Da teoria à liberdade: a questão da objetividade em Kant

June 4, 2017 | Autor: Fernando Mattos | Categoria: Metaphysics, Immanuel Kant, Practical Reason, Freedom
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Fernando Costa Mattos

Da teoria à liberdade: a questão da objetividade em Kant

Para Maria Lúcia Cacciola

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Índice Apresentação. Kant e a metafísica da modernidade................................................

Capítulo 1. Construção de uma objetividade teórica........................................................ Seção I. O empirismo humiano e a ameaça cética à metafísica: o a priori como primeiro grande problema da filosofia crítica................................................................................. Seção II. A originalidade de Kant: o significado positivo da “solução transcendental” com respeito ao conhecimento teórico........................................................................... Seção III. Significado negativo da solução transcendental com respeito ao conhecimento teórico..............................................................................................................................

Capítulo 2. Discussão do alcance da solução transcendental, do ponto de vista do “fundamento último” de nosso conhecimento.................................................................. Seção I. Existência autônoma do mundo: o problema da coisa em si......................... Seção II. A razão humana e a coisa em si: uma questão de liberdade.......................... Seção III. O sentido profundo da fé racional: um sentido moral (prático)..........

Capítulo 3. Construção de uma objetividade prática........................................................ Seção I. O problema moral em sua especificidade, e outra vez o a priori como caminho para a solução.............................................................................................................. Seção II. Moralidade e liberdade: a questão da realidade objetiva da lei moral e a elaboração de um conhecimento prático...................................................................

Conclusão. O primado da razão prática e o caráter libertador da filosofia kantiana......................................................................................................................

Bibliografia.....................................................................................................................

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Apresentação. Kant e a metafísica da modernidade Não são poucos os que, no intuito de recuperar a filosofia de Kant com vistas a pensar a moral e a política na cena contemporânea, excluem terminantemente aqueles que seriam os aspectos metafísicos de seu pensamento, como a coisa em si e, no âmbito prático, os postulados da existência de Deus, da alma imortal e da liberdade.1 Embora não estabeleça um diálogo ostensivo com essa perspectiva, o texto que se segue parte de pressupostos inteiramente diversos e procura reconstruir a argumentação kantiana, sem a pretensão de exaurir os temas tratados – já suficientemente discutidos na bibliografia secundária –, no sentido de mostrar como, partindo da redução transcendental do conhecimento ao domínio fenomênico, Kant acaba por abrir caminho não apenas para a fundamentação da moral em nossa racionalidade prática, como também para o revigoramento da metafísica, descrita por ele como “a filosofia por excelência, a verdadeira”.2 Trata-se de um momento decisivo na história da filosofia: depois de Kant, quem pretende abordar os temas clássicos da metafísica de maneira dogmática – o que suporia, nos termos kantianos, um acesso direto às coisas em si mesmas – é considerado “précrítico” com justa razão. Quem, por outro lado, simplesmente os deixa de lado, tendo em vista sua incognoscibilidade, continua a incorrer no erro do “indiferentismo”,3 tão combatido por Kant mas ignorado por diversos de seus supostos herdeiros – da Escola de Marburgo, que exclui até mesmo a moral do sistema crítico, até a mais recente Escola de Frankfurt, que não chega a excluir a moral mas dispensa a metafísica. A rigor, a única atitude filosófica consistente, a partir do criticismo kantiano, envolveria enfrentar esses temas, aos quais parece tender nossa natureza racional – segundo a “evidência” fornecida não apenas pelos nossos três mil anos de filosofia ocidental, mas também pela maior parte das manifestações religiosas anteriores, ocidentais ou orientais –, de maneira crítica, i.e., 1 Mencionemos, a título de exemplo, os conhecidos casos de John Rawls e Jürgen Habermas, que, cada um a seu modo, procuram resgatar o imperativo categórico com vistas a fornecer uma fundamentação contemporânea da moral em termos estritamente proceduralistas. Cf., p. ex., Rawls, J. Lectures on the history of moral philosophy. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2000; e Habermas, J. “Diskursethik: Notizen zu einem Begründungsprogramm.” In: _____. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. 2 Log, Ak.IX, 33. Cf. infra, 1,I. 3 KrV, A X.

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por meio de hipóteses que, ancoradas de algum modo nas próprias experiências espirituais humanas,4 antigas como novas, permitam constituir imagens do mundo que, a despeito de sua fragilidade cognitiva, sigam a fornecer um sentido à nossa existência finita. Para Kant, as experiências espirituais decisivas, com vistas a fornecer esse sentido, encontram-se naquilo que ele designa como “conhecimento racional comum da moralidade” e que, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,5 serve-lhe de base tanto para estabelecer o que seria o “princípio supremo da moral” como para, por meio deste, indicar as idéias metafísicas que seriam necessárias para sustentar nossa esperança na realização efetiva do ideal moral, por ele chamado, na esteira da tradição escolástica, de “Bem soberano”. Poder-se-ia acusá-lo, como fará Nietzsche, de estar preso, assim, à visão cristã de mundo, mas não de defendê-la dogmaticamente, como apenas mais um filósofo cristão: uma vez que tem consciência do caráter hipotético de tais idéias, e vincula sua validade a experiências efetivas da humanidade enquanto espécie racional, sua estratégia de fundamentação já antecipa, em grande medida, aquilo que o próprio Nietzsche faria ao “inverter o platonismo” e construir uma cosmologia anticristã com base nas suas hipóteses – assumidamente pessoais, mas nem por isso desligadas de uma “fundamentação” contextual na história das experiências espirituais humanas (cuja diferença, em relação a Kant, estaria na pretensão de abarcar também o mundo pré-cristão). Desse modo, é preciso ver em Kant não o “fim da metafísica”, mas – e aqui não estamos tão distantes do que propõe Lebrun6 – a sua transformação em reflexão crítica acerca dos conceitos com que procuramos, a partir das experiências historicamente 4

Empregamos o termo “espiritual”, aqui, numa acepção ampla, bastante inspirada no modo como Nietzsche a emprega em “espírito livre”. Quanto à noção de “experiência” assim concebida, veja-se, por exemplo, o § 45 de Além do bem e do mal, onde ele descreve a atividade do novo filósofo, “psicólogo nato”, da seguinte maneira: “A alma humana e suas fronteiras, a amplitude até aqui alcançada nas experiências humanas interiores, as alturas, profundezas e distâncias dessas experiências, toda a história da alma até o momento, e as suas possibilidades inexauridas: eis o território de caça reservado para o psicólogo nato e amigo da ‘caça grande’.” Nietzsche, F. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. de Bolso, 2005, p. 47. 5 Cf. Grundl, Ak.IV, 393. 6 Cf. Lebrun, G. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970, p. 93: “Dizer que a velha metafísica morreu é dizer que a investigação das suas significações começou e que resta compreender a exigência subterrânea que sempre a guiou. Nós não acabamos com os conceitos por termos proclamado as ‘coisas’ inacessíveis, e a filosofia não acaba junto com a possibilidade de uma doutrina. O ‘supra-sensível’, ‘Deus’ são conteúdos que seria vão querer afirmar doutrinariamente; mas tais conteúdos perdem todo o seu sentido quando deixam de ser objeto de disputa entre deísmo, teísmo e ateísmo? Não é necessário acreditar na existência das ‘coisas’ para reconhecer a coerência dos seus conceitos. Se nós compreendermos a Dialética

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acumuladas, desenvolver uma compreensão do mundo e de nós mesmos que não se limite ao estritamente factual. O empreendimento crítico kantiano teria tido, sim, o mérito de impor um freio definitivo às pretensões dogmáticas da metafísica, no sentido de que esta já não pode dizer a verdade do mundo e obrigar-nos a aceitá-la: sem autocrítica, i.e., sem uma pemanente reflexão sobre os pressupostos – sempre problemáticos – do próprio discurso, a metafísica já não teria, de fato, nada a nos dizer. Submetida à autocrítica, porém, ela segue a ser o escoadouro natural de nossas inquietações existenciais: é nela que nos perguntamos, para além das descrições empíricas ou semi-empíricas das ciências sociais, acerca da essência de nossa individualidade, de nossa vida em sociedade e mesmo do mundo em que vivemos. Se é notável, com efeito, o empobrecimento sofrido por essa reflexão quando monopolizada pelas ciências sociais – quer atuem isoladamente, quer em conjunto –, é igualmente notável a ampliação de horizontes atingida quando nos aprofundamos no estudo dos grandes metafísicos, dos pré-socráticos a Heidegger. Contrariamente ao que muitos crêem, Kant é, se bem compreendido, o principal bastião da história da filosofia na cena contemporânea: graças a ele, a metafísica pôde sobreviver aos ataques do ceticismo – particularmente fortes, à sua época, na pena de Hume – e, tornada crítica (juntamente com o restante de nossos saberes) pela redução transcendental do conhecimento aos fenômenos, ingressar na modernidade sem as pompas de outrora, mas ainda com a função, nada desprezível, de fazer-nos questionar em profundidade o sentido de nossa existência.7 O presente livro não vai tão longe na discussão dos reflexos do kantismo na cena contemporânea, mas procura reconstruir a argumentação kantiana que vai da Crítica da razão pura à Crítica da razão prática, passando pelos Prolegômenos e pela Fundamentação da metafísica dos costumes,8 no sentido de detectar o esforço de Kant para

transcendental como uma radioscopia de significações postas entre aspas, não nos surpreenderemos com o fato de que a aproximação do supra-sensível, por meio das antinomias, desemboque na idéia de ‘Deus’.” 7 Quanto ao que pode ser a metafísica na modernidade, pensada a partir de sua matriz kantiana, consideramos particularmente interessante a proposta de Dieter Henrich, posta à luz na polêmica com Habermas dos anos 1980. Ali, ele chama a atenção para a importância da reflexão filosófica enquanto uma dimensão específica e fundamental do pensamento humano, por oposição à sua subordinação à sociologia, que estaria implícita no empreendimento habermasiano. Cf. Henrich, D. “Was ist Metaphysik? – was Moderne? Zwölf Theses gegen Jürgen Habermas”. In: Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987, pp. 18 e ss. 8 A reflexão aqui desenvolvida se circunscreveu, com efeito, a esse universo de textos que, cronologicamente, situa-se entre 1781 e 1788. Um estudo mais sistemático da obra kantiana exigiria abarcar também outros 6

libertar a razão das amarras da empiria. Se, num primeiro momento (correspondente ao nosso Capítulo 1), a Crítica pretende salvaguardar a objetividade do conhecimento teórico, também questionada por Hume, e o faz pela circunscrição do conhecimento científico ao âmbito de toda experiência possível – o domínio dos objetos enquanto fenômenos –, essa operação revelará aos poucos sua outra face: inacessível à ciência, o domínio dos objetos como coisas em si mesmas (onde se inclui a nossa existência inteligível) terá, todavia, de ser pensado por nossa razão, seja no momento em que busca completar a cadeia frouxa de nossos conhecimentos empíricos (Capítulo 2), seja no momento em que busca fundamentar a liberdade e refletir sobre a possibilidade de realização do Bem soberano (Capítulo 3) – uma possibilidade à qual, no fim das contas, estão voltados os esforços da maior parte da filosofia ao longo de sua história.

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Escrito há alguns anos, como parte de meus estudos de mestrado, e ora reelaborado para a publicação, este livro não teria sido possível sem a ajuda de algumas pessoas. Refirome, antes de tudo, à Maria Lúcia Cacciola, então minha orientadora, a quem não apenas agradeço, mas dedico o livro. Refiro-me também ao Grupo de Filosofia Alemã, pelos anos de discussões formativas, em especial a Ricardo Terra, Maurício Cardoso Keinert e Rúrion Soares Melo, que me ajudaram na revisão final. Também não posso deixar de mencionar o indispensável apoio da FAPESP, tanto à época em que escrevi o texto como hoje, quando financia minha pesquisa de pós-doutoramento junto ao Núcleo Direito e Democracia, do CEBRAP. Agradeço ainda ao Nino Dastre, responsável pela capa, e à Carla, minha mulher, que não apenas me incentivou a decidir pela publicação como se esforçou para torná-la uma realidade.

textos, notadamente a Crítica do juízo e a Metafísica dos costumes. Como o nosso intuito, porém, era aqui mais reflexivo do que sistemático, consideramos justificável essa circunscrição textual. 7

Capítulo 1. Construção de uma objetividade teórica • Seção I. O empirismo humiano e a ameaça cética à metafísica: o a priori como primeiro grande problema da filosofia crítica.

Sempre que se reporta à história da filosofia, antiga ou recente, Kant revela uma concepção bastante definida do embate de idéias que a caracteriza, divindo-o em duas grandes tendências: o dogmatismo e o ceticismo.9 Aquele corresponderia a um primeiro “conhecimento especulativo” sobre as coisas em geral, de acordo com as questões que costumam colocar-se para nossa razão, e este, constituindo-se por oposição ao primeiro, consisitiria em contestar radicalmente a veracidade ou validade de um tal “conhecimento”, denunciando as ilusões nele contidas. Ao escrever, por exemplo, um pequeno “resumo de uma história da filosofia”, na Introdução à Lógica, e considerando o ceticismo pirrônico como possível inauguração do método cético em geral,10 afirma Kant:

Se consideramos que a época do ceticismo começa com Pirro, encontramos toda uma escola de céticos que se distinguem essencialmente dos dogmáticos por sua maneira de pensar e seu método filosófico, na medida em que adotam por máxima primeira de todo uso filosófico da razão a de suspender o juízo mesmo quando a aparência de verdade é enorme; e erigem em princípio a afirmação de que a filosofia consiste no equilíbrio do juízo e nos ensina a detectar a falsa aparência. (Log, Ak.IX, 30)

Como se pode desde logo notar, o eixo de uma tal leitura da história da filosofia, e que parece indicar aquela que é talvez a grande preocupação de Kant, é o problema da verdade, considerado em sua maior generalidade. De fato, mesmo se remontássemos ainda mais longe, e encontrássemos já nos sofistas ou em filósofos pré-socráticos as

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Cf. p.ex. Log, Ak.IX, 27-33; KrV, AVII, B786-797, B880-884. Sabe-se que o próprio Pirro (s. IV a.C.) nada escreveu, sendo tal corrente inaugurada por seus discípulos, dos quais o principal é Sexto Empírico (s. II d.C.). Tornou-se mais aceito que, como corrente “teórica” propriamente, o ceticismo teria nascido antes entre os acadêmicos, ainda no s. III a.C. com Arcesilau. Cf. Bolzani Fo., R. “Acadêmicos versus Pirrônicos: Ceticismo Antigo e Filosofia Moderna”. in: Discurso, n.29, 1998, pp. 57-62. 10

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características do ceticismo,11 seria sempre possível, conforme nossa atenção se dirigisse a esse problema, separar os discursos filosóficos nesses dois grandes grupos: os que fazem afirmações com pretensão de verdade e os que contestam tais afirmações, alegando a ausência de um critério seguro capaz de aferir sua verdade ou falsidade. E a cada novo embate entre um dogmático e um cético veremos surgir um dogmático, acreditando ter encontrado a verdade, e um cético, contestando-lhe esta mesma verdade. Ainda que Kant não deixe de enxergar aí algum progresso, a sucessão das gerações filosóficas tende a favorecer cada vez mais o argumento cético.12 A própria época moderna, a despeito dos avanços no conhecimento humano impulsionados por Descartes, Locke, Leibniz e Newton, entre outros, não apresenta panorama diferente, como bem o mostram a crítica de Hume ao racionalismo e o espírito de indiferentismo que Kant percebe rondar a metafísica (“a filosofia por excelência, a verdadeira”).13 Ainda que, face ao abandono do realismo ingênuo e da instauração da chamada subjetividade moderna, a arena agora seja outra, a saber, a razão humana, o debate entre dogmáticos e céticos segue seu curso, e Kant, se não quiser tornar-se apenas mais um dogmático, ou mais um cético, deverá introduzir algo de realmente novo nessa velha disputa pelo atingimento da verdade. Seu caminho, com efeito, não será o de render-se ao indiferentismo, mas sim, assumindo os riscos de incorrer talvez em mais um dogmatismo, o de tentar instaurar um novo método, capaz de combinar a formação leibniz-wolffiana com a advertência incontornável de Hume, responsável por tirá-lo de seu “longo sono dogmático”.14 O 11

Teríamos então em conta, como Kant, o ceticismo que, assim propriamente chamado, caracteriza-se justamente pela “suspensão do juízo”, afirmando a impossibilidade de solucionar certas questões filosóficas, tanto afirmativa como negativamente. Tal atitude é diferente da de negar certas verdades, que seria sempre uma espécie de dogmatismo às avessas (por exemplo: em vez de dizer que é impossível afirmar se o mundo é infinito ou finito, fazer a afirmação, contra o defensor da infinitude, de que o mundo não é infinito). Cf. idem, pp. 63-5. 12 Na verdade, a história da filosofia kantiana trabalha seriamente com a idéia de um progresso da razão, no qual o embate secular entre o dogmatismo e o ceticismo teria um sentido positivo. Ao confrontar o método crítico com o passado, porém, Kant tende a enfatizar o “marasmo” de tal embate, de modo a acentuar o “peso” histórico da sua “Revolução Copernicana”. Cf., a respeito da visão que Kant tem da história da filosofia, Givone, S. La Storia della Filosofia secondo Kant. Milão: Mursia, 1972. 13 Log, Ak.IX, 33. 14 É conhecida a passagem dos Prolegômenos em que Kant, cuja formação filosófica, como a de toda a Prússia de então, fôra nos manuais leibniz-wolffianos, admite a influência decisiva e benéfica do pensamento de Hume: “a advertência de Hume foi precisamente o que, já há vários anos, veio interromper meu sono dogmático e dar um outro direcionamento a minhas pesquisas no domínio da filosofia especulativa” (Prol, Ak.IV, 260). 9

paradoxo das questões metafísicas, que a razão humana “não pode responder, posto transcenderem todas as faculdades da mente humana”, mas que igualmente “não pode recusar, já que apresentadas por sua própria natureza”,15 deve ser enfrentado com armas novas, e Kant acredita tê-las encontrado nesse método cuja virtude estaria em ser uma inédita autocrítica da razão (por isso mesmo chamado método crítico). Por persuasivo que seja o argumento cético, e por natural que seja o indiferentismo reinar sobre o dogmatismo, é preciso tomar o estado de ânimo da indiferença, “responsável pelo caos e pela noite nas ciências”, como ao mesmo tempo

a origem, ou ao menos o prelúdio, da recriação e reinstalação de uma ciência (a metafísica) que, em virtude de esforços mal direcionados, caiu em confusão, obscuridade e desuso; (...) um chamado à razão para de novo assumir a mais trabalhosa de todas as tarefas – a do autoexame – e estabelecer um tribunal que possa assegurá-la em suas exigências bem fundamentadas, na medida em que se posicione contra todas as suposições e pretensões infundadas, não de uma maneira arbitrária, mas sim de acordo com suas leis eternas e imutáveis. Este tribunal não é senão a investigação crítica da razão pura. (KrV, AX-XII)

O criticismo kantiano surge assim, em linhas muito gerais, como esse espírito de autocrítica que seria uma última tentativa de escapar do ceticismo, reinstaurando em novas bases o saber metafísico. Para melhor compreender, pois, a dimensão da dificuldade que Kant enxerga diante de si, e a cuja solução destina sua obra, é preciso inicialmente compreender o motivo pelo qual ele atribui tanta importância à advertência humiana, no sentido de que esta bloqueia um caminho – o do racionalismo dogmático – que poderia ter sido o seu.

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Fundamentalmente, se uma tal simplificação é possível, a filosofia moderna via-se confrontada, desde Descartes, com a perspectiva de reinstaurar alguma ordem (em sentido amplo) no conhecimento humano, bastante ameaçado face à derrocada da filosofia escolástica. Deslocada a atenção de Deus para o homem, seria preciso, como faz Descartes, 15

KrV, A VII. 10

partir de nossas idéias, e não das coisas externas, para tentar alcançar o fundamento da verdade, ou da objetividade de nosso conhecimento.16 Nesse panorama, que dita os rumos do movimento racionalista clássico, e em que a dúvida metódica pode chegar ao ponto de colocar em jogo até mesmo a existência do mundo sensível, passam a ser buscados critérios decisórios não nos objetos externos, mas em nossas idéias, ou em nossa razão – critérios capazes tanto de garantir alguma diferença “ontológica” entre os objetos materiais e os produtos da imaginação como de “fundamentar” a validade de nosso conhecimento em geral. É verdade que essa exigência, adquirindo matizes variados nos diferentes autores do movimento, chega a ser um pouco relativizada, já Leibniz fazendo, em oposição aos cartesianos, a famosa ressalva de que não há nenhuma garantia de que aquilo a que chamamos realidade sensível não seja um sonho17, e acreditando ser com isso muito mais fiel aos propósitos do programa racionalista. Todavia, mantém-se sempre a tentativa de buscar na razão humana um fundamento se não da existência, ao menos da “coerência” do mundo sensível, i.e., da sua integração coordenada de acordo com leis eternas e imutáveis – “de tal modo que os fatos futuros possam até certo ponto ser previstos a partir dos fatos passados”. Nessa medida, o que está em jogo já não é tanto a “verdade última” das coisas, mas a verdade desse mundo a que chamamos realidade, que é o mundo de nossas representações sensíveis. Ainda que não possamos afirmar, em termos absolutos, que o cavalo que vemos seja “mais real” que o centauro que imaginamos, sabemos que um está em nossa sensibilidade, enquanto o outro está em nossa imaginação – e isso basta para que chamemos o primeiro de real, pertencente ao mundo sensível, e o segundo de imaginário, 16

É justamente nessa perspectiva do idealismo subjetivo, em que o estatuto dos objetos do conhecimento se torna problemático frente ao mundo das idéias “subjetivas”, que o conceito de objetividade adquire importância cada vez maior, funcionando como um critério epistemológico mais preciso que o próprio conceito de verdade — movimento que se intensifica em Kant. Cf. Lalande, A. Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie. Paris: PUF, 1997, vocábulo “Objectif”. 17 Leibniz, G.W. Advertencias a la Parte General de los Princípios de Descartes, art. 4º.: “Por que podemos duvidar das coisas sensíveis. Mas com relação às coisas sensíveis, apenas podemos e devemos desejar que concordem entre si, e com razões indubitáveis, de tal modo que os fatos futuros possam até certo ponto ser previstos a partir dos fatos passados. Em tudo isto é inútil buscar outra verdade ou realidade que não a que aqui se apresenta, e os céticos não devem exigir nada de diferente, nem os dogmáticos prometê-lo”. (In: Leibniz, G.W. Escritos Filosóficos. Org. de E. de Olaso. Buenos Aires: Charcas, 1982.) Com isso, Leibniz está em certa medida antecipando a redução fenomenal da objetividade que será, como veremos, um dos elementos centrais da objetividade kantiana. Cf. Rousset, B. La Doctrine Kantienne de l”Objectivité. Paris: Vrin, 1967, pp. 30-5. 11

pertencente ao mundo de nossas construções imaginárias. Se neste último podemos dispor das coisas e da relação entre elas como bem entendemos, e podemos imaginar um rio que suba ao invés de descer, naquele não o podemos, pois verificamos a atuação de certas leis, eternas e imutáveis, que independem de nossa vontade. É à fundamentação destas últimas, então, em sua necessidade absoluta, que deve reportar-se a filosofia, pois é dessa “garantia de verdade” que dependerá a objetividade de nosso conhecimento, em especial de nosso conhecimento empírico, cuja eficácia costuma ser medida em termos da capacidade de prever fatos futuros a partir de fatos passados com certeza absoluta.18 Como visto, o programa racionalista clássico, ou o racionalismo dogmático a que Kant se refere, é uníssono no sentido de situar um tal fundamento para as leis da natureza na razão, ou em raciocínios lógicos (os quais não deixam, eventualmente, de conduzir à vontade ou ao entendimento divinos). No caso de Leibniz, que vem servindo de exemplo em face de sua influência sobre Kant, a conexão entre os eventos naturais em sua sucessão no tempo, regida pelo princípio de razão suficiente, é englobada pelo princípio analítico de identidade, impondo-se assim uma identificação estatutária entre as verdades lógicas (verdades de razão) e as verdades contingentes (verdades de fato), e devendo-se a necessidade destas à daquelas – identificação somente possível graças à noção de inclusão dos predicados no sujeito, que faz com que todos os enunciados verdadeiros, mesmo os contingentes, sejam virtualmente (“na mente de Deus”) analíticos.19 Com isso, a verdade de uma conexão causal qualquer, como o aquecimento de um objeto pela luz do sol, tem o mesmo grau de necessidade que uma verdade lógica ou matemática, como 2+2=4, estabelecendo-se assim uma homogeneidade no “regime de verdades”. Ora, é precisamente contra esse tipo de fundamentação da necessidade natural que se insurge Hume. Ao deparar-se com as mesmas dificuldades que ocupavam os racionalistas, e perguntando-se pelo fundamento da relação de causa e efeito (que por seu turno estaria na base de todo o nosso conhecimento empírico), procura ele mostrar que este 18 Leibniz, G.W.. Sobre el Modo de distinguir los Fenómenos Reales de los Imaginarios: “Mas o melhor indício de realidade dos fenômenos, que inclusive é suficiente por si mesmo, é o êxito na previsão de fenômenos futuros a partir de fenômenos passados e presentes, ou seja, aquela previsão que se baseia, seja numa razão ou hipótese que até o momento atual sempre teve sucesso, seja na relação habitual observada até hoje. E ainda que se afirme que toda esta vida é um sonho e o mundo visível mera aparência, eu diria que tal coisa, sonho ou aparência, é suficientemente real se, bem empregada a razão, não nos engana nunca” (Escritos filosóficos, pp. 266-7). 19 Cf. Leibniz. Verdades Necesarias y Contingentes. In: Escritos filosóficos, pp. 328-38.

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fundamento, que não pode por um lado ser atribuído à própria natureza, pois isto seria cair num círculo vicioso, também não pode, por outro, estar em nossa própria razão:20

Quando se pergunta Qual a natureza de todos os nossos raciocínios com respeito a questões de fato?, a resposta apropriada parece ser que estão fundados na relação de causa e efeito. Quando de novo se pergunta Qual o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões com respeito a esta relação?, pode responder-se em uma palavra: a experiência. Mas se prosseguimos em nosso espírito de indagação e perguntamos Qual o fundamento de todas as conclusões a partir da experiência?, isto implica uma nova questão, que pode ser de solução e explicação ainda mais difíceis. (...) Eu digo, pois, que, mesmo depois de termos experiência das operações de causa e efeito, nossas conclusões a partir da experiência não estão fundadas no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento.21

O espírito que parece guiar Hume, e que o faz querer lançar todos os livros de metafísica ao fogo, por não passarem de “sofistaria e ilusão”,22 seria um espírito de modéstia filosófica consistente em aceitar incondicionalmente, recusando quaisquer manobras sutis e obscuras, certos limites impostos a nosso conhecimento pela natureza: por angustiante que possa parecer, não temos acesso às suas “causas últimas”, nem aos poderes secretos que pudessem estar por trás das qualidades sensíveis dos objetos, não nos sendo dado entender por que as coisas acontecem da forma como acontecem e não de outro modo. Neste sentido, também não nos é dado prever o futuro a partir do passado em termos absolutos, já que a necessidade de uma tal previsão, baseada na premissa de que o futuro repetirá o passado, não pode ser deduzida ou provada.23 Perguntaremos, no entanto, de onde vem o sentimento de certeza absoluta que temos quando vemos que chove lá fora e prevemos que, se sairmos, nos molharemos, ou 20

Como é sabido, essa dificuldade ficou celebremente conhecida, na história da filosofia, como o “problema de Hume”, passando a ser referência necessária em toda a teoria do conhecimento posterior a ele. Cf., p. ex., Popper, K. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1975, capítulo 1. 21 Hume, D. An Enquiry concerning Human Understanding. In: Great Books of the Western World, vol.33. Chicago: Enc. Britannica Inc., 1990, §28. 22 Idem, § 132 (últimas linhas do tratado): “Quando percorremos livrarias persuadidos desses princípios, o que devemos destruir? Se pegamos na mão algum volume, sobre divindade ou metafísica de escola, por exemplo, perguntemos: Contém ele algum raciocínio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato e existência? Não. Então lançemo-lo às chamas, pois nada contêm além de sofistaria e ilusão.” 23 Idem, §29. 13

quando dizemos que o sol nascerá amanhã, e Hume, acompanhando-nos na indagação e partilhando a experiência de sentir igual convicção em situações como essas, limita-se a diagnosticar uma aporia incontornável em nossa relação com o mundo: a esse feeling of belief não corresponde qualquer prova racional de uma conexão necessária entre os eventos naturais (ou entre passado e futuro), na exata medida em que inexiste qualquer correspondência entre a natureza contingente, “em nós” ou “fora de nós” (questões de fato), e os processos de nosso entendimento (relações de idéias).24 Procurando caracterizar dessa forma a dificuldade, opera Hume um deslocamento da questão que faz com que o princípio a ser buscado, como fundamento do conhecimento empírico (se é que ainda se pode falar em “fundamento”), deva sê-lo não em meio a processos racionais de nosso entendimento, mas sim na origem “verdadeira” (empírica) desse feeling of belief que norteia nossa relação com o mundo:

Esse princípio é o Costume ou Hábito. Pois sempre que a repetição de um ato ou operação particular produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou operação, sem que sejamos impelidos a tal por qualquer raciocínio ou processo do entendimento, nós sempre dizemos que esta propensão é um efeito do Hábito. Ao empregar esta palavra não pretendemos ter dado a razão última de uma tal propensão. Apenas indicamos um princípio da natureza humana que é universalmente reconhecido e que é bem conhecido por seus efeitos. Talvez não possamos ir além em nossas investigações, nem pretendemos dar a causa desta causa; mas devemos contentar-nos com ela enquanto princípio último, que podemos indicar, de todas nossas conclusões a partir da experiência.25

O hábito, assim, enquanto aprendizado de certas relações que costumam repetir-se na natureza (ou em nossa mente), é para Hume a única explicação aceitável para o sentimento de convicção que acompanha nosso conhecimento do mundo por meio da relação de causa e efeito. Trata-se, como dissemos, de uma resposta que satisfaz ao problema do “fundamento” desse conhecimento apenas na medida de seu deslocamento para um registro exclusivamente empírico – o registro da realidade, em que são vedadas todas as “interferências” racionais. Seu intuito, suficientemente claro, é mesmo o de 24 25

Idem, §30. Idem, §36. 14

golpear fundamente o programa racionalista clássico, cuja base estaria, como vimos acima, numa fundação racional ampla para todas as verdades de nosso conhecimento, inclusive de nosso conhecimento da natureza. Salvo nas matemáticas, que, estas sim, possuem fundamento nas relações de idéias em nossa mente, todo o discurso humano carece de necessidade absoluta. Se Leibniz acreditava poder incluir as verdades da natureza no domínio das verdades analíticas, Hume procura mostrar o absurdo contido nesse tipo de raciocínio. Pregando a modéstia do contentamento com o curso contingente da vida, e lançando toda a metafísica ao fogo, ele abre mão, de uma vez por todas, de qualquer necessidade absoluta para nosso conhecimento empírico.

* * *

A sensação que se tem, a partir da crítica feita por Hume à tradição filosófica, é mesmo a de que a metafísica, em sua pretensão de descobrir as “verdades últimas” do mundo, não terá mais espaço na filosofia vindoura. O argumento de que a necessidade das relações entre as coisas do mundo não pode estar em nós, bastante plausível com respeito à natureza sensível, estende-se com maior força ainda aos objetos “prediletos” dessa área do saber, como alma, liberdade, Deus etc. Afinal, como afirma Lebrun,

se a razão, sozinha, não me permite sequer ampliar o conceito que tenho de um objeto da experiência, o que será, a fortiori, dos objetos que estão além da experiência? Se o conhecimento do sensível não pode, quando muito, me conduzir a mais do que frágeis constatações, que nada têm de necessário (‘toda vez que um corpo permanece exposto ao sol, aquece-se’), como produzir enunciados necessários referindo-se ao supra-sensível? Quem não pode o mínimo, não é capaz do máximo... A questão está, pois, decidida: não há, para nós, supra-sensível.26

Pode-se dizer, nesse sentido, que o ataque sofrido pela metafísica tem um duplo aspecto: além da pretensão de fundamentar a necessidade natural na razão, acima discutida, o saber dogmático sobre as “coisas do supra-sensível”, destinatário das memas críticas de 26

Lebrun, G. “Hume e a Astúcia de Kant”. In: _____. Sobre Kant. Org. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras/Edusp, 1993, p. 9. 15

Hume, é um alvo não menos importante e mais fácil de derrubar. Quanto a este segundo, Kant não tem, ao menos num primeiro momento, muito a acrescentar: conforme os ensinamentos da primeira Crítica, todo o nosso conhecimento teórico, fruto do uso especulativo da razão, deve limitar-se ao âmbito da experiência. Sendo assim, o objetivo inicial de Kant, no que diz respeito a salvar a metafísica do ceticismo, está naquele primeiro aspecto da questão, i.e., a fundamentação do conhecimento empírico na razão, empreitada que pretende retomar com o sucesso não obtido por seus antecessores racionalistas (movimento do qual, em sentido amplo, não deixa de fazer parte). O próprio conceito de metafísica, com efeito, revela em Kant uma tonalidade completamente distinta da acepção clássica, centrando-se muito mais no problema do conhecimento, ou da objetividade deste (tanto no âmbito teórico como no prático), do que no problema do ser (em sentido forte).27 Nessa medida, o “salvamento” prometido por Kant não tem de incluir uma retomada integral dos projetos clássicos, como provar a existência de Deus ou a imaterialidade da alma, pois é justamente o afastamento de questões como essas que decorre da aceitação do argumento humiano em seu aspecto negativo. A grande contribuição à metafísica que Kant reconhece, paradoxalmente, no argumento de Hume,28 consiste portanto na vedação, à pretensão cognitiva de nossa razão, de uma série de possibilidades – incluída aqui a de fundamentar “em nós” a necessidade das relações entre as coisas “fora” de nós. Se não temos, com efeito, qualquer acesso às causas ou poderes secretos que estariam por trás dos eventos naturais, como pretender

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Cassirer analisa a gênese do conceito kantiano de metafísica, em sua especificidade, procurando mostrar essa tendência já nos Träume eines Geistersehers: “Portanto a metafísica segue sendo, para ele, uma ciência; mas não mais uma ciência das coisas de um mundo supra-sensível, e sim a ciência dos limites da razão humana” (Cassirer, E. Kant: Vida y Doctrina. Mexico, Buenos Aires: Fondo de Cultura Economica, 1948, p.104). O conceito e a função assumidos pela metafísica na obra kantiana são temas passíveis de problematização. Para Lebrun, por exemplo, ela continuará sendo, a despeito das ressalvas críticas, um saber sobre o supra-sensível (Lebrun,G. Kant et la Fin de la Métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970). Quanto à relação entre o problema do ser e do conhecer na obra de Kant, tema das maiores polêmicas, é de notar-se, como se fará mais detidamente adiante, que há duas grandes linhas de interpretação da obra: como teoria do conhecimento; como ontologia. Do ponto de vista, porém, do raciocínio que está sendo desenvolvido nesta parte, justifica-se a afirmação da primazia do problema do conhecer, independentemente de estar-se tomando partido da primeira linha interpretativa. 28 “Desde os ensaios de Locke e Leibniz, ou mesmo desde o nascimento da metafísica, até onde alcance sua história, não houve nenhum acontecimento que fosse mais decisivo para o destino desta ciência que o ataque desferido sobre ela por David Hume. Ele não lançou nenhuma luz sobre este tipo de conhecimento, mas produziu uma centelha que, se tivesse encontrado um pavio inflamável, teria gerado uma luz cujo brilho poderia ser cuidadosamente aumentado” (Prol, Ak. IV, 257). 16

postular que certas relações encontradas em nossa própria mente (a priori) possam determinar a necessidade das relações entre esses eventos?

(...) [Hume indagou] com que direito acredita a razão que alguma coisa seja de uma natureza tal que, sendo ela dada, segue-se necessariamente que alguma outra coisa seja dada; pois é isto que afirma o conceito de causa. Ele provou irrefutavelmente que é impossível à razão pensar uma tal relação a priori e por meio de conceitos, pois ela envolve necessidade; não é porém possível compreender como, do fato de algo ser, algo diferente deva necessariamente também ser, e, por conseguinte, como possa introduzir-se a priori o conceito de uma tal conexão. (Prol, Ak. IV, 257)

Até aqui, Kant aceita o ensinamento de Hume: a razão não poderia possuir o poder “mágico” de fornecer a necessidade das relações entre as coisas que estão “fora de nós”. Se para Hume, entretanto, a ausência de um princípio “racional” não deve ser motivo de inquietação, bastando aceitar-se o princípio do hábito como princípio essencial de nosso conhecimento empírico, para Kant tal ausência é motivo de desespero, já que se trata de uma daquelas respostas demandadas pela natureza de nossa razão que não pode pemanecer sem resposta. E o princípio do hábito não serve como resposta, na medida em que não pode proporcionar a necessidade sem a qual o conhecimento deixa de ter a objetividade que deveria diferenciá-lo dos demais discursos humanos, desde o senso comum até os misticismos mais fantasiosos. Se Kant, porém, concorda com Hume em que não podemos reconhecer nehuma necessidade nas coisas fora de nós, e em que toda necessidade que encontremos será produto de nossos “processos do entendimento”, passa a apresentar-se-lhe um problema nada pequeno, inclusive em face do argumento cético: como “transferir” essa necessidade de nosso entendimento aos objetos que constituem o âmbito do conhecimento empírico? Ou, simplesmente, como dotar este último de um fundamento a priori? Em termos estritamente kantianos, este problema corresponde ao problema da possibilidade de formulação de juízos sintéticos a priori,29 reconhecido por Kant como o “problema universal da razão pura” e no qual estariam em jogo, também, a possibilidade da

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matemática pura e da ciência pura da natureza, como conhecimentos teóricos a priori de objetos (i.e. como conhecimentos necessários e universais), e da própria metafísica como disposição natural da razão.30

Com essa formulação do problema, Kant começa a indicar a estratégia que deverá orientar a empreitada crítica no sentido de solucioná-lo: se o que está em jogo são os juízos sintéticos a priori, já que apenas estes possuem a necessidade absoluta que é demandada por nosso conhecimento em geral, o que se tem de verificar é até onde vai o potencial de nossa razão em enunciá-los validamente; e, se toda a objetividade de nosso conhecimento, puro e empírico, depende de que o sejam, é preciso vincular a totalidade de seus objetos a estes limites da razão, de modo que a proposta de uma autocrítica da mesma converta-se numa crítica precisa de todo conhecimento humano, capaz de determinar também os seus limites e possibilidades. A inovação pretendida por Kant, pois, no panorama do impasse filosófico acima caracterizado, seria uma forma de vincular os objetos ao conhecimento, efetuando-se uma mudança de ponto de vista que, comparada por ele próprio à Revolução Copernicana, fosse capaz de promover também uma revolução, desta vez no âmbito da metafísica:

Até hoje sempre se supôs que o nosso conhecimento deve regular-se pelos objetos. Mas todas as tentativas realizadas, sob esta suposição, no sentido de estabelecer a priori, por meio de conceitos, algo com relação a eles – o que ampliaria nosso conhecimento —, terminaram por fracassar. Vejamos então se não teremos mais sucesso na metafísica com a suposição de que os objetos devem regular-se por nosso conhecimento. Isto parece ser mais conforme à desejada possibilidade de um conhecimento a priori de tais objetos, i.e., à possibilidade de afirmar algo com relação a eles antes de nos serem dados. (KrV, BXVI)

A rigor, a idéia básica da “revolução” kantiana supõe simplesmente, num primeiro momento, a inserção de Kant no panorama da subjetividade moderna31 – do qual, aliás, o 29

Está sendo suposta, para a colocação do problema nesses termos, a distinção entre juízos analíticos e sintéticos, e entre juízos a priori e a posteriori, apresentada na seção IV da Introdução à Crítica da Razão Pura (KrV, B10-4). 30 Cf. KrV, B19-24 (Introd.,VI). 31 Cf. Rousset, B. Op.cit., p. 354: “A idéia de “Revolução Copernicana” não tem por objetivo introduzir uma “reviravolta” idealista em relação ao dado e à relação entre o sujeito e o ser: essa referência à obra de um 18

próprio Hume nunca chegou propriamente a separar-se. Ainda, porém, que para este último a hipótese idealista de leitura da realidade não constituísse eventual “saída” para a ausência de necessidade na empiria (já que não recorreu a ela, e sim ao hábito), é difícil imaginar alguma outra perspectiva capaz de resolver a dificuldade em questão. Sendo impossível transferir qualquer necessidade às coisas “fora” de nós, mas sendo ao mesmo tempo necessário que se o faça com relação aos objetos de nosso conhecimento, o primeiro passo para qualquer solução do dilema é supor que estes últimos na verdade não são exatamente coisas fora de nós, mas representações sensíveis “em nós” – suposição, por sinal, já presente em Leibniz, mas que em Kant assume contornos bastante específicos. Se os objetos sensíveis, então, não passam de coisas “em nós”, há que diferenciá-los daquilo que neles mesmos costumava iludir-nos: a impressão de uma exterioridade absoluta, ou de uma existência em si. Há que se diferenciá-los, em outras palavras, do que poderiam ser como coisas em si (Dingen an sich), como coisas que em sua essência independessem da nossa “forma” de conhecer. Assim como, ao olhar para uma parede, só vemos o lado dela que está diante de nós (que nos aparece), nada podendo saber sobre o que está do outro lado,32 nada podemos igualmente conhecer além daquilo que nos aparece, i.e., dos fenômenos (Erscheinungen) que se revelam em nossa sensibilidade. É este o estatuto máximo que pode ser atribuído aos objetos de nossa experiência: se nos aparecem como externos por aparecerem em nossa intuição sensível, podemos “chamá-los” de externos, conscientes porém de que só o são do ponto de vista (a priori) do nosso conhecimento. Ao mesmo tempo, no entanto, essa “redução estatutária” dos objetos empíricos tem seu contraponto numa limitação do poder de nosso conhecimento, já que este está, mais do que nunca, proibido de ir além da experiência, tanto na direção da “essência das coisas” como na direção de “coisas supra-sensíveis”, pois isto seria cair em contradição não mais com a realidade em si (cuja incognoscibilidade acabava por implicar a liberdade de afirmar sábio serve para mostrar que a objetividade completa do ser dado é o termo ideal de uma construção progressiva que exige um método a priori que seja ele próprio construído progressivamente pelo sujeito.” A comparação de sua estratégia filosófica com a Revolução Copernicana é, com efeito, um elemento que confirma a importância dada por Kant à história da filosofia, mais acima mencionada, e a tendência a inserirse, ou a inserir a sua filosofia crítica, como momento culminante de um longo processo. 32 A imagem é deficiente, já que é passível de dúvida a própria existência de um “outro lado”. Para as leituras mais realistas, há um outro lado, que é incognoscível. Para as leituras idealistas, a incognoscibilidade abrange

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qualquer coisa), mas – o que é pior – consigo próprio.33 É preciso reconhecer que o conhecimento está circunscrito a si próprio, e que o âmbito sobre o qual poderá afirmar-se é o âmbito da experiência, delimitado por nossa sensibilidade. Contudo, se esta contenção não significa, como em Hume, uma mera aceitação das verdades “exteriores” da natureza, mas sim um respeito pelas “próprias” verdades (que é mesmo o resultado buscado por qualquer processo de autoconhecimento), então não tem de implicar a aceitação de uma ausência de necessidade na natureza, mas sim o reconhecimento dessa necessidade onde ela realmente está, onde nunca deixou de estar: na natureza, sim, mas na natureza que é objeto de nossa experiência. Por meio dessa estratégia, Kant conseguiria realizar aquilo que para Hume era impossível: “transferir” a necessidade que está nos “processos do entendimento” às conexões entre os eventos naturais. Afinal, se do ponto de vista da nossa experiência estas últimas aparecem como necessárias, acompanhando-se-lhes um grau incrível de certeza, devemos reconhecer que tal necessidade e tal certeza fazem parte de nosso conhecimento, estando em nós próprios (a priori), pois, o fundamento que se buscava. Não podemos saber se a natureza, considerada em si mesma, obedece ou não à relação de causa e efeito, mas, no que tange à natureza fenomênica, podemos, sim, ter certeza absoluta de que a chuva molha, e de que o sol nascerá amanhã – e os olhos de nosso conhecimento jamais poderão testemunhar qualquer situação que desobedeça a essa lei universal.

