Da Reforma Gregoriana à Revolução que não sabia de si: para uma crítica arendtiana ao conceito de \'Revolução Papal\'

July 3, 2017 | Autor: P. Oliveira de Al... | Categoria: Gregorian Reform, Hannah Arendt, Historia Medieval, Harold Berman
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LABORATÓRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS

COLÓQUIO DE HISTÓRIA MEDIEVAL LEME/UFMG

Anais do colóquio realizado entre os dias 8 e 11 de outubro de 2012, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Belo Horizonte 2013

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C718a

Coloquio de História Medieval Anais do colóquio realizado entre os dias 8 e 11 de outubro de 2012 [recurso eletrônico] / Laboratório de Estudos Medievais/UFMG.- Belo Horizonte :LEME/UFMG, 2013. Inclui bibliografias. ISBN: 978-85-62707-43-8.

1. História Medieval . 2. Idade Média. 3.Cultura I. Laboratório de Estudos Medievais. II. Universidade Federal de Minas Gerais. III.Título.

CDD:940.1 CDU:930.9(08)

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FICHA TÉCNICA

Reitor da UFMG

Prof. Dr. Clélio Campolina Diniz

Comissão organizadora do colóquio

Coordenação

Dr. André Luís Pereira Miatello

Diretor da FAFICH

Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves

Monitores

Aléssio Alonso Alves

Chefe do Departamento de História

Felipe Augusto Ribeiro Profª. Drª. Cristina Campolina

Francisco de Paula Souza Mendonça Jr. Letícia Dias Schirm Olga Pisnitchenko

Coordenador de Curso de Pós-

Stella Ferreira Gontijo

Graduação em História

Prof. Dr. José Newton Coelho Meneses

Comissão editorial dos anais

Avaliação científica

Dr. André Luís Pereira Miatello

Editoração e montagem

Aléssio Alonso Alves Felipe Augusto Ribeiro

Capa

Ludmila Andrade Rennó

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DA REFORMA GREGORIANA À REVOLUÇÃO QUE NÃO SABIA DE SI: PARA UMA CRÍTICA ARENDTIANA AO CONCEITO DE ―REVOLUÇÃO PAPAL‖ Philippe Oliveira de Almeida1 1 Introdução Este trabalho busca problematizar o conceito de ‗Revolução Papal‘, tal como desenvolvido por Harold Berman no livro Direito e revolução: a formação da Tradição Jurídica Ocidental.2 Por ‗Revolução Papal‘, Berman designa o conjunto de transformações jurídicas e políticas pelas quais passou a Igreja Católica entre os séculos XI e XIII – reorganização institucional que modificou drasticamente as relações entre o poder eclesiástico e o poder secular, conduzindo à edificação do Direito Canônico e à consolidação dos Estados Pontifícios. A tradição historiográfica empregou comumente a expressão ‗Reforma Gregoriana‘ para enfocar o processo a que nos referimos. No entanto, nas últimas décadas, tal expressão tornou-se alvo de diversas críticas – que, dentre outras coisas, entenderam-na deveras restritiva para abarcar todas as modificações decorrentes da luta da Santa Sé por autonomia face ao poder do Sacro Império Romano, na Idade Média Central. O conceito de ‗Revolução Papal‘ surgiu como uma solução às dificuldades apontadas por tais críticas. Para Berman, a ‗Reforma Gregoriana‘ não foi nem ‗Reforma‘, nem ‗Gregoriana‘: o significado (a intenção) da reorganização institucional teria sido suficientemente profundo para justificar o emprego de ‗Revolução‘, não se limitando a alterações conjunturais; a extensão temporal do processo de transformações teria sido satisfatoriamente ampla para legitimar o uso de ‗Papal‘, não se restringindo ao pontificado de Gregório VII (1073-1085). Berman pretendia demonstrar que a Reforma Gregoriana teria constituído, na verdade, a primeira grande revolução européia – o momento no qual se teria inaugurado o Direito Moderno. Porém, a despeito de sua formulação simples, engenhosa e elegante, o termo

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Graduado em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, e em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando, em Filosofia do Direito, na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. O autor agradece, no desenvolvimento dessa pesquisa, ao inestimável auxílio de Adam Vieira Santos. Em nossa pesquisa, valemo-nos da edição publicada em Berman (2006).

