Dante Santoro - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo VI

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Música Popular Brasileira, Dante Santoro
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Dante Santoro, o Canário Rio-Grandense

Filho de imigrantes italianos – como seu contemporâneo Radamés Gnattali – Dante Italino Santoro nasceu dia 18 de junho de 1904, em Porto Alegre. Tinha 10 anos de idade quando a primeira flauta caiu em suas mãos. Não precisou muito para que a família visse (e ouvisse) que o guri tinha muito talento. Primeira atitute: arrumar o melhor professor disponível na cidade. Se você leu o capítulo anterior, sabe de quem se está falando. Sim, Octavio Dutra. Com ele aprendeu teoria e, como acontecia com todos alunos de Octavio, ganhou um apelido: Pato. O talento do menino-prodígio era tanto que, em 1919, com ridículos 15 anos, ele estava no Rio de Janeiro. Segundo alguns, já formado em flauta pelo Conservatório de Belas Artes de Porto Alegre. Tem quem afirme que ele fora pra lá convidado pelo cavaquinista e comediante gaúcho Ary Valdez, o Tatuzinho. Só não se deram ao trabalho de conferir que, em 1919, Ary tinha 13 anos, o que torna a ideia ligeiramente inviável. O que há de concreto é que o projeto era de, da Capital Federal, embarcar com seu grupo para os Estados Unidos ou para a Europa. Eram Dante, o também flautista Bento Gonçalves, o violonista Manuel Lima e o cantor Didi Carioca. Um acidente – ninguém precisou de que tipo – matou a todos (menos Dante, é claro, senão, não tinha este capítulo). Aí, literalmente desconcertado, só restou ao garoto voltar pra terrinha. Entre 1921 e 22, é figura de destaque do grupo musical e bloco carnavalesco Os Batutas, dirigido por seu mestre Octavio Dutra. 1

Tinha 17 anos e o apelido já era outro: O Canário Rio-Grandense. Em 1931, se tem as duas últimas notícias dele em terras gaúchas, numa homenagem a Octavio e em uma carta escrita por Dutra, na qual ele oferece a um empresário carioca os préstimos de ambos, em dupla, para apresentações no Rio de Janeiro – que, lamentavelmente, não se realizaram. Há quem diga que Dante chegou a tocar na Rádio Gaúcha, cujo diretor musical, em algum momento, era Octavio, mas até agora não passou pelo redator destas linhas nenhuma prova concreta. Há também quem afirme que ele embarcou novamente para o Rio em 1929. Mas, nesse caso, teria voltado em 1931, conforme atesta o programa do concerto em loas a Dutra e a carta ao empresário? Fato documentado é que, no começo da década de 1930, Dante Santoro estava novamente na Cidade Maravilhosa. E, desta vez, para ficar, aperfeiçoando sua técnica na Escola Nacional de Música, com Agenor Bens – o maior flautista brasileiro de todos os tempos, segundo o compositor Guerra-Peixe. Começaria a se estabelecer com o crescimento do rádio no Brasil. Estreia na Rádio Cajuti (que depois seria a Vera Cruz), passa para a Rádio Educadora em 1934 e, daí, em 1936, para a Nacional – que estava sendo inaugurada. Santoro seria do time de fundadores da poderosíssima emissora ao lado de Radamés Gnattali, que, nessa altura, também já estava no Rio. A partir daí, além de ser um dos flautistas da espetacular orquestra sinfônica da Nacional, assumiria o posto de diretor musical do seu conjunto regional, que se chamaria nada menos que Regional de Dante Santoro. Isso na emissora que se tornou, a partir dos anos 1940, (olha a maravilha do slogan!) O Himalaia dos Índices de Audiência. Ninguém batia a Nacional. E a formação de liderada por Dante inicialmente era a que mais trabalhava, acompanhando Deus e todo mundo – já que não precisava de um arranjo previamente escrito, como acontecia com os demais grupos. Deus e todo mundo mesmo. Ficando só no departamento de cantores, por exemplo, em determinado momento, a Rádio Nacional tinha nada menos que Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva. Os três maiores cantores de seu tempo, todos acompanhados por Dante e seu regional. É quando o Canário Rio-grandense muda de apelido de novo: vira o Bico de Ouro. Pelo seu grupo passam as maiores feras. Gente como o violonista, compositor e bossa-novista avant la léttre Valzinho 2

