Da razão que liberta à experiência que dá sentido: inquietações sobre Educação Ambiental, Sexual e para a Saúde numa escola plural

May 29, 2017 | Autor: Maria Luiza Gastal | Categoria: Educação em ciências, Educação Em Direitos Humanos
Share Embed


Descrição do Produto

ROBERTO DALMO VARALLO LIMA DE OLIVEIRA GLÓRIA REGINA PESSÔA CAMPELLO QUEIROZ (Organizadores)

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

2016

Copyright © 2016 Editora Livraria da Física 1ª Edição Direção editorial José Roberto Marinho Coordenação geral da Coleção Contextos da Ciência Carlos Aldemir Farias Iran Abreu Mendes Revisão Francielly Baliana Projeto gráfico Typodesign Diagramação e capa Fabrício Ribeiro

Edição revisada segundo o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tecendo diálogos sobre direitos humanos na educação em ciências / Roberto Dalmo Varallo Lima de Oliveira, Glória Regina Pessôa Campello Queiroz, (organizadores). – São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016. – (Coleção contextos da ciência) Vários colaboradores. Bibliografia ISBN 978-85-7861-386-0 1. Cidadania 2. Ciências - Estudo e ensino 3. Educação em direitos humanos 4. Educação intercultural I. Oliveira, Roberto Dalmo Varallo Lima de. II. Queiroz, Glória Regina Pessôa Campello. III. Série. 16-00302

CDD-507 Índices para catálogo sistemático: 1. Direitos humanos: Educação em ciências 507

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sejam quais forem os meios empregados sem a permissão da Editora. Aos infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998.

Editora Livraria da Física www.livrariadafisica.com.br

CAPÍTULO 7 Da razão que liberta à experiência que dá sentido: inquietações sobre Educação Ambiental, Sexual e para a Saúde numa escola plural “A desestabilização dessa universalidade requer uma transformação do olhar que, desde o lugar de professores e professoras de biologia, lançamos sobre o outro, o diferente. Um olhar que resista ao conforto da homogeneização e reconheça a rede de relações sociais, culturais e afetivas que sustentam conceitos que poderiam, de modo aligeirado, ser classificados como “errôneos”. Com isso, pretendemos trazer para debate a ideia de que o objetivo de se abordar esses temas - saúde, ambiente, sexualidade - nas classes de biologia não deveria ser o de mudar comportamentos com base em um conhecimento seguro (o que pode envolver, inclusive, traços de autoritarismo e violência), mas o de oferecer ao estudante, em sua condição de cidadão, maior espaço de liberdade e de escolha”. Maria Luiza Gastal Maria Rita Avanzi

Da razão que liberta à experiência que dá sentido: inquietações sobre Educação Ambiental, Sexual e para a Saúde numa escola plural Maria Luiza Gastal Maria Rita Avanzi

Inquietações Vinheta 1 Professora: Então, gente, quais vocês pensam que são as finalidades do ensino de ciências? Licenciando 1: Acho que serve para ensinar sobre o mundo... A ciência fala de coisas que estão em todos os lugares. Licencianda 2: Eu acho que é para ensinar a pensar! Licencianda 3:Pois eu acho que ensinamos ciência para que os alunos se livrem dos mitos. Professora: Você pode explicar o que entende por mito?

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

217

Licencianda 3: As coisas sem sentido que as pessoas fazem por não saber como são de verdade. Coisas como pensar que comer manga com leite pode matar... Mas também coisas mais importantes. Tipo: se eu explicar para ele as consequências de fazer sexo sem camisinha, se explicar bem como se usa, ele não vai sair por aí transando de qualquer jeito, as meninas vão evitar ficar grávidas.

