Darras, B. (2008) As varias concepcoes da cultura e su efeictos sobre os processos de mediacao cultural

May 31, 2017 | Autor: Bernard Darras | Categoria: Museum Studies, Arts Education, Museum Education
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Sumario

Apresentaçao 7 Ana Mae Barbosa e Rejane Coutinho Parte 1 - Quest6es da Mediaçao Il l Mediaçao cultural é social 13 Ana Mae Barbosa 2 As varias concepçoes da cultura e seus efeitos sobre os pracessos de mediaçao cultural 23 Bernard Darras 3 Modos de pensar museologias: educaçao e estudos de museus 53 Carla Padro Puig 4 Polfticas de emprego cultural e 0 oficio da mediaçao 71 Elisabeth Caillet 5 Educaçâo como mediaçâo em centros de arte contemporânea 85 Carmen Lidon Be/tran Mir Parte 2 - Mediaçâo em Museus e Centras Culturais 103 6 Comentarios sobre mediaçâo cultural. A prâtica de um modo-modelo e suas atualizaçœs: as in tervençoes de tipoconversacional em presençad ireta 105 Françoise julien-Casanova 7 Para além do olhar: a construçâo e a negociaçâo de significados pela educaçao museal 121 Susana Gomes da Si/va

Ana Mae Barbosa • Rejane Ga/viio Coutinho

8 Trocando experiências: a aventura moderna revisitada na proposta de mediaçâo da mostra Acacio Gil Bors6i e os artistas Vicente do Rego Monteiro e Joâo Câmara 141

Joana D'Arc de Sousa Lima 9 Mediaçâo cultural no CCBNB Catiri

161

Fâbio José Rodrigues da Costa

]a Estratégias de mediaçâo e a abordagem triangular

171

Rejane Galvâo Coutinho Il Estratégia de mediaçâo para a exposiçâo Morte das Casas - Nuno Ramos 187 Alberto Tembo, Camila S. Lia, Christiane Coutinho

Equipe do Arteducaçâo Produçi5es Parte 3 - A Medjaçâo e 0 Contexto Educacional 203 12 Diâlogos e reflexoes corn educadores: a instituiçâo cultural coma potencialidade na formaçâo docente 205

Erick Orloski 13 Traços e passos: visitas ao Museu Lasar Segal!

229

Anny Christina Lima 14 Espaço Estético do Colégio de Aplicaçâo da UFSC: possibilidades de mediaçâo cultural na escola 237

Fabiola Cirimbelli Burrigo Costa 15 A mediaçâo no museu e os resultados na sala de au la

261

Pio Santana 16 Visualidades comuns, mediaçâo e experiência cotidiana

269

Irene Tourinho 17 0 desenvolvimento do pensamento estético no ensino fundamental

285

Maria Helena Wagner Rossi Parte 4 - Mediaçâo e Reconstruçâo Social 293 18 Reflexoes sobre 0 ensino da arte no âmbito de ONGs

295

Livia Marques Carvalho 19 Exposiçâo coma curriculo: novos modelos de mediaçâo Arnold Aprill e Scott Sikkema 20 Resfduos e "Reciclos" 325

305

He/oisa Margarido Sales 21 A arte possibilita ao ser humano repensar suas certezas e reinventar seu cotidiano 335

Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo 6

2

As vârias concepçoes da cultura e se us efeitos sobre os processos de mediaçdo culturaP

