DANIELLE MAGALHÃES: UM ELOGIO ÉTICO E POLÍTICO DA POESIA

Share Embed


Descrição do Produto

DANIELLE MAGALHÃES: UM ELOGIO ÉTICO E POLÍTICO DA POESIA Alberto Pucheu Publicado na revista Caliban, em 2 de janeiro de 2017 https://caliban.pt/danielle-magalh%C3%A3es-um-elogio-%C3%A9tico-epol%C3%ADtico-da-poesia-d4916f14792b#.mgusd0nx9 Ferreira Gullar (o homem em carne e osso, não sua poesia) morreu há poucas semanas; Augusto de Campos continua vivo. Com os dois, que, salvo no começo, viveram até o fim o aparente jogo dos antagonismos e da oposição em disputa dicotômica, podendo encarnar, após a passagem de João Cabral de Melo Neto, o pretenso título dos últimos supostos maiores poetas de nosso tempo, encerra-se, pareceme, o ciclo do modernismo brasileiro, mesmo que este deixe seus herdeiros com desdobramentos férteis e necessários. De Torquato Neto, que falou, claro que elogiosamente, da “sujeira do tropicalismo”, ao Poema sujo, e com o flerte daquele movimento com a poesia concreta com a qual Gullar, em certo momento, também se vinculou, mostra-se o lastro de um dos percursos decisivos dos desdobramentos vanguardistas (com suas consequências) da poesia brasileira do século XX a adentrar o XXI. Estreando, em 1937, colado à experiência da Semana de Arte Moderna de 1922 e tendo, em seguida, ainda no começo de seu percurso, um momento de encontro com a chamada Geração de 45, Manoel de Barros, naquilo que dele acabou por, até agora, se mostrar para nós como sua singularidade maior, faz com que a oposição entre limpeza ou higiene versus sujeira seja, então, deixada de lado, dando um salto sobre o abismo com sua poesia que se torna da ordinariedade em transfiguração, de uma agramaticalidade do qualquer em transcriação. Imerso no presente em que se constituiu, indo para a frente e propiciando, simultaneamente, a interrogação de novos modos de se ler o passado para além da chamada “linha evolutiva” da poesia brasileira, o gesto poético do escritor de O Guardador de Águas tem várias temporalidades disjuntas e múltiplas direções rearranjadoras. É certo que alguma poesia dos anos 90 ainda tem de ser pensada muito para além da facilitação esquemática do propalado intelectualismo pelo qual alguns críticos a leem e é certo que, no momento, quando muitos e muitas poetas iniciados e iniciadas em tal década estão em efervescência criativa e cujos poemas ainda se transformam e tanto ressoam nos trabalhos de mais jovens quanto estes

ressoam naqueles e naquelas criando fusões inesperadas e imprevisíveis, há uma geração com menos ou pouco mais de 30 anos muito plural, deixando ruídos e burburinhos do momento eclodirem sem qualquer eixo fixo (seja temático, seja do modo de escrita, seja do que já foi chamado de star system), com um nível médio dificílimo de se atingir e poetas realizando escritas surpreendentes em todos os seus aspectos. Se pensarmos ainda que tais poetas releem, por exemplo, entre as que estão no meio de nós apenas por seus livros, Orides Fontela, Hilda Hilst e Ana Cristina Cesar de modos distintos, que começam a absorver outros vivos mais velhos antes menos lidos e pensados, como, citando apenas um deles, Leonardo Fróes, que livros como, para mencionar apenas um dos poetas que já se foram, Kuala Lumpur, de Fernando Ferreira de Loanda, encontram-se praticamente engavetados para serem retirados do esquecimento e da vala do sono a qualquer momento, a promessa do porvir, pelo que já se vê do momento, é extremamente generosa. De, só para citar alguns exemplos, Annita Costa Malufe, Leonardo Gandolfi, Marília Garcia, Pádua Fernandes, Ana Martins Marques, Angélica Freitas, Bruna Beber, Tatiana Pequeno e Sergio Cohn a poetas ainda mais jovens como Yasmin Nigri, Maíra Ferreira, Italo Diblasi, Catarina Lins, Reuben Rocha, Bruna Mitrano, Ana Thomazini, Caio Carmacho, Nina Rizzi, Adelaide Ivánova, Rita Isadora Pessoa e tantas outras e outros – como Matilde Campilho, a portuguesa que morou no Rio de Janeiro, onde, entre essa cidade e Lisboa, escreveu Jóquei – com ou sem livros editados (muitos e muitas publicando em diversas revistas eletrônicas), escrevo hoje sobre a poesia de uma das poetas, também crítica e teórica, que muito me impressionam neste momento: Danielle Magalhães. Nascida em 1990, Danielle Magalhães publicou, no começo de 2016, pela coleção Megamíni, da Editora 7 Letras, seu primeiro livro, intitulado Quando o céu cair, tem poemas em várias revistas eletrônicas e textos sobre poesia e literatura em revistas, periódicos acadêmicos e livros especializados, sendo, igualmente, ao lado de Maíra Ferreira, coeditora da revista Oceânica (http://revistaoceanica.blogspot.com.br/). Seus 12 poemas, que foram publicados no dia 21 de dezembro de 2016 na revista Germina (http://www.germinaliteratura.com.br/2016/danielle_magalhaes.htm) e seguem ao fim do meu texto, incorporam alguns publicados em seu livro, outros, em revistas e outros tantos ainda completamente inéditos até o momento da referida publicação (entre estes, “terror”, “este é um animal que tira selfie”, “em casa” e “entre um cigarro e um

sanduíche”; publicados anteriormente em revistas, “um salto” e “dimensões” receberam transformações). Juntando poesia e política, política, poesia e amor, amor e poesia, tradição e renovação, pensamento e observações cotidianas, casualidades e dados enciclopédicos, coisas que passam habitualmente pela cabeça e elementos completamente inesperados, movimentos demasiadamente humanos e acontecimentos cósmicos ou pré-históricos, há um ritmo estonteante em tais poemas, determinado pela ausência de pontuação, alternância entre versos longos (de várias extensões) e curtos (até de uma palavra só), repetições de um verso ou outro ao longo de um poema, enjambements extensivos e intensivos, ritmo prosaico e contrarritmo poético, pausas ou cortes intravérsicos, poemas longos como alguns poucos poetas dos anos 90 vêm experimentando e que agora se tornam mais frequentes... Neste sentido, escrito a partir de provas de hipismo durante as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, em que valoriza estrategicamente não a vitória, mas o princípio ético da queda, em que valoriza estrategicamente não o montar, o governar, o comandar, o estar no controle, o chicote, mas o ser montado pela imprevisibilidade, o poema “um salto”, com suas alternâncias entre o percurso e os obstáculos, o galope e o desequilíbrio, a corrida, o voo e a queda, o impulso de saltar e o imprevisível de refugar, o pular e o recuar, o solo e a suspensão, o fôlego e a respiração irregular, pode ser lido também, ainda que não exclusivamente, como uma poética de um dos ritmos predominantes da poeta, um ritmo sempre da iminência. Antes de avançar na dimensão rítmica dessa poesia, para deixar entrever o vínculo entre o ritmo e o filosófico de tais poemas, para dar minimamente uma ideia de tal ética da queda, vale abordar, ainda que brevemente, o termo “queda”, sendo ele que, de alguma maneira, intitula seu livro (quando o céu cair), um dos poemas de maior importância e atravessa vários outros. A respeito do poema “quando o céu cair”, que será lido mais adiante, antecipo agora o que será reiterado oportunamente: nele, a repetição da mesma pergunta em quase todas as línguas tem o efeito contrário ao esperado, fazendo com que, quando o céu cair, todas as línguas e língua nenhuma, todas as palavras e palavra nenhuma, todos os sentidos e sentido nenhum, todas as gramáticas e gramática nenhuma, componham uma mesma experiência insólita e insensata. Mesmo na repetição incansável e babélica da pergunta, não se sabe a pergunta que é feita e ficase sempre sem pergunta e sem resposta para o que há de mais desesperador. A poesia, então, se coloca como a tradução, a cada vez, possível de tal impossibilidade de tradução das línguas, como a intradutibilidade necessária para que haja uma poética

