Da Terra e do Mar: viver em Loulé há 2000 anos
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Da Terra e do Mar: viver em Loulé há 2000 anos João Pedro Bernardes
Da Terra e do Mar: viver em Loulé há 2000 anos João Pedro Bernardes - Universidade do Algarve
Os dados sobre a presença romana no território
Os produtos da Terra
do atual concelho de Loulé escasseiam e as fontes literárias referentes ao Algarve são lacónicas e
Estrabão, autor latino do séc. I, ao aludir no livro
abrangem uma área mal definida. Não existindo
III da sua Geographia às produções da Turdetânia,
então como região, essas fontes falam de entidades
onde se incluía boa parte do atual Algarve, refere-
geográficas mais vastas, como a Lusitânia ou a
se a “exportações de trigo, muito vinho e azeite,
Turdetânia, onde podemos incluir a atual região
não só em quantidade como em qualidade, e
portuguesa. Mas se a Lusitânia vai do Algarve ao
inclusive cera, mel, peixe, cochinilha” (Geog. III,
Douro, a Turdetânia coincide vagamente com o
2, 6). A cochinilha era um dos principais corantes
golfo de Cádis que cobre a área litoral que desde
de tecido. Gerava o carmesim que rivalizava com
as colunas de Hércules, como era então conhecido
a púrpura e era extraído das folhas de carrasco
o Estreito de Gibraltar, se estende até ao cabo de
que, de acordo com Plínio (N.H. IX, 141; XXII, 3),
Santa Maria.
abundava na Lusitânia e também em plena serra
Os sítios arqueológicos com vestígios romanos
algarvia. Se o trigo não era, como nunca foi, uma
conhecidos no concelho de Loulé, que ainda não
produção abundante no Algarve, cujo défice levou
possui uma carta arqueológica sistemática, são
frequentemente a importá-lo da Andaluzia ou do
abundantes e rondarão as 4 dezenas de ocorrências,
Alentejo, já os restantes produtos eram suficientes
de acordo com a base de dados Endovellico da
ou excediam as necessidades locais. Não quer isto
Direção
Todavia
dizer que não se cultivassem cereais um pouco por
pouco se conhece sobre os mesmos, uma vez que
todo o lado. O achado de mós, como a do sítio
as escavações têm sido muito escassas, pontuais
do Espargal, recentemente escavado (Graen et al.,
e
Geral
do
Património
Cultural.
de
2014, p. 27), comprova que mesmo no barrocal
emergência ou de salvamento. Desses sítios serão
e na serra algarvia se cultivavam cereais, ainda
oriundas algumas epígrafes romanas, funerárias
que as produtividades deveriam ser diminutas e
ou votivas, que nos dão a conhecer o nome de
essencialmente destinadas ao auto-consumo. A
alguns habitantes do atual termo de Loulé (IRCP,
fertilidade das terras da Lusitânia particularmente
104, 106, 110 112, 120) mas frequentemente
as do vale do Tejo, não deixaram de ser exaltadas
descontextualizadas e com inscrições truncadas.
por Políbio de Megapólis, entre outros. Por este
O conhecimento do passado romano das terras de
autor do século II a.C. ficamos a saber que, na
Loulé, se excluirmos o sítio do Cerro da Vila, o mais
época, cerca de 44 litros de trigo custavam 9
escavado e o melhor conhecido, pauta-se, pois, pela
óbulos, a mesma quantidade de cevada 6 óbulos,
escassez de dados informativos. Podemos, ainda
tanto quanto se pedia por 40 litros de vinho. Já
assim, e a partir dos elementos disponíveis para a
25 quilos de figos ficariam pelos 3 óbulos. Um
região, tentar uma aproximação ao modo de vida
cordeiro custava 3 a 4 óbulos, uma ovelha 12 e um
frequentemente
inseridas
em
trabalhos
das populações que na época romana aqui viviam.
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porco gordo 30 óbulos, ou seja 5 dracmas. A carne
de forma a permitir a recolha do mel e da cera que se
de animais selvagens não se considerava digna de preço
depositava no interior da colmeia (Bernardes et al., 2014).
(Ateneo de Náucratis, Deipnosophistai, 8. 331).
