Da terra para o mar. Sobre o regime jurídico aplicável aos contratos de transporte fluvial turísticos

Share Embed


Descrição do Produto

Da terra para o mar Sobre o regime jurídico aplicável aos contratos de transporte fluvial turísticos Manuel David Masseno 1

Da terra para o mar

“Assim como o princípio da vida da família tem por condição a terra e o solo, assim o elemento natural que exteriormente anima a indústria é o mar. A procura do ganho, na medida em que implica um risco, eleva-se acima do seu próprio fim e substitui o apego à terra e ao círculo limitado da vida civil […] O tráfico promove uma atividade jurídica que produz o contrato; constitui, ao mesmo tempo, um poderoso elemento de cultura e nele encontra o comércio a sua significação histórica. Nota – Ao contrário do que se tem pretendido nos tempos mais modernos, os rios não constituem fronteiras naturais pois, mais do que separam, unem os homens.” (G. W. Hegel. 1820. Princípios da Filosofia do Direito, § 247)” 2

Da terra para o mar

I. Da neblina… 

um pré-entendimento: os transportes fluviais de passageiros, enquanto tais, nunca mereceram a atenção do Legislador nacional 



até muito recentemente, os contratos de transporte fluviais ficaram inseridos entre os transportes terrestres (366.º§1.º do Código Comercial) 



tradicionalmente, teriam uma expressão reduzida, o que está a mudar até em termos radicais

mas sem qualquer regulação específica, diferentemente do ocorrido com os ferroviários e rodoviários de passageiros

pelo que, in casu, era inviável defender a aplicação do regime do transporte marítimo de passageiros 

antes no Código Comercial (Art.ºs 563.º a 573.º), agora descodificado (Decreto-Lei n.º 349/86, de 17 de outubro) 3

Da terra para o mar 

em consequência, o respetivo conteúdo contratual típico resultaria de um trabalho de recorte, delicado: 









a disciplina da prestação de serviços / empreitada, por se tratar de uma obrigação de resultado (Art.ºs 1154.º e 1027.º a 1230.º do Código Civil), na falta de previsão típica, como ocorria com o Código de Seabra (Art.ºs 1410.º e 1411.º), a que acresce o direito do transportador se fazer substituir por terceiro (Art.º 367.º do Código Comercial) e um direito retenção especial sobre as bagagens transportadas (Art.ºs 755.º n.º 1, também do Código Civil e 390.º do Código Comercial), ademais temos: o regime comum das operações mercantis (Art.ºs 96.º a 102.º do Código Comercial) bem como… a Lei de Defesa dos Consumidores (Lei n.º 24/96, de 31 de julho), desenvolvida pelo regime das cláusulas contratuais gerais (Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro) e pelo regime das práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores (Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março) 4

Da terra para o mar 

e quando estamos perante contratos que vão além do simples transporte fluvial de passageiros, incluindo outras prestações, de natureza turística? 





em termos gerais, tratar-se-á de “viagens turísticas” (Art.º 15.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 61/2011, de 6 de maio), com a aplicação da respetiva disciplina em termos de deveres de informação prévia (Art.º 16.º), de obrigações acessórias (Art.º 17.º) e de responsabilidade (Art.ºs 29.º n.º 5.º e 30.º) mas também, embora menos frequentemente, serão “viagens organizadas” (Art.º 15.º n.º 2 do mesmo Diploma), com plena aplicação da disciplina pré-contratual (Art.ºs 16.º a 21.º), contratual (Art.ºs 22.º a 28.º) e de responsabilidade (Art.ºs 29.º e 30.º)

o que exige “um diálogo das fontes”, a partir das Bases das políticas públicas de turismo (Decreto-Lei n.º 191/2009, de 17 de agosto)  sobretudo em termos de “direitos do turista” (Art.º 22.º) 5

Da terra para o mar

II. … surgiu uma aberta 

desde a Política Comum de Transportes da União Europeia: 



na sequência de uma regulação sucessiva da indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos (Regulamento (CEE) n.º 295/91 do Conselho, de 4 de fevereiro de 1991, substituído pelo Regulamento (CE) n.º 261/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004), dos direitos e obrigações dos passageiros dos serviços ferroviários (Regulamento (CE) n.º 1371/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2007), e dos direitos dos passageiros no transporte de autocarro (Regulamento (UE) n.º 181/2011 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011) e em complemento da disciplina relativa à responsabilidade das transportadoras de passageiros por mar em caso de acidente (Regulamento (CE) n.º 392/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Abril de 2009) 6

