D\'après Nature ou O Ofício do Artifício - Uma retrospectiva de Walmor Corrêa [Memento Mori]

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walmor corrêa

memento mori

o ofício do artifício

A CAIXA atua na promoção e no estímulo cultural do país, especialmente por meio de patrocínios a projetos nas áreas da música, teatro, dança, fotografia e artes plásticas, sempre presentes nos espaços da CAIXA Cultural em Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Em breve, a CAIXA Cultural também estará presente nas cidades de Fortaleza, Porto Alegre e Recife, ampliando ainda mais a participação da CAIXA no cenário cultural brasileiro e oferecendo à população oportunidades mais amplas de conhecer e desfrutar da riquíssima produção artística nacional e internacional. É motivo de grande orgulho para a CAIXA apresentar à população da Cidade de Brasília a exposição “Memento Mori”, na CAIXA Cultural Brasília. A exposição tem o mérito de mostrar o trabalho do renomado artista Walmor Corrêa, ele refaz a antiga união entre arte, ciência e mito e joga com os referenciais do passado, subvertendo-os mediante uma inquietante exatidão. Criando um ambiente de extrema coerência. Fazem referência aos Wunderkammern, Gabinetes de Maravilhas, que marcaram os séculos XVI e XVII nos países da Europa ocidental e que são embriões dos museus modernos. Através de mostras deste tipo que a CAIXA cumpre efetivamente seu papel como difusora da cultura, rompendo todas as barreiras sociais e permitindo acesso irrestrito a todos seus visitantes e público em geral. A CAIXA acredita, dessa maneira, estar contribuindo para a renovação, a ampliação e o fortalecimento da cultura nacional. CAIXA ECONOMICA FEDERAL

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d’après nature ou o ofício do artifício Guy Amado

“I have almost achieved perfection you see, of a divine creature that is pure, harmonious, absolutely incapable of any malice. And if [...] I have fallen short of the human form [...] it really is of no great importance. I am closer that you could possibly imagine sir.” [H. G. Wells, The Island of Dr. Moreau] “Biologically, the species is the accumulation of the experiments of all its successful individuals since the beginning.” [H. G. Wells, A modern utopia]

Por quase toda a última década, o corpo da produção de Walmor Corrêa vem percorrendo uma trajetória inusitada e consistente, sempre pautada em questões de origem [com o perdão de um possível trocadilho], mas expandindo gradualmente o repertório visual e formal de suas criações. E o termo “criações” aqui adquire um sentido literal, como se verá. A esse mote se soma um interesse questionador acerca de percepções pré-formatadas do mundo a partir de sistemas de convenções legitimatórias, notadamente aqueles endossados pela ciência. Partindo de uma linha procedimental calcada na tradição biológico-cientificista naturalista, sua plataforma de operações artísticas se conforma de modo geral a partir dos dualismos arte e ciência, realidade e ficção. Dessa combinação advém gradualmente um grau de arrebatamento, quando em frente a seus trabalhos. Encenando uma poderosa e instigante fusão entre preceitos da História Natural, com seu léxico e vocabulário gráfico característicos, o artista aposta em uma instância de estranhamento que embaralha a percepção do espectador a partir de doses de ficcionalização que introduz habilmente neste repertório. Para tal, Corrêa se vale de técnicas que conjugam a pintura e o desenho, e mais 4

recentemente também objetos e peças escultóricas, no bojo de uma tradição que alude a um só tempo a antigos moldes acadêmicos e ao cânone cientificista naturalista. Em seu processo são decisivos fatores como observação minuciosa e extensiva pesquisa em diferentes fontes científicas, a partir das quais extrai material para suas criações. Essa etapa da coleta de dados adquire um peso decisivo e é indissociada, em sua práxis, da fatura manual em si, na medida em que fornece ao artista condições de elaborar de modo preciso as “informações” − habilmente falseadas − que acompanham suas imagens, à maneira de sistemas taxonômicos tradicionais, e a partir das quais reveste de maior verismo o que está ali representado. A um primeiro contato atento com sua obra não há como ficar imune à estranheza: suas delicadas pinturas parecem sempre algo deslocadas, quase inadequadas ao contexto de uma exposição de arte contemporânea, imersas que parecem estar em uma temporalidade alheia à experiência sensória acelerada da atualidade. É o que se pode verificar mais de imediato em peças como Diorama cartesiano e nas pinturas de Parte óssea [da série Catalogações]. Suas representações – que posteriormente sabemos serem de fato fabulações – sutis e discretamente fantásticas de exemplares do reino animal e mitológico, efetuadas em um registro tipicamente naturalista, mostram-se a princípio pouco afeitas a competir com a visualidade convulsiva que conforma a existência nos dias de hoje. Some-se a isso o grau de virtuosismo técnico que o trabalho exibe [e exige] e os estigmas que ainda perduram em relação a esse aspecto e temos uma produção potencialmente deslocada em relação a alguns vetores da arte contemporânea, como o artista já pôde atestar em alguns momentos de sua carreira. O que não impediu, no entanto, que seu trabalho fosse assimilado e largamente reconhecido no chamado grande circuito de arte, inclusive em âmbito internacional, em uma escalada ascendente que só atesta a precariedade e o relativismo de juízos tão dogmáticos quanto vagos. Desde sempre fascinado pelo vasto repertório de criaturas do mundo natural, Walmor encontrou na fauna, e sobretudo em sua codificação e classificação pela ciência, aquele que viria a ser o vetor estrutural de sua poética. Movido 5