A conversa transcrita acima, real, é reencenada, com algumas variações, quase todos os semestres. Quando conversamos com nossos alunos e alunas de licenciatura em ciências biológicas a respeito de educação ambiental, educação em saúde ou educação sexual, escutamos, com frequência, falas sobre a importância da escola e do professor no sentido de provocar mudanças nos estudantes em relação a esses temas. Assim, nos dizem, caberia à escola ensinar o cidadão a cuidar do ambiente, só comer alimentos saudáveis e somente praticar sexo seguro (entendendo “sexo seguro” como aquele que mantém os/as adolescentes afastados das Doenças Sexualmente Transmissíveis e as garotas livres da gravidez). De nossa parte, sempre os provocamos afirmando que, se é essa a missão de professores e professoras, temos falhado fragorosamente em nossa função. A sociedade, a despeito dos esforços da escola, continua consumindo de modo descontrolado. Nem mesmo os professores e profesoras costumam ser parâmetros de consumo consciente. O mesmo vale para alimentação. A despeito de serem capazes de representar a pirâmide alimentar e de enumerar malefícios dos alimentos industrializados em suas provas

218

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

de ciências, as crianças (e os adultos) seguem consumindo salgadinhos e refrigerantes. E mesmo sendo capazes de usar com maestria e habilidade um preservativo, adolescentes continuam engravidando. Duas perguntas, portanto, podem se colocar. A primeira: o que pode ser considerado um ensino bem sucedido, nesses três campos que fazem parte do currículo de biologia? E a segunda, que deve preceder a anterior: qual o objetivo de tratar tais assuntos na escola, mais precisamente em aulas de biologia? Mesmo que as perguntas se apliquem, evidentemente, a qualquer assunto, elas podem, no caso desses, em particular, nos levar a pensar por que e como ensinar Biologia numa perspectiva de autonomia e ampliação de possibilidades de leitura de mundo29. Ao se contrapor ciências e outras formas de conhecimento, costuma-se enfatizar o que seriam as possibilidades libertadoras das ciências com respeito a dogmas e mitos presentes nesses outros saberes. Baseado em evidências empíricas, dizem as vozes das ciências, o conhecimento científico pode libertar o ser humano de falsas crenças que dificultam sua vida, apontando o caminho reto e luminoso da razão. Assim seremos livres. Paradoxalmente, há uma crença de que, ao conhecer “os fatos” da ciência, o indivíduo é levado de forma inexorável a tomar certas decisões - “as corretas”-, como a de ingerir alimentos saudáveis, assumir posturas ecologicamente 29 Leitura de mundo é aqui empregada na acepção trazida por Paulo Freire (1987) em A importância do ato de ler: “... a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo, mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente” (p. 13)

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

219

sustentáveis e fazer sexo seguro. Neste sentido, o saber não libertaria, mas obrigaria o indivíduo a fazer determinadas escolhas. A provocação que pretendemos trazer neste texto trata de duas inquietações. A primeira refere-se a uma aposta exclusiva na razão como farol para nossas ações cotidianas, inclusive nossa prática educativa. A segunda inquietação diz respeito a um descompasso entre uma intenção libertadora, que anima discursos e práticas de ensino de ciências da natureza sobre os temas saúde, sexo e meio ambiente, e certa tendência à padronização. Nela, as práticas educativas ganham contornos prescritivos que transferem normas e comportamentos definidos em certo contexto cultural, a partir de conhecimentos produzidos pelas ciências, a outros contextos. São tais inquietações que utilizamos para aproximar as reflexões desenvolvidas neste texto daquelas que tratam de educação em direitos humanos. Trazidas aqui como propostas para o início de um diálogo sobre o tema, essas indagações nascem e florescem em um contexto muito específico - nossa prática como formadoras de professores no curso de licenciatura em ciências biológicas da Universidade de Brasília. Nascem do diálogo com nossos/nossas estudantes, cuja formação enfatiza o conhecimento das ciências da natureza e seus métodos, e que se veem perplexos diante do cotidiano da escola, com o qual se deparam, sobretudo, nos estágios supervisionados. E é a partir desse contexto que abrimos questões para debate, sem nenhuma pretensão de realizar uma análise

220

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

em profundidade dos temas abordados, mas buscando, ao contrário, compartilhar um espaço de diálogo.

Só a razão salva!! Vinheta 2 Licencianda: Professora,é impressionante como não adianta a gente ensinar, porque parece que os estudantes não querem aprender. Professora: Sobre o que você está falando? Licencianda: Os professores da escola onde eu estagio me contam que todos os anos trabalham com educação sexual em sala, informando os perigos da gravidez na adolescência e das DSTs e ensinando a usar preservativos. Mesmo assim, tá cheio de menina grávida na escola. Professora: Pois é, por que você acha que isso acontece? Licenciando: Porque eles não pensam no que aprenderam na escola, professora!!