política e ética, como uma aposta que, infinitamente singular e sempre em vias de se fazer, como o lugar prioritário dos impasses mais dramáticos que vivemos, como o acontecimento do impossível a poder aproximar as pessoas de uma escuta mais do que necessária ao que não se sabe do outro e de si, como o acolhimento da alteridade desconhecida e como sua indiscernibilidade, mesmo que incomunicável, com o outro. Em “um salto”, a queda comparece de modo factual, deixando várias ressonâncias. Como tal poema trata de provas hípicas durante as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro, para as quais houve o benefício econômico de empresários e empreiteiras contra o desprovimento de maior parte da população e do Estado, que faliu imediatamente após o evento internacional, a queda ganha conotações políticas impossíveis de não serem levadas em conta. Aqui, entretanto, não é minha intenção pensar a queda no poema como crítica aos eventos mundiais consecutivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, e sua espetacularização, o que seria, obviamente, possível de ser feito. Mas, na expectativa do salto ou no preparo para o voo, a imprevisibilidade animal (o inesperado do outro que não deixa de ser radicalmente outro) escapa à tentativa de controle, de domesticação excessiva e de sucesso do cavaleiro competitivo em busca do bronze, da prata e do ouro – os ecos econômicos da moeda se fazem presentes nas medalhas. A gerar um desequilíbrio no sistema, a queda desses cavalos, que, no refugo e na paragem, preferem não saltar, é vista como uma ética da perda ou como uma arte da desistência ou, ainda, como uma arte da resistência para a qual “não existe isso de governar/ de comandar de estar no controle/ não há chicote que adiante/ há dor se você quiser/ muita dor”. Dessa dor trazida pelo acontecimento devastador, não se sai mais montado sobre um outro, mas, na aprendizagem a que se foi levado fazer, se sai, em solidão, caminhando com as próprias pernas. A mesma queda do cavalo, dessa vez na vida pessoal da poeta quando adolescente, como escrito em “a pelo”, leva-a a assumir a inevitabilidade da queda no passado como a ausência de qualquer sustentação senão a de uma degeneração que implica na aprendizagem de uma vida vulnerável, sem rédeas nem direção, e com a incorporação de alteridades em seu corpo dito “estranho” e “forasteiro”. Se “quando o céu cair” parece ser o tempo ético e político da sobrevivência após a queda (após a imigração forçada, após o desastre olímpico e após a degeneração corporal), o paradigma para tal tempo não provém apenas dos seres humanos, para quem a queda está em algum momento por vir, mas da história de vida dos gansos de

bernaca, que, obrigados a enfrentar a morte saltando sobre o vazio de um precipício já em seus primeiros dias de existência, encontram-na imediatamente ou sobrevivem a ela. Tanto em “um salto” quanto em “salto no vazio”, a aprendizagem do quando da queda do céu provém do mundo animal, selvagem. Se o poema dos gansos é exemplar, é porque eles morrem uma primeira morte praticamente logo após seus nascimentos, para, só então, desde o acontecimento irreversível, conseguirem sobreviver. De sobrevivente a sobrevivente, a vida se dá como uma pós-morte em vida, como a resistência da primeira e decisiva experiência do acontecimento de ter de assumir, imediatamente, a vulnerabilidade do que seria o si e de todos, da qual “só então [é] possível começar o restante de sua vida”; levando os poemas de Danielle Magalhães em conta, sem a queda, sem essa assunção de nossa vulnerabilidade pessoal e coletiva, sem pensar o ser humano, de algum modo, como animal, não há possibilidade ética nem política. Voltando à dimensão rítmica, em “anticorpos”, “dimensões” e “terror” há um deslizamento temático totalmente imprevisível, que afere aos escritos um outro tipo de ritmo muito singular, sem perder, em nenhum instante, o andamento do poema, antes, lhe dando uma total renovação, um novo frescor, um rejuvenescimento como poucas vezes percebido. Se “um salto” mostra uma rítmica vertical (entre o voo e a queda) na qual se pode ficar suspenso ou suspensa, se, em outro poema da queda, “a pelo”, essa verticalidade assume uma ida “no pelo a pelo direto para/ o cerne do poema”, desta vez, nos três poemas mencionados, se tem uma rítmica horizontal de uma superfície arrepiada. Penso no skate e, ainda mais, no kitesurfe, em que se usa uma pipa (que se assemelha a um parapente e fica presa à cintura por um trapézio) na qual o vento bate, fazendo com que o kitesurfista se desloque por sua força sobre a superfície crispada da água, direcionando a prancha por uma barra que lhe permite colocar seu movimento a favor do forte fluxo do ar. Sustentado pela pipa, não há afundamento no kitesurfe e, havendo manobras ousadas de saltos, elas estão de algum modo garantidas pela não submersão, que ocorre com frequência, por exemplo, no tow in. No kitesurfe, impressiona a velocidade, a alternância dos giros, as variações de rumos sobre a superfície do mar. Como, se ainda não os leram, verão nos poemas de Danielle Magalhães, além do paradigma rítmico do salto, há neles também uma poética kitesurfista de deslizamento intensivo dos versos em superfície arrepiada ou crispada pelos ventos da vida e da poesia, nos quais a poeta se coloca encontrando direções e giros extremamente favoráveis. Pelas aberturas potenciais do que se vai escrevendo, uma improvisação

deixa os temas se fazerem, se deslocarem, deslizarem, ganharem novos coloridos, se perderem, se reencontrarem, tudo com muita densidade e complexidade, além de momentos privilegiados de leveza. Tendo um dos começos mais inusitados da poesia atual, que contrabalança esse incomum com uma sensação das mais comuns e cotidianas possíveis, “anticorpos” é um poema extremamente inesperado: começando, a partir de uma autorreflexão existencial (“tenho tentado sobreviver com alguma calma/ e bebendo bastante água”) que retorna ao longo da primeira metade do poema (“eu tento ter calma mas o melhor é ir bebendo/ água”, “às vezes respiro mais fundo/ só pra conseguir me manter na superfície”) – e que, ao fim, a calma comparece de algum modo no outro a quem ela fala (“eu respiro/ e você fala/ com alguma calma”) –, com a poeta tecendo variações, a um só tempo ásperas e ternas, divertidas e seriamente corporais, entre nós e a autonomia que o nosso corpo tem de nós, abordando, então, a vontade irrecusável de fazer xixi (efeito colateral da água que traria uma calma maior) e, daí, no décimo primeiro verso, colocando uma breve lista de coisas que aborrecem a poeta, para, em seguida, no décimo sexto verso, falar (da falta) dos anticorpos que intitulam o poema, passando a um acontecimento cósmico surpreendente (que, só depois sabemos poder se tratar – ou não – de um sonho de alguém ou, ao menos, de algo, como uma notícia possivelmente lida, que esse alguém disse à poeta), que desliza para uma notícia de jornal, que, por sua vez, flutua para a inveja que a poeta diz sentir das constelações acima da cabeça da pessoa a quem se dirige e que supostamente leu a notícia ou teve o sonho cósmico, enquanto vê a constelação de escorpião ali no céu, que, por associação, é deslocada para o próprio animal e a questão de que eles talvez se matam, voltando à notícia de jornal previamente citada, vai para um disco voador, terminando com a estranheza dos corpos (os “corpos invasores” e, como em “a pelo”, o “corpo forasteiro”), que atravessa o poema do começo ao fim estabelecendo para ele esse ritmo também estranhamente corporal, cheio de contiguidades e de invasões de assuntos, como os corpos, aparentemente forasteiros. No poema, há uma tensão insolúvel oscilante entre uma força agregadora e outra dispersiva, entre consonância e dissonância, entre via e desvio, entre continuidade e deriva, entre organização e desorganização, entre orientação e desorientação, entre centramento e descentramento, entre solução e dissolução, entre fazimento e desfazimento, entre matéria e desmaterialização, entre forma e informe, entre a linha do verso e sua (linha de) fuga, que, distendendo-o em sua mobilidade, o faz alcançar um equilíbrio

desequilibrado

em

constante

devir.