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cunhado por Berman pode conduzir a imprecisões maiores que aquelas cristalizadas pela expressão ‗Reforma Gregoriana‘. Não é o termo ‗papal‘, mas a palavra ‗revolução‘, que, ora, colocaremos sob suspeita3. Tomando por base as considerações, tecidas por Hannah Arendt na obra On revolution, a propósito do sentido de ‗Revolução‘, pretendemos demonstrar que o conceito de ‗Revolução Papal‘ encontra-se eivado de anacronismo insanável, projetando no Medievo categorias surgidas apenas no pensamento político e jurídico dos séculos XVIII e XIX. Berman teria, a nosso juízo, ignorado especificidades do imaginário político medieval, no afã de construir uma narrativa enxuta sobre o nascimento (com a ‗Revolução Papal‘), a vida (com a emergência dos Estados Nacionais) e a morte (com a ‗Revolução Soviética‘) da Tradição Jurídica Ocidental. Nossa argumentação se estabelecerá em quatro etapas: a) primeiramente, trataremos, em rápidas pinceladas, da formação do conceito de ‗Reforma Gregoriana‘, bem como das principais objeções a ele lançadas nos últimos anos; b) em seguida, apresentaremos o conceito de ‗Revolução Papal‘, tentativa de superar as insuficiências da noção de ‗Reforma Gregoriana‘; c) após, exploraremos o conceito filosófico de ‗revolução‘ tal como sistematizado por Arendt; e d), finalmente, confrontaremos as observações de Berman e Arendt, no intuito de discutir a (in)aplicabilidade do termo ‗revolução‘, de valor semântico inarredavelmente moderno, à Idade Média Central. Entretanto, subsiste uma questão preliminar que precisa ser enfrentada, ainda à guisa de introdução – para que tenha consistência o problema por nós formulado no presente artigo. Em poucas palavras: nossa controvérsia não seria meramente terminológica (sem quaisquer implicações na compreensão do momento histórico estudado)? Com efeito, tendemos, na linguagem corrente, a ver, em termos como ‗revolução‘, ‗rebelião‘, ‗revolta‘, ‗reforma‘ e ‗golpe‘, uma diferença, não de categoria, mas apenas de grau. Todos os termos arrolados teriam por significado ―uma mudança rápida, violenta que desata as amarras do sistema jurídico‖4, variando, somente, a intensidade da mudança. Nesse sentido, é elucidativa a leitura do verbete ‗Revolução‘ que consta na versão online do Moderno Dicionário da Língua Portuguesa – Michaelis, que reproduzimos, abaixo, em sua integralidade:

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Destaque-se, por oportuno, que muitos autores, hoje, procuram mitigar o protagonismo dado aos bispos de Roma nas construções historiográficas relativas à reforma, o que, no frigir dos ovos, compromete também a nota ‗papal‘ do conceito de Berman. É este, segundo Berman, o ―sentido histórico‖ de ‗revolução, como apresentado em Berman (2006: 34).

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Revolução – re.vo.lu.ção – sf (lat revolutione) 1 Ato ou efeito de revolver (o que estava sereno). 2 Ação ou efeito de revolucionar-se; revolta, sublevação. 3 Movimento súbito e generalizado, de caráter social e político, por meio do qual uma grande parte do povo procura conquistar, pela força, o governo do país, a fim de dar-lhe outra direção. 4 Mudança completa; reforma, transformação. 5 Mudança violenta nas instituições políticas de uma nação. 6 Modificação em qualquer ramo do pensamento humano, abandonando idéias, sistemas e métodos tradicionais para adotar novas técnicas: Revolução literária, artística, industrial. 7 Sistema de opiniões hostis ao passado e pelas quais se procura uma nova ordem de coisas, um futuro melhor. 8 Perturbação moral; indignação, agitação. 9 Med Movimento total de um órgão; movimento anormal dos humores orgânicos. 10 Impressão funda que qualquer ato da vida social de um povo causa no espírito dos cidadãos. 11 Acontecimentos naturais que perturbaram e mudaram a face ou constituição do globo. 12 Todo fato, cataclismo, fenômeno ou grupo de fenômenos que tem por fim alterar a constituição física de certo terreno ou região considerável. 13 Fís Movimento de um móvel que, percorrendo uma curva fechada, torna a passar sucessivamente pelos mesmos pontos. 14Estado de uma coisa que se enrola, se revolve ou gira sobre si mesma. 15 pop Remoinho nos cabelos. 16 Náusea, repulsa, nojo. 17 Agr Tempo que medeia entre um corte de arvoredo e outro corte no mesmo talhão. 18 Astr Tempo que um astro gasta para descrever o curso de sua órbita. 19 Volta completa de um objeto que gira ao redor de um ponto ou de um eixo. 20Astr Volta periódica de um astro ao seu ponto de partida. 21Geom Movimento suposto de um plano em volta de um dos seus lados, para gerar um sólido. 22 Mec Giro completo do eixo de um motor ou de qualquer peça em movimento giratório. R. sideral: retorno de um astro ao mesmo ponto do céu.

Ora, o verbete citado deixa claro que, na linguagem corrente, ‗revolução‘, ‗revolta‘ (2), ‗reforma‘ (4) e ‗mudança violenta‘ (5) são notações cambiáveis. Em sendo assim, qual a utilidade de se tentar desconstruir o conceito de Berman? A questão é análoga àquela que, nas últimas décadas, travou-se na mídia e na academia, a propósito da definição dos eventos ocorridos no Brasil em 31 de março e 1º de abril de 1964. Ainda hoje, simpáticos ao movimento militar insistem em designá-lo por ‗Revolução‘, enquanto o resto da população vale-se da palavra ‗Golpe‘. Uma ligeira pesquisa em buscadores da internet evidencia que a guerra semântica em torno do episódio que inaugurou o Regime Militar no Brasil não foi encerrada. Uma brilhante charge do cartunista Lan (Lanfranco Aldo Ricardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini), publicada no Jornal do Brasil em 18 de julho de 1968, sintetiza a discussão referida. Na charge, o Marechal Artur da Costa e Silva, então presidente do regime militar (15 de março de 1967 – 31 de agosto de 1969), justifica a um jornalista o emprego da palavra ‗revolução‘. A data da edição ajuda-nos a compreender o significado do trabalho de Lan: exatamente um ano antes da publicação, falecera o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que antecedera Costa e Silva na presidência da República (15 de abril de 1964 – 15

