DA TELA PARA AS TELAS: A JANELA DIGITALIZADA. UMA ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS MÓVEIS COMO MEIO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA

May 22, 2017 | Autor: Graciela Campos Jk | Categoria: Digital Arts, David Hockney
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DA TELA PARA AS TELAS: A JANELA DIGITALIZADA. UMA ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS MÓVEIS COMO MEIO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA. GRACIELA JOHNSSON CAMPOS JOKOWISKI 1 LUCIANA MARTHA SILVEIRA 2

Resumo: Este artigo descreve um estudo inicial a respeito dos dispositivos móveis em duas situações onde a tecnologia pode ser percebida. Por um lado como meios de produção e por outro lado como possíveis mediadores ou suportes de arte. Este estudo é parte de uma pesquisa em andamento para a dissertação de Mestrado em Tecnologia do PPGTE/UTFPR. Tendo como objetivo geral uma reflexão crítica sobre a mediação dos tablets na vida cotidiana dos sujeitos, este trabalho tem como fundamento determinados conceitos que envolvem a relação entre a arte e a tecnologia. A observação e análise da arte digital de David Hockney, desenvolvida em janelas pintadas diretamente nas telas desses dispositivos, justifica a pesquisa no caminho para entender como artistas podem manipular os tablets nas suas obras e assim se comunicar por meio delas. Esta pesquisa busca contribuir para a discussão crítica da convivência dos sujeitos com esses mediadores tecnológicos. Entendendo que o uso cotidiano dos tablets os naturaliza, tornando-os transparentes, este trabalho evidencia este processo de invisibilidade e dirige o foco sobre a necessidade de sua opacidade, evidenciada na relação entre a arte e a tecnologia dentro de obras de artistas como David Hockney.

Palavras Chave: Arte digital, tablets, mediação, arte e tecnologia, David Hockney.

INTRODUÇÃO

A janela que se abre e ilumina o interior de um ambiente é a inspiração para a arte visual de David Hockney nos dispositivos móveis. O artista vislumbra a luz que adentra seu quarto ao amanhecer e procura registrá-la visualmente. Sua ideia é experimentar a tela iluminada do seu celular - e posteriormente do tablet - como uma maneira de representar a luminosidade que avista na sua janela. O registro da janela que o atraiu naquela manhã é feito por meio do desenho na tela digital de um dispositivo móvel. A imagem deste instante do quarto de Hockney representada na tela digital é a primeira pintura de uma série em que o artista observa janelas diversas e as ilustra por meio de desenhos nos dispositivos digitais (figura 1). Analisar esta experiência de David Hockney nos tablets é

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PPGTE - Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Mestranda Bolsista do CNPQ. – Brasil - (CAMPOS, Gracela J. E-mail: [email protected]). 2 Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, departamento de Desenho Industrial – DADIN e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, PPGTE - Brasil - (SILVEIRA, L. M. e-mail: [email protected]).

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uma oportunidade de estudar as obras de um artista que trabalha e pesquisa também as técnicas artísticas tradicionais, assim como outros artefatos de criação visual. Observar estas imagens é olhar além da arte finalizada, mas ver o processo que conduziu a este fim e que constitui o artista e sua criação. Figura 1 – desenhos de Hockney no tablet.