Circulando

pela

improvável

movimentação associativa a justapor o heterogêneo e a afastar o subordinativo, que submete hierarquicamente uma instância qualquer a outra, os afetos e pensamentos nos levam a uma constante situação de surpresa. Com perícia rítmica e temática, “anticorpos” é um desses poemas inteiramente assinados, singulares, cujas sintaxe e construção, resistindo a qualquer fixidez, dançam, sapateando por entre as palavras. Seja no que chamei de uma rítmica vertical, seja no que chamei de uma rítmica horizontal, nessas duas estratégias de movimentações poemáticas, os ritmos se querem corporais, havendo sempre o que, do corpo, é dado ao poema e o que o poema dá ao corpo. Desta maneira, tanto no rítmico quanto no semântico, os poemas de Danielle Magalhães realizam, fazendo-as se esbarrarem e se misturarem, tensões e conjunções de duas intensidades aparentemente contrárias da poesia, sem abrir mão de nenhuma delas. Desde a Ilíada ou Odisseia, passando pelo Édipo Rei ou pelas tragédias de modo geral, atravessando a Divina Comédia, Os Lusíadas, Hamlet e chegando a muitos poemas do século XX, como, só para citar um exemplo próximo de nós, “A máquina do mundo”, de Drummond, uma parte significativa da poesia de todos os tempos talvez possa ser caracterizada como uma maneira de dar profundidade, densidade, condensação, espessura (ou algum nome correlativo a estes) ao que, a cada momento, se entende por vida – quando Nietzsche mencionou pela primeira vez o “eterno retorno” em seus livros, tendo nomeado o aforismo que o apresenta de “o peso mais pesado”, é bem possível que, para além do que então criava, ele estivesse sinalizando algo que a poesia, o pensamento filosófico e seus híbridos na maior parte das vezes quiseram ser: um peso mais pesado do que os outros a dar uma medida, como nenhuma outra, para a vida. Ao mesmo tempo em que acata, com força, tal peso do que há para nós de mais necessário na tradição, e sua consequente queda, a poeta resguarda, em sua extrema singularidade, com leveza e perícia, algo também de decisivo ao nosso tempo, a retirada do peso, da profundidade, da densidade, da condensação e da espessura da poesia e da vida, sem perder nenhuma de suas dimensões. Em tudo diferente de certa poesia atual cuja intenção é, na retirada (quase) completa do peso, a afirmação, ainda que irônica, de uma banalidade e de uma coloquialidade que supostamente mais se afinariam com nosso tempo, os vetores de “um salto” e de “anticorpos”, interdependentes e complementares, mostram que, naquilo que nos é mais necessário, extraindo leveza da profundidade e esta daquela, esta poesia só pode ser leve por profundidade e profunda por leveza, só pode ser superficial por verticalidade e vertical por superficialidade.

Se, com 26 anos, implicitamente, a poeta lembra, homenageando-os e as homenageando, Amy Winehouse, Curt Cobain, Jim Morrinson, Janis Joplin, Jimi Hendrix e Brian Jones, que morreram todos “à sombra árida dos 27”, é porque “a vida é heavier than heaven” e “ainda sustento algum afeto porque ainda há heavy metal/ no século XXI baby”. O heavy metal lhe dá sustentação afetiva muito menos por um modo de composição da escrita (que em nada se parece com letra de música) do que por um gesto: o de uma tentativa radical de crítica ou de frenagem do sistema econômico, prioritariamente competitivo, controlador, explorador, empresarial, governante e objetificador do outro pelo poder autoritário exercido sobre ele, levando a poeta a se colocar do lado do afeto dos que são ou se descobrem social e economicamente desajustados, naufragando na morte precoce ou em outras quedas e experimentando, na busca de uma diferença em vida, tanto o desencaixe quanto a alternativa pela criação e por um saber de quem, desde sempre, traz o outro em seu corpo e em sua vida. Será possível a poesia, em seu estímulo às diferenças, desviar alguns jovens do suicídio aos 27 e outros da plena adesão inquestionada ao sistema econômico predador? O heavy metal se refere, entretanto, igualmente ao metal pesado dos 6 parafusos de titânio que a poeta porta em sua coluna por conta da queda de cavalo durante um salto com obstáculo em sua adolescência, levando seu corpo protético a ser diferente da Torre Eiffel: “a Torre Eiffel é que é de ferro/ eu sou de titânio e osso”. A resistência, a queda e o salto, o salto, a queda, a resistência, o voo e a suspensão, o corpo com suas alteridades constitutivas e as próteses que o mantêm enquanto “corpo estranho”, “corpo forasteiro”. Sejam, tais alteridades constitutivas, pessoas (aparentemente bem sucedidas ou desprovidas de qualquer possibilidade econômica e política), animais, vírus, líquidos, elementos químicos, parafusos etc., essa poesia, que reconhece, acolhendo-a, a intrusão integradora, nos diz incansavelmente que “noventa por cento do nosso corpo é constituído de corpos/ invasores/ e água/ somos todos invadidos/ por outros corpos estamos todos entre/ a água e outros corpos”, que “após a morte não precisamos de mais tempo/ para saber que sobrevivemos ainda/ com a poesia/ é nela que convivemos intimamente/ com corpos estranhos”. Danielle Magalhães trata da elaboração e do asseguramento de uma ética e de uma política poética. Desde o primeiro poema de quando o céu cair, que também abre a excepcional recolha recém-publicada pela revista Germina, isto está por todos os lugares de sua poesia. “quando o céu cair” é um poema a partir de um dos pontos mais dramáticos do mundo que vivemos, o das imigrações forçadas motivadas por guerras.