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de março de 1967). O periódico noticia as tensões políticas correlacionadas à celebração do aniversário de morte de Castelo Branco, e, na mesma página em que a charge foi impressa, critica mensagens do Conselho de Segurança Nacional e do presidente Costa e Silva – mensagens essas que, a título de balanço do desenvolvimento do país após a instauração do regime militar, teciam encômios ao governo. O que estava em jogo, pois, era a memória coletiva relacionada ao 1º de abril de 1964, estimulada pelas homenagens póstumas ao primeiro presidente da ditadura. Aliados e opositores do regime tinham consciência de que, na luta pelo poder, o imaginário coletivo surge como campo de batalha. Nessa esteira, a operacionalização de símbolos (como a missa a Castelo Branco) e palavras (como ‗revolução‘) ajudam a conferir (ou a destituir) legitimidade às instituições. O embate mostra que a escolha de ‗revolução‘, em detrimento de termos correlatos, não é indiferente – na consciência política hodierna, a palavra guarda uma aura de legitimação que não pode ser encontrada alhures. No verbete do Dicionário Michaelis, já citado, duas acepções de ‗revolução‘ devem ser destacadas: a) ―3 Movimento súbito e generalizado, de caráter social e político, por meio do qual uma grande parte do povo procura conquistar, pela força, o governo do país, a fim de dar-lhe outra direção‖; e b) ―7 Sistema de opiniões hostis ao passado e pelas quais se procura uma nova ordem de coisas, um futuro melhor‖. Quando conjugamos essas significações, temos que a participação popular, acompanhada de uma opinião compartilhada quanto à necessidade de uma mudança de registro, representa um elemento importante do conceito de ‗revolução‘. A nosso juízo, é, justamente, a consciência revolucionária o elemento que falta, tanto à ‗Revolução de 1964‘ quanto à ‗Revolução Papal‘. 2 O conceito de „Reforma Gregoriana‟, de Fliche ao tempo presente No presente tópico, nos valeremos, notadamente, do artigo ―A Reforma Gregoriana: trajetórias historiográficas de um conceito‖, de autoria dos professores Leandro Duarte Rust e Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva. O texto propõe-se a delinear o desenvolvimento, no curso do século XX, da expressão ‗Reforma Gregoriana‘, avaliando as controvérsias surgidas em torno do conceito no universo dos historiadores. O verbete dedicado a Gregório VII, no Dicionário da Idade Média, organizado por Henry R. Loyn informa que a plataforma principal da chamada ‗Reforma Gregoriana‘ foi o controle hierárquico dos altos cargos da Igreja, com vistas a uma renovação do estado moral do clero. A ‗Reforma Gregoriana‘ seria, nesse sentido, um projeto de centralização da

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autoridade na figura do Bispo de Roma (sucessor de São Pedro), que exerceria seu poder de vigiar e punir pela via de seus delegados, cardeais, metropolitas e bispos. São esses os traços mais nítidos por meio dos quais a expressão é, vulgarmente, reconhecida. Segundo Rust e Silva, o conceito tornou-se célebre a partir dos estudos do medievalista francês Augustin Fliche (1884-1951). Fliche pretendia mostrar que os conflitos entre a Igreja Católica e o Sacro Império Romano, na Idade Média Central, tinham implicações maiores que as comumente identificadas na Querela das Investiduras, a luta entre Gregório VII e Henrique IV a propósito da interferência do poder secular na nomeação (isto é, na investidura) de membros do clero. Para além da Querela das Investuras, Fliche viu, na atuação de Gregório VII, um amplo programa de combate à decadência dos costumes – do qual o rejeição à ingerência dos laicos nas eleições episcopais seria apenas um desdobramento. A Reforma Gregoriana compreenderia um processo de gradual centralização eclesiástica e afirmação da supremacia do Bispo de Roma sobre o conjunto da Igreja. Como ensinam Rust e Silva, Fliche imaginava que o colapso do poder estatal carolíngio, no século XI, teria conduzido a uma ―anarquia feudal‖, a uma generalizada crise política, social e moral, acentuada pela ascensão das aristocracias feudais. Nesse cenário, o ―movimento gregoriano‖ despontaria como uma reforma de cunho fundamentalmente moral, que teria em vista resgatar a Cristandade por meio de uma Igreja militante, centrada na Cúria Romana, burocratizada, uniformizada e emancipada da influência da nobreza corrompida. Ainda segundo Rust e Silva, Fliche entendia que

[...] todos os poderes e prerrogativas reclamados pelos gregorianos derivavam da ambição de tornar real uma mesma meta: a regularização da vida coletiva de toda a Cristandade, através, sobretudo, da moralização das condutas laicas e da correção dos comportamentos clericais, segundo os rigores da disciplina monástica e da tradição canônica (RUST & SILVA, 2009: 137).