Na Expositio Totius Mundium et Genium, uma descrição
A apicultura era muito praticada e frequentemente
da riqueza das províncias do Império escrita em grego,
referida pelos agrónomos clássicos como Columela (De re
em data desconhecida e passada a latim em meados
rustica, IX.14.6; IX.15.3. ) ou Varrão (Res rusticae, III,
do século IV, no capítulo 59, dedicado à Hispânia,
16, 16-17). Ainda que as colmeias fossem de materiais
fala-se do azeite e do esparto entre os produtos
vegetais, como os cortiços, usavam-se também colmeias
exportados. O azeite era produzido essencialmente
em cerâmica. Está conhecida a sua produção na olaria do
na província vizinha da Bética (atual Andaluzia) que o
Martinhal onde foram recolhidas algumas.
enviava para todo o mundo romano, figurando ainda entre as produções agrícolas correntes da Lusitânia. Os vestígios da sua produção, tal como a do vinho, aparecem associados aos sítios rurais, como em Milreu, onde existia um lagar de seis prensas, ou em Loulé Velho, de onde se conhecem três pesos de prensa. Já o esparto hispânico que é realçado pela sua qualidade, nomeadamente para tapar as frestas, juntamente com pez, do tabuado dos navios, ou para o cordame, era também produzido no Algarve, embora fosse na região de Cartagena que se cultivava em grandes quantidades (Montenegro, 1995, p. 547-549). Claro que o esparto era ainda uma matéria-prima muito ligado ao fabrico de bens de consumo de uso quotidiano. Estão bem representados, por exemplo, na sola de alpargata, no gorro ou na alcofa que se conservaram no fundo das minas romanas de Aljustrel (Fabião, 2006, p. 118-121). Ligado
à
navegação
poderíamos
ainda
falar
do
aproveitamento de madeiras, nomeadamente as de carvalho ou de castanho da serra algarvia, e que se poderão integrar na menção que Sidónio Apolinário faz quando se refere à qualidade de certas madeiras hispânicas para a construção naval (Montenegro, 1995, p. 547-549). No concelho de Loulé abundam ainda os vestígios da extração mineira que, pelo menos nos primeiros séculos da presença romana, foram um dos produtos mais explorados no sudoeste peninsular (Domergue, 1987; Edmondson, 1987). Os indícios da
Fig. 1 – Colmeia em Cerâmica da olaria romana do Martinhal.
atividade mineira de ferro e cobre do sítio das Alagoas (Salir) é exemplo de uma realidade que estaria na base
À semelhança dos cortiços, eram elementos tubulares,
da maior parte dos núcleos de povoamento de então da
frequentemente integrados transversalmente em muros
serra (Martins, 1988, p. 219).
de construções com os topos tapados com cortiça, madeira
À medida que caminhamos para o interior serrano o
ou argila. A parte voltada para o exterior do muro era
povoamento, à semelhança de hoje, ia escasseando,
perfurada para permitir a entrada e saída das abelhas; já
e poderemos supor que a serra algarvia e até parte
a tampa ou parte que dava para o interior era removível,
significativa do litoral seria ocupada por bosques onde a
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caça abundava. Talvez por isso temos testemunhos quer
suscitaria a devoção à divindade respetiva. O coelho
em Silves quer em Loulé de lápides votivas dedicadas
bravo, o veado e o javali seriam os animais mais caçados
à deusa da caça – Diana. A lápide de Loulé, que foi
e que certamente constituiriam boa parte das proteínas
reutilizada como elemento construtivo na igreja de
de origem animal das populações do atual concelho de
S. Clemente, possui uma fórmula inicial que tem sido
Loulé. Os textos literários e os dados zooarqueológicos
interpretada como uma consagração a Diana Silvestre
apontam claramente para isso, embora os estudos de
ou ao deus Silvano, divindade dos bosques também
restos de animais dos sítios romanos do Algarve ainda
conotada com o mundo da caça e da vida selvagem
sejam escassos. A investigação focada nos períodos entre
(Encarnação, 2008). Os atributos da deusa da caça
a Idade do Ferro e o período Islâmico realizados para a
representados nessa mesma lápide votiva, um arco e
serra algarvia e suas proximidades, regista uma forte
uma aljava, têm levado os investigadores a inclinarem-
presença do veado, de coelho e de porco/javali, sobretudo
se mais para Diana do que para Silvanus. Com efeito,
para o período romano. Também ocorre a presença de
se compararmos com a representação de Diana numa
urso e ginetas entre os animais selvagens. Os ovinos e
escultura do Museu Arqueológico de Lyon, a antiga e
caprinos, que também podiam ser de origem selvagem,
importante cidade de Lugdunum romana, são evidentes
predominam entre os animais domésticos, para além
aqueles atributos como específicos da deusa Diana.