Segundo a ONU, apenas em 2015, foram 60 milhões de imigrantes forçados em todo o mundo e 2016 foi o ano com o maior número de imigrantes morrendo no mediterrâneo em suas tentativas de fuga, digo, de sobrevivência. Antológico, o poema, agora homônimo ao título do livro de estreia – e nele publicado como “Mais um, menos 5.170 ou mais” –, começa na fase final do inverno em Berlim, realizando-se na continuidade (a ligar as duas cidades) entre o forte azul invernal do céu de Berlim e o belo azul primaveril do céu do Rio de Janeiro que até parece dar sentido à vida, realizando-se na contradição curiosa entre o forte azul invernal do céu de Berlim e a temperatura fria da cidade, realizando-se, então, e sobretudo, na contradição entre o forte azul invernal do céu de Berlim e o encontro que a poeta teve então com mulheres sírias, na contradição entre o belo azul primaveril do céu do Rio de Janeiro e as mortes de imigrantes sírios, na contradição entre o belo azul primaveril do céu do Rio de Janeiro e a morte de Alan Kurdi, o menino sírio de três anos de idade, no dia 2 de setembro de 2015, em naufrágio de um bote que levava refugiados da Turquia para a Grécia, cuja fotografia circulou por jornais e rede sociais de todo o mundo, chocando e comovendo milhões de pessoas por todos os continentes. Há uma contradição que perpassa todas as anteriores: a entre os céus azuis a aparentemente darem calor, beleza e sentido à vida e a insensatez das guerras com consequências devastadoras e insuportavelmente traumáticas. Como isso é construído no poema? Como o poema chega também à sua insensatez? Como a insensatez do poema se equipara ao mais insólito da vida das imigrantes que ele segue? Como o poema, em seu movimento de alteridade, se torna, ele mesmo, também imigrante, insensato e insólito? Como o poema se mostra despatriado? É a língua da poesia exemplarmente apátrida? Eis um dos gestos políticos intrínsecos ao poema: escrever não é apenas criar, então, uma língua estrangeira em sua própria língua, mas, se é assim, é tão somente porque escrever é não ter língua alguma para escrever e, ainda, deste modo, escrever em toda e qualquer língua na impossibilidade de ter a disponibilidade de uma língua qualquer na qual se escreveria ou de um sentido qualquer que se estabeleceria e se comunicaria. Colocando-se a língua da poesia indisponível para a escrita, a poesia é a ideia de cada uma e de todas as línguas, a ideia do que cada uma das línguas e todas elas podem dizer. Em seu contexto já explicitado, no lado ocidental de Berlim, no encontro casual em uma rua qualquer com mulheres sírias que pediam qualquer coisa indeterminada a quem passava, ao sentar no banco de uma praça, a poeta é abordada por uma dessas

mulheres, que lê para ela, em um papel, repetida e ininterruptamente, a mesma pergunta em diversas línguas, inclusive em português, sem se fazer compreender pela poeta estupefata. Apesar de estarem em Berlim por motivos muito distintos, tanto a poeta quanto as mulheres sírias estão, como tais poemas, em deslocamentos, fora de seus países. E, como se já não bastasse tudo o que está em jogo nesse poema, chega mais um ponto intensivo na indiscernibilidade entre poesia, vida, despatriamento, ética e política, sinalizando o que se pode entender pelo que acontece “quando o céu cair” que, tendo intitulado o livro, passou a intitular também esse poema, sinalizando que a queda do céu se dá mesmo quando ele é azul: a repetição da mesma pergunta em quase todas as línguas tem o efeito contrário ao esperado, fazendo com que, quando o céu cair, todas as línguas e língua nenhuma, todas as palavras e palavra nenhuma, todos os sentidos e sentido nenhum, todas as gramáticas e gramática nenhuma, componham uma mesma experiência insólita e insensata. Mesmo na repetição incansável e babélica da pergunta, não se sabe a pergunta que é feita e fica-se sempre sem pergunta e sem resposta para o que há de mais desesperador. O poema, então, se coloca como a tradução, a cada vez, possível de tal impossibilidade de tradução das línguas, como a intradutibilidade necessária para que haja uma poética política e ética, como uma aposta que, infinitamente singular e sempre em vias de se fazer, como o lugar prioritário dos impasses mais dramáticos que vivemos, como o acontecimento do impossível a poder aproximar as pessoas de uma escuta mais do que necessária ao que não se sabe do outro e de si, como o acolhimento da alteridade desconhecida e como sua indiscernibilidade, mesmo que incomunicável, com o outro. Diante do sírio Alan Kurdi ou diante do nordestino Jadson Pereira mortos nas areias de praias (também este último “estendido na areia como tudo que cai/ e fica no chão o corpo do jadson morto na areia abre uma dimensão/ apenas um nordestino morto quem seríamos nós”, reafirma “dimensões”, e sabe-se, por “terror”, que “um massacre ainda cai sobre nós”, que, seguindo as catástrofes e as sobrevidas e sobrevivências após elas, “ando pensando que o último asteroide/ aquele supostamente responsável pela extinção/ dos dinossauros caiu aproximadamente/ há 66 milhões de anos), diante, em todo caso, “dessa política de merda” (como escreve em outro poema) que nos faz gritar, gerada pela macro ou pela microtirania sobre os outros e seus assassinatos e descasos para com eles, contra o sentido absoluto e aniquilador que se torna ato efetivo, deixar sempre a mesma pergunta ininteligível sem resposta em todas as línguas e em todos os poemas, permitir-se a um encontro anterior mesmo às palavras, retomar essa insensatez,

testemunhar o despatriamento, convir ao outro, quem quer que seja esse outro, assentir à vulnerabilidade, afirmar quem extrapola os “limites/ do instinto de sobrevivência” em “táticas de sobrevivência mais extremas”, sustentar as degenerações precoces, lidar com as ausências de saídas, seguir sem rédeas, dançar flutuando ou plainando no precipício, assumir fragilidades e precariedades, estar de mãos dadas com os fracassados, deixar pulsar também dentro do que seria o si a vida clandestina e periférica, empatizar-se com “os rostos sem/ rosto” e com os anônimos de nosso tempo, eis o que, de dentro desse espanto, desse susto, desse sobressalto, dessa suspensão, faz a poesia de Danielle Magalhães, neste momento em que o “animal que tira selfie/ [...] cumpre o seu destino/ político descumprindo/ o seu suposto destino/ político ainda não inventado”: um elogio ético e político dos que, sendo obrigados a – quase – desistir, se mantêm consentidamente na mais total suspensão (“na poesia porém/ melhor é a suspensão”, “é no assombro que nos vemos/ fora de nós mesmos suspensos”). Ver fora de nós e, ainda mais, ver o outro como outro e trazê-lo em nós é a dimensão política mais necessária, especialmente neste momento do predomínio d’“este animal que tira selfie” em que, como seus antecessores, mas de maneira ainda mais exacerbada, ele só vê “o fora desde dentro”: trata-se, então, na poesia, nesta poesia política e ética, de pensar que “o político deveria ser o outro desde/ o outro”. Neste ponto, em tal poesia, a política pode encontrar o amor enquanto abertura mesma desde o outro e para o outro ou, caso isso não aconteça ou deixe de acontecer em uma relação, desencontrá-lo. Há três poemas, “em casa”, “entre um cigarro e um sanduíche” e “saída”, que abordam um relacionamento amoroso, em que isto está colocado. Neles, o que demarca um abismo intransponível entre os pares a gerar a desistência do encontro amoroso é exatamente o fato de uma das pessoas trazer em seu corpo, de modo demasiadamente autossuficiente, sem estar lançada num fora de si ou na(s) alteridade(s) incorporada(s), “todos os seus anticorpos todos que eu nunca tive”, ou seja, o fato de, desse jeito, se ser capaz de “viver sem alguém”, viver dentro da segurança de uma autonomia pessoal a não permitir que seus restos fiquem espalhados pelo mundo nem, na perdição, a construção de um corpo amoroso e político permeável e vulnerável, com poucos anticorpos a possibilitarem o recebimento do outro, necessariamente intrusivo, como seu constitutivo, formando, no amor, como na política, um “corpo estranho”, um “corpo forasteiro”, um corpo a acolher uma intrusão que se quer sempre amorosa e política. Se, antes, eu falava de uma ética ou de uma arte da desistência como a de uma resistência à subtração do outro, agora, a desistência se dá pela impossibilidade do

