Da tela à sala de aula: leituras (não mais) subterrâneas

September 18, 2017 | Autor: Jair Zandoná | Categoria: Cinema, Estudos de Gênero (Gender Studies), Gênero, Sexualidades, Ambiente escolar, Deficiências
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DA TELA À SALA DE AULA: LEITURAS (NÃO MAIS) SUBTERRÂNEAS Jair Zandoná1 Resumo: O som da máquina de escrever abre o curta-metragem “Não quero voltar sozinho” (2010). A cena seguinte é de um menino, com deficiência visual, datilografando o que sua colega lhe transmite a partir do conteúdo registrado no quadro pela professora. A proposta desta comunicação é pensar no modo como as linguagens cinematográficas possibilitam articular debates em sala de aula sobre as questões de gênero, geração, sexualidade e deficiências. Rick Santos (1997), ao aproximar sua análise sobre o raro trânsito de “literatura gay”, aponta para algumas barreiras que impedem a leitura em sala desses textos: homofobia, etnocentrismo e mito da conversão. Não obstante, se pensarmos nos corpos em transformação constante como ocorre em ambiente escolar, propor analisar as subjetividades do corpo, no intuito de dar visibilidade às discussões de gênero, sexualidade e/ou deficiência, e das identidades, possibilitará ao jovem desenvolver-se criticamente enquanto sujeito socialmente (de)formado. Palavras-chave: Cinema. Gênero. Sexualidade. Deficiências. Ambiente escolar. A entrevista feita com Daniel Ribeiro e publicada em Cinescópio em setembro de 2013 é bastante significativa à reflexão que proponho. Seu título — Afinal, quem faz os filmes [gays]?2 — retoma a pertinente discussão sobre a (aparente escassa) veiculação de obras com temática gay de modo amplo, sem sofrer censuras ou represálias3. Os colchetes tornam isso muito mais evidente. Como se tudo o que se referisse a gay estivesse (escondido) em uma caixa, no armário — fora do campo da visão — e, por conseguinte, não precisasse ser levado em consideração. Nesse contexto, como pensar a circulação de tais produções no universo escolar? No que tange à literatura gay e lésbica, Rick Santos (1997) aponta para três importantes barreiras que impedem a leitura em sala desses textos: a homofobia, o etnocentrismo e o mito da conversão. Há muito já dito sobre homofobia e a segregação de pessoas que não se enquadrem no sistema homem, branco, cristão, heterossexual. Felizmente, os movimentos sociais, os estudos feministas e de gênero têm contribuições inquestionáveis quanto à, grosso modo, necessidade de se levar em contar os desdobramentos da(s) identidade(s) que o(s) sujeito(s) elabora(m) em sua(s) vida(s), os papéis e as funções que desempenha(m), a(s) qual(is) estão em constante construção, elaboração: je est un outre, como diria Arthur Rimbaud, em potência4. 1

Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina. CINETOSCÓPIO. Afinal, quem faz os filmes [gays]? – Entrevista com Daniel Ribeiro. Disponível on-line em: http://cinetoscopio.com.br/2013/09/03/entrevista-daniel-ribeiro/. Acesso em 05 set 2013. 3 Vale lembrar, por exemplo, do Projeto Escola Sem Homofobia que, conhecido como “kit gay”, seria distribuído da rede pública em todo o país no Programa Mais Educação, o qual continha material educativo composto de vídeos, boletins e cartilhas com abordagem do universo de adolescentes homossexuais. 4 Em carta de 13 de maio de 1871 endereçada ao professor Georges Izambard, ao expor suas ideias acerca da criação poética. (Cf. CHIAMPI, 1991, p. 119). 2

