Da Zona Franca a proteses dentarias

June 28, 2017 | Autor: Jan Santos | Categoria: Literatura, Cultura E Sociedade
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Graduando do curso de Letras Língua Portuguesa da UFAM
Orientador do projeto. Professor de Literatura Portuguesa da UFAM. Mestrado em Literatura Portuguesa
DA ZONA FRANCA A PRÓTESES DENTÁRIAS:
CONSTATANDO A BANALIZAÇÃO DO INSÓLITO N'A CALIGRAFIA DE DEUS, DE MÁRCIO SOUZA
Jandir Silva dos Santos - [email protected]
Universidade Federal do Amazonas

Kenedi Santos Azevedo - [email protected]
Universidade Federal do Amazonas

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo constatar as principais ocorrências do insólito e de sua banalização no conto A Caligrafia de Deus, de Márcio Souza, através da análise de seus personagens e da intertextualidade que o espaço ficcional do conto faz com obras predecessoras, tanto da Antiguidade Clássica quanto do Modernismo brasileiro, enfatizando seus desdobramentos enquanto fator determinista por meio da ignorância e da loucura. Para tal fim, os textos O Fantástico (RODRIGUES, 1988) e O insólito é o estranho (FERREIRA, 2009), junto a análise comparada entre a narrativa de Márcio Souza e alguns exemplos proeminentes do Modernismo, servem de base para justificar a loucura como uma manifestação plausível do insólito, e também se agregaria a isso a ignorância generalizada, uma doença de ordem social. Sejam os habitantes de Iaureté – Cachoeira, de Manaus, os caboclos do Negro ou as prostitutas do Selvagem, todos são acometidos por esse mal. Izabel, protagonista do conto, que morreu sem nunca ter sido beijada, Catarro, seu amante, que nunca conheceu vida mais produtiva do que ser perseguido por Frota, e o próprio Comissário, desejoso de ser reconhecido como uma autoridade capaz, todos são guiados pelo mote profético da mãe de Izabel: "Deus escreve certo por linhas tortas", justificando, assim, de modo alegórico, a ocorrência dos males que pouco têm de divinos. A presente pesquisa integra o projeto Fio de Linho da Palavra, vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Literaturas de Língua Portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Márcio Souza, Insólito, Loucura
INTRODUÇÃO
Presente em uma grande quantidade de textos em culturas variadas, o estranho, também conhecido como insólito, é uma das características mais frequentes em obras literárias. "Fantástico, realismo mágico e terror são os significantes mais usados pela teoria da literatura para classificar as obras literárias que elegem o estranho como tema", afirma Ferreira (2009).
Sendo assim, não só a deuses e heróis se limita o insólito, tendo em vista que a contemporaneidade trouxe novas configurações para essa modalidade de ficção, especialmente pelo emprego de traços residuais e por meio de sua banalização.
"Em nossa língua, o significante insólito (do latim insolitu) compartilha alguns sentidos com o significante estranho (do latim extraneu): fora do comum, desusado, novo, anormal, extraordinário, extravagante, excêntrico, etc. [...] Assim, ambos significam o que está fora do âmbito familiar". (FERREIRA, 2009)
O contista Lovecraft (2012), em um apêndice autobiográfico, discorre de um modo mais prático sobre como o fantástico não precisa estar limitado a figuras grandiosas. Segundo ele,
"[...] os livros e as lendas não tinham nenhum monopólio sobre a minha fantasia. Nas ruas pacatas de minha cidade natal, onde portas coloniais dotadas de claraboias, janelas com pequenas vidraças e graciosos coruchéus georgianos ainda mantinham vivo o glamour do século XVIII, por vezes eu sentia uma magia difícil de explicar". (LOVECRAFT, 2012)
Márcio Souza, autor contemporâneo, traz tanto o insólito quanto resíduos clássicos e medievais de uma maneira bastante banalizada em seu conto A Caligrafia de Deus (2008), encarnados em um profundo sentimento de descaso com a condição humana e a passividade do homem com relação a isso.
Através tanto da construção de personagens como arquétipos residuais oriundos das culturas clássica e medieval, quanto da desconstrução das mesmas, como a índia católica que se torna prostituta e o ribeirinho que opta pela malandragem, e de seu confronto com a autoridade social representada na pessoa do Comissário Frota, o autor nos apresenta um quadro que, apesar de emoldurado pela loucura do insólito, vem se consolidando como rotineiro e até mesmo tradicional, em processo de cristalização.