Bernard Darras

Tentaremos demonstrar que as diversas concepç6es e definiç6es da cultura engendram diferentes formas de mediaçao, que, longe de serem prâticas homogêneas, aparecem coma intersemi6ticas muito dependentes de seus contextos de representaçao ideol6gicos e epistemol6gicos e das relaç6es geralmente conflituosas que elas têm entre si. Essencialmente aplicado à problematica da arte e da cultura, este artigo questiona as relaç6es de autonomia, heteronomia e alonomia (independência, interdependência e dependência) existentes entre os sistemas e os meios que os cercam. o texto auxilia a compreender por que os mediadores se dividem freqüentemente em varias posturas e por que suas aç6es e intervenç6es SaD muitas vezes paradoxais. Uma apresentaçâo do museu de Louvain-la Neuve (Bélgica) e de sua museografia coma modo de mediaçao dial6gica e critica sera apresentada no final do artigo. Nés nos diverrfamos olhando "0 jardim das ervas daninhas" no patio do Musée Internationale des Arts Modestes (Miam) em Sete, no sul da França. l Traduçâo de Silvana Bernardes Rosa, Maria-Lucia Batezat Duane, Dannyelle Va-

lente, .Lucia Le Menn e Claire de Oliveira.

.

Ana Mue Barbosa • Rejane Galvao Coutinho

Do alto dos seus treze anos, Quentin me perguntou 0 que eu pensava daquilo. Eu Ihe falei da seleçao natural que havia dado a estas plantas uma resistência extraordinaria; evoquei a seleçao pela cultura agrîcola que privilegia as plantas comestiveis, rentaveis ou decorativas e que despreza ou destroi as ervas daninhas, enfim eu Ihe falei da cultura artistica que durante muita tempo privilegiou as coisas extraordinarias destinadas às pessoas mais afonunadas, mas que sem pre deixou de lado as pequenas coisas, as coisas modestas, humildes e comuns. Pequenas coisas que podem ser valorizadas por artistas que sabem charnar nossa atençao sobre elas e sobre a sua propria capacidade de valorizalas. Perguntei a Quentin 0 que ele pensava da coleçao de objetos apresentada por Hervé Di Rosa e Bernard Belluc nos espaços e vitrines do museu. Ele respondeu-me que era sensacional e que pela primeira vez ele visitava um museu que se preocupava COOl 0 seu mundo, com seus objetos preciosos, seus tesouras, seus brinquedos, seus gostos, e com os objetos de seus desejos. Ele me fez entrar de nova no espaço dos brinquedos e maque tes de ficçâo cientifica. Conhecia todos os objetas e os denominou com termos por mim desconhecidos. Descrevia com precisâo suas historias, seus estilos e qualidades. Indicou-me a presença de colecionadores de grande val or. Com seu vocabulario de adolescente, ele avaliava, comparava, julgava, apreciava, admirava e sonhava. Ele se diverti a um pou co com a minha ignorância e minhas observaç6es ingênuas. Quando eu Ihe perguntei se para ele aquilo era arte, eJe sorriu, e me respondeu: "para 0 museu isto é arte modesta, mas para mim é a minha cuILUra".

Cultura e definiçâo de arte no Ocidente

----.'1.

~r----"~ Atividades materiais e simbolicas ••

,L..,. - - - -...~

Luxo, divertimento etc.

@

a

Diagrama 1

No Ocidente, varias maneiras de pensar e de organizar os fenômenos culturais coexistem e sao mais ou menos concorrentes. Todas representam 24

