Dama da noite

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DAMA DA NOITE por Waldísio Araújo A Isabel Dias da Silva A modernidade de sempre, que nos acompanha desde a pré-história, é a de precisarmos encontrar o outro para finalmente excluirmo-nos de nós mesmos, esconder fora de nós (por trás do outro) o que nos assusta. Diante disso, exclusão é só mais uma coisa que entra, meu bem, meu bem... Em Dama da noite, de Caio Fernando Abreu, a Encenação amadora, em inglês, em Novo Hamburgo, RS exclusão dá-se pela própria condição de socialização, a linguagem. Para entrar no mundo feliz da mentira coletiva, é preciso senha, e esta tem que coincidir com a contrassenha que consiste em simplesmente dizer, ser e fazer o que todos querem de nós. E "todos", evidentemente, é simplesmente "ninguém". E o que querem de nós? Nada mais que a estabilidade de uma vida previsível em que todos possam apoiar-se uns nos outros como os aros de uma roda-gigante. É preciso pagar esse preço para subir nesse aparelho e girar com os outros, compartilhar a tontura até que todos estejam cegos e surdos para a dor, a aniquilação, o tédio – o que equivale dizer: até que estejamos definitivamente mortos. E como na roda-gigante, o outro é o inatingível, o que sempre está diante mas impalpável: sob, sobre, super, sub ou retro, logo atrás de nossos olhos, sempre onde não nos possamos tocar. As palavras são os raios da imensa roda, elas nos aproximam enquanto nos separam, criam o fosso intransponível, aquém do qual tudo é pura solidão e ausência de si mesmo, e além do qual reina o ensurdecedor silêncio. Essa ausência de nós, essa entrega estúpida e mentirosa ao outro de tudo ou do melhor de nós mesmos nos prostitui na medida em que aumenta o desejo em subirmos também à roda-gigante, partilhar da loucura coletiva de obter a impossível estabilidade pelo muito girar. E se, para girar, damos nossos corpos, única coisa que temos, não nos abala o instinto social de dignidade, pois é deveras impossível sermos vistos nus. A própria forma do conto de Caio F condiz com essa solidão essencial. Trata-se de um monólogo em que se fala – ou finge falar-se – com um interlocutor anônimo. É como ver alguém conversando com outro alguém ao telefone: apenas deduzimos pelo contexto o que a outra pessoa, para nós

invisível, estaria dizendo. E nada nos impede pensar que esse alguém do outro lado sequer existe, que só existe a linguagem a falar sozinha suas constitutivas mentiras.

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Um bom e interessantíssimo curta-metragem baseado numa peça que, por sua vez, é adaptada do conto pode ser visto integralmente em http://cadernodecabeceira.com/2015/07/09/assista-ao-curtametragem-santista-dama-da-noite.

Cartaz para peça dirigida por André Lehaun, com ator Luis Fernando Almeida.

Criativamente, o autor optou por alternar o monólogo por várias dentre as infinitas possibilidades existentes de não sermos nós mesmos: falando em público, falando com alguém que não nos ouve, falando a outrem a quem não escutamos, falando ao espelho, falando com o nosso próprio corpo pela masturbação, falando enquanto giramos narcotizados por drogas ou outras das tantas formas de rodas-gigantes pulverizadas que se espalham à nossa volta – enfim, falando de todas as formas, exceto pela única impossível: falar com nós mesmos.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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