DA VIDA POBRE, DA ATUALIDADE, DA CLÍNICA PSICANALÍTICA: POESIA E SELVAGERIA • Publicado na Revista Polêmica – Oficina Híbridos, no 12, janeiro a junho de 2004, UERJ http://www2.uerj.br/~labore/texto_of_hibridos_vida_pobre_p12.htm

August 26, 2017 | Autor: Eliana Reis | Categoria: Culture, Psicanalise, Winnicott
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DA VIDA POBRE, DA ATUALIDADE, DA CLÍNICA PSICANALÍTICA: POESIA E
SELVAGERIA(
Eliana Schueler Reis*


O interesse recente pelo estudo dos trabalhos de Winnicott no meio
psicanalítico reflete a necessidade de refletir sobre os desafios
enfrentados pelos psicanalistas na prática clínica na atualidade. Tornou-se
corrente a discussão sobre o surgimento de "novas subjetividades", o que
implica considerar que novas formas de subjetivação estão em ação.
Certamente nos deparamos cotidianamente, em nosso fazer clínico, mas não só
nele, com algo que clama por novas percepções; aspectos subjetivos que não
reconhecemos nos relatos clínicos mais antigos, e que nos exigem repensar
as noções de setting e manejo. Quando digo que nos deparamos com essas
questões não só no fazer clínico, é porque a vida cotidiana, a política, a
cultura de uma forma ampla ligam-se diretamente à nossa vida, como
analistas e como pessoas.
Há algum tempo, assisti a uma apresentação de um grupo de dança de
Portugal, sobre o qual eu nada sabia. Foi uma experiência muito intensa.
Até hoje, quando lembro, me sinto tomada pela alegria de compartilhar uma
certa forma de ser humano. Para outras pessoas da platéia, a experiência
beirou o insuportável: saíam da sala urrando de ódio. No final descobri que
o espetáculo se chamava "Poesia e selvageria".
Mais tarde encontrei um texto de Vera Mantero, a bailarina e
coreógrafa líder desse grupo, publicado em uma revista cujo tema era "A
vida pobre". Eis um trecho, que traduz o que estou tentando dizer:

"a cultura está em erosão.
o espírito está em erosão. estão os dois a desfazer-se. estão a
desaparecer.
o espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se
com coisas pobres. o espírito é uma criatura muito ávida de ocupação.
precisa de se ocupar constantemente. o espírito deve ser o único pedaço
de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com
qualquer coisa. se dissermos a coisa assim, a palavra "entretenimento"
torna-se muito menos pecaminosa. enquanto me entretenho com o Glenn
Gould e suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha
volta. necessitamos das artes para não morrermos. as artes falam
conosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam. não se calam, não nos
deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de
tédio....

...o ser humano precisa de não estar sempre no cotidiano, precisa
de sair do quotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do
mundo. precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da
produção, ter objetivos diferentes desses, precisa de voltar a saber
que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais
sutil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações de
linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer
essas coisas, assiná-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas
também com o corpo em ações, associando sentidos e elementos, virando
de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e
reorganizando. é preciso olear o espírito, olear o ser...é preciso
entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, na
poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente,
na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar
os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na
imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no
pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, na relação com os
outros.


nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos
a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o
espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes
estamos muito tristes ou temos a sensação de a que vida desapareceu de
cá de dentro."[1]

Encontro nesse texto um pouco da experiência de estar presente naquela
dança. Não foi um mero "assistir a um espetáculo", foi presenciar e
participar de um acontecimento, entrar noutros níveis perceptivos, noutra
sensação do mundo.
Mesmo quando se questiona a existência de uma nova subjetividade
contemporânea, percebe-se um empobrecimento da experiência subjetiva, um
sentimento de desfazer-se entre o tédio das coisas prontas e a aceleração
que é preciso se impor para escapar delas, correndo sempre atrás de algum
objeto que traga de volta o prazer de viver.
Buscando puxar os fios para tecer redes e construir sentidos, ao ler o
artigo "Experiência e pobreza", de Walter Benjamin, escrito em 1933,
percebemos que esse processo de empobrecimento não é tão recente, pois já
naquele momento ele se perguntava: "qual o valor de nosso patrimônio
cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?"[2] E continua:

"Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do
patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo
do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do 'atual' ... "A
pobreza da experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade, o
que faz surgir uma nova barbárie."[3]

Reportando-nos à exigência dos modos de vida atuais, principalmente
nos centros urbanos, vemos a dificuldade em experimentar a lentidão dos
movimentos e a densidade dos afetos mais simples. Benjamin argumenta que
estamos nos tornando bárbaros, mas não é nostálgico de um mundo em que este
patrimônio pudesse ser recuperado. Ao contrário, aponta a barbárie como
possibilidade de criar a partir da pobreza, começar de novo, contentar-se
com pouco, construir com pouco. Ser implacável como uma forma de sobreviver
à cultura, se necessário.[4] É isto, que segundo Benjamin, traria à massa
um pouco de humanidade, recriando a experiência com poucos meios, de forma
solidária e, mais importante do que tudo: rindo.[5]
Em sua reflexão sobre a perda da dimensão da experiência Benjamin
baseou-se na afirmação de Freud em Além do Princípio do Prazer, de que a
consciência surge no lugar de uma impressão mnêmica: sua função é atuar
como uma camada defensiva do aparelho psíquico e aparar os choques e
defleti-los.[6] A noção de experiência (Erfahrung) relaciona-se à
possibilidade de absorver os estímulos e fazer deles memória, história,
densidade subjetiva. Em sua leitura de Freud, Benjamin assinala que o
sistema consciente tem a capacidade de não se deixar marcar pelas cargas
excitatórias oriundas dos estímulos externos; no entanto, algo desses
processos excitatórios deixaria marcas em outro sistema, marcas que não
seriam acessíveis à consciência de forma imediata. Estímulos muito
intensos, choques traumáticos, produzem rupturas nesse sistema,
prejudicando a capacidade filtradora da consciência e impedindo que traços
mnêmicos se liguem no psiquismo. Nesses casos, é mais importante barrar a
invasão do aparelho pelo estímulo, mesmo ao custo de a vivência traumática
ficar excluída do sistema de memória inconsciente.
Benjamim argumenta que a forma da sociedade moderna não permite a
absorção dos estímulos, na medida em que se tornam demasiadamente
acelerados, excessivos, provocando choque.

"O fato do choque ser assim amortecido e aparado pelo consciente
emprestaria ao acontecimento que o provoca o caráter de vivência em
sentido restrito.... Quanto maior é a participação do fator do choque
em cada umas impressões, tanto mais constante deve ser a presença do
consciente no interesse em proteger contra os estímulos; quanto maior
for o êxito com que ele operar, tanto menos essas impressões serão
incorporadas à experiência, e tanto mais corresponderão ao conceito de
vivência.[7]