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Stuart Hall (2011, p. 8) sintetiza bem tal processo ao ponderar que “as identidades modernas estão sendo descentradas”. Eu poderia dizer mais: estão in progress, são fluidas. Para o estudioso, a identidade é elaborada ao longo do tempo, por meio de processos inconscientes, portanto, não se trata de um processo inato, de algo que já exista desde o nascimento (HALL, 2011, p. 38). Muito embora prevaleça no imaginário a fantasia da unicidade (ou de centralidade) — talvez porque as identidades estejam vinculadas a um único corpo e a capacidade dissociativa pode, por vezes, provocar certo medo. Por estar sempre em processo, os movimentos da/na/para a percepção da identidade não possuem trajeto definitivo (são descentrados). Nesse sentido, retorno ao terceiro ponto enunciado por Santos. Se o mito da conversão, ou seja, oportunizar a leitura de textos que transitam pelo universo homoafetivo poderia instigar os alunos e alunas a desenvolverem “tendências homossexuais”, argumentativa (ainda) defendida, por que não considerar o inverso? Se, via de regra, apenas são oportunizados textos heteronormativos, o mito da conversão também não caberia às crianças, jovens, adolescentes que se “veem” diferentes dos e das colegas? A errônea compreensão de que, em uma turma, as alunas e alunos têm história sociocultural e econômica semelhantes, apenas pelo fato de conviverem em um mesmo espaço regularmente, é, antes de tudo, um grave equívoco. É por esse caminho, então, que a preocupação em considerar as diversidades e as diferenças próprias do tempo, do espaço e seus sujeitos são importantes. Assim, faz-se necessário tratar de textos — no sentido mais amplo do termo, como espaço polissêmico — que transitem por temas transversais como: sexualidade, orientação sexual, gênero, questões étnico-raciais, deficiência, propondo/possibilitando reflexões no que se refere à interação simultânea de identidades culturais, das desigualdades, das hierarquias, da construção social da identidade plural, das identidades, das diferenças de gênero na organização social das vidas pública e privada... Dessa maneira, é possível elaborar referenciais diversos, não (ou menos) engessados e, talvez, menos estereotipados. Retomo duas situações literárias que contribuem para minha análise. Refiro-me a Aqueles dois (história de aparente mediocridade e repressão) e Uma praizinha de areia bem clara, ali, na beira da santa5, ambos de Caio Fernando Abreu, os quais estão fortemente demarcados pelo contexto político autoritarista brasileiro que regeu o país até meados dos anos de 1980: repressão e conservadorismo são alguns dos elementos norteadores desse período. Não por acaso, o personagem narrador de Uma praiazinha de areia bem clara..., tão anônimo e invisível quanto possível, relembra saudosamente da relação de estreito afeto com Dudu, das tardes quentes 5

Doravante referido neste texto apenas como “Uma praiazinha de areia bem clara...”

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em Passo da Guanxuma e de sua fuga de lá. Seu exílio não apenas estava relacionado ao homicídio cometido por ele, mas por não suportar (ou não saber lidar com) seus sentimentos (e desejos) que nele também latejavam. Apenas a morte seria capaz de detê-lo: Desde aquela tarde quase quente de setembro, quando nos estendemos nus sobre a areia clara das margens da sanga Caraguatatá, [...] você se debruçou na areia para olhar bem fundo dentro dos meus olhos, depois estendeu o braço lentamente, como se quisesse me tocar num lugar tão escondido e perigoso que eu não podia permitir o seu olho nos pelos crespos do meu corpo, a sua mão na minha pele que naquele tempo não era branca assim, o seu hálito de hortelã quase dentro da minha boca. Foi então que peguei uma daquelas pedras frias da beira d’água e plac! ó, bati de uma só vez na tua cabeça, com toda a força dos meus músculos duros – para que você morresse enfim, e só depois de te matar, Dudu, eu pudesse fugir para sempre de você, de mim, daquele maldito Passo da Guanxuma que eu não consigo esquecer, por mais histórias que invente. (ABREU, 1988, p. 89-90).

O corpo inerte de Dudu remete a tantos finais trágicos de histórias homoafetivas (ficcionalizadas) que conhecemos — aparente punição por tentar cruzar os limites do “normativamente aceitável”. No cinema6 não faltam exemplos, paixões interrompidas seja pela morte inevitável, pela impossibilidade de permanecerem juntos, ou pelo entendimento equivocado da existência de uma paixão “proibida”: Infâmia (1961)7, A consequência (1977)8, Querelle (1982)9, Longe do Paraíso (2002)10, O Segredo de Brokeback Mountain (2005)11, Contracorrente (2009)12, Fim de semana (2011)13... Aliás, Infâmia14 é o estopim que aproxima Raul e Saul, colegas de trabalho, de Aqueles dois. Eram dois moços sozinhos: o primeiro veio do norte; o segundo, do sul. Ambos se encontraram naquela metrópole deserta, tão deserta quanto eram suas almas. No filme de 1961, uma aluna do colégio de meninas acusou Karen e Martha, interpretadas por Audrey Hepburn e Shirley MacLayne, de manterem um romance, motivo pelo qual todos na cidade se voltassem contra elas. Essa acusação não apenas arruinou o projeto do colégio interno mantido por elas, como desmantelou suas vidas e daqueles que as cercavam. Semelhantemente, a proximidade entre Raul e Saul pareceu incomodar seus colegas de repartição:

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Conferir o documentário O outro lado de Hollywood (The Celluloid Closet, Rob Epstein e Jeffrey Friedman, 1995), o qual se ocupada, entre outras questões, da representação de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros no cinema, dos personagens afetados pelo Código Hays. 7 The Children's Hour, William Wyler, Estados Unidos. 8 Die Konsequenz, Wolfgang Petersen, Alemanha. 9 Querelle, Rainer Werner Fassbinder, Alemanha/França. 10 Far from Heaven, Todd Haynes, Estados Unidos. 11 Brokeback Mountain, Ang Lee, Estados Unidos/Canadá. 12 Contracorriente, Javier Fuentes-León, Peru/Colômbia/França/Alemanha. 13 Weekend, Andrew Haigh, Reino Unido. 14 Peça homônima de Lillian Hellman.

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Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. (ABREU, 1995, p. 139)

Algum tempo depois, no início do ano, quando planejavam suas férias, foram surpreendidos com suas demissões. Segundo seu chefe, alguém, que assinava com a alcunha “Um Atento Guardião da Moral”, enviou cartas reclamando da conduta “não apropriada” dos colegas: Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos. (ABREU, 1995, p. 141-142)

Dessas três situações, embora muito diferentes entre si, há em comum a (re)afirmação de padrões comportamentais considerados inquestionáveis e não-superáveis. As acusações feitas a Karen e Martha, as retaliações feitas pelos pais das alunas, tirando-as da escola, modo bastante contundente de represália por suas condutas consideradas inadequadas. Ou, semelhante ao mencionado pelo “guardião da moral” em Aqueles dois, "relação anormal e ostensiva". Passo da Guanxuma é cenário de Uma praiazinha de areia bem clara... e, não por acaso, a epígrafe do texto remonta a uma fala proferida em Querelle: “Each man kills the things he loves” (ABREU, 1988, p. 81)15 prenunciando o inevitável desfecho daquilo que o leitor encontrará ao se embrenhar nas lembranças do narrador e da época em que vivia naquela cidadezinha. Apenas depois da morte de Dudu é que pôde fugir dele e de si próprio — trôpega tentativa de reprimir-se, anular-se, deixar de sentir. O tempo decorrido, embora esperasse esquecer seu passado no interior e, por conseguinte, da existência de Dudu, provocou movimento inverso: fez com que o visse nessa nova cidade grande, talvez uma tentativa de retomar algo perdido nos dias com ele. Foi por “vê-lo” próximo à Augusta, em uma de suas voltas à noite, que ficou conhecendo o Bar. Diz o narrador: “Gosto de ver as putas, os travestis, os michês pelas esquinas. Gosto tanto que às vezes até pago um, ou uma, para dormir comigo.” (ABREU, 1988, p. 84). O gosto por embrenhar-se na noite, transitar por espaços

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De Oscar Wilde: “Cada homem mata as coisas que ama.” (Tradução minha).

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undergrounds, retoma uma vez mais sua tentativa por esconder-se, invisibilizar-se por não se enquadrar às práticas normativas de sua educação (machista, impositivamente heteronormativa). Na entrevista concedida por Daniel Ribeiro, o diretor menciona duas funções que considera importante no tocante ao cinema e o “universo gay”, o qual pretende estabelecer um diálogo com o “público não-gay”, mas também elaborar referenciais (não estereotipados) de pessoas que se percebem gays e têm vidas ordinárias: dormem, acordam, estudam, trabalham, se apaixonam, choram, gargalham, viajam, se desiludem amorosamente... Eu sinto que estes personagens simpáticos e positivos t[ê]m duas “funções” importantes. A primeira é o diálogo com um público maior. Quando o público que não é homossexual consegue se enxergar nestes personagens, existe a possibilidade de compreensão e solidariedade em relação aos conflitos deles. A segunda é a questão do espelho para o público gay. Por exemplo, o “Eu Não Quero Voltar Sozinho” tem um final feliz. Isso não foi pensado, não foi proposital. Era o final para aquela história que eu tinha criado. Mas depois que o filme passou a circular, ficou muito claro pra mim que o público gay quer também ter finais felizes. Isso parece banal, mas não é. A maioria dos filmes com personagens gays termina de forma negativa ou melancólica. O curta “Café com Leite” é exemplo disso. Então quando um adolescente gay assiste [a] um filme com um personagem parecido com ele e que tem um final feliz, aquilo serve como espelho para sua própria vida, para seus próprios finais felizes. Isso não quer dizer, no entanto, que eu só me interesse por estes tipos de personagens. Mas no caso específico destes curtas, para as histórias que eu pretendia contar, os personagens precisavam ter estes aspectos. (Cinetoscópio, 2013)