. Fonte: blog de Flaminio Gualdoni

A janela, como um espaço que delimita o campo de visão, está presente nas etapas deste processo, por isto é objeto em destaque que atravessará este artigo, como um ponto de apoio para discorrer sobre como a arte, aqui representada pela pintura, tem transpassado ferramentas e suportes de mediação para expressar a ideia de um artista a ser contemplada por seu espectador. Este texto levará o leitor a caminhar entre várias janelas, começando por aquela da arte renascentista que delimita o espaço da imagem retratada pelo pintor. Passará pelas telas dos tablets - janelas digitais; e pelo olhar do espectador e do artista – janelas da alma. Em todos estes momentos o relato fará pausas para espiar as janelas de David Hockney. As tecnologias utilizadas nas pinturas e retratos realistas dos artistas medievais são objetos de estudo do próprio Hockney (HOCKNEY, 2001) e é parte das referências teóricas deste artigo, importante para o entendimento do caminho que o artista percorreu até as pinturas no tablet. Para entender a arte visual nos tablets é preciso desviar um pouco o olhar para outras tecnologias de desenho e procurar entender como se aproximam - ou se distanciam - deste desenhar contemporâneo. Nesta pesquisa procura-se refletir sobre estes aparatos que constituem as identidades de artistas e espectadores dentro de um processo conjunto de troca de saberes, entre o indivíduo e objetos tecnológicos. Daniel MILLER (2013) colabora com suas teorias em torno dos objetos e sua relação com os indivíduos e sociedade, reforçando o conceito de que os objetos constituem a identidade dos sujeitos. 2

Os escritos de Arlindo MACHADO (2008) sobre percepção, imagem e tecnologia é base para a construção desta pesquisa, principalmente na análise do tablet como mediação e suporte de arte. Em conjunto com Arlindo Machado, os estudos de Marilena CHAUI (1988) dão apoio aos conceitos e ao entendimento da percepção e do olhar - ou olhares: do artista e do espectador da obra. Chaui afirma também que algumas palavras são utilizadas sem serem percebidas, devido ao uso constante e sem a reflexão necessária para o entendimento do seu significado. Para complementar o estudo das tecnologias que permeiam a arte, GOMBRICH (2013) participa da base teórica com sua literatura sobre a história da arte. Esta pesquisa, não tem a intenção de discutir o conceito de Arte, mas a análise do trabalho de pessoas que através da pintura dão forma para suas ideias e assim pretendem comunicar algo aos sujeitos. O desenhar no tablet se parece com o pintar em uma tela de pintura ou com o manusear do grafite no caderno de desenho. Pensar na arte nestes dispositivos é entender um fazer similar as telas de pintura, mas que tem características singulares. David Hockney nomeou “Flores Frescas” o conjunto de arte visual em que desenhou na tela do celular e depois no tablet. Sua criação nestes dispositivos é o foco da análise desta pesquisa. O presente artigo está fundamentado na dissertação de mestrado sob mesmo tema. A metodologia está apoiada em uma pesquisa teórica que engloba conceitos sobre Arte e Tecnologia, Artefatos, Telas e Janelas e sobre a arte de David Hockney. Este artigo limita-se a registrar a reflexão sobre teorias que vêm fundamentando este estudo, principalmente aquelas que englobam os conceitos de Telas e Janelas. Ao estudar a arte de Hockney, pode-se prever uma junção das singularidades do suporte digital com o conhecimento já conquistado na prática e no estudo dos instrumentos de pintura e desenho tradicionais. Nota-se porém que ao representar a luz natural que ilumina as janelas por meio da luz branca e fria do tablet, o artista faz do suporte digital elemento importante do seu trabalho. Mais do que uma adaptação da técnica tradicional para as telas digitais, o dispositivo torna-se o próprio conceito criativo deste projeto visual. Direcionando o olhar para o espectador das janelas de Hockney, compreende-se que a imagem criada através da janela digital produz uma contemplação por meio de uma sensibilidade diversa da pintura tradicional. Como descreve COSTA (1995:p.50): “a imagem sintética é uma espécie totalmente nova do sensível; com ela uma verdadeira e própria mutação irrompe no domínio das imagens e na história da experiência estética”. Hockney entende esta outra espécie de experiência estética e utiliza desta sensibilidade que permeia o cotidiano dos sujeitos por intermédio das janelas iluminadas. 3