dos galináceos. Os bovinos estando presentes entre os restos de animais domésticos do período romano e islâmico, eram sobretudo utilizados como força de tração nos trabalhos do campo, ainda que pontualmente fossem consumidos (Martins, 2011; Valenzuela-Lamas e Fabião, 2012). As aves de capoeira eram, de acordo com as fontes literárias, um dos animais domésticos mais consumidos, sendo muito comuns nos livros de receitas da época. Columela, referindo-se às realidades que bem conhecia das terras da zona de Cádiz de onde era originário, alude com frequência no seu livro VIII aos galináceos como algo comum em qualquer casa agrícola. É notória a sua preocupação com a escolha dos melhores animais na hora de os adquirir ou da seleção para reprodução e consumo,
Fig. 2 a e 2 b – Estátua da deusa da caça do museu de Lyon, com os mesmos atributos (arco e aljava) que aparecem nas partes laterais da inscrição votiva encontrada na igreja de S. Clemente em Loulé.
advogando que se guardem os melhores exemplares e se vendam ou consumam os piores (Colum. r.r. VIII.5.24). Na verdade, a produção de aves era imprescindível em qualquer casa agrícola, e constituíam boa parte das
Não deixa de ser curioso que a epigrafia do atual concelho
villaticae pastiones, como Varrão, outro agrónomo que
de Loulé, que com o de Silves corresponde ao interior
se refere amiúde ao assunto, denominava a criação de
do Algarve Central, seja constituída maioritariamente por
animais no seio das villae. Ele distingue este tipo de
epigrafia votiva, ainda que só por vezes conheçamos a
criação domestica “ em que se criam galinhas, pombas,
divindade a que é destinada a epígrafe (IRCP, 104, 106,
abelhas e outras espécies que se podem dar na granja” da
110, 112). Tal leva-nos a equacionar a possibilidade
pastorícia propriamente dita (Varr. r.r. III.2.13.). Note-se
de no atual concelho de Loulé ter existido um qualquer
que a reprodução de animais era uma importante fonte
santuário que justificasse esta concentração de epígrafes
de rendimento, podendo ser muito variada, ao ponto de
votivas. Se a escassez dos dados não o permite afirmar
algumas grandes villae possuírem viveiros de peixes,
categoricamente, pelo menos podemos suspeitar que
mesmo quando afastadas do litoral (Lagostena Barrios,
a abundância da caça nas florestas algarvias de então
2010, p. 104-106).
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No caso dos sítios do interior do concelho de Loulé
O litoral
era ainda frequente o consumo de produtos do mar, nomeadamente moluscos, cujos restos se conservam
O litoral do concelho de Loulé era, de resto, onde
e são bem visíveis nos sítios arqueológicos. No estudo,
se concentrava mais população e um maior nível de
efetuado por Soraia Martins, dos restos do período
riqueza ligada à exploração dos recursos do mar e
islâmico recolhidos no castelo de Salir, ficou bem
ao comércio. Pelos sítios costeiros eram escoados os
evidente a presença de peixes e de moluscos, sobretudo
excedentes agropecuários produzidos nos núcleos
a amêijoa, na dieta alimentar (Martins, 2011). O
rurais e que tanto poderiam ser comercializados nos
panorama na época romana não era diferente e pode
mercados locais, como o de Ossonoba (Faro) ou seguir
ser facilmente observado em sítios romanos como o
por via marítima para paragens mais distantes. Eram,
da Torre de Apra. Era frequente, como o foi em outras
todavia, os recursos do mar que constituíam o grosso
épocas, uma relação estreita entre as populações dos
das exportações. E, neste particular, o litoral louletano,
núcleos rurais com os sítios pesqueiros, nomeadamente
bem diferente do que é hoje, possuía excecionais
na época da primavera/verão onde muitos campesinos
condições para a produção de sal, pesca e fabrico de
ocorreriam para ajudar na safra em torno da pesca, do
preparados piscícolas nos vastos estuários das ribeiras
sal e da confeção dos preparados piscícolas.
de S. Lourenço, Carcavai, Almargem e da Quarteira.
Fig. 3 – O litoral louletano na época romana com os sítios romanos até agora identificados.