Como [Hume] não podia explicar de que forma seria possível que conceitos que não estão conectados uns aos outros no entendimento devessem no entanto ser pensados como necessariamente conectados no objeto – e nunca lhe ocorreu que o entendimento pudesse talvez por si próprio, por meio destes conceitos, ser o autor da experiência em que os objetos lhe são apresentados, foi ele forçado a extraí-los da experiência, i.e., de uma necessidade subjetiva, derivada da associação repetida de experiências, e por ele erroneamente considerada objetiva – em outras palavras, do hábito. (KrV, B127) Entretanto estou bem longe de considerar que esses conceitos são meramente extraídos da experiência e que a necessidade que neles se acha representada é uma simples aparência a própria existência do outro lado. De todo modo, voltaremos a este problema mais adiante (2,I), bastando por ora estabelecer-se razoavelmente a distinção entre fenômeno e coisa em si.

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forjada a partir de um longo hábito; mostrei suficientemente, pelo contrário, que eles, assim como os princípios deles decorrentes, antecedem a priori toda experiência, e que possuem, ainda que de fato apenas com relação à experiência, uma validade objetiva indubitável. (Prol, Ak. IV, 311)

No lugar do hábito, princípio empírico, os conceitos do entendimento, princípios a priori: assim como naquele Hume acreditava encontrar um “princípio da natureza humana que é universalmente reconhecido”, nestes Kant acredita encontrar também um princípio universal da natureza humana, porém não um princípio empírico, e sim racional. É nesta passagem que consiste fundamentalmente, num primeiro momento, a saída kantiana: passagem do empírico ao racional; de um homem empírico a um sujeito universal (transcendental);34 da ausência de um fundamento a um fundamento.35 Ainda que a diferença possa ser reduzida a uma diferença de pontos de vista (psicologista em Hume; apriorista ou logicista em Kant), já que ambos concordam quanto à redução do conhecimento à experiência e da “necessidade” desta ao sujeito (como hábito ou como leis a priori), a solução de Kant teria a virtude de garantir maior solidez à objetividade do conhecimento teórico. Se Leibniz, para garantir a necessidade das “verdades de fato” por meio de sua absorção nas “verdades de razão”, recorria a um entendimento divino infinitamente atual, Kant acredita poder fazer algo de parecido – atribuir às leis da natureza uma necessidade que é própria das leis de nosso entendimento – sem ter de recorrer a qualquer argumento desse tipo: toda resposta às indagações metafísicas tem de ser buscada – e encontrada – em nós mesmos, pois, como dito, a filosofia, em seu estágio crítico, já não pode ser mais que uma autocrítica da razão.

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Cf. KrV, BXIX-XX: “Chegamos à conclusão de que o nosso conhecimento jamais será capaz de transcender os limites da experiência. (...) O resultado de nosso conhecimento racional a priori é que ele só se refere a fenômenos, sendo a coisa em si, embora real em si mesma, incognoscível para nós.” 34 Há uma influência sobre Kant do significado que o termo “transcendental” possui no vocabulário escolástico. Conforme Rousset, a tradição escolástica “qualifica de transcendental tudo que possamos atribuir a um objeto qualquer, independentemente de qualquer determinação particular: o ser, a unidade, o alguma coisa etc.; no sistema kantiano, a mesma palavra indica aquilo que permite conhecer um objeto qualquer: os sistemas diferem sem dúvida, mas o mesmo termo pode ser legitimamente recuperado em virtude da referência idêntica a uma “alguma coisa”. (Rousset, B. Op.cit., p. 24)”. 35 Cf. Malherbe, M. Kant ou Hume. Paris: Vrin, 1980, pp. 15-42. 21

• Seção II. A originalidade de Kant: o significado positivo da “solução transcendental” com respeito ao conhecimento teórico.

Como vimos até aqui, a filosofia kantiana pode ser caracterizada, em alguma medida, como resposta a uma dificuldade histórica reconhecida por Kant no cruzamento do racionalismo clássico com o empirismo humiano. O fato de o problema da possibilidade de formular juízos a priori, que diz respeito à objetividade de nosso conhecimento, ser colocado por Kant como ponto de partida da empreitada crítica permite ler a sua filosofia como, de um modo bastante geral, uma doutrina voltada a resolver o problema da objetividade.36 Todavia, vimos também de que forma, no contexto da tentativa de solucionar um tal problema, Kant termina por recuperar certas noções e certos propósitos do movimento racionalista por ele denominado dogmático. Ainda que, de fato, a intenção de fundar racionalmente o conhecimento, comum a este movimento e à sua filosofia, seja por ele expressamente assumida e permita enxergar sua empreitada como uma empreitada de “salvamento” da razão, algumas das estratégias utilizadas para tal, e até certo ponto apresentadas como inovações, já se encontravam presentes em autores como Descartes, Berkeley ou Leibniz. Tanto o argumento de que o mundo sensível está em nós (argumento idealista por excelência), como o de que os objetos sensíveis são meros fenômenos, não são “novidades” kantianas, servindo antes para indicar sua inserção nos quadros do racionalismo e do idealismo modernos.37 Tais estratégias, com efeito, aparecem como “saídas” para a colocação em cheque do realismo ingênuo, tendo em comum a propriedade de “reduzir” a objetividade de nosso conhecimento para poder “salvá-la”:38 podemos conhecer apenas o que está em nós, mas, quanto a isto, conhecemos com certeza absoluta. Ora, se esta é também a tônica do argumento kantiano, tal como procuramos acima

36 É essa, por exemplo, a leitura de Bernard Rousset: “(...) é preciso sem dúvida ter presente o problema que caracteriza o pensamento crítico, que determina o aparecimento e o desenvolvimento da doutrina, que envolve o sistema em toda sua amplitude e que permanece o centro de todas as querelas entre os discípulos e intérpretes: o problema da objetividade” (Rousset, B. Op.cit., p. 15). 37 Cf. idem, capítulo II (“As Reduções Kantianas da Objetividade”). 38 Kant emprega, ele próprio, o termo Abwürdigung (redução, desvalorização) para referir-se à “transformação” do espaço e do tempo em meras formas da sensibilidade (Prol, Ak.IV, §13). Cf. Rousset, Op.cit., p. 29.

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caracterizar, seu caráter revolucionário, enfatizado por Kant, poderia parecer, ao menos por um instante, bastante duvidoso. É preciso, então, compreender por que o termo “Revolução Copernicana”, que tem seu devido respaldo no impacto produzido pela filosofia kantiana,39 está muito longe de ser uma mera “autopromoção”. Sem dúvida Kant não poderia recuperar o projeto de uma fundação racional do conhecimento caso ignorasse a tendência de radicalização da subjetividade que é própria à filosofia moderna, sendo-lhe inevitável, nessa medida, acompanhar os argumentos “reducionistas” já consagrados enquanto ressalvas necessárias ao tratamento do problema da objetividade.40 Apenas estes argumentos, porém, tal como empregados pelos antecessores racionalistas, já se haviam revelado insuficientes (se não o fossem, as filosofias neles baseadas teriam sobrevivido à crítica humiana), sendo necessário ao argumento kantiano conter algo de novo, e sendo necessário a uma boa leitura da filosofia crítica compreendê-la em sua originalidade. Ainda que a solução dada ao problema de Hume implique de fato, em alguma medida, a aproximação de Kant com os autores clássicos, na recuperação do idealismo racionalista, sua estratégia revela também fortes peculiaridades. Ao apresentar o criticismo como saída historicamente inédita para uma dificuldade tão antiga quanto a própria filosofia, e ao aceitar o desafio de resolver o problema da objetividade tal como formulado por Hume, Kant estava ao mesmo tempo proibindo-se de partir de algum “objeto” (o sujeito, o mundo ou Deus, por exemplo) ou de alguma “verdade primeira” para em seguida construir um sistema filosófico completo. O seu ponto de partida teria mesmo de ser o problema da objetividade, submetendo-se o nosso conhecimento a uma análise imanente capaz não apenas de explicá-lo, mas, por meio de sua explicação, “validá-lo”, i.e., dotá-lo da necessidade exigida por sua própria estrutura. Ora, o fato de os princípios mais elevados de nosso conhecimento empírico não poderem ser atribuídos à própria experiência não reduz sua importância, e muito menos sua eficácia. Se temos de admitir a subjetividade dos mesmos, a única opção que parece restar é 39

Ainda que desnecessário fazer referência ao impacto produzido pela filosofia de Kant no pensamento humano, vale comentar o espírito revolucionário despertado por ela na Alemanha de então. Nas palavras de Vlachos, “a filosofia crítica foi celebrada na Alemanha como uma revolução vitoriosa contra o dogmatismo oficial e contra as escolas filosóficas tradicionais” (Vlachos, G. La Pensée Politique de Kant. Paris: PUF, 1962, p. 99). 40 Cf. Rousset, B. Op.cit., capítulo II. 23

mesmo a de imaginar que os objetos se regulam por nosso conhecimento, o que equivale a supor que há leis a priori valendo necessaria e universalmente para toda experiência possível (i.e. nossa experiência) – suposição que é a suposição essencial da filosofia kantiana:41

(...) posso supor que os objetos, ou, o que dá no mesmo, que a experiência, na qual, como objetos dados, eles são conhecidos, se conforma a meus conceitos. Isto nos leva a uma melhor explicação, pois a experiência é ela própria um modo de conhecimento que requer entendimento. Antes de os objetos me serem dados, i.e., a priori, devo pressupor em mim mesmo leis do entendimento que são expressas em conceitos a priori. A estes conceitos, portanto, devem conformar-se todos os objetos da experiência. (KrV, BXVII)

A originalidade da saída kantiana estaria, assim, na idéia de uma submissão do objeto ao sujeito, responsável por estabelecer a possibilidade de um sistema da experiência regido, em sua universalidade, por leis necessárias a priori. Ainda que com isso Kant esteja introduzindo mais um fator de redução da objetividade – a que Rousset chama “redução transcendental”42 —, ele está também construindo aquela que é talvez a forma mais bem acabada de uma fundamentação racional do conhecimento empírico, já que pode ir além de um “mero logicismo”.43 Afinal, não se trata de meramente postular uma identificação entre as leis lógicas de nosso pensar e as leis da natureza, mas de mostrar que a necessidade e a universalidade que estas últimas pretendem ter são condições necessárias da própria experiência, na simples medida em que, se não fosse por estas suas características, não 41

Como nos diz Deleuze, “(...) a idéia central do que Kant chama a sua “revolução copernicana” consiste no seguinte: substituir a idéia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objeto ao sujeito. A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou, mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer” (Deleuze, G. La Philosophie Critique de Kant. Paris: PUF, 1963, p. 19). 42 De acordo com a análise proposta por Rousset, além das reduções psicológica de imanência (consistente em afirmar que os objetos sensíveis estão “em nós”) e fenomênica (consistente em afirmar que os objetos não passam de fenômenos), Kant acrescenta portanto a redução transcendental, que é, de acordo com Rousset, a única original: “(...) a redução de imanência não passa de uma retomada acentuada da concepção monadológica do espírito; a redução fenomenal explora sistematicamente certas visões de Leibniz, radicalizando-as; quanto à redução transcendental, se ela desenvolve algumas indicações leibnizianas, ela se transforma rapidamente em uma argumentação inteiramente original e profundamente revolucionária, que faz dela a obra própria de Kant e o elemento constitutivo do criticismo (Rousset, B. Op.cit., p. 48). 43 Diferentemente de Leibniz, Kant não pretende estabelecer um único “regime de verdades”, e muito menos uma identificação entre lógica e ontologia. As leis do entendimento valem apenas como regras formais (a

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poderíamos afirmar coisas como “o sol nascerá amanhã”. Ao examinar o conhecimento que temos do mundo por meio da experiência, não devemos perguntar à natureza quais os seus fundamentos, e resignarmo-nos ante a ausência de resposta, mas sim extrair as condições de possibilidade do mesmo e supô-las, como não poderia deixar de ser, “em nós mesmos”.44 Assim fica mais claro o porquê de a possibilidade de juízos sintéticos a priori estar na base da possibilidade de todo e qualquer conhecimento, constituindo o “problema universal da razão pura”: se o nosso conhecimento está baseado em certas condições (que em si mesmas não são nem conhecimentos analíticos nem conhecimentos sintéticos a posteriori), é preciso que estas condições possam estar em nós, de tal modo que os princípios mais gerais (universais) da experiência possam ser deduzidos a partir delas – movimento que autoriza a identificação, não mais na base de uma mera suposição, entre princípios a priori e leis da natureza.45 Afinal, estas deixam de ser, em sua universalidade e necessidade, algo de heterogêneo em relação à natureza contingente de que nós seríamos parte para tornar-se algo de homogêneo em relação ao todo de nossa experiência, i.e., da natureza que nós mesmos “produzimos”. Aqui, a relação das leis necessárias com os dados contingentes passa, de impossível, à condição de elemento constitutivo de nosso conhecimento, já que este nasce justamente da combinação desses dois elementos, ou da combinação entre forma (condições necessárias a priori de sua possibilidade) e matéria (dados “fornecidos” a posteriori). Evidentemente, tal combinação corresponde à combinação entre entendimento e sensibilidade, entre conceito (por meio do qual pensamos os objetos) e intuição (por meio da qual recebemos os objetos), mas é preciso ter atenção ao fato de que a universalidade requerida pelo conhecimento não poderia ser fornecida apenas pelo entendimento, sendo antes exigida da própria sensibilidade. Afinal, de nada adiantaria introduzir necessidade no pensar os objetos se já não houvesse necessidade no intuí-los: a Estética Transcendental, priori) aplicáveis ao ser fenomênico dos objetos (dado necessariamente a posteriori), pois é justamente esta sua limitação que garante a força do argumento kantiano (e a originalidade da nova redução). 44 A idéia de adotar uma postura ativa em relação ao conhecimento é um ponto fundamental da filosofia kantiana, sendo emblemática a passagem do segundo prefácio em que Kant nos diz que não devemos ser “meros alunos” da experiência, e sim juízes a interrogá-la: “A razão deve de fato sondar a natureza com a finalidade de receber informações, mas não como um aluno que escuta a tudo que seu professor decide contar-lhe, e sim como um juiz que compele as testemunhas a responder às perguntas que ele julga apropriadas” (KrV, B XIII). 45 “...os princípios da experiência possível são ao mesmo tempo as leis universais da natureza, que podem ser conhecidas a priori” (Prol, Ak.IV, 306). 25

como ciência das condições necessárias do intuir um objeto (i.e. das formas da sensibilidade), deve anteceder a Lógica Transcendental, ciência das condições necessárias do pensar um objeto:

(...) há duas fontes do conhecimento humano (as quais provavelmente têm origem numa raiz comum, porém desconhecida por nós), a saber, sensibilidade e entendimento. Por meio daquela, os objetos nos são dados; por meio deste, são pensados. Na medida em que a faculdade dos sentidos pode conter representações a priori que formam as condições sob as quais os objetos são dados, ela pertence à filosofia transcendental. A doutrina transcendental dos sentidos deve compor a primeira parte de nossa ciência dos elementos, pois as condições únicas sob as quais os objetos do conhecimento são dados devem preceder aquelas sob as quais eles são pensados. (KrV, B 29-30)

Desse modo, o nosso conhecimento, que para poder ser dotado de necessidade e universalidade (i.e. de objetividade)46 tem de resultar dessa conjunção entre forma e matéria, não deixa de ter sua fonte material nas intuições sensíveis e de começar pela experiência,47 mas já no plano do intuir deve ser possibilitado por condições formais necessária e universalmente válidas. Se a empreitada crítica, como crítica das faculdades do conhecimento, deve começar por estas, é natural que um exame mais atento da questão faça o mesmo.

***

É na sensibilidade, com efeito, que se configura propriamente a distinção transcendental entre fenômeno e coisa em si, já que é aí que se constitui o “ser” dos objetos de nosso conhecimento, começando a regulação desses objetos pelas formas subjetivas de nossas faculdades. Na medida em que toda a experiência de que temos conhecimento se dá no tempo e no espaço, e que não parece possível afirmar nada com relação a estes conceitos enquanto “coisas”, a saída kantiana, como desdobramento da suposição central do criticismo, é imaginar que o tempo e o espaço constituem justamente as formas de nossa 46

Prol, Ak.IV, 298 (§19): “Validade objetiva e validade universal necessária (para qualquer um) são portanto conceitos recíprocos...”.

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sensibilidade, no sentido de que não nos é possível intuir qualquer objeto que não esteja “dado” no tempo e no espaço. O “ser” dos objetos de nosso conhecimento, i.e. seu caráter fenomênico, define-se então pelo fato de estarem necessariamente submetidos a essas condições subjetivas: é assim, e apenas assim, que podemos conhecê-los, nada podendo ser cogitado sobre como seriam se assim não fosse, já que isto seria querer ir além de nossos próprios limites.

Procuramos afirmar que todas as nossas intuições são meras representações de fenômenos; que as coisas que intuímos não são em si mesmas o mesmo que nossa representação delas na intuição, nem suas relações são em si mesmas constituídas tal como aparecem para nós; e que se suprimíssemos o sujeito, ou mesmo apenas a constituição subjetiva de nossos sentidos em geral, desapareceriam não apenas a natureza e as relações dos objetos no espaço e no tempo, mas o próprio espaço e o próprio tempo; e que estes, como fenômenos, não podem existir em si mesmos, mas apenas em nós. (KrV, B 59)

Na verdade, o argumento kantiano se constrói, aqui como em outras partes, com base no “como” nós de fato produzimos conhecimento, devendo ser buscadas as condições necessárias para tal, i.e., as únicas condições sob as quais isso pode dar-se. Nessa medida, é importante recordar sempre a inserção de Kant no movimento filosófico de sua época, bem como a sua preocupação com a fundamentação do conhecimento, notadamente no tocante aos fundamentos da física newtoniana48 e à perspectiva de aplicação da matemática à realidade sensível49 – este último um problema que já se apresentava desde a passagem da filosofia medieval à filosofia moderna, quando se dera o abandono da física essencialista

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KrV, B 1. É conhecida a importância da física newtoniana para toda a filosofia do século XVIII, inclusive, a despeito das resistências iniciais, para a filosofia alemã da época de Kant. De acordo com Puech, “agora (a partir de meados do s.XVIII) haverá apenas uma física, e ela será newtoniana, pois os Principia mathematica realizam plenamente o novo projeto de conhecimento, conseguindo reduzir todo o conhecimento físico a leis matemáticas simples regendo a interação de forças materiais. O newtonismo teve de vencer resistências antes de impor-se definitivamente, mas para a segunda metade do século XVIII, e para o próprio Kant, “conhecimento da natureza” e “ciência” significam física newtoniana” (Puech, M. Kant et la Causalité. Paris: Vrin, 1990, p. 38). 49 Como afirma Lebrun, “se a filosofia transcendental não tem por objeto primeiro fundar a verdade da física e da matemática, mas sim permitir a constituição de uma metafísica como ciência digna desse nome, não é menos verdade que ela é também uma justificação da verdade das matemáticas e de sua aplicabilidade à natureza; e que a doutrina kantiana do espaço, por exemplo, longe de ser uma “opinião filosófica” entre outras, está na intersecção de problemas levantados pelo seu tempo” (Lebrun, G. Sobre Kant, p. 26). 48

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aristotélica. Se, com respeito a tais dificuldades, quaisquer afirmações sobre a realidade em sentido absoluto (não submetida a nossas condições subjetivas) estavam fadadas a fracassar em face do argumento cético, tanto Newton, supondo o espaço e o tempo como absolutos, como Leibniz, supondo-os relativos aos objetos (mas tomando estes, segundo Kant, em termos absolutos),50 estavam tomando direções erradas. E Kant pretende corrigir o rumo da discussão com uma hipótese não meramente melhor, mas a única capaz de assegurar nosso conhecimento contra os ataques céticos em geral.51 Afinal, se isso depende de que as características da necessidade e da universalidade estejam nele presentes – o que, como vimos, só é possível por meio de conhecimentos sintéticos a priori —, situar em nós mesmos o espaço e o tempo é o primeiro grande passo a ser efetuado. Sendo a matemática, de acordo com a demonstração de Kant, constituída por juízos sintéticos a priori,52 toda sua validade objetiva, i.e. a possibilidade de valer para os objetos de nossa intuição (seja esta pura ou empírica), só pode ser garantida por meio dessa hipótese, já que

se... o espaço (e também o tempo) não fosse uma mera forma de nossa intuição, contendo as únicas condições a priori sob as quais as coisas podem tornar-se objetos externos para nós, e sem as quais os objetos em si mesmos nada são, não nos seria possível construir qualquer proposição sintética a priori com relação a objetos externos. Portanto não é meramente possível ou provável, mas indubitavelmente certo que o espaço e o tempo, como condições de toda nossa experiência (interna e externa), são meras condições subjetivas de todas nossas intuições, com respeito às quais todos os objetos são meros fenômenos e não coisas em si mesmas... (KrV, B 66)

Por meio dessa estratégia, Kant consegue então submeter à necessidade e à universalidade das condições subjetivas o todo dos objetos de nossa experiência na qualidade de fenômenos, tanto do ponto de vista de sua “situação” espacial, determinada pelos nossos sentidos externos (cuja forma é o espaço), como do ponto de vista de sua existência no tempo, determinada por nosso sentido interno (cuja forma é o tempo). Ainda 50

KrV, B 331-2. KrV, B 63: “A segunda importante preocupação de nossa Estética Transcendental é que ela não seja reconhecida apenas como uma hipótese plausível, mas sim que seja tão certa e indubitável como seria de esperar-se de qualquer teoria que deva servir de organon”. 51

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que o nosso conhecimento só venha a completar-se, como veremos, com a aplicação dos conceitos do entendimento aos objetos intuídos, fica já assegurada, em “primeira instância”, a possibilidade de conhecimentos seguros a respeito, por exemplo, das quantidades extensivas dos objetos (p.ex. a medida do comprimento de um objeto), ou a respeito de relações de causalidade (o seguir-se de um evento ao outro com necessidade absoluta). Afinal, fica “resolvido” o aspecto material de nosso conhecimento, que diz respeito simplesmente à nossa faculdade passiva de receber representações dos sentidos, por meio da qual intuímos os objetos sob determinadas condições necessárias: se todo nosso conhecimento “começa” pela experiência, toda sua objetividade deve começar no intuir – exigência que Kant pretende ter satisfeito com a estética transcendental.

* * *

Como vimos, toda a possibilidade de nosso conhecimento (como conhecimento universal e necessário) se liga à possibilidade de uma harmonia entre juízos universais e necessários (que só podem ser a priori) e os dados contingentes da empiria que recebemos na sensibilidade – harmonia que, por seu turno, corresponde ao “encontro” entre forma e matéria operado pelo sujeito. Tendo caracterizado brevemente as condições formais da sensibilidade, que é o “lugar” por excelência da matéria do conhecimento (mas que nem por isso deixa de ter suas condições subjetivas universais), podemos agora examinar as condições formais do entendimento, que é o “lugar” por excelência da forma do conhecimento, já que nele estão os conceitos reguladores (“legisladores”) da experiência.

Sem dúvida a oposição feita por Kant entre entendimento e sensibilidade, como as duas fontes de nosso conhecimento, não tem em si nada de tão original, correspondendo simplesmente à idéia de que o conhecimento é composto, de um lado, por elementos fornecidos pelos sentidos (representações sensíveis), e, de outro, por elementos presentes no intelecto do homem que o caracterizam como único animal capaz de produzir conhecimento – notadamente a propriedade do pensar (raciocinar). Se, porém, a estratégia kantiana consiste em subordinar o mundo fenomênico às leis de nosso entendimento, e, 52

KrV, B 14-8. 29

como já dissemos, isso não poderia ser realizado eficazmente por meio da postulação, ou mesmo suposição, de uma mera correspondência entre as leis da natureza e as leis do nosso entendimento, é preciso estabelecer uma relação entre o entendimento e os objetos (fenômenos) em que as condições daquele se apliquem a estes como regras universais e necessárias. É este, de modo geral, o escopo central da Analítica da Crítica da Razão Pura, e sua solução não poderia dar-se nos estreitos limites da lógica tradicional, cujo distanciamento de todo e qualquer conteúdo a torna inapta para regular a relação entre entendimento e objeto. Ela tem de dar-se, isto sim, numa lógica transcendental que constitua o conjunto das regras formais dessa relação, ou, o que dá no mesmo, o conjunto das regras formais do ato de conhecimento que se cristaliza no encontro forma-matéria quando o sujeito, além de intuir, pensa um objeto.53 Se a lógica geral (tradicional) contém as condições formais necessárias do pensar em geral (do juízo em geral), sem consideração do objeto, e a estética transcendental contém as condições formais necessárias do intuir em geral (que “dá” o objeto), a lógica transcendental deve conter as condições formais necessárias do pensar um objeto possível em geral – o que acaba equivalendo a conter as condições do objeto em geral (enquanto o objeto que é resultante da combinação entre entendimento e sensibilidade, i.e. o objeto de nosso conhecimento) e, portanto, da objetividade de nosso conhecimento. Todavia, na medida em que se trata também aqui de uma modalidade do pensar (o pensar aplicado a um objeto), é natural que a lógica geral – cuja importância em nenhum momento foi posta em questão por Kant – sirva, se não como “fonte” das regras da lógica transcendental, ao menos como ponto de partida para a formulação das mesmas. Se se trata da aplicação do pensar aos objetos da intuição, as regras de mediação devem referir-se ao mesmo tempo a ambos os “lados”, construindo-se a forma do objeto em geral por meio de uma combinação da forma do juízo em geral e da forma da intuição em geral, e compondo-

53

KrV, B 79-80: “A lógica geral, como vimos, faz abstração de todo o conteúdo do conhecimento, i.e. de toda a relação deste com o objeto, e leva em conta apenas a forma lógica na relação dos conhecimentos entre si, i.e. a forma do pensamento em geral. Mas, como há intuições tanto puras como empíricas (como prova a Estética Transcendental), do mesmo modo é possível estabelecer uma distinção entre pensamentos puros e empíricos de objetos. Neste caso haveria uma lógica em que nem todo conteúdo do conhecimento seria abstraído; pois aquela outra lógica, que levava em conta apenas as regras do pensamento puro de um objeto, excluiria todo e qualquer conhecimento cuja origem seja empírica. Esta outra lógica também examinaria a origem de nossos conhecimentos de objetos, na medida em que esta origem possa ser atribuída aos próprios objetos,...” 30

se a tábua das categorias (conceitos do entendimento constitutivos desse objeto em geral)54 a partir de sua correspondência com a tábua lógica do juízo (e sendo o espaço e o tempo, como formas da intuição, levados em conta).55 É assim que as categorias podem ser definidas como “conceitos de um objeto em geral, por meio dos quais a intuição deste é vista como determinada em relação a uma das funções do juízo”.56 Se examinarmos o exemplo que o próprio Kant utiliza para elucidar esta definição, valendo-se do juízo de tipo categórico e da categoria de substância que lhe é correspondente, talvez a idéia fique mais clara:

A função do juízo categórico corresponde à relação do sujeito com o predicado; por exemplo, na proposição “Todos os corpos são divisíveis”. Mas com respeito ao uso estritamente lógico do entendimento permanece ainda indeterminado a qual dos dois conceitos pertence a função de predicado, e a qual a de sujeito. Pois poderíamos também dizer “Algum divisível é corpo”. Mas por meio da categoria de substância, quando o conceito de um corpo a ela é submetido, fica determinado que a intuição empírica deste último na experiência será sempre considerada como sujeito, nunca como predicado – valendo o mesmo para as demais categorias. (KrV, B 128-9)

O que Kant procura mostrar é justamente o fato de que, de acordo com a lógica geral, só temos a forma de um juízo, no caso de tipo categórico, i.e., do tipo “S é P” (que é a forma do juízo por excelência na lógica aristotélica), e isso não basta para que possamos determinar, ainda no âmbito da aprioridade, qual, dentre dois conceitos, deverá ser o sujeito

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Como Kant expressamente o admite, a escolha do termo “categoria” se deveu à influência de Aristóteles, que teria sido o primeiro a empreender tentativa similar à sua, no sentido de encontrar e catalogar correta e exaustivamente as noções a priori que, em nossa mente, servem de forma ao conhecimento. “A estes conceitos (conceitos puros do entendimento) chamaremos, com Aristóteles, categorias, sendo o nosso propósito originalmente idêntico ao seu, a despeito da grande diferença no modo de execução. (...) Era um projeto digno de um pensador brilhante como Aristóteles procurar por estes conceitos fundamentais. Desprovido todavia de algum princípio, ele os pegou tal como os encontrou, e juntou-os inicialmente em dez, chamando-os de categorias.” (KrV, B 105-7.) 55 Tábua dos juízos: “1) Quantidade dos juízos: Universal; Particular; Singular./ 2) Qualidade: Afirmativo; Negativo; Infinito./ 3) Relação: Categórico; Hipotético; Disjuntivo./ 4) Modalidade: Problemático; Assertórico; Apodítico.” (KrV, B 95.) Tábua das categorias: “1) De Quantidade: Unidade; Pluralidade; Totalidade./ 2) De Qualidade: Realidade; Negação; Limitação./ 3) De Relação: de Inerência e Subsistência (substantia et accidens); de Causalidade e Dependência (causa e efeito); de Comunidade (reciprocidade entre agente ativo e passivo)./ 4) De Modalidade: Possibilidade — Impossibilidade; Existência — Não-existência; Necessidade — Contingência.” (KrV, B 106.) 56 KrV, B 128. 31

e qual o predicado. O conceito de substância, então, que corresponde à noção (também tradicional) de um algo que só pode ser sujeito, e nunca predicado de nada, aparece como um conceito puro do entendimento, i.e., um conceito que possuímos independentemente da experiência, mas que servirá como critério automático para o nosso juízo sempre poder decidir quem fica do lado do “S” e quem do lado do “P”. A idéia, assim, parece ficar um pouco mais clara, mas permanece para o leitor kantiano um certo estranhamento com a idéia de que tal noção, assim como as noções de unidade, causa, necessidade etc., possa preceder em nosso intelecto as informações a posteriori da experiência. O próprio Kant tem consciência desta dificuldade, e, se a aprioridade das formas da intuição (espaço e tempo) não era tão problemática, dada a indiscutível aplicabilidade universal das mesmas aos fenômenos (para Kant uma evidência imediata), o mesmo não ocorre com as categorias do entendimento, motivo pelo qual se vê ele forçado a efetuar a “dedução transcendental” das mesmas57 – devendo esta consistir em demonstrar que esses conceitos são condições a priori da possibilidade de toda experiência e, portanto, também universalmente aplicáveis aos fenômenos.58 Ora, se o que está em jogo, como vimos insistindo, é a relação sujeito-objeto como relação que produz o conhecimento, e se as categorias devem ser os elementos a priori possibilitadores da aplicação do pensar aos objetos intuídos, tornando-se possível emitir juízos acerca destes com necessidade e universalidade, é preciso que as categorias, em seu conjunto, constituam simplesmente o próprio sujeito enquanto capacidade de conhecer objetos por meio da experiência. Em outras palavras, para que faça realmente sentido a suposição crítica essencial (da regulação dos objetos por nossos conceitos), e para que o sujeito possa transferir a necessidade de seu entendimento à experiência, é preciso imaginálo como um conjunto de condições necessárias da mesma que, não se esgotando nas condições da sensibilidade, constituam o ato fundamental do conhecer, que é o pensar um objeto ou, como Kant o define em termos mais específicos, a “síntese do conteúdo diverso

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KrV, B 121-2. KrV, B 120: “...começa com os conceitos do entendimento a necessidade absoluta de buscar uma dedução transcendental..., pois, na medida em que se referem aos objetos não por meio de predicados da intuição e da sensibilidade, mas por meio do pensamento puro a priori, eles se aplicam aos objetos sem todas as condições da sensibilidade. E, não estando fundados na experiência, eles não são apresentados juntamente com algum objeto numa intuição a priori sobre a qual, antecedentemente à experiência, sua síntese pudesse estar baseada.” 58

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da intuição numa unidade objetiva”.59 Neste sentido, a tarefa fundamental da dedução transcendental converte-se simplesmente, ao menos num primeiro momento, em vincular a possibilidade da experiência ao próprio sujeito como unidade, ou, antes, como faculdade de conhecer (entendimento):

O entendimento é, para dizê-lo em termos gerais, a faculdade dos conhecimentos. Estes consistem na relação determinada entre representações dadas e um objeto. Objeto, porém, é aquilo em cujo conceito o diverso de uma dada intuição é unificado. Agora, toda unificação de representações demanda unidade da consciência na síntese das mesmas. Por conseguinte, somente a unidade da consciência é capaz de possibilitar a relação das representações com um objeto, e portanto a validade objetiva das mesmas e a possibilidade de elas tornarem-se conhecimentos – dela dependendo, portanto, a possibilidade do próprio entendimento. (KrV, B 137)

Para melhor caracterizar o ato essencial do conhecimento como esse ato de síntese do diverso, talvez seja interessante pensar em como poderia ser o conjunto de nossas representações (a partir apenas da intuição) sem a ação do entendimento. Se, ao concordar com Hume em que as conexões entre os objetos não são necessárias em si mesmas, Kant passou a identificar a possibilidade de qualquer necessidade nos e entre os objetos com a possibilidade de juízos sintéticos a priori, é porque ele não aceitaria um “meio termo” contingente como o hábito: se o entendimento não tiver como aplicar a priori suas condições necessárias aos fenômenos, nossas representações destes últimos, baseadas apenas na intuição, não podem passar de um “emaranhado disperso” sem qualquer “sentido”. Seria talvez, pensando no caso das categorias de relação, algo como a projeção de um desenho animado cujas imagens sequenciais tivessem sido embaralhadas, de tal modo que, por exemplo, ao invés de vermos um barco descer o rio, primeiro o víssemos em baixo, depois em cima, depois no meio.60

59

KrV, B 136-9. Como afirma Rousset, referindo-se ao conceito kantiano de experiência, “ela é portanto mais do que as percepções empíricas que ela contém, ela é a unidade destas; Kant conclui daí que o que a define em sua essência é a síntese, e que ela requer, consequentemente, a intervenção de um princípio sistemático sem o qual não haveria nunca algo além de justaposição sem ligação, caos, “rapsódia”; só há experiência para o sujeito quando ele apreende a unidade de suas representações na consciência daquilo que as liga” (Rousset, B. Op.cit., p. 207-8). 60

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Na verdade, o princípio mais alto do conhecimento humano, de acordo com a suposição essencial do criticismo, não poderia mesmo ser outro: se não é a natureza que “organiza” os seus dados, mas o sujeito, então este, considerado enquanto faculdade a priori de operar a ligação das representações diversas de acordo com regras (a partir das categorias), i.e. enquanto “unidade sintética original da apercepção”, torna-se a condição primeira de todo o nosso conhecimento e de toda experiência possível.61 Dado, como ato fundamental do conhecimento, o ato de síntese do diverso da intuição em um juízo – o qual é praticado por cada um de nós em nossa relação com o mundo —,62 trata-se aí tão somente da consideração de suas condições necessárias e universalmente válidas: o conceito de um objeto em geral, embora subjetivo, torna-se objetivo na exata medida em que não se refere aos atos particulares de síntese de representações diversas numa consciência particular, mas às condições formais do ato de síntese do diverso numa consciência em geral.63 O “Eu penso” kantiano, que nada mais é do que o próprio sujeito transcendental considerado como princípio supremo do conhecimento, é uma das possíveis representações desse ato,64 já que se trata meramente de deduzir do fato de representações serem minhas o Eu como consciência em que se dá a unificação das mesmas sob conceitos (síntese)65 – uma 61

“(...) a ligação (Verbindung) das representações sob um conceito não repousa nos próprios objetos, e não pode ser deles extraída por meio da percepção para então ser assumida pelo entendimento. Ela é, ao contrário, uma operação do próprio entendimento que não é senão a faculdade de ligar a priori e de reduzir a variedade das representações dadas à unidade da apercepção — princípio que é o mais alto de todo conhecimento humano” (KrV, B 135). 62 Isso não significa que a objetividade esteja presente em todo e qualquer juízo formulado por um sujeito particular. Ao contrário, como veremos, os juízos que são assim formulados se convertem em juízos objetivos (de experiência) justamente por se diferenciarem dos meros juízos particulares subjetivos e contingentes (de percepção). De todo modo, as condições são universais (válidas para qualquer um) e os juízos de experiência são, de fato, juízos que formulamos a todo tempo. 63 KrV, B 139-40. 64 Como nos mostra Rousset, o sujeito transcendental aparece sob diversas acepções (e denominações), mas é sempre o mesmo. Procurando classificar esses diferentes sentidos, ele os divide em quatro principais: a “consciência” (que por sua vez se subdividiria em unidade sintética, unidade objetiva e unidade transcendental); o “Eu penso” (como condição lógica); a “apercepção” (termo que aparece, segundo Rousset, meramente como reflexo de uma influência vocabular leibniziana); e, por fim, a “consciência de si” forjada tanto pelo sentido interno como pelos sentidos externos, neste último caso tratando-se do corpo). Cf. Rousset, B. Op.cit., pp. 360-3.) 65 De acordo com o que nos diz Kant, o princípio supremo do conhecimento (a unidade sintética do diverso da intuição numa consciência, o Eu penso) é uma proposição analítica, e por isso mesmo “esclarece como necessária uma síntese do diverso numa intuição, pois sem ela a identidade da consciência de si seria incogitável. (...) Eu sou portanto consciente de meu eu idêntico, em relação à diversidade das representações que me são dadas na intuição, porque chamo o seu conjunto de minhas, assim as unificando. Isto equivale a dizer que sou consciente de uma síntese necessária a priori das mesmas, a qual se chama unidade sintética original da apercepção, e sob a qual todas as representações que me são dadas estão reunidas — por meio, necessariamente, de uma síntese” (KrV, B 135). 34

consciência, contudo, que só interessa à filosofia transcendental em sua generalidade, i.e., na universalidade do ato de pensar um objeto (determinação deste num juízo, a partir de uma intuição). Tomando como exemplo o juízo “Todos os corpos são pesados”, afirma Kant:

Eu não quero dizer que essas representações (“corpo” e “peso”) pertençam necessariamente uma à outra na intuição empírica, mas sim que por meio da unidade necessária da apercepção elas pertencem uma à outra na síntese das intuições, i.e. de acordo com princípios da determinação objetiva de todas as representações, na medida em que estas possam produzir conhecimentos – sendo tais princípios, todos eles, deduzidos do princípio fundamental da unidade transcendental da apercepção. Este é o único modo pelo qual pode surgir de tal relação um juízo, i.e., uma relação que tem validade objetiva e é perfeitamente distinta da relação entre as mesmas representações que tem validade meramente subjetiva por meio, por exemplo, de leis de associação. (KrV, B 142)

Esse exemplo deixa suficientemente claro o movimento efetuado pela Crítica da Razão Pura no sentido de validar sua suposição central, i.e. a suposição de que os objetos se regulam por nossos conceitos: contra a suposição contrária (os objetos tomados como independentes do sujeito), na qual tudo que podemos afirmar a respeito dos mesmos é sempre contingente, é preciso mostrar que a suposição crítica é a única de acordo com a qual nossos juízos acerca dos objetos da experiência podem ser necessários e universais – o que equivale a provar que o sujeito, considerado em sua capacidade a priori de conhecer, é a condição suprema do próprio objeto: sem sujeito, não há objeto. E o corolário óbvio deste pressuposto é a identificação entre objetividade e validade universal (validade para todos os seres humanos), devidamente codificada no conjunto das noções que têm o estatuto de condições formais necessárias dos atos elementares do conhecer: espaço e tempo de um lado, como formas do intuir; unidade, substância, causa, realidade etc. (as categorias), de outro, como formas do pensar um objeto (ou da transformação do objeto meramente intuído em objeto conhecido):66

66

Na verdade, a questão da transformação do objeto meramente intuído em objeto conhecido corresponde à passagem do “mero” juízo de percepção ao juízo de experiência, questão a que voltaremos mais adiante. 35

O princípio supremo da possibilidade de toda intuição em relação à sensibilidade era, de acordo com a estética transcendental, que todo o diverso da intuição esteja submetido às condições formais do espaço e do tempo. O princípio supremo da mesma, em relação ao entendimento, é que todo o diverso da intuição esteja submetido às condições da unidade sintética original da apercepção. Ao primeiro desses princípios estão submetidas as várias representações da intuição, na medida em que nos são dadas; ao segundo, na medida em que devem poder ligar-se numa consciência; pois sem isto nada pode ser pensado ou conhecido, já que as representações dadas não teriam em comum o ato da apercepção “Eu penso” e portanto não se ligariam numa consciência de si. (KrV, B 136-7)

Desse modo, ficam estabelecidas, e devidamente situadas no sujeito transcendental (em nossas faculdades de conhecimento consideradas abstratamente), as condições de possibilidade de nosso conhecimento, que se fazem, na medida da submissão dos objetos a ele, também as condições de possibilidade da experiência e, nesse sentido, da própria natureza.67 Todavia, as dificuldades concernentes à maneira pela qual o sujeito pode conhecer a priori se mantêm no nível do processo de aplicação dos conceitos do entendimento às intuições da sensibilidade, i.e. do processo em que se efetiva a ligação dos dois pólos fundamentais do conhecimento (o “encontro” de forma e matéria) – processo que Kant deve analisar em sua especificidade, juntamente com os seus resultados mais gerais (ainda no plano do sujeito transcendental, os juízos sintéticos a priori resultantes da aplicação dos conceitos puros do entendimento aos fenômenos em geral): trata-se da passagem da Analítica de Conceitos à Analítica de Princípios.68

* * *

Na verdade, o ato que produz o conhecimento e que, como vimos, é um ato de ligação ou síntese das representações, não é senão o juízo, cujo caráter unificador foi sempre sublinhado pela lógica geral. Dada, porém, a sua especificidade no âmbito da lógica 67

Isso se deve ao fato de que as categorias, como condições da experiência, podem ser convertidas em leis gerais (princípios) que se revelam então (dada a submissão de toda experiência ao sujeito) as leis da própria natureza. 68 De acordo com o esclarecimento que o próprio Kant nos dá acerca da distinção entre “conceitos” e “princípios”, aqueles são apenas noções, enquanto os últimos são juízos efetivamente formulados pelo entendimento a partir de suas noções. Cf. KrV, B 187. 36

transcendental, que o examina não meramente em sua forma geral, mas em sua relação com a intuição (i.e. com o conteúdo possível desta), é preciso examinar as suas condições formais necessárias deste ponto de vista, as quais dizem respeito à aplicação das categorias aos objetos dos sentidos em geral (condição geral para a formulação de juízos objetivamente válidos). Em outras palavras, uma vez deduzidas as categorias do entendimento como condições necessárias de possibilidade da experiência, é preciso em seguida verificar como se dá a aplicação das categorias a essa mesma experiência, de modo que elas possam ser vistas como mais do que meros conceitos vazios.69 A rigor, a dificuldade está, uma vez mais, na compreensão de como pode ser que conceitos puros a priori se apliquem universalmente à experiência, que é um conjunto de objetos recebidos a posteriori na intuição. Ora, se isso fôra satisfatoriamente resolvido quanto às condições de possibilidade do intuir em geral, de um lado, e do pensar um objeto em geral, de outro, a dificuldade se mantém quando tentamos examinar o desdobramento deste último ato na formulação de um juízo. Afinal, como estabelecer uma ligação entre um conceito absolutamente universal, não passível de exemplificação, e objetos sensíveis contingentes? Há aí, admite-o Kant, uma heterogeneidade que não se verifica, por exemplo, quando se trata de aplicar um conceito empírico (i.e. um conceito formado a partir da experiência) aos objetos que lhe correspondam na intuição (como quando aplicamos o conceito geral de cachorro a um cachorro particular que vemos à nossa frente, apontando e afirmando “isto é um cachorro”).70 Se, porém, esse segundo tipo de relação, em que um objeto específico é subsumido sob um conceito empírico geral, não resolve a dificuldade presente naquele outro tipo (subsunção sob conceitos puros), a solução de um pode indicar a solução do outro. Afinal, pensando no exemplo que demos, é de notar-se que a questão da formulação de um juízo por meio da subsunção de um objeto a um conceito não deixa de ser em geral problemática: se temos em nossa mente um conceito de cachorro, a ser aplicado sempre que virmos um cachorro à nossa frente, não podemos deixar de perguntar como é esse “cachorro geral”, 69

