Daoismo e Saúde: Sociedade Taoista de São Paulo e a rede de terapias holísticas da Nova Era

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2⁰ Simpósio Internacional de História das Religiões XV Simpósio Nacional de História das Religiões ABHR 2016

Daoismo e Saúde: Sociedade Taoista de São Paulo e a rede de terapias holísticas da Nova Era

Matheus Oliva da Costa1

Resumo: Neste trabalho objetivamos apresentar as interações decorrentes do encontro cultural do Daoismo contemporâneo vindo de Taiwan com a rede de terapias holísticas em São Paulo e Rio de Janeiro. Os dados dessa pesquisa foram obtidos no período de 2013 a 2015, através de pesquisa de campo. Nosso quadro teórico para análise é formada tanto por especialistas nas tradições abordadas como nas teorias da transplantação das religiões, da hibridação cultural e do orientalismo. Há poucas décadas a Sociedade Taoista-SP oferta ensinamentos e práticas tradicionais do Daoismo dificilmente vistos fora de países asiáticos, incluindo práticas de cultivo da saúde. Por outro lado, apresenta fortes interações com o cenário das terapias holísticas. Essas interações moldam um processo de hibridação dessa antiga religião recém-chegada no Brasil com a rede de terapias e cosmovisões Nova Era já hibridizadas com as demandas religiosas próprias de brasileiros/as. Palavras-chave: Daoismo, Religião brasileira, Nova Era, Hibridismo. 1 – O que é Daoismo? Neste curto texto, objetivamos mostrar brevemente as ligações e distanciamentos entre um grupo daoista institucional em São Paulo (capital) e a rede de terapias de tendência Nova Era. Mas, antes de tudo, é necessário explicar o que é o Daoismo, devida a pouca familiaridade que o publico brasileiro tem com essa tradição. No esforço de encontrar um modo acadêmico e inteligível de sintetizar em poucas palavras a complexidade das várias 1

Graduado (UNIMONTES-MG), mestre e doutorando em Ciência da Religião (PUC-SP). Membro do CERAL (Centro de Estudo de Religiões Alternativas de Origem Oriental) e do NEO (Núcleo de Estudos de Novas Espiritualidades), ambos da PUC-SP. Foi bolsista CNPq no mestrado e agora é bolsista da CAPES no doutorado. Orientador: Frank Usarski. Email: [email protected].

expressões daoistas, criamos um conceito de Daoismo baseados na leitura de vários especialistas no assunto, baseado no modelo histórico chinês dessa religião (Costa, 2016). Assim, definimos que o Daoismo é uma tradição nativa da China que se mantêm através de uma estrutura ritual de transmissão de linhagens religiosas onde qualquer ator social pode se tornar daoista e seguir sua proposta de salvação. A principal forma de ver o Daoismo pode ser como movimento cultural-religioso, abarcando um todo coerente de pensamentos (filosofia), práticas corporais de cultivo interno, burocracia celestial (teologia), escrituras reveladas e liturgias. A principal meta dos daoistas seria a busca de uma imortalidade através de uma ascensão espiritual até o retorno ao próprio 道 Dào. Importante informar que acreditamos ser mais academicamente adequado o modelo de transliteração do termo chinês 道教 Dàojiào como Daoismo, ao invés de Taoismo. Taoismo é mais comum e deriva da forma de transliteração do sistema Wide-Giles, formulado em período de colonialismo na China, mas ainda é muito usado, inclusive em Taiwan (República da China). Um primeiro motivo é para nos aproximar do sistema de transliteração hànyǔ pīnyīn, mais usado internacionalmente e criado pelos próprios chineses da China continental. Segundo, para nos alinharmos aos muitos trabalhos e publicações internacionais recentes, como por exemplo, a revista acadêmica Journal of Daoist Studies que é referência internacional no assunto. Indicamos o mesmo a outros/as pesquisadores/as.

2 – Daoismo: de 台湾 Taiwan ao Brasil Em sua fase contemporânea que começa em meados do séc. 19 (Miller, 2008), o Daoismo Chinês sofreu alterações significativas. Todos os eventos sócio-históricos que envolveram a China desde o séc. 19, culminando na vitória dos países europeus na Guerra do Ópio em 1860, alteraram profundamente toda sociedade. O império ruiu, e mesmo a criação da república chinesa não adiantou: o país continuava com graves problemas, e sob forte influência política dos países colonizadores. Para os/as chineses/as esse foi conhecido como o “Século da Humilhação”, entre 1850 e 1950 (Pinheiro-Machado, 2013).

