Da secreta respiração das pedras

May 29, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Video Art
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Da secreta respiraçã o das pedrasi Emı́lia Ferreira

Na paisagem, melancolia e beleza espelham o rosto do tempo. Esse rosto tem um fluir duplo, de corpo existente e de corpo em devir. Outrora simplesmente rochedo, condensaçã o de aglomerados de instantes, a pedra deveio escultura. Será que algum dia se tornará de novo á gua e enfim corpo de sal que se ergueu em rocha? Nas suas duas faces, o tempo é implacá vel. Sabemos que, se esperarmos o suficiente, se nos dedicarmos à imobilidade, ele se apoderará de nó s. Para sempre. De dentro de á gua, como Afrodite da espuma, a pedra que já foi rocha informe e agora se ergue, como deusa de forma humana, recorda-nos a luta contra o desaparecimento, recorda a nossa pulsã o de manter uma sombra erecta contra o fulgor do sol, contra a luz excessivamente branca que tudo apaga. Uma sombra nã o é apenas um lugar esquecido. EK sobretudo uma forma resistente, um logos. Há que amar essas formas que outrora foram, se esperarmos que o futuro traga mã os e bocas que nos sussurrem os sons do vento e de tudo o que é ainda mó vel, que nos ofereçam a carı́cia da maré e do há lito do mundo que a empurra. Erecta dentro de á gua como forma informe, a pedra é aos poucos descoberta numa essê ncia formal como se a á gua moldasse com o seu movimento o corpo dos deuses. Nã o deixa de nos surpreender sempre o modo como algo tã o suave — na maioria das vezes até imperceptı́vel — como um toque materno ou a carı́cia de um tı́mido amante, pode causar tã o determinada modelaçã o, tã o definidos corpos.

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Dentro de á gua esperamos, em silê ncio e imó veis, fundir-nos com a sua fluidez, desaparecer. E tememos, simultaneamente, o desaparecimento, o esquecimento que ele sempre arrasta. Tentaçã o do abismo, a beleza, como o tempo, tem essas duas faces. A á gua e o vento que envolvem a escultura e a recortam na sua plenitude corporal, sã o os mesmos elementos que a modelam, imperceptivelmente. Sã o també m esses elementos que inscrevem o tempo sobre o corpo de carne. Testemunho do modo como crescemos a partir da paisagem, como carne que é barro e ao barro volta, olhamos para a pedra nela reconhecendo corpos que se deixaram estar até passarem a ser, até a intemporalidade os habitar para sempre. Há uma nostalgia em nó s na sua contemplaçã o, uma suspeita de que dentro deles ainda alguma coisa se move e respira. Por isso, sentimos que temos de amar esse corpo passado, perceber que nele, antes, já algué m esteve. Como se assegurá ssemos o nosso futuro contra o esquecimento, contra a invisibilidade. E que, agora, no instante antes de també m nó s nos transformarmos em pedra, de nos abandonarmos até ao ponto de sermos pedra, há que ter a consciê ncia desse fluir. Por ora apenas ainda contamos segredos à s pedras, sussurramos-lhes palavras misteriosas, palavras de amor ou de consolo, antes mesmo de o nosso corpo se transformar no seu corpo para todo o sempre. Antes de cruzamos os braços e de acolhermos como nosso o corpo que há muito se nã o move. Por isso, no escuro, insistimos em embalar corpos de pedra. Uma mulher sussurra-lhes ao ouvido, tal como faria ao ouvido de mortos queridos. Lava-lhes a alma como lavaria o corpo dos mortos. Conta-lhes estó rias para que nã o se esqueçam de ter sido. Dá -lhes memó ria e, com essa tessitura de palavras, prepara-se ela mesma para se entregar ao tempo; conta já essas estó rias a si

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mesma. A voz que sussurra palavras ao ouvido das esculturas relembra-nos que há corpos que ainda respiram. A pedra, nã o o esqueçamos, é o corpo cuja respiraçã o ficou presa num instante. Ou em sequê ncias de instantes, linha infinita de segundos. Por fim, imó vel, també m ela se une ao uno. No escuro, o corpo de pedra reú ne-se ao ar, respirando em silê ncio. A mulher que já contou todas as estó rias pá ra atrá s da ruı́na de um corpo. Une-se a esse tempo passado e assim faz-lhe a oferenda de um presente, de um futuro. Devé m o pró prio ser contı́nuo. Interrompe a dicotomia corpo/natureza. Um e outro revelam-se no tempo absoluto, perenidade e efemeridade tecem um corpo ú nico relacional. E chegamos à suspeita final. Talvez esse seja o papel da beleza no mundo, a dá diva da serenidade de ser, um equilı́brio entre as formas do corpo, a sua perenidade em pedra e a sua efemeridade em pele (mar, vento), e o que passa à sua volta e o modela. Mas a beleza é um sonho, algo tã o intangı́vel como o vento. Poderá ser belo algo que, enquanto puro e intocado, enquanto momento captado no fluir constante do tempo, terá um destino sempre trá gico? Será a beleza um instantâ neo? O captar de um momento perfeito, quando o mundo era jovem e intocado? Algo destinado a desaparecer? Será possı́vel a sua existê ncia no tempo contı́nuo? Ou existirá apenas com a morte do instante? Com a sua petrificaçã o? Seja o que for, desejamo-lo captado num momento irrepetı́vel, mas desejamos que ele perdure, que seja para sempre. Mas nem a pedra é para sempre. També m nela o tempo se infiltra, para apagar. O tempo, outro nome da morte, é a nossa promessa de renovaçã o, de voltar ao princı́pio, de recuperar a pureza. A beleza talvez seja, afinal, apenas o olhar que, com cuidado, depositamos na sua efé mera pele.

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Emı́lia Ferreira Lagos, 17 de Julho de 2015 i Texto para o catálogo da exposição de Hugo Barata e Ana Rito, "Pequenos Monumentos que

atestam o início da possibilidade", realizada na Sala do Veado – Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Lisboa, 2015. Texto especificamente focado no trabalho apresentado por Ana Rito.

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