A rte/educllçiio coma mediaçao cultural e social

a cultura coma uma inc1usao de dois ou três niveis em interaçao. 0 nivel mais genérico compreende 0 conjunto de atividades materiais e simb6licas desenvolvidas pelos humanos, ao passo que 0 segundo nivel - incluido no primeiro - concerne unicamente às atividades materiais e simb6licas especializadas na produçao, na recepçao e no consumo do luxo, do divertimento, do jogo, de prazeres e experiências estéticas. 0 conjunto das produç6es que comp6em esse nivel mantém relaç6es de dependência ou de cooperaçao corn os poderes econômicos, polîticos e sociais. Nele em geral se reunem as indûstrias culturais e criativas. Certas concepç6es te6ricas e ideol6gicas definem um terceiro nivel, considerado uma hiper-realizaçao do segundo ou uma emanaçao relativamente autônoma que resulta do cruzamento de certas praticas culturais corn as dimens6es metafîsicas, espirituais e intelectuais da cultura. 2 • Na tradiçao ocidental esse é 0 nivel da arte e da cultura artistica. Para grande parte da populaçao, s6 esse nivel merece ser chamado de cultura e as outras produç6es humanas nao passam de costumes, de atividades de prazer e de distraçao; resumindo, nao passam de incultura. Seguindo as reflex6es desenvolvidas pelos estudos culturais, este artigo se situa onde se confrontam as concepç6es antropol6gicas e humanistas da cultura. Os estudos culturais que inspiram este texto operam, em particular, na tensao entre essas tendências gue entrelaçam uma antropologia aberra e a mais estreita concepçao humanîstica de cultura .... Mas, ao contrario do humanismo tradicional, elas rejeitam a eguaçao exclusivista de cultura como alta cultura e argumentam gue todas as formas de produçao cultural precisam ser estudadas em relaçao às praticas culturais e às estruturas sociais e historieas. Estudos culturais sao, entao, comprometidos com os estudos de todas as modalidades de arte, crenças, instituiçôes e praticas cornunicacionais da sociedade 3 • (Nelson; Treichler; Grossberg, 1992)

Este projeto é mais limitado. Aqui, tenta-se evidenciar que diferentes conceitos de cultura coexistem e recortam 0 mundo cultural em diversas praticas mais ou menos superpostas ou justapostas. Num primeiro momento, tentaremos distinguir e evidenciar esses grandes tipos de modelizaçâo do mundo cultural. Oepois. chamaremos a atençao dos mediadores da

2 Sobre esse rerna, 1er ob ra consagrada à sujeiçiio filos6tica da arte, de Damo, 1993.

3 Citaçao em inglês no original. (N.T.) :l5

Ana Mae Barbosa • Rejane Ga/viio Coutinho

cultura e da arte sobre as diferenças de prindpio e de 16gica que mantêm essas distintas concepçoes. A tipologia a seguir lista e classifica as oito principais maneiras de conceber, recortar e organizar 0 universo da cultura. Suas varias versoes sâo estudadas adiante segundo seu modo de difusâo e mediaçâo.

[ Pelos valores do mercado Graduados Sistemas continuos

[

Pelos valores da cultura Equânimes Autônomos hermeticamente fechados Autopoiéticos

[ Autônomos circunscritos Dialéticos

Sistemas divididos

Heterônomos [ Dial6gicos Auto-ecoorganizados Alônomos"

Diagrama 2

Essa tipologia nâo consegue evitar as dificuldades inerentes a tal tentativa. Necessariamente incompleta, nao considera certas nuanças e produz de modo artificial certos hermetismos, justamente onde a permeabilidade é maior. Mas, apesar de seus defeitos, permite distinguir idéias seguidamente confundidas, uma vez que sâo superpostas na pratica, na organizaçao e na interpretaçao dos fenômenos culturais. A tipologia procura fazer a sfntese das trés principais concepçoes de cultura propostas pela Sociologia. A primeira é economista e considera a cultura um mercado. 5 A segunda é fruto do trabalho de Pierre Bourdieu em que 0 conceito de "campo" se aplica de inicio ao universo religioso antes 4 Pouco utilizada em português, esta palavra "alônomo" tem Como prefixo "alo" (do grego allo) gue significa "outra". Trata-se agui de nomear uma praduçâo realizada sob a oricntaçao de outras, camo crenças espedficas ou principios determinantes. Um sistema alônomo é, portanto, um sistema dependente, justo ao contrario da independência dos sistemas autônomos. (N.T)

5 Ver os trabalhos de Raymonde Moulin. 26

Arte/educClftW como mediClfiio cultural e social

de ser exportado para 0 dominio vizinho da arte. A terceira, enfim, é a de cultura coma "mundo", cujo quadro conceitual foi definido pel os trabalhos de Howard Becker.