A presença do choque se impôs na sociedade moderna pela aceleração dos
ritmos da vida nas cidades. A cidade moderna é a multidão no meio da qual
nos movemos rapidamente evitando os olhares; assim é o trabalho mecanizado,
que disciplina o corpo do trabalhador para mover-se ao ritmo da máquina.
A sensibilidade produzida por essa onipresença das situações de choque
implica que a consciência – o estado de alerta - passe a predominar sobre
as impressões mnêmicas inconscientes. A vivência (Erlebnis) torna-se
predominante e o vivido não pode ser integrado à memória inconsciente como
experiência (Erfahrung), perdendo o potencial poético daquilo que emerge
como memória involuntária.
Uma parte do patrimônio perdido ou empenhado é o tempo. Tempo como
dimensão da vida que traz uma diferença. Tempo experienciado, tempo da
sensação, da lentidão de estar nas coisas.
De volta à nossa discussão: por que Winnicott? – que poderia ser
também por que Ferenczi? Ou por que Balint? – estamos tentando ver o que
fazer com o nosso patrimônio cultural de psicanalistas num momento em que a
pobreza da experiência nos assusta.
Isto implica manter abertos canais de discussão sobre como fazemos e
como pensamos nossa prática, pois não podemos tomar a clínica como uma
invariante, bastando dizer "clínica", para que todos nos reconheçamos
jubilatoriamente. Ah! É isso mesmo! E não precisaríamos mais pensar nos
impasses, diferenças, estilos além de todas a querelas que rondam o tema.
Pois é, mas não é isso mesmo, não é possível apaziguar a tensão
inerente à posição do analista, nem escapar de sua precariedade. A
experiência clínica remete à singularidade do encontro, às forças em jogo
e, por mais que se tente isso não deixa de insistir. Nas discussões sobre
as dificuldades da clínica psicanalítica contemporânea – sobre as novas
formas de sofrimento, sobre os novos sintomas – a angústia dessa posição
pode conduzir a um empobrecimento da questão, no afã de ter uma resposta
certeira. Descobrir qual é a "forma sintomática padrão" do mundo
contemporâneo e quais são os instrumentos técnicos adequados para tratá-la.
Por que Winnicott?
Perguntamos justamente para marcar que a clínica não pode ser feita
como invariante; como "winnicottiana" ou "ferencziana" e ficar seduzida
para que agora este autor, ou qualquer outro dê conta das dificuldades.
Acredito na importância de não nos tornarmos especialistas, mas podermos
permanecer como o amante das ciências, que aprecia um pensamento, não no
sentido respeitoso de quem se aproxima de um mestre, como seguidor, mas
pelo que este pensamento tem de frágil, misturado, raro, encoberto,
problemático, mediado, interessante e civilizatório"[8]. Nesse sentido,
apesar de ter me dedicado ao estudo de Ferenczi por muito tempo, e de suas
contribuições teóricas e clínicas terem iluminado minha prática, não sou
especialista, nem em Ferenczi, nem em Winnicott.
Após o passeio pela questão da experiência em Benjamin, à qual
retornarei adiante, vou apresentar dois aspectos do trabalho de Winnicott,
de que pude me apropriar, e que me parecem relevantes para o debate sobre a
experiência como psicanalista.
Winnicott, imerso numa tradição empirista, destaca o papel da
experiência na constituição psíquica, referindo-se especialmente à
experiência originária de uma continuidade de ser, assim como de uma
atividade. Isto denota sua compreensão dos processos de subjetivação como
vindo das sensações e percepções experimentadas desde os momentos mais
precoces da existência.
Segundo a concepção empirista de Hume, o pensamento, embora aparente
possuir uma liberdade ilimitada, está confinado dentro de limites muito
reduzidos, e todo o poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade
de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos
sentidos e pela experiência. Ou seja, o pensamento brota do universo das
impressões, que compreendem as nossas percepções mais vivas, quando
ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos.[9]
Poderíamos acrescentar que a experiência é experiência de si e do
outro, enquanto mundo/ambiente humano. O que nos leva ao segundo aspecto
que desejo ressaltar: a noção de ambiente, com todas as suas implicações,
inclusive como visão da relação transferencial.
À primeira vista, a noção de ambiente pode ter ressonâncias
darwinistas, em que o ambiente é o meio pré-existente a cujas condições os
organismos devem se adaptar para sobreviver.
Aqui cabe lembrar Ferenczi, que subverte a noção de adaptação e afirma
a imperiosa necessidade de que o recém-nascido seja recebido pelo ambiente
em sua radical estranheza, podendo assim, ser trazido ao mundo humano de um
modo não muito traumático. A família deve adaptar-se à criança, é uma