KrV, 186-7. A possibilidade de as categorias serem aplicadas à experiência diz respeito ao seu preenchimento, meras formas que são, pelo material fornecido na intuição (requisito material do conhecimento). Afinal, como estaremos sempre a enfatizar, o conhecimento é fruto da combinação entre matéria e forma, pois “conceitos (pensamentos) sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas” (KrV, B 75). Cf. infra, 1,III. 70 KrV, B 176-7. 37

qual sua raça, seu tamanho, sua cor, etc. É provável que a cada de um nós, quando pensamos em “cachorro”, venha à mente uma imagem diferente: um pensará num cão fila, outro num pastor alemão, outro ainda num vira-lata, e assim por diante, de tal modo que a universalidade do conceito restaria arruinada, e com ela a perspectiva de uma aplicação adequada.71 Não há dúvida de que se trata aqui de uma velha dificuldade da tradição filosófica, bastante clara desde a crítica feita por Aristóteles às idéias platônicas, e para a qual Kant oferece uma solução um tanto interessante: as imagens que “fazemos” em nossa mente de fato não são universais, sendo sempre subjetivas e contingentes; universais são os “esquemas” que correspondem ao procedimento geral por meio do qual aplicamos um dado conceito aos objetos específicos que se “encaixem” sob ele, inclusive quando assim produzimos uma imagem:

Na verdade o que repousa na base de nossos conceitos sensíveis puros não são imagens dos objetos, mas esquemas. Ao conceito de triângulo em geral jamais se adequaria uma imagem do mesmo, pois ela não teria como atingir a generalidade do conceito que vale para todos os triângulos, sejam eles retângulos, acutângulos etc., e sim seria sempre limitada a uma parte dessas esferas. (...) Um objeto da experiência ou uma imagem do mesmo atinge ainda menos o conceito empírico, relacionando-se este, isto sim, sempre imediatamente ao esquema da imaginação como uma regra da determinação de nossas intuições de acordo com um determinado conceito geral. O conceito de cachorro indica uma regra de acordo com a qual minha imaginação é capaz de delinear a figura de um animal de quatro patas em geral, sem estar limitada a alguma forma específica oferecida a mim pela experiência ou a qualquer imagem que eu possa representar-me in concreto. (KrV, B 180)

Fica delineado, assim, um procedimento de aplicação de conceitos a objetos, ou, o que dá no mesmo, de subsunção destes últimos sob aqueles, cujas regras estão nos esquemas – os quais, embora “parentes próximos” das imagens, já que também produzidos na imaginação, com estas não se confundem, sendo antes condições para a produção das mesmas pelo sujeito, ou simplesmente para a identificação das mesmas na intuição (pura, como no caso do triângulo, ou empírica, como no caso do cachorro). Como solução para a velha dificuldade do platonismo, Kant oferece assim, no esquema, um elemento 71

KrV, B 180. 38

intermediário entre conceito e objeto, possibilitador não da “participação” deste naquele, mas de sua subsunção. No caso dos conceitos puros do entendimento (categorias), porém, como dizíamos, a dificuldade se agrava especialmente, já que estes conceitos, além do problema da generalidade que seria próprio a todo conceito, possuem ainda a propriedade de jamais ter um objeto a eles correspondente, nunca podendo ser dados in concreto. Pense-se, por exemplo, no conceito de causa: nunca poderíamos apontar e afirmar “isto é uma causa” no mesmo sentido em que afirmamos “isto é um cachorro” ou “isto é um triângulo”.72 Poderíamos sem dúvida afirmar “A é a causa de B”, como quando dizemos “a iluminação da pedra pelo sol é a causa do seu aquecimento”, mas o que está dado in concreto, aí, são a pedra, a luz, o sol e o calor, mas não “a causa” nem tampouco a necessidade que é própria a ela (já que nunca “dada” na experiência). Trata-se sem dúvida de aplicar o conceito aos objetos em geral, mas não no mesmo sentido em que se aplicam os conceitos empíricos a objetos particulares, e sim no sentido de sua regulação de acordo com regras – perspectiva que, como já visto, parece sempre dificultada pela heterogeneidade entre leis necessárias universais e intuições contingentes. Ora, a introdução do conceito de esquema permite justamente, muito além de apenas solucionar a antiga dificuldade da conciliação entre conceitos gerais (porém ainda contingentes) e objetos particulares, oferecer também a saída para esta outra dificuldade, que é mesmo a dificuldade essencial da filosofia transcendental: se não temos um objeto ou evento particular correspondendo a um dado conceito puro do entendimento, temos no entanto, em nossa própria imaginação, o esquema que rege a aplicação deste à realidade sensível em geral, no sentido de que sabemos sempre quando utilizá-lo.73 Afinal, uma vez 72

KrV, B 176-7. A idéia do esquema como uma espécie de instrumento que nos permite emitir juízos fica mais clara se pensarmos na descrição que Kant faz desta faculdade (do juízo), aproximando-a da noção vulgar de inteligência, i.e. de uma capacidade que varia de indivíduo para indivíduo e que diz respeito, de um modo geral, à aplicação de conceitos universais a casos particulares. “...o juízo é um talento especial que só pode ser exercitado, e não ensinado. (...) Ainda que as escolas possam fornecer e mesmo “enxertar”, num entendimento limitado, regras emprestadas de outras mentes, o poder de empregar estas regras corretamente deve pertencer ao próprio aluno, e, na falta ou deficiência deste dom natural, nenhuma regra que lhe ensinemos está garantida contra o mau uso. (...) A deficiência no juízo é propriamente o que chamamos de burrice (Dummheit), e contra ela não há qualquer remédio. (...) Portanto um médico, um juiz ou um estadista podem ter em suas cabeças muitas e admiráveis regras patológicas, jurídicas ou políticas, num tal grau que possam ser professores preparados nestas ciências particulares; mas pode ser que na aplicação dessas regras eles se enganem redondamente, seja porque lhes falta juízo natural e, ainda que possam compreender o geral in abstracto, não conseguem distinguir se um caso particular deve subsumir-se sob aquele geral in concreto; seja porque sua 73

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que a aplicação dos conceitos puros do entendimento aos objetos não diz respeito, em nenhuma medida, a estes enquanto “coisas em si” independentes de nós, mas enquanto fenômenos tal como por nós intuídos e pensados, só pode mesmo tratar-se de um processo que ocorre “em nós”, no momento do “encontro” entre entendimento e sensibilidade cujo “local” é a imaginação e cuja validade depende do uso adequado do juízo (ditado pelos esquemas).74 É de compreender-se, por esse viés, em que sentido Kant situa no tempo, como forma de nosso sentido interno, o terceiro termo capaz de aproximar os conceitos do entendimento e os objetos da intuição, rompendo assim a heterogeneidade que parecia haver entre eles:75 se o ato de subsunção em questão, que na verdade é o próprio ato de síntese do diverso da intuição, constitui-se como uma articulação coordenada das representações que estão “em nós”, o que deve possibilitar esse ato não pode estar “fora de nós”. O tempo, concebido como forma de nossa intuição por meio do sentido interno, nada mais é que a continuidade existente entre as representações: se, mais acima, imaginamos que o conjunto das representações sem a ação das categorias de relação deveria ser algo como a projeção de um desenho animado cujas imagens sequenciais houvessem sido embaralhadas, aqui podemos imaginar que, sem o tempo, estas imagens nunca seriam projetadas ou sequer postas numa ordem com significado de continuidade (como numa revista em quadrinhos); simplesmente inexistiria qualquer ligação entre elas, sendo cada uma um “mundo” à parte, inteiramente isolado dos outros. O nosso sentido interno é, pois, o que em última instância permite ligar os universais que estão no “lado” a priori de nosso entendimento com os contingentes que estão no “lado” a posteriori de nossa sensibilidade,76 restando afastada a heterogeneidade entre estes na simples medida em que sua conjunção nada mais é do que uma construção operada pelo sujeito nesse “complexo em que todas as nossas as nossas representações estão contidas” (i.e. “o sentido interno e

faculdade do juízo não foi suficientemente exercitada por meio de exemplos e da prática real” (KrV, B 1723). 74 Como nos dirá Kant no início da Dialética, o erro ocorre no juízo, e não no entendimento ou na sansibilidade considerados isoladamente — o que, aliás, vai bem de encontro a essa noção do juízo como inteligência, mencionada na última nota. Cf. KrV, B 350-1. 75 KrV, B 177. 76 O tempo, forma do sentido interno, consegue assim funcionar como elemento de ligação por ser o único elemento, em nossas faculdades, que é “ao mesmo tempo puro (e sem qualquer coisa empírica) e de um lado inteligível, de outro sensível”. Cf. KrV, B 173-4. 40

sua forma a priori, o tempo”).77 E neste sentido o esquematismo transcendental, como o procedimento de subsunção considerado em sua universalidade formal,

nada mais é que a unidade do diverso da intuição no sentido interno e portanto, indiretamente, nada mais é que a unidade da apercepção como uma função correspondendo ao sentido interno (uma receptividade). Assim, os esquemas dos conceitos puros do entendimento são as verdadeiras e únicas condições por meio das quais nosso entendimento recebe uma aplicação aos objetos e, portanto, uma significação. (KrV, B 185)

Essa perspectiva deixa claro aquilo que é simplesmente o caráter formal do sujeito transcendental, tanto com relação às formas da sensibilidade como com relação aos conceitos puros do entendimento: trata-se de formas do conhecimento à espera do material que lhes dará significação, num caso o “ser dado” dos objetos, no outro o “aplicar-se” a estes objetos – sendo este último movimento possibilitado pelos esquemas puros da imaginação. Se, no limite, o sujeito, enquanto ato de conhecer, pode ser reduzido à determinação do sentido interno como fator de constituição dos objetos da experiência e de sua relação de acordo com leis (portanto da experiência como um todo), é possível imaginá-lo como um receptáculo “vazio” cujo mecanismo de preenchimento (operado porém por ele próprio) é regulado pelo esquematismo.78 E para que a harmonia do sistema, que se estabelecia na correspondência entre a tábua dos juízos e a tábua das categorias, seja preservada, os esquemas devem agora corresponder a estas últimas com vistas à sua aplicação à experiência e podem ser descritos, em seu conjunto, como “determinações a priori do tempo de acordo com regras que se referem, com respeito a todos os objetos possíveis e em consonância com a ordem das categorias, à série do tempo, ao conteúdo do tempo, à ordem do tempo e, finalmente, ao complexo ou totalidade do tempo”.79

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KrV, B 194. Isso fica mais nítido se pensarmos no esquema de realidade, responsável por operar a aplicação da categoria de realidade ao mundo fenomênico: “Há pois uma relação entre realidade e negação, ou, antes, uma transição do primeiro ao segundo, que faz de toda realidade representável para nós como um quantum; e o esquema de uma realidade, como a quantidade de algo na medida em que este algo preenche o tempo, consiste precisamente nessa geração contínua e uniforme de realidade no tempo, no sentido em que ou descemos no tempo da sensação que tem um certo grau até o desaparecimento da mesma, ou nos elevamos gradualmente da sua negação a uma magnitude da mesma” (KrV, B 183). 79 KrV, B 184. 78

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Vemos assim, portanto, que à idéia de aplicação dos conceitos puros do entendimento aos fenômenos corresponde essa idéia de um preenchimento do sentido interno operado pelo próprio sujeito (o esquematismo). O ato de conhecimento passa, mais do que nunca, a poder ser caracterizado, em sua universalidade formal (a priori), por meio de suas condições necessárias de possibilidade: as condições do intuir, de um lado; as condições do pensar um objeto, de outro; e, por fim, na combinação dinâmica de ambas, as condições do preencher essas formas (que é, por assim dizer, o momento em que se concretiza o ato). Nesse sentido, vê-se completada a empreitada crítica de possibilitação de juízos sintéticos a priori, pois passa a ser possível “olhar” para o conhecer em geral de um ponto de vista puramente a priori : se o todo dos objetos da experiência se acha submetido a essas condições, o mero exame destas deve permitir-nos fazer afirmações sobre esse todo (i.e. sobre a natureza) antes de que objetos nos sejam dados in concreto (a posteriori) – afirmações estas que são, portanto, juízos sintéticos a priori. Ora, se na sensibilidade possuímos formas universalmente válidas para qualquer objeto intuído; se no entendimento possuímos formas (noções a priori) universalmente válidas para qualquer objeto pensado (conhecido); e se na imaginação possuímos um procedimento universal por meio do qual subsumimos aquelas intuições sob estas noções, assim construindo juízos com validade objetiva, é bastante natural que, enquanto consideremos todos esses fatores exclusivamente em sua universalidade formal, possamos formular juízos igualmente formais (a priori), universais e necessários. Se, com efeito, a aplicação de uma categoria a um fenômeno qualquer deve resultar num juízo acerca deste dotado de validade objetiva, a sua aplicação aos fenômenos em geral, i.e., à experiência como um todo, deve resultar num juízo acerca desta dotado de validade objetiva80 – e para cada categoria e bloco de categorias deverão corresponder juízos e blocos de juízos universalmente válidos.81 À correspondência perfeita entre juízos, categorias e esquemas, 80

KrV, B 187-8. Às tábuas das formas dos juízos e das categorias deve então juntar-se uma tábua contendo os princípios superiores do entendimento (ou princípios universais da ciência da natureza): 1) Axiomas da Intuição (princípio: “Todas as intuições são quantidades extensivas”); 2) Antecipações da Percepção (princípio: “Em todos os fenômenos o real — aquilo que é objeto da sensação — tem quantidade intesiva: um grau”); 3) Analogias da Experiência (princípio geral: “A experiência só é possível por meio da representação de uma conexão necessária das percepções”; princípios específicos: a) da permanência ou substância: “Em todas as mudanças nos fenômenos a substância é permanente, e o seu quantum na natureza não é nem aumentado nem diminuído”; b) da sucessão no tempo de acordo com a lei de causalidade: “Todas as mudanças ocorrem segundo uma lei da conexão de causa e efeito”; c) da coexistência de acordo com a lei da reciprocidade: 81

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acrescentam-se agora estes juízos universais “efetivamente formulados” capazes de ser, ao mesmo tempo, “princípios transcendentais de todo uso do entendimento”82 e “princípios universais da ciência da natureza”83 na simples medida da submissão de toda experiência possível (natureza) a suas condições a priori de possibilidade:

Na medida em que, com relação à possibilidade de toda experiência, e tendo-se em vista apenas a forma do pensar, não há condições dos juízos de experiência que estejam acima daquelas que subsumem os fenômenos, de acordo com suas diferentes intuições, sob conceitos puros que os tornam objetivamente válidos, então estas são os princípios a priori da experiência pïssível. Ora, os princípios da experiência são ao mesmo tempo leis universais da natureza que podem ser conhecidas a priori. (Prol, §23, Ak.IV, 305-6)

Na verdade, esses princípios são meros “desdobramentos” das categorias em juízos, formulados em vista da aplicabilidade destas à experiência como um todo, i.e. aos fenômenos em geral.84 Se, por exemplo, a noção de causa, que, como vimos, não poderia ela própria ser objeto de um juízo (por não poder jamais ser dada como tal in concreto), é aplicada aos fenômenos em geral, resulta daí o juízo sintético a priori “Todas as mudanças ocorrem de acordo com a lei da conexão de causa e efeito”85 – o qual é, notadamente, uma lei universal da natureza. Do mesmo modo, da aplicação da categoria de substância aos fenômenos em geral resulta o juízo “Em todas as mudanças nos fenômenos a substância permanece, e o “quantum”

da mesma não aumenta nem diminui na natureza”;86 da

aplicação das categorias de quantidade, o juízo “Todas as intuições são grandezas extensivas” (princípio geral dos axiomas da intuição);87 da aplicação da categoria de

“Todas as substâncias, na medida em que possam ser percebidas no espaço e no tempo, existem num estado de completa reciprocidade de ação”); 4) Postulados do Pensamento Empírico (princípios: a. “O que concorda com as condições formais da experiência (intuição e conceito) é possível”; b. “O que concorda com as condições materiais da experiência (sensação) é real”; c. “Aquilo cujo acordo com o real é determinado de acordo com as condições universais da experiência é necessário”). (KrV, B 198-274.) 82 KrV, B 188. 83 Prol, §21 (Ak.IV, 303). 84 Cf. Prol, §21 (Ak.IV, 302-4). 85 KrV, B 232. 86 KrV, B 224. 87 KrV, B 202. 43

possibilidade, o juízo “O que concorda com as condições formais da experiência (intuição e conceito) é possível”;88 e assim por diante. A partir do estabelecimento, pois, de todos esses princípios, como princípios de aplicação das categorias do entendimento aos fenômenos em geral, e portanto como os princípios mais gerais de nosso conhecimento (da experiência), ficam bastante claras as conseqüências da suposição crítica essencial: não está dado na natureza, como uma lei fora de nós válida para o mundo em sentido absoluto, que “todas as mudanças ocorrem de acordo com a lei da conexão de causa e efeito”; tal princípio é um juízo sintético a priori, formulado pelo sujeito na simples consideração da relação de sua noção a priori de causa com as condições a priori de suas intuições (espaço e tempo como determinantes do ser fenomênico de todo e qualquer objeto “para nós”). À pergunta acerca da possibilidade de conhecimento em geral corresponde a pergunta acerca da possibilidade da própria natureza, já que sem as condições necessárias daquele esta última inexistiria para o sujeito, sendo ele incapaz de formular sobre a natureza qualquer juízo com validade objetiva, e toda relação do homem com o mundo se resumiria a uma “rapsódia de percepções”89 sem qualquer conexão entre si. É desta forma que, nos Prolegômenos, Kant desdobra a “segunda parte da questão transcendental principal” (“Como é possível a ciência pura da natureza?”)90 na questão “Como é a própria natureza possível?” e, dividindo esta em duas, afirma:

Primeiramente: Como é a natureza possível em sentido material, i.e. segundo a intuição como essência dos fenômenos; como são possíveis em geral o espaço, o tempo e o que preenche a ambos – o objeto da sensação? A resposta é: graças à constituição de nossa sensibilidade, de acordo com a qual ela é afetada, da maneira que lhe é própria, por objetos que em si mesmos nos são desconhecidos e que são inteiramente diferentes dos fenômenos. (...) Segundamente: Como é a natureza possível em sentido formal, como conjunto das regras às quais devem submeter-se todos os fenômenos para poder ser pensados como ligados em uma experiência? A resposta não pode ser outra: esta natureza só é possível graças à constituição de nosso entendimento, de acordo com a qual todas essas representações da sensibilidade são referidas de maneira necessária a uma consciência... (Prol, §36, Ak.IV, 318) 88

KrV, B 265. KrV, B 196. 90 Prol, Ak.IV, 294. 89

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Mais do que nunca, fica claro o método adotado por Kant para solucionar a problemática da objetividade: se esta deve significar universalidade e necessidade, e estas características não podem ser encontradas a posteriori na experiência,91 é preciso que antecedam a esta como suas condições de possibilidade – o que, por seu turno, significa estarem a priori no sujeito. Todo o sistema da natureza, tanto do ponto de vista da constituição de seus objetos como objetos propriamente ditos – seu sentido material —, como do ponto de vista do sistema de suas leis universais – seu sentido formal —, passa a ser possibilitado pelo sujeito, que assim se confirma como a condição mais elementar de toda a natureza:92 sem sujeito, não há objeto; sem sujeito, não há natureza.

* * *

Na leitura que vimos fazendo do movimento crítico de “construção” da objetividade de nosso conhecimento, baseada sobretudo na segunda edição da Crítica da Razão Pura, procuramos mostrar a necessidade que haveria de fazer repousar em formas, conceitos e princípios a priori nossos juízos acerca da experiência em geral, de tal modo que estes pudessem ser dotados de validade objetiva (i.e. possuir a qualidade de necessários e universais). Ilustramos a questão tentando imaginar o que seria o mundo, para nós, sem esses dados a priori: faltando a atuação das categorias, uma rapsódia de percepções desconexas; faltando as formas da intuição (tempo e espaço), absolutamente nada. Se Hume aceitava a ausência de necessidade absoluta em nossa relação cognitiva com o mundo, contentando-se com o princípio do hábito, Kant parece procurar mostrar justamente que esta solução “intermediária” é impossível: ou há leis necessárias e universais regulando o todo dos objetos da natureza, ou não há qualquer regra, e afirmar que o sol nascerá amanhã é tão certo quanto afirmar que o apocalipse se aproxima. Colocada dessa forma, a posição de Kant soa um tanto radical e mesmo não muito razoável, já que apenas duas opções parecem restar: ou o nada, ou a necessidade absoluta; ou aceitamos o mandamento de Crátilo e nos calamos, ou emitimos apenas juízos dotados 91

Cf. supra, 1,I. O princípio supremo dos juízos sintéticos, com efeito, é assim expresso por Kant: “Todo objeto está submetido às condições necessárias da unidade sintética do diverso numa experiência possível” (KrV, B 197). 92

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de universalidade e necessidade, como seria do agrado de Parmênides. “Ora”, poderíamos então perguntar, movidos talvez por uma certa inocência, “mas e as tantas afirmações que fazemos, por meio de juízos, acerca da realidade, e que parecem-nos perfeitamente válidas, ainda que não tão válidas assim?!” Sem dúvida a resposta a esta questão parece difícil de encontrar na primeira Crítica, talvez em face da preocupação precípua desta com a questão da objetividade do conhecimento propriamente dito (i.e. científico),93 mas o mesmo não se pode dizer dos Prolegômenos, em que Kant estabelece com suficiente clareza a distinção entre juízos de percepção e juízos de experiência. Aqui, poderíamos responder: “Tais juízos, que são perfeitamente válidos subjetivamente, mas que não possuem as características da necessidade e da universalidade (requisitos da objetividade), são meros juízos de percepção, distinguindo-se dos juízos de experiência, que devem satisfazer estas condições”:

Juízos empíricos são, na medida em que tenham validade objetiva, juízos de experiência; aos juízos empíricos, porém, que só valem subjetivamente, chamo simples juízos de percepção. Os últimos não exigem qualquer conceito puro do entendimento, mas apenas a ligação lógica das percepções num sujeito pensante. Os primeiros no entanto exigem sempre, além das representações da intuição sensível, conceitos especiais produzidos originariamente no entendimento que fazem justamente com que o juízo de experiência tenha validade objetiva. (Prol, par.18, Ak.IV, 298.)

A diferenciação entre esses dois tipos de juízo, embora sem dúvida causadora de estranhamento no leitor acostumado à Crítica da Razão Pura, tem porém a propriedade de lançar novas e fortes luzes sobre a função precisa dos conceitos puros do entendimento: se a leitura da Analítica Transcendental nos dava a impressão de que as categorias constituíam as condições do pensar um objeto em geral independentemente do caráter subjetivo ou universal deste ato (sendo irrestrita a atuação das categorias como características universais 93

A sugestão do motivo para o não tratamento da questão na segunda edição da KrV, em contraste com os Prolegômenos, é dada por Rousset: “enquanto a atenção se concentra apenas sobre a objetividade [na KrV], que está presente em certos juízos e que é pretendida por todos, uma análise do juízo empírico e subjetivo se revela inútil e envolveria o risco de ensejar muitas confusões: dedicada ao a priori e à objetividade que ele funda, a Crítica não tem por que se ocupar do que é meramente empírico e subjetivo na consciência, enquanto que, partindo da consciência empírica e do conhecimento comum, os Prolegômenos deviam tratar do juízo de percepção” (Rousset, B. Op.cit., p.104, nota 82). 46

de nossas faculdades de conhecimento),94 nos Prolegômenos a coisa parece mudar de figura, passando a ser estabelecida a possibilidade de uma “relação contingente” do sujeito com a natureza (por ventura o momento intermediário entre o silêncio de Crátilo e o “ser absoluto” de Parmênides buscado pela ciência).95 Por outro lado, as categorias se revelam não como constitutivas de toda e qualquer síntese operada sobre o material diverso da intuição, mas apenas daquelas que “pretendam” e possam adquirir objetividade (i.e. que devam poder tornar-se conhecimento). O que se desenha, assim, na relação entre esses dois juízos, é um movimento gradativo de construção, iniciado sempre pelo juízo de percepção – já que “todos nossos juízos começam sendo juízos de percepção”96 – e desembocando no juízo de experiência como o único dotado de validade universal e necessária (i.e. objetiva). Já no primeiro, com efeito, opera-se uma síntese do diverso que tem suas regras próprias, mas é de sublinhar-se o caráter contingente e subjetivo das mesmas, meras “leis empíricas de associação”,97 por oposição ao caráter necessário das categorias, que são as regras para a síntese do diverso numa consciência objetiva.98 Se nos juízos de percepção devem ser englobados todos os juízos que formulamos em nossa relação com o mundo, desde os assumidamente subjetivos – como “o quarto está quente, o açúcar é doce, o absinto é desagradável”99 – até os que se pretendem objetivos – como “todos os homens são mortais”, “o ar é elástico”100 ou “todos

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Na verdade, a impressão se deve mais à ausência de uma menção específica à questão, mas, como diz Rousset, isso não implica contradição (“Um silêncio não sendo uma negação, a ausência da teoria do juízo de percepção na segunda edição da Crítica nada prova”. Idem, ibidem). Sem dúvida há passagens que parecem autorizar essa impressão, no sentido de que a não aplicação das categorias, como vimos, significaria a ausência de qualquer conexão entre as representações. Veja-se, por exemplo, o parágrafo 20 da Dedução Transcendental, em que as categorias aparecem como “únicas condições sob as quais o conteúdo diverso (das intuições sensíveis) pode ser unificado em uma consciência”, e em que “o diverso em uma dada intuição é necessariamente submetido às categorias do entendimento” (B 143). Mas há igualmente outras que permitem identificar o espaço de contingência subjetiva representado pelo juízo de percepção, como, por exemplo, o parágrafo 18 do mesmo capítulo, confirmador da idéia de Rousset mencionada: “Apenas essa unidade (transcendental da apercepção) é objetivamente válida; a unidade empírica da apercepção, que não entra aqui em consideração, e que é meramente uma unidade deduzida daquela sob determinadas condições in concreto, possui unicamente validade subjetiva” (B 140). 95 Feita a ressalva, é claro, de que o “ser absoluto”, aqui, seria um “ser absoluto” apenas em relação aos fenômenos (portanto já não tão absoluto assim). 96 Prol, Ak.IV, 298. 97 Cf., p. ex., KrV, B 128 e B 142. 98 KrV, B 139-40. 99 Prol, Ak.IV, 299. 100 Idem, ibidem. 47

os coelhos são marrons”101 –, os juízos de experiência abrangem exclusivamente os que sejam de fato objetivos: dos três últimos exemplos, os dois primeiros “se converteriam”, mas o último não. Em outras palavras, os dois primeiros poderiam transformar-se de juízos de percepção em juízos de experiência, e isso não por terem sua validade objetiva (sua necessidade e sua universalidade) confirmada a posteriori pela experiência, mas por resultarem da aplicação das categorias às intuições correspondentes (já expressas nos mesmos enquanto juízos de percepção). É bastante esclarecedor, com respeito a essa questão, o exemplo dado por Kant no parágrafo 29. Quando vemos um corpo ser iluminado pelo sol, percebemos que ele se aquece, e que isto se dá sempre que a situação se repete. Afirmamos, então (talvez por força do hábito), que, “quando um corpo é iluminado suficiente tempo pelo sol, ele esquenta”. Estamos aqui ainda, porém, no âmbito de um juízo de percepção, posto que, como bem nos ensinara Hume, nossas impressões sensíveis não fornecem por si mesmas a necessidade de sua ligação (no caso, entre a luz do sol e o calor no corpo iluminado). Tal necessidade deve ser por nós mesmos introduzida, e fazemo-lo quando aplicamos a essa situação, como condição da possibilidade de sua repetição ad infinitum (i.e. como experiência propriamente dita), a noção de causa, que possuímos a priori em nosso entendimento e que, por isso mesmo, é dotada de necessidade e universalidade (não vale apenas para mim, observador do evento, mas para todo e qualquer observador – humano – de eventos iguais). É este, pois, o verdadeiro momento em que, empregando um esquema transcendental, operamos a conjunção entre uma categoria (forma) e dadas intuições sensíveis (matéria), produzindo assim o objeto de conhecimento na formulação de um juízo de experiência a partir de um mero juízo de percepção – o que, a rigor, corresponde tão somente à introdução de necessidade neste último pelo sujeito, ou à passagem de uma mera pretensão de objetividade à objetividade:

...se aquela proposição (“quando um corpo é iluminado...”), que é meramente uma ligação subjetiva das percepções, deve ser um juízo de experiência, devemos considerá-la como necessária e universalmente válida. Uma tal proposição, porém, seria: “O sol é, por meio de sua luz, a causa do calor”. A regra empírica acima passa a ser considerada como lei e como 101

Suponhamos alguém que só conhecesse coelhos marrons na região em que vive, e que acreditasse na universalidade da característica. 48

válida não apenas simplesmente para os fenômenos, mas para os fenômenos em vista de uma experiência possível, a qual demanda regras válidas irrestrita e portanto necessariamente. (Prol, Ak.IV, 312.)

A preocupação central da filosofia transcendental, portanto, está nos juízos de experiência, definidos em função da validade necessária e universal que esta demanda e que eles são capazes de oferecer. A regulação dos objetos por nossos conceitos, nessa medida, não é universal do ponto de vista do juízo (todos os juízos sendo a ela submetidos), mas sim do ponto de vista da experiência, espaço por excelência do exercício de nossas faculdades de conhecimento, e onde a natureza se constitui como um sistema regido por leis. Na verdade, a partir do momento em que se abrira mão do conhecimento das coisas em si mesmas, o sentido possível do termo “objetividade” já se encontrava vinculado ao sujeito em sua atividade de conhecimento: só é objeto de conhecimento o que pode estar contido num juízo de experiência, e a validade deste é ditada pelas categorias enquanto conceitos puros de nosso entendimento, de tal modo que

validade objetiva e validade universal necessária (para qualquer um) são conceitos recíprocos, e, se nós não conhecemos o objeto em si mesmo, quando então consideramos um juízo como universalmente válido e portanto necessário estamo-nos referindo justamente à validade objetiva. Nós conhecemos por meio deste juízo o objeto (ainda que o que ele seja em si mesmo nos permaneça desconhecido) graças à ligação universalmente válida e necessária das percepções dadas; e como este é o caso de todos os objetos dos sentidos, os juízos de experiência retiram sua validade objetiva não do conhecimento imediato do objeto (pois este é impossível), mas sim apenas da condição da validade universal dos juízos empíricos – a qual não repousa nunca sobre condições empíricas, ou em geral sensíveis, mas sim sobre conceitos puros do entendimento. (Prol, §19, Ak.IV, 298-9)

Desse modo, passa a ficar mais claro o estatuto preciso da objetividade do conhecimento teórico: ainda que a universalidade por ela exigida já tenha de estar presente, como condição necessária, na sensibilidade – e de fato esteja —, apenas esta não é, por si só, suficiente para sua constituição plena, a qual tem de resultar da atuação das categorias que se dá, notadamente, num segundo momento, o momento da passagem do juízo de

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percepção (já universal quanto às condições da sensibilidade, i.e. espaço e tempo, mas ainda subjetivo e contingente quanto à síntese das percepções) ao juízo de experiência (no qual esta síntese se torna também universalmente válida e necessária, portanto objetiva). É neste último, com efeito, que o objeto é propriamente construído pelo sujeito, passando a diferenciar-se, enquanto objeto de conhecimento, do mero objeto intuído, que não poderia, em face da contingência de sua síntese por um sujeito empírico particular, ser considerado conhecimento (como quereria Hume).102 Fica igualmente claro, no entanto, que as categorias do entendimento não são condições necessárias de todo e qualquer “pensar um objeto da intuição”, mas apenas do pensar este objeto num registro de necessidade e validade universal (que é o registro do conhecimento científico). Embora, em certo sentido, o alcance que as categorias pareciam ter à luz da Crítica da Razão Pura reste assim diminuído, a doutrina transcendental, com a introdução da distinção entre juízos de percepção e juízos de experiência, parece ganhar em termos de clareza, e mesmo de plausibilidade. Afinal, não se trata de esgotar, por meio dos conceitos puros do entendimento, todas as nossas possibilidades de convívio com o mundo, e sim, muito ao contrário, de estabelecer com precisão o estatuto que pode e deve ter o conhecimento científico (suas possibilidades e suas limitações), de tal modo que se possam configurar outros registros desse convívio – como caberá à segunda e à terceira Críticas mostrar. E tudo que podemos esperar do conhecimento científico, ou teórico, é a formulação e sistematização dos juízos de experiência, tanto dos que são a priori, componentes da matemática e da metafísica, como dos que são a posteriori, componentes da ciência da natureza.

102 Há muitas leituras que enfatizam bastante o caráter construtivo do ato do conhecimento na doutrina kantiana. Uma delas é a de Lachièze-Rey, para quem “o método transcendental consiste no conjunto desses procedimentos de construção e controle em que a consciência operante se apercebe imediatamente como autonomia” (Lachièze-Rey P. L”Idéalisme Kantien. Paris: Vrin, 1950, p. 467). De acordo com ele, a autonomia do sujeito, dado essencial da filosofia kantiana, está ligada ao potencial construtivo do sujeito no âmbito do conhecimento teórico, de tal modo que a própria matéria do conhecimento (dada na sensibilidade) deve acabar por ser reconhecida como criação construtiva do sujeito — algo que Kant teria feito no Opus Postumum (cf. idem, pp. 240 e ss.). Rousset, criticando a leitura de Lachièze-Rey, afirma, embora reconhecendo a devida importância do caráter construtivo do ato do conhecimento, que o potencial construtivo do sujeito não pode ir tão longe, sob pena de Kant recair num idealismo muito forte: o material que é dado na sensibilidade é recebido passivamente pelo sujeito, e não ativamente criado — e o Opus Postumum só faria confirmar esta visão (cf. Rousset, B. Op.cit., pp. 94-108). Esta questão, na verdade, remete ao problema do idealismo, que analisaremos mais à frente (2,I).

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Na verdade, se o sentido precípuo da crítica kantiana, num primeiro momento, é salvar nosso conhecimento do ponto de vista de sua validade universal e necessária (i.e. de sua objetividade), sua tarefa logo se inclina na direção oposta, qual seja, a de mostrar os limites desse mesmo nosso conhecimento, de tal modo que ele não se converta numa fonte de ilusões. Se a lição apresentada na Analítica Transcendental nos leva a compreender a possibilidade da formulação de juízos sintéticos a priori, e de subjazerem eles a toda experiência possível, ela tem também de mostrar que esta experiência é, ao mesmo tempo, o único âmbito de aplicação legítima dos mesmos, devendo ser afastados quaisquer outros usos. É neste sentido que os juízos a priori são incluídos entre os juízos de experiência: embora não sejam formulados a partir da experiência, i.e., a posteriori, eles devem necessariamente a ela referir-se, de tal modo a constituir, juntamente com ela, um sistema regido por leis universais e necessárias. A esta constituição sistemática da experiência (da natureza), pois, refere-se o significado positivo do criticismo, na medida em que é assegurado o nosso conhecimento em seu aspecto formal: são os conceitos puros de nosso entendimento que garantem a sua legitimidade porque são eles que lhe conferem as características da necessidade e da validade universal, buscadas desde o princípio como elementos constitutivos de sua objetividade. Contudo, esta mesma objetividade perderia por completo o seu sentido se consistisse exclusivamente em tais conceitos puros, podendo eles ser utilizados indiscriminadamente. Como vimos salientando, o conhecimento teórico é resultante da conjunção de forma e matéria, e esta última, como também visto, é fornecida na sensibilidade em conformidade com suas formas (tempo e espaço): há aqui um “ser dado” do objeto que constitui o outro lado de nosso conhecimento, e, à parte a cogitação da verdadeira origem do mesmo – problema para mais adiante —, é tarefa do criticismo restringir a aplicação das leis do entendimento (forma do conhecimento) aos objetos dados na intuição (matéria do conhecimento), pois estes constituem o material com o qual o sujeito realiza o preenchimento daquelas formas (por meio do esquematismo). Apresenta-se assim o aspecto negativo da empreitada crítica com respeito ao conhecimento teórico, que procuraremos descrever na seção seguinte.

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• Seção III. Significado negativo da solução transcendental com respeito ao conhecimento teórico.

O ataque desferido por Hume contra a metafísica clássica pretendia, como vimos, atingir num só golpe dois alvos distintos: de um lado, a perspectiva de uma fundação racional do conhecimento empírico; de outro, todo e qualquer “acesso” cognitivo ao suprasensível. Se, com respeito ao primeiro desses aspectos, Kant pretendeu desfazer o argumento humiano, mostrando a possibilidade de um conhecimento a priori contendo os princípios mais elevados de todo nosso conhecimento empírico (portanto servindo-lhe de fundamento), com respeito ao segundo não poderia fazer o mesmo, posto admitir, em consonância com Hume, a primazia do dado empírico como matéria única de nosso conhecimento, ou, o que dá no mesmo, a intuição sensível como única intuição pela qual podemos “receber” objetos. Ao situar os fundamentos a priori da própria natureza em nosso entendimento, Kant estava apenas garantindo a necessidade e a universalidade de suas leis, mas em nenhum momento pretendeu contestar o papel desempenhado pela sensibilidade como “fornecedora” dos objetos. Muito ao contrário, o ponto chave de sua estratégia está justamente em conceber o conhecimento como um encontro entre os dois pólos forma e matéria, sendo ambos condições igualmente necessárias de sua constituição, de tal modo que não pode existir, em nosso conhecimento, conceito sem intuição (pensamento sem conteúdo) ou intuição sem conceito:

Nossa natureza é de tal modo constituída que nossa intuição só pode ser sensível, i.e., apenas ela contém o modo pelo qual somos afetados pelos objetos. Por outro lado, a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível é o entendimento. Nenhuma destas propriedades tem primazia sobre a outra. Sem a sensibilidade nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum objeto seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceitos são cegas. (KrV, B 75)

Na seção anterior de nosso trabalho, procuramos analisar, a partir dessa bipartição essencial do conhecimento, o seu aspecto formal, cuidadosamente construído por Kant para escapar do argumento cético: o próprio sujeito transcendental como um conjunto de condições necessárias do objeto (i.e. da objetividade). Se, de um modo geral, ficou 52

estabelecido que sem sujeito não há objeto, é preciso agora levar em conta o “outro lado da moeda”, de modo a não tomar Kant por um idealista radical: não basta apenas o sujeito para que se constitua o objeto de conhecimento, sendo igualmente necessário o “ser dado” deste objeto na intuição. Embora não seja ainda o momento de discutir se a exterioridade do objeto é absoluta ou relativa (i.e. se ele existe independentemente do sujeito ou não),103 é preciso reconhecer que, seja qual for a resposta a esta questão, o sujeito, ao produzir o objeto, desenvolve uma atividade ao mesmo tempo ativa (subsumindo a intuição sob um conceito puro) e passiva (recebendo a intuição na sensibilidade) – não podendo uma ser cogitada sem a outra. Por outro lado, com respeito à exigibilidade do material da intuição como requisito para a constituição do objeto, não se trata mais de discutir abstratamente as condições formais de possibilidade do intuir em geral (i.e. espaço e tempo como formas da sensibilidade), mas sim de discutir o preenchimento efetivo das mesmas. Pode ter ficado devidamente estabelecido que não há como falar em objeto “fora” do espaço e do tempo, mas a mera consideração destas formas nos dá apenas a possibilidade da intuição em geral, e não a realidade (Realität) dos objetos efetivamente intuídos, que só pode ser suprida com um exemplo (in concreto) da experiência (a posteriori). Em outras palavras: se é o sujeito que define, formalmente, a possibilidade da experiência, somente esta última pode definir, materialmente, sua própria realidade, “mostrando-se” ao sujeito por meio da intuição.

Somente a experiência nos interessa aqui, pois, sem ela, seríamos levados, na tentativa de conhecer em sua natureza coisas que não poderiam jamais tornar-se objetos de uma experiência, a formar conceitos cujo significado não poderia jamais ser dado in concreto (em algum exemplo de uma experiência possível), e acerca de cuja natureza formaríamos conceitos a respeito de cuja realidade não poderíamos jamais decidir, i.e., decidir se se refeririam realmente a objetos ou se não passariam de coisas mentais. O conhecimento de algo que não pode ser objeto da experiência seria um conhecimento hiperfísico, e com algo assim nada temos que ver, mas sim com o conhecimento da natureza, cuja realidade pode ser confirmada pela experiência, ainda que ela seja possível a priori e anteceda toda experiência. (Prol §16, Ak.IV, 295-6.)