DETERMINISMO SOCIAL: NUTRINDO PÁGINAS DESDE O MODERNISMO MAIS REMOTO
Durante o primeiro capítulo da obra, Introdução, somos apresentados a uma fala muito recorrente ao longo da narrativa: "na loucura da Zona Franca". Na loucura da Zona Franca, o povo se estabeleceu no recém desmatado bairro do Japiim. Na loucura da Zona Franca, o povo subsiste sem a menor insatisfação. Na loucura da Zona Franca, o povo é tão desprovido de identidade que uma batida policial, principal acontecimento do conto, constitui um evento digno de admiração. E a tudo isso assiste, irritado, o Comissário Frota.
A ênfase da intervenção da Zona Franca na vida dos moradores do bairro do Japiim lembra muito a presença do clima hostil em obras clássicas do período modernista, tais como O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Nesses textos, a seca era um fator estruturante, determinante em como as personagens interagiam entre si e com o mundo a sua volta.
"O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde. Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés". (RAMOS, 1938; grifo meu)
Em outro exemplo, temos o mar como a orientação do estilo de vida dos pescadores no cais da Bahia, como nos mostra Jorge Amado em seu Mar Morto (1936):
"Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros, sabem essas histórias e canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito o que contar. [...] Vinde ouvir essas histórias e essas canções. Vinde ouvir a história de Guma e de Lívia, que é a história da vida e do amor no mar". (grifo meu)
A expansão industrial alavancada pela Zona Franca, desempenhando esse papel de força irresistível em A Caligrafia de Deus, ao mesmo tempo em que emula o imaginário resignado das personagens das obras mencionadas, traz em si o poder de causar às pessoas que moram ao seu redor a sensação de hesitação ante sua presença transformadora, constituindo o fator insólito. Subjugados por sua condição, os moradores comportam-se como um rebanho desordenado, ávidos por um entretenimento macabro, eufóricos com a visão da morte e da tragédia. A política pela qual é regida, talvez até mais do que seu modelo de produção, notório pela primazia de seu produto sobre a mão de obra, e a relação econômica que mantém com outros setores de produção industrial, podem ser compreendidos como um resíduo do período medieval, pois há de lembrar o modelo de trabalho adotado nos feudos, nos quais os papeis de senhor e servos mantém correspondência com aqueles desempenhados por patrão e trabalhador.
A Zona Franca e sua influência na construção do bairro Japiim, portanto, por serem tão presentes e atuarem de maneira tão expressiva na narrativa, é um personagem central, que, por seu desempenho insólito, desencadearia todos os eventos do enredo. Como Lovecraft (2012) ensina:
"A ficção deve limitar a divergência da Natureza ao meio escolhido e lembrar que a ambientação, a atmosfera e os fenômenos são mais importantes para comunicar o que se pretende do que os personagens e o enredo. A "revelação" de um legítimo conto fantástico é apenas a violação ou a transcendência das leis cósmicas estabelecidas – uma fuga da realidade maçante – e portanto os fenômenos, e não as pessoas, são os "heróis" naturais da história". (LOVECRAFT, 2012. Grifo do autor).
Quando a associamos ao fantástico latu sensu, a cena de introdução perde parte de sua gravidade, pois não há animais falantes ou semideuses, elementos clássicos que frequentemente constituem o fator insólito, mas o simples fato de sermos apresentados a isso como uma situação "cotidiana", naturalizando sua brutalidade exacerbada e nos tornando insensíveis a ela, torna a passagem uma evidência do insólito (fantástico strictu sensu) e de sua banalização.
A PECULIARIDADE DO PRIMEIRO CADÁVER
O Primeiro Cadáver é o capítulo em que somos apresentados a uma das protagonistas do conto: Izabel Pimentel, filha de índios que mora em uma Missão em Iaureté – Cachoeira.
O narrador descreve minuciosamente as origens da personagem, mas falha propositalmente em caracterizá-la, pois todas as moças em Iaureté – Cachoeira apresentam praticamente as mesmas particularidades.
"Todos em Iaureté-Cachoeira acabavam com o sobrenome Pimentel. Izabel nascera em Iaureté-Cachoeira e não tinha escapado disso. Seu pai se chamava Pedro Pimentel e sua mãe, ao casar-se com ele, já trazia o nome de Maria Pimentel. [...] Por isso não havia mexericos em Iaureté-Cachoeira, aliás, não havia nada de especial, nem mesmo a cidade podia ser chamada, a não ser pela loucura dos habitantes de Iaureté-Cachoeira que enchiam a boca e diziam que eram da cidade de Iaureté-Cachoeira". (SOUZA, 2008)
O fato de isso recair até mesmo sobre seu sobrenome nos remete imediatamente ao ilustre Severino, personagem de João Cabral de Melo Neto na obra Morte e Vida Severina (1955), outro exemplo famoso do modernismo no Nordeste. Severino é descrito da seguinte forma:
"Vejamos: é o Severino / da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, / limites da Paraíba. / Mas isso ainda diz pouco: / se ao menos mais cinco havia / com nome de Severino / filhos de tantas Marias / mulheres de outros tantos, / já finados, Zacarias, / vivendo na mesma serra / magra e ossuda em que eu vivia".
