DANIEL MUNDURUKU: CONTADOR DE HISTÓRIAS, GUARDIÃO DE MEMÓRIAS, CONSTRUTOR DE IDENTIDADES

May 30, 2017 | Autor: Waniamara Santos | Categoria: Literatura Indígena
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1 DANIEL MUNDURUKU: CONTADOR DE HISTÓRIAS, GUARDIÃO DE MEMÓRIAS, CONSTRUTOR DE IDENTIDADES

SANTOS, Waniamara J. Universidade Federal de Ouro Preto [email protected]

Resumo: Este artigo reflete sobre a proposição de novas identidades indígenas, em cinco obras memorialistas, pelo escritor Daniel Munduruku (um dos principais nomes da Literatura Indígena contemporânea), desvelando e modificando a percepção da sociedade brasileira nãoindígena quanto ao universo nativo brasileiro pela palavra escrita. A metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa seguiu a linha dos estudos comparados, entrecruzando Literatura, História e Antropologia ─ proposta dos Estudos Culturais. Os resultados obtidos permitem evidenciar a construção de identidades indígenas transculturais inseridas no espaço urbano. A abordagem teórica que permite essa constatação baseia-se na teoria da Memória Cultural, cunhada pelo egiptólogo Jan Assmann (2006), e da Transculturalidade narrativa, defendida pelo crítico literário uruguaio Ángel Rama (2008).

Palavras-chave: Identidades; Memória cultural; Literatura indígena.

A reflexão promovida neste artigo é parte integrante da dissertação homônima aprovada pelo Programa de Mestrado em Estudos da Linguagem da UFOP, em 29-01-2014. Orienta-se na proposta de perceber de que forma memórias e tradição cultural norteiam o trabalho do autor indígena Daniel Munduruku em cinco obras para a construção de novas identidades literárias indígenas no espaço da sociedade brasileira. A seleção do escritor justifica-se em razão de sua representatividade e visibilidade no cenário literário brasileiro. Daniel Munduruku possui uma carreira de quase vinte anos e diversas premiações no Brasil e no exterior, é um dos autores nativos mais conhecidos pela sociedade brasileira, escritor adotado como referência em diversas Instituições de Ensino em conformidade com a Lei N. 0 11.645/20081 e, por fim, ele possui o maior número de livros publicados até o ano de 2015 dentre todos os outros escritores indígenas (cinquenta e um livros individuais; duas traduções (inglês e espanhol); colaboração, organização e coordenação em publicações coletivas e a contribuição em revistas especializadas em Literatura). Em se tratando do corpus de análise, as obras selecionadas são classificadas como literatura infanto-juvenil e a data de publicação dos livros descreve o percurso de consolidação desse autor nativo ao longo de sua carreira como escritor, sendo: Tabela 1: Corpus da pesquisa – Informações Gerais

ITEM

1

TÍTULO

EDITORA

ANO

1

Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória

Studio Nobel

2001

2

Você lembra pai?

Global

2003

3

Histórias que eu ouvi e gosto de contar

Callis

2006

Lei instituída no âmbito da Educação Escolar no Brasil, em alteração a Lei N. 0 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei N.0 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade de promoção do ensino de História e Cultura Africana e Indígena no currículo do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental nas Escolas Brasileiras.

2 4

Histórias que eu vivi e gosto de contar

Callis

5

Histórias que eu li e gosto de contar

Callis

2006 2011 Fonte: Elaboração própria.

Nestas obras pondera-se que a escrita de Daniel Munduruku provém da perspectiva do narrar histórias. Ainda que num ato de fingir, o escritor tece uma sua escrita de vida em que outras vidas entrelaçam-se, compartilhando mundos, criando novas histórias, matéria de memória, recriação, invenção. O ato de fingir a própria existência e torná-la sua história, sob o seu ponto de vista, mostrando o que fez de suas leituras (de textos, de mundos e vivências). E nesse propósito, fazer as pessoas que lerão os livros refletirem sobre a possibilidade do convívio com a diferença, a busca da autoestima, a resolução de conflitos de identidades, de sentimentos que podem ser expressos por todas as pessoas. Essas obras servem para fortalecer o universo simbólico dos nativos brasileiros e evidenciam os modos de vida, as crenças e a espiritualidade própria de cada um dos grupos indígenas identificados: os Nambiquara, os Sateré-Mawé, os Macuxi e os Munduruku. (todas as etnias originárias da região Norte do Brasil). Os indígenas são mostrados em situações comuns do cotidiano em aldeia: brincadeiras infantis que não dão certo, namoros, os dias de trabalho, a caçada na floresta (rito de passagem da infância para a adolescência), o costume do banho matinal para retirarem as impurezas espirituais da noite, o uso das redes, hábitos alimentares (mandioca, tapioca, mingau de banana, etc.), a divisão de trabalho entre homens, mulheres. Esses são aspectos divulgados ao público pelo trabalho de escrita do autor, posto em execução na tentativa de dar-se a conhecer sua etnia. Percebe-se que mesmo evidenciando as diferenças culturais, as narrativas convergem para o objetivo único de mostrar a relevância das tradições culturais nativas para a manutenção da indianidade; lembrar para se manter vivo e carregar, em si, suas certezas e sentidos. O sentido de coletividade e o cultivo aos saberes e conhecimentos ancestrais são elementos agregadores dos povos nativos. As cinco obras trazem, também, importantes reflexões dos narradores-personagens que são próprias da humanidade (morte, trabalho, aprendizado, relacionamentos, casamento, sexualidade, etc.) e que colocam o leitor próximo do narrador, estratégia adotada pelo autor para promover o espaço de discussão das diferenças em meio às semelhanças entre índios e não-índios, que experimentam sensações similares. O espaço das narrativas, invariavelmente, volta-se para as aldeias ou suas proximidades, no entanto, existe uma relação de deslocamentos geográficos que introduz o espaço das cidades enquanto lugar de transferências culturais. Importante notar que, ainda que ocorram os testemunhos de deslocamentos e da diáspora indígena, os narradores criados por Munduruku atestam que se pode estar fisicamente em qualquer lugar sem que, com isso, a condição indígena seja abandonada, contrariando a crença do imaginário comum que prevê a extinção do índio pela sua integração ao ambiente urbano. Aqui se percebe um ponto de convergência dos nativos brasileiros. Os contos, portanto, deslocam a questão da territorialidade indígena para uma acepção mais ideológica que espacial. Sistematicamente, o tempo da narrativa é linear e da enunciação é cronológico (exceto em Você Sabia pai?) em que se permite observar a passagem das horas, a alternância de dias e noites, de anos. Em Meu vô Apolinário ocorre a utilização pelo escritor do recurso de flashback quando da descrição da morte do avô, cena em que o narrador-personagem lembrase a partir da sensação do tato, involuntariamente, de uma situação em meses anteriores que o velho índio já anunciava sua partida. O autor usa-se de pausas na narrativa em paralelo, como no caso da história do curupira (da noite passada na floresta perdido com amigos da aldeia) e o ensinamento relativo aos pássaros e a sua simbologia para os índios Munduruku, para fornecer conhecimentos sobre as crenças da etnia Munduruku.