Os sistemas culturais em continuum Na primeira categoria sac c1assificados os sistemas que concebem os espaços cultural e social sob a forma de uma continuidade. Neles, as produç6es culturais sac graduadas em virtude dos diferentes sistemas de val ores, coma raridade, novidade, cotaçâo no mercado, beleza ou universalidade. Mas eles podem nao ser organizados ou hierarguizados. Nesse casa sac os prindpios de indiferenciaçâo, egüidade ou incomensurabilidade que prevalecem.

Graduaçâo segundo os va/ores do mercado e do consumo É um sistema concebido segundo uma forma de continuum graduado e hierarquizado de produtores e consumidores. No topo da hierarquia encontra-se uma elite econômica, mediatica e cultural, que inventa e se apropria de tudo que é raro e novo. Ela aprecia as exclusividades e os prot6tipos que experimenta e ajuda a seledonar os produtos, que sâo rapidamente promovidos e podem cumprir 0 seu destino na industria e no consumo de massas, indo progressivamente ganhar todas as camadas da sociedade. É assim que os consumidores podem ter acesso a produtos culturais multiplicados, replicados, reproduzidos, ou imitados por processo industrial. Os motores psicol6gicos e sociais dessa difusâo sac a emulaçao, 0 desejo social, a imitaçao e 0 prazer de consumir. Na medida em que esses produtos culturais sac reproduzidos e difundidos, eles perdem seu valor e sao continua e incansavelmente substituidos por outras. Quando um praduto é social mente esgotado, ele é eIiminado por completo. Bem mais tarde, alguns sobreviventes que se tornaram raros e hist6ricos poderao, graças a sua raridade e antigüidade, ser reciclados e conhecer um nova processo de valorizaçao entrando no patrimônio das coleç6es. Ainda que as finalidades de tal concepçao sejam aguelas da industrializaçâo e da difusâo de massa, 0 sistema conhece algumas exceç6es herdadas ou desviadas de outras percepç6es da cultura. Dessa forma, a possibilidade de produzir industrialmente objetos em séries limitadas ou individualizadas tenta mudar 0 funcionamento da praduçao de massa aplicando-Ihe re27

Ana Mae BarbosCi • Rejane Ga/I'ao Coutinho

gras e val ores dos mercados de raridade. No entanto, essa exploraçâo da capacidade de produzir industrialmente a diversidade é uma tênue imitaçâo do mercado da originalidade. Em contrapartida, a extrema raridade ou preciosidade de certos objetos, assim como a produçâo de objetos unicos ou a limitaçâo atiragens reduzidas, leva a criar uma categoria de objetos excepcionais que escapam ao fluxo de mercadorias comuns para entrar na categoria de objeto de arte. (Podemos, assim, nos espantar que certas fotografias tenham sido desviadas do processo de reproduçâo, que é uma de suas especificidades técnicas, para ganhar 0 estatuto artfstico de objeto (mico.)

Graduaçiio segundo os valores da cultura Os valores e as virtudes promovidos pelas concepçoes humanistas e universais da cultura pretendem ser menos cfnicos, menos interessados e menos triviais que aqueles do mercado. Entretanto, criam um espaço cultural continuo, que compreende as produçoes mais modestas e mais triviais classificadas abaixo do continuum, ao passo que as produçoes mais virtuosas, mais heroicas, mais singulares, mais universais e mais essenciais sâo colocadas no alto dessa hierarquia. As qualidades eleitas para representar as propriedades culturais superiores sâo em geral as que, de um jeito ou de outro, sâo julgadas dignas para contribuir com a elevaçâo espiritual da humanidade e 0 enQbrecimento de seu comportamento. Essa concepçâo edificante da cultura é muito difundida: mergulha suas raizes no idealismo platônico, reforça-se no humanismo da renascença, depois na filosofia do iluminismo e, enfim, no progressismo modernista. Ela se nutre também das versoes spencerianas da teoria evolucionista e nâo daquela de Darwin, coma mostra Patrick Tort (1996). Nesse sentido, certas ob ras iriam se impor porque têm vütudes e qualidades superiores às outras produçoes que revelam 0 "metabolismo" da vida comum (Arendt, ] 972) . Exemplares; el as constituiriam os tesouros e as obras principais do patrimônio da humanidade. Essa abordagem entrega geralmente ao tempo 0 cuidado de fazer a seleçâo e a classificaçâo das obras, e em seguida contenta-se em registrar 0 resultado do filtra temporal que ela considera relativamente neutro. Essa citaçâo de Annah Arendt (1972, p.257) ilustra bem tais concepçoes humanistas: "[0 artista é] 0 produtor autêntico de objetos que cada civilizaçâo deixa para tras coma a quintessência e testemunho duravel do 28