outro, pela impossibilidade de o outro, acolhendo-o, se abrir para receber, dessa vez, quem seria seu outro, quem seria o outro de si. A “saída” amorosa se dá quando “eu te encontro/ no mesmo lugar em que eu também corro perigo”, quando “você aconchega sua solidão na minha rumo à/ próxima curva”, quando “já te tenho selvagem em todos os meus cantos” e, só assim, “às vezes a vida fica boa ainda bem/ você veio e me mostrou/ a varanda é a porta de entrada”. Garantindo o estranho, o forasteiro e a alteridade no corpo, a baixa imunidade de se possuir poucos anticorpos está, de algum modo, atrelada ao começo do pensamento da poesia, quando alguém que a representa chega ao mesmo tempo epidemicamente apresentando-se fora de si: sendo a poesia uma abertura aos vírus da alteridade ou do fora, desde o Íon, de Platão, ela chega ao meio do povo ou, em nosso tempo, a quem quer que seja, levando esses mesmos vírus heterogêneos a contaminar as pessoas, ampliando-as e as levando aonde, sem a poesia, elas jamais iriam. Em Danielle Magalhães, em dias de terror, guerras, violências, massacres, barbáries, extermínios e extinções, a urgência da poesia a, sobrevivente a todos esses horrores, encampar toda e qualquer alteridade, a urgência da poesia, como dito e repetido no impressionante e mais do que necessário poema intitulado “terror”, “numa aporia incurável em que não distinguimos mais/ eles de nós mesmos”, a urgência “da possibilidade/ de se dedicar/ todas as horas da vida/ à poesia/ e gostar dessa possibilidade é gostar/ de se dedicar/ tão somente/ ao outro”, a urgência de que “é possível amar/ diante do terror”, a urgência de que “nestes últimos tempos/ amar é se dedicar/ ao que não queremos preso/ nas mãos o coração eis o terror/ quando amor/ e terror/ se entrelaçam/ estamos falando daquilo que há de mais frágil/ e vulnerável e precário/ sabemos que ir ao amor/ como ir aos escombros/ do terror é ir sabendo da queda/ irreparável muitas vezes incurável”, a urgência ética e política de uma poesia e de uma poeta que, como escrito em “dimensões”, tornam “o amor nesses tempos como uma forma de/ resistência”. Se, aqui, indiscerníveis, a alteridade, o amor, a queda, a vulnerabilidade, a ida aos escombros e a poesia são uma “forma de resistência”, pode-se lembrar o que Silvina Rodrigues Lopes, no ensaio “Marcas do desespero”, do livro Literatura, defesa do atrito (Editora Chão da Feira, 2012), privilegiou no poema “Rhétorique”, de Francis Ponge: “o poema ensina a resistir”. A teórica portuguesa acrescenta que “com outra formulação poderíamos dizer que ‘o poema ensina a cair’, ensina a viver, que é sempre viver de acordo com a nossa finitude: viver as múltiplas quedas que damos no mundo e que nos abrem seus abismos, as suas perdas de sentidos, que abrem para o que no

mundo espera, sem linguagem ainda, que o digamos. Porque resistir às falas ‘é voltar-se para as coisas [e acrescento – para as pessoas] – na sua mudez, na linguagem que as diz – é deixar-se (fazer-se) surpreender”. E se, no poema “terror”, sabemos que “na iminência da mesma queda não há saída”, sabemos igualmente que “tombamos inevitavelmente como quem cai/ apaixonado/ cair brusca ou brandamente é apenas uma questão de tempo/ para se ver caindo no real o terror/ de amar é o medo de tombar/ não há salvação enquanto a Terra não para/ enquanto o asteroide não cai enquanto a extinção acontece/ em todas as horas da vida alguém explode o tempo/ com um meio de vida e como um modo de amar/ isso sim é uma máquina de guerra”.

Como indicado no corpo do texto, os poemas abaixo foram publicados, no dia 21

de

dezembro

de

2016,

na

revista

(http://www.germinaliteratura.com.br/2016/danielle_magalhaes.htm)

Germina

quando o céu cair em berlim eu passava grande parte do tempo olhando o céu muito azul bem no final do inverno fazia muito frio e eu achava engraçado porque parecia que o céu contradizia a temperatura como pode tudo ficar tão bonito com uma temperatura tão baixa em berlim eu fiquei no lado oriental mas um dia fui ao lado ocidental em uma rua onde havia muitas mulheres sírias pedindo alguma coisa para qualquer um que passava eu sentei em um banco de uma praça e uma das mulheres percebeu talvez ela não é alemã e veio falar comigo em inglês perguntando se eu sabia falar inglês? eu disse mais ou menos o que na verdade foi resposta nenhuma então ela pegou um papelzinho e começou a ler a mesma pergunta em várias línguas línguas que eu nem sabia que existiam sempre a mesma pergunta e eu fiquei sem reação não consegui parar de olhar para o papelzinho com a mesma pergunta até em português ela lia uma por uma atrás da outra sem interrupção até que ela terminou de ler ela levantou os olhos para a minha cara e antes de se virar e procurar outro qualquer alguém ela me olhou por um segundo e meio frustrada meio irritada como quem não aguenta mais repetir sempre a mesma coisa em línguas diferentes para todo mundo the whole world que parece falar língua nenhuma sem entender palavra de nenhuma língua sequer

nem da sua que parece nunca ter sido sua ela fala para ninguém ela fala para ninguém como eu sem expressão como alguém que não estava entendendo como se eu não falasse mas é ela que fala todas as línguas vêm dela todas as línguas são todas elas concentradas em uma pergunta que se repete em ouvidos outros em rostos sem rostos sempre sem resposta o céu muito azul estava no rio anteontem antes de ontem e antes e antes no mesmo momento na mesma hora os imigrantes sírios estão morrendo entre a ásia e a europa os imigrantes entre a áfrica e a europa imigrantes entre a américa e a américa o mundo parece que fica todo tão bonito e a vida parece que faz tanto sentido quando o céu muito azul do início da primavera cai sobre o rio um dia antes da foto do menino sírio morto se espalhar pelo mundo que desde um dia antes e antes parece que foi sempre ontem e nunca hoje e sempre esse céu sobre berlim ou aqui aqui ou lá paira na atmosfera do universo contradizendo a temperatura do mundo e deixando sempre a mesma pergunta sem resposta

em todas as línguas

anticorpos tenho tentado sobreviver com alguma calma e bebendo bastante água sempre tô apertada com vontade de fazer xixi e aprendi que esse músculo que a gente contrai quando a gente sente vontade de fazer xixi se chama assoalho pélvico deve ser meu músculo mais forte aquele lá embaixo e que normalmente a gente nem sente só quando a gente fica apertado no ônibus sinto que fortaleço tanto meu assoalho pélvico que um dia ele vai acabar estourando muitas coisas me aborrecem telefone tocando essa política de merda esse trânsito me aborrecem enormemente eu tento ter calma mas o melhor é ir bebendo água faz tempo meus anticorpos decidiram usar a tática da terra arrasada no meu corpo vira e mexe eu preciso tomar vacina pra essa coisa chamada imunidade a gente é tão vulnerável, né às vezes respiro mais fundo só pra conseguir me manter na superfície porque se afogar no raso é o fim da picada é o fim algo vai acontecer no universo iremos ver um planeta maior do que a visão que temos da lua não sei o que aconteceria mas isso mudaria todo o eixo gravitacional caramba eu queria ver fico aqui tentando encontrar mas só vejo notícias de marte seus filhos poderão viver lá e sobreviver é o fim da picada enquanto eu procurava o tal planeta que você disse encontrei no brasil 247 o jornal online dizia marte estará completamente colonizado em 2027 afinal a exploração está no nosso DNA veja é o fim mas ainda tô tentando achar uma notícia falsa dizendo vamos ver um planeta e essa visão será maior que a visão que temos da lua e isso mudará todo o eixo não se inventa uma notícia dessa todo dia