Parece haver, no discurso dos licenciandos e licenciandas (e, possivelmente, também dos professores e professoras de ciências) uma crença de que cabe à escola, como representante legítima da ciência, “salvar” o aluno e o cidadão, colocá-lo no caminho seguro da razão. Evidentemente, essa salvação ocorrerá na medida em que ele, de posse do conhecimento “correto”, já não mais se arriscará em

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

221

práticas primitivas, ultrapassadas ou perigosas. A ciência, portanto, salva, desde que você lhe preste obediência plena. Há nesse discurso dois pressupostos. O primeiro é que ciência e razão seriam equivalentes, ou seja, a razão é razão desde que se apoie no conhecimento científico, e somente nele. O segundo é o de que a razão bastaria para nos oferecer um conhecimento seguro a respeito do mundo. Uma razão desencarnada, não relacional. Em “Agamenon e seu porqueiro”, Jorge Larrosa (2010) traz o apólogo de um livro de Antonio Machado, que transcrevemos a seguir: A verdade é a verdade, diga-o Agamenon ou seu porqueiro. Agamenon: De acordo. O porqueiro: Não me convence.

Discutindo relações entre realidade, verdade e poder, Larrosa assinala que o pequeno texto faz uma distinção clara entre o “ser” da verdade e o “dizer” da verdade, estando o “ser”da verdade formulado de forma tautológica: “a verdade é a verdade”, significando que “o ser da verdade está em sua própria condição de verdadeira” (p. 150), em oposição ao “dizer a verdade” dos dois personagens. Pergunta-se então Larrosa: quem fala na primeira sentença, quem é o “ser da verdade”? Para Larrosa, é o filósofo de Agamenon que a enuncia, e completa:

222

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

sua eficácia [a da fala] repousa na ocultação do filósofo como sujeito que enuncia a sentença, em fazer como se fosse a verdade mesmo que estivesse falando, como se fosse o ser mesmo da verdade o que se estivesse apresentando a si mesmo como independente de todo o dizer (p. 152).

Uma verdade que não é (supostamente) enunciada por ninguém, mas que se autoenuncia. Uma verdade que está no mundo. A verdade da razão. A verdade da ciência, que visa a formar este sujeito da razão. Ou, talvez fosse mais apropriado dizer, o sujeito submetido à razão. Esse pressuposto de que ciência e razão sejam equivalentes também implica a crença de que as verdades da ciência sejam únicas, o que as tornaria, portanto, verdades de uma razão igualmente monolítica. Caberia, aqui, uma discussão que não pretendemos aprofundar, mas que faz eco ao diálogo proposto por Larrosa. Ainda que as posições a respeito do estatuto das verdades científicas sejam muito diversas, transitando num espectro que vai desde um forte realismo a posições completamente relativistas, parece haver, mesmo entre aqueles que defendem uma posição mais realista, um reconhecimento do caráter social da ciência e de seus enunciados. Um exemplo dessas posições de crítica moderada a um modelo positivista é a de Cachapuz (2004), que caracteriza como “pós-positivistas” posições que reconhecem a ciência como “projeto social e culturalmente contextualizado” (p. 371), sem abrir mão de uma posição de viés realista. Segundo essa leitura, no que diz respeito especificamente ao ensino de ciências,

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

223

não se pode ignorar a vertente ontológica, isto é, declarações sobre como é o mundo (questão por certo bem menos relevante no âmbito de outras áreas de estudo como, por exemplo, a Educação em Línguas ou Educação Artística), o modo como se articulam tais declarações com o estudo do que sabemos e o modo como o chegamos a saber (vertente epistemológica) (Cachapuz, 2004, p. 371).