103

Cf. infra, 2,I. 53

Na verdade, Kant está querendo, nessa como em outras passagens, marcar claramente o posicionamento empirista que também está expresso na primeira frase da Introdução à Crítica da Razão Pura (“De que todo nosso conhecimento começa com a experiência, não há qualquer dúvida.”)104 A estruturação de todo um sistema de conhecimento a priori (i.e. independente da experiência), por meio da filosofia transcendental, poderia ensejar a impressão de que Kant está abrindo espaço para um conhecimento “fora do empírico” (supra-sensível), já que o sujeito teria a propriedade de produzir conhecimento por conta própria. No entanto, é completamente outra a lição crítica, e faz-se necessário, nessa medida, evitar tal impressão: estabelecida a possibilidade de juízos sintéticos a priori (e, portanto, resolvido o “problema universal da razão pura”), é preciso enfatizar a ligação necessária de tais juízos à experiência, fonte única de que emana sua realidade objetiva (ainda que sua função seja, em contrapartida, dotar esta mesma experiência de validade objetiva, i.e. validade necessária e universal). Ora, é preciso recordar que o caminho desenvolvido por Kant para chegar aos conceitos puros do entendimento teve justamente por ponto de partida a experiência, na medida em que esta, enquanto objeto de nosso conhecimento, demandava certos princípios universais e necessários que ela própria não podia fornecer. Concordando com Hume quanto à impossibilidade de buscar tais princípios nas coisas em si mesmas, dada nossa incapacidade de “acessá-las”, mas ao mesmo tempo supondo o conhecimento como um produto do sujeito a partir do material fornecido na sensibilidade (transformado de contingente, tal como expresso nos juízos de percepção, em necessário, nos juízos de experiência), bastou-lhe deduzir as condições de possibilidade de tal processo e situá-las no sujeito, no sentido de que não seria possível falar em conhecimento, ou sequer em experiência (como um sistema regido por leis necessárias e universais), não fossem tais condições (não seria possível falar em objeto, no sentido forte deste termo, não fossem as categorias do entendimento). Nesta exata medida, todo o sistema de conhecimento a priori possibilitado pela filosofia transcendental se constituiu por referência integral à 104 KrV, B 1. Isso significa que a experiência vem antes, cronologicamente, que qualquer outro conhecimento (pois desde que nascemos estamos “conhecendo” empiricamente o mundo), mas não deve alterar a “antecedência lógica” que o sujeito possui em relação à experiência. Segundo Rousset, a despeito de essa ser a frase inaugural da Crítica da Razão Pura, Kant nunca tematizou com insistência a importância e a independência do dado sensível por ter sua preocupação centrada na questão da garantia apriorística da

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experiência, tendo por objetivo garantir esta última (ou o nosso conhecimento da mesma), tal como dada a nós (fenomenicamente), em suas pretensões de necessidade e universalidade, e não recriá-la numa instância puramente subjetiva em que pudéssemos “inventar” nossos objetos a partir do nada. Afinal, Kant não pretendeu contornar o argumento cético para poder reencontrar-se com a metafísica dogmática de seus antecessores racionalistas, mas apenas resguardar a possibilidade de um conhecimento teórico (científico) seguro sem abandonar as saudáveis lições de modéstia que costumam estar presentes em todo ceticismo.105 Ainda que o conhecimento seja fruto de uma atividade construtiva do sujeito, resta mantida a exigência empírica de um elemento de realidade fornecido pela sensibilidade, o que implica descartar quaisquer outras formas de intuição cogitáveis (sobretudo a chamada intuição inteligível), e assim admitir certas limitações de nossa natureza.106 É fundamental, neste sentido, não extrapolar as pretensões da filosofia crítica, devendo-se antes reconhecer sua resignação ante a imponderabilidade do elemento definidor da realidade dos objetos, inscrita no caráter passivo da sensibilidade. Sem dúvida as categorias representam um nosso poder autônomo de pensar objetos, já que estão em nós a priori (i.e. independentemente da experiência), mas, do ponto de vista da construção do conhecimento, todo esse poder está restrito ao seu emprego no âmbito da experiência, i.e. à sua aplicação às intuições recebidas na sensibilidade:107

objetividade (ainda que o dado sensível seja um requisito desta objetividade tanto quanto os conceitos do entendimento). Cf. Rousset, B. Op.cit., 128-9. 105 Kant enfatiza sempre a validade do ceticismo enquanto “lição de modéstia” ou moderação (Mässigung). Veja-se, por exemplo, KrV, B 498. 106 Trata-se tão somente, nas palavras de Rousset, “de levar em consideração a natureza humana tal como ela é feita e constatar que a única intuição que nela podemos encontrar se refere à passividade dos sentidos: negálo seria negar a finitude essencial do homem” (Rousset, B. Op.cit., p. 84). 107 Segundo Kuno Fischer, o ponto que marca mais nitidamente a diferença entre a filosofia crítica e a filosofia dogmática é justamente esse “duplo sentido” (possibilitador e limitador) da ação das categorias: “...os conceitos podem aplicar-se a todos os fenômenos, pois todos estão no tempo. Mas eles podem aplicar-se apenas a fenômenos, pois além destes nada há no tempo. Ou os conceitos não conectam nada, ou conectam fenômenos, e apenas fenômenos. Eles tornam possível o conhecimento destes, mas apenas destes. Se chamarmos ao conhecimento de fenômenos, em sentido amplo, experiência, a função dos conceitos puros é fazer a experiência e nada mais. Eles não são produzidos pela experiência, mas produzem eles próprios a experiência; e não conseguem produzir qualquer outro conhecimento que não a experiência. Nesta proposição reside toda a essência da analítica transcendental, e em nenhum outro ponto a diferença entre o filósofo crítico e o filósofo dogmático fica tão nítida” (Fischer, K. A Commentary on Kant”s Critick of Pure Reason. In: Beck, L.W. (org.) The Philosophy of Immanuel Kant. A collection of eleven of the most important books on Kant”s philosophy reprinted in 14 volumes. Nova York, Londres: Garland, 1976, p.129). 55

...as categorias não nos fornecem, mesmo por meio da intuição pura, qualquer conhecimento das coisas, só fazendo-o por meio de sua aplicação possível à intuição empírica, i.e. elas só servem para tornar o conhecimento empírico possível. Isto porém se chama experiência. Logo, o único emprego legítimo das categorias para o conhecimento das coisas é a sua aplicação a objetos da experiência. (KrV, B 147-8)

Ao fazer essa advertência, e ao fazê-la com insistência, Kant está procurando estabelecer limites à sua própria filosofia, no sentido de que a garantia de uma faculdade de conhecer a priori os objetos da experiência não deva converter-se, aos olhos de leitores apressados, na ilusão de uma faculdade de conhecer quaisquer objetos que possam formarse em nossa mente. Faltando o critério da realidade, que somente a sensibilidade pode oferecer, seja nas ocasiões concretas em que é afetada por objetos da experiência, seja na possibilidade de sê-lo (i.e. numa experiência possível), nossos conceitos nada podem ser além de “meras formas de pensamento sem qualquer realidade objetiva”,108 e sua utilidade se revela nula. Ainda que nada impeça, é claro, nossa imaginação de fabricar seus objetos, e de entre eles estabelecer relações de todos os tipos,109 isso nada tem que ver com o conhecimento, já que este – insistamos uma vez mais – tem de resultar não apenas da atuação unilateral do sujeito, por meio dos conceitos puros do entendimento, mas de sua conjunção com o material que, fornecido à sensibilidade, determina a própria validade de tais conceitos: os objetos da experiência (i.e. os fenômenos). Outra impressão equivocada que se poderia formar, num sentido similar, a partir da lição crítica, e em relação à qual Kant tem também de levantar uma advertência, diz respeito justamente ao caráter fenomênico desses objetos, constitutivo de seu “ser para nós”: o fato de não podermos conhecer os objetos tais como são em si mesmos poderia estabelecer uma barreira intransponível entre o sujeito e o mundo, de tal modo que os nossos objetos, esses fenômenos, pudessem ser meras ilusões ou aparências e, neste sentido, pouco preferíveis aos objetos criados pela imaginação. Quanto a isso, todavia, Kant

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Prol, §30, Ak.IV, 312-3: “...os conceitos puros do entendimento... têm por única função o emprego que nosso entendimento faz deles com vistas à experiência; para além disto, eles não passam de conexões arbitrárias sem realidade objetiva,...” Cf. tb. KrV, B 148. 109 Prol, §35, Ak.IV, 317. 56

insiste em salientar o caráter “real” dos mesmos, determinado na mera passividade (exterioridade) de nossa intuição sensível, e opô-los a meras aparências:110

Quando digo que a intuição, tanto dos objetos externos como a auto-intuição do sujeito, representam, ambas, coisas no espaço e no tempo tal como estas afetam nossos sentidos, i.e. tal como aparecem, isto não quer dizer que esses objetos sejam mera aparência (bloßer Schein). Pois no fenômeno (Erscheinung) os objetos, e mesmo as características que a ele atribuímos, são vistos como algo realmente dado (etwas wirklich Gegebenes). Apenas na medida em que tais características dependem do modo de intuição do sujeito na relação com o objeto dado, deve este ser distinguido, como fenômeno, de si próprio como objeto. (KrV, B 69)

Desde o plano da sensibilidade, pois, fica claro o caráter bilateral do conhecimento: ainda que as formas subjetivas (espaço e tempo) sejam condicionantes de “como” o objeto deve aparecer-nos, há um objeto que é dado e aparece, e é este mesmo objeto que irá, no plano do entendimento, ser subsumido sob as categorias, condicionando-se então o “como” deve ele ser por nós conhecido (i.e. no registro de necessidade e universalidade que caracteriza o juízo de experiência). Como dissemos, fica devidamente marcado, deste modo, o lastro empirista da filosofia kantiana, e todo o sistema de nossos conceitos e princípios puros a priori, cujo objetivo é possibilitar a experiência, tem ao mesmo tempo sua validade condicionada à possibilidade desta última (i.e. à possibilidade de que a eles venham corresponder objetos na intuição sensível). É a esta lição, com efeito, que Kant costuma referir-se quando busca sintetizar os resultados obtidos pelo criticismo:

Todas as investigações precedentes nos levam portanto ao seguinte resultado: “Todos os princípios sintéticos a priori são apenas princípios da experiência possível”, e não podem referir-se jamais a coisas em si mesmas, mas apenas a fenômenos como objetos da experiência. Daí que tanto a matemática pura como a ciência pura da natureza só possam tratar de fenômenos, e só possam representar ou o que torna a experiência possível, ou o que,

110 É muito importante ter presente a distinção entre o fenômeno (Erscheinung) e a aparência ilusória (Schein), de modo a não tomar-se o fenômeno por mera ilusão ou qualquer ilusão por fenômeno.Cf. Rousset, B. Op.cit., pp. 301-2.

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derivado desses princípios, deva poder ser sempre representado numa experiência possível. (Prol, §30, Ak.IV, 313)111

Se, ao defender a possibilidade dos tais juízos sintéticos a priori, e com eles do caráter necessário e universal de nosso conhecimento por meio da experiência, Kant afastou-se de Hume, pretendendo “dissipar a dúvida” que este não fôra capaz de dissipar,112 ao defender o necessário atrelamento de tais princípios à experiência, mantendo-a como fonte única e primeira do material de nosso conhecimento, Kant manteve-se próximo de Hume e em posição contrária ao racionalismo dogmático. Afinal, o mandamento da limitação à experiência implica, antes de mais nada, a impossibilitação de qualquer conhecimento de objetos não dados na mesma, tais como Deus, liberdade e alma, e a metafísica que Kant pretendeu salvar, colocando-a no “caminho seguro da ciência”, resume-se – num primeiro momento113 – a esses conceitos e princípios a priori cuja referência única é o conhecimento empírico.

* * *

Na verdade, a própria solução formulada por Kant para a questão da objetividade teórica oferece, ao mesmo tempo, uma chave para compreender e explicar as construções dogmáticas da metafísica clássica. Afinal, se de fato possuímos em nosso entendimento conceitos puros independentes da experiência, é natural que tenhamos a tendência de estender a aplicação dos mesmos a tudo quanto seja de nosso interesse (eventualmente para muito além da experiência), de tal modo que o caráter apriorístico de nossas faculdades de conhecimento, absolutamente fundamental para a construção das ciências, constitui ao 111

Vai na mesma direção o parágrafo 34 dos mesmos Prolegômenos (dividindo agora as investigações em duas principais): “A primeira mostrou que os sentidos não fornecem in concreto os conceitos puros do entendimento, mas somente o esquema para seu uso, e que só na experiência encontramos o objeto que lhe é conforme (como produto do entendimento a partir de materiais da sensibilidade). A segunda mostrou que, a despeito da independência de nossos conceitos e princípios puros do entendimento em relação à experiência, e a despeito da extensão aparentemente maior de seu uso, eles não permitem no entanto que nada seja pensado fora do campo da experiência, pois tudo que eles fazem é determinar a simples forma lógica do juízo relativamente às intuições dadas...” (Prol, Ak.IV, 316) 112 Prol, §27, Ak.IV, 310. 113 Essa é, de acordo com o que nos diz Kant no prefácio à segunda edição da primeira Crítica, a primeira parte da metafísica, e a segunda parte (envolvendo os conceitos e propósitos morais da metafísica tradicional)

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mesmo tempo uma perigosa armadilha, responsável por fazer-nos cair, ao menor descuido, nas mais incríveis ilusões:

...os conceitos do entendimento parecem ter muito mais significado e conteúdo do que o de serem inteiramente determinados pelo mero uso empírico, e assim o entendimento, desapercebidamente, constrói ao lado do edifício da experiência um anexo muito mais espaçoso, e o enche de puros seres de pensamento, sem nunca dar-se conta de que, ainda que com conceitos em si mesmos corretos, ultrapassou os limites de seu uso. (Prol, §33, Ak.IV, 316)

Ora, a simples idéia de uma demarcação de limites, notadamente numa restrição do emprego do entendimento à experiência, traz em si a suposição da possibilidade de algo diferente da experiência – diferente tanto dos objetos nela intuídos ou passíveis de intuição como das formas do sujeito enquanto suas condições de possibilidade. Se, com efeito, a filosofia crítica teve desde o princípio de estabelecer a distinção entre fenômenos (a experiência que temos dos objetos) e coisas em si (os objetos considerados em si mesmos), como passo necessário ao salvamento da objetividade teórica, era inevitável que tal distinção viesse a ensejar, juntamente com a aprioridade dos conceitos do entendimento, a armadilha acima comentada (a coisa em si funcionando como isca e a categoria como anzol). Afinal, trata-se de uma distinção que dá a impressão, como vimos mostrando, de os fenômenos serem o “lado de cá” da parede representada pela sensibilidade, enquanto que do “lado de lá” estariam as coisas em si – impressão capaz de despertar, muito naturalmente, uma curiosidade nada pequena com relação ao “outro lado” (nas palavras do próprio Kant, uma “atração insidiosa”)114 e, por vezes, também a pretensão de poder conhecê-lo (utilizando os mesmos conceitos puros que são utilizados para o conhecimento do “lado de cá”). Para evitar que se forme em nosso entendimento uma tal pretensão, absolutamente irrealizável, tem Kant de deixar bastante claro o significado da limitação imposta pela subjetividade das formas do conhecimento (a “parede”) e, sobretudo, o significado desse “outro lado” quando representado na idéia de coisa em si ou númeno. Se, por um lado, a deverá ser resolvida, como veremos, num registro outro que não o do conhecimento teórico. Cf. KrV, B XXIV-XXX. 59

distinção operada na Estética Transcendental visava possibilitar a regulação dos objetos do conhecimento pelo sujeito (podendo ele legislar sobre os “seus” objetos), por outro ela sempre teve também uma função negativa, visando a afastar, em consonância com a crítica cética à metafísica dogmática, a tentativa de conhecer objetos não dados em intuição alguma (nem passíveis de sê-lo) a partir de conceitos ou idéias nascidos na pura subjetividade (algo como deduzir do conceito que temos de Deus sua existência e seus predicados enquanto objeto). É nessa medida que, sendo impossível conhecer qualquer coisa acerca dos objetos como sejam em si mesmos (como númenos) – pois isso não poderia dar-se em qualquer experiência possível e, portanto, estaria em desacordo com o uso apropriado dos conceitos do entendimento —, todo o sentido que pode ser adquirido por um tal conceito é um sentido problemático,115 e sua função é unicamente negativa ou limitativa:

...esse conceito é necessário para que a intuição sensível não se estenda às coisas em si, e portanto para limitar a validade objetiva do conhecimento sensível (pois as coisas que restam e que não podem ser alcançadas são chamadas noumena de modo a indicar que este conhecimento não estende sua aplicação a tudo que o entendimento pense). No fim das contas, porém, não podemos sequer compreender a possibilidade de tais noumena, e a região que está fora da esfera dos fenômenos é (para nós) vazia, i.e. temos um entendimento que se estende problematicamente para além dessa esfera, mas não a intuição, ou sequer o conceito de uma intuição possível, por meio da qual objetos pudessem ser-nos dados fora do campo da sensibilidade, e em relação à qual o entendimento pudesse ser usado assertoricamente. O conceito de um númeno é portanto um mero conceito limitativo (Grenzbegriff) visando limitar a presunção da sensibilidade, e assim de uso meramente negativo. (KrV, B 310)

O conceito de númeno é, desse modo, um elemento central na perspectiva geral de uma limitação do uso do entendimento à experiência, de tal modo que seja evitado seu prolongamento na direção das coisas em si ou de supostos “objetos” do supra-sensível, i.e., dos tantos “objetos” incognoscíveis que eram “conhecidos” pela metafísica clássica. Dada,

114

Cf. Prol, §33, Ak.IV, 315. Cf. KrV, B 310: “Chamo problemático a um conceito que não contém qualquer contradição e que está conectado a outros conhecimentos como uma limitação de dados conceitos, mas cuja realidade objetiva não pode ser conhecida de modo algum”. 115

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com efeito, a quase inevitabilidade da tentação de tentar “acessar” especulativamente esse “outro lado” do mundo fenomênico – algo naturalmente decorrente do caráter apriorístico dos conceitos do entendimento —, tem de ser uma das principais tarefas da crítica expor cuidadosamente os caminhos obscuros conducentes à ilusão dessa possibilidade, de modo a evitar os tantos erros daí decorrentes. Eis a motivação principal a que Kant atribui a inclusão, na Crítica da Razão Pura, de uma “Dialética”116 capaz de “expor a aparência ilusória (Schein) do juízo transcendental e impedir que ele nos iluda”.117 Uma vez que nossa abordagem da dialética deva dar-se mais à frente, quando já houver sido introduzido o conceito da razão como a faculdade em que propriamente construímos os tais “objetos” supra-sensíveis, importa por ora deixar suficientemente sublinhado o caráter negativo da filosofia kantiana, i.e., sua recusa, bastante fundamentada e em consonância com toda a construção positiva de uma objetividade a priori, de qualquer pretensão cognitiva (especulativa) em relação ao que esteja fora do mundo de nossa experiência possível (tanto o “em si” dos objetos sensíveis como os objetos que fossem puramente “inteligíveis”). Ainda que julgue natural, e mesmo “perdoável”, a tentação de fazê-lo,118 a filosofia kantiana torna-se assim um poderoso instrumento de crítica da tradição dogmática, já que Kant pode compreender e explicar os erros de seus antecessores com base na ausência de uma reflexão transcendental adequada acerca de nossas faculdades de conhecimento (como a que é realizada pela Crítica da Razão Pura).119 Assim, se Leibniz tivesse passado pelo criticismo, não teria incorrido no erro de “intelectualizar os fenômenos”, assim pretendendo conhecê-los em sua essência intrínseca (em si);120 se Descartes tivesse passado pelo criticismo, não teria incorrido no erro de tentar provar a

116

Há dois sentidos principais e combinados do termo “dialética” em Kant: de um lado, ela é caracterizada como o procedimento pelo qual as regras formais da lógica (geral ou transcendental) são equivocadamente aplicadas, ocasionando ilusões de verdade; de outro, ela é definida como a parte da lógica responsável por criticar e desfazer tais ilusões, corrigindo o rumo da razão (este último o sentido em que utilizamos o termo). Cf. KrV, B 82-8, 350-5. 117 KrV, B 354. 118 Prol, §33. 119 A reflexão transcendental consiste, em termos kantianos precisos, no “ato por meio do qual eu comparo minhas representações com a faculdade que as originou de modo a perceber se são, comparadas uma à outra, pertencentes ao entendimento puro ou à intuição sensível” (KrV, B 317). Trata-se, em outras palavras, de um ato por meio do qual separamos “o joio do trigo”, evitando assim as confusões que acarretam certos tipos de erros e ilusões. 120 Cf. KrV, B 327: “Em uma palavra: Leibniz intelectualizou os fenômenos, assim como Locke sensualizou os conceitos do entendimento...” 61

existência de Deus a partir do mero conceito em nossa mente;121 e assim por diante. Simplesmente porque,

se nós não fôssemos desconfiados em relação aos mais claros, abstratos e gerais princípios, se não fôssemos incitados por esperanças instigantes e ilusórias de escapar ao poder coativo de sua evidência, talvez pudéssemos ser poupados do exame trabalhoso de todos os argumentos dialéticos que a razão pura desenvolve em defesa de suas pretensões; pois teríamos de antemão a mais completa certeza de que tais pretensões, embora nobres, são absolutamente nulas, posto dizerem respeito a um conhecimento (Kundschaft) que nenhum homem jamais poderá atingir. (KrV, B 731)122

121 122

Cf. KrV, 620-30 (“Da impossibilidade de uma prova ontológica da existência de Deus”). Grifo nosso. 62

Capítulo 2. Limitações do conhecimento teórico e a passagem ao âmbito prático • Seção I: O problema da coisa em si. Na análise da solução elaborada por Kant para o problema do conhecimento, desenvolvida no capítulo precedente, em nenhum momento ficou perfeitamente decidido se o objeto que nos é dado na intuição sensível tem ou não uma existência autônoma em relação ao sujeito. A despeito da afirmação de que a matéria do conhecimento, por oposição à forma, não é fornecida pelo sujeito, e sim por ele passivamente recebida, mantém-se a possibilidade de supor dois níveis de subjetividade – um dito interno, correspondente ao papel ativo do sujeito, e outro dito externo, correspondente ao seu papel passivo – e, consequentemente, de supor a completa dependência do objeto (inclusive quanto ao seu existir) em relação ao sujeito, no sentido mais forte da afirmação de que “sem sujeito, não há objeto”. Em sentido inverso, porém, a exterioridade do objeto pode também ser interpretada como absoluta, e ele tomado como existindo independentemente do sujeito. Ambas as leituras, com efeito – a primeira fazendo de Kant um idealista, e a segunda, um realista —, bem como muitas outras “intermediárias”, contam com numerosos adeptos desde o tempo do aparecimento da obra kantiana.123 E se ela própria, que deveria servir de critério decisório, não parece arrefecer a dúvida, a melhor posição, muitas vezes, é deixar a questão de lado, sob pena de adentrar incontornáveis aporias. Em face, contudo, da importância do tema, sobretudo com vistas à relação entre os âmbitos teórico e prático, não poderia ser esse o caso do presente trabalho. É comum vermos sustentada, principalmente entre seus críticos, a tese de que Kant teria adotado mais firmemente a posição idealista na primeira edição da Crítica da Razão Pura para depois voltar atrás e, na segunda edição, introduzir trechos de cunho realista.124 123

Cf. Delbos, V. De Kant aux Post-Kantiens. Paris: Aubier, 1992, pp. 139 e ss. Schopenhauer foi talvez o primeiro a dar atenção a essa questão. Tendo interesse em fazer uma leitura idealista da filosofia kantiana, pretendeu mostrar a diferença entre as duas edições e afirmou sua preferência pela primeira em detrimento da segunda, alegando uma “volta atrás” de Kant. “Que ninguém pretenda conhecer a Crítica da Razão Pura, nem ter uma idéia clara da doutrina de Kant, se só leu a Crítica na segunda edição ou em uma das seguintes; isto é absolutamente impossível, pois se terá lido um texto truncado, corrompido e, numa certa medida, apócrifo” (Schopenhauer, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. In: _______. Sämtliche Werke in 5 Bände. Stuttgart, Fraknfurt am Main: Cotta-Insel, 1976, p. 587).

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Como de resto é comum, diga-se de passagem, ouvir que Kant voltou atrás em relação a suas posições epistemológicas mais “duras” para permitir flexibilizações conceituais como a própria admissão de um conhecimento prático.125 Mas ainda que, de fato, os trechos que ensejam a interpretação realista sejam mais escassos na primeira edição do que na segunda, e que se tenha dado apenas nesta última a introdução do célebre texto “Refutação do Idealismo”,126 isso não parece alterar o panorama de aparente ambigüidade criado pelas diversas passagens que, em ambas as edições, e também nos Prolegômenos, ora ensejam uma interpretação, ora outra, ora as duas ao mesmo tempo (conforme o ângulo que se adote). Por outro lado, não é de todo desarrazoado levar em conta a declaração de intenções feita pelo próprio Kant no prefácio à segunda edição, em que afirma não ter introduzido quaisquer mudanças com relação ao conteúdo da obra,127 e procurar examinar a questão em vista do espírito da obra. Ao mencionarmos a inserção de Kant no panorama histórico da filosofia moderna, vimos de que maneira ele se mantinha em consonância com algumas das principais tendências de seus antecessores, notadamente a do subjetivismo idealista, configurada na distinção entre fenômenos e coisas em si mesmas e na afirmação de que nosso conhecimento só diz respeito àqueles. Se, porém, tentamos examinar mais detidamente uma tal distinção, tomando-a como uma idéia a considerar, independentemente da filosofia em que esteja figurando, é de notar-se que traz em si uma dificuldade bastante peculiar: se todo nosso conhecimento é um conhecimento dos objetos tal como nos aparecem, como podemos sequer ter imaginado a possibilidade de serem eles de outro modo? Em princípio, 125

Quanto à noção de “conhecimento prático”, cf. Mattos, F.C. Conhecimento prático e metafísica especulativa em Kant. Dissertação de mestrado, 117 páginas. Depto.de Filosofia – FFLCH – USP, 2001, pp. 24 e ss. Cf. tb. Mattos, F.C. “Kant”s practical knowledge as a result of the connection between speculative metaphysics and rational faith.” In: Rohden, V., Terra, R., Almeida, G. e Ruffing, M. Recht und Frieden in der Philosophie Kants. Akten des X. Internationalen Kant-Kongresses. Berlim, Nova York: W. de Gruyter, 2008. 126 KrV, B 274-9. 127 KrV, B XXXVII. John P. Mahaffy, na introdução à tradução inglesa do livro clássico de Kuno Fischer, já por nós mencionado, cita essa passagem do prefácio à segunda edição e, ironizando a leitura de Schopenhauer, endossada por Fischer, afirma: “Contra essa declaração, que expressamente afirma que absolutamente nada mudou no sistema, e que convida o leitor a comparar as duas edições, dizem-nos que a segunda edição é uma obra mutilada, distorcida e depravada, fruto da fraqueza da idade avançada e ao medo da opinião pública em Kant!! A fraqueza da idade é mesmo uma boa desculpa para o homem que, depois disso, escreveu e publicou as Críticas do Juízo e da Razão Prática, e o tratado sobre a Religião nos Limites da Razão Pura! O medo dos homens era de fato muito forte no homem que estava à época preparando este último tratado, e que não alterou uma só palavra na sua refutação de toda teologia especulativa!” (Fischer, K. Op.cit., p.xli.) 64

trata-se de algo que não poderia ser-nos indicado pelos próprios objetos, pois neste caso eles mesmos é que já estariam incluindo este algo mais em sua aparição fenomênica, e este algo mais deixaria com isso de ser algo mais. Neste sentido, toda a questão, desde seu nascimento, parece não poder ser mais do que uma distinção cogitada pelo intelecto humano, sem qualquer contato efetivo com a realidade empírica, na qual dualidades desse tipo não costumam encontrar-se. Ora, no registro da solução kantiana essa dificuldade se traduz na impossibilidade de aplicar as categorias do entendimento aos objetos cogitados como coisas em si mesmas, pois, mesmo que não se trate de conhecer suas propriedades numênicas (i.e. como são em si mesmos), estar-se-ia afirmando sua existência numênica (i.e. que são em si mesmos, independentemente do sujeito), algo que só se poderia fazer com o emprego da categoria de modalidade “existência”.128 Tal emprego, porém, consistiria em aplicá-la não mais ao domínio fenomênico, em que os objetos só podem ser ditos existentes em sentido relativo (relativamente ao sujeito), mas a um domínio outro em que os objetos pudessem ser ditos existentes em sentido absoluto, um domínio em que o sujeito não mais teria o estatuto de condição necessária e em que nosso conhecimento perderia novamente sua objetividade, pois perderíamos a capacidade de fazer afirmações dotadas de necessidade e universalidade. Se, com efeito, a solução transcendental se baseava fundamentalmente neste ponto (o sujeito ser condição de possibilidade dos objetos), a extensão do uso de uma categoria ao “em si” dos objetos parece pôr tudo a perder e deve ser rejeitada. Se, porém, a solução transcendental depende ao mesmo tempo da distinção entre fenômenos e coisa em si, pois que somente assim pode o mundo ser considerado, enquanto fenômeno, regulado pelo sujeito, recoloca-se o problema da origem da própria idéia dessa distinção (de onde a tiramos?), e parecemos cair num círculo vicioso de difícil saída. Se só conhecemos os objetos como nos aparecem (condicionados a nós), como podemos saber que existem, ou mesmo que podem existir, independentemente de tal aparição (incondicionados)? Mas se não sabemos que existem ou podem existir independentemente de tal aparição, como podemos afirmar que os conhecemos apenas como aparecem para nós (estando aqui

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O mesmo problema se verifica nas vezes em que Kant afirma que o “em si” dos fenômenos “causa” sua aparição para nós. Neste caso, a categoria inadequadamente aplicada seria a de “causa”. Sendo o problema o mesmo, porém, e sendo a questão da existência mais importante (já que para causar, o “em si” teria antes de existir), preferimos enfocar a questão precipuamente por este ângulo. 65

pressuposto que possam existir de outro modo)? E note-se que o tratamento desse “outro lado” como uma possibilidade, indicando talvez uma terceira via, intermediária, para o tratamento da questão (tratando-se a coisa em si de uma mera possibilidade cogitável), não chega a dissipar a dificuldade, pois isso significaria tão somente trocar a categoria de existência pela categoria de possibilidade, cuja aplicação ao “em si” dos objetos também estaria em desacordo com as prescrições da doutrina transcendental. De qualquer modo, o que se caracteriza é esse círculo vicioso de difícil saída. Ainda que a aplicação de qualquer categoria ao supra-sensível (i.e. ao que está para além da experiência), seja ela de existência ou de possibilidade, pareça colidir frontalmente com os ensinamentos da Analítica Transcendental, torna-se muito difícil, sem isso, compreender a distinção que está na base de toda a doutrina (entre fenômeno e coisa em si). Neste ponto, podemos lembrar Jacobi e entender bem o significado de sua célebre frase: “se não admitimos a coisa em si, não podemos entrar no sistema kantiano; admiti-la, significa ter de sair do sistema”.129 Como talvez o próprio Kant nos dissesse, porém, esta questão é uma daquelas que a razão, ao mesmo tempo em que não pode responder, não pode igualmente deixar de lado, e, ainda que a circularidade do problema não pareça afastada, como dissemos, nas passagens em que ele próprio a aborda, vale confrontar algumas delas de modo a ver se não há alguma solução capaz de harmonizá-las. No parágrafo 32 dos Prolegômenos, por exemplo, Kant afirma:

De fato, se enxergamos, com tanto mais razão, os objetos dos sentidos como meros fenômenos, admitimos porém ao mesmo tempo que eles repousam sobre uma coisa em si mesma como seu fundamento, ainda que não saibamos como ela é constituída, e só tomemos conhecimento de seu fenômeno, i.e. do modo pelo qual nossos sentidos são afetados por esse algo desconhecido.O entendimento, portanto, ao mesmo tempo em que admite fenômenos, aceita também a existência de coisas em si mesmas, e podemos então dizer que a representação desses seres que subjazem aos fenômenos (portanto meros seres inteligíveis) é não apenas permitida, como ainda inevitável. (Prol, Ak.IV, 314-5)

Essa é, como se pode facilmente notar, uma das passagens em que Kant parece autorizar a interpretação realista, visto que, embora fazendo a ressalva de que não sabemos

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como o objeto, considerado enquanto coisa em si, é constituído (wie es an sich beschaffen sei), ele ao mesmo tempo afirma que é a aparência (fenômeno, Erscheinung) do objeto em si que conhecemos, na medida em que nossos sentidos são afetados por ele, ou “por esse algo desconhecido” (von diesen unbekannten Etwas). Isso quer dizer que o objeto é um só, mas o fato de o conhecermos de um determinado modo (como fenômeno) indica necessariamente sua existência em sentido forte, i.e. como algo que existe independentemente do sujeito e que é capaz de agir sobre a sensibilidade, afetando-a. Afinal, como nos diz Kant em outra parte, o contrário desta suposição “seria a proposição absurda de que a aparência (Erscheinung) existe sem algo para aparecer (ohne etwas, was da erscheint)”.130 Nessa medida, simplesmente não haveria como falar em fenômeno sem falar em coisa em si, e a afirmação da existência de um objeto como fenômeno contém em si, ao mesmo tempo, a afirmação de sua existência como coisa em si, tratando-se esta última tão somente do outro lado da mesma “moeda” ou, na imagem que utilizamos em nosso primeiro capítulo, do outro lado da “parede”. Estando essa distinção, contudo, na base de todo o sistema de nosso conhecimento teórico, já que a objetividade do mesmo repousa no fato de a totalidade da experiência possível poder estar submetida às condições formais subjetivas da sensibilidade e do entendimento, vemo-nos então levados à surpreendente conclusão de que a afirmação da realidade dos objetos e do mundo em sentido absoluto (sua existência autônoma em relação ao sujeito) está também na base do sistema, como elemento constitutivo da objetividade teórica. Afinal, se esta afirmação está contida na distinção fenômeno-coisa em si, que por seu turno é requisito para efetuar a submissão da experiência ao sujeito, a existência do mundo precede logicamente a ação cognitiva do sujeito, que passa a consistir então numa especie de “recorte” da realidade operado por nossas faculdades de conhecimento, e não na “construção” da mesma. Ainda que nossas faculdades de fato delimitem a objetividade de nosso conhecimento, na medida em que o constróem sobre o material efetivamente recebido pela sensibilidade, elas jamais poderiam ser determinantes da própria realidade, que, considerada em si mesma, deve preceder sua atuação. Ainda que esta conclusão pareça, em princípio, ir contra a essência da doutrina transcendental, que definia a objetividade em termos das categorias do entendimento e das formas da sensibilidade, e não 129

Citada, por exemplo, em Philonenko, A. Etudes Kantiennes. Paris: Vrin, 1982, p. 161.

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em termos da realidade considerada em sentido absoluto, trata-se de uma interpretação possível para a afirmação de que o “ser dado de fora” dos objetos é também um requisito dessa objetividade. A leitura de Bernard Rousset, já por nós mencionada, caminha numa tal direção131 e, reforçando a corrente dos leitores realistas de Kant, é vista como original justamente por enfatizar a ligação necessária entre a objetividade teórica e a afirmação da realidade da coisa em si, sendo esta elemento constitutivo daquela.132 Tendo em vista passagens como a que citamos, bem como a “Refutação do Idealismo” – introduzida por Kant na segunda edição da Crítica da Razão Pura para marcar as diferenças entre o seu idealismo transcendental e aqueles de Descartes e Berkeley, por ele definidos respectivamente como problemático e dogmático133 –, Rousset procura mostrar em que medida a afirmação da realidade dos objetos é crucial para todo o sistema da doutrina kantiana com respeito ao conhecimento teórico:

A Refutação do Idealismo tem precisamente por fim estabelecer que uma existência exterior é imediatamente dada na intuição empírica do sentido externo e que ela não se reduz à mera existência de representações em nós, no sentido interno, porque se trata de um sentido que é verdadeiramente externo e que é, ainda, uma passividade. O criticismo não mais se opõe ao idealismo empírico de Berkeley apenas por ser uma teoria da ciência que demonstra a possibilidade de uma necessidade objetiva graças ao a priori, contra a contingência subjetiva defendida pelos empiristas: ele se lhe opõe também como um verdadeiro realismo que mostra 130

KrV, B XXVII (prefácio à segunda edição). “...sendo um e o mesmo ser, o fenômeno e a coisa em si têm apenas uma única e mesma existência. Não é portanto necessário recorrer a uma demonstração especial, fundada, por exemplo, no princípio de causalidade, para provar que deve haver uma realidade produtora do fenômeno: nós sabemos desde logo que uma tal inferência não passaria de hipotética; basta formular em algumas palavras o conteúdo de uma evidência: seria “uma proposição absurda que um fenômeno existisse sem algo que aí aparecesse”; como o mostra a relação estabelecida nesse texto entre a Erscheinung e o etwas was da erscheint, trata-se de uma proposição analítica, fundada no mero princípio da não contradição: em razão da identidade ontológica dos termos, afirmar a existência do em si é pura e simplesmente constatar a existência do fenômeno empiricamente dado” (Rousset, B. Op.cit., p.171). 132 Idem, p. 161. Philonenko, comentando o livro de Rousset, reconhece a originalidade deste autor justamente no que diz respeito à afirmação do “em si” como elemento constitutivo da objetividade teórica. Cf. Philonenko, A. Etudes kantiennes, pp. 160-76. 133 Nesse trecho (KrV, B 274-279), Kant busca provar o seguinte teorema: “A mera, porém empiricamente determinada, consciência de minha própria existência prova a existência dos objetos no espaço fora de mim” (B 275). É interessante observar, no entanto, e o próprio Rousset o faz (op.cit., p. 153), que nesse trecho Kant não aborda diretamente a questão da coisa em si, afirmando apenas a exterioridade dos objetos sensíveis. 131

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que a matéria empírica contém imediatamente uma realidade e uma exterioridade efetivas distintas da interioridade da representação e da idealidade de suas formas. Isto significa que o realismo empírico é também um realismo material porque o idealismo transcendental é apenas um idealismo formal: em outras palavras, quando a consciência está em posse de um conteúdo preenchendo suas faculdades, ela está em relação direta com um termo exterior a ela mesma e independente de sua atividade. A doutrina kantiana da objetividade teórica é um realismo porque afirma que a presença de algo é para o sujeito uma relação ao ser.134

Rousset estabelece desse modo uma leitura realista que, no dizer de Philonenko, apresenta-se como uma “inovação ousada”,135 já que conflitante com visões predominantes em toda a tradição de comentadores e críticos de Kant, e talvez mais radical que a de outros intérpretes realistas.136 Se, retomando a dificuldade envolvida na perspectiva de aplicação da categoria de existência a algo não dado na experiência, sondamos a obra de Rousset a esse respeito, vemos que sua solução para o problema baseia-se mesmo na idéia de que, se os objetos são unos, constituindo o seu lado fenomênico aquele que nos aparece, e seu lado em si, aquele a que não temos acesso, a mera afirmação de sua existência fenomênica já implica sua existência não apenas fenomênica. Toda a dificuldade em torno da questão estaria na verdade na confusão entre dois sentidos distintos da coisa em si, que aparece ora como fonte real de nossa representação sensível, ou o ser que nos afeta (“em si imanente”), ora como algo que estaria para além de tudo que pode afetar-nos, i.e. para além de toda experiência possível (“em si transcendente”). Segundo Rousset, sempre que Kant se refere à total incognoscibilidade do “em si” ele está se referindo a este segundo tipo de modo a posicionar-se contra a tradição dogmática, enquanto que o primeiro tipo, embora também incognoscível quanto a suas propriedades, teria porém sua existência determinada em nossa sensibilidade, sendo a condição material dos objetos de nosso conhecimento.137 Philonenko, em seu comentário ao livro de Rousset, faz duas observações, entre outras, que podem contribuir para a presente discussão: de um lado, contesta a Entretanto, a leitura realista se afigura aos olhos de Rousset como a única capaz de permitir a compreensão da “Refutação”. 134 Rousset, B. Op.cit., p. 337-8. 135 Philonenko, A. Etudes kantiennes, p. 162. 136 Muitos defenderam a tese de que Kant afirmava a existência da coisa em si, mas nenhum chegou a fazer desta afirmação um elemento constitutivo da objetividade teórica, colocando-a assim ao nível de importância, do ponto de vista do conhecimento teórico, das categorias e das formas da sensibilidade.

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originalidade dessa distinção entre um “em si imanente” e um “em si transcendente”, já presente na antiga obra de Adickes;138 de outro, considera insuficiente o rol de citações kantianas “realistas” usadas por Rousset para sustentar sua tese principal (da coisa em si como elemento constitutivo da objetividade teórica), visto haver toda uma série de passagens “idealistas” que apontam em outro sentido.139 É evidente que, se Rousset pretendia estabelecer uma leitura radicalmente alternativa à tradição, o recurso a uma idéia já testada e explorada, como um argumento central, é em princípio pouco fortalecedor de sua posição. Mas é também evidente que isso não bastaria para desconsiderar a hipótese de leitura por ele proposta, sendo antes de maior importância considerar uma dessas outras passagens que, na obra kantiana, sugerem a leitura oposta – como, por exemplo, a seção intitulada “Idealismo Transcendental como Chave para a Solução da Dialética Cosmológica Transcendental”, em que Kant, retomando lições da Estética e da Analítica de modo a precisar o sentido do seu idealismo transcendental, faz as seguintes afirmações:

(...) todos os objetos de uma experiência para nós possível não passam de fenômenos, i.e. meras representações – as quais, além de como as representamos, como corpos extensos ou séries de mudanças, não possuem nenhuma existência auto-suficiente (an sich gegründete Existenz) fora do intelecto humano. (...) O espaço e o tempo,..., e com eles todos os fenômenos, não são em si mesmos coisas, mas apenas representações, e não podem existir fora de nosso intelecto. (...) trata-se aqui apenas de um fenômeno no espaço e no tempo, ambos dos quais não são determinações das coisas em si mesmas, mas sim da sensibilidade; portanto tudo o que seja dado no espaço e no tempo (fenômenos) não é em si algo (an sich Etwas), mas meras representações que, se não dadas em nós (na percepção), não podem ser encontradas em parte alguma. (KrV, B 518-22.)

Como se observa, esse trecho colide frontalmente com aquele extraído do parágrafo 32 dos Prolegômenos, já que aqui Kant afirma em termos claros que os objetos, à parte seu ser fenomênico (sua existência relativamente ao sujeito, determinada nas formas da sensibilidade), não possuem qualquer outro ser. É evidente que a referência ao “em si” tem aqui em vista nossa capacidade cognitiva, no sentido de que este outro ser nos é 137

Rousset, B. Op.cit., p. 167. Philonenko, A. Etudes kantiennes, p. 174-5. 139 Idem, p.171. 138

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absolutamente inacessível por meio de conhecimento, e não a existência mesma deste outro ser, no sentido de que Kant a estivesse negando em termos absolutos – o que seria ir inapelavelmente contra sua própria doutrina, dando vez ao “idealismo dogmático” de Berkeley (que afirma a impossibilidade absoluta de qualquer outro ser). De todo modo, mesmo em se tratando, como não poderia deixar de ser, do alcance de nosso conhecimento teórico, a afirmação de que este não pode ser estendido, em nenhuma hipótese, ao “em si” dos objetos ratifica a inadequação das categorias para a tarefa, afastando-se a possibilidade de uma leitura realista como a de Rousset (inclusive por tratar-se aqui do “em si imanente” e não do “em si transcendente”). A partir desse trecho, com efeito, a leitura idealista volta a afigurar-se mais adequada, devendo a distinção fenômeno-coisa em si ser vista como introduzida por nosso intelecto, e o conceito de coisa em si, ou númeno, como um conceito sem realidade objetiva, meramente problemático e limitativo. Para Rousset, essa interpretação da questão invalidaria a “Refutação do Idealismo”, pois, embora sem dúvida marcando a diferença de Kant em relação a Berkeley, não conseguiria dar conta de estabelecer a sua devida distância em relação a Descartes na medida em que estaria mantendo a exterioridade dos objetos sensíveis no nível da mera representação e, assim, deixando de garantir a existência dos mesmos.140 A idéia de uma “exterioridade interna”, porém, que Rousset considera insuficiente,141 apresenta uma proposta de diferenciação entre as filosofias de Kant e Descartes que, se não tão radical quanto a sua, parece ao menos compatibilizar-se melhor com as tantas passagens de cunho notadamente idealista (como a acima citada).142 De acordo com tal proposta, bem resumida por Jakyoung Han, é preciso supor três níveis de cogitação do ser do objeto: como respresentações sensíveis; como intuições externas; como algo de incerto (coisas em si). Se, para Kant, a interioridade (o in uns) pode ser repartida nos dois primeiros níveis, correspondendo o segundo à exterioridade (außer uns) que é por ele insistentemente 140

LDKO, pg. 142. Ao mesmo tempo, ele reconhece ser essa a chave principal das leituras idealistas. Cf. Rousset, B. Op.cit., pp. 43-7. 142 Lachièze-Rey é assumido por Rousset como principal interlocutor idealista. De acordo com Lachièze-Rey, embora o mundo exterior não possa ser “uma simples representação nascendo na espontaneidade do espírito”, também não pode ser uma coisa em si (op.cit., p. 208), de tal modo que a questão teria de ser resolvida nos quadros mesmos da linguagem idealista (idem, p. 222): tem de haver um nível da subjetividade em que o sujeito é ao mesmo tempo ativo e passivo, se auto-afetando e dando a si próprio o material a que irá aplicar as formas a priori: “...a crítica do idealismo conduz assim necessariamente à admissão de uma idealidade material, e não apenas a uma idealidade formal” (idem, p. 241). 141

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afirmada, sobretudo na “Refutação”, para Descartes inexistiria essa repartição, referindo-se o seu idealismo apenas ao primeiro e estendendo-se a dúvida cética a uma exterioridade que compreenderia indistintamente o segundo e o terceiro níveis.143 O ponto chave da diferença está na subjetividade do espaço e do tempo como formas necessárias de toda e qualquer intuição, de tal modo que a existência dos objetos no espaço (Existenz-in-Raum), “fora de nós” mas ainda “em nós”, não pode ser posta em dúvida, como em Descartes, mas também não pode levar à conclusão afirmativa da existência dos mesmos objetos em sentido absoluto (an sich gegründete Existenz), correspondente ao terceiro nível da cogitação do ser dos objetos. Do contrário, estar-se-ia estabelecendo uma identificação entre este e o segundo nível que, numa leitura realista das tantas afirmações da existência exterior dos objetos, implicaria, como aponta Lachièze-Rey, um inadmissível retorno ao realismo transcendental.144 Partindo também da impossibilidade de uma tal implicação, Lebrun caminha em sentido inverso ao de Rousset e procura mostrar, neste ponto em consonância com a tradição exegética, que a possibilidade de extensão das categorias ao “em si” dos objetos compromete toda a objetividade de nosso conhecimento, não podendo a coisa em si ser afirmada, positivamente, no âmbito do saber teórico, e muito menos ser apontada como elemento constitutivo do mesmo.145 Afinal, se a realidade considerada em si mesma (independentemente do sujeito) for tomada como dada, no mesmo nível em que são dados os objetos de nossa experiência (fenômenos), o caráter universal das formas subjetivas resta relativizado, e nosso conhecimento, de necessário, passa a contingente, dependendo para constituir-se do “acaso feliz” de nossa sensibilidade ser tocada pelas coisas em si mesmas, vindas de um “outro lado” cheio de mistérios:

(...) a admissão de sua existência (das coisas em si), como por detrás de uma cortina, introduziria em nosso conhecimento a priori uma insuportável fragilidade. Haveria 143

Han, J. Transzendentalphilosophie als Ontologie. Würzburg: Könighausen & Neumann, 1988, pp. 143-9. Segundo esse autor, “o que Kant quer dizer na Refutação do Idealismo é que o que nos é dado diretamente não é apenas o momento do ato, imanente à consciência, que está em nós do ponto de vista empírico, mas também o próprio objeto que é visto como exterior por que está fora de nós do ponto de vista empírico” (p. 147). 144 Lachièze-Rey, P. Op.cit., p. 212. 145 É preciso não esquecer, segundo ele, “que a “Existenz-in-Raume” não me dá o direito de decidir acerca da “Existenz”” (Lebrun, G. Kant et la fin de la métaphysique, p. 106). 72

alhures conteúdos que mereceriam o nome de objetos, embora permanecendo subtraídos à jurisdição estabelecida na Analítica. É verdade que nosso conhecimento a priori permaneceria garantido pela equação “objeto=fenômeno”, mas essa equação, ela mesma, seria apenas o efeito de um acaso feliz. Toda interpretação que represente o objeto-fenômeno como a parcela cognoscível da coisa em si deve desembocar, se for conseqüente, nesta conclusão.146