– que tocou a seu lado durante 30 anos –, o lendário Jorginho do Pandeiro e a melhor dupla de violões de choro daqueles anos (de todos os tempos?): Dino 7 Cordas e Cesar Faria. Mais tarde, Jorginho, Dino e Cesar – pai de Paulinho da Viola – fundariam o conjunto Época de Ouro, o mítico all star grupo de apoio de Jacob do Bandolim. Ao longo de três décadas à frente do Regional – e 33 anos de Rádio Nacional – Dante faria a fama como um dos maiores flautistas do seu tempo (para muitos, os caras eram ele e Benedito Lacerda). E, mesmo levando carreiras paralelas de maestro e arranjador, permaneceu a vida inteira lembrando seu primeiro mestre, Octavio Dutra, o homem que o “degenerou” da música erudita para a popular. Durante sua carreira, mesmo sendo bom compositor, ele gravaria várias músicas de Octavio. Seu primeiro 78 rpm, por exemplo – de 1934 –, tinha duas valsas octavianas: Saudades do Jango e Beatriz. No acompanhamento, dois violões. Um deles, do lendário Tute. No ano seguinte, estreava em disco como compositor, sendo suas seis das oito valsas (comoGilka) e choros (como Esquecimento e o virtuoso Não Tem Pra Ti) que gravou de enfiada em cinco discos. Seu estilo como flautista já está ali perfeitamente identificável: geralmente na região aguda, chamando a atenção para o virtuosismo, e quase tudo em staccatto (cada nota, um sopro, tudo “sequinho”), ligando raríssimas notas, sempre muito bem articuladas. Muito diferente, por exemplo, do sopro “quente”, apaixonado e bastante legato de Benedito Lacerda. Mais tarde, Dante ainda viria a fazer sucesso com algumas canções saídas de sua pena, letradas por parceiros como seu irmão Godofredo Santoro, gravadas pelos maiores de então: Vicente Celestino, Orlando Silva (Olhos Magos), Sílvio Caldas e Francisco Alves. Esses dois últimos, por exemplo, levariam ao disco a valsa Vidas Maltraçadas, escrita em 1943 sob encomenda de um dos principais autores de radionovelas da emissora, Giuseppe Ghiarone. Mesma valsa que, em 1948, ganharia nova letra de Cyla Gusmão e novas regravações, sendo para sempre o maior sucesso ligado a seu nome. Outra parceria do dramaturgo com o flautista seria o tema da novela Lamento Árabe. Uma pérola de melodia do gênero bolero oriental (possivelmente a única…): Partiu Na caravana da ilusão 3

Quem tem o ouro do sultão Pra comprar o seu amor Fugiu! A tribo inteira entristeceu, Todo o deserto escureceu, O céu de Alá chorou de dor! Nesse mesmo começo da década de 1950, grava alguns de seus melhores compactos de 78 rpm. Um deles, exatamente de 1950, é especial, com um grupo de virtuoses onde se destaca um clarone não identificado. De um lado, o virtuoso choro Flauta Selvagem, assinado com o pseudônimo Etnad (originalmente batizado Harmonia Selvagem, futura piéce du resistance de virtuoses como Altamiro Carrilho e Dirceu Leite. Do outro, com reforço dos Trigêmeos Vocalistas, grava a já então velha polca-marcha Sempre Nós, um dos hinos do grupo de seu mestre Octavio, o Terror dos Facões). No total, compôs mais de 100 músicas, entre choros instrumentais e sambas-canção de dolorosas letras, às vezes assinados como Etnad (Dante ao contrário, né, ô?). Gravou também bastante como solista – não com constância, mas para as maiores companhias: Odeon, RCA-Victor, Sinter e Continental. Deixou vários choros exemplares em sua escritura, hoje esquecidos, como Teimoso ou É Logo Ali. Há também pequenas joias de orquestração, como Chorinho Gostoso, escrito aos 19 anos, ainda em Porto Alegre. Gravado por um regional em 1935, rebatizado como Esquecimento, sua versão original funde à perfeição chorinho e música de câmara, cheio de contrapontos e composto para uma formação das mais inusitadas: flauta, violino tocado no colo com os dedos como um cavaquinho, cello e contrabaixo. Morreu, ironicamente, do pulmão. Nunca fumou. Mas, nos últimos nove meses de vida, começou a sofrer de enfisema pulmonar. Foi internado na Policlínica Geral do Rio de Janeiro com quadro de edema pulmonar e insuficiência cardíaca. Quando entregou os pontos, a 12 de agosto de 1969, tinha acabado de se aposentar da Nacional. Aos 65 anos, estava num ostracismo quase completo. Em tempos divididos entre canções de protesto, Tropicália e iê-iê-iê, o único regional que sobrevivia com honras era, ironicamente, o Época de Ouro, com Jacob do Bandolim e seus ex-colegas de Regional Dante Santoro. 4

