Da relação entre o combate e o fogo no pensamento de Heráclito

July 4, 2017 | Autor: Abraão Carvalho | Categoria: Pre-Socratic (Pre-Platonic) Philosophy, Combate, Filosofia Heráclito, Fogo
Share Embed


Descrição do Produto

Da relação entre o combate e o fogo no pensamento de Heráclito Abraão Carvalho abraaocarvalho.com

“Tudo é um” Heráclito O artigo que ora se segue percorrerá indícios em alguns dos fragmentos de Heráclito no intuito de demarcar a relação entre o combate e o fogo no pensamento do filósofo de Éfeso. Nesta direção, a relação entre estes temas que aparecem no fragmento 53 e 100 terá sua mediação através do fragmento 66. O nosso ponto de partida será aquele em que nos fixaremos no problema de demarcar o sentido de combate no pensamento de Heráclito (cerca de 540470 A. C.), bem como, perseguiremos indícios que nos aproximem do sentido de fogo em seus fragmentos. Nesta direção, nos encontremos com o fragmento 53 de Heráclito em que a posição do combate é demarcada: "De todas as coisas o combate é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres." Ora, tomando como referência a demarcação no pensamento de Hegel, em seus comentários sobre Heráclito - sua grande referência quando da elaboração de sua Lógica1 -, em que situa a íntima relação entre linguagem e conceito: “Em toda enunciação da percepção e experiência e sempre que o homem fala, já se manifesta em tudo isto um conceito - nem se pode impedir que aí esteja, renascido na consciência;"2. Poderíamos situar os primeiros problemas que aparecem após a leitura do fragmento 53, a saber: Como poderíamos demarcar o conceito de combate no pensamento de Heráclito? Ou Segundo o próprio Hegel: “Não existe frase de Heráclito que eu não tenha integrado em minha Lógica.” (Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F. Hegel; tradução de Ernildo Stein; pág. 102; Editora Nova Cultural, São Paulo, 2000). 1

2

Os Pensadores, Pré Socráticos; C - Crítica Moderna de G. W. F. Hegel; tradução

de Ernildo Stein; pág. 111; Editora Nova Cultural, São Paulo, 2000.

1

antes mesmo: como se dá a primazia do combate em relação à criação de todas as coisas? No fragmento 53 de Heráclito lemos: "o combate é pai de todas as coisas". Que é isto? Ora, sendo aquele do qual provém a criação de todas as coisas, este tanto fez de uns livres, quanto fez de outros escravos. Nota-se que a criação, deste pai, o combate, não aparece disposta em uma determinada homogeneidade ou horizontalidade. Logo, percebemos uma caracterização de oposição3 entre as criações deste combate, o criador. Isto significa: quanto à criação, os resultados são extremamente diferentes, distintos. Daí Heráclito situar que a primazia da criação de todas as coisas pertence ao combate, à guerra, ao conflito, à disputa. Neste sentido, há também uma íntima relação entre a criação e a inversão. Em que sentido? Ora, criar significa mostrar que o que não existia veio a ser somente a partir do momento de sua criação, do seu mostrar-se. Quando Heráclito afirma que o "pai combate" fez de uns escravos e de outros livres, está demarcando que apenas o combate é capaz de distinguir escravos e livres enquanto e como tais. Enfim, quando o combate faz de uns livres, isto significa que antes de estes o serem, era-lhes fadado o suplício da escravidão e que, somente a partir da disputa, da guerra, do conflito, do enfrentamento e do combate (o pai de todas as coisas), lhes foi possível sair da condição inferior de escravos e mostrarem-se agora na condição superior de livres. Isto é, no processo de disputa e de embate para chegarem à situação de livres, estes eram ao mesmo tempo não-livres e livres. Esta liberdade então, devido a sua superioridade diante da escravidão, passa a aniquilar e a anular esta a partir do combate. Daí situarmos o aparecimento da inversão social que estes, agora livres, passaram para efetivamente o serem. 3

Esta oposição é hierárquica, pois para serem opostos, pressupõe-se que estes sejam distintos. E justamente por serem os opostos, distintos, a distinção é o que aproxima e não aquilo que distancia. Assim como a semelhança é aquilo que afasta, pois o que de mais comum existe é a própria distinção, aquilo que difere, e não o que há de igual, que por sua vez é menos comum que a própria distinção, o ato originário de distinguir, julgar. Esta distinção aparece, em perspectiva de Bajonas Brito, como uma "oposição hierárquica através da inversão e da compensação" entre as criações deste pai, o combate.