Do ponto de vista dessa leitura, portanto, a afirmação da existência da coisa em si revela-se não apenas impossível, em face da inaplicabilidade das categorias de existência ou de causalidade ao “em si” dos objetos, como ainda prejudicial ao sistema do conhecimento teórico salvaguardado pela doutrina transcendental. O conceito de coisa em si, ou númeno, só pode mesmo, de acordo com o ensinamento do próprio Kant em diversas passagens, ser tomado como problemático e limitativo, i.e. como uma idéia produzida por nosso intelecto com a finalidade de proibir o entendimento de tentar ir além de seus limites (algo a que a metafísica clássica o instigava). Mas o fato de assim o pensarmos, e de podermos mesmo fazê-lo, nada tem que ver com conhecimento, pois este, como insistentemente enfatizado por Kant, deve resultar da conjunção de um conceito com uma intuição – e não pode haver intuição para além das formas da sensibilidade. “Tal é, nos lembra Lebrun, a lectio purissima, a mais conforme à Erkenntnisstheorie da Crítica”.147 Ainda que a presente análise seja por demais sucinta para sugerir conclusões definitivas a respeito de uma questão tão polêmica, e ainda que os argumentos não mencionados, em defesa tanto das leituras aqui referidas como de muitas outras, constituam um campo vasto a explorar, devemos reconhecer, tendo em vista o delineamento geral das interpretações sugeridas e o pano de fundo da teoria kantiana do conhecimento, analisada no primeiro capítulo, que a última leitura apresentada, presente em Lebrun e boa parte da tradição, apresenta algumas vantagens em relação à leitura proposta por Rousset. Se, como nos mostrava Philonenko, este último não apresenta em defesa de sua tese uma quantidade suficiente de citações “realistas”, isso se revela ainda mais problemático quando notamos

146

Lebrun, G. Sobre Kant, p. 67. Idem, p. 61: “Eis aí o que o conceito de “númeno”, tal como exposto ao fim da Analítica, se encarrega de nos lembrar: que eu tenho, certamente, o direito, e mesmo o dever, de pensar alguma coisa fora do sensível, mas com a condição de não tomar jamais essa alguma coisa como um ultra-objeto (Gegenstand)”. 147

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que as muitas citações “idealistas”, em claro conflito com sua posição, não poderiam ser por ela abarcadas, já que afirmações como as que apresentamos acima não podem ser compatibilizadas com a afirmação de que a coisa em si é elemento constitutivo da objetividade teórica.148 Já a outra leitura teria um potencial notadamente maior de harmonização das diferentes passagens, sob a idéia de que qualquer referência ao “em si” (imanente ou transcendente) é necessariamente problemática: as passagens que parecem sugerir um posicionamento realista na verdade seriam passagens em que Kant está adotando o ponto de vista problemático para poder, a partir de idéias que, estas sim, estão unicamente em nós (no sentido mais forte deste in uns), considerar o âmbito teórico em sua necessária limitação, uma limitação que é, ao mesmo tempo, toda a sua universalidade (a conformação necessária dos objetos de experiência às formas subjetivas a priori). Se deparássemos, talvez, com a afirmação pura e simples de que a realidade está submetida às condições subjetivas de nossas faculdades de conhecimento, concluiríamos em princípio pelo absurdo da mesma. Mas Kant nos mostrou convincentemente que nosso conhecimento só pode ser dito objetivo, em sentido forte (i.e. necessário e universal), se ela for válida. Assim, se é para falar num conhecimento dotado de validade objetiva, precisamos no mínimo supô-la válida e, para que isso se torne logicamente razoável, delimitar a realidade que está submetida às nossas condições subjetivas como a realidade que conhecemos, acompanhando-se-lhe imediatamente a idéia de que é perfeitamente possível (e até provável, diríamos) não ser ela a realidade em sentido absoluto. Isso nunca significou, contudo, que essa realidade não seja nosso único ponto de partida (pois “todo nosso conhecimento começa na experiência”) e nosso único ponto de chegada (pois o único uso legítimo das categorias é sua aplicação à experiência) – em outras palavras, nossa única realidade. Isso significou apenas que, na medida em que precisávamos compreender de que maneira toda a realidade podia estar submetida a nossas faculdades, precisamos considerar a idéia de uma realidade não submetida a nossas faculdades, i.e. de uma realidade em si, por oposição àquela outra realidade, dita então fenomênica. A idéia de coisa em si, portanto, embora sem dúvida um elemento essencial de toda a filosofia crítica (já que 148

A saída de Rousset não pode ser outra senão a de atribuir a contradição das passagens a uma hesitação de Kant, e tentar mostrar que, ao longo da obra, Kant tendeu a superar esta hesitação na direção do realismo. Cf. Rousset, B. Op.cit., pp. 147-53. Não à toa, Rousset aceita de bom grado a tese da mudança de postura entre a primeira e a segunda edições da Crítica da Razão Pura (idem, ibidem). Explica-se também por aí a importância dada ao Opus Postumum, que Rousset interpreta a seu favor, desde o início do livro (idem, p.12) 74

possibilitadora da “Revolução Copernicana”), não poderia jamais transferir-se para o interior do sistema de nosso conhecimento teórico, visto resultar de uma reflexão a ele exterior: como idéia, ou conceito problemático, ela permite tanto compreender a objetividade de nosso conhecimento, como estabelecer sua circunscrição ao domínio da experiência (que é a única realidade para nós). Do ponto de vista de uma tal reflexão (de nosso pensar), seria evidentemente absurdo imaginar que essa “realidade para nós” não é “real”, mas do ponto de vista de nosso conhecimento empírico, que nunca “saiu” ele próprio da experiência, a mera pergunta “Esta realidade é real?” seria já um disparate, e com ela a distinção fenômeno-coisa em si. Em geral, na filosofia kantiana, a única saída para um círculo vicioso consiste em adotar diferentes pontos de vista (estratégia chave do criticismo).149 E a presente problemática, se adotamos a interpretação que recusa a afirmação da realidade da coisa em si, aceitando-a apenas como conceito problemático, não parece fugir à regra: do ponto de vista do conhecer, não existe outro ser além de nossa representação sensível; do ponto de vista do pensar, a suposição de que ao fenômeno corresponde um ser em si é mais razoável do que supô-lo destituído de ser. Este é, parece-nos, o sentido em que deve ser interpretado o célebre trecho, já mencionado, em que Kant considera absurda a idéia de uma aparência sem um algo para aparecer:

É provado na parte analítica da Crítica: que o espaço e o tempo são meras formas da intuição sensível, e portanto meras condições da existência das coisas como fenômenos; que ainda nós só possuímos conceitos do entendimento, e portanto elementos para o conhecimento das coisas, na medida em que a esses conceitos possa ser dada uma intuição correspondente; e que, portanto, nós não podemos ter qualquer conhecimento de um objeto como uma coisa em si mesma, mas apenas como objeto de uma intuição sensível, i.e. fenômeno. E de tudo isso se segue necessariamente a limitação de todo conhecimento especulativo possível da razão aos meros objetos da experiência. Ao mesmo tempo, porém – e isto não deve ser esquecido —, tem de ficar garantida a possibilidade de nós pensarmos esses mesmos objetos como coisas

149 Justamente por isso parece saudável evitar os rótulos, não podendo Kant ser dito nem realista nem idealista, e sim crítico. Esta posição é defendida, por exemplo, por Mahaffy, na já citada introdução ao comentário de Kuno Fischer (Fischer, K. Op.cit., p. xliii.).

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em si, ainda que não possamos conhecê-los. Do contrário se seguiria a proposição absurda de que a aparência existe sem algo para aparecer. (KrV, B XXVI)150

Ora, se a filosofia crítica pretendesse restringir toda nossa atividade intelectual ao intuir e sintetizar objetos, i.e. à atividade combinada da sensibilidade e do entendimento que constrói os objetos, ela estaria, ao mesmo tempo, impedindo-se a si própria de existir, posto não ser ela resultante de uma tal atividade, e sim de uma reflexão a partir da mesma. A restrição que se faz ao emprego das categorias, no sentido de que a elas deve sempre poder corresponder uma intuição sensível, diz respeito tão somente ao estabelecimento de um critério preciso de verificação, por assim dizer, da realidade dos objetos que construímos por meio de nossos conceitos: só podem ser ditos conhecidos objetos (e, portanto, conceitos) que sejam garantidamente reais. Mas isso não significa, nem nunca pretendeu significar, que nossa atividade especulativa se esgote aí, dado que o pensar autônomo (independente da experiência) é uma nossa atividade tão natural quanto o conhecer empírico; apenas não se lhe poderá atribuir o estatuto de conhecimento, na medida em que seus conceitos não sejam reais (i.e. que a eles não possa corresponder uma intuição sensível). E é este, precisamente, o caso do conceito de “em si”: fruto natural de nossa reflexão sobre o conhecimento empírico e o todo da experiência, não pode contudo jamais ser dito real, visto não poder ser dado nesta mesma experiência. A ausência de uma tal reflexão, e de um tal conceito, implicaria uma hipóstase da realidade a que nossos sentidos nos dão acesso, no sentido de que tenderíamos a tomá-la como absoluta. Evitar esta hipóstase é talvez, para Kant, uma preocupação ainda maior do que a de evitar a pretensão de acessar cognitivamente o supra-sensível, pois, ao contrário desta última, já bastante enfraquecida pelo argumento cético, aquela é bem menos perceptível, e suas conseqüências podem ser ainda mais nefastas (já que o homem teria de enxergar-se, em todos os sentidos, como inteiramente submetido à necessidade natural).151 Ao incrível fortalecimento do conhecimento teórico, garantido como necessário e universal pela “Analítica” (ele vale necessariamente para toda experiência possível), deve então suceder-se o seu “enfraquecimento” por meio do mesmo movimento reflexivo e do mesmo 150

Grifo nosso.

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conceito que o haviam fortalecido: a noção de “em si”, que havia garantido seu reinado sobre a totalidade do domínio da experiência, deve agora impedir a extensão desse reinado ao domínio do absoluto, do incondicionado. A imagem ideal, para ilustrar o domínio do conhecimento teórico (compreendendo tanto os dados sensíveis como nossas formas a priori da sensibilidade e do entendimento), a partir dos resultados da primeira parte da Crítica, é a imagem de uma ilha: uma ilha, é verdade, em que tudo está muito bem organizado, mas que é ao mesmo tempo circundada, incomodamente, por um oceano de interrogações, inevitáveis e perigosas interrogações:

Nós não apenas atravessamos a região do entendimento puro, investigando cuidadosamente cada parte dela, como também aferimos sua extensão e atribuímos a cada coisa seu devido lugar. Esta região é no entanto uma ilha, cercada por fronteiras invariáveis demarcadas pela própria natureza. É a terra da verdade (uma palavra instigante), circundada por um vasto e tormentoso oceano que é o verdadeiro lugar da ilusão (Sitze des Scheins), onde névoas e blocos de gelo que se derretem facilmente forjam a aparência de novas terras, e, iludindo com esperanças vãs o navegador, ansioso por descobertas, conduzem-no a aventuras perigosas que ele nunca abandona, mas que ao mesmo tempo não é capaz de concluir. (KrV, B 294.)

É evidente que, a partir apenas dos dados de nossos sentidos (sensibilidade) e da faculdade que nos permite organizá-los sob a forma de objetos (o entendimento), a ilha é tudo, e não há oceano. Tais faculdades, porém, não são as únicas que possuímos. Nós possuímos ainda uma faculdade que nos permite operar inferências mediatas, e não apenas imediatas; uma faculdade que nos permite pensar “por conta própria”, enquanto o pensar do entendimento resume-se a sintetizar informações dos sentidos (se vemos um cachorro, pensamos “isto é um cachorro”);152 uma faculdade que estabelece um ponto de vista

151

Como veremos, a noção kantiana de liberdade se constitui justamente por oposição à “determinação cega” pelas leis da natureza, e é disso que decorre a imensa importância de limitar o conhecimento teórico (da experiência) ao meramente fenomênico, evitando-se sua hipóstase. 152 É evidente que a questão é bem mais complexa. As conclusões mediatas não implicam por si sós o abandono do terreno da experiência. Muito ao contrário, a grande maioria delas, fruto do uso lógico da razão que complementa o do entendimento na construção do conhecimento científico, tem ainda referência exclusiva ao empírico. No entanto, o fato de possuirmos uma tal faculdade é indicativo de que podemos distanciar-nos reflexivamente da experiência (uso puro da razão) e, ainda que operando com conceitos desprovidos de realidade objetiva, construir uma filosofia que permite pensar por um outro ângulo a própria experiência. (cf. KrV, B 355-66.) A simplificação da questão se justifica, na presente passagem do texto, pelo 77

reflexivo que não está adstrito ao domínio da experiência e que, ainda que por outro lado adstrito à nossa mais completa subjetividade (o sentido mais forte do in uns), permite-nos “enxergar”, em torno do círculo limitado da experiência, todo um oceano aberto à nossa exploração. Tal faculdade é a razão, e é apenas o seu ponto de vista que nos permite, assim, “enxergar” a realidade que conhecemos (a ilha) “ao lado” da realidade em si (o oceano, ou, melhor dizendo, o conjunto da totalidade a englobar ilha e oceano). E, embora feita a ressalva da subjetividade deste outro ponto de vista (por oposição à objetividade do ponto de vista do entendimento, que só enxerga a ilha), e portanto da impossibilidade de vir ele a constituir conhecimento (em sentido forte), a navegação, oceano afora, pode – e deve – ser empreendida. Para tal, porém, a razão (o navegador), na impossibilidade de sondar algo “fora” de si, deve sondar-se a si própria, e encontrar em si a bússola que deverá guiá-la por essas águas tormentosas, de modo a não incorrer nos mesmos erros que levaram ao naufrágio antigos e experientes navegadores.

interesse em considerar tão somente a possibilidade deste “sair reflexivo” dos limites da experiência que estabelece a autonomia de nosso pensar, a ser melhor examinada nas seções seguintes. 78

• Seção II: A razão humana e a coisa em si: uma questão de liberdade. Como dito anteriormente, a despeito de a lição da Analítica ser suficientemente clara no sentido de recusar a nosso conhecimento qualquer acesso ao supra-sensível, a tentação que sentimos com relação a essa possibilidade é tão forte que, muitas vezes, preferimos ignorar as advertências e, qual o navegador ansioso, lançamo-nos ao mar em busca de novas terras. Ainda que não encontrando de fato qualquer nova terra, posto ser impossível, deparamos com ilusões de tal modo convincentes que acreditamos ter encontrado diversos novos continentes, muitos deles povoados, e retornamos à ilha contando histórias fantásticas e tentando convencer a todos de sua veracidade (muitos dos quais terminam mesmo por convencer-se). Justamente por serem tão fortes e inevitáveis todas essas ilusões – tão inevitáveis quanto ver o nível do mar mais alto no horizonte ou a lua maior ao nascer153 —, deve a Crítica, indo além dos meros avisos de perigo da “Analítica”, conter uma “Dialética” responsável por destrinchar, uma a uma, as principais de nossas ilusões – a começar pela primeira de todas elas, que é tomar o próprio oceano por real ou, o que dá no mesmo, o supra-sensível por existente. Afinal, como há pouco dissemos, a própria distinção fenômeno-coisa em si (ilha-oceano) nasceu de uma reflexão de nossa razão que, embora tendo por fim resguardar a validade objetiva do conhecimento teórico e não constituindo ainda, ela própria, qualquer penetração no “em si”, permitiu-nos adotar uma perspectiva ou ponto de vista mais amplo do que aquele do mero entendimento, imanente ao mundo fenomênico. O ponto de vista do entendimento, com efeito, nascido da aplicação de seus conceitos à intuição sensível por meio do juízo, é (se correta a aplicação) o próprio ponto de vista de nosso conhecimento teórico, que, em sua instância mais elementar, nada mais é do que uma variedade de “cenas” (aspectos) da realidade – a única que nos é sugerida por nossos sentidos. Se, porém, a razão a ele sobrepõe um outro ponto de vista, capaz de juntar todas essas “cenas” num só bloco (então denominado realidade sensível) e supor, para além dele ou não (mas englobando-o), um bloco de realidade que pudesse ser dito absoluto, é preciso compreender como a razão chegou a isso, distanciando-se tão incrivelmente do que nos mostravam nossos sentidos. Devemos ter em conta, para tal, que a razão, antes de ser a 153

KrV, B 354. 79

faculdade que nos leva a assim transcender o limitado ponto de vista do entendimento (uso transcendental da razão), é uma faculdade que participa no processo de organização deste último na medida em que, por meio de raciocínios e conclusões mediatas (seu uso lógico), permite agrupar aquelas “cenas” da realidade, fornecidas pela ação conjunta de entendimento e sensibilidade, em uma quantidade menor de “cenas”, sempre mais abrangentes e completas. Ou, em termos propriamente kantianos, é ela que permite “submeter a grande variedade de conhecimentos do entendimento ao menor número possível de princípios (condições gerais), e assim produzir a maior unidade possível dos mesmos”.154 Kant identifica na razão, portanto, um procedimento peculiar por meio do qual “organizamos” o

conjunto

variado de nossos conhecimentos (fornecidos pelo

entendimento), tendendo assim a produzir um sistema harmônico. Se pensarmos, por exemplo, na classificação, que é um procedimento fundamental do método científico, temos um exemplo claro desse procedimento geral, descrito por Kant nos termos de uma redução da variedade de conhecimentos ao menor número de princípios.155 Afinal, o que nos permite, por exemplo, organizar sob o conceito “anfíbio” uma diversidade de conceitos como “sapo”, “rã”, “salamandra” etc., é um princípio de unidade por meio do qual agrupamos diferentes espécies sob gêneros, a partir de características que lhes são comuns (tendo em vista também outras espécies e outros gêneros que, juntamente com estes, comporão o sistema organizado de todos os seres vivos divididos de acordo com características em comum). É evidente que as diferentes espécies e gêneros, bem como suas características, estão dados na natureza “fora de nós”, mas elas constituem tão somente o material com que construímos a ciência natural, operando-se toda a sua “organização”, desde a simples partição em objetos unos até a classificação sob gêneros cada vez menos numerosos, por meio de princípios formais subjetivos que vão desde os “meros” conceitos do entendimento até os princípios mais elevados da razão.

154

KrV, B 361. Como nos propõe Lebrun, a idéia de unidade (necessária), que demarca a noção kantiana de sistema, fica mais clara justamente no caso da classificação como método essencial das ciências naturais: “Compreenderemos melhor em que consiste exatamente a suposição da unidade necessária se nos reportarmos à classificação em gêneros e espécies de quaisquer formas naturais, independentemente de serem essas classes “naturais” ou “artificiais”. O importante é que tenhamos a certeza de sempre poder formá-las, e que não nos espante o fato de a natureza poder ser articulada num sistema.” (Fin de la Métaph., pg.265.) 155

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Diferentemente dos conceitos do entendimento, porém, os princípios da razão, embora devendo também referir-se à experiência para ter validade objetiva do ponto de vista do conhecimento teórico,156 são princípios que, justamente por serem princípios em sentido forte (e não “meros conceitos”), não podem ser “preenchidos” por material empírico, e portanto não têm um lastro direto na experiência.157 Enquanto as categorias, em conexão direta e necessária com o dado sensível, têm por função levar-nos a entender (verstehen) as percepções, os princípios da razão, ou os conceitos a partir deles formados, têm por função levar-nos a compreendê-las (begreifen),158 na medida em que são eles que nos permitem formar conclusões mediatas a partir da experiência (por meio de raciocínios silogísticos). Se este último processo, no entanto, embora efetuado sobre o material da experiência, nos conduz a um grau de organização (ou sistematização) desse material que por sua vez já transcende a esfera da mesma, percebemos em nossa razão uma tendência natural a liberar-se dos constrangimentos que a manteriam, junto com o entendimento, num ponto de vista absolutamente circunscrito aos dados fornecidos pelos sentidos (e então sem qualquer capacidade de construir uma ciência). Na verdade, como dizíamos, a própria noção de um todo da experiência possível, supostamente necessária à formulação de uma visão sistemática da natureza, representa um passo da razão no sentido de transcender a experiência:

O uso empírico, ao qual a razão limita o entendimento puro, não preenche inteiramente sua própria função. Cada experiência particular é apenas uma parte da esfera total de seu domínio, mas o todo absoluto de toda experiência possível não é ele próprio uma experiência, e ainda assim é um problema necessário para a razão, demandando, para sua mera representação, conceitos outros que não aqueles do entendimento. Enquanto o uso destes últimos é meramente imanente, i.e. eles se aplicam à experiência na medida apenas em que ela possa ser dada, os conceitos da razão se aplicam à integralidade (i.e. à unidade coletiva) de toda experiência possível, assim ultrapassando qualquer experiência dada e tornando-se transcendentes. (Prol, Ak.IV, 328)

156

KrV, B 359. Cf. KrV, B 356-359. 158 KrV, B 367. 157

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O que Kant tenta mostrar, assim, é que o procedimento básico da razão, embora começando com os conhecimentos empíricos fornecidos pelo entendimento, a conduz naturalmente a criar conceitos que já não estão na experiência, mas são necessários à sua atividade de reflexão sobre esta mesma experiência. O princípio essencial de tal procedimento e, portanto, de todo uso especulativo da razão, é o princípio de “buscar o incondicionado para os conhecimentos condicionados do entendimento, de modo a completar a sua unidade”.159 Se quisermos entender mais precisamente o sentido disso, pensemos no seguinte silogismo: “Todos os professores são mortais”; “João é professor”; “Logo, João é mortal”. Trata-se de um silogismo perfeito, tanto do ponto de vista material (os conhecimentos empíricos contidos nas premissas, supondo-se um certo João professor), como do ponto de vista formal (a conclusão obtida pela razão). Se, então, a razão se perguntasse pela condição de sua conclusão (que é um conhecimento legítimo), teríamos a seguinte questão: “Por que João é mortal?” E a resposta seria: “Porque ele é professor”. Se ela então se perguntasse pela condição da condição, a questão seria: “Por que todos os professores são mortais?”, e dar-se-ia a remissão a outro silogismo (supondo-se este devidamente formado), chegando-se à resposta: “Porque todos os professores são homens”. Se novamente se perquerisse a condição, dando-se continuidade ao que Kant chama de prossilogismo, teríamos a pergunta: “Por que todos os homens são mortais?”, e a resposta provável: “Porque todos os homens são seres vivos”. Ainda que à questão seguinte, “Por que todos os seres vivos são mortais?”, pareça-nos faltar resposta, a razão, que para desenvolver a regressão comentada não precisava dos conhecimentos empíricos envolvidos (apenas do procedimento lógico), tenderia em princípio a continuar o movimento, supondo sempre alguma condição mais elevada (“Porque todo A é B”) como condição da condição anterior.160 No entanto, isso não conduziria jamais à completude da unidade do conhecimento, e a própria idéia de uma totalidade da experiência possível jamais poderia formar-se (a ilha se estenderia ao infinito, sendo suas margens impensáveis). A razão deve então, ultrapassando seu uso meramente lógico, ter por princípio que, sendo dado um conhecimento condicionado (que é o caso de todos os conhecimentos do entendimento, visto que todos sempre admitem “porquês” não respondidos), é também dada (ainda que não na 159

KrV, B 364.

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experiência) toda a série de suas condições – a qual só pode ser incondicionada (do contrário ela própria demandaria condições mais elevadas).161 Neste sentido, o incondicionado aparece como uma espécie de requisito para que o próprio uso lógico da razão (e com ele a compreensão racional das percepções) faça sentido, visto que, sem ele, todos os “porquês” que fazemos só teriam respostas parciais (e a ausência de resposta ao “primeiro” porquê contaminaria todo o resto dos porquês). Mas o fato de ser, como conceito, um requisito para nossa razão não pode fazer do incondicionado um objeto existente no mundo sensível, visto não poder ser dado numa experiência concreta (pensando apenas na experiência, qual seria a condição do enunciado “Todos os seres vivos são mortais”?). E isso nos conduziria de volta a um círculo vicioso que é, na verdade, o mesmo a que chegamos na seção anterior, transposto para outros termos: se não houver incondicionado, o sentido do mundo sensível (i.e. de nosso conhecimento do mundo sensível) se desfaz; mas, ao mesmo tempo, o único conhecimento de que somos capazes (o empírico) não autoriza a admissão do incondicionado como realmente existente. Ora, a saída, neste ponto, é já bastante mais clara do que antes (quando colocado o problema nos termos da coisa em si), e as controvérsias parecem ser menores tendo-se em vista o texto kantiano: o incondicionado só pode mesmo ser uma idéia (conceito) da razão,162 introduzida por esta nossa faculdade, em consonância com o procedimento que lhe é peculiar, para completar o “sentido” de nosso conhecimento, mantido incompleto na simples esfera da conjunção sensibilidade-entendimento:

O próprio termo ‘conceito da razão’, por si só, indica já que ele não se deixa confinar nos limites da experiência, visto dizer respeito a um conhecimento em que cada conhecimento empírico (eventualmente o todo da experiência possível ou sua síntese empírica) é apenas 160

Cf. KrV, B 359-66; Log, Ak.IX, 120-31. KrV, B 364. Como explica Kant, a razão teve aí de abandonar seu uso meramente lógico (formal) porque tal princípio já não é um mero juízo analítico (ou um juízo obtido por inferências analíticas), mas sim um juízo sintético a priori (que, diferentemente daqueles do entendimento, não guarda uma relação direta com a experiência). A esse uso, por meio do qual ela cria conceitos, Kant chama uso real ou transcendental. 162 Kant admite ter recorrido à tradição, mais especificamente a Platão, para escolher o termo “idéia” para designar os conceitos da razão (KrV, B 370-3) – mesmo discordando, como lembra Ricardo Terra, da “‘dedução mística’ das idéias realizada por Platão, quando este as pensa como emanação da razão suprema, que nos homens estão obscurecidas, sendo clarificadas de novo pela experiência” (Terra, R. A Política Tensa. Idéia e Realidade na Filosofia da História de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 16). Assim como Kant buscara em Aristóteles o termo “categoria”, a despeito de discordar do método do filósofo grego, ele busca agora em Platão esse outro conceito chave de sua filosofia. 161

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uma parte; um conhecimento que não pode jamais ser atingido por uma experiência real, embora ao mesmo tempo a ela pertença. (...) Se eles (conceitos da razão) contêm o incondicionado, eles se relacionam a algo a que toda experiência está subordinada, mas que ao mesmo tempo não pode tornar-se jamais um objeto da experiência; algo a que a razão tende em todas suas conclusões a partir da experiência, e que lhe serve de padrão para medir o grau do uso empírico de seus conceitos, mas que não é nunca ele próprio um membro da síntese empírica. (KrV, B 367.)

O incondicionado se define, portanto, como uma espécie de “condição incondicionada” (i.e. absoluta) da experiência e, embora não se encontre na própria experiência, pode ser validamente usado por nossa razão na medida em que tenha por fim completar o sentido de nosso conhecimento. Esta sua validação, porém, não deve ser confundida nem com a validação dos simples conceitos empíricos (o conceito de cachorro, por exemplo, é validado pela existência de cachorros no mundo sensível, ao passo que o de unicórnio não será nunca validado), nem com a validação dos conceitos do entendimento, que se relacionam imediatamente com a intuição (ainda que para esta validação tenha de estar presente o esquema transcendental): trata-se tão somente de uma justificação legítima para sua utilização, sem que se pretenda torná-lo real. Todo o movimento desenvolvido pela Dialética, com efeito, tem por fim, de um lado, essa justificação, e, de outro, a prevenção desse erro, que é a ilusão transcendental por excelência (como dizíamos, tomar por real um conceito que é meramente racional; tomar por real o oceano, quando toda a realidade está na ilha).163 A razão pode (e mesmo deve) utilizar o conceito de incondicionado (que é, afinal, o conceito de coisa em si em sua acepção lógica) como chave para a sistematização de nosso conhecimento, mas não deve nunca tomá-lo por mais do que um mero conceito (ou uma mera idéia).

***

Na verdade, para não simplificar demais a questão, é preciso ter em conta a tripartição do procedimento lógico da razão em três tipos de raciocínios silogísticos: o categórico, em que a razão se pergunta pela condição “como sujeito da inerência das

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características”; o hipotético, em que se pergunta pela condição “como razão da dependência de um conhecimento em relação a outro”; e, finalmente, o disjuntivo, em que se pergunta pela condição “como união das partes em um todo (divisão lógica)”.164 O exemplo que utilizamos acima, na tentativa de elucidar o procedimento da razão em geral (na busca continuada de condições), inclui-se no primeiro tipo, que engloba todos os silogismos do tipo “A é B; C é A; logo, C é B”. Trata-se sempre de encontrar a condição para o predicado que atribuímos a um dado sujeito no fato de este sujeito pertencer a um determinado gênero, e a condição que por sua vez justifica a atribuição do mesmo predicado a este gênero deve ser buscada num gênero mais geral, e assim por diante – até chegar-se ao gênero mais alto que, então, deve ser tido por incondicionado (não podendo ele próprio ser predicado de nada). Quanto ao segundo tipo, trata-se de silogismos em que o que está em jogo é a ligação causal entre dois conhecimentos, sendo a premissa maior (regra universal) do tipo “Se A, então B”, a outra premissa “A”, e a conclusão “B”.165 Neste caso, a condição buscada é o conhecimento de que depende o conhecimento condicionado que estivermos considerando: se nos perguntamos “Por que B?”, a resposta é “Porque A”; se então nos perguntamos “Por que A?”, devemos consultar algum silogismo anterior (sempre passível de ser suposto) e obter alguma resposta do tipo “Porque Z”. E assim por diante até que cheguemos a “algo” que não depende de nenhum outro “algo” para existir e que, portanto, pode ser dito incondicionado (i.e. alguma “causa primeira” do ponto de vista lógico). Já o terceiro tipo (disjuntivo) tem por maior (regra universal) uma proposição disjuntiva, i.e., uma proposição do tipo “A ou B”, por menor “A”, e por conclusão “não B” (ou por menor “não A” e por conclusão “B”).166 Ora, a proposição disjuntiva supõe no mínimo dois conhecimentos que são reciprocamente excludentes, podendo ser transformada numa hipotética: “se A, então não B” (porém sem o sentido de dependência “causal” que 163

KrV, B 354. Log, Ak.IX, 122. Note-se que são os juízos de relação, correspondentes às categorias de relação, respectivamente “substância”, “causa” e “reciprocidade”. (KrV, B 379) 165 Log, Ak.IX, 129. 166 Log, Ak.IX, 130. De acordo com a lição de Kant, o silogismo disjuntivo pode ter por referência mais de dois conhecimentos (membros da disjunção), tornando-se um “polissilogismo”, caso em que a conclusão afirmativa tem de resultar da negação de todos os outros membros, enquanto que a negativa resulta da afirmação de qualquer deles. Trata-se, porém, de uma minúcia que pode por ora ser deixada de lado, já que, do ponto de vista da busca do incondicionado, o problema é um só (um todo que, por sua vez, não seja parte de outro todo). 164

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têm os juízos hipotéticos). Buscar pela condição, neste caso, significaria buscar, para um conhecimento afirmado, a negação de seu excludente, e, inversamente, para um conhecimento negado a afirmação de seu excludente – sendo sempre de supor-se que ambos são as únicas partes de um todo maior que eles. Assim, se A e B são os únicos elementos de um conjunto @, podemos, com relação a este conjunto, responder à pergunta “Por que B?” com a resposta “Porque “não A”. Mas o conjunto @, como “união das partes em um todo”, é já por sua vez condição dessa condição, e também ele, é de supor-se, poderia, se parte de um outro conjunto (&) juntamente com $, ter sua condição na negação de $ e no conjunto &. E este conjunto, por seu turno, nos faria ascender a um conjunto maior, e assim por diante, até que chegássemos a um conjunto em relação ao qual não haveria excludentes, o que equivale a dizer que acima dele não haveria outro conjunto, i.e., que ele seria um “todo incondicionado”. Podemos notar, portanto, a partir da consideração dos três tipos de silogismo que são enxergados por Kant como as três formas que pode assumir o procedimento elementar da razão (o raciocinar), que a busca do incondicionado, caracterizada em nossa seção anterior em sua generalidade, na verdade se dá em três “planos” distintos: o plano da “síntese categórica num sujeito”, em que o incondicionado é o “gênero” capaz de conter a totalidade dos predicados (e que, por sua vez, não pode ser predicado de nada); o plano da “síntese hipotética dos membros de uma série”, em que o incondicionado é a “pressuposição que não supõe nada mais alto que ela”; e o plano da “síntese disjuntiva das partes em um sistema”, em que o incondicionado é um todo que, por sua vez, não pode ser parte de um “todo” maior que ele.167 Ora, raciocina Kant, se tivermos em conta o mundo da experiência, ou, o que dá no mesmo, o conjunto de nossas representações sensíveis, veremos que esses três movimentos silogísticos se aplicam, respectivamente, à “unidade absoluta (incondicionada) do sujeito pensante”, à “unidade absoluta da série de condições de um fenômeno” e à “unidade absoluta de todos os objetos do pensamento”.168 E teremos então, correspondendo aos três 167

KrV, B 379/80. KrV, B 391. Do ponto de vista puramente lógico, o primeiro tipo de silogismo se referia, é evidente, a todo e qualquer sujeito (no sentido aristotélico de substância), e não apenas ao sujeito pensante. Todavia, do ponto de vista das relações que estabelecemos entre as representações sensíveis, o sujeito pensante constitui um bloco à parte, visto englobar ao mesmo tempo as representações de uma mera consciência (“Eu penso”), de uma alma (sentido interno) e de um corpo (sentido externo). (Cf. KrV, B 400) Os demais objetos, que também 168

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diferentes conceitos de incondicionado, os três grupos de idéias da razão: as idéias psicológicas (“doutrina transcendental da alma”), as idéias cosmológicas (“doutrina transcendental do mundo”) e as idéias teológicas (“doutrina transcendental de Deus”)169, sendo de notar-se o natural movimento de convergência das duas primeiras doutrinas em direção à terceira, que conteria a unidade máxima de todos os objetos de nossa mente em um “sistema das idéias da razão”.170 E, em cada um dos três âmbitos, o erro (ou ilusão) transcendental estaria sempre em tomar por real o objeto da idéia racional, concebido apenas, como vimos enfatizando, como conceito problemático (i.e. não passível de ser dado numa intuição sensível): tomar por real a alma; tomar por real a totalidade absoluta das condições do mundo sensível; tomar por real a totalidade absoluta do mundo considerado em si mesmo. Tais erros seriam a conseqüência natural de operar acriticamente os três procedimentos de regressão silogística acima descritos, já que eles deixariam de ser vistos como “meros” procedimentos da razão e passariam a ser vistos como relações “fora” de nossa mente – convertendo-se então nos procedimentos a que Kant chama, respectivamente, “paralogismo da razão”, “antinomia da razão” e “ideal da razão” (as três dialéticas naturais da razão).171 Todo esse esquema, aqui descrito em sua maior generalidade, é o resultado de uma investigação acerca dos procedimentos de nossa razão que a levam (inevitável e legitimamente) a formar certos conceitos (idéias) e, ao mesmo tempo, a tomar estes conceitos, num segundo momento (agora ilegitimamente), por reais. Segundo Kant, “todas as pretensões da razão estão aí representadas, sem que uma só esteja faltando, pois o

podiam ser perfeitamente considerados do ponto de vista do silogismo categórico (pense-se na categoria de substância, que lhe é correspondente), passam a ser considerados do ponto de vista apenas do juízo hipotético, que é, com respeito a nossas representações, o único que nos permite explicá-los “ultimamente” (já que não podemos cogitar seu “sentido interno”, ou o que sejam em si mesmos, a não ser já no terceiro tipo de silogismo). 169 KrV, B 392. Na verdade, o procedimento específico por meio do qual construímos os objetos das idéias racionais (Deus, por exemplo) é a analogia, que nos permite, a partir do mundo que conhecemos através dos sentidos, supor um certo algo análogo para satisfazer à necessidade que tem a razão de certas explicações: “Graças a essa analogia, nos sobra um conceito do Ser supremo suficientemente determinado para nós, ainda que tenhamos deixado de lado tudo que pudesse determiná-lo absolutamente e em si mesmo; pois nós o determinamos em relação ao mundo e em relação a nós, e nada mais é necessário”. (Prol, §58, Ak.IV, 358) Lebrun examina o conceito kantiano de analogia procurando mostrar que ele se diferencia do conceito usual (atual) por dizer respeito simplesmente a semelhanças e diferenças em geral (Lebrun, G. Kant et la fin de la métaphyisique, pp. 217-22.) 170 KrV, B 394. 171 Cf. Prol, Ak.IV, 330. 87

próprio poder da razão, enquanto fonte dos mesmos, foi inteiramente aferido”.172 Assim como havia examinado o entendimento, Kant pretendeu agora estabelecer um exame completo de nossa razão enquanto faculdade que nos faz, por nossa própria conta, não apenas raciocinar, como também criar conceitos a partir da reflexão que fazemos sobre os conhecimentos fornecidos pelo entendimento. Não se trata de meros conceitos “fantasiosos”, como aqueles que nossa imaginação nos permite inventar, mas sim de conceitos desenvolvidos racionalmente de acordo com regras determinadas do procedimento lógico e transcendental de nossa razão.

***

Embora a “Analítica” houvesse desenvolvido uma estratégia visando garantir a validade universal e necessária (i.e. objetiva) das leis da natureza por meio de um fundamento em nossas faculdades (as formas da sensibilidade e os conceitos do entendimento), tal estratégia sempre se fez acompanhar da ressalva de só valer para o mundo de nossas representações (fenômenos). Do ponto de vista estrito de nosso conhecimento teórico, tal fundamento deveria ser sempre suficiente, já que nenhum “objeto supra-sensível” poderia vir frustrar sua universalidade. Do ponto de vista de nossa reflexão racional, porém, tal fundamento não poderia jamais satisfazer-nos inteiramente, pois, como vimos, a razão tem em seu procedimento natural uma tendência a ultrapassar os limites da experiência e, com isso, cogitar uma perspectiva não fenomênica da realidade. Deste último ponto de vista, a indagação acerca de um “fundamento último” de toda a nossa atividade especulativa, como que por detrás daquele outro fundamento, válido apenas para o mundo fenomênico, estaria (e estará) sempre a colocar-se-nos como uma questão que, para usar termos notadamente kantianos, tem de ser respondida, apesar de não poder ser respondida. A fórmula adotada por Kant para tratar o problema, devemos admiti-lo, é bastante interessante e original: o simples fato de precisarmos desse fundamento para completar o sentido de nosso conhecimento deve bastar para validar os conceitos que o forneçam. Assim, se os conceitos a que naturalmente nos leva nossa razão, como alma, totalidade e 172

Idem, ibidem. 88

Deus, não podem, como bem o haviam demonstrado os céticos, ser encontrados em experiência alguma (portanto não podendo ter sua realidade “confirmada”), sua validade deve ser reconhecida, no entanto, pelo fato de servirem a esse propósito de dotar nosso conhecimento de um fundamento último (incondicionado). Cria-se, desse modo, um peculiar método de “autojustificação” de conceitos, no sentido de que, se deles precisamos para dar sentido a nosso conhecimento, então estamos justificados em admiti-los (desde que sabendo tratar-se de idéias, não de coisas). E o que deve determinar se tal necessidade de fato se verifica são as leis internas da razão, que nos procedimentos acima analisados terminam por fazê-la supor o incondicionado tanto na idéia de alma, como na de uma totalidade cosmológica, como ainda na de Deus. Assim, o critério que a razão deve adotar, em toda e qualquer abordagem do que transcende a experiência, é o critério de sua própria necessidade. É esta, afinal, a bússola de que precisava o nosso navegador para, sem a ansiedade de antes, poder guiar-se com segurança pelas águas traiçoeiras desse oceano do supra-sensível que circunda a ilha dos meros fenômenos ou, de acordo com outra imagem proposta por Kant, o “princípio de orientação no pensamento” que funciona como

o meio pelo qual a razão regula seu uso quando, abandonando os objetos conhecidos (da experiência), busca estender sua esfera para além das fronteiras da experiência e não mais encontra quaisquer objetos da intuição, mas apenas um espaço vazio onde tem de mover-se. Ela não mais terá condições de, determinando sua própria faculdade do juízo, subsumir seus juízos sob uma máxima específica com a ajuda de critérios objetivos de saber; ela contará apenas com a ajuda de uma distinção subjetiva. O meio subjetivo que ainda lhe resta disponível é simplesmente o sentimento de uma necessidade que é inerente à razão. (...) o direito da necessidade da razão sobrevém como o fundamento subjetivo para a razão pressupor e aceitar algo que não pode pretender conhecer em bases objetivas, e portanto para orientar-nos no pensamento – i.e. no incomensurável espaço do âmbito supra-sensível que enxergamos cheio de terrível escuridão – por meio apenas de uma necessidade da própria razão. (Orient, Ak.VIII, 136-7)

Como se vê, em claro contraste com o que poderíamos ter antes imaginado, a Crítica não nos ordena permanecer na ilha, tolhendo nosso impulso natural à navegação.

89

Ela não apenas nos autoriza, como ainda nos compele, seres racionais que somos, a seguir nossa natureza e explorar as águas misteriosas do supra-sensível, desde que o fazendo de posse da única bússola que pode orientar-nos nessa aventura: o critério da necessidade de nossa razão. Seguindo este guia, jamais nos enganaremos quanto a enxergar novo país onde o que há é um bloco de gelo, e saberemos sempre encontrar os pontos de referência a partir dos quais, enxergando nossa ilha por inteiro, poderemos compreendê-la em sua completude, passando a perceber, nela, um sentido que de dentro jamais haveríamos reparado. E esta é, afinal, toda a finalidade que pode ter, para nosso conhecimento (cujo objeto é sempre a ilha), essa viagem pelo oceano do supra-sensível.

