DANÇA E DIFERENÇA: MICROPOLÍTICAS E ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA EM PROCESSOS ARTÍSTICOS E EDUCATIVOS EM DANÇA

May 30, 2017 | Autor: Lúcia Matos | Categoria: Dance Studies, Dance Education
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Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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TÍTULO Atas da Conferência Internacional 2012 Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea DESIGN GRÁFICO Rafael Roble e Débora Moreira EDITORES Ana Macara Ana Paula Batalha Kátia Mortari EDIÇÃO Faculdade de Motricidade Humana Serviço de Edições 1495-002 Cruz Quebrada, Portugal EXECUÇÃO GRÁFICA Staff for You TIRAGEM 200 exemplares DATA Setembro de 2012 ISBN 978-972-735-185-5 Depósito Legal nº …………………

Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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Conferência Internacional 2012

Corpos (Im)Perfeitos na Performance Contemporânea Comissão Científica Profª Doutora Ana Macara (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Profª Doutora Ana Paula Batalha (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Profª Doutora Ana Santos (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Prof. Doutor Carlos Neto (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Prof. Doutor Dimitris Goulimaris (Democritous University, Thrace) Profª Doutora Elisabete Monteiro (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Prof. Doutor Gonçalo Tavares (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Profª Doutora Lucia Matos (Universidade Federal da Bahia) Profª Doutora Luisa Roubaud (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Profª Doutora Margarida Moura (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Profª Doutora Mari Paz Brozas Polo (Universidad de Léon) Profª Doutora Maria João Alves (Faculdade de Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa) Profª Doutora Pegge Vissicaro (Arizona State University) Prof. Doutor Sebastian Gomez-Lozano (Universidad Católica San Antonio de Murcia) Profª Doutora Salwa Castel-Branco (Universidade Nova de Lisboa) Comissão Organizadora Ana Macara (Coordenação) Ana Paula Batalha Kátia Mortari Lígia Thomé Maria Franco Secretariado Débora Moreira Francisco das Neves

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DANÇA E DIFERENÇA: MICROPOLÍTICAS E ESPAÇOS DE RESISTÊNCIA EM PROCESSOS ARTÍSTICOS E EDUCATIVOS EM DANÇA Lúcia Matos Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Dança (PPGDança) da Universidade Federal da Bahia – UFBA / Colíder do Grupo de Pesquisa PROCEDA – Processos Corporeográficos e Educacionais em Dança – Brasil Resumo Este artigo discute alguns problemas gerados por representações relacionadas às produções artísticas que incluem bailarinos com deficiência. Para essa análise adotamse os conceitos de diferença e repetição propostos por Deleuze (1988) e busca-se apontar potenciais agenciamentos que possibilitem a geração de espaços de resistência e de micropolíticas, tanto em ambientes educacionais como em algumas propostas coreográficas que incluem dançarinos com e sem deficiência. Ao mesmo tempo, sinalizamos que apesar de algumas correntes da dança na cena contemporânea apostarem na desconstrução do corpo idealizado, ainda encontramos uma grande rejeição em relação à inclusão de pessoas com deficiência em espaços educacionais da dança e/ou em trabalhos de grupos profissionais que incorporam dançarinos com e sem deficiência. As configurações apresentadas nesta análise servem como ponte para a discussão sobre as representações que são construídas e fixadas na dança, tanto no seu ensino como na produção artística, principalmente no que se refere às relações entre os conceitos de corpo, identidade e deficiência (disability). Palavras-chave: dança; deficiência; diferença; micropolíticas.

Gilles Deleuze, no prólogo de seu livro “Diferença e repetição” (1988), anuncia que a supremacia da identidade, independente da forma como esta é formulada, determina o mundo da representação. A falência da representação se dá com o advento do pensamento moderno e, num mundo imerso em simulacros, as identidades se tornam simuladas, “produzidas como um efeito ‘ótico’ por um jogo mais profundo, que é o da diferença e da repetição” (Deleuze, 1988, p.16). Ao longo do livro, em sua complexa construção filosófica, Deleuze apresenta a ideia de que o conceito de diferença não pode ser pensado a partir dos princípios norteadores da representação (identidade, analogia, oposição e semelhança), já que estes propiciam uma quádrupla sujeição da diferença à representação. Nesse sentido, quando se submete a diferença a essa quádrupla sujeição, gera-se um processo de “mediação”1 e