Tal descaracterização é um reflexo da irrelevância da personagem em sua condição humana, outro exemplo da presença do insólito banalizado. O mesmo acontece com Izabel Pimentel, mas diferente de Severino, ela insiste em ir contra sua impessoalidade, pois como lhe havia ensinado a mãe, "Deus escreve certo por linhas tortas".
O insólito banalizado se manifesta também no retrato social das mulheres de Iaureté – Cachoeira, frequentemente mutiladas pelos maridos, que se embriagam e cometem tal barbárie. É tão comum essa prática que a mesma foi assimilada pela tradição da região, pois é o conceito de casamento que as mães transmitem às filhas, e mais um motivo para que Izabel não deseje permanecer nesse ambiente nocivo.
Mais insólita que isso é a principal motivação de Izabel. Enquanto moça do interior, ela nunca teve a experiência de um beijo, ritual incomum nas margens do Rio Negro. Fascinada pelas fotonovelas que a tanto custo conseguia e impulsionada pelo adágio que aprendera, "Deus escreve certo...", aceita a oferta de uma freira para que, em uma tentativa de se assimilar às moças das revistas e conseguir seu beijo, tivesse todos os seus dentes arrancados e substituídos por uma prótese branca e pouco natural. Desprezada pelos rapazes da região, ela decide mudar-se para Manaus, onde acaba como prostituta. Logo entendemos que a banalização de Izabel enquanto ser humano atingiu seu ápice quando, baleada arbitrariamente durante a operação de Frota, morre sem nunca ter sido beijada ou menos percebido a força insólita pela qual era movida:
"Izabel Pimentel que já estava morta há cinco horas, tinha morrido sem saber porque tinha sido batizada com o nome de Izabel Pimentel. Morrera com uma única certeza, a de que Deus escrevia certo por linhas tortas." (SOUZA, 2008)
Além da intertextualidade estabelecida com o ressecado Severino, a credibilidade desprovida de crítica que dá a fé ensinada pela mãe, bem como a submissão abusiva sofrida pelas mulheres de Iaureté-Cachoeira, a história de Izabel nos remete também ao imaginário religioso difundido na Idade Média, ao discurso católico de crença inquestionável nos planos de Deus e da mulher como um não-indivíduo, sujeita aos caprichos masculinos:
O ESCARRO REDENTOR
No último capítulo, O Outro Cadáver, conhecemos Alfredo Silva, a quem os habitantes de Manaus chamam Catarro. Também vindo do interior, é, em si mesmo, um resíduo, por se tratar do modo amazonense de descrever a imagem de malandro que nasce em Memórias de um Sargento de Milícias (1854), de Manuel Antonio de Almeida, uma criatura que, submetida a condições precárias de sobrevivência e pela própria ânsia de ascensão social, se faz esperta, astuta, pois nada tem além do apelido, como se tivesse sido realmente escarrado por um ambiente que não o deseja entre os pulmões.
Catarro mora com uma certa Izabel Pimentel, apresentada pela mídia como a louca Índia Potira, prostituta que conheceu no bordel O Selvagem que era louca por um beijo, e mais dois amigos fora-da-lei. São eles o alvo da Operação Grande Zona, uma tentativa do Comissário Frota, principal opositor do malandro, de se promover ao custo da vida de seu bode expiatório favorito. E consegue, após uma exaustiva perseguição a Catarro, que termina com a morte do mesmo e de sua amante.