Arteleducaçâo como mediaçiio cultural e social

espfrito que a anima". Em geral esses sistemas promovem os valores das elites ocidentais. A autenticidade, a espiritualidade, a singularidade, a originalidade, a unidade, a universalidade, a perenidade permitem hierarquizar a produçao cultural em razao de gradientes de superioridade e inferioridade. Essencialmente centradas sobre esse tipo de noçao do patrimônio universal e sobre a poder criativo incorporado nas obras pela gênio do humano e sua cultura, as concepç6es da Unesco contribufram para a universalizaçao dessa visao da cultura. Evocando seu sentido hist6rico de "governo dos melhores" (em grego, aristokratia), essa concepçao vertical e hierarquica da cultura pode ser qualificada coma aristocratica. Essa etiqueta nao repercute da mesma maneira em todo a Ocidente, mas é interessante notar que no Reina Unido os meIhores artistas padern ser enobrecidos pela rainha, e, na França, a Republica pode enobrecê-Ios par meio de três graduaç6es: chevalier, officier ou comandante da Ordem das Artes e Letras. Podemos também classificar nessa categoria certas idéias exclusivas da cultura que recusam sua noçao antropol6gica e utilizam esse termo exclusivamente em referência ao que engrandece a espfrito. Desde a século XVI, essa concepçao de "cultura cuita" privilegia a dimensao intelectual e seu desenvolvimento par meio de praticas apropriadas. Assim, para ]eanLouis Harouel, que se refere a Hannah Arendt, "Nao existe mais 'cultura popular'ou 'cultura burguesa', 'cultura de massa' ou 'cultura operaria'. 0 que existe é a cultura e a incultura" (Harouel, 1994, p.25). Essa noçao de cultura é ao mesmo tempo exclusiva e hierarquica. É exclusiva pela fato de limitar os fenômenos culturais classificando coma incultura a que, de acordo corn seus critérios, nao é cultura. É também hierarquica pois organiza os fenômenos culturais par um gradiente de elevaçao. Alain Finkielkraut (1987), outra adepto dessa concepçao, lamenta a fato de a fronteira entre a cultura e a diversao ter sida atenuada, e a da instabilidade do "todo cultural" ter substitufdo a que se relacionava exclusivamente à "vida corn a pensamento". Criticando a que é contrario a essa percepçao, ele condena os efeitos da concepçao p6s-moderna da cultura: "N6s vivemos em funçao do feeling: nao ha mais verdade, nem mentira, nem estere6tipos, nem invençao, nem beleza, nem feiura, mas uma paleta infinita de prazeres, diferentes e iguais. A democracia que deveria dar a todos a acesso à cultura se define, entao, pela direito de cada um à cultura de sua escolha (ou a chamar de cultura sua vontade do momento)" (1987, p.142). 29