Como explicam Rust e Silva, o sucesso do conceito de ‗Reforma Gregoriana‘ deve-se, entre outros fatores, a seu caráter holístico e sintético, ao agrado da historiografia da primeira metade do século XX. Mostra-se oportuna uma observação, acerca das pesquisas dedicadas à Idade Média Central como um todo, antes de prosseguirmos com a narrativa do itinerário do conceito de ‗Reforma Gregoriana‘: noutros trabalhos – como ―O império da voz: apontamentos sobre o exercício do poder pontifício durante a ‗Era Gregoriana‘‖, ―Um Inquisidor atrás de seu

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tempo? O Pontificado de Gregório VII e a Aplicação do Direito Canônico (1073-1085)‖, e ―Ecos de Pio IX: Política e Historiografia Oitocentistas na Criação de Um Estado Pontifício para a Idade Média‖–, Rust indica que a vasta historiografia destinada a estudar a ―estatização do papado‖ durante a Reforma Gregoriana surgiu, no século XIX, para responder à crise vivida pela Santa Sé face ao movimento de unificação italiana, que privou o Papa de uma parcela considerável de seus domínios territoriais. Tratava-se, portanto, de uma literatura apologética, que, à decadência dos Estados Pontifícios durante o papado de Pio IX, contrapunha a ―memória‖ de sua suposta ascensão, no papado de Gregório VII. Rust aponta, desse modo, um caráter inarredavelmente anacrônico na tese da ―institucionalização do governo papal‖ na Idade Média Central – que encontra-se na base do conceito de ‗Reforma Gregoriana‘. Para Rust, ao falarem de uma ―monarquia papal‖ decorrente da Reforma Gregoriana, os historiadores do século XIX estariam analisando a Igreja medieval à luz de um sistema jurídico e político só adotado pela Santa Sé no curso da modernidade. Retornemos à trajetória do conceito de ‗Reforma Gregoriana‘, em específico. Rust, em artigo intitulado ―Reforma na Idade Média, Memória da Igreja Romana: ou sobre como vigiar as próprias algemas‖, mostra em que medida a crença em um programa reformador capitaneado, no século XIII, por Gregório VII, refletia as vinculações da família de Fliche ao programa de ações desenvolvido, no século XIX, por Leão XIII, numa tentativa de modernizar o catolicismo e envolver a Cúria Romana na ―questão social‖ – que, à época, gerava conflitos violentos entre a burguesia e o proletariado. Assim, Fliche e seus herdeiros procurariam ver, na Idade Média Central, rupturas análogas às que presenciavam no seio da Igreja contemporânea. No já citado ―A reforma Gregoriana‖, Rust e Silva descrevem como, ainda na década de 30, os apontamentos de Fliche foram criticados pelo historiador alemão Gerd Tellenbach (1903-1999) e pela série Studi Gregoriani. Conforme os autores, Tellenbach provou, em seu trabalho, que, diversamente do que argumentara Fliche, o século XI não assistiu ao colapso do poder estatal carolíngio, haja vista que o Império encontrava-se sob a tutela de uma pujante dinastia sália. Não haveria, pois, que se falar em ―crise feudal‖. O ―movimento gregoriano‖ não buscaria preservar as tradições da Alta Idade Média contra a ascensão das aristocracias feudais – mas, antes, romper com tais tradições, apresentando uma nova concepção sacerdotal do poder. Logo, não se trataria de uma reforma moral, mas de uma reviravolta francamente política, que teria como meta a instauração de uma teocracia papal.

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Na lição de Rust e Silva, outros historiadores – como Walter Ullmann, J. Gilchrist e O. Capitani – buscaram mostrar que o termo ―Reforma Gregoriana‖ não é mais que uma síntese anacrônica de um conjunto diverso e disperso de condutas e práticas. Fliche teria supervalorizado a atuação de Gregório VII, ignorando que as práticas reformadoras da Cúria Romana não foram mais que o desdobramento de transformações sociais mais amplas, envolvendo muitos grupos distintos: ―o que tem sido demonstrado pela historiografia é que a sociedade estava por trás da reforma, não a igreja‖ (RUST & SILVA, 2009: 144). Dando seqüência a semelhantes abordagens, a Nova História, na segunda metade do século XX, procurou mostrar que o papado não se constituiu em um ―foco‖ reformador em conflito com uma aristocracia feudal conservadora: a dicotomia entre ―eclesiásticos-quereformam‖ e ―laicos-que-sofrem-a-reforma‖, inerente às reflexões de Fliche, seria artificiosa, ocultando o fato de que as mudanças ocorridas entre os séculos XI e XIII envolveram todo o tecido social (RUST & SILVA, 2009: 145). Finalmente, Rust e Silva narram como, diante da sucessão de críticas dirigidas às idéias provindas de Fliche, muitos começaram a defender o abandono da expressão ‗Reforma Gregoriana‘, ora destacando as fragilidades relativas à palavra ‗Reforma‘ (Karl Leyser, Kathleen Cushing, e o próprio Harold Berman), ora as relacionadas à palavra ‗Gregoriana‘ (Christopher Brooke, Colin Morris, Ian S. Robinson). É nesse contexto que Berman trabalha a noção de ‗Revolução Papal‘, com um caráter tão holístico e sintético quanto a de ‗Reforma Gregoriana‘, oferecendo uma profunda revisão da leitura tradicional acerca das implicações da Igreja medieval na história do Direito e do Estado. No próximo tópico, faremos breves considerações acerca da vida e da obra de Berman, situando o conceito de ‗Revolução Papal‘ dentro de uma investigação mais ampla, desenvolvida pelo autor, sobre a interlocução entre Direito e Religião na trajetória da civilização ocidental. 3 O conceito de „Revolução Papal‟ em Harold Berman Harold J. Berman (1918 – 2007) foi um jurista norte-americano, professor nas universidades de Harvard e Emory. Criticando as parcialidades do positivismo, do jusnaturalismo e do historicismo, Berman pugnava por uma Ciência do Direito Integral, cujo método fosse, a um só tempo, analítico, histórico e filosófico. O autor adotava uma teoria holística do conhecimento. As considerações metodológicas de Berman, vale notar, mostramse consideravelmente assemelhadas com a proposta encampada, várias décadas antes, pelo