JANELAS

Marilena CHAUI (1988), relata em texto sobre o olhar o quanto algumas palavras utilizadas rotineiramente podem perder o seu significado ou passarem despercebidas como se fossem invisíveis para quem fala. “Raras vezes nos despertam a atenção as palavras de nosso cotidiano. Ali estão disponíveis, costumeiras ” (CHAUI, 1988: p.38). Assim como as palavras descritas por Chaui, também os objetos que habitam o cotidiano se tornam transparentes. Com seu uso contínuo, os sujeitos se acostumam com a existência silenciosa de algumas coisas até não notarem mais a sua presença. Daniel MILLER (2013), antropólogo dos Estudos Culturais, em sua pesquisa sobre os objetos, os quais ele também denomina “trecos” ou “coisas” atribui a eles a qualidade da humildade, quando afirma que os objetos são humildes quando expõe sua destreza em passar despercebidos pelas pessoas, o poder dos objetos está justamente na sua invisibilidade que se mantêm enquanto permanecem sob o véu da familiaridade. As janelas - em suas várias formas de serem janelas, inclusive a digital - como objetos do cotidiano, são utilizadas sem serem percebidas e o seu significado literal se dissolve até praticamente desaparecer com o uso diário e constante. Este artigo pretende trazer um pouco de opacidade e dar visibilidade para estes objetos, pretendendo refletir sobre eles para entender os sujeitos que os utilizam. Nesta seção serão descortinadas ideias e reflexões sobre algumas janelas que atraem a atenção de um espectador. As janelas de Hockney são apresentadas no decorrer do texto nas duas partes que compõe esta seção. Na primeira, “janelas da arte”, se discutirá como os pontos de vista são eternizados pelos pintores e enquadrados em molduras; e a “janelas digitais”, se destina a refletir sobre as telas que se abrem nos monitores dos dispositivos digitais. Janelas da Arte A arte visual pode ser comparada a uma janela, através dela pode-se olhar para o outro lado e ver uma imagem retratada do ponto de vista do pintor. Segundo ARNHEIM (1998), a moldura teve início na renascença, no momento em que as imagens artísticas se emancipam das construções arquitetônicas – das paredes ou dos vitrais - e assim os desenhos em profundidade precisaram de uma linha divisória entre os limites da pintura e do espaço da parede. As bordas do quadro estabeleciam o fim da composição visual, mas não o fim do espaço representado que poderia se estender para além da área retratada pelo pintor. “A moldura era considerada como

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uma janela, através da qual o observador espiava o mundo exterior limitado pela abertura de observação, mas ilimitado em si.” (ARNHEIM; 1998:p.229) A comparação da pintura com uma janela foi descrita por ALBERTI (2014) no seu manuscrito o “Tratado Sobre A Pintura” de 1435 onde se encontra a definição de perspectiva e a descrição do quadro como uma janela aberta para o mundo. Alberti entende esta janela como a reprodução de um ponto de vista definido pelo artista, conforme Alberti: Aqui deixadas de lado outras coisas, direi apenas o que faço quando pinto. Inicialmente onde devo pintar, traço um quadrângulo de ângulos retos, do tamanho que me agrade, o qual reputo ser uma janela aberta por onde possa eu mirar o que aí será pintado, e aí determino de que tamanho me agrada que sejam os homens na pintura (ALBERTI, 2014:p.88 ).

Janela, perspectiva e ponto de vista são três conceitos interligados, utilizados pelos pintores para traduzir a sua ideia em linguagem visual. HOCKNEY (2001) entende a perspectiva como algo acidental, pois é dependente de um ponto de vista único, onde pintor se situa em um determinado momento exclusivo e difícil de reproduzir novamente. Conforme explica ao citar Jacques Rivière3: A perspectiva é uma coisa tão acidental quanto a iluminação (...) em ultima análise, a perspectiva é também o sinal de um instante, instante este em que certa pessoa ocupa certo ponto. E o que há mais, tal como a iluminação, ele os altera, dissimulando sua verdadeira forma. De fato, ela é uma lei da óptica, ou seja, uma lei física.” (RIVIÈRE, 1912 apud HOCKNEY, 2001: p. 197)