Ana Mae Barbosa • Rejane Galvâo Coutinho

A equanimidade cultural A idéia equânime da cultura denunciada par Finkielkraut é animada pelos mesmos principios humanistas e universalistas que a precedente, mas rejeita suas dimensôes hierarquicas. Segundo a abordagem horizontal tîpica da p6s-modernidade, todas as produçôes valem e devem ser tratadas de maneira equânime e equivalente. As categorias herdadas das outras concepçôes da cultura, tante as hierarquizadas e as autônomas coma as heterônomas, sao abandonadas ou neutralizadas. As escalas e as diferenças sao equalizadas visando a uma horizontalizaçao do interesse e do julgamento. As produçôes sao valorizadas por elas mesmas, por sua simples existência ou por sua necessidade local. Nao sao jamais valorizadas em detrimento das outras. Toda diferença de valorizaçao é suspeita e contestada em nome de valores gerais e relativos. Nesse sentido, certas tendências no campo da arte autônoma têm contribuido grandemente para 0 desenvolvimento dessa abordagem. Declaraçôes coma "tudo é arte" e "todo mundo é um artista" ajudam a desconstruir os valores elitistas da arte para 0 desenvolvimento da equanimidade cultural. Essa concepçao equalizante nao deve ser confundida corn aquelas que valorizam as diferenças na sua incomensurabilidade.

Os sistemas de divisao da cultura Essa area foi objeto de numerosos estudos que dizem respeito ao processa de construçao da autonomia da arte e da estética diante das concepçôes da heteronomia. Tomando as categorias das ciências da organizaçao (sistêmica), propomos um recorte fundamentado nos estudos das relaçôes que um sistema mantém corn seu meio. Assim, distinguimos três grandes familias de interaçao e suas subdivisées. - 0 primeiro grupo é constituîdo de sistemas autônomos autopoiéticos, que decompomos em duas tendências: os sistemas autônomos hermeticamente fechados e os sistemas circunscritos. - 0 segundo é constituido de sistemas heterônomos, que se subdividem em sistemas dialéticos de uma parte e dia16gico auto-ecoorganizados de outra parte. - 0 terceiro é constituîdo dos sistemas alônomos que es tao sujeitos às leis de seus meios. 30

Alto Arte/educaçao como mediaçao cultural e social

Os sistemas do primeiro grupo se autodefinem, e recusam ou minimizam as relaçôes corn 0 ambiente. Os do segundo grupo negociam de maneira negativa ou positiva suas relaçôes corn seus meios, 0 que contribui para defini-los, especializa-los e enriquecê-los. Os sistemas do terceiro grupo sao de fato os subsistemas dirigidos do exterior. Na sua obra intitulada As regras da arte (1992; 1998), Pierre Bourdieu propôe uma modelizaçao do fenômeno cultural ocidental e teoriza a divisao entre as artes puras e as artes "comerciais". No diagrama a seguir, adaptamos sua modelizaçao à nossa abordagem.

Alto

Autonomia Arce

_

/ . Zoll~ ~ Autonôma produçao limitada/ • de reJelçao

~ • de conlIadiçâo

Artes "comerciais"

• de antagonlsmo complementar

Produçao de massa

Campo da alta cul tu ra

1

1

Artes aplicadas

1

Campo da cultura Campo do poder Espaço social Baixo

Dependência

.....f-----!!!!!!!!"!!!!!!!!"!!!!!!!!"----------------~.. Capital econômico

Alto

Diagrama 3 - Modelizaçâo da cultura dividida

Nesse diagrama 0 capital material cruza horizontal mente de um lado para 0 outro do espaço, ao passo que 0 capital simb6lico cruza vertical mente de baixo para cima. Podemos 1er, entao, aquilo que Bourdieu chama lia economia invertida", lei segundo a quaI quanto mais 0 capital simb6lico é elevado, mais 0 capital material é rebaixado, e reciprocamente. Do lado da 'a utonomia, no topO do capital cultural, concentra-se a produçao "pura" na quai 0 mercado é limitado ao microcosmodo campo artistico. Esse setor corresponde à concepçao que sera apresentada a seguir no 31