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culturalismo jurídico brasileiro, impulsionado por intelectuais da envergadura de Miguel Reale e Djacir Menezes. Sempre preocupado com as relações entre o fenômeno jurídico e os demais âmbitos da cultura, Berman articulou seus estudos em dois eixos centrais: a) o Direito Soviético e pósSoviético; e b) a interlocução entre Direito e religião. Berman reconhecia uma união dialética entre o Direito e a religião, o justo e o sagrado. Acreditava que referida união havia impulsionado o desenvolvimento da Tradição Jurídica Ocidental, que só teria entrado em crise com a emergência do socialismo marxista. Berman, de origem judaica, serviu às Forças-Armadas norte-americanas, e, segundo seu colaborador John Witte, (WITTE, 2012) converteu-se ao cristianismo ao ter, na Europa do pós-guerra, uma visão de Jesus. Esse episódio ajuda-nos a compreender a permanência de quatro elementos, na obra de Berman: a) a religiosidade; b) o liberalismo; c) o anticomunismo; e d) a crença, apocalíptica, de que a Primeira Guerra Mundial teria inaugurado a era de decadência da Civilização Ocidental. Os quatro elementos citados encontram-se presentes na obra Direito e revolução. Publicada em 1983, Direito e revolução propõe-se a desenvolver uma história das raízes da tradição ocidental do Direito e da legalidade, da ordem e da justiça. O livro identifica, no subsolo institucional e doutrinário do pontificado de Gregório VII e de seus continuadores, o solo no qual germinou a semente da Modernidade Jurídica. Poderíamos, mesmo, arriscar a afirmação de que Gregório VII avulta, no trabalho de Berman, como o inventor do Ocidente. Para Berman, o Direito Canônico formado nesse momento – a partir, sobretudo, de uma redescoberta do Código de Justiniano e do Direito da Roma Imperial –, representa o primeiro sistema jurídico ocidental moderno, com um caráter analítico, racional, linear, geral e abstrato, muito distinto das formas tribais de resolução de conflitos que se disseminaram pela Europa feudal. O surgimento dos Estados nacionais (verdadeira ―explosão da nebulosa cristã‖, na bela imagem do historiador Jean Delumeau) só teria sido possível, segundo Berman, porque a Igreja lhes abriu o caminho, organizando-se, ela própria, como um Estado de Direito (DELUMEAU, 1994). O professor Bernardo Ferreira identifica dois eixos distintos que estruturam a obra:

Por um lado, existe uma narrativa sobre a passagem de uma ordem jurídica tradicional e de natureza não sistemática [...] para outra ordem jurídica, mais próxima do que admitiríamos ser uma compreensão moderna - em que o direito se organiza como um sistema racionalizado e se apresenta como uma esfera autônoma

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da vida social. A noção de sistema jurídico e a sua diferenciação em relação à idéia mais geral de ordem jurídica são fundamentais na organização dessa narrativa. [...] Ao lado dessa ‗primeira‘ narrativa, há outra, de caráter mais geral, que pressupõe a existência de uma Tradição Jurídica Ocidental, surgida com as transformações dos séculos XI e XII e integrada ao percurso histórico do Ocidente. Nessa ‗segunda‘ narrativa, o conceito de revolução desempenha um papel decisivo (FERREIRA, 2009).