Seja qual for a posição assumida, portanto, parece cada vez menos provável que a ciência detenha o estatuto de espelho do mundo. Também coloca em xeque uma educação que, ainda que pautada pelo compromisso com a formação de sujeitos, compreenda tais sujeitos reduzidos à dimensão da razão. Em ampliação à ideia de sujeito da razão, o sujeito dos direitos humanos envolve a constituição de uma consciência cognoscente – o sujeito epistêmico - em um espaço de intersubjetividade em que a pessoa humana se expressa como “ser moralmente determinado pelos horizontes culturais que emolduram o seu tempo” (PEQUENO, 2010, p. 190)30. Trata-se de um sujeito portador de uma individualidade, mas que se constitui nas relações com o outro. Já não se trata de formar um sujeito submetido a um conhecimento, mas sim um sujeito que reconheça os múltiplos

30 Aqui cabe esclarecer, a partir do diálogo de Pequeno com Vasquez (1980) a ideia de moral, entendida como “o conjunto de normas, regras, valores e princípios que orientam o comportamento do homem. Trata-se das diretrizes axiológicas que se destinam a guiar a conduta do sujeito com vistas ao exercício das virtudes, à conquista do bem, à prática da justiça” (1980, p. 198).

224

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

cenários em que conhecimentos, também múltiplos, são construídos e mobilizados. As relações que se estabelecem entre esses sujeitos de direitos, e aqui nos interessam aquelas que se dão no ambiente escolar, em especial no ensino de biologia, são pautadas, portanto, não apenas pelos ditames da racionalidade. As situações vividas pelo sujeito em suas experiências aprendentes são também sensoriais e afetivas. Esses planos de existência, adicionalmente, “são capazes de orientar o julgamento axiológico e de determinar a conduta normativa do sujeito” (PEQUENO, 2010, p. 200). A formação de professores e professoras implica reconhecer o papel da paixão, das emoções e da experiência no ensino de ciências tanto quanto o da razão. Em contraponto a uma compreensão antinômica entre razão e emoção ou entre ciência e paixão, apresentamos a ideia de que esses pares são necessariamente complementares. A respeito do papel das emoções sobre a capacidade de conhecer, assinala Pequeno (2007, p. 198): As emoções traduzem, geralmente, um sentimento de aprovação ou reprovação. É em função disso que podemos designá-las como negativas ou positivas. É, enfim, por isso que as mesmas estão associadas aos valores. De fato, a afetividade tanto participa da nossa percepção dos valores, como também das formas de expressão com as quais os revelamos. Isso demonstra que as emoções estão conectadas aos valores em razão de sua capacidade de conhecer (cognitiva), julgar (avaliativa) e decidir (desiderativa). Emocionar-se é

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

225

também uma maneira de valorar experiências, objetos e situações no e do mundo.

É a partir dessa complementaridade que nos propomos a pensar outros caminhos de compreensão para as questões colocadas por nossos licenciandos e licenciandas e pelos professores e professoras de ciências da natureza. No problema apresentado na vinheta 2, “o não pensar” mencionado pela licencianda talvez não se deva a uma dimensão cognitiva do estudante, mas a uma dificuldade dos sujeitos envolvidos de acessar a dimensão afetiva do problema e assim viver a aprendizagem como uma atribuição de sentidos. Como uma paixão. Portanto, longe de ser escravo de suas emoções ou paixões, o homem se constroi a partir delas. A autonomia moral do sujeito antes de se fazer contra as emoções, faz-se, na verdade, com elas (PEQUENO, 2010, p. 202).

A supremacia da razão e da ciência inicia-se a partir de Bacon e Descartes, traduzida numa ideia de um método seguro que levaria ao conhecimento. Entretanto, há outra dimensão do saber, que é idiossincrática e que, segundo Larrosa (2011, p. 25), “tem a ver com a ‘vida boa’ entendida como a unidade de sentido de uma vida plena”, que ele chama de “saber de experiência”. O saber da experiência, diz,“nos ensina a ‘viver humanamente’ e a conseguir a ‘excelência’ em todos os âmbitos da vida humana: no intelectual, no moral, no político, no estético etc.” (p.25, tradução nossa). É um saber que tem uma dimensão de paixão

226

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

no sentido em que o termo pathos era compreendido para os gregos designando sofrimento, emoção, experiência sensorial ou ainda, como enfatiza Larrosa (2011), aquilo que nos passa, que nos atravessa. Sendo uma expressão daquilo que nos atinge de forma inesperada, representa nosso estado diante de um efeito do qual não somos a causa. Não se trata de uma passividade que se oponha à ação, mas, ao contrário, de uma possibilidade de abertura para o mundo. Uma possibilidade de abertura também para o outro e para formas de conhecimento, e que depende, em grande medida, da capacidade de se abrir às emoções.

