra), portanto concede-se a ele a possibilidade de
viver isolado (idiota) e morrer sem lembrança. A diluição do conflito é
efetivada pela própria finitude do homem. O homem que morre, cujo tempo que
flui contra si o faz caminhar diariamente para a morte, tem, neste tempo em
si mesmo, a própria solução dos problemas que o cotidiano lhe revela. Um
homem morto significa um dado a menos para o conflito social que lhe
sobrepõe.


Entretanto, para os homens, a imortalidade somente é possível por
intermédio da aparência, pois é este agir politicamente que lhe fará
lembrado no mundo que continua após a sua morte. Agir no espaço público faz-
se necessário para que se alcance a eternidade. Este espaço público detém o
tempo social e institucional, que é contínuo, marcado pela história e pelo
eterno retorno dos dados conflitivos inerentes à humanidade, sua
diversidade e desigualdade. Neste espaço público também se preservam as
memórias e são elas que asseguram a imortalidade. Amar o mundo é desejar o
que a experiência humana pode realmente demonstrar que continua, ainda que
tenha se extinto a vida (ARENDT, 2002: 302).


A idéia da continuidade deste espaço público e da limitação
existencial e política de um cidadão particular é tratada por Maquiavel
quando se posiciona favorável à punição do Horácio, que ao retornar da
vitória heróica sobre os Curiácios de Alba, mata a própria irmã. Desta
forma, esclarece Maquiavel:

(...) nenhuma república bem ordenada jamais usou os méritos
de seus cidadãos para anular os seus deméritos, mas tendo
ordenado prêmios para as boas obras e penas para as más,
mesmo tendo premiado alguém por uma boa obra, castigá-lo-á
depois, sem consideração alguma por suas boas obras, caso
ele venha a cometer uma má ação (...) Porque, se num cidadão
que tenha realizado alguma excelente obra em favor da cidade
se somarem à reputação proveniente desta obra a audácia e a
confiança de cometer uma ação que não seja boa sem temor de
punição, este em breve se tornará tão insolente que se
dissolverá toda a autoridade da lei [civiltà] (2007a: 85-
86).



Com isto, o autor esclarece que o espaço público deve ser preservado
acima de qualquer interesse particular e que o exercício de poder é
contínuo não observando qualquer restrição ou decurso de tempo. Aliás,
retrata neste espaço político de atuação o que de mais próximo da
eternidade podemos conceber, nos limites de nossa humana finitude. Trata-se
de algo que perdura no tempo e diferencia-se da espacialidade e do tempo
cursado por nossa vida particular: o poder do Estado e a organização da
sociedade.


De qualquer forma, para que esta racionalidade maior não se perca, é
necessário conclamar, historicamente, as responsabilidades individuais
daqueles que comprometem a ordem estabelecida e promovem desordens. Não
importa que eles sejam os heróis históricos de um povo, mas a ordem deve
ser preservada por sua responsabilização em virtude da prática de graves
violações aos ditames desta ordem superior.


Há como estabelecer uma ponte possível entre os dois espaços de ação:
público e privado? No pensamento de Maquiavel somente existe, em princípio,
elementos que conectem estas formas de agir e reproduzam o reconhecimento
entre ambos os espaços por meio desta responsabilidade histórica e
determinada. Apesar do agir instrumental tornar-se o elemento máximo da
modernidade e se encontrar, desde o princípio, vinculado à teoria das
aparências exatamente para diluir o conflito no tempo, as responsabilidades
conclamadas individualmente são o elemento de vinculação histórica entre o
agir político público e o agir particular. Em Arendt, a (in)capacidade para
pensar, exigida pela consciência desta finitude da vida humana e da
brevidade existencial para a realização do projeto de humanidade, tornam-se
um elemento de ligação possível entre os dois tempos dicotômicos: público e
subjetivo. (ARENDT, 1999)


Entretanto, a teoria de Maquiavel vê o conflito como elemento de
irrupção da desordem, por isso sua preocupação em diluí-lo no tempo e dotar
o Príncipe de condições políticas e de forças para controlar as situações
de conflito, adiando as desordens ou combatendo-as. Não existe espaço para
uma relação dialógica com o conflito, pelo contrário, o que se busca é a
neutralização deste, ou seja, sua incapacitação política no sentido da
reprodução dos possíveis malefícios políticos atribuídos a ele. Por isso:

Tanto para Hobbes como para Maquiavel, resultam dessas
premissas de ontologia social, tidas em comum, malgrado toda
a diferença na pretensão e no procedimento científicos, as
mesmas consequências relativas ao conceito subjacente de
ação política; porque ambos, de maneira análoga, fazem da
luta dos sujeitos por autoconservação o ponto de referência
último de suas análises teóricas, eles veem do mesmo modo,
como fim supremo da práxis política impedir reiteradamente
aquele conflito sempre iminente. No caso da obra de
Maquiavel, essa consequência se torna visível pela
radicalidade com que ele liberou a ação do soberano voltada
para o poder de todos os vínculos e atribuições normativas,
em detrimento da tradição da filosofia política; já no caso
de Thomas Hobbes, a mesma consequência se mostra pelo fato
de ele ter sacrificado afinal os conteúdos liberais de seu
contrato social à forma autoritária de sua realização
política. (HONNETH, 2003: 35-36)