Com efeito, para Berman, a Civilização Ocidental, desde seu suposto início, no século XI do Direito Canônico, até seu propalado declínio, no século XX do Direito pós-Soviético, seria perpassada por uma permanente dialética entre evolução e revolução, mudança e estabilidade, direitos individuais e bem-estar da comunidade. Na verdade, tanto o Direito moderno quanto a moderna revolução seriam, para Berman, características essenciais da História do Ocidente, nascendo com ela, morrendo com ela. Berman identifica, no curso da Tradição Jurídica Ocidental, seis revoluções, simultaneamente locais e globais: 1ª) a Revolução Papal; 2ª) a Revolução Alemã (isto é, a Reforma Protestante); 3ª) a Revolução Inglesa (quer dizer, a Revolução Gloriosa); 4ª) a Revolução Americana; 5ª) a Revolução Francesa; e 6ª) a Revolução Russa. Em última instância, as cinco últimas revoluções não seriam mais que desdobramentos da primeira, na argumentação de Berman. As transformações dos séculos XI e XII, diversamente do entendimento de Fliche, não se constituiriam em uma reforma, mas em uma revolução, a revolução por excelência. A expressão ‗Reforma Gregoriana‘ ocultaria a mudança repentina, a descontinuidade radical, que se deu entre a Alta Idade Média e a Idade Média Central. Para Berman, a historiografia tradicional reproduz a interpretação que os próprios agentes históricos adotaram, no Medievo, para explicar o processo então em curso:

Essa foi, sem dúvida, a visão oficial dos reformadores católicos do final do século XI e início do XII: eles apenas estavam redirecionando-se para uma tradição mais antiga, que havia sido traída por seus predecessores imediatos. O mito do retorno a uma época mais antiga é, sem dúvida, a marca registrada de todas as revoluções europeias (BERMAN, 2006: 27).

Porém, semelhante leitura acabaria por minimizar as implicações da virada ocorrida à época. Mas qual o conceito de ‗revolução‘ adotado por Berman, que lhe permite cometer generalizações

dessa

natureza?

Berman

aponta

quatro

elementos

que

considera

imprescindíveis para que se caracterize uma revolução: a) uma mudança que seja, a um só

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tempo, fundamental, rápida, violenta, duradoura, e que abarque todo o sistema social; b) que se legitime em um direito fundamental, em um passado remoto e um futuro apocalíptico; c) que leve mais de uma geração para estabelecer raízes; e d) que produza um novo sistema jurídico – sistema esse que, ao fim e ao cabo, não rompe com a Tradição Jurídica Ocidental, embora a altere (BERMAN, 2006: 42). Além disso, Berman destaca a crítica à ordem e à autoridade estabelecidas, na busca da fundação de uma ordem e de uma autoridade novas. Berman sabia que, em ao menos dois dos seis movimentos revolucionários por ele elencados (a Reforma Gregoriana e a Reforma Protestante), o próprio conceito, moderno, de ‗revolução‘, encontrava-se ausente. Também é discutível se o emprego do termo, na Revolução Gloriosa, comportava, de fato, uma acepção moderna, ou era apenas uma tentativa de encontrar, na linguagem da astronomia,5 uma palavra que salientasse o aspecto de retorno e de restauração política visado pelo parlamento inglês com a substituição, no trono, de Jaime II, católico, por Maria II e Guilherme de Orange, protestantes. Porém, a ausência do conceito de ‗revolução‘, de uma linguagem revolucionária e, mesmo, de uma consciência revolucionária não é, para Berman, suficiente para descaracterizar esses movimentos como processos revolucionários. Enfatizando a faceta das transformações na estrutura institucional, o jurista norte-americano considera secundária a dimensão subjetiva da política, a ideologia, a memória, o imaginário e a iconografia que acompanham as relações de poder. A definição de ‗revolução‘ proposta por Berman comporta a possibilidade de movimentos revolucionários inconscientes. Somente agora, quando – para falar como o filósofo alemão Georg W. F. Hegel – a ave de Minerva alça seu vôo no entardecer de nossa civilização (com a Era das Revoluções descrita pelo historiador marxista Eric Hobsbawn), podemos, retrospectivamente, reconhecer a natureza eminentemente revolucionária de nossa trajetória: ―[...] é por estarmos emergindo de um período revolucionário que podemos identificar mais facilmente as eras revolucionárias do passado‖. (BERMAN, 2006: 8). Apenas no fim a essência revolucionária, presente desde as origens, chega à manifestação, ao conceito de ‗revolução‘. É esse, pensamos, o ponto mais frágil da argumentação de Berman. No próximo tópico, discutiremos a definição de ‗revolução‘ proposta por Hannah Arendt em On

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O termo ‗revolução‘ ainda comporta esse significado astronômico, como evidencia o verbete do Dicionário Michaelis que trouxemos à colação, na introdução de nosso trabalho: ―18 Astr Tempo que um astro gasta para descrever o curso de sua órbita‖; ―20 Astr Volta periódica de um astro ao seu ponto de partida‖.

