DANÇAR-ÍNDIO-NO-MUNDO-BRANCO

June 7, 2017 | Autor: Fernanda Barbosa | Categoria: Anthropology, Education, Indigenous education, Dance
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ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015

DANÇAR-ÍNDIO-NO-MUNDO-BRANCO Fernanda Stroher Barbosa (UFSM) i RESUMO: Nossas notas foram impulsionadas por um projeto de Educação Indígena na Universidade Federal de Santa Maria. Conduzida por uma pesquisa de Iniciação Científica que questionava as possibilidades do corpo na educação e me aproximou das Ciências Sociais, surgiu a possibilidade de trabalhar com dança no projeto Educação Indígena e Invisibilidade. A pesquisadora foi provocada a circular entre a educação através da dança e a antropologia da educação, que através da historicidade e culturalidade, busca desvelar novas extensões para problemáticas já consagradas. Como as danças indígenas podem servir de preparação e interlocução entre outras danças? O que a educação corporal indígena tem a desestabilizar na educação ocidental? Que outras dimensões do mover-se indígena no contexto da universidade a educação através da dança pode revelar? Essas questões transitam em nossa busca por uma atitude artístico-antropológica num espaço de dança como texto e subtexto provocadores de um diálogo estético e intercultural. PALAVRAS-CHAVE: Dança. Educação indígena. Antropologia.

INDIAN-DANCE-IN-WHITE-WORLD ABSTRACT: Our notes were boosted by an indigenous education project at Universidade Federal de Santa Maria. Conducted by a scientific initiation research that questioned the possibilities of the body in the education and approached me to the Social Sciences, it has become possible to work with dance in the Educação Indígena e Invisibilidade Project. The researcher was caused to circulate between education through dance and anthropology of education, which from the historicity and culturality, seeks to unveil new extensions to already established problems. How indigenous dances can serve as preparation and interlocution among other dances? What the indigenous corporal education has to destabilize in the western education? What other dimensions of indigenous move in the context of university the education through the dance can revel? These issues transiting in our quest for an artistic and anthropological attitude into dancing as provocative text and subtext of an aesthetic and intercultural dialogue. KEYWORDS: Dance. Indigenous education. Anthropology.

1 IV Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA 2015 http://www.portalanda.org.br/anais ISSN 2238-1112

ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015 Introdução O trabalho debatido nestes apontamentos foi realizado na companhia de alunas indígenas da Universidade Federal de Santa Maria. As 10 alunas com maior frequência de participação pertencem à etnia Kaingang e cursam graduações na área da saúde, como enfermagem e odontologia. Estes alunos, juntamente com outros das etnias Guarani e Terena, compõem o grupo do Programa de Ensino Tutorial – PET Indígena Ñande Reko e participam do Projeto Educação Indígena e Invisibilidade, programa que promoveu ações de ensino das culturas indígenas em escolas municipais de Santa Maria, a criação coletiva de materiais didáticos sobre saúde para serem distribuídos nas comunidades indígenas da cidade, além de trabalhos e seminários sobre Educação Indígena. Na continuação das atividades, os indígenas indicaram o interesse em trabalhar com dança, primeiramente com foco nas danças tradicionais, para exibição em ações políticas dentro da instituição, e, finalmente, com as danças de salão ocidentais, com a intenção de facilitar a socialização nas festas realizadas no campus universitário, que, em sua maioria, reúnem as danças gaúchas, como vanerão, xote, e o sertanejo universitário. Os alunos também indicaram que a popular bandinha, de origem germânica, é frequentemente dançada nas festas das aldeias. Em paralelo a isso, corria minha pesquisa de iniciação científica no Bacharelado em Dança da mesma universidade, com o questionamento sobre o corpo na educação escolar ocidental, na qual eu concluía uma investigação bibliográfica sobre as categorias corpo, movimento, conhecimento, experiência e antropologia da educação. Nessa investida, nasceu um grande interesse de aproximação com as pedagogias indígenas, que preservavam um lugar de centralidade para o corpo nas noções de pessoa e de educação. Portanto, ao receber o convite para ingressar no projeto de educação indígena com um trabalho de dança, meu objetivo ultrapassava a intenção de compartilhar as danças ocidentais, abrangia participar e captar os modos de aprendizagem e corporeidades indígenas através de suas danças, e entender suas transformações quando os indígenas adentravam a universidade branca. 2 IV Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA 2015 http://www.portalanda.org.br/anais ISSN 2238-1112

ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015 Além de tudo isso, perguntava-me o que este compartilhar poderia acender em minha formação como artista, pesquisadora e educadora, de que modo poderia deixar que minha metodologia de trabalho fosse afetada por essas vivências. Dessa forma, passei a me perguntar sobre as possibilidades das danças indígenas contribuírem como preparação corporal para o trabalho cênico, mesmo com outras danças; o que a educação corporal indígena pode desestabilizar e fazer estranhar na educação ocidental; e que outras dimensões e desdobramentos da presença, do mover-se indígena na universidade a educação através da dança poderia revelar. É nessa direção que se deu nossa tentativa de habitar os cruzamentos entre dança, educação e antropologia, fazendo de nossos estar-juntos dançantes um território de desvelo do ser e do dançar-índio-no-mundo-branco. As atividades consistiram em espaços de troca de experiências e saberes, em quem uma das indígenas, que conhecia as danças e cantos tradicionais, os ensinava para os presentes, e, em seguida, a artista-pesquisadora do projeto disponibilizava o aprendizado de danças sociais ocidentais escolhidas pelos indígenas. A abordagem dos movimentos das danças ocidentais era pela via de exercícios da Educação Somática1. Nhara e o germinar de um novo kaingang Segundo Jesus, (2015), entre os indígenas, a noção social de pessoa predomina sobre a noção de indivíduo. Por isso, o corpo assume papel central: criar, educar pessoas é um equivalente a criar corpos saudáveis, preparados. As danças rituais Kaingang concentram-se, em maior parte, nas festas do Kuiâ (xamã), do Kikikoi (ou culto aos mortos) e do ritual de purificação dos viúvos, exprimindo a cosmologia Kaingang: é o destino e a vontade dos mortos que define o futuro dos vivos (VEIGA, 2000). Esse povo percebe o mundo como simétrico, formado pelos pares complementares: Kamé e Kairu. A relação de troca entre elas é permanente, pautada

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A Educação Somática é uma família de técnicas que trabalham a percepção e movimento corporal, a partir do corpo vivido pelo sujeito, através do reconhecimento da experiência como potencializadora de seu aprendizado.

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ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015 pelo princípio da reciprocidade e por relações de subordinação (VEIGA,2000). Essa complementaridade é percebida como ideal, ao passo que a união entre iguais é improdutiva, conflituosa. Sobressai a crença de que, com a convivência social, os corpos passam a compartilhar determinadas substâncias e configurações corporais. Por exemplo, com o matrimônio, os esposos passam a partilhar a kafy, uma espécie de glândula. Por isso, quando um deles morre, o viúvo partilha a morte com seu cônjuge, por isso tem de ser purificado, até que a sua ligação com o falecido seja quebrada. O corpo também é sacrifício e transformação, como no mito de Nhara, que ao pedir para ser enterrado em troca do fim da fome que assola sua comunidade, tem seu corpo transformado em milho, feijão e moranga (VEIGA, 2000). Royce (1977, p.140-142) apud Zemp (2013, p.45) afirma que se podem perceber duas tendências nas danças indígenas: o tribalismo e o pan-indigenismo. Estas categorias estão em sintonia com os debates que a pesquisadora acompanhou entre os alunos de diferentes etnias no PET Indígena. Elas se referem a escolha das danças pautada pelos interesses políticos destes grupos. O tribalismo preserva as diferenciações entre as danças públicas e privadas de cada etnia, procurando manter a reserva do olhar ocidental e recuperando as danças mais antigas. Já o panindigenismo dialoga com as ideias do indigenismo, de união destes povos, afirma uma identidade

“indígena”

nacional,

ocupando

espaços

mais

relacionados

a

entretenimento e exposição à audiência ocidental, como também em espaços políticos em que eles ganham força ao se apresentarem como grupo unificado. Para Royce (1977, p.140-142) apud Zemp (2013, p.45): “reviver danças tribais que não foram executadas durante muitos anos [...] é uma maneira de investir em si mesmo como “índio””. Nesse sentido, a pesquisadora pôde perceber um preocupante enfraquecimento das danças e cantos Kaingangs, visto que apenas uma das alunas os conhecia. As demais não demonstraram muito interesse em aprender. No entanto, a pesquisadora reconhece que esse movimento pode ser devido a outros fatores, como a diferença entre os graus de sacralidade das danças Kaingang e da dança sertaneja, bem como de uma crença preliminar de que o espaço da universidade não poderia acolher a identidade étnica desses alunos.