condição do processo de erogeneização.[10] Ferenczi não se ilude, sabe que
este processo não é homogêneo nem harmônico, e que a maternagem – ação
erógena do ambiente – pode ser estranhamente traumática.[11] O infantil,
enquanto experiência, é balizado principalmente pelo que afeta diretamente
o corpo, como as variações de tons da voz, das intensidades dos gestos, dos
ritmos das presenças.
Assim como em Ferenczi, encontramos na referência winnicottiana ao
ambiente a mesma posição, diferente da noção mais corrente de "ambiente" no
sentido evolucionista.
Para Winnicott, o desenvolvimento inicial do indivíduo implica um
"continuar a ser". A noção de indivíduo indica a idéia de uma existência
física e psíquica que consiste em psique e soma que não podem ser pensados
em separado, já que a psique é a elaboração imaginativa dos elementos,
sentimentos e funções somáticas, em resumo, da vitalidade física. O
psicossoma inicial prossegue numa linha de desenvolvimento desde que esse
continuar a ser não seja perturbado em sua experiência com o ambiente,
constituído pelos outros humanos, com seus corpos e sua história, e que por
algum tempo não é percebido como separado. Esta é a natureza humana. Nesse
momento inicial, Winnicott refere-se à necessidade de um ambiente
perfeito.[12]
E o que vem a ser um ambiente perfeito? É aquele que se adapta
ativamente às necessidades do recém-criado psicossoma, sustentando a
experiência de continuar a ser.[13] O ambiente não pertence, portanto, a
uma categoria universal de perfeição. É perfeito em sua singularidade, na
medida em que está em sintonia e permite a experiência de continuar a ser,
sem perturbá-la com intrusões prematuras, sustentando com isso a
experiência paradoxal da onipotência e da dependência absoluta simultâneas.
O ambiente perfeito é o espaço-tempo que se adapta ativamente às
necessidades do indivíduo. Isto lhe permite explorar ativamente o ambiente
sem que este o invada.
Esse estado de ilusão exige tempo para estar só. O bebê, em seus
períodos iniciais de vida, não teria a experiência de demandar algo, pois
ele é onipotente e criador. Paradoxalmente, o bebê mais desamparado
experimenta ser senhor de seu mundo, quando há esta sintonia com o
ambiente.
Winnicott assinala que a mãe, como ambiente, é uma presença física.
Ela existe e continua existindo – vive, cheira, respira, seu coração bate.
Esta ali para ser sentida de todos os modos possíveis. Ama de um modo
físico, com seu calor corporal, seu movimento e sua quietude, e também
envolve o bebê no universo simbólico de seu desejo. Acredita que o bebê é
um ser humano e, por identificação, torna-se capaz de tolerar sua falta de
integração, dando ao bebê a possibilidade de transitar entre estados
tranqüilos e estados de excitação.
Claro que este é o melhor dos mundos. Mas é o mundo suficientemente
bom. Nem demais, nem "de menos".
O ambiente, no entanto, pode não ser perfeito, não se adaptar, e sua
atividade se manifestar como intrusão à qual o psicossoma terá de reagir,
interrompendo a experiência de continuar a ser.
Para tornar mais claras as relações, vejamos como Winnicott descreve
os padrões de atividade que definem a qualidade desta experiência:
No primeiro padrão o indivíduo, originalmente isolado, descobre e
redescobre o ambiente a partir de sua atividade e motilidade. Trata-se de
uma experiência que se dá num estado de indiferenciação e de não
integração. Nesse caso, o ambiente não se impõe, apenas existe e resiste às
investidas do indivíduo (feto ou bebê), permitindo-lhe exercer este
potencial, pois "ele precisa de algo para empurrar."[14]
Já no segundo padrão o ambiente se impõe ao indivíduo, ocasionando uma
série (repetições) de reações à intrusão. Como conseqüência, o indivíduo
retira-se para a quietude e busca o isolamento, deixando de ser ativo.
Nesse caso a motilidade passa a ser reativa. O ambiente é invasivo, não se
adapta ativamente, não se deixa explorar e ser ignorado ao mesmo tempo,
quebrando-se assim a experiência de continuidade.
No terceiro padrão a invasão do ambiente é tão intensa que não resta
nenhum um lugar de quietude e isolamento. Nesse caso, é impossível
constituir o narcisismo primário, na direção de uma integração, e o
indivíduo se constitui como extensão do ambiente invasor, tornando-se como
uma casca, que envolve um núcleo. Winnicott forjou as noções de "verdadeiro
self" e "falso self" para definir um tipo de resposta do eu ao trauma
precoce da intrusão ambiental, que resulta na clivagem desse eu em uma
parte que permanece oculta enquanto outra é visível, cabendo-lhe a função
de manter esse ocultamento, por meio de uma adaptação passiva ao ambiente
(por ex., conformando-se muito bem às regras da sociedade). "O indivíduo