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revolution, na tentativa de mostrar que a iminente consciência revolucionária é um elemento central para que um movimento seja identificado como revolucionário. 4 O conceito de „revolução‟ em Hannah Arendt

Hannah Arendt (1906-1975) foi uma filósofa política (ou teórica política, como ela preferia) alemã, de origem judaica. Foi amiga de Walter Benjamin e aluna de Martin Heidegger, Nicolai Hartmann, Rudolf Bultmann, Edmund Husserl e Karl Jaspers. Tendo que se exilar da Europa em virtude da ascensão do nazismo, Arendt pode ser considerada uma ―pensadora da liberdade‖. Dedicou seu trabalho a estruturar novas categorias filosóficas que nos permitissem responder à crise política do século XX, marcado pela emergência dos regimes totalitários. A ideia de um livro dedicado aos movimentos revolucionários veio a Arendt durante um seminário realizado no ano de 1959, em Princeton, nos Estados Unidos (país para o qual havia imigrado em 1941). Na obra, podemos reconhecer ecos de uma cena política internacional determinada pela Guerra Fria. Não se trata, porém, de um texto datado. Embora as observações factuais de Arendt acerca das Revoluções Americana e Francesa tenham sido superadas por pesquisas recentes no campo da historiografia, suas análises teóricas a propósito do conceito de Revolução – considerado em si mesmo – permanecem extremamente elucidativas. Em prefácio a edição recente de On revolution publicada no Brasil pela editora Companhia das Letras, o jurista Celso Lafer, especialista no trabalho de Arendt, afirma que a autora procurou, em seu livro, responder às seguintes questões:

O que é uma Revolução? O que distingue um revolucionário de um revoltado - que é um insatisfeito - e de um rebelde - que se levanta contra a autoridade? Por que um golpe de Estado, que provoca uma mudança de governo e uma ruptura da ordem jurídica, não é a expressão de uma Revolução? O que separa um reformista de um revolucionário? Por que uma mudança radical como a representada pela Revolução Industrial, que transformou a economia, ou a Revolução Feminina, que alterou os costumes da sociedade, não tem a aura da Revolução Francesa ou da Revolução Russa que foram precedidas pela violência de um movimento revolucionário?

Lafer identifica no livro, ainda, a forte presença do ―tema arendtiano da ruptura - vale dizer o das descontinuidades entre o passado e o futuro, assinaladores dos desdobramentos da modernidade‖. Percebe-se que, em Arendt, o tema da ruptura encontra-se ligado ao problema

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do ―novo começo‖ – daí que o professor Newton Bignotto, discorrendo acerca de On revolution, defenda que a obra se articula em dois eixos: a) a questão da Constituição e b) a questão da dimensão simbólica e imaginária da fundação (BIGNOTTO, 2011: 52). Como Berman, Arendt entende que a ruptura com a organização política precedente – que se dá, invariavelmente, por meio de violência – é fundamental à revolução.6 Nesse aspecto, guerra e revolução se aproximam, sendo, ambas, fenômenos que se desenvolvem para além do domínio da política. Contudo, à diferença de Berman, Arendt sublinha o problema do ―novo começo‖, que distingue a revolução de outras manifestações de violência. É esse o elemento que, aos olhos da filósofa, fará da revolução um fenômeno exclusivamente moderno. Para Arendt, a relação entre poder político e condições sócio-econômicas é conhecida desde Aristóteles, mas apenas na modernidade surge a consciência de que a pobreza não é inerente à condição humana, dado natural. Essa consciência, automaticamente, traria à baila a ―questão social‖, quer dizer, a questão da (re)fundação de uma ordem social eqüitativa, capaz de garantir a todos a prosperidade material. Está colocado, assim, o problema do ―novo começo‖, do início de uma nova era, intrinsecamente vinculado ao papel revolucionário da rebelião dos pobres: […] revoluções são os únicos eventos políticos que nos confrontam direta e inevitavelmente com o problema do começo [...] A Antiguidade estava bem familiarizada com a mudança política e com a violência que acompanha a mudança, mas nenhuma delas surgia como para trazer algo totalmente novo. As mudanças não interrompiam o curso do que a idade moderna chamou ‗história‘, mas, longe de dar início a um novo começo, elas pareciam regredir a um diferente estágio desse ciclo, prescrevendo um curso que foi preordenado pela verdadeira natureza das relações humanas, e que seria, pois, em si mesmo, imutável7.

No entendimento de Arendt, a percepção da capacidade do homem para o novo só entrou plenamente em cena com o advento do mundo moderno (ARENDT, 1963: 34). Nunca 6

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Uma questão que poderia ser desenvolvida, sob inspiração das observações do sociólogo Pierre Bourdieu: a revolução se materializa, necessariamente, através da violência física, ou pode se adstringir à violência simbólica? Uma reflexão acerca da relação entre revolução e violência, em um mundo pós-Guerra Fria, pode ser encontrada na obra do filósofo esloveno Slavoj Žižek. Nesse sentido, recomendamos a leitura de Gray (2012). Tradução nossa para: ―[...] revolutions are the only political events which confront us directly and inevitably with the problem of beginning. […]Antiquity was well acquainted with political change and the violence that went with change, but neither of them appeared to it to bring about something altogether new. Changes did not interrupt the course of what the modern age has called history, which, far from starting with a new beginning, was seen as falling back into a different stage of its cycle, prescribing a course which was preordained by the very nature of human affairs and which therefore itself was unchangeable‖ (ARENDT, 1993: 21).