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ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015 A inserção dos indígenas no sistema de educação ocidental tem inicio na conturbada história do Indigenismo. A partir dos projetos de civilização do período Colonial e início da República, ela foi pautada por ideia de conversão, integração e utilização do índio como mão de obra. Seguiu com as tentativas de pacificação de Cândido Rondon, em nome da expansão e desenvolvimento do país, até as recentes tentativas de superação da cidadania tutelada. A política educacional indigenista tem sido pouco pautada pela autonomia dos indígenas (JESUS, 2015) Atualmente, a tradição de conhecimento indigenista com maior influência sobre as ações da Fundação Nacionais do Índio (FUNAI) e sobre as medidas de acesso indígena a instituições de ensino superior é a Sertanista, que dá ênfase a promoção de medidas pontuais, com caráter de apaziguamento, atração e pacificação dos povos indígenas para submissão ao aparelho estatal (BARHT apud JESUS, 2015, p.57) Nessa mesma direção, repetem-se os relatos entre os alunos indígenas da UFSM de uma sistemática invisibilização da presença indígena na universidade, com o não reconhecimento de suas etnias por parte dos professores. A instituição permite que o indígena ocupe vagas, mas não dá espaço pras suas diferenças culturais e de paradigma de conhecimento. A pesquisadora considerou que isso pode explicar a resistência indígena em ocupar as aulas com suas danças e cantos. Nas atividades com as alunas, também houve observações quanto à relação entre gênero e dança para os Kaingang. Quando questionadas sobre quem poderia ensinar as danças tradicionais, elas expuseram que esta é uma função masculina, mas que os homens não estavam interessados nos encontros, segundo elas, às mulheres cabe cantar, portanto, foi pelos cantos que as aulas começaram. Logo, foi perceptível uma indissociabilidade da dança e da música para o povo Kaingang, pois cantar envolve um gestual próprio da performance musical. Também chamou a atenção da pesquisadora o fato de que a letra da canção ensinada assemelha-se muito a canções de origem cristã, podendo assinalar uma apropriação de referencias da cultura ocidental. Além dos cantos tradicionais, foram explorados a percepção e escuta de si e do espaço, através de exercícios das técnicas de Laban, Klein e Eutonia. Assim, a partir da experiência do corpo próprio, das ideias de transferência de peso, respiração, 5 IV Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA 2015 http://www.portalanda.org.br/anais ISSN 2238-1112

ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015 exploramos os movimentos eleitos pelos alunos. As alunas relataram sobre o acontecimento de bailes nas aldeias, onde a “Bandinha” já foi incorporada nas festas indígenas, e sobre a relação que as mulheres indígenas já estabelecem nesses espaços com o uso de salto alto, extremamente relacionado à hierarquia na aldeia. Considerações finais A relação dos alunos indígenas da UFSM com suas danças tradicionais se mostrou fragilizada, infelizmente, pouco pode ser observado sobre as possibilidades dessas danças como preparação corporal e em situação de interlocução com outros códigos, tampouco sobre o que elas poderiam revelar sobre a pedagogia Kaingang. A pesquisa constatou um movimento de transição identitária dos alunos Kaingang, em que eles tentam dar conta do orgulho étnico e, ao mesmo tempo, da apropriação de elementos da cultura ocidental dispostos a criar novas possibilidades de ser Kaingang participando do mundo branco. A pesquisa contribui em minha formação fazendo-me refletir quanto a políticas de visibilidade e preservação de um patrimônio de cultura corporal que vem sendo destruído e destituído de seu lugar na herança corporal brasileira. A escassez de fontes de pesquisa das danças de uma das maiores populações indígenas sobreviventes do Brasil revela de forma sutil a manutenção de relações de dominação cultural e política que se estendem em diversos campos, inclusive no ensino de dança institucionalizado. referências JESUS, Suzana Cavalheiro de. No campo da educação escolar indígena: Reflexões a partir da Infância Mbya_Guarani. Curitiba: Appris, 2015. MARQUES, Isabel A. Ensino de Dança Hoje: textos e contextos. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2011. MARQUES, Isabel A. Dançando na Escola. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2012.

VEIGA, Juracilda. Cosmologia Kaingang e suas práticas rituais. In: XXIV ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 24, 2000, Petrópolis. Anais. Petrópolis, 2000. p. 1 - 19. Disponível em: 6 IV Encontro Científico da Associação Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA 2015 http://www.portalanda.org.br/anais ISSN 2238-1112

ANAIS DO IV ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Dança em Mediações Educacionais – Junho/2015 . Acesso em: 05 ago. 2015 ZEMP, Hugo. Para entrar na dança. In: CAMARGO, Giselle Guilhon Antunes (Org.). Antropologia da Dança I. Florianópolis: Insular, 2013. p. 31-56. i

Fernanda Barbosa, graduada em Relações Públicas pela Universidade Federal de Santa Maria; cursa o Bacharelado em Dança pela mesma universidade. Possui experiência como intérprete, coreógrafa, professora e como produtora de eventos culturais. Atualmente é artista-pesquisadora no Projeto Educação Indígena e Invisibilidade. E-mail: [email protected]

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