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Para Deluze (1988), a diferença se faz diferindo, isto é, difere-se a partir de si mesma. Por ser uma ação interna e direta, dispensa qualquer mediação feita a partir do conceito. Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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cria-se uma representação da diferença, atendendo às exigências do conceito geral e, assim, “salva-se” a diferença por meio de um “momento feliz”. Para abordar a relação entre dança e diferença, proponho discutir alguns problemas da representação e as permanências que essa abordagem traz para o cenário da dança e, para essa finalidade, inicio por alguns processos de “mediatização” da diferença. Partindo do princípio da identidade – vista como conceito indeterminado –, esta tem o papel de reconciliar a diferença e relacioná-la ao conceito em geral. Como a diferença é vista na negatividade, trata-se, também, de estabelecer um “momento feliz”. Nas palavras de Deleuze (1988, p. 65), “a diferença deve sair da caverna e deixar de ser o monstro”, ou só deve permanecer como monstro aquilo que se desvincula do “momento feliz”. Deleuze enfatiza que a identidade é, muitas vezes, relacionada com a aparência, um modelo que posiciona a identidade como essência do mesmo, que seleciona os aspectos da diferença que podem ser inscritos no conceito geral, bem como a forma como isso ocorre, fazendo com que a própria diferença desapareça. A semelhança se dá no interior do modelo, já que a identidade tem o semelhante como unidade de medida. Pensar na produção da dança com pessoas com deficiência a partir desse prisma implica reconhecer que em muitos trabalhos artísticos e práticas educacionais não é validada a singularidade de cada corpo que dança. É pelo corpo que, num primeiro momento, a diferença é exposta e se estabelecem limites entre o sujeito, o mundo e o outro, criando pares opostos como normal/anormal, eficiente/deficiente. Por outro lado, se consideramos que o corpo que dança não é instrumento de nada e este deve ser considerado como mídia de si mesmo, cujas informações e cruzamentos culturais estão contidos no próprio corpo em suas negociações com o ambiente, como é proposto na teoria do corpomídia de Greiner e Katz (2001), faz-se necessário pensar nas singularidades do corpo que dança e na transitoriedade de seus processos. Muitas coreografias tentam esconder as singularidades dos corpos de dançarinos com deficiência, a partir de perspectivas artísticas que buscam anular essas diferenças e direcionam esses dançarinos para a normalização e a “superação de si mesmo”. Por essa via, escondem-se suas singularidades e/ou controla-se seu corpo através da transposição de padrões de movimento normalmente esperados para um corpo que dança. Desse modo, são estabelecidas aproximações com padrões estéticos e técnicos na tentativa de relativizar as diferenças e mostrar que as pessoas com deficiência também “podem fazer”, implicando essa atitude, em sua maioria, em propostas normalizadoras. Nas Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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questões educacionais, perspectivas tradicionais de corpo e de processos de ensinoaprendizagem em dança não abarcam, em suas abordagens, corpos singulares e, com isso, fazem com que o aluno com deficiência tenha que se enquadrar em modelos tradicionais de ensino da dança, os quais foram pensados e dirigidos para corpos idealizados e ditos normais. Se a diferença é um mal e busca-se salvar o momento feliz, isso também se dá em plena sintonia com plateias que estão ávidas pela comoção, ao se sentirem partícipes de um ato de superação, de sua convivência temporária com esse “outro”, restrita a esse momento de fruição (preferencialmente com ênfase no belo). Destarte, esse tipo de espectador se comove com o apagamento da diferença (somos todos iguais) e se sente aliviado com o reforço de seus próprios valores de normalidade, já que se cobre a diferença com o fino manto da normalidade, o que faz com que os dançarinos com deficiência permaneçam no que denomino de superfícies dissimuladas, nas quais se disfarça a diferença de uma forma crua. Referente ao segundo pilar, a semelhança, Deleuze explana que esta relação não se finda na semelhança da cópia ao modelo, mas também inclui na semelhança do percebido, uma semelhança do sensível “(diverso) consigo mesmo”. Nesse sentido, o que é desigual tende a se igualar, o diverso passa a ser tomado como matéria do autêntico, perde-se a intensidade situada no “ser do sensível, em que o diferente se refere ao diferente” (op. cit., p. 421). Na dança, esse viés pode, igualmente, ser atrelado ao exemplo anterior, da plateia, mas, ao mesmo tempo, também pode desvelar um modelo oposto, em que todos passam a ser considerados como “os deficientes” ou “os incapazes”. Dentro de uma categoria uniforme que não abre espaço para as singularidades massifica-se a representação/delimitação de corpo e/ou de dança para a pessoa com deficiência (afinal, eles são os deficientes). Muitas vezes, a essas pessoas só é possibilitado o acesso à dança como terapia, instaurando-se o modelo médico nessa relação. O terceiro princípio da representação, a oposição, apresenta determinações estabelecidas no interior do conceito, delimita a diferença sob a forma de limitação ou como uma forma de negação, e não possibilita relacionar a diferença ao positivo. Para Deleuze a diferença é ela própria afirmação. Por esse motivo esse autor afirma que na representação sempre há uma singularidade não representada, já que ela não é universal. Na dança encontramos muitos discursos sobre dançarinos com deficiência, os quais generalizam as experiências, definem modelos de criação, e, muitas vezes, numa relação Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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hierárquica de poder, colocam o artista com deficiência sob o domínio discursivo, criativo, cultural e político de pessoas sem deficiência. Ao mesmo tempo, no campo das macropolíticas, tenta-se negar essa diferença para que ocorra a permanência do já estabelecido e não haja necessidade de mudanças da ordem instaurada. Ou, ainda, pela perspectiva do senso comum, podemos identificar esse tipo de percepção em comentários, como: Eles dançam direitinho, apesar de serem deficientes. O quarto princípio subordina a diferença à analogia do juízo e se dá por relações de conceitos e predicados determináveis, os quais geram categorias. Essa categorização ocorre por método de divisão, que gera um jogo de contrários. Como explana Deleuze (1988, p. 425-426), “esta distribuição da diferença, totalmente relativa às exigências da representação, pertence essencialmente à visão análoga”. Podemos ver isso, por exemplo, em formas de conceituar as danças produzidas com dançarinos com deficiência. Apesar de considerar que o uso de termos como “dança inclusiva” ou “disabled dance”, surgidos nos anos 90, tenha sido uma ação política para promover a visibilidade dessa produção artística (impulsionada por todas as políticas inclusivas), a permanência desse termo por um tempo dilatado pode estagnar fronteiras internas na própria dança. Estas não seriam delimitadas por modos de organização e processos artísticos, mas essencialmente por pares antagônicos referentes