3 No caso da obra Você sabia pai?, o texto corrido consiste em um monólogo interior travado pelo narrador-personagem e direcionado ao seu pai. O espaço da narrativa erige todo o texto no universo particular do narrador. O tempo da enunciação é o psicológico, o da narrativa é linear, cadenciando a trajetória de vida do narrador: infância, adolescência, juventude e fase adulta. Vários eixos temáticos são tratados ao longo das narrativas corroborando para justificar o seu objetivo explícito de desvelar a história e a cultura Munduruku. Dentre esses eixos temáticos evidenciam-se:  a negação da identidade estereotipada atribuída aos índios pelos brancos;  os conflitos de identidade;  o modo de vida e as tradições Munduruku;  a construção da indianidade (relações de alteridade);  a espiritualidade e as crenças Munduruku;  as denúncias e a crítica social;  meio ambiente e questões de território. Analisadas as obras, em primeiro plano, afirma-se que a sua escrita é a expressão do coletivo. Verifica-se, pela avaliação do corpus, que nos textos há a representação2 da teia de vozes nativas que seguem ultrapassando o tempo e o espaço neste território brasileiro. Essas vozes agregadas informam ao leitor a sua existência e representam suas identidades. Coexistem em seus textos ecos de vozes Nambiquara, Macuxi, Munduruku, Sateré-Mawé e tantas outras, atreladas às memórias culturais que resistem em permanecer vivas, independentes dos resultados de contatos e confrontos com a sociedade branca ao longo dos quinhentos e quinze anos de Brasil. Afirma-se que a escrita de Munduruku visa à coletividade, descortinando o universo pluricultural dos povos originais sem, no entanto, deixar de marcar a existência de especificidades dentre os povos. Conforme afirma Graúna, referindo-se ao universo indígena, “o ato de narrar configura um tecido de vozes da tradição” (2013, p.127). Em sua escrita Daniel Munduruku promove uma essencialização positiva, ou estratégica, dessa coletividade, ou seja, utiliza-se de maneira clara de uma leitura acerca de a situação indígena de modo a inverter as estruturas de dominação, enquanto um recurso estratégico de sobrevivência. Os povos originais no Brasil possuem uma história comum compartilhada em termos do tratamento dispensado (assimilação e extinção), por séculos são considerados como homogêneos e iguais (vide a denominação comum índios) e concorrem, basicamente, pelos mesmos direitos: saúde, educação, terras e cidadania. Essa essencialização justifica-se como uma tentativa de fortalecimento da classe na luta pelo reconhecimento, respeito e inserção na sociedade brasileira enquanto parte integrante e constitutiva dessa brasilidade. Acrescenta-se que, abarcando a coletividade e procurando dissolver as fronteiras existentes com/na contação de histórias, Daniel Munduruku evidencia, também, essa característica típica da filosofia indígena em que não sobressai a individualidade, pelo contrário, é o coletivo que deve prevalecer. Munduruku (2003, p. 14) lembra dessa característica em passagens como:

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Em termos de representação, para fins desta pesquisa, acorda-se com a acepção de Spivak (2010) que comenta duas abordagens para o termo: uma política, compreendida como “falar por” e a outra da arte e filosofia enquanto “re-presentar”. No caso dos nativos escritores e o objeto livro indígena, verifica-se um movimento duplo: a individualidade, o autor, que fala por e, ao mesmo tempo, re-presenta o nativo. Porém, em termos de sociedade brasileira, o que há é a possibilidade de “tornar visível o que não era visto”, não o de tornar o indivíduo vocal. (SPIVAK. Pode o subalterno falar?, p. 61).

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[...] Você lembra quando me disse que todas as coisas estão amarradas entre si como uma grande teia? Que cada coisa é reflexo de um criador? Que coisas e pessoas foram forjadas de uma mesma essência, por isso merecem nosso respeito.[...]

Na sequência, constata-se que em Daniel Munduruku reside a proposta de uma literatura crítica, de denúncia e de embate, mesmo que voltada a um público de crianças e adolescentes. Surgem considerações sobre as políticas de assimilação desenvolvidas pelo Estado Brasileiro contra os povos originais, a violência contra os povos nativos e, em especial, contra as mulheres, a crítica aos indígenas efetuada pela filosofia capitalista e a sociedade de consumo, o papel da Igreja Católica na colonização, etc. Enquanto expressão literária com forte teor político percebe-se que é, dessa forma, que a liderança de Daniel Munduruku no movimento literário indígena manifesta-se. A escrita é a maneira de romper com os preconceitos persistentes no universo não-indígena e de evidenciar as diferenças de crenças e ideologias entre brancos e autóctones brasileiros. Com o suporte do pensamento de Jean Paul Sartre (2004, p. 18), entende-se que o escritor nativo possui uma escrita engajada, já que palavra é ação e ao escrever desvenda e muda a percepção sobre o que tenciona mudar em razão da perda de inocência do leitor sobre a coisa desvendada: “O escritor é um falador; designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta, persuade, insinua”. O movimento de ver e ser visto acontece de forma segura e irônica (característica intrínseca à personalidade do autor), em que Munduruku utiliza-se da escrita como uma antena, uma carapaça, para informar a respeito de si, prolongamento de seus sentidos, empregando a linguagem para encontrar na palavra a vivência, a sua “verdade”, a “verdade” de seu povo de origem. Escreve porque é preciso dizer, é preciso contar uma nova versão dos fatos, dar-se a compreender, existir e dar existência aos seus... Diz Sartre (2004, p. 20): [...] ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá-la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir. Assim, o prosador é um homem que escolheu determinado modo de ação secundária, que se poderia chamar de ação por desvendamento.