***

Embora Kant se refira sempre à “razão”, é preciso lembrar que o termo designa uma faculdade do ser humano que, já segundo toda a tradição filosófica, é nosso elemento principal e distintivo: quando Kant diz “razão”, nesse sentido, é como se dissesse “homem”.173 E, quando se refere a certas “necessidades da razão”, Kant nos está falando de necessidades humanas que seriam próprias de nossa natureza como tantas outras (além das necessidades físicas mais básicas, também as psicológicas como comunicar, agir, amar etc.). Se quisermos, assim, compreender mais plenamente o argumento kantiano, bem como sua estratégia para lidar com o problema do supra-sensível, é talvez interessante enfocá-lo desde um ponto de vista, digamos, menos formal: ao dizer que, para completar o sentido de nosso conhecimento empírico, a razão tem necessidade de supor um incondicionado para além do que a experiência fornece a nossos sentidos, Kant se está referindo à tendência que todos (supostamente) temos de, indagando a respeito de um sentido da realidade (uma indagação que não desaparece mesmo entre os mais sábios cientistas), conclui pela existência de um Criador, por exemplo, como causa primeira de tudo. Por menos evidências que os sentidos nos forneçam desse ser, ainda assim se trata de uma idéia incrivelmente recorrente nos mais diversos povos e épocas (ainda hoje a grande maioria das pessoas 173

De um modo geral, é interessante observar o quanto a filosofia kantiana aponta na direção do homem como grande problema da filosofia, assim anunciando os novos tempos que estavam por vir. A Lógica, com efeito, faz convergirem para a questão “O que é o homem?” (tratada, como tema central, na Antropologia) as três questões críticas em que Kant costumava dividir a filosofia (“O que podemos conhecer?”; “O que devemos fazer?”; “O que podemos esperar?”). (KrV, B 832; Log, Ak.IX, 25) 90

acreditando em Deus) e, se tivéssemos de escolher, dados o acreditar e o não acreditar em Deus, qual das duas possibilidades está mais de acordo com a natureza humana, certamente apontaríamos a primeira – independentemente do mérito da questão. Para Kant, naturalmente, tal “tendência” tem de ser examinada, como os conceitos do entendimento, em termos de procedimentos formais de nossas faculdades de conhecimento (no caso, a razão), pois somente assim pode ser vista como um dado a priori, universalmente presente em todo e qualquer ser racional (humano). Sem dúvida o homem comum (aquele que se permite acreditar em Deus sem precisar de qualquer “prova ontológica” de sua existência) está sendo levado em conta por Kant, como exemplo que permitiria corroborar sua noção de razão,174 mas não pode servir de prova da mesma (qualquer um poderia alegar as exceções atéias como evidências da não universalidade dessa característica). O que tem de constituir a essência do argumento, como vimos na última seção, é a análise da razão a partir das leis que são evidentes no seu funcionamento e que, assim, permitem traçar seus princípios e conceitos necessários, no sentido de que são necessários a todo e qualquer ser humano desde que sua natureza fosse respeitada (de tal modo que as exceções atéias poderiam ser vistas como casos de, digamos, desvirtuamento de nossa essência racional).175 É como algo de próprio à nossa constituição (racional) mesma, pois, independentemente de como cada um de nós se relacione com o mundo (experiências particulares de vida), que devemos enxergar a tendência de chegar às idéias de supra-sensível, alma, Deus ou, em geral, de um “em si” como totalidade da experiência possível.176 Reintroduzidos por um viés bastante peculiar, assim, os conceitos tradicionais da metafísica, podemos compreender mais precisamente o caráter intermediário que o criticismo pretende assumir em relação ao racionalismo clássico e ao empirismo cético. Se 174

São inúmeras as passagens em que Kant recorre ao senso comum no sentido de mostrar evidências capazes de corroborar (ainda que sem constituir parte integrante da prova) os dados a priori da razão (especialmente no âmbito prático, como veremos mais adiante). Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem de Como Orientar-se no Pensamento: “Uma fé puramente racional, portanto, é o indicador ou compasso por meio do qual o pensador especulativo se orienta a si próprio em suas divagações racionais pela esfera dos objetos supra-sensíveis, enquanto que o homem de razão ordinária, porém (moralmente) saudável, pode usá-la para planejar suas ações, com respeito a propósitos teóricos e práticos, em conformidade completa com o fim total de seu destino; e esta mesma fé racional deve ser feita a base de toda outra fé, e mesmo de toda revelação” (Ak.VIII, 141-2). 175 Começa a desenhar-se, nessa forma de mostrar a questão, a sua conotação fundalmentalmente moral que analisaremos na próxima seção. 176 KrV, B 710-16. 91

este último tinha razão ao demonstrar a incognoscibilidade de tais conceitos, devendo ser endossado pela “Analítica”, suas conclusões eram no entanto equivocadas e contrárias à nossa natureza no querer lançar todos os livros de metafísica ao fogo – cabendo à “Dialética” refutá-las nesse ponto. Afinal, de acordo com a lição que perpassa toda essa parte da obra kantiana (notadamente as antinomias), negar a existência de Deus, por exemplo, é tão dogmático quanto afirmá-la com pretensão de conhecimento. A bem dizer, se a natureza de nossa razão aponta no sentido da cogitação da idéia e de sua afirmação em termos problemáticos (feita a ressalva da incognoscibilidade), a atitude do cético que a nega é até pior que a do dogmático que a afirma, já que este, embora cometendo um grave erro do ponto de vista teórico, está contudo mais próximo de nossa verdadeira essência.177 É o critério de nossa própria natureza, nessa medida, que passa a constituir o critério chave do criticismo, permitindo-lhe escapar do ceticismo e salvar a metafísica não apenas em sua função de estabelecer um fundamento para o conhecimento empírico, mas também em suas mais antigas e fundamentais pretensões.178 Afinal, sentimo-nos à vontade para adotar um ponto de vista mais amplo do que aquele que o estrito âmbito da sensibilidade nos permitia adotar, e o fazemos para poder responder (apenas problematicamente, mas de acordo com o que nos indica a razão) a perguntas sem cuja resposta restaríamos sempre insatisfeitos. Afinal,

quem poderia suportar se, ao atingir, com relação à natureza de nossa alma, uma consciência clara da questão, e ao mesmo tempo a convição de que não podemos explicar seus fenômenos por um viés materialista, a menos que nos perguntemos ‘O que é propriamente a alma?’, não admitíssemos, em não servindo qualquer conceito da experiência, ao menos um conceito da razão (de um ser imaterial simples) – ainda que apenas para este fim e sem podermos provar sua realidade objetiva? Quem se contentaria com o mero conhecimento de experiência em todas as questões cosmológicas concernindo a duração e a grandeza do mundo, a liberdade ou a necessidade natural, se, sendo qual for nossa abordagem da questão, toda resposta dada 177 É interessante a análise que Kant faz das antinomias da razão na terceira seção do capítulo que trata do assunto (“Do interesse que a razão tem nesses seus conflitos”). Ele propõe percorrê-las, juntando-as em dois blocos (das teses e das antíteses), tendo em vista não o “critério lógico da verdade”, mas sim “o nosso interesse”. E neste caso as teses (que afirmam a existência de um ser necessário, da liberdade etc.) são sempre preferíveis às antíteses (que representam sempre a negação do que é afirmado pelas teses: não há liberdade; não há um ser necessário etc.). (KrV, B 490-504) 178 Essas “antigas pretensões”, como já dissemos, comporiam a segunda parte da metafísica. / cf. supra, pg. 51.

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segundo princípios da experiência engendra sempre uma nova questão, que clama igualmente por uma resposta, e assim nos mostra claramente que nenhuma espécie física consegue satisfazer a razão? Finalmente, quem não vê que, em face da contingência e da dependência universais de tudo quanto os meros princípios da experiência permitem pensar e admitir, é impossível permanecer apenas nestes, e não se sente necessariamente compelido, a despeito de toda a proibição de não se perder em idéias transcendentes, a ainda assim buscar, para além de todos os conceitos que se podem justificar na experiência, repouso e satisfação no conceito de um ser cuja idéia por certo não pode, em si mesma, ser concebida segundo sua possibilidade, mas que também não pode ser refutada, por ser um mero conceito inteligível – um conceito, porém, sem o qual a razão restaria para sempre insatisfeita? (Prol, Ak.IV, 3512.)

Ao colocar dessa forma a questão, Kant estabelece um diálogo mais vivo com seu interlocutor, chamando-o a compartilhar o sentimento de angústia que acompanha naturalmente a ausência de certas respostas às indagações humanas. Embora, como dissemos, o procedimento da razão no lidar com tais questões tivesse de ser analisado na qualidade de um procedimento universal de acordo com leis, a força do argumento fica bastante ressaltada neste chamado ao interlocutor que, supostamente, tenderia a confirmar a universalidade da necessidade da razão. Afinal, quem de nós negaria possuir, em alguma medida, o ideal de enxergar sentido na natureza, na vida em geral e, assim, na própria vida pessoal? E quem de nós negaria que as noções de cosmo, Deus e alma são capazes, em certo sentido (um sentido bastante racional), de satisfazer tal ideal? Ainda que se pudesse, é claro, já em termos mais contemporâneos, alegar as “influências do meio” como razões empíricas (e, portanto, contingentes) de tais associações (entre sentido e Deus, por exemplo), sabemos bem a que Kant está se referindo, e isso deveria bastar para compreendermos melhor o seu argumento enquanto tentativa de fundamentar os conceitos metafísicos em princípios subjetivos universais (a priori).179 De um ponto de vista epistemológico, contudo, a questão continua a causar um certo estranhamento, já que podemos sempre desafiar o argumento pelo mais óbvio caminho: se 179

Tal como ficará mais claro quando examinarmos o movimento de construção de uma objetividade prática, a universalidade formal que tem assim de ser pressuposta para que quaisquer elementos transcendentes ao empírico possam ser validados é defendida por Kant como requisito de toda intersubjetividade, já que sua

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se trata de “meras idéias”, como o próprio Kant está sempre a insistir, que tipo de “verdade” haveria aí, nesse discurso? Ou, em outras palavras, qual a “força” de um enunciado como “Deus existe” se o seu objeto não passa de uma mera idéia, não podendo a asserção, portanto, ser verificada objetivamente? Para entender como Kant soluciona este problema, devemos ter em conta a tripartição que faz da ação de assentir ou “tomar por verdadeira” (Fürwahrhalten) uma dada afirmação, dividindo-a em três “modos”: saber (Wissen), opinião (Meinen) e fé (Glauben).180 No primeiro caso, temos o conjunto de todas as afirmações que, em consonância com os ensinamentos da “Analítica”, compõem o universo de nosso conhecimento de experiência (tanto suas condições a priori como seus dados a posteriori) e nas quais a referência ao mundo dos objetos (fenômenos) produz uma convicção (Überzeugung) que repousa tanto em bases subjetivas como em bases objetivas (sendo estas últimas responsáveis por produzir a certeza – Gewissheit – que acompanha a convicção).181 Tratase, em suma, dos conhecimentos produzidos pela conjunção de entendimento e sensibilidade que, como dizíamos, podem ser representados na imagem de uma ilha privilegiada como “terra da verdade” – desde um mero enunciado como “isto é um cachorro” até as leis mais gerais da natureza (princípios a priori do entendimento) como “Toda mudança deve ter uma causa”. Já o segundo caso corresponde àquelas asserções de cuja insuficiência o seu emissor, embora intimamente convicto, deve ter plena consciência, na medida em que não são garantidas nem por princípios subjetivos nem por conhecimentos objetivos. Trata-se de possibilidades factíveis do ponto de vista da experiência possível, porém nunca

negação implicaria, como nos mostra Lebrun, o solipsismo absoluto e o egoísmo moral. Cf. Lebrun, G. Kant et la fin de la métaphysique, pp. 364-7. 180 Essa divisão é apresentada em pelo menos quatro passagens diferentes: na Doutrina do Método da KrV (B 848-859), no texto Como Orientar-se no Pensamento, na KU, pars. 90 e 91 (Ak.V, 443-468) e na Lógica, Introd., IX (Ak.IX, 66-82). Sabe-se que não há, no alemão, dois termos distintos que correspondessem aos nossos “fé” e “crença” (ou, nas demais línguas ocidentais, faith/belief; fede/credenza; foi/croyance etc.). Dada a etimologia da palavra “Glaube”, porém, ou do verbo “glauben”, que têm no “galaubin” gótico uma raiz comum com “lieben”/“Liebe”, e dada a forte conotação religiosa da palavra, salientada em todos os dicionários de alemão contemporâneo, parece-nos em geral preferível traduzir “Glaube” por “fé”, salvo nos casos em que o contexto exija “crença”. 181 KrV, B 848-50. 94

confirmadas até hoje por alguma experiência concreta: coisas como a existência de vida em outro planeta ou a hipótese física do éter.182 É à fé, pois, que devem corresponder aqueles juízos que são objetivamente insuficientes (i.e. que não podem ser ditos verdadeiros com base nos critérios de nosso conhecimento por experiência), porém ao mesmo tempo subjetivamente suficientes (i.e. cuja validade repousa em princípios subjetivos universais). E é a fé, portanto, que vem cumprir a função de estabelecer o estatuto epistemológico alternativo que vinha sendo demandado por nossa razão em seus passeios pelo supra-sensível: quando transcende os limites da experiência guiada por sua própria necessidade, a razão não está por certo produzindo saber (Wissen), mas também não está produzindo meras opiniões, muito menos “meras ficções”; suas idéias constituem objeto de fé racional, assim se diferenciando de todo tipo de convicções meramente pessoais, contingentes, e se caracterizando como um outro tipo de “conhecimento” (se se puder utilizar o termo) cujo critério de validade são princípios subjetivos em vez de dados objetivos:183

É necessário portanto dar a este tipo de juízo (um “pronuciamento da razão saudável”) um outro nome, e nenhum é mais adequado que “fé racional”. (...) ...uma fé racional está baseada exclusivamente em dados que são inerentes à razão pura. Agora, toda fé é uma convicção de verdade que é subjetivamente adequada mas conscientemente enxergada como objetivamente inadequada; e é portanto tratada como o oposto do saber. (...) ...uma fé puramente racional não pode nunca ser transformada em saber por nenhum dado natural da razão e da experiência, pois as bases em que repousa sua pretensão de verdade são (e sempre o serão, na medida em que continuemos a ser seres humanos) puramente subjetivas; em outras palavras, a razão tem uma necessidade essencial de simplesmente pressupor, e não demonstrar, a existência de um ser supremo. Esta necessidade da razão, usada num viés teórico que ela considera satisfatório, não seria outra coisa que uma mera hipótese racional, i.e. uma opinião que é adequada de acordo com fundamentos subjetivos que permitem considerar algo como verdadeiro na simples medida em que não haveria outro modo de explicar os efeitos ... que a razão no entanto precisa explicar. (Orient, Ak.VIII, 140) 182

KrV, B 850-3; Log, Ak.IX, 67. Como nos diz Kant neste último texto, o domínio próprio à opinião não pode estar “nas ciências que contêm conhecimentos a priori (portanto nem nas matemáticas, nem na metafísica nem na moral), mas unicamente nos conhecimentos empíricos (em física, em psicologia, em outras disciplinas deste tipo). Pois seria absurdo ter uma opinião a priori.” 183 KrV, B 851, 854-6. 95

Desse modo, podemos dizer que o conceito de fé racional é introduzido por Kant para designar o estatuto epistemológico preciso possuído pelos enunciados que formulamos a partir da ampliação de ponto de vista que vimos comentando e que, de um modo geral, permite-nos enxergar o mundo do conhecimento teórico objetivo como inserido num todo maior (e absoluto) de realidade, bem como cogitar os objetos que dão um sentido mais “palpável” a essa idéia (alma, totalidade do cosmos, Deus). Contra o pano de fundo delineado na “Analítica”, estabelece-se assim, por meio da “Dialética”, um outro registro discursivo que, independentemente do termo ideal para designá-lo, caracteriza-se fundamentalmente por transcender os limites da experiência de um tal modo que não pode nunca produzir saber verdadeiro (em sentido forte), mas que ao mesmo tempo produz objetos de fé racional que devem ser comuns a toda a espeçie dos seres racionais – que, até onde alcancem nossos olhos, é mesmo a espécie humana – na simples medida em que eles sejam capazes de respeitar sua própria natureza.

***

Coloca-se, a esta altura, uma questão que é das mais importantes e cruciais para a compreensão do espírito da filosofia kantiana: a questão da liberdade. Tomando por base a tripartição da Fürwahrhalten, que é um gesto supostamente espontâneo de assentimento, em opinião, fé e saber, podemos imaginar, em princípio, que apenas esta última modalidade, por ser a única que repousa em bases objetivas, deve independer por completo de uma opção subjetiva. Sem dúvida é preciso que cada um se decida intimamente a assentir a uma determinada afirmação, mas se trata de uma decisão determinada por um procedimento das faculdades de conhecimento a que não comparece, em princípio, a vontade do sujeito.184 Sempre que houver erro, tratar-se-á de uma falha em tal procedimento, e não propriamente de uma decisão equivocada: em se supondo conhecido o idioma português, somente a cegueira poderia servir de escusa a alguém que discordasse da

184

Log, Ak.IX, 74: “A vontade não pode lutar contra as provas convincentes da verdade que sejam contrárias a seus desejos e inclinações”. 96

asserção “isto é um cachorro” acompanhada do gesto de apontar-se o dedo ao animal.185 O âmbito do saber teórico é, portanto, um âmbito em que o sujeito está, por assim dizer, subordinado às leis do conhecimento, e, ainda que estas últimas sejam também suas próprias leis (de suas faculdades de conhecimento, notadamente do entendimento), a razão, que é seu órgão máximo (e foro de suas decisões conscientes), também se encontra a elas submetidas (não podendo sequer estabelecer o ponto de vista ampliado que lhe permite enxergar sentido neste mesmo âmbito).186 O caso já não é o mesmo com as outras modalidades de assentimento, visto que, faltando os critérios objetivos capazes de tornar irrefutável um enunciado, o sujeito passa a ter de fazer opções em relação às quais, em princípio, não tem qualquer garantia. No caso da opinião, a coisa é bastante nítida: sendo insuficientes suas bases de justificação, tanto subjetivas como objetivas, cada um pode opinar o que bem entender.187 No caso da fé, porém, vemo-nos em princípio diante de uma estranha ambigüidade: embora a ausência de critérios objetivos pudesse indicar uma semelhança em relação à opinião (devendo-se então a diferença, possivelmente, a uma diferença nos graus da convicção subjetiva), Kant nos fala de uma suficiência subjetiva como elemento distintivo da fé, parecendo estabelecer, assim, um segundo critério epistemológico para a validação de enunciados, a saber, fazê-los repousar em princípios subjetivos universais – um critério tão seguro a ponto de permitir, como acima dissemos, a abertura de um novo registro discursivo. Se estivéssemos com isso, porém, imaginando uma semelhança da fé com o saber, no sentido de que ambas as modalidades de assentimento, embora fazendo parte de registros distintos, repousariam igualmente em bases sólidas (desaparecendo, assim, qualquer espaço para opções subjetivas), vem surpreender-nos a afirmação de que “só podem ser matéria de fé objetos em relação aos quais nosso assentimento é necessariamente livre, i.e. não determinado por fundamentos objetivos de verdade independentes da natureza e do interesse do sujeito”.188 Assim apresentada, a idéia de liberdade de assentimento parece, a princípio, colidir com a impressão de que os enunciados da fé, como dizíamos, seriam validados por 185 KrV, B 350: “Num conhecimento que harmonize completamente com as leis do entendimento, não pode haver erro”. 186 KrV, B 362. Na atividade do mero conhecimento por experiência, em que a razão é empregada logicamente, ela “é uma mera faculdade subalterna que imprime a conhecimentos dados uma forma determinada, qual seja, a forma lógica...” (grifo nosso). 187 KrV, B 853.

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princípios subjetivos universalmente válidos funcionando como critério epistemológico tão seguro como os critérios objetivos do saber. Afinal, se fosse este o caso, não me seria dada opção alguma para decidir livremente pelo assentimento ou não assentimento, mas sim a necessidade absoluta, em meus processos mentais, de assentir em face da evidência de validade de um dado enunciado. Se, por exemplo, eu pudesse decidir livremente entre assentir ou não ao enunciado “Deus existe”, poderia perfeitamente optar pela segunda possibilidade, com o que o registro das idéias da razão se veria contaminado por uma contingência e nós teríamos de equipará-las a meras opiniões, ou mesmo a meras fantasias. Não é esse, porém, o sentido em que Kant nos fala de liberdade de assentimento ou, em geral, de liberdade de pensamento. Se toda a validade dos enunciados elaborados pela razão com relação ao supra-sensível devia repousar em princípios subjetivos universalmente válidos, é preciso que mesmo nossa liberdade de pensar esteja por eles compreendida, no sentido de que qualquer um de nós, ao pensar livremente, chegará necessariamente a tais enunciados. A liberdade não aparece, portanto, para designar a arbitrariedade individual de cada ser humano em suas opiniões, mas sim um movimento especulativo que é próprio a todo ser racional e que consiste em libertar-se não de sua própria natureza e de sua própria espécie na figura dos outros indivíduos (o que seria um contra-senso), mas sim da contingência insuportável do mundo sensível e de todos os enunciados forjados empiricamente em mentes individuais “egoístas”. Afinal, segundo Kant, pensar de outro modo que não em consonância com as leis que podemos verificar nos procedimentos naturais da razão significa pensar de acordo com leis que não são nossas e, nessa medida, significa sujeitar-se a uma tirania estranha a nossa natureza e, portanto, abrir mão de nossa liberdade. Em palavras ainda mais claras: a razão somos nós, seres racionais, e não pensar de acordo com suas leis é não pensar de acordo com nossa própria natureza – o que só poderia ser, neste sentido, o exato oposto da liberdade de pensamento.189 Estabelecendo, assim, um conceito de liberdade que desde o plano do pensar entra em choque com o conceito liberal de liberdade (individual),190 tal como firmado na tradição

188

Log, Ak.IX, 69 (grifo nosso). Orient, Ak.VIII, 146-7. 190 No plano moral, como veremos, o conceito mantém a mesma estrutura (salvo no direito, em que Kant tem de dar conta do conceito de liberdade individual, a liberdade é enxergada sempre da perspectiva do ser racional em geral, e não dos indivíduos específicos). 189

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política moderna desde Hobbes,191 Kant se posiciona ostensivamente contra esta tradição em debates como o que trava com Mendelssohn e Jacobi no já citado texto Como Orientarse no Pensamento.192 Procurando mostrar os perigos envolvidos em identificar a liberdade com a arbitrariedade individual, no mais das vezes contrária aos princípios da razão, Kant estabelece do seguinte modo uma comparação entre o uso livre da razão e o seu uso de acordo com outras regras:

(...) a liberdade de pensamento significa também que a razão não se submeta a quaisquer outras leis que não as suas próprias; e seu oposto é a máxima do uso sem leis da razão (de modo que ela pudesse, como o gênio imagina, ver mais longe que quando presa a leis). O resultado disto é, bastante naturalmente, que a razão, não desejando estar submetida à lei que ela própria se impõe, deve ajoelhar-se diante do jugo de leis de outrem; pois nada – nem mesmo o maior absurdo – pode continuar a operar sem algum tipo de lei. (Orient, Ak.VIII, 145)193

Percebemos claramente, portanto – e isso deve ser enfatizado –, que o conceito kantiano de liberdade possui a peculiaridade de referir-se ao ser humano considerado em sua universalidade racional, e não em sua individualidade empírica. No plano do pensamento, isso se traduz nos termos de uma autonomia especulativa da razão, no sentido de que ela (nós, seres racionais) tem toda a liberdade de desvencilhar-se das leis estritas do conhecimento de experiência (leis do entendimento) e, assim, cogitar os objetos de que precisa para poder enxergar a realidade como dotada de algum sentido (em vez de resignarse ante a ausência de “respostas últimas” no plano da experiência).

191 Cf., a esse respeito, Skinner, Q. “The Republican Ideal of Political Liberty”. In: Bock, G.; Skinner, Q.; Viroli, M. Machiavelli and Republicanism. Cambridge: CUP, 1990. 192 Como nos diz Hans Reiss, numa introdução a esse texto (Reiss, H. “Introduction”. In: Kant, I. Political Writings. Cambridge: CUP, 1991), “o ensaio de Kant foi ocasionado por uma querela entre Moses Mendelssohn (1729-86), um filósofo judeu de Berlin com quem Kant se correspondia e a quem estimava muito, e Friedrich Heinrich Jacobi (1743-1819), um escritor e amigo de Goethe que havia atacado a interpretação feita por Mendelssohn de Spinoza. (...) Kant não atacou nenhum dos escritos em questão, mas julgou necessário defender seu velho amigo Mendelssohn, ao mesmo tempo apontando algumas falhas no argumento deste (Mendelssohn tinha exposto provas da existência de Deus que Kant considerava ilegítimas)” (pp. 235-6.) 193 Como se pode notar, há aí, pressuposto, um princípio segundo o qual nada pode existir sem estar submetido a leis. Esta é, podemos dizer parodiando Lebrun, uma outra Voraussetzung fundamental da filosofia kantiana. Cf. Lebrun, G. Kant et la fin de la métaphysique, pp. 152-5.

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Se reúno todas as idéias transcendentais cujo conjunto constitui a tarefa própria da razão pura natural – tarefa que a compele a abandonar a mera observação da natureza e a ir além de toda experiência possível, assim elaborando a coisa (seja saber (Wissen) ou fruto de raciocínio (Vernünfteln)) a que chamamos metafísica —, acredito perceber que esta disposição natural tem por fim liberar nossos conceitos das correntes da experiência e dos limites da simples observação da natureza, de tal modo que eles possam ao menos enxergar diante de si um terreno que contenha apenas objetos puramente inteligíveis, os quais nenhuma sensibilidade pode alcançar. (Prol, Ak.IV, 362)194

Esse movimento de transcendência em relação ao meramente empírico deve ser lido, pois, como um movimento de libertação de nosso pensamento no sentido de que ele tem todo o direito de satisfazer seu natural anseio de ir além do que nos mostra a sensibilidade, contanto apenas que não venha a postular a realidade dos objetos que ele próprio cria. Estes não perderão nunca o caráter de meras hipóteses, pois não podem ser dados em qualquer experiência, mas nem por isso deixam de ser os objetos que preenchem nossas mais profundas e naturais necessidades e nos aproximam, assim, de nossos mais elevados fins enquanto seres humanos (racionais). Se Kant teve de “suspender (aufheben) o saber para dar lugar à fé”, conforme a célebre frase do segundo prefácio,195 é porque aquele, tomado como única fonte aceitável de nossas convicções (ou hipostasiado como realidade absoluta), converter-se-ia num cárcere insuportável para nossa razão (ou para nós mesmos, enquanto seres dotados de alguma intencionalidade). Era preciso, pois, efetuar um movimento de libertação consistente em deixar-nos aberto o espaço para nossas divagações mais autênticas e necessárias, de tal modo que as pudéssemos desenvolver, sem o risco de regressar ao dogmatismo (bastando para isso respeitar nossa própria natureza). Ainda que Hume houvesse tido de fato, como o ceticismo em geral, a virtude de libertar-nos dos grilhões do dogmatismo, ele tinha no entanto, ao mesmo tempo, construído uma outra prisão, muito mais escura e vazia de esperanças: a prisão das leis empíricas. A Crítica tinha de mostrar-nos que, se quisermos, podemos não permanecer nessa prisão:196 voltando à

194

Grifo nosso. KrV, B XXX (“Ich musste also das Wissen aufheben, um zum Glauben Platz zu bekommen”). 196 Como aponta Eric Weil, referindo-se a essa libertação da razão do caráter reificador que ele percebe no entendimento (ou na hipóstase do conhecimento empírico), “a crítica da razão pura, em última análise, é crítica do entendimento e liberação da razão; uma razão que, por ter concedido ao entendimento tudo que 195

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imagem da ilha, chegaríamos agora a afirmar, não sem uma pitada de ousadia, que a navegação, do ponto de vista de nossa índole racional, é mesmo mais importante que a própria ilha. Se tivéssemos de encarar o viver como um mero obedecer às leis da ilha (da natureza), poderíamos lembrar dos “antigos navegadores portugueses” e dizer: “navegar é preciso; viver não é preciso”. • Seção III: O sentido profundo da fé racional: um sentido moral (prático). Se podemos de fato enxergar a empreitada crítica como uma empreitada de “libertação da razão”, dizendo-nos Kant que, a despeito de só podermos conhecer o que nos dá a experiência, somos livres para acreditar nos objetos supra-sensíveis que preenchem nossas necessidades, ainda assim parece haver algo de errado. Afinal, que sentido há em atribuir existência a tais objetos por meio da fé, se nada, além de certos “caprichos especulativos” de nossa natureza racional (queremos enxergar sentido na natureza e, por isso, acreditamos em Deus), nos indica que realmente existam? Quanto mais forte nossa fé, mais estaríamos desempenhando um papel que é, para dizer o mínimo, um tanto estranho: olhamos, não vemos, mas, como queremos ver, “fingimos que vemos” – e nos contentamos com esse “jogo de faz-de-conta”. Se, para além disso, esperamos que a filosofia crítica tenha algo mais a oferecer-nos, devemos seguir a interrogá-la, agora no sentido de compreender o verdadeiro motivo que deve fazer-nos crer. Bem, se encontramos aqui o termo “liberdade”, a designar uma propriedade de nosso pensar que corresponde a poder ele, “com todo direito”, desvencilhar-se da estreiteza do mundo sensível, é preciso questionar novamente esse procedimento e, assim, averiguar o alcance do termo. Se retornarmos ao ponto de vista empírico, que, como já vimos, é o ponto de partida de nosso conhecimento para Kant, devemos imaginar que tudo que se encontra na experiência, absolutamente tudo, está submetido às leis da mesma, que são as leis de nosso entendimento. Embora não tão implausível a hipótese de o homem, por meio da razão, cogitar alguma esfera de realidade não submetida a essa legislação, já que nenhum dado empírico determina sua impossibilidade, não faria qualquer sentido, em princípio, o homem imaginar-se a si próprio como dado “fora” desta mesma realidade, uma vez que está dado “dentro” dela. Nesse sentido, a idéia de liberdade, que entra em contradição com pertence ao domínio dele, pode agora agir com conhecimento de causa e com boa consciência intelectual” 101

a necessidade natural (legislação da natureza),197 poderia talvez ser cogitada com respeito a algum objeto supra-sensível, mas não como uma propriedade do ser humano (no caso, de seu pensar), pois toda sua existência deve estar determinada de acordo com as leis da natureza (inclusive o movimento de suas idéias). Poderíamos até explicar, por exemplo, a formação da idéia de Deus em nossa mente como sendo algo de próprio à nossa natureza, mas teria de ser uma explicação de tipo empírico (causal): algo como, para usar novamente teorias “mais contemporâneas”, uma necessidade de substituir a figura paterna pela figura divina (explicação que certamente não faria revigorar nossa fé no Criador).198 De acordo com o esclarecimento dado por Kant, com efeito, todo o conhecimento que possuímos do homem é, como o dos demais objetos da experiência, um conhecimento fenomênico: o objeto que conhecemos como correspondente ao conceito “homem” é um mero fenômeno, nada nos indicando do que ele pudesse ser como coisa em si (ou mesmo quanto a simplesmente poder “ser em si”). Tanto o nosso corpo (dado pelos sentidos externos) como nosso “eu pensante” (dado pelo sentido interno) são intuições sensíveis que compõem um só e mesmo objeto,199 e, embora se pudesse esperar de nossos conceitos a priori algum indicativo de um conhecimento “não meramente fenomênico”, deve-se lembrar seu caráter puramente formal, incapaz de compor qualquer objeto de conhecimento sem a concorrência da intuição. Ainda que a “Analítica” nos enxergasse “bipartidos”, tratou-se sempre de uma bipartição meramente formal ou lógica (transcendental), não material: na medida em que somos sujeitos de conhecimento (e pelo simples fato de sermos nós a desenvolver a atividade do conhecer), constituímos condições formais (a priori) de possibilidade do mesmo (desprovidas de conteúdo material); na medida, porém, em que (Weil, E. Op.cit., p. 32). KrV, B 472-9 (terceira antinomia). 198 Referimo-nos a Freud, como exemplo de uma teoria que explica a origem da idéia de Deus em termos “empíricos”: a idéia de Deus, e mesmo dos ícones tribais antigos, se explicaria a partir dessa idéia de substituição da figura paterna. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de Moisés e o Monoteísmo: “Compreendemos como um homem primitivo tem necessidade de um deus como criador do universo, como chefe de seu clã, como protetor pessoal. Esse deus assume posição por trás dos pais mortos (do clã), a respeito de quem a tradição ainda tem algo a dizer. Um homem de dias posteriores, de nossos próprios dias, comportase da mesma maneira. Também ele permanece infantil e tem necessidade de proteção, inclusive quando adulto; pensa que não pode passar sem o apoio de seu deus.” (Freud, S. Moisés e o Monoteísmo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, pp. 151-2. 199 Uma vez que não há qualquer tipo de intuição que não a sensível, não há como cogitar um “eu penso” intuído, digamos, “intelectualmente”. Embora o sujeito transcendental, forma do conhecimento, seja “dado” a 197

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somos considerados enquanto objetos, materialmente dados na intuição, constituímos meros fenômenos como qualquer outro objeto do mundo sensível – e é só neste último sentido que podemos ser ditos existentes (aplicando-se a categoria de existência, que é parte de nossas formas a priori, à intuição de nós mesmos na sensibilidade). Ora, se essa for toda a abordagem que podemos fazer do homem, a própria idéia de liberdade, que explicaria nosso movimento em direção ao supra-sensível, converte-se numa quimera, tão infundada quanto os “objetos” que por meio dela criamos. Afinal, só duas possibilidades são imagináveis: ou quem os criou fomos nós, meros fenômenos, e então é de supor-se que sua verdadeira origem são influências enganadoras dos sentidos; ou, como realmente quer Kant, os princípios por meio dos quais os criamos são formas a priori que os justificam, mas, a menos que queiramos supor “formas não existentes” livres, também neste caso não haveria falar em liberdade. Compreende-se por aí, embora sem chegarmos a qualquer conclusão, que a questão tivesse de ser deslocada, devendo a liberdade de pensamento consistir na verdade, em sentido estrito, na liberdade de assentimento: se os “objetos” do supra-sensível são criados em bases puramente formais, a liberdade não pode estar no próprio processo de criação, só podendo então, talvez, ser cogitada no processo de anuência ao já criado. Neste caso, porém, voltamos ao sujeito existente que é o único capaz de decidir (pois que formas não decidem) e, portanto, voltamos ao fenômeno, que só poderá decidir de acordo com as leis da natureza que determinam necessariamente tudo que nele se passa. Com o que caímos num círculo vicioso que parece não apenas mais intransponível que os anteriores, como ainda os envolve a todos, já que nenhum ponto de vista outro que não o empírico poderá fazer sentido se não pudermos supor o homem livre, i.e., o homem dotado da capacidade de decidir independentemente de sua determinação pelas leis da natureza (decidir não apenas com relação à ação de assentir como com relação a qualquer ação que possa praticar).200 Ora, é preciso levar em conta que, nesse ponto (quando o homem tem em vista seu próprio agir), já não se pergunta pelo porquê lógico ou causal capaz de explicar um dado,

priori, ele não tem conteúdo. O “eu penso” pode ser tanto o sujeito transcendental, como vimos no capítulo anterior (mera forma), ou uma percepção empírica (fenomênica). Cf. KrV, B 400-1. 200 Essa é a dificuldade central da filosofia moral kantiana, que analisaremos mais cuidadosamente nas partes seguintes de nosso trabalho. A possibilidade de agirmos de acordo com as nossas leis, e não com as da natureza, equivale à possibilidade de a razão ser prática (i.e. determinar nosso agir), que é o problema central da Crítica da Razão Prática. Cf. KpV, Ak.V, 3. 103

mas sim pelo motivo que deve embasar determinada ação. E é esta mudança de foco, precisamente, que nos sugere o novo ponto de vista eventualmente capaz de solucionar o círculo vicioso em questão: um ponto de vista prático pelo qual o homem decide como agirá (desde uma “mera” ação de assentimento até ações mais, digamos, efetivas). Dado que não somos apenas seres pensantes a especular sobre questões teóricas, mas também (e principalmente) seres agentes a praticar ações (i.e. a viver), ambas as perspectivas devem ser levadas em conta numa compreensão do homem. Se, do primeiro ponto de vista, não é possível afirmar a liberdade, já que o homem, como fenômeno, só pode obedecer às leis da natureza, do segundo ponto de vista o homem simplesmente não tem como conceber-se não livre, pois é ele, e não alguma causa anterior, que toma a decisão de agir deste ou daquele modo (se, diante da perspectiva de agir, não pressupusermos que nós é que decidimos, entramos num estado de inação).201 Uma mesma ação, neste sentido, que é vista como empiricamente determinada do ponto de vista teórico, é vista como livre do ponto de vista prático, numa dupla possibilidade compreensiva que é perfeitamente adequada às duas posições fundamentais ocupadas pelo homem no mundo: o especular e o agir. E é apenas do ponto de vista desta segunda posição que passa a fazer real sentido a atitude de assentir a uma proposição que, do ponto de vista daquela outra, não poderia passar de uma hipótese cogitável. Afinal, é no plano do agir que se pode realizar a idéia de liberdade tal como acima descrita, i.e. como a faculdade de seguirmos as leis de nossa própria razão (autonomia) em lugar de seguirmos outras leis (heteronomia), notadamente as da natureza, que regem o plano do conhecer.202 Se, neste último, a razão, como dizíamos, tem uma função subordinada, naquele ela tem a função de legisladora máxima, e mesmo o gesto de assentimento (um gesto de natureza mais teórica do que prática) passa a reger-se por ela, ganhando então a fé racional o estatuto de fé prática – o que, longe de diminuir sua força, estabelece sua vinculação necessária com as leis da razão que dizem respeito ao nosso agir (denominada então razão prática, por oposição à especulativa). Como nos diz Kant, com efeito, “é apenas do ponto de vista prático que um assentimento teoreticamente insuficiente pode ser chamado de fé”.203 201

Grundl, 447-8. Na medida em que o que constitui a autonomia, para Kant, é a propriedade de agir e pensar de acordo com outras leis que não as da natureza, a influência destas últimas é definida, por oposição, como heteronomia. Cf. KpV, Ak.V, 33. 203 KrV, B 851. 202

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Estabelece-se, nessa medida, uma vinculação essencial entre a perspectiva do nosso agir e a perspectiva da formulação de um ponto de vista mais amplo que aquele do mero conhecimento de experiência, no sentido de que somente aquela pode preencher esta última de um sentido pleno, fazendo-a repousar em necessidades de nossa natureza racional que não são meros “caprichos especulativos”, mas sim necessidades cruciais de nosso agir e, portanto, de nosso viver. A grande questão do criticismo passa a ser, pois, quando abandonado o mero terreno da empiria, quais as leis de nossa razão que nos compelem a uma certa maneira de agir que é diferente daquela a que nos conduziriam as leis da natureza; ou, simplesmente, quais as leis de nossa liberdade racional (compreendida sempre a liberdade, insistamos, como uma liberdade de toda a espécie racional em relação à determinação pelas leis naturais, e não como uma liberdade individual egoísta em relação aos demais sujeitos). Tais leis, como veremos na continuação de nosso trabalho, são as leis morais que, inscritas em nosso modo racional de conceber o agir, delimitam para nós a clara possibilidade de seguir nossa própria natureza, em vez de seguir as leis da natureza que nos é exterior. Não sendo ainda, contudo, o momento de abordar esta questão, o que importa notar é tão somente o fato de que, se podemos agir de acordo com a lei moral, colocando-nos acima das meras influências sensíveis, podemos considerar-nos livres e, nesta qualidade, crer em objetos que estariam num mundo supra-sensível (inteligível) na medida em que estes, dando sentido ao mundo e à vida, preencham nossas expectativas morais:

Uma vez rejeitado, à razão especulativa, qualquer progresso na esfera do supra-sensível, resta-nos sempre a necessidade de verificar se não há, no conhecimento prático da razão (in ihrer praktischen Erkenntniss), dados capazes de determinar aquele conceito racional do incondicionado e de, assim, em consonância com o desejo da metafísica, alçar-nos para além das fronteiras de toda experiência possível – por meio de conhecimentos a priori que, no entanto, só são possíveis de um ponto de vista prático. E por meio deste procedimento a razão especulativa, na medida em que tinha de deixar este espaço vazio, ao menos o deixou aberto para um tal prolongamento, de tal modo que nós temos não apenas a liberdade, como ainda o incentivo da razão especulativa, para preenchê-lo, se pudermos, com dados práticos. (KrV, B XXI)

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Assim, o procedimento por meio do qual formamos um ponto de vista mais amplo que aquele do mero conhecimento empírico, ainda que especulativo, tem sua validade determinada pelo ponto de vista prático da razão, i.e., o ponto de vista a partir do qual nos enxergamos como seres agentes livres. Se, deste ponto de vista, a liberdade implica a moralidade, já que, como vínhamos dizendo, o sentido em que podemos ser livres não é um sentido egoísta, e sim de respeito à nossa natureza racional (as leis morais), então o verdadeiro fundamento da fé nos “objetos” do supra-sensível é um fundamento moral: devemos acreditar na imortalidade da alma e em Deus porque disso depende o sentido de nosso agir (de nosso viver). Afinal, se sondarmos nossa própria natureza, identificaremos, na angústia da ausência de respostas às indagações mais importantes de nossa razão, e na impossibilidade de seguir outras leis que não as da natureza, motivo suficiente para não agir, pois veremos tanto sentido na vida humana quanto vemos na existência de uma pedra. No fim das contas, não sendo o mundo sensível capaz de responder por seu próprio fundamento último (pois os dados da empiria e as leis do entendimento não no-lo revelam), o mais estranho dos papéis não é “fingir que vemos” um supra-sensível; o mais estranho seria olhar a realidade sensível, ver e dizer: “isso é tudo, e a isso se resume meu ser” – porque este é o menos criativo e o mais perigoso de todos os jogos de “faz-de-conta”. Na verdade, o próprio conhecimento teórico, considerado como uma atividade humana, perderia todo seu sentido, para nós, se não acreditássemos em algo que faz a vida ter sentido. A fé moral, nessa medida, adquire uma importância tal que o estudo da moral deve passar a ser, sob o nome de um conhecimento prático (que se distingue do teórico por sua insuficiência objetiva), o grande tema do criticismo, de tal modo que a tarefa de “salvamento” da metafísica possa incluir as grandes questões da razão. E é ao exame deste outro registro discursivo que se voltará a parte seguinte de nosso trabalho.

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Capítulo 3. Construção de uma Objetividade Prática •

Seção I: O problema moral em sua especificidade, e outra vez o a priori como caminho para a solução.

No capítulo precedente de nosso texto, procuramos estabelecer uma ligação entre as atividades especulativa e prática da razão partindo daquela primeira, ou das idéias por ela desenvolvidas, para desembocar na última como a instância capaz de dotar tais idéias de um sentido mais forte – movimento que nos pareceu suficientemente autorizado pela Crítica da Razão Pura e por outros textos, dentre os quais o opúsculo Como Orientar-se no Pensamento?. Ao mesmo tempo, porém, tal caminho nos fez avançar, de maneira pouco aprofundada, sobre temas que pertencem ao domínio dos textos práticos kantianos, sobretudo à Crítica da Razão Prática e à Fundamentação da Metafísica dos Costumes. No presente capítulo, buscaremos deter-nos com maior atenção nestes últimos textos, de modo a poder, de um lado, compensar tal ausência de aprofundamento, assim emprestando maior consistência à leitura até aqui já desenvolvida, e, de outro lado, estabelecer um movimento de compreensão do pensamento kantiano que nos fará seguir o caminho inverso daquele acima mencionado, i.e. um caminho que nos permitirá ligar as atividades especulativa e prática da razão partindo dos princípios desta última e desembocando naquela primeira como instância necessária à determinação conceitual e “objetiva” de tais princípios – assim se reforçando uma visão sistêmica da obra. Dada esta perspectiva, é preciso tentar compreender, primeiramente, como Kant entende o problema filosófico da moralidade, assim delineando a especificidade do mesmo no conjunto de suas preocupações, para em seguida verificar como ele o soluciona, num movimento que, como perceberemos, tem essencialmente a mesma estrutura que aquele desenvolvido para solucionar o problema do conhecimento teórico.