ou vai ver se inventa vai ver essa invenção é manifestação do desejo de alguém que quer muito ver esse planeta e aí surge essa criação de uma notícia que nunca existiu melhor que você tenha inventado acho que vou deixar de procurar essa notícia vou deixar de procurar até uma notícia que seja falsa vai ver foi um sonho melhor que você tenha sonhado um sonho faz isso com as pessoas eu tenho inveja das constelações que sobrevoam a sua cabeça e se ali em cima não é um escorpião passou a ser porque você disse e eu passei a ver já ouvi dizer que os escorpiões se matam quando estão sob perigo tão forte que sabem que vão morrer mas isso é mentira já procurei saber e vi que isso é falso o escorpião não se suicida os músculos dele vão se contraindo pra gente que tá vendo de fora parece que ele está enfiando o ferrão em si mesmo mas são as contrações dos músculos dele tentando sobreviver tudo é uma ilusão de ótica pra quem está vendo tudo de fora pra quem não é escorpião veja só o suicídio as pessoas e o modo como elas olham a ilusão de ótica é que é ilusão eu me recuso a ler a notícia até o fim eu me recuso a morar em marte hoje amanhã ou em 2027 não a exploração não está no nosso DNA meus filhos não poderão viver lá porque eu nem sei se quero ter filhos no momento eu só queria ver o mundo inteiro se possível dentro de um disco voador mas só um pouquinho sem demorar muito há nervos falhando ao anúncio de sobrevida em 2017 estaremos ainda tentando encontrar corpos estranhos na terra tentando encontrar corpos estranhos aos corpos na terra tentando encontrar anticorpos não a exploração não está no nosso DNA mas noventa por cento do nosso corpo é constituído de corpos invasores

e água somos todos invadidos por outros corpos estamos todos entre a água e outros corpos eu respiro e você fala com alguma calma enquanto extrapolo limites do instinto de sobrevivência retendo no corpo um pulso que bate na pélvis a realidade é sempre o buraco mais baixo quando a gente tá apertado de vontade o buraco é sempre mais embaixo quando acontece o encontro imediato com o outro corpo retendo no corpo aquilo que o outro insiste em expulsar

um salto hoje ouvi alguém dizer enquanto eu caminhava alguém dizia hoje muitos cavalos desviaram ou foram de encontro com os obstáculos nos percursos nas provas de hipismo provocando a queda ou quase muitos cavaleiros caíram ou quase caíram se desequilibrando perdendo o ritmo e o tempo e às vezes não concluindo o percurso eu escutava alguns cavalos também caíram ao irem de encontro com o obstáculo alguns cavalos caíram feio foram de encontro com o obstáculo enquanto eu caminhava alguém que acompanhava os jogos dizia alguns cavaleiros caíram feio ou quase caíram mas levantaram e saíram andando parece que não se machucaram mas ficaram de fora perderam o percurso o ritmo o tempo enquanto eu caminhava enquanto eu continuava a caminhar fiquei pensando nas vezes em que se entra errado num salto na hora do salto o casco do cavalo pode bater na vara antes do salto o cara pode errar a mão na rédea pode desequilibrar mexer demais a mão na rédea atrapalhando a direção puxando a boca do cavalo a mão na rédea como um soco machucando a boca do animal entrando errado no salto antes do salto dando a batida errada do salto entre um salto e outro um obstáculo e outro a distância pode ser curta demais pode ter uma ligeira curva uma ligeira manobra que dificulta tudo um espaço curto para o cavalo esticar um espaço insuficiente para deixar o cavalo esticar o mínimo necessário para saltar entre um obstáculo e outro muitas barreiras existem no percurso obstáculos previsíveis que se tornam na hora

impassíveis obstáculos imprevisíveis que na hora são contornados mas às vezes não obstáculos imprevisíveis como a vontade de não saltar como um impulso de parar na frente do obstáculo logo antes do salto o impulso imprevisível muitas vezes por um erro do cavaleiro ou da amazona mas nem sempre às vezes pela simples imprevisibilidade do animal pela simples constatação de que um animal é um animal que pode saltar mas também na hora H pode não saltar aí não existe isso de governar de comandar de estar no controle não há chicote que adiante há dor se você quiser muita dor mas não há estar em cima de um animal se você não sabe que nisso não há nada de controle se você não sabe que montar é ser montado pelo animal também é ser montado pela imprevisibilidade do animal também não há dor que adiante para impor uma vontade simplesmente há momentos em que o animal escolhe parar recuar não saltar o animal escolhe desviar logo antes do salto de cara pro obstáculo na hora H o animal escolhe enquanto eu caminhava eu fiquei pensando a maioria dos envolvidos neste percurso simplesmente continua antes ou depois da queda a maioria vai em direção ao salto e simplesmente continua no colapso na colisão no choque antes ou depois da queda a maioria levanta e sai andando como se nada tivesse acontecido sabe como é saltar olhando por cima da linha do horizonte saltar olhando por cima do obstáculo manter o olhar alto em direção ao céu o olhar fixo num objeto distante saltar com as mãos nas rédeas os pés bem firmes nos estribos com os calcanhares para baixo

realizar o salto com o olhar fixo acima do obstáculo saltar e depois saltar olhando por cima eu nunca entendi muito bem o que é gostar de competição eu já tentei mas eu sempre fui muito ruim nisso hoje eu simplesmente decidi desistir de achar que eu tenho que gostar de competir enquanto caminho fico pensando na desistência dos cavalos e na insistência de quem está no controle das bocas deles com capacete colete e outros acessórios eles sabem cair com proteção é bom que tenham proteção porque os cavalos podem desistir logo em cima eles podem resistir simplesmente são tão frágeis são capazes de morrer de cólica são tão frágeis que se incomodam quando sentem cosquinha sim eles sentem cosquinha todos os cavaleiros ficaram bem depois da queda é bom que tenham proteção antes da queda ainda gosto da ideia de os cavalos desistirem de saltar os percursos nas olimpíadas desistirem de saltar os obstáculos hoje aqui no rio de janeiro se deparar cara a cara com eles e na hora H desviar recuar por um breve momento objetos intransponíveis cara a cara com eles depois de caminhar eu voltei pro jóquei mas antes eu quis escutar não é cair: é voar com estilo depois de caminhar e antes de ir pro jóquei o livro da matilde campilho eu quis escutar o vídeo que havia ficado de fora do jóquei depois de não encontrar o poema por escrito só fiquei escutando e guardando de cor o título e pensando na queda

em muitas quedas e em muitas formas de cair não é cair: é voar com estilo há os que caem com estilo talvez a matilde não caia com estilo talvez ela voe talvez não haja salto no jóquei talvez seja voo talvez salto queda e voo sejam três coisas diferentes mas às vezes a diferença é tão sutil às vezes é tão sutil como a passagem de um estágio para o outro às vezes nem é passagem não é cair: é voar com estilo seria um voo que ficou de fora dos saltos do jóquei eu me pergunto os saltos no jóquei não poderiam ser voos os voos no jóquei não poderiam ser uma espécie de queda enquanto caminho eu me pergunto os saltos quando são bonitos assim são voos e não quedas eu penso nas quedas enquanto caminho hoje há os que caem com estilo levantam e saem andando normalmente eles sabem cair e têm alguma proteção não há cair sem estilo na poesia porém melhor é a suspensão no salto sobrevoar no jóquei haveria um voar com estilo não sei se com estilo não sei se o antes do salto não poderia ser uma espécie de plainar também um momento em suspensão sem estilo o espanto bem na hora do salto o coração sobressaltado logo antes do salto o cavalo recua e olha você de repente no chão bem na iminência do salto