Assim, vê-se que é uma escrita engajada, servindo a uma causa político-ideológica, em que se constata, claramente, a crítica direta ou velada e as denúncias em relação ao tratamento dispensado às comunidades nativas. Seu trabalho de escrita tem, portanto, uma função social enquanto desafia os discursos hegemônicos e busca promover em seus leitores crenças próprias enquanto produtores de saber e conhecimento. Munduruku denuncia de maneira natural, sem chocar seus leitores mirins, mas com sabedoria suficiente para incutir em seu público o incômodo pela situação mostrada. Em muitas vezes, recorre ao uso de ironias que desvelam as situações de crítica e denúncia social. Assim, percebe-se que recorrer ao humor para reverter o peso dos relatos de crimes cometidos contra a população nativa é parte do estilo criado pelo escritor. Como é comum às obras destinadas ao público de crianças e adolescentes vê-se nas ilustrações uma preocupação desde a composição da capa à disposição nas páginas de seus livros que, articulando texto e imagem, concorrem para a produção de sentidos. Para Daniel Munduruku, contudo, no caso dos cinco livros avaliados, essas ilustrações não são

5 elaborações próprias, mas assinaturas de ilustradores não-índios (Rogério Borges e Rosinha, para o corpus desta pesquisa). É uma diferença significativa quando relacionadas às publicações assinadas pelos demais autores indígenas, que confeccionam as ilustrações dos seus livros de próprio punho. O uso da grafia-desenho tal qual identificada nos grafismos (a arte de cestarias, cerâmicas, tecelagem e etc.) e nas pinturas corporais são também considerados importantes formas ‘narrativas’, fundamentando a percepção de mundo desses artistas. Há que se pensar que a escrita de Daniel Munduruku mostra um caráter comercial, com seu trabalho voltado para o público não-índio e apropriado do universo das editoras comerciais que o publicam. Diferentemente, a maioria das publicações indígenas no Brasil volta-se para o público nativo, sem pretensões de vendagem, vinculadas aos programas de Governo para a promoção do material didático nas Escolas das florestas. Mesmo em publicações editoriais, como as de Elias Yaguakag ou Yaguarê Yamã, observa-se a preocupação desses escritores que incorporam à sua escrita sua grafia-desenho. Isso diz um pouco sobre o lugar em que se quer permanecer em termos de sociedade brasileira. Sinteticamente, afirma-se que em Daniel Munduruku traduz-se a sua tentativa de abranger o mundo “civilizado” em sua manifestação artística, sem, no entanto, deixar de reconhecer, refletir (e abandonar) aquilo que é negativo nesse universo do Outro. E, sobretudo, não deixar de reconhecer que a identificação com a comunidade índia, independente da deglutição dada à cultura branca que não lhe é inerente, é função do cultivo (e de seu retorno) ao que é próprio da coletividade nativa, orientando-o, prioritariamente, em termos de suas crenças, espiritualidade, filosofia, hábitos e costumes: seguindo as “pegadas de Curupira3”. Para o escritor e os cinco livros em análise, as lembranças construídas são ao mesmo tempo da ordem de lembranças vividas (suas ou de outrem) ou de leituras da diversidade de textos realizadas ao longo da vida. Em se tratando das lembranças de ordem do vivido, são consideradas formas de memórias, individual e coletiva, encenadas no espaço ficcional e tomadas como objeto ou motivo para a elaboração das obras literárias. Enquanto transpostas do universo da leitura, as memórias individuais são tratadas enquanto mnemônica textual. Sob essa perspectiva, a literatura é concebida como um ato de memória, conforme Wolfgang Iser, abrindo-se a possibilidade de acesso e observação da cultura manifesta e de como ela acontece nas sociedades tradicionais. Discorre-se sobre a figura do escritor nativo enquanto detentor do poder (e do saber) de coleta e armazenamento dos “segredos” da coletividade traduzido na figura de um guardião de memórias, bem como se discute as formas de apropriação desses conhecimentos e saberes ancestrais visibilizados nas obras componentes do corpus elencado para avaliação nesta pesquisa. Daniel Munduruku enquanto um guardião de memórias, conceito apropriado em Le Goff (1990), ou seja, é compreendido como um homem-memória depositário das histórias (objetiva e ideológica) de vida de seu povo (e suas, porque não dizer, visto que é parte dessa coletividade), com poder (ou seja, capacidade e aprovação) para armazenar e propagá-las e, desse modo, compreendido como importante instrumento de manutenção da coesão social de seu povo. Em sua obra publicada em 2003, Coisas de índio, Munduruku esclarece o seu papel e a aprovação da comunidade, afirmando que deixou a aldeia com a missão de levar ao ambiente não-índio informações sobre a etnia Munduruku. Desde 1996, é este o trabalho empreendido pelo autor nativo mediante a publicação de obras literárias.

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Utiliza-se a imagem das pegadas do Curupira de forma metafórica, aludindo-se a figura do encantado que permanece com os pés virados para trás, assim, dando a ideia de alguém que segue com os passos na tradição, no passado, porém com a cabeça direcionada a frente, rumo ao futuro, ao “moderno”.