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antes, na história, a consciência da novidade – quer dizer, a consciência de que ―nunca antes, na história...‖ – desempenhou um papel tão determinante no palco da vida política. Como mostra Bignotto, Arendt

soube perceber que a grande virada da modernidade ocorreu a partir do momento em que os homens perceberam que só uma obra humana, produto de ações livres e por vezes contingentes, seria capaz de dar forma ao sonho de viver em liberdade no interior de formas políticas que eram o produto de um artifício. (BIGNOTTO, 2011: 53 e 54).

Nesse sentido, Arendt rejeita a idéia – subjacente a diversas tentativas de interpretação da política moderna, como, por exemplo, a de Berman – de que as revoluções seriam fruto da secularização de princípios essencialmente cristãos. Para Arendt, é o processo de secularização em si mesmo, e não pretensos princípios cristãos secularizados, o que teria possibilitado o nascimento da consciência revolucionária. A separação entre Estado e Religião conduziu, progressivamente, à compreensão de que o fundamento do político não se encontrava fora do próprio jogo político, na lei de Deus ou na ordem do cosmos: para falarmos como Cornelius Castoriadis, filósofo grego radicado na França, as fraturas no horizonte teológico-metafísico puseram a nu o imaginário social radical, a sociedade instituinte, que erige a sociedade instituída. A morte de Deus revelou o potencial demiúrgico do homem – daí que os revolucionários estejam às voltas com o problema da (empregando a célebre expressão cunhada, nos anos 60, pelo crítico literário suíço Jean Starobinski) ―invenção da liberdade‖. Em síntese: para Arendt, além da ruptura, o conceito de ‗revolução‘ pressupõe o pathos da novidade e a idéia de liberdade, sem os quais não seria mais que o exercício da força bruta pelas massas:

Apenas onde a mudança ocorre no sentido de um novo começo, onde a violência é usada para constituir uma forma de governo completamente diferente, trazer a formação de um novo corpo político, onde a libertação [liberation] da opressão tem como fim a constituição da liberdade [freedom], nós podemos falar de revolução8.

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Tradução nossa para: ―[…] only where change occurs in the sense of a new beginning, where violence is used to constitute an altogether different form of government, to bring about the formation of a new body politic, where the liberation from oppression aims at least at the constitution of freedom can we speak of revolution‖. ARENDT. On revolution…, op. cit.: 35. Uma pequena observação quanto à distinção, feita por Arendt, entre os termos ‗liberation‘ e ‗freedom‘. Para a autora, ‗liberation‘ constitui-se na ausência de impedimentos por atores públicos ou privados. Assim, implica na simples liberdade da opressão, podendo realizar-se em diferentes regimes de governo. Em contrapartida, ‗freedom‘ configura um modo de vida político. Logo, demanda a constituição de uma república, uma radical alteração da autoridade e da ordem das coisas.

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É por essa razão que, como indica Arendt, não há, na linguagem política pré-moderna, palavras que designem uma alteração política tão radical quanto aquela na qual os súditos tornam-se legisladores eles mesmos – e na qual a sociedade torna-se a instância de legitimação da lei. Segundo Arendt, o próprio termo ‗revolução‘ só adquiriu sua moderna significação no correr das Revoluções Americana e Francesa. Originalmente, a palavra comportava somente um sentido astronômico, descrevendo o comportamento das órbitas celestes, o movimento cíclico, regular e regulado dos corpos supra-lunares. Assim, vinculava-se a uma idéia de permanência e a uma noção cíclica do tempo, derivadas da Antiguidade. Dessa maneira, as primeiras aplicações políticas do termo pretendiam remeter à figura da ―restauração‖, do eterno retorno – e, não, da novidade. Tanto os autores da Revolução Gloriosa quanto os primeiros envolvidos nas Revoluções Americana e Francesa imaginavam trabalhar em nome da tradição, não do novo. O poeta russo Vladimir Maiakovski disse, certa feita: ―sem forma revolucionária não há arte revolucionária‖. Similarmente, poderíamos dizer, à luz das reflexões de Arendt, que, sem consciência revolucionária, não há movimento revolucionário. Não é a mobilização em si, mas a interpretação a ela dada pelos homens que a vivenciam, que nos permite apreciá-la como sendo uma ―revolução‖. Numa formulação simples: uma revolução não é um grande flash mob. Tendo em mente a leitura arendtiana aqui exposta, finalizaremos nossa exposição, no próximo tópico, com uma breve crítica ao conceito de ―Revolução Papal‖.

5 Movimentos revolucionários inconscientes? Como aduzimos acima, a amplitude do conceito de ‗revolução‘ utilizado por Berman permite que o autor identifique movimentos revolucionários que não sabem de si. Embora se apresentassem como restaurações, a Reforma Gregoriana, a Reforma Protestante e a Revolução Gloriosa seriam revoluções no pleno sentido da palavra. A dialética entre evolução e revolução, constitutiva da Tradição Jurídica Ocidental, só se explicitaria a si mesma no curso do tempo. A paciência do conceito, para Berman, teria aguardado um milênio até que pudéssemos identificar, na Reforma Gregoriana, sua verdadeira natureza: a de Revolução Papal. Ora, como intentamos demonstrar a partir de Arendt, o pathos da novidade e a idéia de liberdade são indispensáveis à caracterização de um processo revolucionário. Contudo,

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