Se cotejarmos o exposto por Daniel Ribeiro e pensarmos, primeiramente, no curta-metragem Não quero voltar sozinho (2010), o qual também tem a escola16 como cenário da trama, permite elaborar algumas considerações relevantes. E prefiro aqui pensar na potência de um curta porque, se comparamos com a de um longa, podemos associar essas duas polaridades às leituras feitas por Sylvia Plath (1995, p. 67) e por Julio Cortázar (1999) com relação à potência dos poemas e dos contos. A poetisa compara o poema, de caráter concentrado, a um punho fechado. Em comparação ao romance, de força diluída, assemelha-se a uma mão aberta, que pode, assim como as linhas das mãos, desdobrar-se em enredos para construir a trama17. Tomo emprestada a metáfora do boxe 16

Ao considerarmos o contexto escolar, no tocante ao envolvimento de materiais audiovisuais em sala de aula, Marcos Napolitano (2011) propõe montar um programa durante o bimestre, semestre ou ano letivo atividades que possibilitem o uso de diferentes linguagens cinematográficas. Além de recomendar que não se restrinja à exibição de longas, documentários, curtas, sugere que talvez a projeção seja feita extraclasse, e que o/a professor/a proponha análises, crie roteiros de discussão a partir da formação de grupos para que, em sala, os resultados dessas leituras sejam mais bem aproveitados. Nesse sentido, sugere o uso de outros textos como apoio, construção de um universo teórico de discussão. À guisa de um manual, a publicação indica alguns filmes possível de serem abordados em classe nas diferentes disciplinas obrigatórias. Além disso, possui a seção Temas transversais, na qual inclui, entre outros, pluralidade cultural, orientação sexual, trabalho e consumo etc. 17 Não falo dos poemas épicos. Todos sabemos o tempo que esses podem levar. Falo do pequeno poema de jardim, sem pretensões oficiais. Como hei de descrevê-lo? – abre-se uma ponta, fecha-se uma porta. Entre uma coisa e outra, entrevimos uma imagem – um jardim, uma pessoa, um aguaceiro, uma libélula, um coração, uma cidade. Estou a pensar nesses pesa-papéis redondos, de vidro, da época vitoriana, de que ainda me lembro mas nunca consigo encontrar – tão diferentes dos artigos de plástico, produzidos em série, que enchem as secção de brinquedos dos armazéns Woolworths. Esse tipo de pesa-papéis é um globo transparente, um universo fechado, puro e límpido, com uma floresta, uma aldeia

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elaborada por Julio Cortázar, ao cotejar as diferenças entre romance e conto: o romance vence o leitor por pontos; o conto, por nocaute. O mesmo ocorre com um curta-metragem: sua extensão concentrada assemelha-se ao punho fechado delineado por Plath, vence o espectador por nocaute, enquanto um longa-metragem, uma mão aberta e, por isso, de narrativa mais “diluída”, vence o espectador por pontos18. O som da máquina de escrever abre a primeira cena de Não quero voltar sozinho. A seguinte apresenta um menino, com deficiência visual, o único de sua turma, datilografando o que a professora dita, elemento também representado pelas letras em braile que se convertem em letra de forma na abertura do vídeo.

Figura A - Composição de cenas: abertura da película; cena da professora ditando conteúdo; close na máquina de escrever.