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A existência de ilhas barreiras em frente aos antigos
complementaridade e associação entre as indústrias
estuários daquelas ribeiras, e que explicam a existência
de preparados piscícolas, de tinturaria e cerâmicas, é
de ruínas romanas a 8 metros de profundidade e a 700
frequente um pouco por todo o lado. Aliás na margem
metros da praia do Almargem (Simplício e Barros, 1999),
do estuário da ribeira de S. Lourenço, oposta à da
animavam ainda mais a costa e facilitavam a exploração dos
Quinta do Lago, são conhecidos vários sítios também
recursos marítimos. Por outro lado, a existência de terras
relacionados com os recursos locais e onde a produção
férteis em torno daqueles antigos estuários proporcionava
oleira volta a ocorrer, nomeadamente no sítio dos
a conjugação de atividades agrícolas com as marítimas,
Salgados e nas proximidades de S. João da Venda.
como é demonstrado pelos pesos de lagar encontrados no sítio de Loulé Velho ou os tanques dedicados a várias
O Sal
atividades, nomeadamente de tinturaria, encontrados na “fábrica J” do Cerro da Vila (Teichner, 2005). Aliás,
Em toda esta costa do Algarve central são, de resto,
há uma ligação entre muitos sítios pesqueiros e as
conhecidos
indústrias de tinturaria, que se serviam para o efeito da
instalaram a partir da primeira metade do século I
tinta de bivalves marinhos, particularmente da espécie
para se dedicarem maioritariamente à transformação
murex brandiaris. Nem sempre é fácil distinguir os
de preparados piscícolas. Claro que a produção de
tanques destinados à confeção dos preparados de peixe
salgas, pastas e molhos de peixe requeriam enormes
dos que se dedicavam à indústria têxtil. Um critério,
quantidades de sal e, neste troço do litoral hispânico
falível é certo, é que os tanques para os preparados
encontram-se das melhores condições para a sua
piscícolas são frequentemente escavados no solo, ainda
extração, o que não terá sido alheio à proliferação de
que parcialmente, ao passo que os relacionados com a
cetárias destinadas àquela produção. O problema em
tinturaria e indústria têxtil são construídos sobre os níveis
relação à exploração do sal é que ela, ao contrário
de circulação da época. Estes dois tipos de tanques são
dos estabelecimentos para a salga e preparação
particularmente bem visíveis no sítio romano da Quinta
de pastas e molhos de peixe de que o mais famoso
do Lago, onde se podem ver ainda 4 tanques grandes e
era o garum, não deixa vestígios. E quando os deixa
contíguos enterrados no subsolo e, um pouco afastado,
nem sempre é fácil conhecer o contexto cronológico-
outros dois mais pequenos cuja base arranca do nível
cultural, uma vez que as técnicas de produção do sal
do solo. Junto a estes dois tanques mais pequenos
permaneceram quase imutáveis até ao século XX. O sal
localizados a duas dezenas de metros dos anteriores, e
não era só fundamental à transformação, conserva e
já num outro edifício, encontram-se dois grandes pesos
até transporte do peixe. Era ainda o principal elemento
em pedra de formato paralelepipédico que poderiam
na preservação dos alimentos em geral e na preparação
fazer parte do sistema de pisoagem dos tecidos. Estes
de outros como os derivados lácteos. Era também
dois pesos junto aos tanques mais pequenos, aliados à
imprescindível na alimentação humana e animal, na
enorme quantidade de conchas testemunhando que a
preparação de peles, ou utilizado como remédios ou
fauna malacológica oriunda dos ambientes estuarinos
em terapêuticas veterinárias, ao ponto de Plínio dizer
onde o sítio se localizava, foi abundantemente utilizada
na sua História Natural (XXXI, 102) que “nada há mais
nas indústrias locais, aponta que também na Quinta do
útil do que o sol e o sal” afirmando ainda que uma vida
Lago a indústria têxtil tenha sido uma atividade paralela
civilizada não pode prescindir dele. Há estudos para a
à dos preparados piscícolas. Era frequente este tipo de
época romana que estimaram um consumo médio por
sítios especializados do litoral complementarem com
pessoa de cerca de 30 Kg de sal/ano. Claro que maior
outras atividades relacionadas com a matéria-prima
parte desta quantidade não servia ao consumo humano
trabalhada de forma a aumentar a cadeia de valor. Já
direto, destinando-se mais de dois terços daquele valor
anteriormente foi identificado no local um centro oleiro
à alimentação do gado. Assim, aquela cifra de 30 Kg
que produzia ânforas que se destinavam a envasar
resulta do somatório entre o consumo pessoal (2,5Kg),
os molhos e derivados de peixe aqui produzidos. Esta
o de um ovino (2 Kg), o consumo de um bovino (20Kg)
vários
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estabelecimentos
que
aqui
se
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e para a conservação de alimentos e peles (5,5kg).