6 Um homem-memória é, neste trabalho, percebido enquanto um corpo4 que lembra. Vê-se que nas culturas indígenas existe uma conexão intrínseca entre a memória oral (e escrita agora) e a memória corporal. Muitas são as práticas corporificadas de importância cultural que representam a dimensão corporal da memória e encontram-se assentadas nos hábitos e sedimentadas no corpo (no caso dos Munduruku): cantar antes de caçar ou pescar, dançar, tomar banho ao acordar, bater os pés na fogueira antes de iniciar a contação de histórias, etc. As práticas corporais aprendidas e incorporadas intergerações são de grande importância para a dinâmica da aldeia. Diz Connerton que “o hábito é um conhecimento e uma memória existente nas mãos e no corpo. Ao cultivarmos o hábito, é o nosso corpo que “compreende”. (CONNERTON, 1999, p. 109). A transmissão de uma tradição só pode acontecer se essa é interpretada. A repetição reiterada das práticas na dimensão corporificada da memória em Daniel Munduruku surge de forma clara no corpus, evidenciando a relação do nativo com os hábitos, os rituais e a sacralidade de sua identidade étnica. Sobre a prática dos rituais afirma Munduruku (2013): eh quando eu penso em ritual... ou melhor quando a maioria das pessoas pensa em ritual... certamente a gente pensa em celebrações...a gente pensa em... em canto dança música reza preces...e muitas vezes o ritual... e a gente esquece que muitas vezes esse ritual é sempre apenas um...O reFORço que o humano precisa pra ele se senti parte de um todo do qual ele não domina ele é apenas...ehn...uma parte... que pertence a um todo o ritual é uma memória que a gente faz de pertencimento...quando a gente canta dança bate o pé no chãonão é ou...faz o corpo da gente vibrar (ritmado) com nossa dança com nosso canto... a gente tá lembrando que a gente não é dono mas a gente é parte e ser parte... e ter essa exata DIMENSÃO da parte... é que nos permite a olhar o outro com muita... com muita sacralidade...nos permite olhar o outro praqueles... praquelas pessoas que convivem com a gente com...ahn...uma sacralidade necessária pra gente perceber que eles são caminhantes... que eles são nossos parceiros...népor isso... nas tradições indígenas que desenvolveu ao longo do tempo...essas práticas rituais pra não nos permitir de esquecer quem somos...o que que ritual faz... ele é a memória de quem somos, daonde viemos, pra onde vamos, qual nosso papel no mundoe não...o ritual não nos permite ficar planejando demais... pensando no futuro...o ritual nos coloca o tempo inteiro no presente, no aqui, no agora.5

E se fala em memória remete-se à noção de tempo que, para os indígenas, apresenta uma conotação diferenciada da noção ocidental, a linearidade de passado, presente e futuro. Para os ameríndios a noção de tempo é circular em que coexistem dois tempos: o passado e o presente. O passado abrange o presente, é memorial e serve ao indígena para lembrar-lhe quem é, de onde vem e para onde caminha. “O passado é a ordenação de nosso ser no mundo” (MUNDURUKU, 2009, p. 49). É o passado que os lembra que são seres de passagem. Os ameríndios acreditam que um povo sem passado é um povo perdido no tempo e no espaço. Da mesma forma, o presente é o tempo que importa e deve ser vivido intensamente e por inteiro. Cada ação deve ser significada em cada momento, sentida, experimentada em corpo e espírito, obrigando os indígenas a permanecerem inteiros a cada ato sem desviarem-se dele. “Viver o presente é olhar para si a cada dia, saber a necessidade daquele momento para o

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Quando referido o corpo, entende-se que, muito além da capacidade biológica de armazenamento de memórias, existem arquivos de memória relacionados aos gestos, expressões faciais, entonações de vozes, coreografias, hábitos e práticas corporais que perfazem a memória. Nessa amplitude, trata-se na pesquisa de um guardião de memórias enquanto um “corpo que lembra”. 5 Transcrição da fala de Daniel Munduruku sobre rituais no Fórum das Letras, em maio/2013. [transcrição nossa]

7 bom andamento da comunidade e fazer o que for bom para ela [a comunidade] e não para si”. (MUNDURUKU, 2009, p. 50). O futuro para os indígenas é uma ilusão, uma promessa que pode nunca chegar e, portanto, não é uma preocupação. Em primeiro plano, no caso de Daniel Munduruku, a sua escrita nativa evidencia um movimento de ruptura da identidade literária indígena com o passado colonial brasileiro − origem da identidade de índio fixa e errônea, fonte de todo preconceito e estereotipia − no intuito de instauração de uma nova ordem, buscando estabelecer um novo ponto de partida marcado por um começo radical com referência a um padrão de memórias sociais. “Ao poder pela memória responde a destruição da memória” (LE GOFF, 1990, p. 443). Entretanto, vê-se em Munduruku que a ruptura proposta é alicerçada em lembranças, na revisitação da memória ancestral, marcando não um começo, mas uma retomada. Ratifica-se essa alegação a partir das considerações trazidas por Paul Connerton (1999) a quem afirma a impossibilidade do novo6, discorrendo que todo início envolve uma recordação, não havendo, portanto, a ruptura da temporalidade, da continuidade, conforme preconizado pelos grupos sociais. Isso, porque, [...] em todas as formas de conhecimento, fundamentarmos sempre as nossas experiências particulares num contexto anterior para garantirmos que são de todo inteligíveis, e que, antes de qualquer experiência isolada, a nossa mente se encontra já predisposta com uma estrutura de contornos, de formas conhecidas de objectos já experimentados. Compreender um objecto ou agir sobre ele é localizá-lo neste sistema de expectativas. O mundo do inteligível, definido em termos de experiência temporal, é um corpo organizado de expectativas baseadas na recordação. (p. 7) [grifo nosso]

Na base das memórias do escritor nativo existe uma individualidade que se recorda: “Você lembra, pai, que eu gostava muito de chupar manda no pé? Aprendi com você! Foi você que me contou sobre a doçura da fruta quando é tirada do pé” (Munduruku, 2003, p.9). Entende-se essa memória individual em termos de atos de recordação que tomam como objeto seu passado pessoal e a ele se referem. A individualidade que recorda uma (sua) história passada é fonte de autoconhecimento e de formação de uma identidade pessoal. Essa memória individual manifestada nas obras legitima-se na/pela coletividade, uma vez que não é possível lembrar sozinho, por meio de processos comunicativos estabelecidos entre integrantes de seus grupos sociais (seja nas interações ou por meio de textos). Cabe lembrar que sem o caráter social, uma memória estritamente individual configurar-se-ia como uma linguagem privada. Jan Assmann (op. cit.) inclui em sua construção teórica a noção de memória individual em inter-relação com a memória socialmente condicionada, quando afirma que, no ato de lembrar não descemos apenas até a profundidade de nossa vida interior mais íntima, mas introduzimos uma ordem e uma estrutura nessa vida interior que é socialmente condicionada”. (2006, p. 2)

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Também Mikhail Bakhtin, por meio da ideia do dialogismo, a “memória” dos textos, a intertextualidade defende a noção da impossibilidade do novo. Em sua investigação sobre a poética de Dostoiévski Bakhtin identifica os traços fundamentais da organização do romance, interpretando-o como uma construção polifônica, em que o entrecruzamento de vozes, num jogo dialógico, promove um cruzamento de várias ideologias. “O texto escuta as “vozes” da história e não mais as re-presenta como uma unidade, mas como jogo de confrontações” (CARVALHAL, 2001, p. 48)