por uma curiosidade e um encantamento que remete ao tipo de paixão pueril e distraída que temos na infância pelos bichos que nos cercam, mesmo desconhecendo sua índole ou hábitos, Corrêa foi aos poucos localizando seu interesse na possibilidade de vislumbrar criaturas que não existiam, ou que não se sabia existir. A essa pulsão se somou a vocação para um desenho preciso, convergindo para um alto grau de domínio técnico – adquirido basicamente em termos autodidatas – que foi aprimorado ao longo dos anos, o qual se mostra inevitavelmente necessário para o exercício de seu ofício nos termos que veio a definir como sua linha de trabalho, na qual o inverossímil é tornado crível por meio de uma bem engendrada estratégia ilusória. A produção deste artista aposta em um grau rebaixado, desacelerado, da experiência de fruição. O código naturalista de representação característico de suas obras, exaustivamente perseguido, prescinde de soluções espetaculares ou estímulos visuais eletrizantes; na verdade, recursos de tal ordem são mesmo incompatíveis com a sutileza da proposta aqui em jogo. Armadilhas silenciosas para a percepção condicionada, sua efetividade se baseia justamente no chamariz de imagens ou peças que à primeira vista se mostram familiares a um repertório universal, quase comuns, para em seguida, após a devida observação, demonstrarem seu potencial desestabilizador. E desta forma Walmor faz do artifício seu ofício, visando não ao mero entretenimento, mas incitar à possibilidade de suspensão de algumas certezas e juízos tácitos, contrapondo a estes um elemento disruptor de saborosa perturbação. Artifício a não ser aqui confundido com a mera firula estilística, do efeito por si só ou da artimanha esperta, mas aquele entendido em uma acepção mais salutar: a do recurso engenhoso, na lógica processual interna do artista, que trabalha em favor da obra ou da potencialização dos vários nexos que ela encerra. Artifício que neste caso se confunde com a própria fatura em si e a fisionomia de suas composições. Não apenas das criaturas que as povoam, mas do esquema visual como um todo, incluindo a caligrafia e o teor dos textos descritivos, componentes orgânicos de sua arte, bem como a eventual ambientação de uma situação expositiva, os móveis que projeta para exibir determinadas séries, e por aí vai. 6