de pescado com uma ocupação sazonal à semelhança
Na verdade, só para a cura de um presunto são
das armações das épocas posteriores, ou aglomerados
necessários 6 a 9 Kg de sal de acordo com o tamanho
secundários com atividade portuária como teria sido o
do mesmo. Desta forma, a comunidade de um povoado
sítio do Cerro da Vila. Entre estes dois tipos de sítios
mediano que rondasse a 500 pessoas necessitaria de
haveria ainda os núcleos populacionais que exploravam
perto de 10 toneladas de sal ano (Mangas e Rosário
a terra e complementarmente o mar. Desta diversidade
Hernando, 2011, p. 11-22). Catão, outro agrónomo
resultava um litoral relativamente bem povoado em
latino que dá indicações explícitas de como se deveriam
relação ao resto da região e onde em termos económicos
tratar os escravos agrícolas, calculava uma dieta de
pontuava a produção de preparados piscícolas e
sal diária de 18,5 gramas por escravo (Catão, Agr.
todas a atividades com ela relacionadas. Estas eram
58), o que excedia muito o consumo atual. Segundo
vastas pois envolviam, para além da produção de sal
este agrónomo, uma boa dieta de sal na alimentação
já referida, tudo aquilo que estava relacionado com a
humana ou animal permitia estimular as forças e obter
pesca, como a preparação das artes de pesca (anzóis,
uma maior rentabilidade.
redes, cordas armadilhas de pesca...) a construção e
Como se deve imaginar, as necessidades de sal faziam
reparação de barcos, a confeção de recipientes, cestos
das
litoral,
e contentores para o transporte de peixe e a exportação
frequentemente controlada pelo governo imperial ou
dos seus derivados e toda uma logística de apoio a
municipal que, poderiam concessionar a exploração a
estas atividades e às pessoas que trabalhavam nelas.
particulares por vezes organizado em sociedades privadas
Ainda que desde a primeira metade do século I estejam
mediante uma renda (Mangas e Rosário Hernando, 2011,
bem identificados a instalação de núcleos populacionais
p. 58, 80). Longe do litoral também era explorado o sal de
que exploravam os recursos da terra e do mar em
minas ou a sal-gema, que Plínio (N.H. XXXI, 74) designa
torno dos antigos estuários das ribeiras de S. Lourenço,
por sal nativus, distinguindo-o do sal facticius que é o que
Carcavai, Almargem e Quarteira, é a partir de finais do
provém da evaporação da água salgada e que seria de
século II ou inícios do III que se acentua a exploração
melhor qualidade. Tendo em conta enormes necessidades
desses recursos, particularmente os marítimos. Aliás,
do sal e as ótimas condições para a sua produção na
esta realidade está bem documentada para toda a
costa louletana, muito superiores às de hoje devido à
costa algarvia, coincidindo com o início de um grande
configuração estuarina da costa louletana, a produção
desenvolvimento das villae algarvias que atingirão o seu
do sal seria significativa. Apesar da ausência de vestígios
máximo esplendor no século IV. É certo que a expansão
arqueológicos a comprová-lo, a implantação de múltiplos
e riqueza deste tipo de estabelecimentos rurais ou
sítios ligados à transformação de peixe contornando as
marítimos é extensivo a toda a Hispânia, mas, no caso
margens dos estuários das ribeiras constituem um indício,
algarvio pode ser correlacionado com o incremento das
ainda que indireto, da exploração do sal em larga escala,
atividades pesqueiras e as indústrias de transformação.
salinas
uma
importante
atividade
do
quer para alimentar as indústrias piscícolas vizinhas quer para exportação. Desta forma, na paisagem do litoral
Os Preparados de Peixe
romano entre Faro e Vilamoura, a imagem de montes de sal conservado que Plínio (N.H. XXXI, 81) descreve para
São muitas e diversificadas as fontes literárias da
outras paragens, deveria ser marcante:
Antiguidade que se referem às actividades da pesca
“Em África, nos arredores de Útica, elevam-se montes
e transformação de peixe. Mas sobre as técnicas
de sal em forma de colinas; quando o sol e a lua os
de
endureceram, a água já não pode dissolvê-los e só o ferro
particularmente as obras de Manilius (Astron. V. 656-
os corta”.