8 Como é forte a conotação autobiográfica no corpus afirma-se que existe um predomínio da dimensão individual da memória nas obras estudadas (Meu vô Apolinário, Você sabia pai, Histórias que vivi e gosto de contar e Histórias que ouvi e gosto de contar). Com relação a essa dimensão, é percebida na cena enunciativa a construção do sujeitoautor por meio das lembranças em diferentes etapas da vida na tentativa de evidenciar sua identidade pessoal e sua indianidade, ou seja, o índio escritor. Reflete-se que essa identidade dá-se em termos de combinação e comparação entre indivíduos e grupos os quais permanece relacionado: a comunidade nativa e a sociedade não-indígena. As interações acontecem em Daniel Munduruku tanto em termos de sua comunidade nativa quanto entre grupos de parentes de outras denominações nativas. O que estabelece uma similaridade entre esses grupos é o cultivo da tradição cultural e, num sentido mais amplo, um histórico de experiências comuns. Há, portanto, o estabelecimento de uma identidade pessoal marcada pela identificação de “espelhamento” ou de negação dentre si e os indivíduos dos grupos em que transita: Nessa época, cada um longe do seu povo, contávamos histórias de nossa gente para matar a saudade que sentíamos de casa (MUNDURUKU, 2010, p. 19)

Destaca-se que a formação da indianidade nas obras de Munduruku passa pelo autoconhecimento que se inicia em termos de negação de si mesmo. “Para meu desespero, nasci com cara de índio, cabelo de índio (apesar de um pouco loiro), tamanho de índio” (MUNDURUKU, 2009, p. 11). A identidade indígena é descrita como uma construção e uma querência desenvolvida ao longo das experiências compartilhadas com a coletividade nativa e Munduruku. Surgem, ainda, duas novas dimensões da memória na escrita do autor nativo: a coletiva (ou conectiva) e a cultural. Ambas as dimensões servem para promover a sua coesão ao grupo de origem e fortalecer sua identidade nativa. Entende-se a memória coletiva (de ligação ou conectiva) como o segundo nível de manifestação, conceito cunhado por Assmann a partir de apontamentos de Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud. Conforme Jan Assmann (op. cit.), é a memória socializadora por excelência. O conceito relaciona-se a uma vontade de memória, ou seja, as pessoas precisam de uma memória para pertencer e para sua identificação social. A memória coletiva, em Assmann, é elaborada para que o indivíduo viva socialmente, sendo culturalmente construída. Assim, é a instância em que se dá a transmissão de valores e normas que caracterizam uma identidade coletiva − se há identidade há uma contra-identidade, definidora da exclusão do indivíduo a outros grupos − sendo regida, dessa forma, pelo controle e a censura provenientes da cultura (enquanto uma contenção social). Muito comuns são as lembranças reconstituídas da memória coletiva dos Munduruku retiradas das obras, que concorrem para a manutenção da vida em coletividade, em termos de transmissão de valores e normas. Por exemplo, tem-se a forma de divisão de trabalho, em que se estabelece o papel entre homens e mulheres; ou entre crianças, jovens, adultos e velhos; as formas tradicionais de cultivo da terra e os tipos de produtos cultivados; os modos de a tradicional produção de farinha de mandioca; a caça e pesca; os rituais de passagem; as curas com ervas e espíritos. Todas essas formas de apropriação da memória ancestral Munduruku concorrem para o estabelecimento do sentimento de pertencimento e, em contrapartida, circunscreve-o no âmbito da coletividade que o reconhece como um igual. Desse modo, a memória conectiva apresenta uma relação inerente com a identidade coletiva que se manifesta em razão da aderência à coletividade.

9 Exceto em Histórias que eu li e gosto de contar, os demais livros selecionados para estudo apresentam as cenas de atividades cotidianas da vida nativa e dos Munduruku em que os lugares femininos e masculinos encontram-se bem definidos. Há uma articulação entre povo e natureza, expressando o modo de relação entre a cultura indígena e o espaço em que habitam. Daniel Munduruku assinala a importância do trabalho e a existência do desenvolvimento diário das atividades realizadas sem as comodidades do ambiente urbano (inclusive sem energia elétrica e abastecimento de água potável). Essa situação permite que os seus leitores conheçam a forma como sobrevivem os índios aldeados. Destaca as atividades do povo Munduruku que para sua subsistência promovem o plantio e o cuidado com o roçado, à caça de animais, a pesca, a extração e coleta de frutas e medicinas. Essas práticas diárias são frutos de uma incorporação de conhecimentos ocorridos desde tempos imemoriais (locais de plantio, revezamento e alternância de culturas, épocas de plantio, tipo de solo, conhecimento de sementes, etc.) repassadas de pai para filho. Destacam-se trechos nas obras: (O TRABALHO DAS MULHERES): Eu e meus companheiros estávamos brincando juntos em um lugar de onde dava para ver as mulheres trabalhando no roçado. (MUNDURUKU, 2009, p. 15) (O TRABALHO DOS HOMENS): Na época em que se passa esta história, ele já devia estar com mais de oitenta anos. Mesmo assim, fazia todas as coisas que um homem mais jovem: caçava, pescava, ia para a roça, preparava belíssimos paneiros com talas de buriti. Estava sempre trabalhando. (MUNDURUKU, 2009, p. 26)

Acima desses dois níveis de manifestação da memória existe uma memória cultural que se vincula ao escritor e ao seu grupo étnico, orientando as ações em termos da manutenção de seus universos simbólicos ao longo de gerações. Há uma continuidade de significados em função das formas que são manifestadas nesse mundo simbólico: mitos, narrativas, arte, sistema de valores, conhecimentos, práticas sociais e rituais, etc. Também a memória cultural, aqui, concorrerá para irradiar uma consciência de unidade, particularidade e sentido de pertencimento. A memória cultural representa a essência de uma identidade histórica enquanto meio próprio e lugar fixo na vida cultural de um grupo. É a matéria de rituais e atuações altamente institucionalizadas. Essa dimensão da memória com suas tradições remete a um passado longínquo, formando o eixo diacrônico, fazendo alusão temporal de mais de cem anos. Assmann reflete sobre a inexistência de uma distinção entre memória e tradição. Daniel Munduruku discorre que é a memória, notadamente na dimensão cultural, que coloca o indígena em conexão profunda com o que os ameríndios chamam por Tradição. Acrescenta que, todavia, a Tradição não é entendida como estanque, imutável, mas sim dinâmica e mutável para os ameríndios. Munduruku define a Tradição como “um método pragmático de a memória se fazer presente”. Em se tratando da memória cultural Assmann afirma que “só a memória cultural torna o indivíduo capaz de dispor livremente de seu estoque de memórias e lhe concede a oportunidade de orientar-se por toda amplidão de seus espaços de memória” (op. cit., p. 21). Refletindo-se sobre a manifestação da dimensão cultural da memória na escrita nativa de Daniel Munduruku, evidencia-se no corpus situações como a repetição do ritual de contar histórias ao pé da fogueira, sempre à noite, exercido pelos anciãos, expandindo-se para um