Tudo isso teve fortes impactos aos grupos daoistas. No final da era imperial (séc. 19 ao 20) o Daoismo começou a ser visto com a representação europeia pejorativa de “mágico” e “supersticioso”. Também houve um forte fluxo de diáspora chinesa, incluindo daoistas leigos e sacerdotes, indo para toda à Ásia depois da Guerra civil chinesa (1945-1949) e a vitória dos comunistas, sobretudo para Taiwan, e espalhando-se por todo o mundo em seguida. Nesse sentido, podemos ver a recente globalização do Daoismo como consequência da ferida colonial aberta: elementos daoistas foram para países colonizadores (europeus e EUA), mas desestruturou o Daoismo internamente, se recuperando somente décadas depois. No que concerne ao Brasil, em nossa análise da transplantação do Daoismo defendemos que podem ser reconhecidas três ondas de contato cultural entre a cultura daoista e a sociedade brasileira: primeira onda: presença de elementos implícitos do Daoismo de forma difusa (século 19 – década de 1960); segunda onda: difusão informal e/ou indireta do Daoismo (a partir dos anos 1960); terceira onda: transmissão mais institucionalizada e via iniciados (a partir de 1973). A primeira onda é marcada por influências sutis e avulsas do Daoismo, através de objetos e, sobretudo, livros sobre cultura chinesa que tinham elementos daoistas diluídos. Na virada do século 19 e 20 há todo um interesse literário orientalista que inclui as culturas e religiões chinesas. Tem voz também entre os Esoterismos presentes aqui, com destaque para a Teosofia e o Círculo da Comunhão do Pensamento, a primeira ordem esotérica do Brasil. Literaturas da primeira metade do séc. 20, como Guimarães Rosa, é resultado das duas influências anteriores e marcam os últimos fôlegos dessa onda. Em grande parte a segunda onda é uma continuação da primeira. O caráter orientalista continua, mas agora também contatos mais diretos com as tradições daoistas. Dois fatos ajudam isso acontecer: os fluxos migratórios das diásporas chinesas do final do séc. 20 que chegaram ao Brasil, e o movimento Nova Era. Os imigrantes que vieram desde os últimos 65 anos chegam em grande parte com formação profissional, e ocasionalmente conhecimentos de práticas e teorias tradicionais. Dentre essas tradições, elementos daoistas começaram a ser ensinados junto com outros aspectos culturais chineses, com destaque para medicina chinesa e exercícios corporais. Concomitantemente, o movimento Nova Era

surge nos EUA e Europa e tem também sua versão brasileira (D’Andrea, 2000; Magnani, 2000), principalmente em sentido amplo de visão de mundo e práticas cotidianas. Algumas características do ethos e visão de mundo novaerista, como a ênfase na experiência pessoal e visão essencialistas e universal das religiões, são claramente presentes no Brasil. Recebendo o legado das duas primeiras ondas e acontecendo simultaneamente à segunda, a terceira onda é marcada pela entrada de iniciados ao Daoismo vindos de Taiwan desde 1973. Diferente da segunda onda – que apesar de haver divulgação de elementos daoistas de forma indireta ou de forma explícita, mas avulsa – a terceira onda é caracterizada pela existência de transmissão mais tradicional (via iniciação) e mais diretamente daoista, incluindo devoção a divindades e teologia. Até o momento que escrevo, existem os grupos ligados ao mestre de tàijí quán e medicina chinesa Liu Pai Lin (刘百龄 Liú Bǎilíng, 1907-2000), as sedes e templos fundados sacerdote Wu Jyh Cherng (武志成 Wǔ Zhì Chéng, 1958-2004), e o grupo ligado Associação Taoista do Brasil formada em 2007 por um casal de monges brasileiros.