logo antes do salto um movimento de parar de repente uma queda olha você na terra na iminência do salto você então demora um pouco a entender e sem entender ainda sob efeito do susto ainda espantado ainda sem saber se todas as partes do corpo estão inteiras antes de continuar você continua um pouco sem entender você se vê de repente no chão depois da queda antes de continuar você para um pouco e olha de longe o animal até que ele volte até que ele queira voltar e enquanto isso há suas mãos e seus pés e suas costas suas costelas e seus braços e seus dedos e sua coluna e seus cotovelos podem estar arranhados seus antebraços podem estar sujos de terra até o seu rosto pode ter ficado um pouco sujo e você pode ter inclusive comido um pouco de terra seus ombros podem estar um pouco doloridos seus joelhos podem ter ficado machucados os olhos embaçados e o coração em sobressaltos do susto os pulmões um pouco sem fôlego a respiração meio irregular neste momento suas mãos fora das rédeas estão fazendo festa no pescoço do animal as mãos que escolheram ficar suspensas neste momento fora do corpo estão fazendo festa em suspensão as mãos que não estão nesta hora por um breve momento o céu se lança em queda livre escuta este salto é o maior salto que uma queda poderia manter como um voo enquanto eles olham em direção ao céu caindo com estilo

o olhar alto e fixo em um objeto distante os saltos no jóquei caem como voos imprevistos sem estilo ensaiam a queda no jóquei e fora do jóquei também em não é cair: é voar com estilo não há voar com estilo e há cair dentro e fora do jóquei os saltos ensaiam os voos a festa os saltos improvisam a queda sem o olhar fixo e alto escuta enquanto eu caminho alguém fala e eu respiro sem o olhar fixo escuta enquanto eu continuo eu não sei mas eu acho que esse é o maior salto antes do salto um movimento de parar antes um movimento de mover o maior salto que uma queda poderia manter como um voo sem estilo

salto no vazio dar um salto um salto do alto dos escarpados e cair em um salto no vazio de mais de cento e vinte metros dois dias após a quebra total após a eclosão da casca nas primeiras horas de vida um convite a saltar no precipício o ninho em paredes extremamente íngremes onde raposas nem ursos polares alcançam para que possam tirar a vida longe tão longe até mesmo da grama que serve de alimento o alimento não vem dos pais os pais também caíram um dia sobreviveram à queda todos são incapazes de voar agora em um grito lá embaixo um chamado agora incitam a saltar em uma das táticas de sobrevivência mais extremas aos dois dias de vida nas primeiras horas após a eclosão um salto desde no alto dos escarpados cair em um salto de mais de cento e vinte metros mais de uma porrada contra as rochas o corpo ainda vulnerável colidindo em queda livre contra as rochas com o fim de atingir o solo para só então ser possível começar o restante de sua vida a vida do gansinho filhote de bernaca

a pelo tenho 6 parafusos na coluna sustento uma degeneração precoce e uma queda que poderia ter sido evitada mas na vida caímos inevitavelmente como uma degeneração sem saída mais cedo ou mais tarde viramos pó em direção ao centro da terra sigo com corpos estranhos que me mantêm hoje sem rédeas e se um dia já tive direção não sei se um dia já tive sustentação não sei quando eu tinha 16 minha coluna já soprava 60 parafinas em brasa e debochava do pó das eras geológicas das Idades da gravidade que desmontava mas que ainda deixava parafusos a Torre Eiffel é que é de ferro eu sou de titânio e osso e sobrevivi às voltas do século XX à cartilagem e fôlego e ainda sustento algum afeto porque ainda há heavy metal no século XXI baby a vida é heavier than heaven tudo é baixo grave e só há fricção em cada passada minha um segundo pesa como toda decisão e se até o pelo pesa e cai a diferença é uma curva em peso o único caminho encurva a diferença no pelo apenas uma letra aponta para além da letra um corpo forasteiro em peso um metal arranha o corpo e vai próximo ao chão e além do que seria o paraíso o início da queda o princípio nada além do chão a gravidade de um apelo vamos dançar no precipício baby vamos em peso a pelo no pelo a pé não é que esse mundo é grande mesmo no sustento que pisa em falso eu já vou chegando foram tantos que se foram aos 27 vamos diferente eu já vou também chegando à sombra árida dos 27

nervos que falham ao anúncio de sobrevida em 2017 fisgadas elétricas britadeiras amplificadas vamos abrir flancos vamos a pelo abrir flancos no peso vamos direto para o chão fazer o céu cair precipitando a curva do peso para além do peso vamos no pelo a pelo direto para o cerne do poema o caminho deve ser mesmo insustentável sem volta nem rédeas onde a vida é grave e inevitável é a queda

em casa há um abismo entre o que eu queria falar e o meu modo de quebrar o silêncio há uma ânsia de desistir de falar desisto de procurar sua voz onde está seu pensamento quando você está a menos de um palmo de distância um abismo minha voz e o que treme aqui quantas quebras há em suas mãos quantas línguas partidas quantas terras arrasadas eu vou catando as sobras dos seus desastres por aí por quanto tempo a vida eu me pergunto por quanto tempo a vida é viver tentando em busca à espera quem foi que te fez assim por que eu sinto todos os seus anticorpos todos que eu nunca tive a resistência dos seus membros a postos se virando sozinhos pela cidade enquanto todas as suas vísceras foram deixadas em casa onde você esqueceu de falar não há nenhuma voz que te lança no mundo você não está em nenhum lugar por onde você pisa você continua em casa nenhuma voz te lança no mundo você com seu mapa sempre sabe por onde ir suas pernas nunca estão perdidas sempre sabem como voltar não há resto nenhum seu pelo mundo há todas as minhas partes entre o que eu queria falar e o meu modo de quebrar há um abismo em que caí tentando procurar suas partes e não acho acho que desisto morrerei em casa escutando o silêncio

entre um cigarro e um sanduíche você não precisa de mais ninguém além de mim para ensinar o que é ter cansaço de pessoas demasiadamente cansadas tão desiludidas que vivem como se se bastassem não como se vivessem morrendo de medo mas como se não vivessem mais simplesmente já sem medo sem dor sem gozo a vida anestesiada você já sabe mesmo sofrer sem dar sinal eu vou me esforçando mas eu não sei nem quero todo meu esforço não é porque eu peço para você fazer o sanduíche ou porque você sabe enrolar melhor os cigarros não é aí que estou em suas mãos há algo mais que a gente mostra olha minhas mãos não alcançam quase nada nesta casa tudo é inalcançável demais e eu continuo vivendo como se suas mãos fossem substituir as minhas permanentemente quando para mim seria apenas temporário como o espaço que eu não ocupo nesta casa os armários as paredes os cantos todos respiram sem mim quanto ar cabe em seu pulmão um dia você me ensinou a respirar profunda e pausadamente mas o pulmão cheio não cabe na sede só resta o cansaço pelo esforço de tentar não ir embora sempre quando me vejo em suas mãos abertas demais quando preciso dos seus dedos para enrolar os cigarros quantos dedos cabem entre um cigarro e um sanduíche quando preciso de suas mãos para fazer sanduíches de suas mãos para tirar as roupas do varal de suas mãos demasiadamente cansadas de estarem vazias sustentando só o seu corpo autossuficiente por todos os lados você e um certo espanto pelo silêncio de alguém que é capaz de viver sem ninguém você e um certo espanto que um dia eu tive em minhas mãos hoje só meus restos de cansaço entre um cigarro e um sanduíche restos que suas mãos também não alcançam

saída ainda bem que você veio bem no risco das palavras nos lábios eu te encontro no mesmo lugar em que eu também corro perigo entre minha boca e seu ouvido minha voz atropela você aconchega sua solidão na minha rumo à próxima curva eu vou no pedal logo atrás do seu à altura do seu olhar eu vou sentir o cheiro da rua com a virilha equilibrada sobre os pés na entrada já temos um cocar e balões vermelhos subindo pelas paredes já te tenho selvagem em todos os meus cantos às vezes a vida fica boa ainda bem você veio e me mostrou a varanda é a porta de entrada