10 passado atemporal em que a tradição oral é reverenciada e significa a vida em coletividade. Nessa lembrança, o indígena dança em conjunto, batendo os pés no chão, em que a batida dos pés recorda a criação do mundo: foi batendo os pés no chão que Kairu Sakaibê fez nascerem todas as coisas. Todas as vezes que se batem os pés juntos, recriam e mantêm o céu suspenso, como dizem os avós. Também as narrativas que trazem a figura dos encantados (Curupira, Matintaperera, Boto Tucuxi, Mãe d’água, etc.) são formas de apropriação dessa memória cultural efetuada pelo escritor, descrevendo o universo simbólico dos Munduruku, Nambiquara, Sateré-Mawé e Macuxi, enfim, dos ameríndios em geral, apropriados de um passado distante em termos temporais e recuperados para conhecimento dos leitores. Cabe pensar que essa dimensão da memória também converge para a instauração de uma identidade étnica, coletiva (e reafirma a identidade individual) já que permite ao indivíduo localizar, no movimento da escrita (auto)biográfica, o seu lugar no seio de seu grupo étnico em termos de sua vinculação com a história e a cultura comum. A título de complementação e adotando-se a notação proposta por Assmann (op. cit.) para distinção entre os tipos de memória quanto à organização, afirma-se que a estratégia utilizada pelo escritor indígena para elaboração de seus livros consiste de um trabalho de anamnese em que, predominantemente, recuperam-se memórias narrativas ou voluntárias, linguisticamente organizadas e possuindo significado numa estrutura coerente. Entretanto, reside a manifestação ocasional da memória cênica ou involuntária, que é visualmente organizada, sem, contudo, apresentar uma coerência. Um dos exemplos que se podem destacar é descrito na obra Meu vô Apolinário, relativa às lembranças que sucedem a partir de um toque de mãos, quando da situação do velório do avô do narrador-personagem (já mencionada no corpo desse trabalho). Além dos níveis úteis de memória acima discutidos (individual, conectivo e cultural), os estudos desenvolvidos por Jan Assmann (op. cit.) explicitam a distinção de uma memória comunicativa (na perspectiva da memória cultural) percebida nas transferências culturais entre membros de um grupo social, nas interações, ou seja, no estabelecimento das comunicações entre indivíduos de um grupo. Ainda que existam diferenças intergerações nessas trocas os indivíduos experimentam o sentimento de pertença, a autoidentificação e a autocompreensão. Assmann estabelece uma duração temporal de três gerações e forma uma dimensão sincrônica para a memória comunicativa. Essa memória reflete-se nas discussões acerca da experiência histórica de eventos específicos e da simbologia específica representativa de um sistema político. É o primeiro nível de manifestação da memória relacionada às experiências de mudança temporal. Destaca que o conceito de memória comunicativa descreve o aspecto social da memória individual. Essa modalidade da memória pertencente ao domínio intermediário entre indivíduos encontra-se intimamente ligada às emoções tais como o amor, o interesse, a simpatia, o ódio, a culpa, a vergonha, a afinidade, a inimizade, entre outros. As emoções determinam o que se quer esquecer e o que precisa ser lembrado. Nesse ponto, Assmann aproxima-se de Connerton que entende as emoções enquanto motivações para que a memória imprima-se em “nossas mentes”. Jan Assmann (e a pesquisadora Aleida Assmann, sua esposa) estabelecem que o conceito de memória comunicativa abranja todas as variedades da memória coletiva baseadas, exclusivamente, na comunicação diária. Cabe lembrar que para Maurice Halbwachs, essas variedades por ele reunidas e analisadas sob o conceito de memória coletiva, constituem o campo da História Oral. Conforme eles, toda a comunicação caracteriza-se por um elevado grau de não-especialização, reprocidade, papéis, instabilidade temática e desorganização. Desse modo, toda a memória individual constitui-se em comunicação com os outros, ou seja, cada indivíduo, a partir das formas de comunicação, compõe uma memória socialmente

11 medida e relacionada a um grupo. Todavia, esses outros não são tratados apenas como um conjunto de pessoas, mas sim, grupos que comungam de um passado comum e, portanto, através dessa imagem comum concebem sua singularidade e sua unidade. Para o corpus analisado, no caso da memória comunicativa, destaca-se a obra Você Sabia Pai? em que se identifica a comunhão de um passado comum entre pai e filho e se distinguem as transferências culturais entre esses membros pertencentes a duas gerações diferentes de um mesmo grupo familiar nas suas interações. Destacam-se trechos como: Você lembra, pai, quando me ensinou pela primeira vez a utilizar o arco e a flecha? Lembra que eu machuquei meu dedo e você escondeu seus lábios de um sorriso zombeteiro para não me deixar furioso? Seu silêncio respeitoso foi o melhor ensinamento que já tive, pois você me ensinou a respeitar os passos de cada pessoa. (MUNDURUKU, 2003, p. 8).