Walmor vem assim elaborando discreta e abnegadamente todo um bestiário de criaturas fascinantes em seu hibridismo singular. A escala de suas referências iniciais dá também a medida dos seus passos nesse processo. Primeiro foram os insetos, que “catalogava”, devidamente ficcionados, e exibia à maneira dos dispositivos de instituições de história natural. Depois vieram animais de maior porte, aves, roedores e mamíferos, fundidos em uma simbiose harmoniosamente perversa. A certa altura decidiu aprofundar o grau de imersão de sua pesquisa visual, passando a estudar e fabricar também os esqueletos das criaturas que lhe instigavam. Sua obsessividade apaixonada o levou a desenvolver novas soluções formais de apresentação, ainda que sempre se mantivesse fiel à lógica do código cientificista em que se ampara. Os desenhos/pinturas ganham a companhia de peças tridimensionais, como esqueletos e animais híbridos taxidermizados. Essas peças – como um crânio semi-humano, estruturas ósseas de uma sereia ou de pequenas criaturas aladas – assinalam o afã do artista em dar um passo além em suas investigações; o apuro na apresentação sugere o desejo por uma experiência de fruição mais envolvente para sua obra, acrescendo à sua produção um toque “arqueológico”, por assim dizer. Estes objetos-esculturas e outros artefatos, quando expostos, atuam também como elementos de ativação extra ao conjunto, emprestando a ele um maior sentido de unidade, uma ambientação no limite do cenográfico que intensifica a experiência do contato com a obra. E ali pelas tantas desponta em seu panteão transmórfico a figura humana, em representações antropomórficas de entidades do imaginário popular, desdobrando-se também em outros registros posteriores. É o caso da série Unheimlich1, abrangendo mitos do folclore brasileiro, apresentados à maneira de cadáveres dissecados, em registro taxionômico que expõe sua estrutura biológica improvável à curiosidade do espectador. Está ali, ilustrado com riqueza de detalhes, todo um mapa da fisiologia destas criaturas, destrinchando sua anatomia e descrevendo com clareza e minúcia o funcionamento misterioso de seus órgãos internos e externos. O que mais chama a atenção nessa série é uma mudança sensível na estratégia de operações do artista: aqui, ele passa pela primeira vez a adotar como referências ou matrizes figuras já pertencentes 7

ao universo do fantástico, como a Ondina, o Curupira, o Capelobo e a Cachorra da Palmeira. Tal movimento gera uma inversão na chave perceptiva instaurada pela lógica de “convencimento sugerido” anterior, uma vez que ao nos defrontarmos com essas imagens já se sabe ou intui o teor de fantasia que elas carregam; assim, o estranhamento agora se dá na mão inversa, na sugestão em conferir uma dimensão humana ou terrena àquelas criaturas. Em outra medida, a série Super-heróis exibe uma variação desta guinada, ao apresentar personagens do universo ficcional das HQs como o Homem-Aranha, o Pinguim e a Cheetah2. A inovação aqui está, a meu ver de modo estimulante, no fato de Walmor permitir-se a apropriação do imaginário visual da cultura pop, fato que sinaliza um interesse em expandir seu modus operandi para um repertório iconográfico que agencia outra instância de reconhecimento por parte do público, além de imprimir mais explicitamente uma camada de humor a sua obra. Não por acaso as três figuras guardam características [e “poderes”] animais, sendo apresentadas no mesmo registro taxonômico dos mitos do folclore brasileiro, conjugando aquele que talvez seja o grupo mais inusitado e visualmente impactante de suas criações. *** A citação inicial deste texto, como está assinalado, é extraída de A ilha do Dr. Moreau, clássico da literatura de ficção científica de primeira hora, escrito na esteira de avanços científicos significativos de final do século 19 e de polêmicas evolucionistas e behavioristas, e que oferece paralelos irresistíveis a serem contrapostos à linha de raciocínio deste artista. Assim como o cientista obsessivo e ensandecido que, recluso em sua ilha, promovia experimentos perturbadores no intento de criar uma nova espécie, um “homem melhorado”, a partir de animais, a práxis do artista também parte de uma vontade transformadora, ainda que − felizmente – menos ambiciosa e distópica. Ao levar a cabo suas experimentações, Walmor compartilha superficialmente com Moreau do desejo e da pretensão de insuflar vida, embora em medidas bem diversas, a 8

criaturas improváveis. Mas, indo além, assim como H. G. Wells concebeu sua obra como um libelo em favor de discutir uma ética ainda incipiente em torno das premissas inconsequentes advindas do fervor cientificista então reinante, o artista também é movido por inquietação e questionamentos acerca de paradigmas instituídos pela ciência que, no entanto, podem se mostrar falíveis − como de resto é próprio da natureza humana. E toma essa possibilidade de falha como potência para desenvolver sua pesquisa artística, como se vê. Esse viés, presente em todo o corpo de sua obra, mostra-se de modo mais sensível em sua Biblioteca dos enganos, talvez o trabalho que melhor explicite esse aspecto, ainda que, por outro lado, solicite um grau de atenção mais acentuado. Aqui o falseamento se apresenta em registro mais elaborado: tomado de saída como assunto, é trabalhado em uma operação que visa corrigir, ou “atualizar”, dados coletados mais de um século antes por um pesquisador alemão, durante expedição científica que registrou espécies da fauna no Rio Grande do Sul. Walmor então procedeu à verificação destes dados de época, pesquisando e comparando-os com os disponíveis hoje, assinalando os equívocos e descompassos na catalogação de animais à época e ilustrando-os, “corrigidos”, em 25 livros de artista que compõem o conjunto. Trata-se, portanto, de um procedimento bastante sintético e emblemático das pulsões acima comentadas. *** No ensaio seminal “O artista como etnógrafo”3, referência no debate artístico dos anos 1990, o historiador da arte Hal Foster percebe e localiza uma nova cartografia se desenhando na produção artística contemporânea. Ali, Foster discute e problematiza a posição do artista como “sujeito da obra em relação com o outro”. Assinala uma tendência a que se refere como “arte quase antropológica” para designar práticas artísticas, então emergentes, que se mostravam intensamente informadas pela alteridade e pela agenda do multiculturalismo, estabelecendo assim um paralelo com a função do etnógrafo, atualizando-a em chave aberta. Pois bem, o registro do etnógrafo certamente 9