Em sua pesquisa, transcrita para o livro “O Conhecimento Secreto”, David Hockney observa as pinturas dos artistas renascentistas com o objetivo de entender a técnica utilizada por estes pintores ao desenvolverem seus retratos. Hockney demonstra a utilização de uma tecnologia baseada na óptica que utilizava espelhos e lentes para reproduzir imagens realistas como retratos ou natureza morta. David Hockney repete na prática o experimento que os pintores do século XV utilizaram nas pinturas realistas, para isto ele utiliza um espelho côncavo que reflete uma imagem na parede, a cena refletida é a base da sua pintura realista. Para que possa ver a imagem com nitidez, o seu objeto de observação deve estar recebendo forte luz natural e ficar atrás de uma divisória com um recorte retangular, através dele pode-se ver a imagem observada e refletida. Este recorte funciona como uma janela por onde se pode ver do outro lado da parede. No texto de HOCKNEY ele descreve: “Comecei então a fazer experimentos. Para tornar a imagem

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RIVIÈRE, Jacques. Sur les tendences actuelles de la peinture, 1912. In: HOCKNEY, David. O Conhecimento Secreto – Redescobrindo as técnicas perdidas dos grandes mestres. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 197.

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projetada ainda mais nítida, recortei um buraco num pedaço de papelão para abrir uma pequena janela como aquela que vimos nos retratos holandeses” (HOCKNEY, 2001:p.74 ). A “janela da arte”, se apresenta como uma decorrência da técnica utilizada pelos pintores holandeses, reforçando o conceito do “ponto de vista” já definido por Alberti quando descreve a perspectiva. HOCKNEY (2001) aponta uma diferença entre o “ponto de vista” dos pintores, que seguem a perspectiva de Alberti e dos que se utilizam da tecnologia da lenteespelho. Aqueles desenhavam sua perspectiva baseados em um “ponto de vista” enquanto estes não se limitam a apenas um local determinado para a observação. Segundo HOCKNEY (2001) a abertura na parede possui um campo de visão limitado e reflete apenas uma pequena parte da imagem que os pintores holandeses precisavam. Para desenharem a imagem total os artistas reuniam vários fragmentos conseguidos por meio de pequenas aberturas na parede, uma espécie de colagem. O resultado é uma arte com vários pontos de vista ou múltiplas janelas. conforme descreve em carta para seu colega, professor de arte da Universidade de Oxford, Martin Kemp: Agora, estamos mesmo fazendo descobertas. Essa abertura na parede e a “lenteespelho” está nos fazendo ver como os artistas holandeses construíram suas pinturas. Um entendimento de espaço e geometria está em curso. Elas são compostas de muitas janelas e não somente uma, pois a lente-espelho causa problemas no tamanho (HOCKNEY, 2001:p. 264).

Hockney entende que o aparato tecnológico baseado na lente-espelho permitiu aos artistas um avanço no retratar de uma imagem a partir de múltiplas janelas, pois acredita ser esta imagem mais próxima do olhar humano. Conforme GOMBRICH (2013) quando uma pessoa observa uma cena, seus olhos nunca ficam parados por muito tempo fitando um mesmo ponto e a cena formada no cérebro é uma imagem composta. O capturar de um momento por apenas um “ponto de vista”, como o do desenho em perspectiva, é semelhante ao retratar da fotografia, onde o clique no instante do fotografar registra o ponto de vista único do fotógrafo que observa uma cena. Hockney utiliza as imagens múltiplas em sua arte quando retrata uma cena por intermédio da fotografia, mas aproveitando muitos cliques em focos a partir de pontos diversos (figura 2). Sua composição final traz o conjunto destes diversos pontos de vista. Segundo GOMBRICH (2013) ele cria um mosaico a partir de imagens múltiplas que relembra as pinturas cubistas. A seguir segue a descrição GOMBRICH da composição fotográfica de Hockney, “Mother” de 1982: O retrato de sua mãe é um mosaico de várias fotos tiradas de ângulos ligeiramente diferentes, bem como registros do movimento de sua cabeça. Seria de se esperar que tal combinação produzisse uma confusão incoerente, mas o retrato sem duvida é evocativo. Afinal quando olhamos uma pessoa, nossos olham nunca ficam parados por muito tempo; e ao pensarmos em alguém, a imagem formada no cérebro é sempre