Por outro lado, na teoria política de Maquiavel, apesar da legitimação
autoritária dada ao Príncipe para o controle político do conflito, ele não
determina que isto significaria a sua superação. Pelo contrário, confirmou-
se pelo pensador florentino, inclusive uma contínua tomada de contas
históricas, porque o conflito irá sempre promover a desordem política que
conclama responsabilidades históricas específicas. No momento destas crises
cíclicas, a responsabilidade social conclamada pode determinar que os
tempos sociais (subjetivo e público) dicotômicos se entrecruzem e produzam
um reconhecimento recíproco.


A problemática desta distinção entre ações humanas principia por se
pronunciar, exatamente no momento em que esta ação instrumental não
consegue recuperar os dados existenciais da vida particular dos homens ou
atribuir corretamente tais responsabilidades históricas. O tipo de vontade
de agir estimulado pela prática instrumental é uma vontade de potência nos
moldes niezschteano que impedem uma reação dialógica e não legitimam, em
princípio, qualquer resistência. Na realidade, a oposição é vista como "um
tempo privado e finito" a ser superado para a instalação do modelo estatal
ou social pretendido como "tempo público e contínuo". Aí todos os "tempos
particulares" podem ser dissolvidos na nova "aparência temporal pretendida
pelo Estado". No modelo de ação instrumental, instalado pelos pensadores
modernos, entre eles Maquiavel, compete ao poder político combater e
dissolver a divergência, mas não reconhece-la ou dialogar com ela. Na
verdade, o conflito é visto como elemento de desordem, jamais como uma
possibilidade de enriquecimento ou ampliação de direitos e reconhecimento
de identidades sociais.


É sobre o modelo de ação política instrumental que extraímos as
experiências totalitárias do século XX, tanto a socialista soviética,
quanto aquela nazista. Este não reconhecimento dos tempos privados
(subjetivos), mesmo de forma aparente, determinava a exclusão e extermínio
dos tempos subjetivos considerados de oposição e possíveis elementos de
desordem social ou política. Também, em virtude dela, obtemos uma análise
de uma contínua luta por reconhecimento.


Todavia, não há como se estabelecer um espaço público democrático sem
a contribuição desta intersubjetividade, sendo o próprio sistema social
produto dos reconhecimentos de identidades subjetivas que funcionam por
intermédio dele. Os dois tempos sociais devem se entrecruzar continuamente
e não somente nos momentos de chamada da responsabilidade histórica.
Portanto:

O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a
relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva
da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como
pessoas, unicamente porque, da perspectiva dos outros que
assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos
como seres a que cabem determinadas propriedades e
capacidades. A extensão dessas propriedades e, por
conseguinte, o grau de autorrealização positiva crescem com
cada nova forma de reconhecimento, a qual o indivíduo pode
referir a si mesmo como sujeito: desse modo, está inscrita
na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na
experiência do reconhecimento jurídico, a do autorrespeito
e, por fim, na experiência da solidariedade, a da
autoestima. (HONNETH, 2003: 272)



Por isso, a luta entre os tempos e ações humanas nas respectivas
espacialidades, é uma luta por reconhecimento, pela busca incessante dos
dados existenciais e de identidade demonstrarem à razão instrumental
moderna as contradições de sua teoria das aparências trazendo o tempo
social o mais próximo possível dos tempos individuais pretendidos para a
realização do projeto humano de justiça e felicidade, no seu próprio tempo.
Portanto:

A distinção de Habermas entre "sistema" e "mundo da vida"
veio responder, portanto, à exigência de um conceito de
racionalidade complexo, em que a racionalidade instrumental
passa a ser limitada, de modo a não sufocar e obscurecer as
estruturas comunicativas profundas presentes nas relações
sociais. Trata-se de um conceito de sociedade em dois
níveis, em que a reprodução material é obtida por mecanismos
de coordenação da ação tipicamente instrumentais (cuja
lógica caracteriza o domínio social do "sistema"), em que a
reprodução simbólica depende de mecanismos comunicativos de
coordenação da ação (cuja lógica caracteriza o "mundo da
vida") (NOBRE In: HONNETH, 2011: 13-14)



O projeto de humanidade deve considerar os vários projetos
existenciais e a ideia de finitude, não como um elemento solucionador dos
conflitos, mas como um elemento crítico, apto a redimensionar o conflito e
exigir o cumprimento dos objetivos de justiça e felicidade no plano
limitado e breve da vida humana. Sobre este ângulo, a finitude humana não
deveria ser considerada instrumentalmente como uma fórmula de solução do
conflito, mas como uma angustiante exigência de brevidade para a realização
do projeto de humanidade e a assunção das responsabilidades históricas.
Logicamente, isto compreende o homem dentro do exercício de uma capacidade
crítica e de reflexão que o diferencia, em termos de consciência moral, de
todos os demais seres vivos. Por isso, nesta angustiante brevidade do tempo
da vida, também é necessário percebermos, no tocante à responsabilidade,
que:

Em termos morais, é tão errado sentir culpa sem ter feito
nada específico quanto sentir isenção de toda a culpa quando
se é realmente culpado de alguma coisa. .Sempre considerei a
quintessência da confusão moral que, durante o período do
pós-guerra na Alemanha, aqueles que em termos pessoais eram
totalmente inocentes assegurassem uns aos outros e ao mundo
em geral quanto se sentiam culpados, enquanto muito pouco
dos criminosos estavam prontos a admitir sequer o remorso
mais tênue. O resultado dessa admissão espontânea de culpa
coletiva foi, claro, uma caiação muito eficaz, embora
involuntária, daqueles que tinham feito alguma coisa: como
já vimos, quando todos são culpados, ninguém o é (...) Não
existem coisas como a culpa coletiva ou a inocência
coletiva. A culpa e a inocência só fazem sentido se
aplicadas aos indivíduos (ARENDT, 2004: 90-91)



Para a sociedade, a experiência do reconhecimento em seus três níveis:
amor, direito e solidariedade, já seria uma mudança natural da postura.
Mudança esta suficiente para alicerçar experiências que nos permitem tratar
o conflito como um elemento natural e integrante do meio social e apto a
nos enriquecer em termos de direitos e de autocompreensão coletiva.






Conclusão






É lógico que nem sempre, a razão instrumental e teoria das aparências,
permite-nos uma efetivação dos princípios morais que interligam o "sistema"
e o "mundo da vida". Nem sempre, também, as responsabilidades são tomadas
dentro do seu tempo histórico, o que não significa, em princípio, uma
submissão ou alienação das classes excluídas e subalternas que sofrem a
opressão. Todavia, existe nesta luta histórica por reconhecimento várias
possibilidades de integração e autocompreensão social ou coletiva,
incorporando experiências que, cada vez mais, sugerem a necessidade de
intervalos históricos de superação da razão instrumental moderna,
abrangendo formas racionais mais complexas e dotadas da aptidão para o
reconhecimento e para uma nova percepção social do conflito.


Por fim, mesmo quando os grupos excluídos são impedidos de superação
da razão instrumental, isto não significa uma atitude de submissão,
alienação e passividade. Naturalmente, há um sentimento de justiça que se
incorpora nos desejos e nas aspirações comuns dos grupos sociais excluídos,
demonstradas por pequenos gestos ou práticas bastante simbólicas. Neste
agir simbólico, as categorias sociais oprimidas, confiam numa possível
tomada de responsabilidade histórica dos grupos dominantes pela opressão
sofrida num tempo futuro mais favorável. Por outro lado, entendem que o
tempo histórico será o elemento de transformação e de justiça que não foi
possível no tempo de vida finita dos sujeitos injustiçados. Não é uma
simples passividade, mas um exercício de fé e de esperança nas mudanças a
serem operadas pela contínua passagem do tempo.


O fato de, simplesmente, se reconhecer um injusto (ainda não o
direito) e aspirar à mudança social que corrige a injustiça, mesmo que sem
forças próprias para a revolução dos quadros institucionais apresentados ou
entregando às mãos de Deus e à ação do tempo, faz com que esta operação de
fé e esperança na mudança social desejada, já seja, em si mesma, uma ação
válida de discordância e de resistência, ao menos ao nível intelectual. São
estes gestos simbólicos que se unem reproduzindo-se culturalmente e levando
ao reconhecimento de direitos e ampliação das subjetividades integrantes da
espacialidade pública com poderes para decidir. A luta por reconhecimento é
uma hipótese única de ampliação dos conteúdos da cidadania e superação das
aparências produzidas pela razão instrumental em busca de uma efetiva
simetria (correspondência) das condições políticas de participação.





Referências


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Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


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HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos
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2002, p. 303 – 307. Disponível em: http://www.scielo.br\pdf\ln\n.55-
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NOBRE, Marcos. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica In:
Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
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OLIVEIRA, Luciano. O Enigma da democracia: o pensamento de Claude Lefort.
Piracicaba: Jacintha Editores, 2010.


SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. Trad. Renato
Janine Ribeiro e Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
(2006);





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[1] Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos do Núcleo de
Cidadania e Direitos Humanos do CCHLA e de Direito Penal na graduação em
direito do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB.
[2] Neste sentido, o Preâmbulo da Constituição da República Federativa do
Brasil: "Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem –estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a
proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL. Esta simbologia descrita por Maquiavel, no sentido de se procurar
legitimar, por intermédio de Deus, os atos políticos parece ainda está
bastante viva na consciência política contemporânea e brasileira. Trata-se
de um argumento de legitimação bastante utilizado como tópico linguístico
fortalecedor das decisões e da comunicação prestada. Muito embora, traduz
uma referência de difícil comprovação, por isso a praticidade de se
socorrer em Deus quando a matéria encontra dificuldades para obter
fundamentação ou legitimidade originária. No caso de uma Assembleia
Constituinte, como poder originário e revolucionário, trata-se de um
argumento que reforça a legitimidade da reunião que cria a Lei Maior de um
país.
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