se mostra também presente em Walmor Corrêa, ainda que de modo diverso do apregoado por Foster, aproximando-se mais de um modelo “clássico”, que se mistura ao do biólogo e do antropólogo visual: aquele do métier silencioso e minucioso da observação e da coleta de dados, a serem posteriormente interpretados e retrabalhados. Aproximação que no entanto se revela capciosa, ainda que enfatizada pelo instrumental técnico e nos procedimentos eminentemente “científicos” empregados pelo artista: pois, a uma leitura mais cuidadosa, vêm à tona os elementos transgressores daquela tradição que tornam sua produção singular. O diferencial peculiar que confere a essa produção autonomia em relação ao código estritamente cientificista reside em um elemento subversor de elegante inventividade, sutil e deliberadamente introduzido por Corrêa na caracterização de suas criaturas. Ele se apropria de códigos e modos operacionais deste universo para delicadamente subvertê-los, ao introduzir um dado ficcional que tanto pode gerar criaturas fantásticas, como aproximar do mundo natural seres gerados pela imaginação e cultura populares. Delicadeza e sutileza que não significam doçura ou afável assimilação; sua fauna fantástica é marcada por um componente de perversa familiaridade, em sua conformação híbrida. A beleza das composições, a fatura minuciosa e o acabamento primoroso de suas peças podem mascarar a natureza de suas intenções, a serviço de questionamentos incômodos – ainda que equacionados com o apuro estético. À maneira de um demiurgo intimista, as manipulações e “alterações genéticas” que Walmor efetua indicam também uma pulsão de controle e uma vontade arbitrária que parecem longe de buscar apenas o afago – estaria ele entre Moreau e o etnógrafo, talvez? É à maneira de um etnógrafo contemporâneo, portanto, mas dotado de uma sensibilidade apurada e singularmente distorcida, que esse artista opera em uma via oblíqua, convidando o espectador a uma breve experiência imaginária do mundo. Um mundo suspenso, habitado por delicadas criações de existências improváveis e ao mesmo tempo no limite do plausível, “cientificamente” – e por isso mesmo de grande fascínio.

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O termo d’après nature designa com alguma pompa a condição atribuída a qualquer obra de arte concebida e executada a partir da simples observação direta da natureza. Se é assim, a produção de Walmor Corrêa não apenas se ajusta como reafirma e expande essa expressão, em sua pulsão de ir além da natureza. Corrigindo-a, atualizando-a ou deturpando-a a serviço do encanto ou da provocação, pouco importa – mas transformando-a ou recriando-a ao sabor de uma imaginação irrequieta e estimulante. Julho | Agosto de 2010

1  O unheimlich, noção ou conceito desenvolvido por Sigmund Freud a partir de escritos de Schelling, designa na perspectiva psicanalítica, grosso modo, um sentimento do que nos é a um só tempo estranho e familiar. É a meu ver um conceito bastante emblemático não só desta série, mas da poética de Walmor Corrêa como um todo, sintetizando a lógica em que se estrutura sua práxis 2  O Pinguim é um arquivilão, nêmesis do Batman; a Cheetah surge como uma oponente da Mulher-Maravilha. O Homem-Aranha, bem mais popular, dispensa comentários. 3  FOSTER, Hal. “The artist as ethnographer”, in The return of the real − The avant-garde at the end of the century. Cambridge: MIT Press, 1996.