Os níveis de utilização da memória destacados nas obras literárias assinadas pelo escritor nativo Daniel Munduruku concorrem para a formação de vínculos e de reconhecimento entre grupos e indivíduo. Enquanto uma escrita (auto)biográfica, nesse sentido, há a construção de sua individualidade, de como se percebe um indígena em meio a sua comunidade e à sociedade branca. Cabe pensar que na interação há um duplo movimento, tanto em nível individual: o indivíduo que se autoidentifica com os outros componentes do grupo, reconhece a coletividade como igual e deseja pertencer; tanto como em nível coletivo: os componentes do grupo identificam o indivíduo como igual, reconhecem sua a relação com o grupo e desejam que ele pertença a esta coletividade. A título de acréscimo, o que se reflete, ainda, é que ao trabalhar as lembranças que o compõem Daniel Munduruku consegue promover o resgate de sua própria denominação étnica (e levanta a importância dessa questão para os povos originais) como uma forma de afirmação identitária. Ao homogeneizar os povos indígenas e nomeá-los como uma ‘coisa única’, os portugueses promoveram a negação de suas identidades étnicas recusando a existência de diferentes povos e culturas. A memória de sua etnia é evidenciada e a lembrança do nome da sua comunidade de origem é promovido como uma das formas de resgate identitário do autor. Lembre-se que essa forma de negação identitária foi promovida pelos nazistas, lembra Candau (2011), com o evento do Shoah, em que a primeira negação de memória aos judeus e homossexuais consistiu na perda de seus nomes próprios em detrimento de uma atribuição genérica referente a um registro numérico. Introduzindo-se o ser índio no mundo pós-moderno, as constatações aqui mostradas vão de encontro às identidades historicamente constituídas neste território e o que se depreende dessas identidades constituídas é o que se afirma por críticos e pesquisadores diversos, como Graúna (2013), de que a abordagem executada na história da literatura brasileira não é indígena, mas indigenista ou indianista. Assim, sempre realizada aos olhos externos e, nessa medida, apenas imaginadas em contraste com o SER real. Alternam-se as figurações do índio na literatura brasileira, exercendo funções de antagonismos em prol da valorização do herói branco, compondo paisagens ou como coadjuvantes dos conquistadores de suas terras e, resumidamente, em razão da ideologia contida na proposta do estilo de época e do momento histórico, oscilam de três diferentes imagens, conforme ressaltadas na tabela 19, a seguir: Tabela 1: Percepções do indígena brasileiro (período do ano de 1500 a 2012)

VISÃO Índio romântico

CARACTERÍSTICA Ligado à natureza, protetor das florestas, ingênuo, pouco capaz ou incapaz de

RESULTADO Fundamenta a relação de tutela e paternalismo entre os índios e a sociedade nacional. O índio é a

12 compreender o mundo branco com suas regras e valores

Índio cruel

Índio cidadão

Canibal, animal, selvagem, preguiçoso, traiçoeiro, bárbaro e tantos outros adjetivos e denominações negativos.

vítima, o coitado que precisa de proteção e sustento, não tem capacidade de gerir-se. Justifica a prática de massacres e extermínios como autodefesa e defesa dos interesses da Coroa (e dos Grupos econômicos hoje) que tem interesse nas terras indígenas e nos recursos naturais nelas existentes.

Concebe os índios como sujeitos Garante direitos específicos, cidadania plural e históricos, de direitos e, portanto, de tratamento jurídico diferenciado. cidadania específica (plural). Fonte: Adaptado Baniwa (2006). Elaboração própria.

É no espaço urbano e no contexto de proposição de uma cidadania diferenciada que se encerra a experiência do escritor indígena Daniel Munduruku selecionado para fins de estudo. A tessitura do texto é servida das lembranças edificadas em torno de sua memória individual, numa busca de aceitação da sua identidade e descreve, de forma camuflada, os muitos conflitos relacionados a essa condição. Dentre as questões trazidas pelo corpus vê-se que a ênfase, sob a ótica do narrador, dá-se na questão da contraposição de realidades dessa criança que transita entre os mundos da aldeia e da cidade. À aldeia, o narrador atribui adjetivos positivos como “lugar maravilhoso” ou identifica como o local em que se quer estar “[na aldeia] torcíamos para que as férias nunca acabassem” (Munduruku, 2009, p. 22). Logicamente, esse local erigido pelo narrador (mesmo que seja uma territorialidade ideológica) é um espaço onde reina a igualdade, a coletividade, da vivência pautada com os pés na terra − essa terra percebida como a vinculação à cultura nativa. Um ambiente orientado pelo respeito à natureza e aos seus espíritos, que não é o espaço de conflitos, da desigualdade e de preconceitos. A localização da cidade, ao contrário, dá-se em termos de conflitos. É o espaço da discussão, da negação de sua identidade índia, um ‘universo à parte’. Entretanto, pela escrita autoral indígena, verifica-se que é a inauguração de um novo espaço de vivência. Diz o narrador autodiegético: “Eu nasci na cidade. Acho que dentro de um hospital. E nasci numa cidade onde a maioria das pessoas se parece com índio: em Belém do Pará” (Munduruku, 2009, p.9). Essa declaração vai de encontro ao imaginário social que se prende ao “estereótipo do índio ‘mateiro’, que vive na natureza com as ‘vergonhas’ de fora” (TERENA, 2012, p.55). Emerge a sua proposta de identidade para um índio urbano (ou urbaíndio). O que sugerem os textos e o que fica evidente são as transferências culturais oriundas desse trânsito entre espaços diferenciados. E, nessa medida, o surgimento de uma identidade mais ampla que se constrói em razão do esmaecimento das fronteiras, buscando-se a reparação para as relações de assimetria nas zonas de contato. O escritor indígena Daniel Munduruku propõe-se à criação de um formato de identidade coletiva pós-moderna “disseminada no lugar, no exílio e na errância” (Bernd, 2006, p. 8) contraposta à ideia da ascendência genealógica e territorial (espaço físico). Ao revalorizar o lugar habitado, o autor deixa entrever uma terceira via de representação, corrigindo conceitos como o de homogeneidade, atraso cultural, selvageria e ignorância. É prudente refletir que essa é a forma do escritor perceber a sua própria inserção no ambiente urbano pós-moderno. No entanto, não é possível apontar que essa construção seja partilhada pela grande maioria dos autores nativos, não se podendo partir para as generalizações. O que se afirma, dessa forma, é que Daniel Munduruku constrói em suas obras memorialistas e, com base em sua memória cultural, uma identidade indígena transcultural que possibilita o trânsito desse novo indivíduo no ambiente urbano sem que ocorra a negação dessa nova identidade em virtude dos deslocamentos e trocas culturais empreendidas. Salienta-se que o delineamento dessa nova acepção de identidades indígenas aparece, de forma pronunciada, no livro Histórias que eu ouvi e gosto de contar e apontam para uma