681), Columela (Rust. XII.55.4), Plínio (N. H. IX. 48;
A paisagem deste litoral era ainda entrecortada por
XXXI. 90, 94-95) e, mais tarde, a Geoponica (XX.46),
uma multiplicidade de sítios que tanto podiam ser
tratado de agricultura bizantino do século X mas
cetárias, ou seja, locais destinados à transformação
baseado em compilações anteriores, nomeadamente as
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processamento
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de
pescado
interessam-nos
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de Vindonius Anatolius (c. 350) e de Cassianus Bassus (c. 600). Marcus Manilius, poeta do tempo de Augusto e Tibério e autor de um dos mais antigos tratados de Astronomia, descreve os processos de produção do garum e da salsamenta. No século I estes processos são ainda tratados por Columela que refere um método de salga de peixe semelhante ao utilizado na conservação da carne de porco. Sendo gaditano, as suas descrições reflectem certamente a realidade das práticas em uso no Sudoeste Hispânico. Se confrontarmos as referências literárias do século I com as do fim do Império Romano, verificamos que nos preparados piscícolas da Hispânia registam-se alterações na vulgarização de determinadas designações desses
Fig. 4 – A Muxama ou “Melandrya”, comparada por Plínio e uma prancha de carvalho pela sua cor, era um dos preparados de peixe da região.
preparados, bem como na generalização de produtos líquidos que conservavam pequenos peixes, cujos restos a arqueologia detecta em ânforas e instalações
os lombos de atum salgados e secos a que Plínio (N. H.
piscícolas tardias. A carta enviada a Paulino por Ausónio
IX. 48) chama «melandrya» por se assemelharem a uma
(c. 310 – 395) dá-nos bem conta dessa alteração das
prancha de carvalho. Esta “melandrya” seria o produto
designações ao referir-se a muria como nome vulgar da
tradicional que ainda hoje se encontra no Algarve e
sua época para o garum (... id nomen muriae, quod in
Andaluzia e que dá pelo nome de “Muxama” ou “Mujama”.
uso vulgo est .. Ausonius, Epistulae, 21.1-9).
A sua semelhança com as pranchas de carvalho decorre
Apesar de as fontes clássicas serem pródigas em
da cor acastanhada mas também da consistência dura
referências aos molhos e pastas de peixe, onde o garum
que adquire depois de seco, após ser retirado do sal. Na
se destaca, eram muitos e variados os métodos de
verdade, assemelha-se a um “presunto”, só que de atum.
processamento de peixe com vista à sua conservação.
As restantes partes do atum eram também salgadas ou
Se o peixe fumado não era prática corrente no mundo
conservadas em salmoura, tal como outros peixes mais
mediterrânico e no sul hispânico, já a secagem ao sol
pequenos, sendo a barriga de atum das salgas muito
era empregue, embora as fontes sejam escassas a este
apreciadas pelo seu maior teor em gordura e também
respeito. No De natura animalium (XVII, 31), Eliano
as mais exóticas e as mais caras (Plínio, N. H. XIX. 57).
refere a secagem do peixe para produção de farinha.
Os peixes da família dos escombrídeos, a que pertencem
São, todavia, os salsamenta e os molhos e pastas de
para além do atum a cavala, foram, com a sardinha, das
peixe salgado os produtos mais comuns, até porque o
mais utilizadas na salga e confeção de pastas e molhos na
comércio de peixe ou seus derivados salgados era uma
região algarvia. Salgas, molhos, pastas e outros produtos
forma de assegurar boa parte das necessidades de sal
são, como explicita Manilius, subprodutos de um mesmo
das populações (Plínio, N. H. XXXI. 87-88).
processo, sobretudo quando se tem como matéria-prima
Os salsamenta diferenciam-se dos produtos fermentados
peixes de grande porte como o atum.
ou macerados em sal, sendo a natureza destes últimos
Os pequenos peixes, como a cavala e a sardinha, que
mais líquida ou viscosa. O conjunto dos produtos de
eram exportados em salmoura e cujos restos se têm
salga, sólidos ou não, de peixe ou de carne, poderiam
encontrado no interior de ânforas recolhidas de naufrágios
aparecer indistintamente referidos como salsamenta (tal
ou no fundo de cetárias no Algarve, parecem atingir uma
como nós hoje nos poderemos referir a eles como salgas)
importância crescente no Baixo Império romano, levando
mas, a maior parte das vezes, a palavra salsamentum
alguns autores a considerarem que, a partir do século
era aplicada em sentido restrito designando unicamente
III, se assiste a uma tendência para substituir as salgas
o peixe salgado. Entre as salgas sólidas destacavam-se
de atum por estas espécies menores (Garcia Vargas e
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Bernal Casasola, 2009, p. 143). Esta mudança de hábitos
baixa cotação. Era, no dizer do tratado Geopónica (XX.