ao

corpo,

que

sustentam

perspectivas

como

normal/anormal,

eficiente/deficiente. Além disso, essa divisão de categoria pode continuar a dificultar a entrada dessa produção em circuitos tradicionais de dança, como os festivais, bem como, também, pode dificultar que essas produções sejam consideradas como artísticas e concorram com as demais produções em convocatórias públicas de fomento à dança. Esses exemplos relacionados à área da dança reforçam que a representação é convergente e finita, e ela não adquire o poder de afirmar a divergência e o descentramento, pertinentes à diferença, já que esta, quando instaurada, se faz diferindo. Para Deleuze, a diferença deve ser vista como ruptura, descontinuidade, como um elemento perturbador de uma ordem previamente estabelecida. Nesse sentido, o ser se diz na diferença, expressa-se na multiplicidade, na sua divergência, como algo “acabado ilimitado”. Como coloca Deleuze (1988, p. 76), o “ser se diz num único sentido de tudo aquilo que ele se diz, mas aquilo de que ele se difere: ele se diz da própria diferença”. Assim, a diferença se instaura na relação direta com o outro, nos agenciamentos, e não pode ser vista como negação ou como negativo de limitação ou de oposição. Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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Diante do exposto, indaga-se: como podem ser potencializados agenciamentos que criem espaços de resistência e de micropolíticas? Gostaria, aqui, de apresentar algumas respostas provisórias. Primeiramente, é mais do que necessária a ruptura com pensamentos hegemônicos que ainda prevalecem em nossa sociedade e que apresentam, dentre outras perspectivas, a pessoa com deficiência como incapaz. Por outro lado, considero que essa potencialidade de mudança no campo da dança está fortemente nas mãos dos artistas com deficiência, em seus modos de afetarem e serem afetados. Se a diferença se faz diferindo, e esta é singular, única, precisamos que cada um dessas individuações e discursos se desvele e potencialize as divergências e descentramentos da diferença e os potenciais deslocamentos e disfarces da repetição2. Para Deleuze, apesar de a repetição ser comumente vista como generalidade, como elementos iguais que possuem o mesmo conceito, ela precisa ser compreendida em seu caráter transgressor e como singularidade, pois é necessário localizar o “se” da repetição, a singularidade naquilo que se repete. Essa é uma ação (bio)política desses artistas, já que, como colocam Deleuze e Guatarri (1995), os agenciamentos não se centram no poder, mas nos desejos, e o biopolítico, com seus fluxos ondulatórios, pode significar microespaços de resistência. Nessa perspectiva, a biopolítica pode ser uma potência positiva, uma força criadora que articula simultaneamente a singularidade e a pluralidade, abarca as dissonâncias e possibilita a desterritorialização. Essa perspectiva se correlaciona com a proposta de Sandhal e Auslander (2005), quando propõem em seu livro “Bodies in commotion” um entendimento de disability como performance e que, dentro dessa perspectiva, partindose da experiência diária do artista com deficiência e de sua performatividade, possam ser confrontados outros modelos de abordagem da deficiência como o médico, o filantrópico e o freak-show. Assim, na dança (bem como na sociedade em geral), essa potência positiva gera mudanças na compreensão do campo de ação do dançarino com deficiência, o qual assume uma atitude proativa, seja como criador, intérprete, militante e gestor de seus processos e de suas colaborações, seja com pessoas com ou sem deficiência, ao mesmo tempo em que indaga espaços tradicionalmente não ocupados por eles. Vale ressaltar que no cenário brasileiro a profissionalização de grupos de dança com dançarinos com e 2