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Pelagius Sonhatorum Chin, 2004 grafite e acrílica s/tela, 190 x 90 x 03 cm

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Amphibiem mit Schnabel - Parte óssea, 2003 grafite e acrílica s/tela, 190 x 90 x 03 cm

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Schnabelspringer - Parte óssea, 2004 grafite e acrílica s/tela, 122 x 195 x 03 cm

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Ondina - Série Unheimlich, 2005 grafite e acrílica s/tela, 195 x 130 x 03 cm

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Ipupiara - Série Unheimlich, 2003 grafite e acrílica s/tela, 195 x 130 x 03 cm

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Cachorra da Palmeira - Série Unheimlich, 2005 grafite e acrílica s/tela, 195 x 130 x 03 cm

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Cheetah - Série Unheimlich, 2007 grafite e acrílica s/tela, 195 x 130 x 03 cm

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Spider-man - Série Unheimlich, 2007 grafite e acrílica s/tela, 195 x 130 x 03 cm

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Penguin - Série Unheimlich, 2007 grafite e acrílica s/tela, 195 x 130 x 03 cm

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Biblioteca dos Enganos, 2009 livros: grafite e lápis de cor sobre papel, encadernação, 25 livros, 30,6 x 37,4 e 39 x 45 cm móvel: madeira e vidro, 45 x 327 x 469 cm escada: madeira, 61 x 180 x 107 cm

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Galho, 2010 ferro, taxidermia e acrílica, cerca de 40 x 30 x 50 cm

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Pássaro, 2010 ferro, taxidermia e acrílica, cerca de 18 x 25 cm

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Diorama Cartesiano, 2010 grafite e acrílica s/tela, 140 x 160 x 03 cm

Diorama (tucano), 2010 madeira, osso, resina, acrílica e caixa de acrílico, 125 x 108 x 50 cm Caixa de Música, 2010 Madeira, osso, resina, vidro, acrílica e máquina, d. 27 x 47 cm

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walmor corrêa O meu primeiro contato com o universo da arte aconteceu na escola, durante as aulas de Biologia. Como tinha, de um lado, muito carinho e curiosidade pelos animais e, de outro, desenhava tudo o que via e estudava em sala de aula, um professor de Ciências me convidou a ajudá-lo nas aulas de laboratório. Foi também esse professor que me apresentou o trabalho de Leonardo da Vinci, fazendo-me perceber, pela primeira vez, o desenho como manifestação artística. No laboratório, eu acompanhava o processo de dissecação de animais para, na sequência, desenhar-lhes a anatomia interna. Lembro-me bem do fascínio que aquele ambiente me suscitava e, se comecei falando dessa experiência, é porque me parece que foi ela, de forma embrionária, que alinhavou o meu futuro como artista. Aos 17 anos mudei-me para Porto Alegre, cidade que me adotou e na qual vivo até hoje. Na época, embora tenha iniciado os estudos de Arquitetura, fui me encaminhando de modo definitivo para o campo das Artes Visuais, aperfeiçoando, de modo praticamente autodidata, a minha técnica, uma combinação de desenho e pintura. Em 1989, um momento particularmente significativo: em viagem à Europa, tive oportunidade de observar o trabalho de alguns artistas viajantes dos séculos XVIII e XIX. Dez anos depois, em 1999, outra situação marcante: conheci parte da floresta amazônica, descortinando algumas espécies de suas flora e fauna. Esses dois contatos foram definitivos para mim. De um lado, eles me remetiam ao período de juventude e ao cotidiano de silêncio e morte junto ao laboratório de Ciências; de outro, fortaleciam o meu trabalho como artista, já calcado nos instigantes cruzamentos entre arte e ciência, realidade e ficção. De volta a Porto Alegre, questionando as minhas impressões sobre a natureza, a evolução e as inúmeras possibilidades de criação que a arte oferece, resolvi dar forma aos meus próprios seres. Comecei criando pequenos insetos, atribuindo-lhes não somente uma morfologia especial, como nomes em latim ou em alemão, como é comum no meio. Desenhados sobre tela e coloridos suave29