de consumo decorre de alterações sócio-económicas e
46), o resíduo do garum, aquilo que restava no tanque
da democratização do consumo de peixe de baixo valor
depois dele se ter extraído o afamado produto. Esta
(sobretudo cavala e sardinha), particularmente entre as
substância teria certamente a aparência de um líquido
populações urbanas, associado a uma diversificação de produtos, em regra de natureza mais líquida. É neste contexto que se inserem as enormes produções do litoral louletano que as cetárias em Quinta do Lago, Loulé Velho, Quarteira, Cerro da Vila e outros sítios deixam adivinhar. Dentre os principais molhos e pastas, para além da muria, que consistia no líquido remanescente da salga
pastoso, com restos de espinhas e de ossos de peixe insolúveis (Curtis, 1991, p. 14). Para além destes quatro molhos e pastas que aparecem recorrentemente nas fontes literárias e na epigrafia anfórica, existem outros produtos, esporadicamente referidos e cujas características nem sempre são fáceis de
e prensagem do atum nos tanques, as fontes literárias
vislumbrar, mas que não se afastariam muito do aspecto
e epigráficas destacam o garum, o liquamen e o allec
e natureza dos preparados piscícolas acima enunciados. É
ou hallex (Curtis, 1991, p. 195-196). Seriam estes os
o caso de um produto designado por lymphatum e que é
produtos mais produzidos na costa algarvia.
apontado como sendo produzido por Clarus de Ossonoba
Em relação ao garum, o mais apreciado dos preparados
no nosso litoral no do século I (CIL IV, 5611-5613, 5615,
piscícolas, Plínio (N. H. XXXI. 43) diz-nos que se trata de
5616; Étienne e Mayet, 2002, p. 229). Desconhece-se a
um líquido de natureza muito saborosa, obtido a partir
verdadeira natureza deste produto, mas é possível que se
dos intestinos dos peixes e de várias peças maceradas em
tratasse de um tipo de oenogarum (garum com vinho).
sal que, de outra maneira, seriam lançados fora. Havia muitos tipos de garum, consoante a natureza da matériaprima, da quantidade de sal, ou dos ingredientes que o compunham. Incluíam frequentemente ervas aromáticas, tornando-se
algumas
receitas
de
regiões,
ou
de
produtores, extremamente afamadas. De fígados, ovas e sangue de cavalas ou atuns fazia-se o melhor garum que
Os abundantes vestígios de fauna malacológica que se encontra em Quinta do Lago e em Loulé Velho junto aos tanques de preparados piscícolas, permite supor que a variedade dos produtos era imensa. Em Loulé Velho, onde estão registados 3 tanques pequenos e outro conjunto de 18 de grandes dimensões (1,90m x 2,70m por 1,80
teria um aspecto caramelizado e uma natureza líquida
m de altura) com uma capacidade que excede os 165m3
ainda que espessa.
(Bernardes, 2008, p. 20), é notável a enorme quantidade
É difícil distinguir o liquamen do garum que, nas fontes,
de conchas de bivalves que se destinariam à produção
sobretudo a partir do século III, aparecem por vezes
do hallec ou ainda como um aditivo à muria obtida
referidos como se da mesma substância se tratasse. O
a partir do processo de salga do atum. As condições
liquamen seria, pois, semelhante ao garum, ainda que de
de ambiente estuarino existentes naqueles dois sítios
natureza mais líquida, como se fosse um garum menos
algarvios proporcionavam a recolha fácil de moluscos
denso ou mais diluído.
que entrariam na confecção de molhos e pastas, ou
O hallex ou allec, de acordo com Plínio (N. H. XXXI. 44), “é o resíduo do garum, consiste concretamente no sedimento dele (…) mas, mais tarde, começaram a prepará-lo separadamente, a partir de um peixe pequeno...”. Manilio especifica que todos os restos sobrantes eram misturados e combinados até que as formas dos distintos tipos se perdessem: isto convertia-
que seriam simplesmente exportados em salmoura. A identificação de conchas de Pectunculus pilosos em algumas ânforas Almagro 50, oriundas do Sudoeste Peninsular, encontradas no naufrágio Planier 7 (Marselha), testemunha este aproveitamento de moluscos para exportação (Étienne e Mayet, 2002: 203). Note-se que
se num condimento de uso comum (Astron. V, 673).