Se relembrarmos uma vez mais a estratégia adotada por Kant para solucionar o problema da objetividade teórica, que estava formulado com precisão em Hume, podemos enxergá-la, de um modo bastante geral, como um movimento que fez situar no sujeito as condições de possibilidade da experiência, de tal maneira que fosse possível submeter os

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dados desta última (a natureza), em sua absoluta contingência, a formas subjetivas de caráter universal e necessário. Com este movimento – a chamada “revolução copernicana” –, ficaria garantida ao homem a possibilidade de falar sobre os dados sensíveis, que nunca deixaram de ser eles próprios contingentes, com necessidade e universalidade, i.e. com objetividade (juízos de experiência); ficaria garantida, em outras palavras, a possibilidade de um conhecimento teórico ou científico. Cruzando esta perspectiva com a perspectiva do velho embate entre Parmênides e Heráclito, poderíamos dizer que Kant situa no sujeito a estrutura formal do Ser, devendo este, contudo, completar-se materialmente apenas com o preenchimento dessa estrutura pelo devir dos objetos (dados na sensibilidade). E assim, feita a ressalva de que o Ser corresponde aí às coisas não como sejam em si mesmas, mas como sejam “para nós” (fenômenos), estaria resolvido o problema da objetividade do nosso discurso no que se refere aos enunciados em que dizemos das coisas o que elas são, ou em que dizemos do vir-a-ser o que ele é (para nós). Ao ter em vista, no entanto, à luz desse panorama, o discurso em que o homem fala sobre si mesmo, encontramos alguns elementos complicadores. Primeiramente, deve ser distinguido o caráter formal do homem, enquanto consciência em geral (as faculdades de conhecimento e seus conceitos), do seu caráter material, correspondente ao seu “ser dado” na intuição como objeto de conhecimento – um fenômeno de que se pode dizer, como de qualquer outro, o que é (perspectiva de um discurso científico sobre o homem). Enquanto naquele primeiro caráter temos tão somente a consideração das estruturas lógicas que configuram a forma do conhecimento, ou, para usar os termos da “Analítica”, um sujeito transcendental (lógico) que não possui qualquer existência no tempo e no espaço, no segundo temos justamente a determinação desta existência do homem no tempo e no espaço, configurada nos diversos sujeitos empíricos particulares cujo conjunto constitui a humanidade: destes últimos diremos, por exemplo, que são seres vivos com tais e tais características. Se, no entanto, ao pensarmos no discurso em que o homem fala sobre si mesmo, estivermos pensando no discurso que de fato vemos o homem elaborar sobre si mesmo, nas mais diversas sociedades, nas mais diferentes épocas, tanto em perspectivas complexas (os livros da tradição filosófica) como em perspectivas do homem comum, temos de reconhecer que tal discurso jamais se esgota em enunciados que dizem como o homem é;

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também os enunciados que dizem, direta ou indiretamente, como o homem deve ser, são enunciados que se fazem sempre presentes em tal discurso, e nenhuma filosofia que pretenda falar consistentemente sobre o homem pode deixá-los de lado sem antes proceder a uma análise suficientemente elaborada dos mesmos. Ora, aqui está, justamente, o outro grande elemento complicador que se apresenta ao pensamento de Kant quando a perspectiva adotada para dar conta da objetividade do conhecimento se cruza com o discurso em que o homem fala sobre si mesmo: se aquela perspectiva é capaz de transferir necessidade e validade universal aos enunciados do primeiro tipo, ela acaba no entanto por impedir aos do segundo tipo qualquer acesso a essas mesmas características. Afinal, ao salvamento da objetividade do conhecimento empírico (“resultado positivo da solução transcendental”) havia correspondido um impedimento do acesso cognitivo a todo e qualquer objeto não passível de ser dado em alguma experiência (“resultado negativo”) – e a noção de dever, por sua própria natureza, é uma noção que jamais será dada como tal em alguma experiência possível.204 Desse modo, aquela parte do discurso humano que versa sobre como o homem (e, eventualmente, o próprio mundo) deveria ser fica excluída do universo discursivo cuja objetividade é garantida pela primeira Crítica, e a experiência, que já em Hume era incapaz de fornecer qualquer fundamento, para o discurso teórico como para o discurso moral, mostra-se agora, subordinada por Kant às leis a priori do entendimento, um terreno ainda menos favorável às pretensões da moral, já que o único discurso necessário e universal que ela nos permite proferir sobre o homem é o discurso empírico da ciência, que nos mostra um ser inteiramente submetido às leis naturais – frente às quais a noção de dever não passa de uma quimera. Do ponto de vista do conhecimento empírico poderíamos tentar mostrar, por exemplo, que o hábito de não matar é um hábito mais difundido do que o hábito de matar e, com isso, “provar” que os assassinos são minoria. Nada disso, porém, serviria para fundamentar o comando moral “não matar” em seu caráter obrigatório, pois do fato de uma característica ser majoritária não se segue que a minoria que não a possui deva adquirila. Em assim sendo, todos os valores morais deveriam ser reduzidos a preferências empíricas, subjetivas e contingentes, e o discurso moral teria de ser explicado como um

204

Grundl, Ak.IV, 389. 109

conjunto de enunciados sem qualquer objetividade por meio dos quais os seres humanos tentam controlar os comportamentos uns dos outros. Na verdade, estamos lidando aqui com uma dificuldade que é própria ao problema da moral em sua generalidade e que, em muitos casos (boa parte da tradição filosófica), aparece englobada pelo problema da objetividade discursiva de nosso conhecimento em geral, de tal modo que resolver este último implicaria resolver também aquele. No caso de Kant, porém, essa relação não apenas não se verifica, como ocorre o inverso: a solução do problema do conhecimento teórico parece, pelo menos a princípio, dificultar ainda mais a solução do problema moral, já que toda objetividade cognitiva repousa na conjunção entre os conceitos do entendimento e os dados da experiência, e a noção de dever não aparece nessa conjunção. Sendo assim, ao tentar resolver também este problema, i.e. ao tentar dotar o discurso moral de objetividade,205 Kant estará lidando com um problema independente e terá de encontrar um fundamento outro que não o do conhecimento teórico, e um tal que não entre em contradição com este último – do contrário o sistema de sua filosofia se tornaria incongruente. Desse ponto de vista, uma primeira proibição a ter em conta, face aos ensinamentos da Crítica da Razão Pura, é a de não sair à procura do fundamento da moral em objetos supra-sensíveis, incluídos aqui os que corresponderiam às idéias especulativas da razão, pois a eles não podemos ter qualquer tipo de acesso. Afastada tal hipótese, no entanto, parecem restar poucas alternativas à nossa investigação: se tanto a experiência como o supra-sensível que costumamos imaginar (respectivamente a “ilha da verdade” e o “oceano de ilusões”, na imagem que nos vinha servindo de pano de fundo) são incapazes de fornecer o fundamento ora procurado – a primeira por ser absolutamente contingente com relação ao “dever ser” (embora necessária com relação ao “ser”), o segundo por estar além de nosso alcance cognitivo –, só nos resta examinar as nossas próprias faculdades: uma vez mais, a necessidade demandada por nosso discurso (no caso, o discurso moral) tem de repousar em princípios a priori “localizados” em nós mesmos enquanto conjunto formal de propriedades 205

Também aqui, no âmbito prático, pareceu-nos profícua a leitura de Rousset no que tange à compreensão da filosofia kantiana como uma filosofia voltada a resolver o problema da objetividade. Com relação à moral, afirma ele que “a filosofia prática de Kant não é imediatamente uma moral do dever; ela só se torna uma na medida em que é antes uma doutrina da objetividade e da autonomia” (Rousset, B. Op.cit., p. 515). Em outra passagem: “A filosofia prática prolonga assim no dever e na fé o movimento presente na filosofia teórica:

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universais. Aqui, porém, o entendimento é também um caminho bloqueado, já que sua função se resume a uma função lógica (transcendental) de conceptualização que só pode valer, como fundamento, para o discurso em que dizemos das coisas como elas são, não para o discurso em que dizemos como elas devem ser. Assim, é só mesmo na razão, nossa mais elevada faculdade, a única que trabalha com princípios em sentido estrito, que podemos esperar encontrar o fundamento da moral, devendo a necessidade dos comandos morais traduzir-se numa validade universal que Kant muitas vezes representa com a idéia de uma totalidade dos seres racionais – opondo-se este conceito, em sua universalidade, aos “meros homens”, i.e. aos homens considerados em sua particularidade empírica (ou sua natureza contingente):

Todos têm de reconhecer: que uma lei, para valer como moral, i.e. como fundamento de uma obrigatoriedade, deve ser dotada de absoluta necessidade; que a prescrição, por exemplo, ‘tu não deves mentir’, não é válida apenas para homens, como se outros seres racionais não tivessem de observá-la – o mesmo valendo para todas as demais leis morais; que portanto o fundamento da obrigatoriedade deve ser procurado não na natureza do homem, ou nas circunstâncias do mundo em que ele está situado, mas simplesmente a priori em conceitos da razão pura; e que nenhuma outra prescrição que esteja fundada em princípios da mera experiência, embora possa ser em certos aspectos universal, poderá jamais, pelo fato de estar, ainda que minimamente, fundada numa base empírica, ser chamada de uma lei moral – ela poderá apenas, eventualmente, ser chamada de uma regra prática. (Grundl, Ak.IV, 389)206

Kant define assim um norte bastante preciso para a investigação do fundamento da moral, à qual estará dedicada a Fundamentação da Metafísica dos Costumes207 (de cujo prefácio, não à toa, foi extraída essa passagem): tal fundamento tem de ser buscado entre os conceitos a priori da razão pura, o que implica desde logo que não pode conter nenhum elemento empírico ou derivado da experiência, pois neste caso a contingência da última o

ainda que não se trate da mesma objetividade, há apenas um único movimento do sujeito em relação à posse da objetividade, como há uma única razão” (idem, p. 588). 206 Primeiro grifo nosso. 207 Nas palavras de Kant, o objetivo da Fundamentação é a “investigação e determinação do princípio supremo da moralidade” (Grundl, Ak.IV, 392). 111

contaminaria e os comandos morais deixariam de possuir necessidade.208 O discurso moral (aquele em que o homem fala de si mesmo como deve ser) tem, portanto, de ser examinado a partir dessa perspectiva: é preciso encontrar nele os elementos que possam ser atribuídos exclusivamente à razão, i.e. os elementos que não tenham, direta ou indiretamente, qualquer origem na experiência. Deixando inicialmente de lado uma possível indagação acerca da “realidade objetiva” desses elementos, Kant procura concentrar-se na sua identificação e na demonstração de que são os únicos capazes de fornecer um fundamento para a moral ou, em outras palavras, de que, se é para “falar em moral” (tal como fazemos, explicita ou implicitamente, em nossa vida cotidiana, e tal como fazem as mais diversas sociedades humanas, nas mais variadas épocas), então esses elementos têm de estar na sua base. Se nos lembrarmos do papel que teve, para a solução do problema da objetividade do conhecimento teórico, a distinção entre forma e matéria, no sentido de que conceitos como causa, substância e necessidade, identificados como elementos formais do discurso teórico (retirando-se deles toda matéria empírica), podiam por isso mesmo ter sua origem situada a priori no entendimento, devemos verificar agora, no que diz respeito ao discurso moral, se não pode ser feito algo similar. Será que o caminho, para chegar à descoberta do “princípio supremo da moralidade”, não deveria começar justamente pela identificação dos elementos formais que fazem parte do discurso moral, já que apenas a estes poderia ser atribuída a origem a priori ora buscada (ainda que desta vez na razão, e não no entendimento)? Ora, é precisamente este, com efeito, o movimento desenvolvido por Kant nas duas primeiras seções da Fundamentação: partindo do “conhecimento racional comum da moralidade”,209 i.e. do que poderíamos identificar como o discurso em que as pessoas comuns falam sobre moral, ele tenta, fazendo abstração dos seus elementos materiais (empíricos), identificar os que sejam formais, de modo a poder chegar à forma mais geral da noção de moral como o princípio moral fundamental – um princípio cuja origem poderá ser dita, então, uma origem a priori na razão.

208

Cf. tb. Grundl, Ak.IV, 408: “Quando acrescntamos que, a menos que queiramos privar a noção de moralidade de verdade ou de referência a algum objeto, temos que admitir que sua lei deve ser válida não apenas para os homens mas também para todas as criaturas racionais em geral, não apenas sob certas condições contingentes ou com exceções mas com absoluta necessidade, então é evidente que nenhuma experiência poderia permitir-nos sequer inferir a possibilidade de tais leis apodíticas”. 209 Grundl, Ak.IV, 393. 112

Para desenvolver esse movimento, Kant toma como ponto de partida o conceito de uma vontade absolutamente boa, que, correspondente à noção comum de caráter (ou de um bom caráter) e “presente no entendimento natural saudável”210 de qualquer um, seria a única coisa no mundo a que podemos chamar boa sem quaisquer restrições,211 constituindo assim a noção essencial da concepção comum de moralidade. Através da sua análise (i.e. por meio de relações analíticas apenas), ou da análise do conceito de dever, que o engloba e que, portanto, é mais amplo (a idéia de que os homens devem agir de determinada maneira antecede logicamente a atribuição de valor à vontade pela qual eventualmente o farão),212 seria possível, segundo Kant, chegar aos elementos formais da moralidade e, dentre estes, atingir o mais alto de todos, apto a constituir o seu princípio supremo. Assim, os primeiros passos da Fundamentação consistirão numa tal análise e Kant tentará mostrar-nos algumas proposições que estão analiticamente contidas na noção ou conceito de dever – proposições que expressam, por exemplo, a idéia de que uma ação humana, para ser considerada moral, deve guardar não apenas uma conformidade exterior para com o dever, mas ainda uma conformidade interior, i.e. ter como fundamento subjetivo o próprio dever.213 Ora, é fácil notar como uma idéia assim está presente na noção comum de moralidade: todos distinguimos naturalmente, por exemplo, o caso do indivíduo que deixa de assassinar um inimigo porque respeita, no seu foro íntimo, o dever de “não matar”, do caso do indíviduo que deixa de assassiná-lo simplesmente porque tem medo de ser preso ou repudiado pela sociedade em que vive; e todos atribuímos naturalmente um valor pessoal muito maior ao primeiro do que ao segundo. Tudo o que Kant está querendo mostrar-nos é que uma idéia desse tipo está necessariamente presente na noção comum de moralidade e é aplicável a todo e qualquer comando moral particular, o que implica a perspectiva de poder traduzi-la numa proposição de caráter geral, assim eliminando os elementos empíricos e contingentes junto aos quais ela costuma “aparecer” (como no exemplo mencionado). Este 210

Grundl, Ak.IV, 397. Grundl, Ak.IV, 393. Rousset, tentando explicar essa idéia, afirma: “Para esta (a consciência racional comum da moralidade), com efeito, a única coisa que é absoluta e originariamente boa, e que confere tanto valor a tudo que possa ser desejado quanto mérito a um sujeito, é a “vontade boa”: entendamos por esta o fato de querer o bem e a lei unicamente em virtude de serem o bem e a lei, ou seja, o puro respeito pelo que deve ser, independentemente de qualquer interesse subjetivo e mesmo contra toda subjetividade, simplesmente por tratar-se de uma necessidade objetiva universal” (Rousset, B. Op.cit., pp. 516-7). 212 Grundl, Ak.IV, 397. 213 Esta seria a primeira proposição que pode ser descoberta nessa análise da noção de dever. Ela é explicada por Kant em Grundl, Ak.IV, 397-9. 211

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é, com efeito, o procedimento por meio do qual se perfaz aquela operação de eliminação dos elementos materiais e identificação dos elementos formais num dado universo discursivo, neste caso o do “conhecimento racional comum da moralidade”. Da mesma forma, outra idéia fundamental que Kant desvenda por trás da noção de dever é a de que “uma ação deriva seu valor moral não do propósito que deve ser atingido por meio dela, mas da máxima pela qual é determinada,214 e depende, portanto, não do objeto da ação, mas apenas do princípio da vontade pelo qual, independentemente de qualquer objeto do desejo, a ação ocorreu”.215 O que está em jogo, neste caso, é o aspecto da incondicionalidade que a noção de dever traz consigo: uma vez que todos os elementos empíricos de uma ação humana, desde os fatores que a motivaram até a sua execução, emprestam-lhe um caráter subjetivo, particular e contingente, o seu valor moral não pode estar vinculado a estes, pois neste caso se tornaria ele próprio contingente e condicionado – não se poderia dizer, de uma ação, que ela é moralmente justa ou injusta, mas apenas que ela é justa ou injusta relativamente a tal situação concreta. Nesse sentido, o valor moral da ação tem de estar ligado a algum princípio que, por sua vez, não se prenda a qualquer aspecto empírico da ação, i.e. que não se ligue ao seu “propósito” ou a “objetos do desejo” que a possam ter motivado. E a idéia de um tal princípio, combinada com aquela outra (de que não basta haver uma conformidade exterior da ação com o dever) – ambas na verdade muito próximas –, levam à idéia de uma lei pela qual se tenha respeito na hora do agir ou, simplesmente, à proposição: “Dever é a necessidade de agir por respeito à lei”.216 Na verdade, a passagem das duas primeiras idéias a esta última proposição, que é também uma passagem analítica, representa tão somente a introdução de dois conceitos que teriam a propriedade de representá-las adequadamente: o conceito de respeito (Achtung), a designar a primeira idéia que mencionamos (agir por respeito ao dever, ou à lei que o expressa), e o conceito de lei (Gesetz), a designar a segunda (um princípio desprovido de qualquer subjetividade,

214

Uma máxima é, de acordo com Kant, o “princípio subjetivo da vontade”, i.e., o princípio que está por trás de nossa vontade quando decidimos agir de determinada maneira. (Grundl, Ak.IV, 401) 215 Grundl, Ak.IV, 400. 216 Idem, ibidem. 114

particularidade ou contingência, i.e. um princípio objetivo).217 A partir disso, o conceito de lei passa a ser o conceito representativo da noção de moralidade do ponto de vista de um conhecimento rigoroso acerca do mesmo (daí a primeira seção da Fundamentação intitularse “passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao filosófico”), e é com base nele que a investigação deve prosseguir, começando por determinar o seu significado intrínseco, i.e. o que ele significa enquanto conceito puro, desvinculado de toda e qualquer particularidade empírica (um conceito que “só é possível num ser racional”):218

Mas que tipo de lei pode ser essa, cuja representação, mesmo sem qualquer referência ao efeito esperado, deve determinar a vontade, de tal modo que esta possa ser chamada boa absolutamente e sem restrições? Na medida em que eu roubei à vontade todo impulso (Antrieb) que pudesse nascer da obediência a alguma lei, nada sobrou senão a conformidade universal a leis (allgemeine Gesetzmäßigkeit) das ações em geral – a qual é, unicamente, capaz de servir à vontade de princípio, i.e. eu não devo agir de nenhum outro modo que não o de poder desejar ao mesmo tempo que minha máxima se torne uma lei universal. É portanto a mera conformidade a leis em geral (sem ter por fundamento uma lei particular aplicável a certas ações) que serve aqui de princípio à vontade, e que deve mesmo servir, para que o dever não seja uma ilusão vazia ou um conceito quimérico. (Grundl, Ak.IV, 402.)

É essa idéia de “conformidade universal a leis”, portanto, que Kant reconhece como sendo a forma pura (i.e. depurada de todo e qualquer elemento particular e contingente) da noção de dever, e que constitui assim o princípio da vontade absolutamente boa – a qual só é concebível em seres racionais, já que apenas estes são capazes de agir de acordo com um conceito puro (enquanto que todos os demais seres têm seu movimento determinado mecanicamente pela lei da natureza empírica e suas ações resultam de inclinações sensíveis).219 Uma vez, no entanto, que as ações humanas são também particulares e contingentes (e o são pelo simples fato de serem dadas no tempo e no espaço), é preciso que esse princípio possa expressar-se na forma de um comando, ou imperativo, a ditar como tais ações devem ser, ou como deve agir o indivíduo humano: “aja apenas segundo a 217

Kant define “lei”, na mesma nota em que dá essa definição de “máxima”, por oposição a esta: “O princípio objetivo (i.e. aquele que serviria também subjetivamente como um princípio prático para todos os seres racionais, caso a razão tivesse poder completo sobre a faculdade de desejar) é a lei prática” (idem, ibidem). 218 Idem, ibidem.

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máxima mediante a qual você possa ao mesmo tempo desejar que ela se torne uma lei universal”.220 A tal imperativo, Kant chama imperativo categórico, de modo a distingui-lo, no seu caráter absolutamente necessário (enquanto comando válido para todo e qualquer ser racional, portanto para todo e qualquer ser humano, independentemente de propósitos subjetivos particulares), dos imperativos contingentes que formulamos com base em princípios empíricos (imperativos hipotéticos). Embora também digam como a ação “deve ser”, estes últimos estão sempre vinculados a alguma finalidade concreta que os condiciona: quando dizemos, por exemplo, que as pessoas devem cuidar da saúde, temos em mente finalidades como ter uma vida mais longa, preservar um maior bem-estar etc. – as quais são incapazes de fazer do imperativo “cuide de sua saúde” um imperativo absolutamente necessário, i.e. categórico, simplesmente porque são finalidades empíricas e, nessa medida, ainda que toda a humanidade as partilhasse (o que certamente não é o caso), não poderiam ser ditas necessárias.221 A formulação correta desse imperativo seria algo como: “se você quer uma vida longa, então cuide de sua saúde”, e neste caso seria sempre impossível atribuir qualquer valor objetivo às ações, já que elas só poderiam ser ditas “boas” com referência a algum fim subjetivo e contingente; do ponto de vista do imperativo categórico, ao contrário, as ações são ditas boas em si mesmas, e o são justamente porque na sua base está o respeito pelo puro conceito da lei tal como acima formulado, i.e. nos termos de uma conformidade universal a leis:222

219

Grundl, Ak.IV, 412. Grundl, Ak.IV, 421. 221 Grundl, Ak.IV, 414 e ss. 222 Trata-se aí de um exemplo que nos pareceu interessante, mas que é ao mesmo tempo problemático. Embora, na Fundamentação, quaisquer finalidades empíricas devam estar excluídas da idéia do imperativo categórico, já que não podem servir para fundamentá-lo, a Metafísica dos Costumes, mais especificamente na Doutrina da Virtude, mostrará como, a partir do imperativo categórico – já então fundamentado –, certos fins específicos se tornarão deveres, num movimento que permitirá a Kant “preencher” a moral, cuja essência é a priori, de conteúdos que, embora materiais, estejam-lhe conectados por fios estritamente formais: “A ética ... busca ... uma matéria (um objeto do livre arbítrio), um fim da razão pura que seja ao mesmo tempo representado como objetivamente necessário, i.e. como dever para o ser humano. Pois, na medida em que as inclinações sensíveis conduzem a fins (constituintes da matéria do arbítrio) que podem ser contrários ao dever, a razão legisladora só pode contrabalançar a sua influência por meio de um fim moral que lhes seja oposto e que possa portanto ser dado a priori independentemente da inclinação” (Tugends, Ak.VI, 380-1). Neste sentido, aparece como dever ético para consigo mesmo a autoconservação e, indiretamente, tudo que lhe seja associado (como o cuidar da saúde), já que tal princípio se opõe ao do suicídio, que colide 220

116

Quando eu imagino um imperativo hipotético em geral, eu não sei de antemão o que ele contém – não até que a condição me seja dada. Quando porém eu imagino um imperativo categórico, já sei de antemão o que ele contém. Pois se o imperativo, além da lei, contém apenas a necessidade de que as máximas se conformem a esta lei – não tendo esta nenhuma condição a restringi-la –, então nada sobra senão a universalidade de uma lei em geral, à qual as máximas das ações devem conformar-se, e é esta conformidade apenas que o imperativo representa como necessária. Portanto existe um único imperativo categórico, que é o seguinte: aja apenas segundo a máxima mediante a qual você possa ao mesmo tempo desejar que ela se torne uma lei universal. (Grundl, Ak.IV, 420-1)

O imperativo categórico constitui assim uma formulação precisa do princípio supremo da moralidade, que era visado pela investigação kantiana, e sua propriedade essencial é a de estabelecer um nexo entre o princípio objetivo (necessário) da conformidade universal a leis (fundado a priori na razão) e a vontade humana, que, ao manifestar-se concretamente em ações, é sempre − e por sua própria natureza − subjetiva e contingente.223 Se nós não existíssemos no espaço e no tempo e, assim, despidos de nossa humana contingência, consistíssemos apenas em formas racionais puras, nossa vontade estaria conectada necessariamente a esse princípio objetivo,224 não fazendo sentido falar em dever. Como este, porém, não é o caso, e nossa vontade é também influenciada pelas inclinações sensíveis que a lei natural nos impõe, o referido nexo, estabelecido pelo imperativo categórico, revela-se necessário para mostrar claramente à consciência dos homens qual a forma de agir ditada pela razão pura225 – uma forma de agir que é necessária, enquanto dever, independentemente de eles a seguirem ou não no plano sensível das ações (afinal, o fato de um dever não ser cumprido não desfaz o seu valor).226 A despeito, porém, da precisão e da clareza de tal formulação, Kant nos mostra que o mesmo princípio deve ser expresso por meio de outras formulações, as quais teriam a dupla virtude de, por um lado, trazer à luz outros elementos também contidos no conceito diretamente com o imperativo categórico, tal como já a Fundamentação deixara claro (Grundl, Ak.IV, 421-2; Tugends, Ak.VI, 421-8). 223 Grundl, Ak.IV, 414. 224 Grundl, Ak.IV, 426. 225 Grundl, Ak.IV, 412-3. 226 Grundl, Ak.IV, 414. 117

de moralidade, e, por outro, favorecer a aplicabilidade do imperativo.227 Por meio de simples ligações analíticas, portanto, Kant desdobrará a primeira formulação do imperativo categórico em algumas outras, especialmente nas que expressam a idéia de fim em si mesmo (“fórmula do fim em si mesmo”) e o princípio da autonomia (“fórmula da autonomia”).228 O raciocínio que leva à primeira delas é similar ao que acima utilizamos para mostrar que apenas por meio do imperativo categórico é possível falar numa vontade boa em si mesma: do ponto de vista da nossa vontade empiricamente determinada, atribuímos valor a tudo aquilo que é objeto de nossos desejos e, neste sentido, todo valor é relativo a estes desejos ou ao seu fundamento subjetivo, assim como os imperativos que a partir deles eventualmente formulemos (imperativos hipotéticos).229 Ora, para falar em moral, e para que o próprio imperativo categórico possa fazer sentido, é preciso que haja algo a que possamos atribuir valor absoluto, o que equivale a encontrar algo que seja um fim em si mesmo (que não possa ser um meio relativo a outro fim): sendo o princípio supremo da moralidade um princípio a priori da razão, devemos então supor em todos os seres racionais uma unidade que é um fim em si mesma, não podendo jamais servir de meio a outro fim.230 Esta unidade, por seu turno, é representada pelos conceitos de pessoa e humanidade, e a formulação do imperativo que lhe corresponde é: “aja de tal maneira que a humanidade, na sua pessoa assim como na pessoa de todos os demais, seja usada sempre como fim, e nunca como meio”.231 Se pensarmos agora essa segunda formulação, e o princípio nela expresso, que determina o valor absoluto dos seres racionais como fins em si mesmos, em combinação com a primeira formulação e o princípio da conformidade universal a leis, seremos levados a um novo princípio capaz de juntá-los numa única formulação. Sendo os seres racionais,

227 De acordo com o esclarecimento de Kant, “os três modos de apresentar o princípio da moralidade que foram aduzidos são no fundo apenas tantas fórmulas da mesma lei, e cada um deles envolve os outros dois. Há, contudo, uma diferença entre eles, que tem por fim, antes subjetiva que objetivamente, trazer a idéia da razão mais próxima à intuição (por meio de certas analogias) e, portanto, mais próxima ao sentimento” (Grundl, Ak.IV, 436). 228 Estas seriam, segundo Kant, respectivamente a segunda e a terceira fórmulas (sendo a primeira a “fórmula da universalidade”). No entanto, como bem o aponta Paton, é possível identificar ainda duas outras: a fórmula da natureza, subsidiária da primeira (1b), e a fórmula do reino dos fins, subsidiária da terceira (3b). Cf. Paton, H.J. The categorical imperative. A study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia: Univ. of Pennsylvania Press, p. 129. 229 Grundl, Ak.IV, 427. 230 Grundl, Ak.IV, 428. 231 Grundl, Ak.IV, 429.

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individual ou coletivamente considerados, fins em si mesmos, a idéia de uma conformidade a leis que lhes seja essencial só pode sustentar-se se eles próprios forem os autores destas leis, porquanto, se não o fossem, estariam submetidos a leis impostas por uma vontade estranha à sua e, nessa medida, deixariam de ser fins em si mesmos. Assim, é também um dado fundamental da moralidade que os seres racionais sejam, através de sua vontade, os seus próprios legisladores universais, de tal modo que a conformidade a leis expressa no primeiro princípio corresponda tão somente à realização de sua própria natureza, que por si só exclui todo e qualquer interesse determinado empiricamente:

Portanto o princípio de cada vontade humana como uma vontade universalmente legisladora por meio de todas as suas máximas, caso devidamente justificado, adequa-se bem ao imperativo categórico, na medida em que, justamente por conta da idéia da legislação universal, ele não se funda em interesse algum e portanto é o único entre todos os imperativos que pode ser incondicional. Ou ainda melhor, invertendo a frase: se há um imperativo categórico (i.e. uma lei para a vontade de todo ser racional), então ele só pode ordenar que tudo seja feito a partir das máximas da sua vontade, concebida esta como uma vontade que ao mesmo tempo pode ter-se universalmente legisladora como objeto; pois somente assim o princípio prático e o imperativo que ele obedece são incondicionais, já que não podem estar baseados em nenhum interesse. (Grundl, Ak.IV, 432)

Esse é o princípio da autonomia que, como já adiantado, está na base da terceira formulação do imperativo categórico, a saber: “aja de tal maneira que a vontade possa ao mesmo tempo, por meio de suas máximas, conceber-se como legisladora universal”.232 Embora, como a todo tempo salienta Kant, as três formulações sejam variações em torno de um mesmo princípio, é possível afirmar que esta última acaba tendo uma importância maior na caracterização da moralidade face à natureza humana, já que funda o seu princípio supremo numa autonomia absoluta da vontade.233 Como já foi dito, as ações humanas, na medida em que estão dadas no tempo e no espaço (i.e. acontecem no mundo), são sempre contingentes, e a vontade dos seres humanos particulares aparece necessariamente

232 233

Grundl, Ak.IV, 434. Grundl, Ak.IV, 440. 119

submetida a influências determinadas mecanicamente pela lei da natureza (heteronomia)234 – neste caso, portanto, sem qualquer poder legislativo sobre as ações. Se por outro lado, porém, há na razão humana um princípio objetivo a priori que igualmente dita leis às ações, então a vontade humana, concebida em sua pureza formal (quando está necessariamente conectada à razão), pode ser vista como a própria autora destas leis, de tal modo que a moralidade consiste não num conjunto de leis impostas ao homem por alguma “autoridade superior”, mas sim num conjunto de leis que o próprio homem, enquanto razão pura, dá a si mesmo enquanto agente no tempo e no espaço (autonomia). Essa é a idéia que constitui o núcleo essencial da moralidade, pois é a única, de acordo com o raciocínio kantiano, capaz de dotá-la, e a cada uma das noções nela contidas, de objetividade: se, no lugar da determinação das ações pela lei natural, se imaginasse por exemplo alguma legislação supra-sensível (as leis de Deus), a vontade humana continuaria submetida a uma lei estranha e teria, para tornar-se moral, de basear-se em sentimentos contingentes como o temor a Deus (isto sem falar no fato de que a própria suposição não teria como fundamentar-se).235 Já a idéia de que a vontade é universalmente legisladora, na medida em que exclui todo e qualquer propósito ou interesse contingente, permite enxergar valor objetivo não apenas na lei moral como também na pessoa do ser racional (pessoa humana), que é em si mesma responsável pela lei: “a dignidade da humanidade consiste justamente nesta capacidade de ser universalmente legisladora, desde que com a condição de estar ela própria submetida a esta mesma legislação”.236

O princípio da autonomia, abarcando em si também os outros princípios morais fundamentais (da universalidade e do fim em si mesmo), aparece portanto como o ponto culminante da análise kantiana da moralidade, na medida em que nele estão representadas, em sua totalidade, as condições de possibilidade do discurso moral, naquele sentido de que, se é para falar em moral, então o princípio da autonomia, enquanto conceito a priori da razão, tem de estar na sua base. Se assim não fosse, os conceitos morais estariam fundados em conhecimentos empíricos acerca da natureza humana e, consequentemente, não se

234

A heteronomia é o princípio pelo qual “a vontade busca a lei que deve determiná-la em outra parte que não na capacidade de suas máximas serem suas próprias leis universais” (Grundl, Ak.IV, 441). 235 Cf. KpV, Ak.V, 146-8. 236 Grundl, Ak.IV, 440. 120

vinculariam a uma noção necessária de dever: como já dissemos, esse tipo de conhecimento permitiria apontar características gerais presentes no ser humano, mas não poderia jamais fundamentar um dever ou uma obrigação moral – algo que não foi percebido, segundo Kant, pelas tantas tentativas (equivocadas), anteriores à sua, de estabelecer um fundamento para a moral.237 O mérito e a originalidade da estratégia kantiana estariam aqui, assim como no plano do conhecimento teórico, em fazer repousar em princípios a priori, puramente formais, a objetividade pretendida pelo nosso discurso: aqui, como lá, não se tratou de criar novos conceitos onde não os houvesse, mas sim de descobrir, por trás da aparente contingência dos conhecimentos, determinados conceitos sem os quais deixaríamos de poder construir juízos dotados de necessidade e universalidade.238 Tem-se então que o ser humano, embora existente no tempo e no espaço como qualquer outro fenômeno, é também um conjunto de propriedades a priori por meio das quais pode ele, de um lado, conhecer a natureza, e, de outro, elaborar suas próprias leis (para eventualmente agir de acordo com elas no plano fenomênico). Conforme vimos, é esta sua última propriedade que nos autoriza a falar em coisas como dignidade, moralidade das ações, vontade absolutamente boa etc.: se o ser humano fosse apenas um fenômeno, um objeto como qualquer outro (aqui incluídos os animais), tais conceitos não passariam de imagens contingentes sem qualquer significado objetivo. A partir do conceito de autonomia, no entanto, será possível atribuirmos tais conceitos aos seres humanos e a suas ações, dizendo, objetivamente, “esta ação é moralmente correta”, “tal pessoa é uma pessoa digna”, e assim por diante. Na verdade, trata-se aqui de juízos que a todo tempo fazemos em nossa experiência cotidiana, e que fazem as mais diversas comunidades, nas mais variadas épocas: Kant não pretendeu criar novos conceitos ou novas leis morais, mas simplesmente analisar a moral que é perceptível na realidade da vida humana e extrair os

237

Cf. Grundl, Ak.IV, 441-5. Krüger, referindo-se a esse movimento, diz: “A filosofia tão somente formula aquilo que a vida conhece como um comando. Ela “investiga e determina” o princípio moral supremo; ela simplesmente lhe dá “uma nova fórmula”. Não há aí qualquer motivo para reprovação, como acreditava um crítico; quem quereria afinal inventar uma nova moralidade, como se o mundo houvesse estado até então na ignorância ou no erro em tal domínio?” (Krüger, G. Op.cit., p. 179). Já Paton, ilustrando o paralelo entre as estratégias teórica e prática, afirma: “a menos que aceitemos, consciente ou inconscientemente, o ideal de um princípio objetivo da razão teórica, a conseqüência, a longo prazo, é a insanidade. A menos que aceitemos o ideal de princípios objetivos da razão prática, a conseqüência, a longo prazo, é a insanidade criminal; e eventos recentes sugerem que o prazo não precisa ser tão longo” (Paton, H.J. Op.cit., p. 249). 238

121

seus princípios formais – os quais teriam então (caso a moral não seja uma quimera) uma origem a priori em nossa razão.

122

• Seção II. Moralidade e liberdade: a questão da realidade objetiva da lei moral e a elaboração de um conhecimento prático.

De acordo com o exposto até aqui, a solução adotada por Kant para resolver o problema da objetividade do discurso moral teria algo de muito similar àquela adotada para resolver o problema da objetividade do conhecimento teórico: em ambos os casos, tratar-seia de situar em princípios a priori o fundamento buscado. No entanto, enquanto na última houve todo um movimento no sentido de demonstrar a submissão necessária da experiência ao sujeito transcendental, naquela outra tudo pareceu um tanto mais “simples”, tendo bastado extrair os princípios gerais (formais) da moralidade para, em seguida, “postular” o seu caráter a priori: ainda que Kant nos tenha mostrado que isso é condição absolutamente necessária da objetividade moral, parece ficar faltando um certo “ponto de contato” com a realidade (como teria havido com as categorias do entendimento na “Dedução Transcendental”). Se toda a realidade que podemos conhecer é aquela que pode ser dada numa experiência possível, e se desde o princípio está clara a impossibilidade de os princípios morais estarem vinculados à experiência, então a filosofia moral kantiana, tal como até aqui apresentada, não nos estaria levando muito longe: um conceito como o de conformidade universal a leis, por exemplo, pode não passar de um conceito vazio, analiticamente conectado à noção comum de moralidade mas desprovido de qualquer realidade objetiva – o mesmo valendo para os conceitos de humanidade como fim em si mesma e de autonomia.239 Embora, de acordo com a demonstração desenvolvida por Kant nas duas primeiras seções da Fundamentação, fique bem clara a necessidade de que os princípios morais tenham sua origem a priori na razão, e de que o princípio da autonomia constitua o mais alto dentre tais princípios – sendo possível, a partir dele, construir-se todo um sistema

239

Conforme as palavras do próprio Kant, ao final da segunda seção da Fundamentação: “Nós simplesmente mostramos (até esse momento do tratado), pelo desenvolvimento da noção universalmente utilizada de moralidade, que a autonomia da vontade lhe é inevitalmente conectada, ou antes é o seu fundamento. Quem quer portanto que conceba a moral como algo que não uma idéia quimérica sem qualquer verdade, deve então admitir esse seu princípio. Esta seção, portanto, como a primeira, foi meramente analítica. Agora, para provar que a moralidade não é uma criação da mente – o que não será se o imperativo categórico, e com ele a autonomia da vontade, forem verdadeiros –, e que é absolutamente necessária como um princípio a priori, isto supõe o a possibilidade de um uso sintético da razão pura prática, o qual contudo não podemos examinar sem antes proceder a um exame crítico desta faculdade da razão” (Grundl, Ak.IV, 445). 123

moral (sob o nome de uma Metafísica dos Costumes)240 –, nada disso é capaz, por si só, de mostrar-nos a realidade de tal sistema ou impedir que concluamos pela vacuidade de todas as noções nele presentes. Reconhecendo valor à argumentação kantiana, poderíamos pensar então: “Eis aí o que é a moral; eis aí o que está por trás de todas as pretensões valorativas (morais) do discurso humano; pena, porém, que tudo isso não passe de uma quimera, de uma grande quimera que, mesmo presente em todas as comunidades humanas e épocas históricas, nem por isso adquire realidade”. Na verdade, poderíamos até mesmo, indo mais longe, recorrer à experiência – de acordo com o próprio Kant a única instância de realidade a que temos “acesso” – e mostrar o quanto as evidências empíricas dificultam ainda mais a situação, apresentando-nos um ser humano movido por inclinações egoístas e imediatistas, para quem os chamados preceitos morais não passam de obstáculos ou, quando muito, fantasias hipócritas que lhe permitem disfarçar, perante os demais ou a si mesmo, sua verdadeira índole – um ser humano que mata seu semelhante, abandona os parentes, trai os amigos etc. Ora, Kant em nenhum momento deixou de ter plena consciência de tais argumentos, e a estratégia para rebatê-los estará desenvolvida nas etapas seguintes de sua argumentação – etapas que podem ser divididas, fundamentalmente, em duas principais: a primeira delas consistente em firmar de uma vez por todas, contra o argumento de que a experiência contradiz as pretensões morais, a perfeita possibilidade de que os princípios morais sejam reais, o que, por si só, deveria bastar para impedir-nos de enxergá-los como simples quimeras; a segunda consistente em demonstrar de que maneira se estabelece esta sua realidade, tendo-se para tal de recorrer a um registro outro que não o do conhecimento teórico, mas ainda assim firmando-se, objetivamente, a sua ligação com a realidade sensível.241

Quanto a demonstrar a possibilidade de os princípios morais serem reais, a despeito de não estarem “dados” na experiência (primeira etapa), trata-se de uma dificuldade que pode ser posta nos seguintes termos: o ser humano, na qualidade de fenômeno – que é a 240

A Fundamentação da Metafísica dos Costumes teria por objetivo preparar o terreno para esta ciência, cujo nome serve para distingui-la, enquanto parte pura (a priori) dos estudos éticos, da Antropologia, sua parte empírica. (Grundl, Ak.IV, 388) 241 A primeira dessas etapas seria desenvolvida, sobretudo, na terceira seção da Fundamentação; a segunda, na Crítica da Razão Prática. 124

qualidade em que o conhecemos tal como dado na intuição sensível, e a partir da qual dizemos objetivamente como é –, apresenta-se realmente como um indivíduo egoísta e que, como qualquer outro animal, age em função das determinações pela lei natural.242 Quando cogitamos, porém, o discurso em que dizemos do ser humano como ele deve ser, i.e. o discurso em que atribuímos valor a ele e a suas ações, vimos que o fundamento dessa forma de enxergá-lo teria de ser um pincípio puramente formal e a priori, tão formal e a priori quanto os conceitos puros do entendimento – o que nos levou ao princípio da autonomia e ao imperativo categórico (ou, simplesmente, à lei moral) como formas necessárias de sua subjetividade racional. Se, porém, no caso dos conceitos puros do entendimento, podíamos perceber a sua realidade objetiva no fato de eles serem necessários, como condições de possibilidade, à própria experiência, que era por seu turno o ponto de partida de todo o exame crítico das faculdades de conhecimento – algo expresso na célebre fórmula “todo o nosso conhecimento começa com a experiência” –,243 o mesmo não parece poder ser feito com relação a esses conceitos puros da razão que configuram os princípios supremos da moralidade, uma vez que que esta, ainda que tomada como ponto de partida, fôra-o tão somente na condição de um componente natural do discurso humano, com relação a cuja existência não havia essa espécie de “evidência primeira” representada pela experiência. Na verdade, se for possível encontrar algo como uma tal “evidência” da moralidade, esta maneira de colocar a questão já nos deixa bastante claro que, se é para falar em moral (e este é, como já vimos, o mote do argumento kantiano), então também essa “evidência” tem de ser buscada em “outra parte” que não na experiência – pois esta jamais no-la daria. Sendo assim, consideremos o seguinte raciocínio: se, como vimos, o ser humano, antes que se o pense como deve ser, é ao mesmo tempo fenômeno e estrutura lógica transcendental (as suas faculdades pensadas em sua pureza a priori), então ele é necessariamente “algo mais” do que simples fenômeno – e o é desde todo e qualquer ponto de partida: ele é também um conjunto de formas não dadas no tempo e no espaço, i.e. formas atemporais, universais, necessárias etc. Ora, na medida em que a moralidade deve conter em si – e não apenas no seu princípio supremo – todas essas características, então mesmo o seu ponto de partida, ou sua “evidência primeira”, teria de estar no sujeito considerado enquanto forma ou, para empregar termos mais apropriados, no ser humano 242

Grundl, Ak.IV, 406.

125

considerado como razão pura244 – o qual, mesmo não dado na intuição sensível, não deixa de constituir um tipo peculiar de “ser” que pode começar a indicar a realidade objetiva da moralidade: podemos pensar, a partir do seu caráter formal (que é o seu caráter inteligível, evidente tanto no entendimento como na razão), o ser humano como pertencente a duas “ordens” distintas, regidas por diferentes tipos de leis – de um lado, o mundo sensível, em que aparece como fenômeno; de outro, o mundo inteligível, em que aparece como razão:

(...) um ser racional deve enxergar-se, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), como pertencendo não ao mundo dos sentidos, mas ao mundo do entendimento; de tal modo que ele tem dois pontos de vista pelos quais pode enxergar-se e pelos quais pode reconhecer as leis do exercício de suas faculdades, e portanto de todas as suas ações: primeiramente, na medida em que ele pertence ao mundo dos sentidos, sob leis da natureza; segundamente, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, estão fundadas não na empiria, mas puramente na razão. (Grundl, Ak.IV, 452)

Esse duplo ponto de vista constitui assim uma espécie de perspectiva necessária a partir da qual o ser humano se pensa e se enxerga, sem por isso ter de cair inevitavelmente num conflito: o ser humano é, ao mesmo tempo, inteligência (conjunto puramente formal de faculdades) e existência sensível (fenômeno dado na sensibilidade); do primeiro ponto de vista, as leis que o regem são as leis de sua própria razão (idéia de autonomia), e, do segundo, as leis da natureza (heteronomia), de tal maneira que:

como membro apenas do mundo do entendimento, todas as minhas ações seriam portanto perfeitamente conformes ao princípio da autonomia da vontade; como parte apenas do mundo dos sentidos, elas seriam decerto supostas como inteiramente conformes à lei natural dos apetites e inclinações, i.e. à heteronomia da natureza. (As primeiras repousariam no princípio supremo da moralidade; as segundas, no da felicidade.) (Grundl, Ak.IV, 453)

243

KrV, B 1. É nesse sentido que se revela uma diferença estrutural fundamental entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática: enquanto aquela partia da experiência (das formas da sensibilidade, examinadas na Estética Transcendental) para, passando pelo conceitos do entendimento, terminar desembocando nos princípios da experiência, esta última parte dos princípios da moral para terminar falando sobre a perspectiva de sua realização na realidade sensível. Cf. KpV, Ak.V, 16.