mente, esses insetos também foram fixados ao suporte por meio de alfinetes e apresentados em um móvel entomológico, de acordo com a tradição dos museus de História Natural. Chamei esse trabalho de Catalogações/Coleções. Depois disso, refletindo oniricamente sobre os postulados da Teoria Evolucionista, criei os Dioramas, remetendo-me, mais uma vez, aos museus de História Natural. Nesses ambientes, os animais aparecem empalhados e dispostos em um cenário que imita o seu habitat natural, propondo um recorte de sua existência no mundo. No meu caso, eliminei esse cenário, colocando os seres contra um fundo branco, como é característico dos desenhos taxionômicos. Diante desses trabalhos, o espectador mais distraído certamente vai reconhecer galinhas, coelhos e macacos. Entretanto, observando com um pouco mais de atenção, ele perceberá que todos os animais ali representados são, na realidade, invenções, mistos de aves com peixes, de mamíferos com répteis. Animais de existência improvável, a não ser na imaginação. O conjunto dos Dioramas se desdobrou na série Apêndices (Catalogações), na qual criei possibilidades de existência para os meus híbridos, embora essas também fossem fictícias e fantasiosas. Analisei alguns desses animais individualmente, descrevendo não apenas suas curiosas anatomias, como relatando, por meio de texto, seus hábitos alimentares, suas rotas migratórias, seus métodos de acasalamento. Tudo imaginado. E como acreditava que figuras tão bizarras exigiriam esqueletos igualmente diferenciados, dediquei-me à estrutura óssea de alguns espécimes. Os trabalhos dessas duas séries, Apêndices (Catalogações) e Esqueletos, foram apresentados, em sala especial, na 26ª Bienal Internacional de Artes de São Paulo, em 2004. Naquela ocasião, pude acompanhar com muito interesse e curiosidade os vários debates suscitados pelas imagens, principalmente entre o público de crianças e adolescentes. E uma das perguntas mais discutidas era: Afinal, aqueles animais poderiam existir? Acredito que esse tipo de questionamento acaba apontando certos limites da Ciência, bem como o aspecto ilimitado das Artes Visuais. Jogando com esses dois campos, e como querendo justificar a existência de seres do imaginário popular, 30

realizei o conjunto de cinco pinturas da série Unheimlich. O termo unheimlich designa, segundo Sigmund Freud, o que é estranhamente familiar. Assim, apropriei-me de seres oriundos da cultura folclórica brasileira, todos híbridos de humanos com animais, e realizei uma dissecação imaginária. Na verdade, eu quis mostrar como, anatomicamente, aqueles seres seriam possíveis. Afinal, há dezenas de registros escritos e verbais de pessoas que afirmam já ter visto a Ondina (sereia), o Ipupiara, o Curupira, o Capelobo ou a Cachorra da Palmeira. Então, se há esses testemunhos, por que tais seres não existiriam? A minha brincadeira foi de, ao realizar essa dissecação, apontar como determinados órgãos funcionariam, permitindo a vida dessas criaturas. Para isso, realizei pesquisas e entrevistas com médicos, e inseri, na parte textual do trabalho, essas informações. Imagem e texto, portanto, balizam o meu discurso. Em 2007, mantendo as mesmas reflexões, realizei a instalação Memento Mori, apresentada em dois momentos: no Instituto Goethe, em Porto Alegre (2007), e na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro (2008). Nesse trabalho, em uma alusão ao limite tênue entre a vida e a morte, dei forma escultórica aos meus híbridos − todos eles mistos de pássaros, com as mais variadas, inusitadas e sutis conformações. Partindo de esqueletos reais de aves mortas em laboratórios de universidades, dei então forma tridimensional a seres que antes estavam apenas em minha imaginação. Coloquei-os a dançar, fixados a máquinas de caixas de música, em um estranhamento proposital entre a rudeza do esqueleto, e de tudo a que ele remete, e a suavidade e o frescor da música. Esse trabalho foi agraciado com dois importantes Prêmios Açorianos, concedidos pela Prefeitura de Porto Alegre: Melhor Exposição e Artista do Ano (2008). Desde 2008 venho me dedicando a projetos especiais, como Salamanca do Jarau – uma visão pessoal, que realizei junto à Fundação Can Xalant, em Mataró, cidade próxima a Barcelona, mesclando, uma vez mais, o universo da arte, da ciência e o imaginário dos artistas viajantes, tema que tanto me fascina e que, por meio da minha poética e de forma contemporânea, busco discutir e atualizar.

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walmor corrêa

memento mori

o ofício do artifício

visitação de 29 de outubro a 28 de novembro de 2010 de terça-feira a domingo, das 9 às 21 horas entrada franca curador  Guy Amado produção  Agenda Projetos Culturais fotos  Denise Andrade, Letícia Remião e Thomas Erh projeto gráfico  Silvia Amstalden

Caixa Cultural Brasília – Galeria Picolla 1 SBS Quadra 4 – lote 3/4.  Brasília/DF  CEP 70092-900 tel. (61) 3206-9450 | 3206-9448  www.caixacultural.gov.br

produção

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