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composta. Foi essa a experiência que Hockney de algum modo capturou em seus experimentos fotográficos ( GOMBRICH, 2013:p.493 ).

Figura 2 - Mother - David Hockney -1982

fonte: site do David Hockney

A arte, a partir de várias imagens fotográficas, é a representação de uma cena única vista por vários pontos. Os diversos olhares sob uma mesma imagem amplia o espaço de visão, reforçando o conceito de múltiplas janelas, que na teoria de Hockney, descrita no livro “O conhecimento Secreto”, foi também utilizado pelos pintores que experimentaram a lenteespelho. Janelas Digitais As janelas - aquelas que são a origem do termo e ocupam as paredes das construções são reproduzidas por Hockney por meio do desenho nos tablets - nas janelas das telas digitais. Segundo JOHNSON (2001) a palavra janela nomeia alguns componentes da interface dos equipamentos digitais. Nos computadores elas organizam os arquivos além de repetirem a função das janelas da arquitetura: de visualização (JOHNSON, 2001:pág.59). A janela descortina o texto no software de edição de texto, compartilha o vídeo em uma plataforma específica para sua exibição, emoldura o desenho do artista no ato da sua criação e outra janela expõe a arte para o contemplar do espectador. O foco desta reflexão está no uso da janela digital de modo semelhante ao desenhar no caderno de desenho. O artista desenha direto na tela do tablet com o dedo ou com caneta digital e a exibe também nestas janelas digitais. O tablet é definido, no momento do seu lançamento, como um minicomputador com uma interface semelhante ao do celular, conforme relata CARARO (2014). Observa-se que o 7

equipamento incorporou características próprias, diferentes daquelas que já pertenciam ao computador. O site da Apple, marca do primeiro tablet a ser apresentado ao mercado, é ilustrado com imagens de usuários o manipulando para tarefas diversas, inclusive o utilizando como ferramenta de desenho. A empresa sugere que o dispositivo pode mudar a rotina das pessoas facilitando a execução de tarefas. O tablet organiza e guarda projetos, ensina novas competências ou apresenta um novo entretenimento. O dispositivo é um suporte para múltiplas janelas que se adaptam conforme a configuração e o interesse do sujeito. Entende-se que cada pessoa reinventa seu tablet, a partir de suas aptidões, gosto e interesses e altera suas configurações enquanto o utiliza. O desenho foi adicionado ao tablet, assim como outras funcionalidades para auxiliar os usuários nas tarefas inerentes a sua rotina. Ele pode ser um livro ou ser utilizado como um leitor de código de barras. A função é dependente do aplicativo ou da janela que se abre na tela. O tablet é transformado em uma tela de pintura quando isto for interessante para o usuário. Segundo FEEMBERG (1991), o destino de um objeto técnico é configurado conforme ele é utilizado. A criação de algo novo é mais do que uma grande ideia em um instante inspirador, mas é um processo que inclui redesenho e adaptações conforme o seu uso. A construção de um objeto é resultado de um processo conjunto dos agentes humanos, das máquinas e do seu meio. Em suma, as diferenças do modo como os grupos sociais interpretam e usam objetos técnicos não são meramente extrínsecas, mas produzem uma diferença na própria natureza destes objetos. O que o objeto é para os grupos é que, em última instância, vai decidir seu destino e também vai determinar no que se ele se tornará quando for redesenhado e melhorado, com o passar do tempo (FEENBERG, 1991:p. 8).