O barulho provocado pela escrita a máquina torna-se um dos elementos que o distingue dos demais colegas. Marca da diferença física culminada pelo estalido feito provocado ao chegar no final da linha, informando-o a necessidade de dar espaço para seguir com a cópia. Essa sequência de cenas permite que conheçamos Leo, sua amiga Giovana que, além de ser sua colega, auxilia-o nas atividades escolares, tornando-se sua ledora em classe, bem como descreve outras situações que ocorrem no ambiente e são impossíveis para Leo compreender — como é o caso da cena na qual Gabriel se apresenta à turma e alguém joga uma bola de papel do fundo da sala. Para que Leo pudesse compreender o evento, Giovana descreveu em poucas palavras a ação19. Além disso, acompanhava regularmente Leo para retornar à sua casa. Nesse contexto vale uma observação importante, pois é uma menina que se dispõe a auxiliar um menino com deficiência. Até a chegada

ou um grupo familiar lá dentro. Viramo-lo de pernas para o ar, depois tornamos a endireitá-lo. Começa a nevar. Tudo se altera no espaço de um minuto. Nada, lá dentro, voltará a ser como era – nem os abetos, nem as empenas dos telhados, nem os rostos. Assim acontece o poema. E, de facto, é tão pouco o espaço! Tão pouco o tempo! O poeta faz-se um perito em acondicionar na mala os seus pertences: / Estes rostos que surgem na multidão; / Pétalas num ramo negro de chuva. E já está: o começo e o fim num fôlego só. Como faria o romancista a mesma coisa? Num parágrafo? Numa página? Diluindo talvez o assunto, como tinta, num pouco de água, dissolvendo-o, espalhando-o (PLATH, 1995, p. 66-67). 18 Essa minha leitura poderá ser melhor elaborada quando o longa-metragem desse roteiro for lançado em 2014: Todas as coisas mais simples (título provisório). 19 Ver glossário em Guia de orientações básicas sobre Gênero, Deficiência e Acessibilidade. Disponível on-line em http://generoeciencias.paginas.ufsc.br/files/2013/09/cartilha-on-line-final.pdf. Acesso em 26 de set. de 2013.

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de Gabriel à trama, não vemos nenhuma outra pessoa que auxilia Leo. Aliás, de modo geral, relaciono a não participação de pessoas do gênero masculino para auxiliarem pessoas com deficiência devido à heteronormatividade, na qual delega às mulheres o papel de cuidadoras e aos homens a responsabilidade de prover financeiramente a família. Com Gabriel, a dinâmica, antes estrita às duas personagens, se amplia, complexificando, igualmente, as relações entre eles. Se, num primeiro momento Giovana era quem oferecia o braço a Leo para que ambos pudessem voltar para casa, após o estreitamento da relação entre ele e Gabriel (bastante relacionado ao trabalho sobre a Grécia Antiga, envolvendo Atenas e Esparta20), este passa a ser os “olhos” de Leo.

Figura B - Composição de cenas: retorno para casa após o término da aula; jogo do gato-mia; Giovana lê para Leo o que está no quadro.

Vale ainda referir à brincadeira do gato-mia, na qual, conforme as regras, um dos participantes deve estar com os olhos vendados, tendo apenas como recurso o tato e a audição para identificar os e as demais participantes. Quando a pessoa é encontrada, deverá imitar o miado de um felino. No caso de Leo, a venda faz-se desnecessária. Em seu mundo, seus sentidos são outros. Tato e audição são os sentidos que estão mais aguçados nele — característica evidenciada pelos planos e tomadas.

Figura C - Composição de cenas: Leo troca de camiseta na presença de Gabriel; Leo coloca o moletom de Gabriel sobre a escrivaninha e sente sua textura; Leo toma o braço de Gabriel ao voltarem para casa.

Para as pessoas sem deficiência visual, normalmente será a visão seu principal apoio para entender e compreender o que as cerca, como é o caso de Gabriel. Na cena em que Leo tira a camiseta da escola para substituí-la por outra, desvia, automaticamente, seu olhar. De certo modo, é 20

A tarefa é dada pelo professor de maneira que as meninas deverão fazer o trabalho sobre Atenas e os meninos sobre Esparta. Separação de gênero bastante significativa, se lembrarmos da comédia Lisístrata, de Aristófanes.