3 – A Sociedade Taoista de São Paulo Wu Jyh Cherng, um líder central na terceira onda do Daoismo, fundou com brasileiros/as a Sociedade Taoista do Brasil (STB) no Rio de janeiro, uma instituição registrada oficialmente em 1991 com o objetivo de divulgar o Daoismo em todas as suas expressões. Ela se destaca no mercado religioso nacional por ser um grupo que oferta bens daoistas tradicionais, e com um formato de transmissão também tradicional. Há três fases sócio-históricas desse grupo: 1) informal ou embrionária, nos anos 1980; 2) estabelecimento formal e expansão, entre 1990-2004; e 3) das lideranças brasileiras, desde 2004. Inicialmente nascida como uma filial, fruto da expansão da STB motivada pelo desejo de difusão do Daoismo no Brasil por Cherng, a Sociedade Taoista SP (ST-SP) em 2012 criou autonomia institucional. Em grande medida, continuaram o modelo de organização próximo ao modelo do fundador: as artes daoistas e publicações seguem como a principal oferta e “porta de entrada”, havendo também atividades para os iniciados ritualmente. Novas

referências foram buscadas através de mestres de tradições daoistas diferentes Cherng, e novos eventos foram criados, gerando uma dinâmica própria no templo e sede de São Paulo. Como observado em nosso estudo sobre este grupo desde 2013, Cherng e seus seguidores obtiveram respeitabilidade e são considerados como uma referência de transmissão de ofertas e conteúdos daoistas tradicionais por parte de pessoas interessadas em assuntos daoistas, incluindo pesquisadores/as (Britto, 1998; Friaça, 2004; Murray, 2010). Devido ao limite espaço, vamos nos concentrar agora somente ao caso da Sociedade Taoista SP. Na ST-SP eles oferecerem o ritual de iniciação ao Daoismo da ordem dos Mestres Celestiais, também chamado de Ortodoxia Unitária. Além disso, ensinam artes daoistas: 风 水 fēngshuǐ, astrologia daoista, 八卦掌 bāguà zhǎng, 太极拳 tàijí quán, 气功 qìgōng, oráculo 易经 Yìjīng, bem como, cursos de filosofia daoista, palestras sobre 道德经 Dàodé jīng, e práticas e curso de meditação. Obviamente, tudo isso é historicamente estranho ao sistema cultura brasileiro, fazendo os que frequentam essa instituição a se esforçar para entender o Daoismo a partir das próprias bases culturais.

4 – A ST-SP e sua relação com a Nova Era na metrópole paulistana Paralelamente à oferta de conteúdos tradicionais, membros da ST-SP apresentam ligações com o circuito Nova Era (Magnani, 2000). Desde sua fundação em 2002 como filial, algumas das suas fundadoras também ensinam “danças sagradas”, há consulta de florais de Bach, ou tinham também eram consultoras/es holísticas/os. Mais recentemente, durante pesquisa participativa no final de 2014, percebemos que termos esotéricos e novaeristicos como “egrégora” eram comuns entre alguns destes daoistas. Assim, a relação entre Daoismo e Nova Era ocorre principalmente no nível microssocial (pessoas de dupla prática) e mesossocial (conteúdos comuns compartilhados). Porém, no sentido mais macro de encontro de sistemas o Daoismo da ST-SP não seria tão convergente com a Nova Era. A STSP evita o excesso de hibridação, tentando se apresentar como “tradicional”, e dá credito à autoridade da tradição, diferente dos novaeristas em que a experiência pessoal é a referência central.

Sabemos que São Paulo é uma das maiores metrópoles brasileiras. Defendemos que existe um hibridismo em ebulição entre a matriz religiosa brasileira (MRB) e a influência do movimento Nova Era ocorrendo nas metrópoles do Brasil (Bizerril, 2007). No que concerne a MRB (Bittencourt Filho, 2001), podemos falar de quatro principais características: 1) Experiências fortes e íntimas com realidades e seres metaempíricos; 2) Crenças e práticas mágicas explícitas ou implícitas; existe a 3) tendência de tratamento utilitarista para lhe dar com bens e serviços religiosos. Isso seria, na dimensão religiosa, a base cultural brasileira. Recentemente, há o que considero como 4) forte impacto da religião e espiritualidade Nova Era no Brasil. Aqui destaco: a relação centrada no self (“eu superior”) do individuo com as muitas ofertas religiosas, reforçando a ênfase na busca pessoal, e assim, desfavorecendo pertencimentos. A maioria das artes daoistas ensinadas e praticadas na ST-SP proporciona a manipulação mágica individual e a experiência direta com algo metaempírico, logo, lembram a brasileiros a possibilidade de sentir sensações agradáveis e integradoras, e contato direto com o outro mundo. Mas autores especialistas em Nova Era também apontam isso como um elemento típico dos meios novaeristas. Como então saber a real motivação? Em primeiro lugar, pelo histórico pessoal, e segundo, entender que ambas as fontes culturais (cultura brasileira e Nova Era) podem se misturar. E é caso aqui. Nesse sentido, o alerta de Oliveira (2009) de que a Nova Era já se misturou com parte da cultura brasileira é significativo. Destarte, existe aqui toda uma fusão, uma confluência de hibridismos culturais (Burke, 2003) ocorrendo entre o Daoismo, a MRB e a Nova Era na ST-SP. É perceptível que o contato do Daoismo com a sociedade brasileira em São Paulo apresentou mais afinidades com alguns grupos em especial. Os principais elementos que estão em processo de hibridação com essa antiga religião recém-chegada no Brasil são, principalmente, a rede de terapias e cosmovisões Nova Era (Magnani, 2000) e as demandas religiosas próprias de brasileiros/as (Bittencourt Filho, 2001). É interessante notar a ambiguidade inerente da visão dos que frequentam a Sociedade Taoista-SP. Por um lado, veem o Daoismo como uma tradição antiga (fala-se de 5 ou 8 mil anos). Por outro lado, há um esforço de familiarização com uma proposta cultural/religiosa enxergada como novidade