13 universalidade, numa constituição estratégica em termos de povos nativos já que Mundurukus, Nambiquaras, Macuxis e Sateré-Mawés experienciam, da mesma forma, o embate entre permanecer na cidade (adaptando-se às suas possibilidades) sem deixar de ESTAR inserido na tradição de seu povo. O eterno conflito entre a tradição versus a modernidade, entre o profano e o sagrado. Resgata-se, aqui, que essa contraposição ao estilo antropofágico do Tupi or not Tupi, ou seja, de ser índio vinculado à ancestralidade sem, no entanto, deixar de aproveitar das benesses da modernidade em tudo o que convier (deglutir só o que for bom), retoma uma das ideias em relação à indianidade delineadas nos primeiros textos escritos em terra brasileira: a integração do indígena à cultura branca determinando a sua extinção (ideológica) para, consequentemente, criação da categoria ‘brasileiros’. Há que se ressaltar que, mesmo corroborando com esse pensamento que prevalece na sociedade brasileira, o que a escrita do autor indígena constrói é uma nova forma de perceber a condição de integração. É possível permanecer no espaço de convívio das cidades sem a extinção de sua indianidade, edificando um novo índio brasileiro. Para isso, basta que se procedam aos ‘passos do curupira’, conforme comenta o escritor Ademário Ribeiro (2013). Seguindo em frente com os olhos e mentes na contemporaneidade, no porvir e com os rastros voltados às origens étnicas – compatibilizando saberes do passado e presente, da aldeia e cidade. Pé ante pé e não descompasso, indiferenças. Cada saber é bom. É só saber fazer dele um saber de bem viver, de ser do bem e de estar e fazer pelo bem... A literatura indígena quer isso.7

Apreende-se das obras analisadas que aceitar e viver conforme a tradição cultural de sua etnia é uma conditio sine qua non para SER um índio, talvez até maior que a questão genética, a vinculação ao nascimento. Porém, em relação à tradição, acredita-se que o contato com a modernidade eurocêntrica não significou o extermínio das tradições autóctones, mas sim processa-se o surgimento de formas sincréticas em que as matrizes indígenas, portuguesas e espanholas constituem uma mistura. Retornando à questão dos espaços, significativa a menção do espaço do quintal como um lugar de vivência proposto na fronteira entre a aldeia e a cidade. Lugar inscrito no ambiente urbano e que conserva as características da aldeia. É, também, um lugar de identificação das diferenças, da troca de experiências entre índio e brancos, da construção de conhecimentos diversos da tradição étnica, bucólico, que abriga a “parecença” com a aldeia em termos do tratamento dado à natureza. Nesse lugar, como na aldeia, a criança protagonista quer estar. A descrição do local é de um “imenso terreno baldio e ali eu reunia meus colegas para brincar. [...] treinei meus ouvidos para ouvir as conversas das corujas e dos sapos” (MUNDURUKU, 2009, p. 11). Apreende-se, disso, a tentativa de proposição de uma terceira margem, um espaço de trânsito entre o ambiente da cidade e o da aldeia, sinalizando-se o convívio com a alteridade sem que se processe a desigualdade em meio às diferenças. Transpondo essa questão para o universo ficcional da Literatura Brasileiro, o que se afirma é a tentativa de elaboração de uma identidade híbrida que figura entre o índio romântico − símbolo da natureza virgem, da proteção das florestas, vinculado à paisagem (alimentação, sustento, etc.) – e o índio cidadão (sujeito de sua histórica, igual nas diferenças, com direitos e deveres). A edificação de um indígena diferenciado, proposta encerrada na afirmação da criança protagonista: “não nasci como nascem todos os índios [...]”

7

Disponibilidade em https:///www.facebook.com/waniamaraj Acessível em 30. Jul.2013.

14 (Munduruku, 2009, p.9), afirmação que se reflete como indicativo dessa diferença em termos dos demais nativos brasileiros. O que se verifica, portanto, é que a leitura dos textos de Daniel Munduruku obriga seus leitores a reavaliar seus critérios de classificação já que rompe com as noções inscritas na literatura nacional, deixando-se atravessar por diversas línguas, linguagens e culturas em graus variados. E, por fim, não deixa de cumprir com a proposta de uma escrita engajada que descreve as desigualdades sociais, raciais, econômicas e culturais, desfiladas entre as considerações do narrador, permitindo ao leitor (modelo, maduro, um adulto?) perceber que essa identidade literária criada figura no espaço marginal, periférico no ambiente urbano. A condição de marginalidade releva-se na exposição de situações como o subemprego, a residência em bairros periféricos ou a falta de condições financeiras para a aquisição de moradia própria. Não é novidade situar-se os urbaíndios em periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, basta empreender-se ao cruzamento de dados e estimativos populacionais realizados pelo IBGE ou ler-se jornais. O ilustrador Denilson Baniwa 8 lembra que “um indígena que sabe ler e escrever, não será dono da fábrica, no máximo será o encarregado de escrever as planilhas de lucros”. Essas desigualdades podem ser apropriadas em razão dos conteúdos presentes em trechos como “Nós sempre moramos na periferia de Belém. Nossa maloca não era nossa e muitas vezes tivemos que mudar de lugar, de casa e de bairro” (Munduruku, 2009, p. 10) ou em “Quando precisava ajudar em casa, eu ia para a feira vender alguma coisa ou então ia simplesmente ajudar as pessoas a carregar seus volumes nos supermercados e assim ganhar algum trocado”. (Munduruku, 2009, p. 22). Em virtude do exposto, observa-se que na trajetória efetuada pelo escritor nativo, de retorno ao passado para (re)significar o presente, existe uma proposta clara de definição para a identidade literária do índio contemporâneo. A personagem de papel que surge da escrita de Daniel Munduruku é o resultado dessa proposta que engloba uma construção estratégica e transcultural.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ASSMANN, Aleida. Ricordare. forme e mutamenti della memoria. Bologna: Editrice del Mulino, 2002. 488p. (Collezione di testi e di studi). ASSMANN, Jan. Collective Memory and Cultural Identity. New German Critique, N0. 65, Cultural History/Cultural Studies. Spring - Summer, 1995, pp. 125-133. ______. Religion and cultural memory: ten studies. Translated by Rodney Livingstone. California: Stanford University Press, 2006. BANIWA, Luciano Gersem dos Santos. O índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil hoje. Brasília: Ministério da Educação/SECAD, 2006. (Coleção Educação para todos; 12) CONNERTON, Paul. Como as sociedades se recordam. Tradução de Maria Manuela Rocha. 2. ed. Oeiras: Celta Editora, 1999. 8

Conteúdo veiculado em rede social Facebook. www.facebook.com.br/dbaniwa?fref=ts>. Acesso em 3. Ago. 2013.

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