dimensões uma dimensão totalmente nova de forma coordenada disseram a quem a poesia lança a voz há uma interrogação aqui um abismo na fratura há uma infinidade na outra face da linguagem no mutismo de uma língua sem palavras o vazio há quem diz dar vida ao vazio como quem dá forma ao vazio para ser possível sobreviver mas um vazio exposto ao qual não se dá contorno não se sabe como o lápis não sustenta apenas um gesto assustadiço de quem não consegue de quem já não pode de quem não é de uma dimensão totalmente nova as agressões em série disseram foi de uma forma coordenada cerca de mil os fogos cruzavam o céu frio de colônia anunciando este novo ano quando uma onda de agressões avançou contra os corpos de mulheres propagando uma nova dimensão em toda nova dimensão há um morar sem palavras na língua apenas um acenar da impossibilidade de falar da impossibilidade eu gostaria de ter começado com o mundo inteiro que vai ao meu encontro no momento em que uma vida clandestina pulsa dentro de mim no momento em que formas e cores invadem o teto do quarto conforme o vento suga a cortina um caminho inventado que se move em baixa rotação o amor nesses tempos como uma forma de resistência o começo de tudo uma dimensão sempre mínima posição periférica nas coordenadas do mundo transitam os corpos que escorrem no dia a dia em todas as direções os corpos vão sob o sol na areia no hemisfério sul todos os outros sob o sol estendido na areia como tudo que cai e fica no chão o corpo do jadson morto na areia abre uma dimensão apenas um nordestino morto quem seríamos nós que já produzimos tantas pausas em domingos ensolarados agora não há entrave não há nada no meio do caminho a vida escorre em deslocamento todas as vozes tateando um encontro qualquer um aceno um grito

âncora eu e minha mania de ancorar um catavento no oceano e uma conjunção adversativa no ciberespaço minha mania de prever o passeio das partículas que não se perdem no escuro mas que talvez possam atingir a Terra um dia minha mania de ancorar um catavento no oceano vai pensar bem como marília disse de K. e suas âncoras o nível do mar é um engano como as lambidas de poodle de maíra bebem o oceano de ana que sempre abrigou espaços vazios e nunca navios a se atracarem por uma mania de achar que há dois ou três milhões de pessoas que não mais assistem aos filmes hollywoodianos um dia a mania encontrará outras fulanas só continuando a atestar a obsessiva histeria de sobrevida dos pulmões até que um dia a mania que não é só minha terá que descer por alguma goela e parar no máximo no estômago

este é um animal que tira selfie com caio paz

este é um animal que tira selfie um animal que cumpre o seu destino político descumprindo o seu suposto destino político ainda não inventado o político desde sempre foi cumprido instituindo o fora desde o dentro mas o político deveria ser o outro desde o outro mas desde sempre que a política foi inventada os outros só existem a partir do limite que traça os meus próprios traços do destino sempre cumprido desde o início cumprimos nosso destino político sou um animal que tira selfie talvez um animal mostrando traços outros que lhe traçam o bárbaro traçando o imundo que um dia ficou de fora do mundo traçado a partir do espelho um animal talvez um bando ou só um animal talvez descumpra seu destino político instaurando talvez o político

terror com yasmin nigri

extinção tem sido a palavra de ordem nestes últimos tempos a violência desta vez não vem do escuro tudo está às claras um massacre ainda cai sobre nós e hoje vira sombra não mais se esconde por trás da política a sombra da polícia se mostra de frente por trás por todos os lados as duas em uma por cima e por baixo somos violentamente penetrados por uma máquina de extermínio hoje eu me pergunto se o mercúrio não tem estado sempre retrógrado não mais me pergunto onde a comunicação falha ela não falha claramente ela acerta o buraco no qual nos vemos lançados a cada dia o mundo vai mal ando pensando que o último asteroide aquele supostamente responsável pela extinção dos dinossauros caiu aproximadamente há 66 milhões de anos segundo fontes duvidáveis como todas deveriam ser a maior das extinções foi há 251 milhões de anos e acabou com cerca de 90 a 96% das espécies a extinção seguinte a essa e imediatamente anterior a dos dinossauros foi num intervalo de aproximadamente 50 milhões de anos então se a última foi há 66 já passamos desse intervalo tudo indica que estamos ainda com tempo a velocidade da rotação da terra anda ficando mais lenta também cada dia mais isso não é bom é uma espécie de extinção apesar de o processo ser lento e ainda termos algum tempo é inevitável os dias são de guerra há urgência os poetas andam enxergando sombras brancas rasgando o breu em uma única visada na sombra de um meteoro cruzando o espaço a barbárie dos tempos atemporal a colonização penetra rasga invade a queda se anuncia nos olhos que fitam o escuro à luz do dia poucas coisas apontam para uma sobrevida será que seremos lembrados após a morte não precisamos de mais tempo para saber que sobrevivemos ainda

com a poesia é nela que convivemos intimamente com corpos estranhos dar corda no relógio e acelerar o tempo não faz afastar da noite as sombras os corpos estranhos que nos habitam resistentes andamos nus como os poetas com os poetas andamos nus porque andar nu é andar tão somente com corpos estranhos parir um poema é parir às custas de si não há mais o em si mesmo se ser assombrado é uma sensação de morte só o é porque é uma sensação de vida o poema acontece no assombro porque é no assombro que nos vemos fora de nós mesmos suspensos no tempo e no espaço lançados numa aporia incurável em que não distinguimos mais eles de nós somos o engano podemos morrer abraçados à lágrima de não existirmos mais mas na mesma visada as águas que escorrem trazem também o naufrágio entre a possibilidade de morrer dobrado sobre a lágrima e a espera de a lágrima congelar para ser possível ir por cima dela por sobre ela entre a possibilidade e a espera o que há é a um só tempo o terror de naufragar todas as horas da vida a decisão que se impõe em todas as horas da vida o ser que há incuravelmente assombrado sobrevive mais que isso vive de braços dados com as sombras o impossível que cria com o barco invelejável que parte de si o ser é um blefe o ser que existe aí para ser lembrado após a morte é um ser com ela ou com ele porque alguém decidiu gostar da possibilidade de se dedicar todas as horas da vida à poesia e gostar dessa possibilidade é gostar de se dedicar tão somente ao outro na noite enquanto todos querem dormir alguém desperta e faz da noite um despertar todos os dias meteoros caem e todos

os dias temos ainda algum tempo uma foice avança sobre as mãos de todos os homens que se empenham em destruir em possuir em governar hoje nestes últimos tempos é possível amar diante do terror do naufrágio no instante imediato do terror dos tempos caberia o amor nas mãos o que não queremos preso nestes últimos tempos amar é se dedicar ao que não queremos preso nas mãos o coração eis o terror quando amor e terror se entrelaçam estamos falando daquilo que há de mais frágil e vulnerável e precário sabemos que ir ao amor como ir aos escombros do terror é ir sabendo da queda irreparável muitas vezes incurável em terreno esburacado como quando fitamos a vida sem lente sem filtro em sua nudez em tudo há a possibilidade de ser um sítio de guerra nestes lugares onde se está de mãos dadas com o fracasso não há ombro que salve a linguagem falha quando estamos lado a lado com a ruína o peito assume a forma de toda a extensão de um sítio frágil quando amar é correr o risco de naufragar o terror de amar encontra o terror de naufragar na iminência da mesma queda não há saída tombamos inevitavelmente como quem cai apaixonado cair brusca ou brandamente é apenas uma questão de tempo para se ver caindo no real o terror de amar é o medo de tombar não há salvação enquanto a Terra não para enquanto o asteroide não cai enquanto a extinção acontece em todas as horas da vida alguém explode o tempo como um meio de vida e como um modo de amar isso sim é uma máquina de guerra

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.