Apesar de seu papel social aparentemente secundário, Catarro traz muito do herói clássico em sua composição. Nos textos mais antigos do mundo, tomamos conhecimento dessas personagens que, durante a infância, viveram reclusas, afastadas do convívio social, quase isoladas:
"Catarro veio para Manaus porque não tinha mais saco de passar as noites acordado, com um terçado numa das mãos e um candeeiro de querosene na outra, vigiando a maromba das galinhas para que nenhuma sucuriju, malditas cobras que nadavam com incrível agilidade não viessem durante à noite, em silêncio, provocar baixas na criação de seu pai. Todos os anos era isso, na palafita de seu pai bem na margem do furo do Cambixe, a algumas horas de motor do recreio de Manaus". (SOUZA, 2008. Grifo meu)
Tal reclusão seria devido ao fato de nascerem sob o fado do destino, uma sina gloriosa. Torres (2011) nos fala também que, desde tenra idade, esses heróis já demonstrariam sinais do grande futuro que os esperava, e assim percebemos um outro aspecto residual que a construção de Catarro considerou, uma alusão referente nada a menos do que um dos maiores nomes da mitologia clássica:
"Desde tenra idade, os heróis davam provas de sua força e de seu pendor para as batalhas: Hércules, ainda no berço, estrangulou duas serpentes que tinham sido enviadas por Juno para matá-lo;" (TORRES, 2011. Grifo meu).
Hércules teve seus grandes doze trabalhos e incontáveis episódios em que sua força era exaltada, mas, além de matarem serpentes, o que mais poderia ter em comum com o marginal Catarro? Qual o papel do malando que o tornaria tão distinto quanto um herói com sangue divino?
Para a obtenção de uma resposta coerente, é interessante lembrar que uma das principais funções do mito era, na ausência da ciência futura, explicar a realidade, como nos diz Franchini e Seganfredo (2007) em sua apresentação:
"Abarcando as principais raízes da mitologia antiga, este conjunto engloba a história da humanidade tal como ela era vista pelos antigos gregos e romanos: de onde surgiu o Universo, como apareceram os homens, a descoberta do fogo e variados estágios do desenvolvimento do ser humano – com um sem-fim de divindades diretamente relacionadas às forças primordiais da natureza orquestrando esta verdadeira sinfonia da vida". (FRANCHINI; SEGANFREDO. 2005)
Ou seja, divindades e demônios, assim como os heróis e semideuses, eram a representação personificada de fenômenos naturais e até mesmo sociais. Catarro funciona de maneira semelhante, pois, através do uso de sua influência policial na mídia, o prepotente Comissário Frota sintetiza na imagem do malandro a responsabilidade por cada latrocínio em Manaus, desde que o mesmo tentou afanar a carteira de um bispo, tornando-o um criminoso simbólico, o delito personificado, mais uma vítima do fator insólito que assola a narrativa.
"É claro que nem Catarro, nem a Índia Potira, nem Bacurau e Miss Zona estavam implicados no assalto do carro pagador da Isagawa. Disso ninguém tinha a menor dúvida, nem mesmo o Comissário. [...] A Operação Grande Zona era, portanto, um acontecimento simbólico". (SOUZA, 2008. Grifo meu).
Graças a perseguição incessante do Comissário Frota, o narrador nos leva a crer que Catarro já estava muito ciente de sua função no enredo, de sua sina, do papel simbólico que haveria de se concretizar com sua morte. Os episódios em que lidava com o Comissário e seus capangas já estavam ficando repetitivos, sempre acabando com ele libertado pelo fato de que Frota não era capaz de condená-lo, mas não sem antes submetê-lo a métodos dolorosos de persuasão que o fizessem confessar o crime que não cometeu. O policial, ávido por se promover, faz do malandro seu sacrifício aos superiores:
"O Comissário Frota chegara a conclusão, tirada do fundo de sua experiência policial, que poderia solucionar todos os problemas de latrocínio em Manaus pela prisão e muita porrada no lombo do Catarro." (SOUZA, 2008).
E o rito cerimonial ao qual Frota teimava em submetê-lo se completa quando Catarro toma plena consciência do mundo em que existe, do fator insólito que o guiou do interior até a promessa de prosperidade em Manaus. Ironicamente, a personagem que melhor se apropriou da ciência de sua condição e da estranheza que dita seu estilo de vida e de seus semelhantes encontra seu destino final justamente no momento em que lhe ocorre a iluminação:
"Alfredo Silva, vinte e cinco anos, corpo bem proporcionado para a pouca estatura, medroso e astuto, corajoso quando estava sozinho e infeliz por lhe terem arranjado o apelido de Catarro, estava morto e chegou a essa situação depois de compreender que tinham todos enlouquecido em Manaus". (SOUZA, 2008)
O incolor Alfredo Silva, o ilustre Catarro, produto do fator insólito que é a Zona Franca de Manaus, pode ser interpretado não apenas como um bode expiatório, mas como uma alegoria, pois, enquanto semideus contemporâneo, representaria sua classe, os tantos ribeirinhos que migraram para Manaus em busca de um futuro, e tiveram que se adaptar às margens da capital, que lutar por um espaço ao sol enquanto a Zona Franca crescia com uma voracidade louca. Novamente, Catarro se torna ele próprio um resíduo, mas não de personagens clássicos, mas de um dito bíblico: "conheceis a verdade e a verdade vos libertará".