existe por não ser encontrado".[15] Este falso self experimenta um
sentimento de instabilidade, tanto maior quanto mais bem sucedido for o
engano em se passar por verdadeiro. A isto Winnicott denomina "sentimento
de inutilidade".[16]
Quero enfatizar que Winnicott não se refere a fantasias, mas a algo da
ordem de uma experiência real sobre a qual, inclusive, vão se erigir
fantasias, como precipitados dessas experiências, e mesmo como defesa. Ele
estabelece uma diferença entre "capacidade de elaboração imaginativa" –
como uma dimensão da ação criadora – e o "fantasiar" ou "devaneio", que
funcionaria como uma formação defensiva contra as intrusões ambientais; uma
maneira de o indivíduo se isolar.
Assim, a criação não é entendida como uma compensação para a
necessidade de uma renúncia pulsional, mas como uma expansão da experiência
da atividade originária que é resultante da motilidade somada à dimensão
erótica. Se as condições iniciais da vida permitem ao bebê ter a
experiência de uma continuidade de ser, esta dimensão experienciada irá
integrar daí por diante todas as vivências, percepções e sensações, dando a
elas a densidade existencial da experiência a que se refere Benjamin, pois
o estar no mundo não será reativo e sim uma expressão da atividade.
Considerando as questões trazidas anteriormente sobre a vida moderna,
e mais ainda sobre a vida contemporânea, onde a aceleração se tornou
eletrônica e não mais mecânica, diríamos que esta dimensão temporal, esse
excesso de estímulos distanciados de uma história, perturba a construção de
uma memória intensa e densa, provocando a erosão da sensação de existir, o
que faz com tenhamos a "sensação de que a vida desapareceu de cá de
dentro."[17]
Quando Mantero diz que precisamos muito disto ("da "sensação de vida
cá dentro) e estamos a ter muito pouco disto, que o espírito precisa
entreter-se com coisas ricas (pois é da sua natureza entreter-se, podendo
fazê-lo com coisas pobres), podemos pensar sobre nossa clínica e
estabelecer uma relação entre a experiência inicial do feto/bebê com o
ambiente e aquilo que vai se dar como experiência transferencial.
Será que quando tentamos reconduzir os nossos pacientes atuais para
algum modelo nosográfico, mesmo atualizado com novas formas de sofrimentos,
ou novos sintomas, não estamos nos defendendo da intrusão do ambiente, num
movimento reativo, buscando circunscrever um padrão de clínica?
Talvez a psicanálise, na atualidade precise não se assustar com a
"barbárie", acolher essas pessoas desgarradas sem esperar que sejam
civilizadas. Recebê-las como um ambiente suficientemente bom, sem exigir
respostas prontas, uma fala plena, dar tempo ao surgimento da elaboração
imaginativa e mesmo ajudar a construí-la, segundo sua forma própria.
Winnicott e Ferenczi, como outros, nos ajudam a viver a experiência
psicanalítica como um ponto em que é interessante existir, onde podemos
entrar na imaginação, nas histórias, no pensamento, no humor, na relação
com outros. Combater a erosão sem nos defendermos dela, considerando o
espaço transferencial como experiência de acolhimento que possibilitaria
experimentar a transição entre estados excitados e estados tranquilos.
Winnicott reafirma o papel do setting como espaço constitutivo de uma
experiência, e Ferenczi traz a noção de "tato" ou "sentir com" para o
centro da experiência transferencial, o que implica considerar fundante a
experiência real de existir e continuar existindo no mundo com todas as
dificuldades e riscos incluídos.
BIBLIOGRAFIA
Benjamin, W. – Experiência e pobreza, Obras Escolhidas vol. I, S.P. Ed.
Brasiliense, 1987.
___________ Sobre alguns temas em Baudelaire, Obras Escolhidas vol. III,
S.P. Ed. Brasiliense, 1989.
Ferenczi, S. – A criança mal acolhida e sua pulsão de morte, (1929),
Psicanálise IV, S.P. Ed. Martins Fontes, 1992.
____________ A adaptação da família à criança (1928), Psicanálise IV, S.P.
Ed. Martins Fontes, 1992.
Freud, S. – Más allá del principio de placer (1920) Obras Completas, vol.
XVIII, Buenos Aires, Ed. Amorrortu, 1975.
Hume, D. – Investigação acerca do entendimento humano (1748) Edição
Acrópolis, versão para eBooks Brasil.com, fonte digital
br.egroups.com/group/acropolis/
Latour, B. – Pétites leçons de sociologie de sciences, Paris, Ed. La
Découverte, 1993.
Mantero, V. – A desfazer-se, in Elipse – gazeta improvável, Lisboa, Relógio
d'Água, no. 1/ primavera de 98.
Winnicott, D. W. – A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional
(1950-55) in Da Pediatria à Psicanálise – Obras Escolhidas, Rio, Imago,
2000.
_______________ A mente e sua relação com o psicossoma, in Obras Escolhidas
– da Pediatria à Psicanálise, Rio, Imago, 2000.