2

Retomemos o fio: se o combate é aquilo que é distinto de todas as coisas, pois estas são procedentes de uma mesma origem, e se o combate não é esporádico, isto nos leva a pensar que a possibilidade de qualquer criação, isto é, a possibilidade de qualquer coisa que não exista vir a existir, compete somente ao combate, que portanto é permanente, sendo que todas as coisas, tudo, está disposto para nós desde uma ordenação cíclica, através daquilo que designamos tempo. Entretanto, este combate não é algo que se desenvolve somente a partir de uma mera abstração. É preciso que a ação dê subsídio ao ato criador do combate, pois como afirmaria Carlos Marighela muitas centenas de anos depois: "A ação é que faz a vanguarda."4 Heráclito situa este vínculo entre a realização das coisas e a ação em seu fragmento 44: "É preciso que lute o povo pela lei, tal qual pelas muralhas." Ora, quando Heráclito compara a luta do povo pela lei com as muralhas, está indicando que esta luta só se faz criadora a partir da efetivação real desta luta, tal qual a muralha, que para ser denominada enquanto tal é necessário que se tenha o contato imediato das mãos de trabalhadores com o material indispensável para a construção de uma muralha. Ou seja, a meta – enquanto objetivo e fim – é o que induz o vir a ser do ser em potência. Portanto, a luta do povo pela lei se realizará como ato criador somente a partir do combate. Conquistada a lei, através do combate pelo povo, estará efetivada uma inversão quanto à primazia de tais ou tal lei. Dado que a luta pela lei só se fez necessária ao povo devido ao fato de estes, do povo, não possuírem a primazia de tal lei.5 4

Esta máxima foi extraída de um panfleto de agosto de 1969 da ALN - Aliança Libertadora Nacional - da qual fazia parte, dentre outros, Carlos Marighela. O trecho do qual foi extraído esta máxima está disposto da seguinte forma: "Na primeira fase de nossa luta, os maiores recursos são encaminhados para a formação dos quadros e para a ação estratégica e não para estruturar a organização abandonando a ação revolucionária. Isto põe a questão da revolução não nas costas de uma organização perfeita e acabada, mas ao contrário, a ação é que tem preferência. Jamais a estrutura orgânica precede à ação ou à revolução. A ação é que faz a vanguarda”. 5 A questão principal que deve ser visada neste fragmento 44 é que somente a partir do combate é que será dada ao povo a dignidade hierárquica de elaborar, criar e

3

Realizado este percurso para situarmos a posição de separação originária que o combate possui na criação de todas as coisas, como nos foi possível a partir do fragmento 53, faz-se necessário agora fixarmos o pensar acerca da relação entre o sol (o fogo) e o combate, a partir do fragmento 100. Nesta direção, nos encontremos com fragmento em questão: “Limites e revoluções, em que o sol, preposto e vigia, para definir e arbitrar, revelar e fazer aparecerem as mudanças e estações, que trazem tudo, como diz Heráclito, colabora não nas coisas vis e pequenas mas nas maiores e nas mais essenciais, associado ao guia e Deus principal.”

Como lemos, o sol, preposto e vigia, distingue e determina todas as coisas, isto é, o sol trás tudo, tanto o verão quanto o inverno, tanto a vida quanto a morte, tanto livres quanto escravos. Neste sentido, ao sol é dada também a primazia da criação de todas as coisas. Mas para que o sol tenha esta capacidade em primazia é necessário algo que lhe é íntimo: “o fogo”. É somente o fogo que permite ao sol definir e arbitrar, isto é, em perspectiva de dirigir a efetivação das leis que lhes são convenientes (próprias), e não mais ficarem sujeitos e submissos às leis de um agrupamento minoritário, porém hegemônico politicamente, e as tomarem como suas. Isto é, para o povo só o combate pode possibilitar esta inversão. Do contrário, ficará o povo como o camponês do conto de Kafka intitulado Diante da Lei, em que é o camponês incapaz de saciar a sua necessidade e vontade de entrada à porta da lei – necessidade esta que fez com que o camponês viesse de seu povoado imaginando ingenuamente que a lei fosse acessível a todos. Neste sentido, é o camponês do conto de Kafka incapaz de ação para que possa entrar pela porta que o separa da lei, sendo tal porta vigiada diuturnamente por um guardião. Apenas um é visto pelo camponês, mas segundo este mesmo guardião, ele próprio é “apenas” o último dos guardiões, o mais fraco de todos eles que defendem a entrada da lei, porém, este é ainda poderoso e mais ainda os guardiões que o sucedem salão a salão, o terceiro é tão, tão terrível que suportar seu aspecto é uma faculdade que nem mesmo ele (o guardião que está à entrada da lei) possui, sendo o camponês inferior a este último dos guardiões no que se refere até mesmo às dimensões físicas, pois a desproporcionalidade de tamanho entre eles aumentaria demasiadamente com o tempo, em prejuízo do camponês. Esta incapacidade do camponês de conseguir entrar na lei por mediação do embate, fez com que este após ter chegado diante da lei, ficasse até os últimos suspiros de sua vida somente a esperar pela possibilidade de permissão de entrada na lei por parte do guardião, que caricatamente disponibiliza um banquinho para que o camponês possa sentar-se a um dos lados da porta, oportunidade em que, ansioso por receber a ordem de permissão tão obedientemente aguardada, é o camponês - quando do momento em que pergunta ao guardião se já que não é possível a entrada na lei agora se mais tarde o deixarão entrar -, tomado por um espanto atônito quando ouve do primeiro guardião: “a porta que dá para a lei está aberta, como de costume”.