Arlindo MACHADO (2008) relata que quando os artistas visuais se apropriam de um objeto técnico, eles modificam suas características, reinventando o objeto, que ele denomina de máquinas semióticas. Conforme MACHADO (2008), os aparatos são criados com objetivos de produtividade e automatização, enquanto os artistas reinventam os objetos que se tornam únicos e sublimes. Como aponta Daniel MILLER (2013, p.60), “os objetos nos criam, como parte do mesmo processo pelo qual nós os criamos”. Da mesma forma que o objeto tecnológico é alterado conforme seu uso, o artista também se modifica na medida em que utiliza seu dispositivo digital. O artista visual tende a compor seu projeto conforme o suporte em que trabalha. Arlindo MACHADO (2008) descreve que o artista produz sua arte de acordo com o aparato técnico acessível a ele, portanto existente na sua época. A arte visual pode ser comparada com um 8

músico que arranja os elementos da sua criação musical conforme as singularidades de seu instrumento, como Bach e Stockhausen: Bach compôs músicas para cravo porque este era o instrumento musical mais avançado da sua época em termos de engenharia e acústica. Já o Stockhausen preferiu compor texturas sonoras para sintetizadores eletrônicos, pois em sua época já não fazia mais sentido conceber peças para cravo, a não ser em termos de citação histórica ( MACHADO, 2008:p. 9).

A janela digital, apesar de todas as suas singularidades, permite que o artista a utilize como um objeto análogo do seu aparato tradicional. Em seu aplicativo de desenho, as ferramentas digitais se parecem com o seu similar analógico. O espaço para a composição é similar ao papel em branco, a janela que exibe as cores é aberta através de um ícone que representa a paleta de pintura. Cada ferramenta digital parece ser uma metáfora do seu correspondente físico, mas como descreve JOHNSON (2001), há uma tendência de desaparecimento do significado original das metáforas. Assim os usuários tendem a não relacionar as janelas do tablets com aquelas que originaram a sua criação, graças a seu uso constante e a familiarização do seu uso nos dispositivos digitais. Os dispositivos digitais são objetos para a criação artística e um meio de exposição da arte. Espectadores utilizam celulares e tablets para visualizar imagens. Contemplar as imagens digitais é diferente de observar o original das pinturas tradicionais em um museu. Na tela digital o original não está mais presente em uma única tela. Neste caso várias janelas se abrem em diversas telas, para mostrar a mesma pintura digital em outros lugares para outras pessoas. Os espectadores da janela digital também usam constantemente para outras tarefas do seu cotidiano. A arte invade o espaço e as tarefas diárias destes sujeitos: As tecnologias comunicacionais móveis contemporâneas parecem estar inaugurando, de fato, novas formas de experienciar as situações sociais do cotidiano. O seu acelerado desenvolvimento e sua difusão ocorrem de modo impressionante quando comparados a quaisquer outras tecnologias. Nenhuma delas, anteriormente, expandiu-se de maneira tão veloz e ampla quanto estes dispositivos móveis (RIBEIRO; LEITE; SOUSA; 2009: p.198).

Hockney desenha suas janelas no tablet e compartilha sua arte pelos meios digitais, assim os sujeitos a contemplam em seus próprios dispositivos. Em um segundo momento Hockney expõe sua arte em museus, expondo tablets nas paredes. Na suas exposições de “Flores Frescas” não há molduras tradicionais expostas, mas seus desenhos são dispostos em tablets espalhados pelas paredes (figura 3). Como janelas abertas, seus desenhos exibe as janelas de arquiteturas diversas iluminando o ambiente escuro. O diferencial deste trabalho é

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a utilização da tela digital exatamente da mesma maneira em que se utilizava a tela de pintura, mas valorizando as características físicas do meio digital de visualização.