BANALIZANDO O INSÓLITO, LITERALMENTE
O narrador, além de apresentar-nos a banalização do insólito de modo estruturante, o faz também de maneira tópica. A Zona Franca de Manaus, o fenômeno insólito que serve de eixo para as diversas ocorrências do estranho na construção (ou desconstrução) das personagens, também não escapa da banalização.
Quando o narrador inicialmente descreve o poder que o desenvolvimento industrial exerce na vida dos moradores do Japiim, quando enfatiza sua força e inevitabilidade, notamos o termo Zona Franca escrito em letras maiúsculas. Conforme sua influência se torna cada vez mais frequente ao longo da vida das personagens, passa a ser grafado em letras minúsculas, zona franca, indo de substantivo próprio, característico, subjetivo, a um substantivo comum, banal. O mesmo acontece com o nome do bairro Japiim/japiim, a medida que é definido como o espaço recorrente na obra. Tais panos de fundo, também personagens, não escapam de sua própria influência, também acabam por ser reduzidos, banalizados
Mais do que a estruturação, Márcio Souza recorre a um recurso ortográfico para promover a banalização dos eventos insólitos que se desenrolam n'A Caligrafia de Deus, que, se passam a ser comuns no espaço ficcional, assim também o são compreendidos ao traduzir-se o enredo em registro escrito, um recurso técnico que, funcionando como um resíduo inverso da grafia simbolista, adiciona mais um item banalizado ao estudo do conto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
N'A Caligrafia de Deus, o insólito banalizado é uma característica bastante proeminente não só em suas personagens principais, mas no próprio contexto em que as mesmas interagem, todo ele composto por resíduos clássicos e medievais. Ele aparece disfarçadamente sob o nome de loucura, palavra frequentemente utilizada como principal elemento coesivo entre os fatos e fenômenos que permeiam a narrativa. A própria maneira como o autor executa essa coesão é de natureza inusitada, uma vez que se assemelha bastante a hiperlinks de textos jornalísticos digitais, um gênero bem apropriado para narrar uma tragédia banalizada.
Das personagens que participam da narrativa, Izabel é a que mais reflete, de modo acrítico, sobre a caligrafia de Deus, por vezes considerando a si mesma um garrancho, uma letra mal feita, devido ao fato de ter sido criada imersa no imaginário medieval de seu povoado. Toma a escrita divina por absurda, cheia de nuances, complicada para além de sua lógica, e como é também vítima da loucura, considera-a confiável, providencial, inquestionável, bem a maneira do homem medieval.
No entanto, essa filosofia é mais bem ponderada pelo pobre Catarro, que, se utilizando de uma sabedoria ignorante, conclui que toda essa loucura é o verdadeiro produto da caligrafia de Deus, cujas linhas não eram tortas, mas que se tratava realmente de uma péssima forma de escrever.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um Sargento de Milícias. Editora Ática. 25ª edição. São Paulo, 1998.
AMADO, Jorge. Mar Morto. Companhia das Letras. 3ª edição. São Paulo, 2008.
FERREIRA, Nadiá Paulo. O insólito é o estranho. Publicado em O insólito e seu duplo, org. Flávio Garcia e Marcus Alexandre Mota. editora UERJ: RJ, 2009.
FRANCHINI, A.S.; SEGANFREDO, Carmen. As 100 melhores histórias da mitologia: Deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana. L&PM Editora. 7ª Edição. Porto Alegre, 2005.
LOVECRAFT, Howard P. A cor que caiu do espaço. Editora hedra. 1ª Edição. São Paulo, 2012.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina. Editora Objetiva. Edição de bolso. Rio de Janeiro, 2010.
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. Editora ARX. 7ª edição. São Paulo, 2003.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Editora Record. 2ª edição. Rio de Janeiro, 2003.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. Editora Ática. Série Princípios. São Paulo, 2009.
SANTELLI, Adriana Delgado. As estações da Caligrafia de Deus. Publicado na revista Seringal de Ideias, Universidade Federal do Acre. 1ª edição. Rio Branco, 2008.
SOUZA, Márcio. A Caligrafia de Deus. Editora Valer. 3ª edição. Manaus, 2008.
TORRES, José William Craveiro. Além da Cruz e da Espada: acerca dos resíduos clássicos n'A Demanda do Santo Graal. CAPES. Fortaleza, 2011.

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