O fim das certezas31 Vinheta 3 Professora: E a educação ambiental, pessoal? Por que trabalhar essa temática na escola? Licenciando: Eu acho que é para convencer as pessoas a viver corretamente, a lidar de modo apropriado com o ambiente. Professora: E o que seria “viver corretamente”? Licenciando: Por exemplo, se todo mundo fizesse a compostagem de lixo orgânico em casa, resolveria grande parte dos problemas ambientais. Professora: Mas e se o sujeito não quiser fazer? Ele não teria liberdade de escolha?

31 Inspirado no título da obra de Ilya Prigogine.

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

227

Licenciado: Não, professora, o ideal é que todo mundo fosse obrigado a fazer.

Mesmo tratando de temas que são transversais ao ensino de ciências da natureza, como esse mencionado acima, identificamos na fala do licenciando pistas a respeito de como a voz da ciência é enunciada como portadora de princípios que deveriam normatizar a vida dos sujeitos. Ao trabalhar tais conteúdos, o professor, mais do que informar, esclarecer ou problematizar assuntos que fazem parte das inquietações dos estudantes, sucumbe a um discurso de verdade. Como assinala Larrosa (2000), a escola é um lugar em que interpretações dominantes são oferecidas como certezas, e ao assumir esse papel, ela confere aos enunciados das ciências o status de verdades únicas e prescritivas. os aparatos educativos e culturais nos quais trabalhamos são também, junto com os meios de comunicação de massa, lugares de produção, de reprodução, de crítica e de dissolução disso que chamamos verdade e disso que chamamos realidade(LARROSA, 2000, p. 65).

O desafio posto aos sujeitos da prática educativa seria pensar a escola como um lócus de problematização de tais supostas verdades únicas, um espaço de desconstrução de posturas prescritivas e de busca pela ampliação de leituras de mundo que resultem de encontros entre diferentes contextos culturais.

228

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

No que se refere aos direitos humanos, a busca por desconstruir uma educação pautada na padronização é central nas reflexões apresentadas por Vera Candau (2012) quando discute igualdade de direitos e respeito às diferenças. Com o intuito de questionar os sentidos que assumem os termos igualdade e diferença no discurso educativo, apresenta-nos concepções de professores e professoras, levantadas por meio de pesquisas desenvolvidas no ensino fundamental. A autora ressalta a polissemia que os termos assumem, mas identifica uma frequente associação de igualdade a “um processo de uniformização, homogeneização, padronização, orientado à afirmação de uma cultura comum a que todos e todas têm direito a ter acesso” (CANDAU, 2012, p. 238). O termo diferença por sua vez é frequentemente associado, nos depoimentos dos educadores, a um problema a ser resolvido, a um déficit cultural e à desigualdade. Tal perspectiva, criticada pela autora, de igualdade como acesso a uma cultura comum e superação de problemas relacionados a déficits culturais, tem correspondência a depoimentos de licenciandos e licenciandas, quando buscam enunciar conceitos científicos com o intuito de fundamentar boas práticas ambientais, de higiene ou de sexo seguro. As propostas desses professores e professoras em formação são marcadas por certa intencionalidade de estender uma cultura, validada por uma comunidade científica, a todos32. É inegável a importância de que a educa32 Tanto em Candau (2012) como neste artigo, tal debate se apoia nas ideias do sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2005; 2008) que, em contraposição a um monoculturalismo epistemológico, de um lado, ou a um relativismo, de outro, defende um “multiculturalismo progressista que saiba reconhecer as diferenças culturais e

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

229

ção científica se desenvolva a partir da garantia de direitos iguais de acesso a conhecimentos produzidos historicamente, no entanto, essa igualdade de direitos faz par com o reconhecimento às diferenças e com a busca por garantir espaço para expressão dessas diferenças. Escutar, portanto, o que o porqueiro de Agamenon tem a dizer. O que pretendemos questionar é a postura prescritiva que muitas práticas educativas assumem ao desconsiderar a possibilidade de haver outras formas válidas de conhecimento, que sustentam e são sustentadas por uma rede complexa de práticas sociais e culturais daqueles e daquelas que participam de uma interação educativa. O ensino de ciências, desafia-nos a abandonar conceitos cristalizados e homogêneos que dão base aos componentes higiene, saúde e ambiente, reconhecendo que eles são diferentes em contextos culturais diversos. Enfrentar esse desafio pressupõe desestabilizar uma pretensa universalidade de conhecimentos, valores e práticas disseminados pela educação escolar, com base em enunciados validados exclusivamente pelas ciências. Segundo essa visão dominante, em oposição a esse saber universal, o científico, estariam aqueles saberes frequentemente categorizados de modo genérico como: “senso co mum”, “saber popular”, “saber tradicional” ou mesmo “concepções errôneas”33.