244

126

O que podemos assim perceber é que, ao passar de um nível puramente lógico de análise do conceito de moralidade ao nível da consideração do ser humano como sujeito efetivo, real, existente no mundo, tivemos de apontar para uma outra ordem de coisas, regida por um outro tipo de lei, que não a ordem da sensibilidade; uma ordem que é concebida a partir daquele nível puramente lógico, ou puramente formal, que é o nível do ser humano enquanto inteligência (als Intelligenz), mas que agora passou a demandar, por um lado, a possibilidade de “co-existência” com a ordem da sensibilidade (para tal devendo ser provada a não contradição das duas), e, por outro, a possibilidade de as suas leis adquirirem efetividade, i.e. causalidade sobre o ser humano. No caso da primeira exigência, trata-se simplesmente do conceito negativo de liberdade, ou da liberdade como capacidade de produzir efeitos no mundo independentemente das leis naturais,245 e tal conceito já estaria “autorizado” desde as antinomias da razão pura, em que Kant provara a impossibilidade, do ponto de vista especulativo, tanto de provar a existência da liberdade (“tese”), como de provar a sua não existência (“antítese”).246 Desde que a nossa intenção seja apenas, como dito, conceber a possibilidade de uma outra ordem de coisas, regida por outras leis que não as da natureza – algo que fazemos por meio do pensamento –, e não provar cientificamente a liberdade, então não há qualquer problema em fazê-lo, já que a experiência, embora cobrindo o todo da realidade cognoscível, está longe de cobrir o todo do que é cogitável pela razão humana. Chegamos inclusive a afirmar, quanto à primeira Crítica, que Kant estava talvez mais preocupado em impedir esta eventual “hipóstase” da experiência do que em garantir a universalidade da mesma enquanto fonte de conhecimento teórico. Já no caso da segunda exigência mencionada – as leis do ser humano enquanto inteligência constituírem uma causalidade para ele –, trata-se do conceito positivo de liberdade, i.e. da liberdade não como simples independência em relação às leis naturais – que poderia significar uma total ausência de leis –, mas como a representação de uma causalidade específica cujas leis são as leis da razão, i.e. as leis que o próprio ser humano, enquanto inteligência, dá a si mesmo. E neste ponto o conceito de liberdade vem coincidir

245 246

Grundl, Ak.IV, 446. KrV, B 472-9. 127

com o de autonomia, 247 servindo-lhe ao mesmo tempo de fundamento, na medida em que o articula com uma propriedade do ser humano que pode perfeitamente ser real (ou que pode mesmo, como veremos adiante, ser dita de fato real). Em outras palavras, a liberdade coloca-se como condição necessária da própria realidade da moralidade, no sentido de que, se o ser humano não fosse livre, então a moralidade seria necessariamente uma quimera; caso ele seja livre, ao contrário – o que é perfeitamente possível –, então a moralidade, que contém as leis da liberdade, não será uma quimera: é neste sentido que Kant afirma que a liberdade é a ratio essendi da lei moral.248 Se, no nível da análise conceitual, chegávamos à conclusão: “Se é para falar em moral, então o seu princípio supremo tem de ser a priori e tem de ser o princípio da autonomia”, agora acrescentamos: “Se é para falar em moral, o ser humano tem de ser considerado livre”. No entanto, se pudemos com isso avançar um pouco na direção da realidade objetiva da moralidade, podendo considerar o ser humano como livre e, assim, cogitá-lo como pertencente a uma outra ordem de coisas (um mundo inteligível), parece faltar ainda algum elemento capaz de elucidar essa ligação entre liberdade e moralidade. Afinal, pode ser facilmente compreensível o quanto de liberdade é representado pela possibilidade de não obedecer a uma lei que a própria natureza me impõe, mas que a liberdade seja equivalente à obediência a outras leis já não é assim tão compreensível: se sou livre, como posso, ao mesmo tempo, dever obediência a determinada lei? O fato de pertencer a uma outra ordem de coisas poderia estar apenas indicando a minha inserção num outro registro de necessidade, de tal modo que, de um lado, a natureza me impelisse a agir da maneira “X”, e, de outro, a razão me impelisse a agir da maneira “Y”; e da combinação dessas duas determinações, possivelmente aleatória, resultaria a minha ação, sobre a qual eu próprio não teria qualquer responsabilidade.249 Voltaria a ser impossível, nesse sentido, falar em 247

Grundl, Ak.IV, 446 e ss. / Como aponta Paton, “se nós queremos distinguir as leis da liberdade das leis da natureza, só podemos fazê-lo supondo que as leis da liberdade são auto-impostas. A ação causal espontânea de uma vontade livre deve portanto acontecer de acordo com uma lei auto-imposta. Mas isto é justamente o que chamamos de ‘autonomia’; e uma vontade livre deve ser concebida como agindo sob o princípio da autonomia - isto é, como capaz de agir segundo máximas que possam ao mesmo tempo ser desejadas como leis universais” (Paton, H.J. Op.cit., p. 212). 248 KpV, Ak.V, 4. 249 É esta, aproximadamente, a dificuldade a que Kant se refere na célebre enunciação do círculo vicioso que caracteriza a terceira seção da Fundamentação: “Evidencia-se aqui, deve-se admiti-lo abertamente, um tipo de círculo do qual, ao que parece, não há como sair. Nós nos concebemos como livres na ordem das causas eficientes, para pensarmo-nos como submetidos a leis morais na ordem dos fins, e nós nos pensamos em seguida como submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da vontade; pois liberdade e auto128

dever, porquanto nada me faria compreender por que eu devo obedecer à lei moral, em vez de seguir o que me ordenam meus impulsos sensíveis. Bem, para compreender esse ponto é preciso ter em vista que, ao supor-nos como pertencentes ao mundo inteligível por meio de nossas faculdades puras (não contaminadas por quaisquer elementos empíricos), Kant não está simplesmente supondo uma outra ordem de coisas que se ponha ao lado da ordem sensível como uma camisa azul pode ser posta ao lado de uma camisa branca, para que façamos a escolha entre uma e outra; ele está supondo uma ordem de coisas que se sobrepõe à ordem sensível na qualidade de uma ordem cujas leis são as nossas próprias leis, as leis de nossa natureza racional, leis por meio das quais podemos livrar-nos, aí sim, da determinação pelas leis da natureza. Se, de acordo com os ensinamentos da razão especulativa, os objetos em geral podem (e devem) ser pensados como sejam em si mesmos (ainda que só os conheçamos como fenômenos), e se nós temos consciência, ao mesmo tempo, de nossa existência fenomênica e de nossa “existência” enquanto conjunto de faculdades puramente formais, é natural supormos que esta última é muito mais apta do que a primeira a representar o que sejamos em nós mesmos, ou o que seja nossa verdadeira essência: uma essência expressa nas leis da razão. Do ponto de vista da nossa existência fenomênica, porém, que é a única existência que propriamente sentimos como tal, tais leis não são imediatamente determinantes do agir, de tal maneira que, para que este último possa corresponder à nossa verdadeira essência, elas devem ser encaradas como imperativos – imperativos em que, portanto, nós mesmos (enquanto inteligência) prescrevemos deveres a nós mesmos (enquanto fenômenos).

Na medida, porém, em que o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível, e portanto também das suas leis, e na medida em que ele é, assim, no que tange à minha vontade (a qual pertence inteiramente ao mundo inteligível), diretamente legislador, e que assim deve ser pensado, então eu devo, embora por um lado pertencente ao mundo sensível, reconhecer-me por outro lado, enquanto inteligência, como submetido à lei daquele outro mundo, i.e. da razão, que contém esta própria lei na idéia da liberdade, e portanto como

legislação da vontade são ambas autonomia, e portanto conceitos recíprocos – e no entanto por esta mesma razão um não pode ser usado para explicar o outro ou fornecer-lhe o fundamento, mas sim, quando muito, para realizar a finalidade lógica de reduzir noções aparentemente diferentes de um mesmo objeto a um único conceito (como quando reduzimos diferentes frações do mesmo valor aos menores termos)” (Grundl, Ak.IV, 450). 129

submetido à autonomia da vontade: consequentemente eu devo enxergar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as ações a elas conformes como deveres. (Grundl Ak.IV, 453)

Esse é, pois, o sentido em que a dualidade sensível-inteligível, núcleo essencial da moral kantiana, deve ser compreendida: embora não represente, a princípio, nenhuma dualidade substancial,250 ela estabelece, com respeito ao caráter ao mesmo tempo formal e material do ser humano, uma relação de fundamento entre o inteligível e o sensível, de tal maneira que naquele possam estar as leis que ditam como este último deve ser (assim como nele estavam as leis que ditam como é o sistema da natureza). Tal relação, podemos então dizê-lo, é a consequência derradeira da introdução do conceito de liberdade na análise do fenômeno moral, já que foi este conceito, como vimos, que, de um lado (como conceito negativo), garantiu a possibilidade de o ser humano conceber-se, na qualidade de racional, como pertencente a uma outra ordem de coisas, e que, de outro (como conceito positivo), elevou o princípio da autonomia (lei moral) à condição de princípio supremo dessa outra ordem. Ao agir por respeito à lei moral, o ser humano não estaria, segundo esse esquema, obedecendo a uma lei imposta “de fora”, mas simplesmente seguindo sua própria lei, ou a lei de sua natureza racional, que é sua natureza essencial (o seu “eu em si”, que fundamenta o seu “eu fenomênico”)251 – num sentido tal que à noção de dever corresponde, na verdade,

250

Como aponta Paton, com respeito à expressão dicotômica mundo inteligível-mundo sensível, “essa terminologia não deve levar-nos ao erro de imaginar que há, segundo Kant, dois mundos. Para ele há apenas um mundo: embora só possamos conhecer o mundo tal como nos aparece, o que conhecemos é o mundo real, único, tal como nos aparece. Nós devemos de fato conceber este único mundo (1) como nos aparece na experiência sensível e (2) como é em si mesmo. Esta é a razão pela qual Kant fala em duas perspectivas (standpoints) ou pontos de vista (points of view): (1) o ponto de vista desde o qual enxergamos as coisas como fenômenos, e (2) o ponto de vista desde o qual concebemos as coisas como noumena ou coisas-em-simesmas. (...) Há apenas um mundo, mas podemos considerá-lo desde pontos de vista diferentes” (Paton, H.J Op.cit., p. 228). 251 Também preocupado em afastar uma interpretação que compreendesse essa dualidade como uma dualidade substancial, mas em consonância com sua leitura da distinção fenômeno-coisa em si, Rousset afirma: “É certo que Kant liga o prático ao ser supra-sensível do sujeito e dos objetos, ao que eles são como coisas em si, mas ele pode fazê-lo, em vista dessa (sua) concepção de ação, porque a coisa em si suprasensível é justamente o ser mesmo do que é dado como fenômeno sensível enquanto nos é dado pela intuição para o conhecimento; ele deve mesmo fazê-lo, pois a eficiência de uma causalidade e a efetividade de seu produto não podem ser senão a atividade e a realidade de seres existindo em si, e não de meras representações ou fenômenos: é porque ela não é nem uma vida subjetiva interior nem uma existência transcendente, mas uma causalidade no mundo, que a ação não deve ser atribuída ao fenômeno, mas a uma coisa em si que é simplesmente o ser supra-sensível do ser sensível” (Rousset, B. Op.cit., pp. 495-6). 130

o seu querer puro, i.e. a sua vontade pura (tal como determinada exclusivamente pela razão, sem qualquer interferência dos impulsos sensíveis):

O homem, considerando-se assim como inteligência, e ao pensar-se como dotado de uma vontade, e portanto de uma causalidade, coloca-se deste modo numa outra ordem de coisas e numa relação com princípios determinantes de um outro tipo, diferentemente de quando se percebe como um fenômeno no mundo sensível (o qual de fato também é), com sua causalidade submetida a determinações externas pela lei da natureza. Logo percebe ele que ambas (estas concepções) não apenas podem, como devem, coexistir. Pois não envolve qualquer contradição que uma coisa seja, enquanto aparência (pertencente ao mundo sensível), submetida a determinadas leis, mas que ao mesmo tempo, como coisa ou ser-em-si (Ding oder Wesen an sich), seja independente destas mesmas leis. A consciência de si próprio como objeto afetado pelos sentidos, por um lado, correspondente à primeira, e a consciência de si próprio como inteligência, por outro lado, correspondente à segunda, i.e., como independente, no emprego da razão, das influências sensíveis (portanto como pertencente ao mundo inteligível), ambas estas consciências fazem com que o homem deva representar-se e pensar-se por este duplo viés.252 (Grundl, Ak..IV, 457)

Ainda que não haja propriamente – não ao menos num primeiro momento – qualquer garantia de que essa “outra ordem de coisas” exista, i.e. tenha realidade objetiva no mesmo sentido em que a ordem sensível a tem, fica devidamente estabelecida, dessa forma, a permanente possibilidade de o homem enxergar-se, e portanto julgar-se, avaliar-se (falar sobre si), a partir dessa dupla perspectiva. Isso não significa que o homem aja ora com base na lei moral, ora com base em determinações sensíveis, pois é impossível discernir com certeza absoluta a verdadeira motivação de uma ação.253 Significa tão somente que é sempre possível interpretar das duas maneiras as ações e as vidas humanas: diante, por exemplo, de alguém que oferece ajuda a uma pessoa necessitada, podemos tanto imaginar que ele o fez motivado por algum motivo empírico (sentia algum peso na consciência em virtude da desigualdade social, queria aparentar magnanimidade etc), como que ele o fez por puro respeito à lei moral – neste último caso podendo-se atribuir

252 253

Grundl, Ak.IV, 457. Grundl, Ak.IV, 406. 131

dignidade a ele.254 Esta forma de pensar pode ser um pouco frustrante se queríamos ter um conhecimento teórico objetivo acerca da moralidade humana, mas, uma vez que este é mesmo impossível, não é pouca coisa podermos afastar peremptoriamente toda e qualquer visão “reducionista” dogmática: assim como nas antinomias da razão pura não posso dar razão definitiva nem a um lado nem a outro, não posso provar nem que o ser humano seja de fato moral, por meio de suas ações, nem que não o seja em absoluto. Somos livres, afinal, para acreditar na liberdade (e, portanto, na realidade objetiva da moralidade).

* * *

No início da presente seção, apresentamos, sob a forma de uma dificuldade, a questão da realidade objetiva dos princípios morais ou, simplesmente, da lei moral (o princípio supremo da moralidade, expresso por meio do imperativo categórico)255 e afirmamos que a estratégia pela qual Kant a resolvia podia ser dividida em duas etapas. Até aqui, examinamos a primeira delas, em que a lei moral é articulada com a liberdade de tal modo que, sendo esta, enquanto propriedade do ser humano, perfeitamente possível, também aquela (e com ela o nosso caráter essencialmente moral) o é. Em outras palavras: provada pela razão especulativa a possibilidade de o homem ser livre, estabelece-se automaticamente, em face do conceito positivo da mesma (uma causalidade na qual os seres racionais manifestam sua autonomia), a possibilidade de a lei moral ser real. A partir de agora, tentaremos ver como esta possibilidade de realidade se transforma numa efetividade (sua realidade objetiva mesma) e como esta efetividade acaba por transferir-se então à própria liberdade e, num segundo momento, às demais idéias da razão (de uma alma imortal e de Deus). Se nos lembrarmos também do que vimos na seção anterior, temos que Kant chegara à lei moral por meio de uma análise rigorosa do conceito comum de moralidade, sem acrescentar por si mesmo quaisquer elementos a ele; e que, portanto, pretendera compreender apenas o que é “isso” a que as pessoas em geral, nas diferentes sociedades e nas diferentes épocas, chamam moral e que serve de base não apenas para os juízos em que mutuamente se atribuem valor, exigem comportamentos etc., como também para as ações 254

KpV, Ak.V, 68.

132

em que tentam agir corretamente. Nesse sentido, era o próprio fenômeno da moralidade, enquanto parte inextrincável da vida humana,256 que aparecia como ponto de partida para toda a investigação e, se num primeiro momento Kant não podia ir além de mostrar-nos que o seu fundamento tem de estar situado a priori na razão (para assim perder toda contingência), agora a possibilidade de eles serem reais (de não serem apenas algo como uma “ilusão universal”) torna possível não apenas supô-lo situado na razão, mas defini-lo como tal; defini-lo objetivamente como um dado universal da racionalidade ou, nos termos que Kant passa a utilizar na Crítica da Razão Prática, como um factum da razão:

(...) o pensamento a priori de uma legislação universal possível, que é portanto apenas problemático, é ordenado incondicionalmente como uma lei, sem que nada seja obtido da experiência ou de alguma vontade exterior. Não se trata porém de uma prescrição pela qual uma ação deva acontecer, de modo a que determinado desejo seja atingido (pois então a regra seria sempre fisicamente condicionada), mas sim de uma regra que determina a priori a vontade em vista tão somente da forma de suas máximas. E portanto ao menos não é impossível pensar uma lei que, ainda que se aplicando apenas à forma subjetiva dos princípios, serve como princípio de determinação por meio da forma objetiva de uma lei em geral. Nós podemos chamar à consciência desta lei fundamental um factum da razão, pois não podemos derivá-lo de nenhum dado anterior da razão, como por exemplo a consciência da liberdade (pois esta não nos é dada antecedentemente); ele se impõe a nós como uma proposição sintética a priori não baseada em nenhuma intuição, nem pura nem empírica (...) (KpV, Ak.V, 31)

Assim, o que está na base de toda a filosofia moral kantiana, funcionando como aquela “evidência primeira” que lhe era necessária e que a liberdade, antes de constituir, simplesmente legitima, é essa consciência da lei moral que todos nós, na qualidade de seres racionais, possuímos inabalável dentro de nós.257 Conforme o célebre argumento utilizado 255

Cf. KpV, Ak.V, 30. Este é um ponto bastante enfatizado por Krüger, que, referindo-se ao que Cohen já chamava de “experiência moral fundamental” kantiana, afirma: “aqui (na vida e na ética) isto tem um sentido de demandar e investigar o que seja moralmente necessário. Nós encontramos aqui não apenas o conhecimento de nossas limitações do ponto de vista especulativo, mas também um esclarecimento positivo sobre a verdade da existência humana e sobre o modo de ser do mundo humano” (Krüger, G. Op.cit., p. 84). 257 Nas palavras de Rousset, “a presença da razão liga a priori o ser racional à lei moral, pois esta é a lei da autonomia racional: como a razão é a legisladora que fornece tal lei, o ser racional é dela necessariamente o 256

133

por Kant já na terceira seção da Fundamentação, “nem mesmo o mais odioso facínora” é desprovido de tal consciência e, se pudéssemos penetrar os seus mais íntimos sentimentos, perceberíamos que no fundo ele se encontra profundamente envergonhado de si mesmo e gostaria de possuir as qualidades virtuosas implicadas na lei moral – algo que não acontece devido à sua natureza sensível, em relação a cujos impulsos não consegue libertar-se.258 É como se houvesse em nós uma “voz”: uma “voz” de que não podemos fugir, que nos diz a forma correta de agir, que nos força a todo tempo a comparar nossas ações concretas (ou o seu fundamento em nosso foro íntimo) com esse padrão ideal (que é a própria lei moral), de tal forma que nos sentimos dignos quando são coincidentes e indignos quando não o são; uma “voz” que emana da razão, mas que, como nos diz Krüger, numa formulação que bem caracteriza a sua heterodoxa porém profícua leitura de Kant, podemos todos “reconhecer em nosso próprio coração”.259

O factum acima mencionado é incontestável. Basta analisar o juízo que os homens formulam acerca da legalidade de suas ações para perceber que, independentemente do que a inclinação possa atestar em sentido contrário, a sua razão, incorruptível e coagindo a si própria, sempre confronta a máxima da vontade em qualquer ação com a vontade pura, i.e., consigo própria, considerando-se a si mesma prática a priori. (KpV, Ak.V, 32)

A realidade da lei moral, portanto, está simplesmente dada em nossa razão260 e, a partir do momento em que a suposição de que somos livres se revela tão plausível como a de que não o somos, seria mesmo um absurdo preferirmos acreditar nesta última e, com ela, no caráter quimérico da moralidade: eis aí o argumento essencial da Crítica da Razão Prática. Afinal, como nos diz Kant, esta deve contentar-se simplesmente em provar “que a

‘sujeito’, a menos que prefira negar-se enquanto ser racional, e contradizer as idéias que concebe ao pensar-se a si mesmo. (...) Mais uma vez, a argumentação kantiana supõe que a razão não é um ser transcendente, mas sim uma faculdade presente em cada indivíduo racional” (Rousset, B. Op.cit., p. 519). 258 Grundl, Ak.IV, 454. 259 Krüger, G. Op.cit., p. 229. 260 Segundo Paton, todo o sistema moral kantiano estaria, em última instância, baseado nessa “espécie de ‘insight’ direto” (Paton, H.J. Op.cit., p. 202). Para Rousset, a consciência da lei moral tem um caráter tão fundante quanto o da consciência transcendental expressa no “Eu penso”: “Trata-se (a lei moral) ... de uma proposição particular que, semelhante ao Eu Penso da filosofia teórica, encontra seu conteúdo e seu fundamento não numa intuição, mas na pura consciência de si: assim como podia afirmar ‘Penso, existo, o a priori existe’, Kant tem direito a afirmar ‘Raciocino, a racionalidade existe em mim, a lei prática é uma realidade para mim’” (Rousset, B. Op.cit., p. 529). 134

razão pura pode ser prática”, pois desta demonstração decorrerá a realidade objetiva dela própria, da liberdade e, como veremos, das demais idéias especulativas da razão.261 Em outras palavras, basta mostrar que nós de fato podemos agir de acordo com esta lei moral que se apresenta em nossa consciência, determinados exclusivamente por ela, para que fique devidamente estabelecida a sua realidade objetiva e, com ela, a da liberdade – motivo pelo qual a lei moral será definida como ratio cognoscendi da liberdade, enquanto esta, como já vimos, era a sua ratio essendi:262 se a liberdade é a condição de possibilidade da lei moral, a realidade desta, que podemos portanto conhecer, implica a realidade daquela:263

(...) o próprio princípio moral serve como princípio da dedução de uma faculdade imperscrutável que não pode ser provada por nenhuma experiência, mas que a razão pura se via obrigada a aceitar como possível (de modo a encontrar, entre as suas idéias cosmológicas, o incondicionado da sua causalidade, assim não caindo em contradição consigo mesma), qual seja, a faculdade da liberdade – com respeito à qual a lei moral, que não precisa ela própria de uma justificação, prova não apenas a sua possibilidade, como ainda a sua efetividade (Wirklichkeit) em seres que reconhecem esta lei como obrigatória. A lei moral é na verdade uma lei da causalidade por meio da liberdade e portanto da possibilidade de uma natureza supra-sensível, assim como a lei metafísica dos eventos no mundo sensível era uma lei da causalidade da natureza sensível; aquela primeira determina portanto aquilo que a filosofia especulativa tinha de deixar indeterminado, i.e. a lei para uma causalidade cujo conceito era na última apenas negativo; e portanto ela dá a este conceito, pela primeira vez, realidade objetiva (objektive Realität). (KpV, Ak.V, 47)

O que Kant quer assim mostrar-nos é que, na medida em que a lei moral é um fato da razão e que nós podemos perfeitamente agir de acordo com ela na prática de nossas ações, eventualmente indo contra as inclinações sensíveis determinadas pela causalidade da natureza, isto por si só estabelece a nossa condição de livres: ainda que a razão especulativa, i.e. o conhecimento teórico, absolutamente não consiga compreender esta 261

KpV, Ak.V, 3. KpV, Ak.V, 4. 263 Como afirma Deleuze, “o conceito de liberdade não reside na lei moral, sendo ele mesmo uma Idéia da razão especulativa. Mas esta Idéia permaneceria puramente problemática, limitativa e indeterminada, se a lei moral não nos ensinasse que somos livres. É pela lei moral, unicamente, que nos sabemos livres, ou que nosso conceito de liberdade adquire realidade objetiva, positiva e determinada” (Deleuze, G. La philosophie critique de Kant. Paris: PUF, 1963, pp. 39-40). 262

135

condição, trata-se de uma verdade inexorável de um ponto de vista prático. E é esta mudança de ponto de vista, com efeito, que essencialmente constitui a passagem do registro teórico para o prático: tomada a lei moral como ponto de partida, e abandonando-se o propósito especulativo da razão em favor do prático, opera-se uma mudança de registro por meio da qual a liberdade passa a ter realidade objetiva, já que os seres humanos, ao reconhecerem a simples possibilidade de agir de acordo com a lei moral, pensam-se necessariamente como livres – sendo este “pensar necessariamente” a partir da lei moral, como veremos adiante, aquilo que Kant passará a denominar conhecimento prático. É como se o conceito de liberdade, que antes (para a razão especulativa) se apresentava vazio, na mera qualidade de conceito problemático, fosse agora (para a razão prática) preenchido:

Eu não podia no entanto realizar esse pensamento (da liberdade), i.e. transformá-lo, no conhecimento, em um ser que agisse assim, ou mesmo na possibilidade deste último. Este espaço vazio é agora preenchido pela razão pura prática por meio de uma lei determinada da causalidade num mundo inteligível (por meio da liberdade), i.e. a lei moral. A razão especulativa não adquire com isto qualquer acréscimo no seu conhecimento, mas adquire certeza (Sicherung) do seu conceito problemático da liberdade, que recebe aqui realidade objetiva incontestável – ainda que apenas prática. (KpV, Ak.V, 48) (grifo nosso)

A esta altura, podemos entender mais claramente a diferença de estratégia a que Kant se refere no prefácio à Crítica da Razão Prática:264 enquanto na Crítica da Razão Pura ele precisou demonstrar a realidade objetiva dos conceitos puros do entendimento, provando-se a necessária subordinação a eles de toda experiência possível, aqui é a lei moral, aparecendo como espécie de evidência imediata, ao mesmo tempo incontestável e indemonstrável, que funciona como “princípio da dedução de uma faculdade imperscrutável que, embora não podendo ser provada por nenhuma experiência, tinha ao menos sua possibilidade admitida pela razão especulativa”, i.e. a liberdade.265 E o que assim se garante é uma certa forma de pensar que, embora não constituindo conhecimento do ponto de vista teórico, revela-se não uma mera possibilidade, mas um tipo de saber baseado num princípio absolutamente certo da razão (a lei moral) que, por isso mesmo, 264 265

KpV, Ak.V, 7. KpV, Ak.V, 4. 136

passa a poder chamar-se “conhecimento”: um conhecimento, porém, que só o é do ponto de vista prático. Afinal, como dissemos, é o fato inegável de possuirmos em nossa razão esse princípio, e o fato (ainda mais) inegável de podermos perfeitamente determinar nossas ações no mundo em conformidade com ele, dando-lhe assim realidade, que estabelecem o seu caráter de “conhecimento”:

(...) o conceito de uma causalidade não condicionada empiricamente, embora de fato teoreticamente vazio (sem intuição correspondente), é perfeitamente possível e referente a um objeto indeterminado; mas na lei moral, e portanto num sentido prático (in praktischer Beziehung), lhe é dado significado (Bedeutung). Eu não tenho realmente qualquer intuição que pudesse determinar sua realidade objetiva teorética, mas nem por isto ele deixa de ter aplicação efetiva (wirkliche Anwendung), a qual se exibe in concreto em intenções ou máximas, i.e. uma realidade prática que pode ser dada – a qual é suficiente para a sua justificação, mesmo com respeito a noumena. (KpV, Ak.V, 56)

Uma vez estabelecido esse outro registro – em que poderemos “falar sobre” “coisas” de que não podíamos falar em nosso conhecimento teórico –, abre-se à filosofia uma perspectiva extremamente ampla de exploração do ser humano e da sua maneira de pensar o mundo – pois a maneira moral de pensar o mundo é a sua maneira de pensá-lo (inscrita na sua racionalidade). Assim como, antes, a razão “criava” idéias para dar sentido à própria natureza, agora a razão “criará” uma forma de enxergar o mundo que permite realmente transformá-lo, na medida em que se trata de um mundo tal como deve ser (a partir da perspectiva racional humana) e tal como o ser humano pode de fato realizar, por meio de suas ações. Esse registro – o conhecimento prático – permite dar realidade não apenas à liberdade, condição da lei moral, mas também às demais idéias da razão, que se colocam como condições do nosso agir moral na medida em que simplesmente o demanda, espontaneamente, nossa razão: é preciso que sejamos livres para que o mundo e a vida façam sentido; é preciso que sejamos imortais para que o mundo e a vida façam sentido; é preciso, finalmente, que Deus exista para que o mundo e a vida façam sentido. E agora todas essas idéias já não são apenas problemáticas; elas se tornaram reais enquanto constitutivas do mundo tal como o ser humano deve fazê-lo, transformando a realidade

137

sensível – fora e, principalmente, dentro de si mesmo (a sua natureza sensível que é prioritariamente egoísta) – através de ações reais cujo sentido dependerá de tais idéias.

138

Conclusão. O primado da razão prática e o caráter libertador da filosofia kantiana. Ao analisar anteriormente aquilo a que chamamos as limitações do conhecimento teórico, pudemos perceber que toda a estrutura transcendental construída por Kant na “Analítica” da primeira Crítica, para garantir a objetividade do conhecimento teórico, revelava-se insuficiente para as especulações de nossa razão a partir do momento em que cogitássemos o ser humano enquanto um ser que age no mundo dotado de intencionalidade – aqui compreendidas tanto as suas expectativas em relação ao sentido da própria realidade (ensejadas naturalmente pelo uso lógico da razão) como as suas perspectivas de realização de fins por meio de ações. Uma vez estabelecidas, porém, a distinção entre conhecer e pensar e a possibilidade de o homem pensar para além do espectro limitado da experiência sensível, firmava-se um mínimo de esperança de sentido representado pela noção da fé racional: ainda que sem qualquer certeza cognitiva em relação ao conteúdo de suas idéias racionais (Deus, alma e liberdade), o homem poderia perfeitamente acreditar nas mesmas enquanto hipóteses possíveis (não contraditórias com o sistema da natureza). É este, com efeito, o espírito que perpassa a “Dialética” da primeira Crítica e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, em que o diálogo da filosofia moral (por si só uma atividade da razão especulativa) é ainda com o conhecimento teórico e a liberdade aparece ainda como mera hipótese.266 Ao deslocar o foco para o que chama de razão prática, no entanto, Kant opera um deslocamento sutil da reflexão filosófica, deixando de preocupar-se com aspectos teóricos da questão moral – e das questões metafísicas como Deus e alma imortal – e passando a preocupar-se com os aspectos práticos da mesma questão: aceita como ponto de partida a lei moral, dado a priori de nossa racionalidade, já não importa discutir se o homem é ou não livre do ponto de vista teórico, mas sim como pode ele realizar, em suas ações concretas no mundo sensível, a idéia da liberdade – que, com este simples giro, adquire o estatuto de real do ponto de vista prático. Afinal, se o homem pode agir por respeito à lei moral, desconsiderando os apetites e inclinações sensíveis que a lei da natureza lhe impõe,

266

Cf. Grundl, Ak.IV, 455-63. 139

ele é livre para assim proceder.267 E tentar refutar esta idéia com argumentos próprios ao conhecimento teórico seria misturar os registros e, ignorando a advertência negativa da primeira Crítica, transferir ao homem, considerado em si mesmo (que é como ele de fato se considera no plano da ação), propriedades do homem enquanto fenômeno (submissão necessária e universal à necessidade natural). Pode-se dizer, nesse sentido, que um dos grandes méritos da Crítica da Razão Prática está em garantir, a partir do delineamento preciso da fronteira entre o especular e o agir, a prerrogativa a ser desfrutada pela razão prática neste último terreno, em que a razão especulativa se subordina à lei moral e, proibida de contestar sua autoridade, limita-se a converter em postulados as idéias que antes não passavam de problemáticas, colocando aquela mesma estrutura transcendental que garantia a objetividade do conhecimento teórico a serviço do conhecimento prático.268

Se a razão pura pode ser prática por si mesma, e realmente é, como o prova a consciência da lei moral, então é ainda apenas uma única e mesma razão que, do ponto de vista teórico ou prático, julga de acordo com princípios a priori. E portanto é claro que, embora do primeiro

267

Cf. KpV, Ak.V, 104-5: “Descobrimos na Dialética da razão especulativa pura que os dois métodos aparentemente contraditórios de encontrar o incondicionado para o condicionado não eram realmente contraditórios. Na síntese da causalidade, por exemplo, conceber, para o condicionado na série de causas e efeitos do mundo sensível, uma causalidade que não tem condição sensível, e conceber que a mesma ação que, enquanto pertencente ao mundo sensível, é sempre condicionada sensivelmente, i.e. mecanicamente necessária, pode ao mesmo tempo ser derivada de uma causalidade não condicionada sensivelmente – sendo a causalidade de um ser que age enquanto pertencente ao mundo supra-sensível –, e pode portanto ser considerada livre. Mas chegamos então ao ponto em que a questão seria este poder se transformar num ser (dass dieses Könen in ein Sein verwandelt würde), i.e., que pudéssemos provar numa situação efetiva, por meio de um fato, que certas ações implicam uma tal causalidade (qual seja, a inteligível, sensivelmente incondicionada), sejam tais ações efetivas ou simplesmente comandadas, i.e. necessárias num sentido prático. (...) Nada nos restava, para tal, senão buscar um princípio de causalidade objetivo e incontestável que excluísse todas as condições sensíveis, i.e., um princípio no qual a razão não mais apelasse para algo de outro como fundamento determinante de sua causalidade, mas contivesse ela própria este fundamento determinante por meio de um tal princípio, e no qual portanto ela é, como razão pura, prática por si mesma”. 268 O mecanismo por meio do qual a razão especulativa, subordinada portanto à prática, converte em postulados as idéias da razão, antes problemáticas, está por seu turno baseado na estrutura transcendental do sujeito tal como montada na primeira Crítica, sendo a categoria da causalidade o seu elemento chave. Afinal, é aplicando-o, analogicamente, ao supra-sensível, que Kant irá, por exemplo, conceber que nossas ações possam ter uma causa em outra parte que não no mundo sensível, que conhecemos por meio da experiência. Ora, embora isto fosse vetado no plano do conhecimento teórico, passa a ser permitido no plano do conhecimento prático (“uma extensão a que a razão, no seu uso prático, tem direito, e que no uso especulativo não lhe era possível”, para usar os termos do célebre título da segunda seção do primeiro capítulo da Analítica da KpV), e passa a sê-lo justamente por conta da mesma revolução copernicana que fundara a objetividade do conhecimento teórico, pois é pelo fato de as categorias serem conceitos puros, a priori, que podemos (desde que feita a ressalva do não tratar-se de conhecimento teórico) estender o seu uso para além da experiência – algo que jamais poderíamos fazer caso tomássemos, como Hume teria feito, os fenômenos pelas coisas em si. Cf. KpV, Ak.V, 50-5. 140

ponto de vista incompetente para estabelecer certas proposições positivamente – as quais, contudo, não a contradizem –, a razão pura deve aceitar tais proposições quando elas são inseparavelmente ligadas ao seu interesse prático – como algo que, embora recebido de uma fonte estranha, e não desenvolvido em seu próprio solo, é suficientemente autorizado –, e buscar compará-las e conectá-las com tudo que esteja ao seu alcance enquanto razão especulativa. Mas deve ter claro que não se trata de acréscimos a sua intuição, e sim extensões de seu uso para outro propósito, qual seja, o prático, que de qualquer modo não contradiz o seu interesse, que está na contenção dos abusos especulativos. (KpV, Ak.V, 121)

Como se vê, e é importante frisá-lo, esse emprego da razão especulativa para propósitos práticos não envolve, em momento algum, qualquer contradição da mesma com relação a seus propósitos puramente especulativos ou teóricos, pois, desde que feita a ressalva do estar-se tratando de um outro tipo de conhecimento, estes últimos propósitos só podem também beneficiar-se da postulação de certas proposições (liberdade, existência de Deus, imortalidade da alma) que, assim situadas em seu devido lugar, acabam contribuindo para evitar as tentativas de conhecer (teoricamente) Deus, alma etc. Se, conforme a lição da “Analítica”, combinada com a lição de Como Orientar-se no Pensamento, tínhamos de reconhecer à necessidade da razão o papel de “bússola” para qualquer navegação nos mares do supra-sensível, percebemos agora o sentido específico que tal necessidade assume quando passamos do plano do pensar para o plano do agir (ainda que sem abandonar por completo o pensar, já que aqui, no fim das contas, também estamos pensando): ela representa simplesmente os propósitos práticos que devemos seguir, caso queiramos orientar-nos no agir de acordo com as leis de nossa liberdade (e não subjugados pelo império das leis da natureza sensível). Aqui como lá, no agir como no pensar, trata-se evidentemente da mesma liberdade e das mesmas idéias em que ela nos leva a acreditar, com a diferença, porém, de que aqui essa liberdade e essas idéias se tornam reais para nossas ações, i.e. do ponto de vista prático. E impossível seria, para Kant, estabelecer a realidade da liberdade com base nessa simples (mas ao mesmo tempo sofisticada) mudança de perspectiva, não fosse a sua “revolução copernicana”, que, circunscrevendo à experiência todo nosso conhecimento teórico, abriu ao mesmo tempo, para a reflexão e o agir humanos, a possibilidade de pensar, a nós mesmos e ao mundo, por um outro ponto de vista que não aquele à luz do qual tudo 141

na natureza segue mecanicamente as suas leis; a possibilidade de pensar, e acreditar, em idéias sem as quais toda a realidade, para nós, perderia sentido; e, por fim, a possibilidade de pensar, e agir, de acordo com idéias que nos permitem viver com a consciência de nossa própria dignidade. Se não passássemos de objetos como quaisquer outros, de animais como quaisquer outros, estaríamos amarrados a leis externas, sem qualquer liberdade e sem qualquer consciência de nossa condição, e nosso viver se reduziria a reproduzir mecanicamente movimentos previamente traçados pela necessidade natural. Na medida, porém, em que tudo o que vemos e sentimos como “coisas” no espaço e no tempo não passam de fenômenos que não respondem pela condição incondicionada de sua existência – aqui incluídos nós mesmos enquanto pertencentes ao mundo sensível –, somos não apenas levados, mas obrigados, por nossa natureza racional, a cogitar essas mesmas coisas enquanto coisas em si, a cogitar nós mesmos enquanto coisas em si e, deste último ponto de vista (que não é proibido, mas antes autorizado e incentivado por nossa razão especulativa), a reconhecer, na simples possibilidade de agir em consonância com o que somos enquanto pertencentes ao mundo inteligível – eventualmente nosso “eu em si” –,269 a nossa condição de livres (que faz pesar sobre nós uma responsabilidade da qual jamais poderemos esquivar-nos alegando os impulsos de nossa natureza sensível).

É apenas o conceito de liberdade que nos permite encontrar o incondicionado e inteligível para o condicionado e sensível sem precisarmos sair de nós mesmos. Pois é a nossa própria razão que, por meio da lei prática suprema e incondicional, tem conhecimento (erkennt) de que ela própria e o ser que é consciente desta lei (nossa pessoa mesma) pertencem ao puro mundo inteligível, bem como da determinação da maneira pela qual ela pode, como tal, ser ativa. Assim podemos entender por que, em toda a faculdade da razão, é a razão prática apenas que pode fazer-nos passar além do mundo sensível e dar-nos conhecimento de uma

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Tal como vimos (supra, ), na Fundamentação Kant lança mão da identificação entre o que somos em nós mesmos, fundamento do que somos enquanto fenômenos, para justificar o caráter obrigatório do imperativo categórico. Nesse caso, que nos parece fundamental na estrutura moral kantiana, o homem als Intelligenz coincide com o homem enquanto coisa em si. Todavia, dado o caráter problemático da questão, julgamos preferível atenuar aqui a equivalência dos termos, utilizando para tal o termo “eventualmente”: o homem als Intelligenz, que é indiscutivelmente o que responde pela lei moral, é eventualmente o homem como coisa em si. Também não se pense que essa aparente duplicidade de “personagens” aponta para dois homens diferentes ou para dois mundos efetivamente distintos (o sensível e o inteligível): simplesmente empregamos aqui a terminologia que é habitual a Kant, tendo já sido feita a ressalva de não se tratar de qualquer dualidade substancial – nem aqui, no âmbito da filosofia moral, nem no âmbito da filosofia teórica. 142

ordem e ligação supra-sensível – conhecimento, contudo, que por este mesmo motivo não pode ser estendido além do que é necessário para propósitos práticos. (KpV, Ak.V, 105-106)

Claros ficam, pois, os termos da lição kantiana: no que diz respeito ao agir, a razão nos faz realmente livres na medida em que, por meio da lei moral, liberta-nos tanto da influência dos sentidos – necessidade natural – como da visão segundo a qual, a partir de uma hipóstase da razão teórica, seríamos inteiramente submetidos a essa necessidade natural. Onde se trata, em outras palavras, do agir humano, do que podemos fazer por meio de nossas ações concretas, o que conta é a razão prática e a lei moral, que permite estabelecer a nossa dignidade: aqui, a ciência aparece como subalterna, e eventuais conjecturas empíricas acerca do comportamento humano só podem valer como referência secundária em relação aos fins determinados pela razão prática. Que se o diga, numa breve “atualização” da lição, aos sociólogos, psicólogos e, muito particularmente, aos economistas. A bem dizer, a própria tentativa de falar sobre a liberdade e a moral no registro de uma compreensão empírica do ser humano seria desde o princípio fadada ao fracasso, pois o sentido mesmo da liberdade está nessa possibilidade de agir – e pensar – em concordância com a lei de nossa essência racional, uma lei cujos comandos apontam também para uma compreensão do mundo – e de nós mesmos – à luz daquelas hipóteses metafísicas – Deus, alma e liberdade – com que a razão, atuante na tradição filosófica desde os antigos gregos, procura incansavelmente compensar as insuficiências de nosso conhecimento por experiência.

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Bibliografia • Obras de Kant: As obras de Kant foram citadas de acordo com a edição da academia, a não ser pela Crítica da Razão Pura, que foi citada de acordo com as edições originais (A, de 1781; B, de 1787). Além da edição da Academia, indico abaixo outras versões que utilizei para a tradução, feita por mim, dos trechos citados.

KANT, I. Kants gesammelte Schriften. Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaft. (Akademie-Ausgabe) _______. Kant. In: “Great Books of the Western World”, vol.39. Chicago: Enc. Britannica Inc., 1990. Traduções: J. Meiklejohn (The Critique of Pure Reason); T. Abbott (Fundamental Principles of the Metaphysic of Morals; The Critique of Practical Reason; Preface and Introduction to the Metaphysical Elements of Ethics); W. Hastie (General Introduction to the Metaphysic of Morals; The Science of Right); J. Meredith (The Critique of Judgement). _______. Crítica de la Razón Pura. Tradução de Pedro Ribas. Madrid: Alfaguara, 1978. _______. Logique. Tradução de L. Guillermit. Paris: Vrin, 1970. _______. Anthropologie du Point de Vue Pragmatique. Tradução de A. Renaut. Paris: Flammarion, 1993. _______. Kant. Political Writings. Cambridge: CUP, 1991.

As obras de Kant foram abreviadas da forma seguinte:

Grundl - Grundlegung zur Metaphysik der Sitten KrV - Kritik der reinen Vernunft KpV - Kritik der praktischen Vernunft KU - Kritik der Urteilskraft Log - Logik. Ein Handbuch zu Vorlesungen Orient - Was ist, sich in Denken orientieren Prol - Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wird auftreten können 144

Tugendsl - Tugendslehre

• Obras sobre Kant citadas no livro: BECK, L.W. A commentary on Kant’s Critique of practical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1960. CASSIRER, E. Kant: vida y doctrina. México: Fondo de Cultura Economica, 1948. DELBOS, V. De Kant aux Post-kantiens. Paris: Aubier, 1992. _______. La Philosophie Pratique de Kant. Paris: PUF, 1969. DELEUZE, G. La philosophie critique de Kant. Paris: PUF, 1963. FISCHER, K. A Commentary on Kant’s Critick of Pure Reason. In: BECK, L.W. (org.) The Philosophy of Immanuel Kant. A collection of eleven of the most important books on Kant”s philosophy reprinted in 14 volumes. Nova York: Garland, 1976. FREULER, L. Kant et la métaphysique spéculative. Paris: Vrin, 1992. GIVONE, S. La storia della filosofia secondo Kant. Milão: Mursia, 1972. HAN, J. Transzendentalphilosophie als Ontologie. Würzburg: Könighausen & Neumann, 1988. HEIDEGGER, M. Kant et le problème de la metaphysique. Paris: Gallimard, 1994. KRÜGER, G. Critique et morale chez Kant. Paris: Beauchesne, 1961. LACHIÈZE-REY, P. L’Idéalisme kantien. Paris: Vrin, 1950. LEBRUN, G. Kant et la fin de la métaphysique. Paris: Armand Colin, 1970. _______. Sobre Kant. São Paulo: Iluminuras, 1993. MALHERBE, M. Kant ou Hume. Paris: Vrin, 1980. MARTIN, G. Kant’s metaphysics and theory of science. Westport: Greenwood Press, 1974. PATON, H.J. The categorical imperative. A study in Kant’s moral philosophy. Philadelphia: Univ.of Pennsylvania Press, 1971. PHILONENKO, A. Etudes kantiennes. Paris: Vrin, 1982. ROUSSET, B. La doctrine kantienne de l’objectivité. Autonomie comme devoir et devenir. Paris: Vrin, 1967. TERRA, R. A política tensa. Idéia e realidade na filosofia da história de Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995. WEIL, E. Problèmes kantiens. Paris: Vrin, 1990.

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• Outras obras citadas: ARISTÓTELES. Metaphysics. In: “Great Books of the Western World”, vol. 7. Chicago: Enc. Britannica Inc., 1990. BOCK, G.; SKINNER, Q.; VIROLI, M. Machiavelli and republicanism. Cambridge: CUP, 1990. BOLZANI, R. “Acadêmicos versus Pirrônicos: Ceticismo Antigo e Filosofia Moderna”. In: Discurso, n.29, 1998. FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. In: “Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud”, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969. HABERMAS, J. “Diskursethik: Notizen zu einem Begründungsprogramm.” In: _____. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. HENRICH, D. “Was ist Metaphysik? – was Moderne? Zwölf Theses gegen Jürgen Habermas”. In: Konzepte. Essays zur Philosophie in der Zeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1987 HUME, D. An enquiry concerning human understanding. In: “Great Books of the Western World”, vol. 33. Chicago, Enc. Britannica Inc., 1990. LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. Paris: PUF, 1997. LEIBNIZ, G. W. Escritos Filosóficos. Organizados por E. de Olaso. Buenos Aires: Charcas, 1982. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. de Bolso, 2005. POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1975. RAWLS, J. Lectures on the history of moral philosophy. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2000. SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. In: _______. Sämtliche Werke in 5 Bände. Stuttgart, Fraknfurt am Main: Cotta-Insel, 1976.

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