O Jornal do Brasil termina a matéria sobre seu enterro com a seguinte observação apocalíptica: com a morte de Dante Santoro restam apenas quatro músicos que se utilizam da flauta para a execução de músicas populares. Ficam apenas os regionais de Canhoto, Altamiro Carrilho, Pixinguinha e o de Rogério Guimarães. Nos últimos tempos, Dante chegava na rádio, batia o ponto, e, sempre discretíssimo, ficava longas horas segurando o estojo fechado da flauta, esperando o trabalho que sabia que não viria. Chegou a montar um restaurante no térreo de sua casa, na Barra da Tijuca, com o precioso nome de Inferno de Dante e cuja grande atração era o gauchíssimo arroz de carreteiro. Mas só perdeu dinheiro: a Barra era longe demais de qualquer coisa e dos amigos que iam até lá ele ficava com pena da distância e acabava nem cobrando… Solteirão e solitário, foi surpresa para muitos que seu enterro reunisse várias centenas de pessoas, de todas as tribos e cores, muitas das quais voltariam a um outro velório menos de 24 horas depois: o de Jacob do Bandolim, no dia seguinte. Jacob, além de ter herdado seus músicos, muitas vezes apontou Dante como um dos maiores músicos do país. ***

E aí, pra dar o contraponto: o chorão e pesquisador Henrique Cazes tem uma opinião bem particular sobre Dante. Ele diz que o Regional era o único ponto fraco da Nacional, que Santoro tinha uma única introdução que se adaptava a qualquer ritmo e andamento, e que os demais músicos da casa tinham verdadeiro “desprezo” pelo grupo.

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Cazes, é claro, não tem idade pra ter presenciado nada disso. Mas, a se julgar por algumas outras opiniões que ele expressa em seu livro Choro – do Quintal ao Municipal, essa também pode ter sido herdada de seu mentor Radamés Gnattali. Tanto que ele cita literalmente Radamés ao se referir ao regional. Diz que o velho maestro, com sua verve muito peculiar, os resumia numa frase: Eram tudo uns cachaças. É bastante possível que houvesse alguma rixa pessoal entre Dante e Radamés. Ciúme, é certo. Afinal, ano a ano as formações orquestrais da Nacional – brilhantemente arranjadas por Radamés e outros poucos – cresciam em importância e prestígio frente à sonoridade tímida do regional. Pode ser uma explicação para o fato de que, sendo quase da mesma idade, vindos da mesma cidade e trabalhando diariamente numa mesma rádio por mais de 30 anos, os dois nunca foram amigos. Jairo Severiano, que conheceu bem a ambos, é testemunha ocular da história. E contou por e-mail: Radamés adorava tomar chope com os amigos. Nessas reuniões, depois de alguns chopinhos, ele assumia aquela sua decantada postura de ranzinza/espirituoso e esculhambava todo o mundo. Assim, acho que tais esculhambações não devem ser levadas a sério, especialmente neste caso do Dante Santoro que, além de sua incontestável competência musical, integrou por diversos anos uma orquestra dirigida pelo Rada (segundo o próprio Rada). Além do mais, o padrão de qualidade da Rádio Nacional em sua época áurea (sou testemunha auditiva disso) era uma coisa muito séria e jamais admitiria ter suas estrelas acompanhadas por um bando de “cachaças”… Ou seja: a de Cazes, ainda que perpetrada em livro de referência, é opinião isolada. Altamiro Carrilho, por exemplo, cita Dante e Benedito Lacerda como suas maiores influências, os dois maiores flautistas da geração anterior a sua: Dante (…) tinha um estilo muito particular, muito dele, muito especial. (…) Um estilo alemão – assim, digamos, bem matemático. Mas tocava bonito, tinha uma sonoridade muito bela que superava aquela certa falta de balanço. Já Carlos Poyares, outro cobrão, achava que Dante tinha sido o maior de todos. E há uma certa polêmica quando se fala nos maiores regionais da Época de Ouro (1928-46, aproximadamente). Uns falam no de Rogério Guimarães, da Rádio Tupi. Outros no de Claudionor Cruz ou o de Canhoto. Mastodos citam os Regionais de Dante Santoro e Benedito Lacerda. 6

O melhor é que tudo isso são dúvidas hoje facilmente dirimíveis. Há primeiro um belo e atualmente raro CD triplo lançado pelo Fumproarte de Porto Alegre, em 1998, com a obra de Dante. Projeto de seu sobrinho e engenheiro de som Homero Santoro, o disco mostra um compositor e flautista de um virtuosismo impressionante. E, mais do que isso: liderando um grupo bem arranjado e perfeitamente entrosado. Mais fácil ainda é ouvir 73 gravações de Dante muitíssimo bem recuperadas, e disponíveis a um clique, nos acervos de Humberto Franceschi e José Ramos Tinhorão, hospedados no site do Instituto Moreira Salles. Podiam até ser uns cachaças. Mas que não dá pra descobrir isso escutando os caras, ah, não dá. E, bem, Cazes também garante que Dante foi assassinado, num crime nunca resolvido. Ninguém da família jamais ouviu falar nessa história (o mais perto disso foi quando, meses antes de ser hospitalizado, ele apanhou de um cliente quando foi putear o cara que fazia xixi na porta de seu Inferno de Dante. O resto é invenção).

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