fascinante. Em meio a essa ambiguidade, essa oferta religiosa é hibridizada com noções novaeristas e demandas religiosas brasileiras. O novo e velho se misturam de forma inédita: a tradição daoista de mais de 1800 anos – que no Brasil é novidade a cerca de 40 anos enquanto linhagens abertas a brasileiros – é divulgada e entendida se acomodando ao sistema da matriz cultural-religiosa brasileira forjada pelos últimos cinco séculos; esta última tem tido forte influência da Nova Era, sobretudo nas metrópoles, e a Nova Era, por sua vez busca formas alternativas ao modelo biomédico/alopático de medicina, sendo que os novaeristas veem o Daoismo como referência de um possível modelo mais próximo aos seus ideais.

5 - Conclusões Temos três conclusões para toda essa discussão anterior. (1) Novaeristas veem o Daoismo como referência de um possível modelo mais próximo aos seus ideais, fazendo o Movimento Nova Era se nutrir de fontes daoistas. (2) Já os daoistas brasileiros/as são buscadores, e por isso continuam abertos a conhecer e praticar outras ofertas “alternativas” à medicina e à religião dominante, fazendo o Daoismo brasileiro ter elementos novaeristicos. Bem como, (3) estar em uma metrópole favorece muito esses intercâmbios, já que é onde tem mais condições de ocorrer, dado a condição cosmopolita que favorece fluxos interculturais.

Bibliografia BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução Leila Souza Mendes. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2003. BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa, religiosidade e mudança social no Brasil. Tese de doutorado em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001. BIZERRIL, José. Retorno à raiz: tradição e experiência de uma linhagem taoísta no Brasil. São Paulo: Attar, 2007. BRITTO, Ely. The Sages and the Secret Tradition: An Interview with Wu Jyh Cheng. The Oracle: Journal of Yijing Studies, v.2 n.7, 1998, pp. 52-56.

COSTA, Matheus Oliva da. Daoismo tropical: a transplantação do Daoismo ao Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2016. D'ANDREA, Anthony Albert Fischer. O self perfeito e a nova era: individualismo e reflexividade em religiosidades pós-tradicionais. Edicoes Loyola, 2000. FRIAÇA, Mônica Gagliotti Fortunato. O Feng Shui e a Nova Era: um exemplo de destradicionalização e de invenção de tradições. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004. MAGNANI, José Guilherme Cantor. O Brasil da Nova era. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000. MILLER, James. Daoism: A Beginner’s Guide. Oxford: Oneworld, 2008. MURRAY, Daniel. Daoism in Brazil: The globalization of the Orthodox Unity (Zhengyi) tradition. Essay for the degree of Master of Arts in Religious Studies. Queen’s University: Kingston - Canada, 2010. MURRAY, Daniel e MILLER, James. The Daoist Society of Brazil and the Globalization of Orthodox Unity Daoism. Journal of Daoist Studies, vol.6, 2013, pp. 93-114. OLIVEIRA, Amurabi. Nova Era à brasileira: A New Age Popular do Vale do Amanhecer. Revista Interações: Cultura e Comunidade, v. 4, 2009, pp. 31-50. PINHEIRO-MACHADO, Rosana. China, passado e presente: um guia para compreender a sociedade chinesa. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 2013.

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