no Cerro da Vila (Vilamoura) Dias Diogo (2001) escavou
Com efeito, o hallec era o garum dos pobres, elaborado
dois tanques de época tardia que, dada a quantidade de
a partir dos restos, ou de matéria-prima de qualidade
conchas de berbigão (Cerastoderma edule), interpretou
secundária, como pequenos peixes ou moluscos de
como uma unidade de processamento de bivalves.
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Da Terra e do Mar: viver em Loulé há 2000 anos João Pedro Bernardes
que os produtos do tal Clarus da civitas de Ossonoba,
Considerações Finais
cidade onde se integravam as terras de Loulé, chegou Os produtos da terra e do mar eram diversificados na época romana permitindo nalguns casos criar excedentes e noutros produzi-los em larga escala para exportação. Se é certo que boa parte das atividades produtivas se inscreviam no quadro de uma economia de subsistência, a exploração em larga escala dos produtos do mar permitiu, por outro lado, o desenvolvimento da economia local e integrar a região na vasta rede de comércio que animava o Mediterrâneo. O Édito de Preços Máximos de Diocleciano (Edict. Pretiis, III, 6-7), do ano 301, dá-nos conta de viagens comerciais entre a Lusitânia e o Mediterrâneo central, para onde o Algarve canalizava parte da sua produção extraída da terra e do mar. Isto conjugado com as rotas de navegação entre o Mediterrâneo e o Atlântico permitiram que este finis terrae, fosse parte perfeitamente integrada do Imperio, pelo menos a partir de meados do século I. Elio Aristides, um eminente orador do século II na corte imperial romana, referindo-se ao tempo dele diz o seguinte: São muitos os que agora navegam para além das Colunas de Hércules. Sem dúvida alguma em número não menor que noutros tempos. E não um ou dois barcos num amplo lapso de tempo, senão que em cada dia os transportes e os mercadores passam de uma a outra parte do mar, como se fosse um só, já que aquela parte (Atlântico) está totalmente aberta e existe uma grande segurança na navegação devido à nossa hegemonia (Élio Aristides, Or. Rom., XXXVI, 91, apud MANTAS, 1998, p. 212).
a Pompeia por via de um armador gaditano. Mercatores da vizinha Andaluzia eram frequentes nas costas algarvias. As duas regiões, apesar de pertencerem a províncias distintas, eram inseparáveis e partilhavam da mesma economia por via do mar. E os portos regionais funcionavam como se fossem filiais do porto de Cádis, famoso, no dizer de Estrabão (Geog. III, 2, 6), pelo grande número e tamanho dos navios daqui oriundos. No litoral louletano, o porto do Cerro da Vila terá tido alguma importância a nível local, em clara articulação com o da capital regional de Ossonoba. As ruínas de armazéns aí encontradas pelas escavações de salvamento efetuadas há alguns anos, no âmbito do projeto de expansão da marina de Vilamoura, demonstram claramente que por este porto de Loulé saíam e chegavam produtos. Aqui estas atividades de ligação da terra ao mar e a sua projeção para além do Algarve continuaram durante séculos após a queda do Império Romano, testemunhando a continuidade da aprendizagem da região com mareantes e navegadores mediterrânicos e atlânticos, consolidando uma longa tradição marítima que muito contribuirá para a aventura portuguesa das viagens transoceânicas.
Esta passagem é bem elucidativa quanto ao tráfego marítimo
das
costas
significativamente
a
algarvias partir
das
que
aumentou
campanhas
do
imperador Cláudio nos anos 40 do século I, uma vez que permitiram o controlo das costas marroquinas e a conquista da Britania. Ainda que a maior parte do tráfego tivesse como destino outras paragens que não o Algarve, o litoral era do ponto de vista económico a terra mais ativa e também a mais povoada. Se os portos e ancoradores algarvios eram entrepostos importantes a nível local, o grande porto regional que articulava toda a região do sudoeste peninsular com o resto do Império era o de Cádis. Por ele se escoava boa parte da produção do atual Algarve que ali era conduzida pelos produtores regionais. Sabemos, por exemplo,
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