de conhecimento, e que construa de modo democrático as hierarquias entre elas” (SANTOS et al., 2005, p. 24). 33 Sabemos que cada um desses termos (“senso comum”, “saber popular”, “saber tradicional” ou “concepções errôneas) possui grande densidade conceitual, tratada em diferentes áreas do conhecimento. Aqui nós os trazemos por serem expressões frequentemente utilizadas pelos licenciandos, em oposição ao conhecimento científico.

230

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

A desestabilização dessa universalidade requer uma transformação do olhar que, desde o lugar de professores e professoras de biologia, lançamos sobre o outro, o diferente. Um olhar que resista ao conforto da homogeneização e reconheça a rede de relações sociais, culturais e afetivas que sustentam conceitos que poderiam, de modo aligeirado, ser classificados como “errôneos”. Com isso, pretendemos trazer para debate a ideia de que o objetivo de se abordar esses temas – saúde, ambiente, sexualidade – nas classes de biologia não deveria ser o de mudar comportamentos com base em um conhecimento seguro (o que pode envolver, inclusive, traços de autoritarismo e violência), mas o de oferecer ao estudante, em sua condição de cidadão, maior espaço de liberdade e de escolha. E com Maria Victoria Benevides, retomamos o compromisso de uma educação em direitos humanos com o “desenvolvimento da capacidade de se perceber as consequências pessoais e sociais de cada escolha” (BENEVIDES, 2003, p. 316). Essa mirada insere o indivíduo em sua condição de sujeito social, de cidadão ativo, responsável por suas escolhas na relação com o outro. Mais ainda, [esse processo educativo] deve visar à formação de personalidades autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos (BENEVIDES, 2003, p. 316).

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

231

Então esse espaço de liberdade e de escolha se forja na abertura ao diálogo entre diferentes leituras de mundo, na busca por construir pontes entre saberes e afetos, permitindo que o sujeito atribua sentidos à sua experiência, à medida que ressignifica ela própria e o contexto social, cultural e político em que se insere. Talvez signifique, mais do que tudo, a defesa de uma escola que se pauta pela necessidade de incluir, entre os valores que dissemina, o da tolerância.

Referências BENEVIDES, Maria Victoria. “Educação em direitos humanos: de que se trata?” In: Barbosa, Raquel Lazzari Leite. Formação de educadores: desafios e perspectivas. - São Paulo: Editora UNESP, 2003. CANDAU, Vera M. F. “Diferenças culturais, interculturalidade e educação em direitos humanos”. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 118, p. 235-250, jan.-mar. 2012. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1983. 3a ed. LARROSA, J. Agamenon e seu porqueiro. In: Pedagogia Profana. Danças, piruetas e mascaradas. Autêntica: Belo Horizonte, 2010, 5a ed. p. 149-166. ___. Literatura, experiencia y formacion. In: La experiencia de lalectura. Fondo de Cultura Económica: Mexico, 2011. 1a ed. eletrônica. p. 19-38. PEQUENO, M, Sujeito, autonomia e moral, in TOSI, G. (ed), Direitos Humanos: história, teoria e prática. Editora Universitária UFPB: João Pessoa, 2007. SANTOS, B.S. A Gramática do Tempo: Para uma Nova Cultura Política. 2a ed. São Paulo: Cortez, 2008. 511p.

232

Tecendo diálogos sobre Direitos Humanos na Educação em Ciências

SANTOS, B.S.; MENESES, M.P.G.; NUNES, J.A. Introdução. Para Ampliar o Cânone da Ciência: a Diversidade Epistemológica do Mundo. In: SANTOS, B.S. (org) Semear outras soluções: Os caminhos da biodiversidade e conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 501p. VASQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

Da razão que liberta à experiência que dá sentido

233

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.