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( Publicado na Revista Polêmica – Oficina Híbridos, no 12, janeiro a junho
de 2004, UERJ
http://www2.uerj.br/~labore/texto_of_hibridos_vida_pobre_p12.htm
* Psicanalista. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos.
Doutora em Saúde da Criança e da Mulher pelo IFF/FIOCRUZ e co(autora, com
Eliza Santa(Roza do livro "Da Análise na Infância ao Infantil na Análise"
Ed. Contra Capa, 1997.

[1] Mantero, Vera – A desfazer-se in Elipse, gazeta improvável, Lisboa, Ed.
Relógio d'Água, no. 1 / primavera de 98, pg. 3-4.
[2] Benjamin, W. – Experiência e pobreza, Obras Escolhidas vol. 1, Ed.
Brasiliense, 1987. Pg. 115.
[3] Idem, pg. 119
[4] Ibidem, pg. 116.
[5] Ibidem, pg. 119.
[6] Freud, S. – Más allá del principio de placer (1920) Obras Completas,
vol. XVIII, Buenos Aires, Ed. Amorrortu, 1975, pg. 24-5.
[7] Benjamin, W. – Sobre alguns temas em Baudelaire in Obras escolhidas
III, SP, Ed. Brasiliense, 1989. pg. 110,111.
[8] Latour, B. – Pétite leçons de sociologie des sciences, Paris, Ed. La
Découverte, 1993, pg. 11.
[9] Hume, D.(1711-1776) – Investigação acerca do entendimento humano (1748)
Edição Acrópolis, versão para eBooks Brasil.com, fonte digital
br.egroups.com/group/acropolis/
[10] Ferenczi, S. –A adaptação da família à criança (1928), Psicanálise
IV, S.P. Ed. Martins Fontes, 1992..
[11] Ferenczi, S. – A criança mal acolhida e sua pulsão de morte, (1929),
Psicanálise IV, S.P. Ed. Martins Fontes, 1992.
[12] Winnicott, D. W. – A mente e sua relação com o psicossoma, in Obras
selecionadas – Da pediatria à psicanálise, RJ, Ed. Imago, 2002, pg. 333-4
[13] Ibidem, pg. 334.
[14] Winnicott, D.W. – A agressividade em relação ao desenvolvimento
emocional (1950-55) in Da pediatria à psicanálise – Obras Escolhidas, Rio,
Imago, 2000, pg. 298.
[15] Idem, pg. 297-8.
[16] Idem. Pg. 297-8
[17] Mantero, Vera – Op. cit.
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