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esse o sentido que mais explora o erotismo. Sergio Cardoso (2002, p. 349) lembra que o “olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda por interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento”. O olho é capaz de perceber limites, formas, fronteiras, cores, tonalidades, luz, sombras, a composição que o olhar faz da paisagem alcançada pela visão nunca é totalmente apreendida. O processo realizado pelo cérebro para capturar o que a visão distingue é extremamente sensível e subjetivo. Embora possamos entender o olfato e o paladar como sendo os sentidos mais subjetivos do organismo, posto que odores e sabores são carregados de memórias de prazer e de repulsa, semelhante ao prato preferido da infância, ou ao cheiro da casa dos avós que, relembrados, deslocam o sujeito para experiências pregressas em família, a visão igualmente carrega certo sentido estético, que coteja (não apenas) o subjetivo com a paisagem de quem vê. Pensar que o “mundo do olhar” (CARDOSO, 2002, p. 350) se compõe não apenas de matérias e naturezas visíveis e palpáveis. Aliás, a imaginação não se restringe à possibilidade de elaborar imagens impregnadas de realidade. As imagens ultrapassam a realidade, “cantam uma realidade” (BACHELARD, 2002, p. 18). Talvez seja por isso que Grabiel desvia seu olhar do corpo de Leo: seu corpo desvela íntimos contornos; e o olhar de quem vê revela desejo, curiosidade, vergonha, pudor... Por sua vez, o contato com o braço (ou seu moletom) de Gabriel e sua voz, faz com que Leo perceba essa relação de outra forma. Tais elementos, a priori, desencadeiam seu interesse como “namorado gay”, conforme expressão de Giovana quando o amigo revela seus sentimentos pelo colega.

Figura D - Composição de cenas: Leo ensina Gabriel sobre a estrutura do sistema Braile; Gabriel toca em Leo para dizer ao colega que havia esquecido seu moletom em sua casa.

Nesse caso, o embate de Leo é duplo: ao mesmo tempo em que se percebe interessado por uma pessoa do mesmo sexo, também sabe que seu corpo não se enquadra no padrão estético do corpo. Se considerarmos que a corporalidade se delineia por meio da construção social e que, assim como a(s) identidade(s) está in progress, há que se levar em conta a subjetividade do corpo

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lesionado como elemento relevante nesse contexto. Parece-me que esse seja um dos motivos pelo qual questiona a amiga para saber se ele é bonito, uma vez que não tem certeza se sua fisionomia seria condizente ao padrão de beleza socialmente aceito. Entende-se como deficiência o corpo com determinados impedimentos. Conforme os resultados do Censo Demográfico de 201021, há 45.606.048 milhões de pessoas que declararam ter pelo menos uma das deficiências investigadas na pesquisa (visual, auditiva, motora, mental ou intelectual), o que corresponde a 23,9% da população brasileira. Esse dado aponta para o que Anahi Guedes de Mello e Adriano Henrique Nuernberg (2012, p. 640) observam em seu estudo sobre gênero e deficiência: As lutas dos movimentos sociais de pessoas com deficiência guardam um ponto em comum com os movimentos feministas e de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTTTI), que é o de questionar o construto do corpo como um dado natural que antecede a construção dos sujeitos.

Com relação ao corpo, Jean-Luc Nancy (2007, p. 10) pondera que “si siento, es que resiento – en mí o para mí – el efecto sensible de algo del afuera, lo que sólo es posible si yo mismo me dirijo al contacto de ese afuera, yo mismo, pues, fuera de mí para ser en mí.” Nesse sentido, seria como se o corpo respondesse de algum modo aos estímulos internos/externos que se lhe manifestam. O que não se caracterizaria, numa primeira instância, a um movimento voluntário e consciente do corpo. Pelo contrário, o que se teria nesse caso seria algo sintomático: uma produção sintomática de resultados não previsíveis/previstos. “El cuerpo puede volverse hablante, pensante, soñante, imaginante. Todo el tiempo siente algo. Siente todo lo que es corporal. Siente las pieles y las piedras, los metales, las hierbas, las aguas y las llamas. No para de sentir.” (NANCY, 2007, p. 15).

Figura E - Composição de cenas: Leo volta para casa sozinho, usando sua bengala; Leo é beijado por Gabriel, achando que falava com/para Giovana. 21

IBGE. Censo Demográfico 2010: Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível on-line em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf. Acesso em 10 de set. de 2013.