Figura 3 - Exposição da arte de Hockney nos tablets

Fonte: DesignBoom (2015)

Ao desenhar no seu tablet como no seu caderno de desenho, traçando direto na tela digital, Hockney utiliza o conhecimento adquirido nos equipamentos manuais de pintura. Podese enfatizar aqui a sua preocupação em utilizar o tablet aproveitando o seu potencial luminoso, este detalhe torna suas janelas digitais diferente de seus outros projetos. A tela digital do tablet é um elemento fundamental desde a sua concepção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao ler “ O Conhecimento Secreto” de Hockney é fácil encontrar a palavra “janela” nas suas linhas. O conceito está bem presente em seu texto. Analisando sua pesquisa, e relacionando com os pintores que utilizaram a lente-espelho juntamente com suas próprias pinturas contemporâneas, observa-se o quanto as janelas dos renascentistas também são constituinte do seu trabalho, o que fica muito evidente na sua composição com as montagens fotográficas e que parecem influenciar também sua arte nas telas digitais dos tablets. As janelas retratadas no tablet, ao contrário dos múltiplos pontos de vista da sua composição fotográfica, representa apenas um determinado ponto de vista, em perspectiva. No entanto quando visto o conjunto das janelas nas paredes do museu onde são expostas, pode-se contemplar múltiplas janelas como um mosaico iluminado (figura 4). Como na definição de Alberti seus desenhos se parecem com “janelas abertas para o mundo”. Figura 4 - Exposição da arte de Hockney 10

Fonte: DesignBoom (2015)

Do lado daquele que contempla a janela, o espectador traz para a sua percepção da janela digital experiências de contemplação diversas. A sua trajetória carrega outras experiências estéticas que também colaboram com o instante em que se observa a arte visual exposta na tela digital. A conclusão deste estudo até o momento tem apontado para o entendimento de que estas janelas são parte de um processo de construção da imagem visual e de constituição do próprio artista. Como uma história que vem sendo contada há muito tempo, a pintura tradicional e as telas do tablets são como capítulos diferentes de um mesmo livro. Diferentes artefatos para fazer e para olhar a arte, estão constituindo sujeitos, espectadores e artistas conforme o utilizam, modificam funcionalidades e as experiências provocadas por eles.

REFERÊNCIAS

ALBERTI, Leon Battista. Da pintura. 4ed. Campinas,SP: Editora da Unicamp, 2014. Apple. Disponível em: . Acesso em 13/05/2015 as 15:00h ARNHEIM, RUDOLF. Arte e Percepçao Visual: Uma Psicologia da Visão Criadora. 6 ed. São Paulo: THOMSON PIONEIRA, 1998 CARARO, Aryane Beatryz. Livros digitais infantis: narrativa e leitura na era do tablet. in. Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte). Universidade de São Paulo, 2014. CHAUI, Marilena. Janela da Alma, Espelho do Mundo. In O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988 COSTA, Mario. O Sublime Tecnológico. São Paulo: Experimento, 1995 David Hockney. Disponível em: Acesso em: 28/05/2016 09:00 DesignBoon. Disponível em: Acesso em: 14/05/2015 09:00 Flaminio Gualdoni. Disponível em . Acesso em 28/05/2016 11:00h FEENBERG, Andrew. Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia. Disponível em: < http://www.sfu.ca/~andrewf/languages.htm.> Acesso em 06/05/2015, 11

GOMBRICH, E. H. A história da Arte. Rio de Janeiro: Ed. LTC; 2013. HOCKNEY, David. O conhecimento Secreto. São Paulo: Cossac Naify, 2011. JOHNSON, Steven. Cultura da Interface. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. RIBEIRO, José Carlos; LEITE, Luciana; SOUSA, Samile Notas sobre aspectos sociais presentes no uso das tecnologias comunicacionais móveis contemporâneas Disponível em: . Educação e contemporaneidade: pesquisas científicas e tecnológicas. Salvador: EDUFBA, 2009, 400 p. ISBN 978-85-232-0565-2.

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