4

Bajonas Brito, “o fogo é a fonte propriamente criadora” 6, e somente para aquele que cria é que se abre o poder de distinção e reunião das coisas, isto não sem uma determinada ordenação hierárquica. E este Deus principal? Que sentido pretende Heráclito demarcar? O fragmento 100 afirma que o sol, aquele que define e arbitra, trás tudo, ao passo que está associado ao guia e Deus principal. Isto nos leva a pensar que o sentido dessa associação do sol ao guia e Deus principal, caminha na mesma direção do vínculo que o Deus principal possui com o combate. Neste sentido, o fogo (do sol) é a fonte propriamente criadora de todas as coisas, sendo do mesmo modo o Deus principal também criador das coisas. Ao passo que, através da distinção que o sol realiza as coisas vêm a ser desde uma ordenação hierárquica fundada na oposição, a saber, a expansão da vida e a contração da vida, a fertilidade e a esterilidade, inverno e verão, etc. Ao passo que o fio que liga combate, Deus principal e sol, situa-se na ação de separação originária das coisas. Daí compreendermos que o Deus principal no pensamento de Heráclito ocupa a mesma posição que o combate, o sol e o fogo. Pois se o Deus principal, quanto à forma, ocupa a mesma posição que o combate, que se remete ao fogo, originário do sol, o que há de comum entre estas designações trata-se da capacidade de criação e distinção de todas as coisas, ao passo que aquele que cria está situado em uma posição superior em relação às coisas criadas. Isto nos leva a compreender que Heráclito designava tanto o Deus principal, como o combate, o sol e o fogo, como criadores de todas as coisas. Isto é, a aparente diferença entre estas quatro designações, quanto à capacidade de distinção e reunião das coisas, e sobretudo à forma, não é diferença alguma, ao passo que são o mesmo, têm o mesmo significado em substância, a não ser que tentemos estabelecer uma disposição hierárquica entre eles. Nesta direção, considerando que fogo, sol, Deus principal e combate são o mesmo quanto à forma, podemos compreender que o comum 6

Bajonas Brito Júnior in: Os Começos do Pensamento Ocidental, Heráclito, pág.

100.

5

entre tais designações trata-se da capacidade de separação originária entre as coisas, desde uma ordenação hierárquica. Ora, se combate, fogo, sol e Deus principal são o mesmo quanto à forma, a fonte criadora por excelência no pensamento de Heráclito seria uma só, porém sem designação absoluta e unívoca. O vínculo do fragmento 66 com o fragmento 53, talvez nos traga indícios para que melhor possamos estabelecer a relação entre o fogo e sol, bem como estabelecer também a relação entre o fogo (o sol) e o combate (o mesmo que o Deus principal). Assim lemos no fragmento 66: “O fogo, sobrevindo, há que distinguir e reunir todas as coisas”. Ora, assim como o sol no fragmento 100 realiza a distinção hierárquica das coisas fundada na oposição, isto é, se o sol permite a coexistência hierárquica das coisas fundada na tensão7, seja entre inverno e verão, permissão e proibição, legal e ilegal, digno e indigno, noite e dia, vida e morte, aquecimento e umedecimento, ou seja, entre todas as coisas, também o fogo, assim como o combate, possuem a mesma primazia, a saber, a capacidade de distinção (que bifurca hierarquicamente) e da reunião de todas as coisas (que reúne desde uma determinada coexistência hierárquica). No fragmento 66 o fogo tem a primazia de distinguir e reunir todas as coisas, isto é, ao fogo é dada a dignidade hierárquica de realizar a criação por mediação da distinção e da reunião de todas as coisas, para a constituição do “um”, da unidade do cosmos. Nesta direção, compreendemos que o fogo em sua ação, como fonte criadora de todas as coisas em suas duas funções, a de distinguir e reunir, o é quanto à forma tal qual o combate, que é pai de todas as coisas, ao passo que é o combate que abriga também a primazia de distinguir e reunir todas as coisas. Esta criação, fundada na distinção e na reunião, através do tempo, trata-se de uma criação hierárquica, fundada na Esta coexistência hierárquica é temporal (calcada em uma visão cíclica de tempo) e fundada na tensão. Entendida a existência como um valor não em si mesmo, mas existência no sentido também hierárquico, com valores que possuem grau de dignidade distintos, opostos e portanto hierárquicos. Isto é, a vida de um livre não é a mesma vida que a de um escravo. 7