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Considerando o modo como o corpo se manifesta, por assim dizer, tal subjetividade deve, igualmente, ser levada em consideração. O modo de sentir de Leo não passa pelos olhos, mas pelo tato, pela audição, pelo olfato, pelo paladar... por sua subjetividade. Não por acaso fica surpreso ao saber que o beijo inesperado fora roubado por quem estava apaixonado. O modo sutil como a sexualidade na adolescência é desenvolvida no curta-metragem, dando visibilidade à subjetividade e à sexualidade de pessoa com deficiência e gay22, vai ao encontro do que Daniel Ribeiro sintetiza na entrevista concedida: [acredito] que o cinema tem um poder de influenciar quem assiste. Achava que tratar desses dois temas de um modo que qualquer espectador pudesse compreender e se identificar com os dilemas daqueles personagens, poderia gerar discussão e debate sobre eles. Além disso, a forma delicada como dois personagens gays se descobrem apaixonados serve como referência para muitos adolescentes da mesma idade que estão passando pelas mesmas questões.

Por fim, minha leitura não pretende impor/propor nenhuma forma de abordar as discussões acima delineadas, mas vai ao encontro de algumas questões propostas pelo Curso Gênero e Diversidade na Escola: Formação de Professoras/es em Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais, cujos materiais estão disponíveis on-line23, bem como algumas preocupações que os eventos do Seminário Internacional Fazendo Gênero vêm apontando em série de encontros. Essas iniciativas vão em direção ao que Paula Ribeiro e Raquel Quadrado (2010) observam sobre o incontornável papel desempenhado pela escola para discutir temáticas que envolvam corpo, gênero e sexualidade, uma vez que envolver os profissionais da educação em projetos afins contribuirá para a inclusão e superação de desigualdades sociais.

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Anahi Guedes de Mello e Adriano Henrique Nuernberg (2012, p. 645): observam muito bem em sua pesquisa sobre essa interface: “A negação da sexualidade e do prazer da pessoa com deficiência é analisada com base na contribuição dos Estudos Feministas e de Gênero, em função da riqueza conceitual que tais estudos puderam conquistar nas últimas décadas. Especialmente em relação aos artigos 23 e 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, respectivamente sobre o “respeito pelo lar e pela família”, que trata de aspectos relacionados aos direitos de contraírem matrimônio e constituírem família (inclusive o direito “à guarda, custódia, curatela e adoção de crianças [...]”), e sobre a “saúde” (inclusive no âmbito da saúde sexual e reprodutiva), é interessante observar que os movimentos sociais de pessoas com deficiência e de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais (LGBTTTI) guardam uma grande semelhança entre si no quesito interdições da sexualidade, uma vez que historicamente lhes são negados o direito à sexualidade e o de constituírem família. Essas questões fizeram com que os governos reconhecessem a importância de se incluir nessa convenção o tema das meninas e das mulheres com deficiência, das perspectivas de gênero e da igualdade entre as mulheres e os homens com deficiência, assim como entre os homens e as mulheres sem deficiência.” 23 O Livro de conteúdo está disponível em: http://www.e-clam.org/downloads/GDE_VOL1versaofinal082009.pdf; o Caderno de atividades está disponível em: http://www.e-clam.org/downloads/Caderno-de-Atividades-GDE2010.pdf. A primeira edição do curso promovida na UFSC e executada pelo IEG, em 2009, resultou na publicação de: MINELLA, Luzinete Simões; CABRAL, Carla Giovana (Orgs.). Práticas pedagógicas e emancipação: gênero e diversidade na escola. Florianópolis: Mulheres, 2009, cujo texto encontra-se disponível na Biblioteca Eletrônica do Instituto: http://ieg.ufsc.br/admin/downloads/livros_eletronicos/25012010-114217gdefinal-defnitivo.pdf.

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From screen to the classroom: readings (no more) underground Abstract: The sound of the typewriter opens the short film "Não quero voltar sozinho" (2010). The next scene is a boy with visual impairment, typing what his colleague transmits from the content by the teacher in the blackboard. The purpose of this communication is to think about how the cinematographic languages enable classroom discussions on issues of gender, generation, sexuality and disabilities. Rick Santos (1997) — approaching his analysis of the rare transit of "gay literature" — points to some barriers that prevent the reading of these texts in the classroom: homophobia, ethnocentrism and myth of conversion. Nevertheless, if we think about bodies in constant transformation, as it occurs in a school environment, propose to analyze the subjectivities of the body in order to give visibility to discussions of gender, identities, sexuality and / or disabilities, enable the young people to develop critically as subject socially (de)formed. Keywords: Cinema. Gender. Sexuality. Disabilities. Scholar space.

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