A repetição, para Deleuze, é baseada na diferença, e ela não é a repetição do mesmo, mas é produção de singularidades. Corpos (Im)perfeitos na Performance Contemporânea

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sem deficiência, como o Grupo X, Grupo Pulsar, Núcleo Luís Ferron e artistas independentes como Edu O., tem propiciado que os solos da dança se tornem mais movediços, ao mesmo tempo em que a inserção de suas produções no cenário da dança contemporânea tem colaborado para que tanto o campo dança como o próprio público sejam confrontados com outras informações, criando zonas de estranhamento. As

singularidades,

vistas

como

potências

positivas,

possibilitam

deslocamentos e podem gerar reflexões sobre o processo de ensino-aprendizagem, bem como levar a plateia a refletir sobre concepções estagnadas de corpo, dança e eficiência/deficiência. No campo educacional ainda são poucos os espaços que estão acessíveis (tanto físicos quanto em relação a propostas pedagógicas) para as pessoas com deficiência e, nesse sentido, as Universidades e demais espaços de formação precisam reformar suas certezas sobre o corpo que dança. Além disso, a presença do dançarino com deficiência na cena, distante da perspectiva de fomentar o sentimento de compaixão ou superação, pode levar a plateia a dialogar e confrontar a história desse corpo com a história, valores e (pre)conceitos do seu próprio corpo, podendo, por esse caminho, criar desestabilizações, bem como desafiar as representações de corpo que são estabelecidas na dança. Assim, num viés deleuziano, esses corpos podem se tornar um elemento perturbador da ordem instaurada, e esses dançarinos se dizem na diferença. Pequenas fissuras que começam a ser delineadas apontam que esses deslocamentos, de uma forma ou de outra, já demarcam uma reconfiguração territorial na dança. Ampliam-se os rastros pelos quais se pode iniciar uma dialogia com a diferença, baseada na singularidade. Referências Albright, A. C. (1997). Choreographing difference. Hanover: Wesleyan University Press. Auslander, P. and Sandahl, C. (eds.) (2005). Bodies in commotion: disability & performance. The University of Michigan Press. Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Deleuze, G. e Guatarri, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. Rio de Janeiro: Ed. 34. Greiner, C.; Katz, H. (2001). Corpo e processo de comunicação. Revista Fronteiras: estudos midiáticos, São Leopoldo, RS, v. 3, n. 2, dez. Katz, H. & Greiner, C. (2005). Por uma teoria do corpomídia. In: C. Greiner. O corpo: pistas para estudos indisciplinares (pp. 125-133). São Paulo: Annablume. Matos, L. (2012). Dança e diferença: cartografia de múltiplos corpos dançantes. Salvador: EDUFBA.

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