6

tensão e na inversão. Ora, se Heráclito não nomeia a essência criadora de todas as coisas como sendo determinada univocamente ou uniformemente, nomeando como fonte criadora tanto o combate, o fogo, o Deus principal e o sol, isto nos leva a constatar que Heráclito designa “o mesmo”, “o um”, tanto como resultado do fogo como do combate. Neste sentido, compreendemos que Heráclito ao situar em seus fragmentos a essência originária e criadora de todas as coisas como sendo o fogo e o combate, está demarcando que tudo provém de ambos – ambos, no sentido da distinção de nomeação, mas o mesmo considerando seus sentidos expostos nos fragmentos de Heráclito, os sentidos de fogo, combate, sol e Deus principal. Nesta direção, se é dado a estes (fogo e combate) a capacidade de criação, da distinção hierárquica de todas as coisas através da inversão, não seria “o mesmo” (o um) aquilo que sucede à capacidade de distinção e reunião do fogo e do combate? Ora, já que estes segundo Heráclito criam todas as coisas, criam também a unidade do cosmos, pois “o um” só pode ser designado como tal se possuir a sua unidade, que lhe é própria e inerente, do contrário, “o um” não se torna “um”, se torna no mínimo “não - um”, em suma, diferente de “um”. Logo, “o mesmo” ou o “um”, é criação tanto do combate (pai de todas as coisas e Deus principal) quanto do fogo (o sol). Neste sentido, no percurso de nosso pensar podemos compreender que a posição de distinção e reunião atribuída ao fogo no fragmento 66 coincide plenamente com a posição do sol no fragmento 100, e por extensão, o vínculo entre o fogo e o combate, exposto no fragmento 53, situa o combate como vinculado ao Deus principal9.

Daí compreendermos que, embora Heráclito

“O Deus principal na tarefa de trazer todas as coisas,... não importando que um nome lhe possa ou não ser designado, mostra-se como o mesmo que o combate: este é pai e senhor de todas as coisas;” (Bajonas Brito Júnior in: Os Começos do Pensamento Ocidental, Heráclito, pág. 100). 9

7

possa atribuir designações diferentes à essência originária de todas as coisas, não é de seu interesse abrir mão de identificar e nomear o que cria todas as coisas, indagação que o inquieta. Em outra perspectiva, deixa como indeterminável o que de fato cria tudo, pois não atribui somente, e a todo momento em seus fragmentos, uma determinação em particular àquele que cria, ora fogo (sol), ora combate (Deus principal). O que nos leva ao encontro desta compreensão é o fato de que tanto o fogo quanto o sol, o combate e o Deus principal, são todos precedentes à criação de tudo o que possa existir, bem como antecedem à distinção e à reunião do “mesmo”, “o um”, no qual coexistem todas as coisas hierarquicamente e relacionadas umas com as outras por mediação da tensão e da oposição. Isto significa: todas as coisas sucedem àquele que cria, pois este cria todas as coisas. Portanto, a criação só é criação quando distingue e reúne, criando “o mesmo” e a unidade do “um”.

Referências: BRITO, Bajonas. Os começos do pensamento ocidental. Heráclito, p. 72116. (não publicado). LEÃO, Emmanuel Carneiro. Os Pensadores Originários; tradução dos fragmentos de Heráclito, pág. 59-93; Editora Vozes, 2a edição, 1993, RJ. Os Pensadores, Pré-Socráticos; Heráclito de Éfeso, pág. 81-102; Editora Nova Cultural, 2000. Panfleto

da

ALN

de

agosto

de

1969,

Sobre

a

Organização

Revolucionária. KAFKA, Franz. A Colônia Penal, Diante da Lei. Livraria Exposição do Livro, 1965, SP.

8

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.