Da terra para o mar



foi adotado o Regulamento (UE) n.º 1177/2010, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Novembro de 2010, relativo aos direitos dos passageiros do transporte marítimo e por vias navegáveis interiores 



além de manter em vigor a disciplina europeia relativa às viagens organizadas (Directiva 90/314/CEE do Conselho, de 13 de Junho de 1990, Considerando 20 e Art.º 21.º do Regulamento) inclui no respetivo âmbito os transportes fluviais, assim como nas restantes águas interiores, resolvendo ambiguidades quanto aos transportes que operaram entre o mar e as vias de navegação interiores e efetivando uma preempção das atribuições dos Estados-membros neste domínio 7

Da terra para o mar 

porém, surge logo uma delimitação negativa (Art.º 2.º n.º 2), no que nos importa, não se aplicando: 



“c) Em excursões e visitas turísticas que não sejam cruzeiros;”, bem como nestes, se se realizarem “a) Em navios certificados para transportar, no máximo, 12 passageiros; [ou] b) Em navios com uma tripulação responsável pela operação do navio não superior a três pessoas [ou] d) Em navios sem propulsão mecânica, bem como em navios de passageiros históricos originais, e réplicas dos mesmos, projectados antes de 1965, construídos predominantemente com materiais originais e certificados para transportar, no máximo, 36 passageiros.” sendo considerado “«Cruzeiro», um serviço de transporte por via marítima ou por vias navegáveis interiores, explorado exclusivamente para fins de recreio ou de lazer, complementado com alojamento e outras prestações, de duração superior a duas noites a bordo;” (Art.º 3.º alínea t), id est, trata-se de uma “viagem organizada” mais exigente.. 8

Da terra para o mar 

em termos de conteúdo, garante (Art.º 1.º) a: 









“a) Não discriminação dos passageiros no que se refere às condições de transporte oferecidas pelos transportadores” (Art.ºs 4.º a 6.º) “b) Não discriminação e assistência às pessoas com deficiência e às pessoas com mobilidade reduzida” (Art.ºs 7.º a 15.º) “c) Direitos dos passageiros em caso de cancelamento ou atraso” (Art.ºs 16.º a 21.º) “d) Informações mínimas a prestar aos passageiros” (Art.ºs 22.º e 23.º) e ainda regras sobre o “e) Tratamento das reclamações” (Art.º 24.º)

além de que, o Regulamento de quo foi complementado pelo Decreto-Lei n.º 7/2014, de 15 de janeiro, em matéria contra-ordenacional 9

Da terra para o mar

III. … que nos permite olhar mais longe 

tomando na devida conta a opção fundamental de Política Legislativa da União Europeia, a consideração conjunta do transporte marítimo e do transporte fluvial de passageiros 



aliás corroborada pelo Legislador nacional, com a confluência do Instituto da Navegabilidade do Douro no Instituto da Mobilidade e dos Transportes (Decreto-Lei n.º 146/2007, de 27 de abril) e a atribuição à Docapesca - Portos e Lotas SA das funções de autoridade portuária nos Rios Arade e Guadiana (Decreto-Lei n.º 16/2014, de 3 de fevereiro)

temos como consequências: 

sem esquecer as demais Fontes, supra indicadas, nem abdicar do “diálogo” entre as mesmas, de maneira a efetivar os Princípios e os Direitos enunciados em sede de Bases das políticas públicas do turismo 10

Da terra para o mar 





aplicar o regime dos transportes marítimo da passageiros (Decreto-Lei n.º 349/86, de 17 de outubro) também aos fluviais, por identidade de razão e salvo exceções fundamentadas aplicar o mesmo regime, em articulação com a disciplina das “viagens turísticas”, incluindo a das “viagens organizadas”, caso se verifiquem os respetivos pressupostos, às “excursões e visitas turísticas” que incluam transportes fluviais e não sejam qualificáveis como “cruzeiros” aplicar aos “cruzeiros” o regime de quo, assim como o das “viagens organizadas” e as disciplinas instituídas pelo Regulamento, e pelo Decreto-Lei que o complementa, salvo no que se refere aos dois últimos diplomas, caso se verifiquem as exceções previstas em função das caraterísticas técnicas dos navios 11

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.