Ana Mae Barbosa • Rejane Galvâo Coutinho

item dos sistemas autopoiéticos. ]unto do campo das artes puras e autônomas, figuram as artes "comerciais" e "aplicadas" gue saD mais heterônomas e ligadas (integradas ou dependentes) às demandas e influências sociais, politicas e econÔmicas. Em certos casos, el as saD totalmente sujeitas às exigências dos seus ambientes e tornam-se alônomas. Em todos os casos se caracterizam por uma produçao mais abundante respondendo às expectativas e exigências dos publicos e dos mercados. No Ocidente, a divisao do setor da produçao cultural começou no século XVI com as demandas dos pintores e escultores italianos, depois os franceses, gue reivindicavam pertencer às artes liberais e rejeitavam sua submissao ao sistema das corporaçôes de offcio. 0 trabalho de dessujeiçao às condicionantes religiosas, morais, sociais e polfticas levou de modo progressivo ao aumento das independências do século XIX. As idéias autônomas e heterônomas de hoje saD herdadas desse movimento, gue também conheceu numerosas tendências reconciliadoras. As abordagens dialéticas sao persistentes, mas desde algum tempo elas têm sofrido a concorrência de atitudes dialogicas menos negativas gue buscam a complementaridade dos antagonismos.

Os sistemas autopoiéticos Utilizamos agui a concepçao de autopoiési de Maturana e Varela (1980) e a expandimos de maneira relativamente metaforica aos sisremas cul turais. Segundo eles, um sistema autopoiético é sensivel a seu meio, gue nao cessa de perturba-lo. No entanto, essas perturbaçôes saD suportâveis pelo sistema, gue as compensa de modo permanente e consegue se manter operacionalmente circunscrito. Podemos distinguir agui os sistemas por seus graus de autofechamento. Sistema autônomo hermeticamente fechado. 0 microcosmo da arte Neste primeiro caso, 0 sistema é fechado sobre si mesmo. É centrado sobre a criaçao, a obra, 0 artista, 0 meio artistico e a autodefiniçao da arte. Exclui ou ignora 0 mundo a sua volta corn guem pretende naD ter nenhuma relaçao, nem negativa no sentido de Adorno, nem positiva no sentido de Morin. Esses sistemas produzem sua identidade. Por meio de suas transformaçôes, eles distinguem a si proprios de seu meio ambiente, pelas suas interaçôes regeneram continuamente a rede gue os produziu, e constituem um sistema como unidade concreta no espaço (Varela, 1989, p.4S). 32

Arte/educaçiio como mediaçâo cultural e social

A ciência trabalhou muito tempo de maneira autônoma, e a independência e 0 isolamento de certas disciplinas cientfficas sac 0 resultado mais contestado desse método de trabalho, mas é 0 rompimento corn as preocupaç6es sociais que cavaram a mais profunda vala entre a ciência, os cientistas e a sociedade. 0 novo pensamento ambientalista denuncia, corn razao, esse isolamento, cujas conseqüências sac catastr6ficas para 0 sistema global. Essa dinâmica insular, centrîpeta e auto-referente atraiu bas tante os artistas no tempo da arte pela arte. Ela nutre também as aspiraç6es e os procedimentos que conduzem às dissidências sem conseqüências fora do microcosmo artlstico. Uma tempestade em um copo d'agua. Essa dinâmica leva em geral ao hermetismo das produç6es, corn 0 artista reproduzindo a seu modo 0 isolamento que 0 microcosmo mantém corn seu meio ambiente (e.g., Michaud, 2003; Kaufmann, 2001; Heinich, 1993; 2005). A autonomia fechada conhece as variantes multiculturais, as concepç6es neo-étnicas e "tribais" da cultura e da arte, que conduzem a varias multiplicaç6es de microcosmos culturais, sobre bases étnicas, sexuais (femininas, homossexuais), de idade (jovem), de classe etc. Cada grupo vigia ciumentamente 0 fechamento de sua rede para manter sua identidade. Juntos, militam para tomar conhecidas suas incomensuraveis e irremediaveis diferenças. Essa concepçao multicultural "tribal" permite integrar todos os sistemas autônomos fechados, inc1uindo, evidentemente, aquele do microcosmo da arte pura, que se toma uma estrutura "tribal" em meio a outras.

Sistema autônomo circunscrito Esse nlvel de organizaçao é bas tante pr6xima do anterior. Em geral ele é qualificado de autônomo no meio artistico e trabalha também a sua autonomia operacional, evitando as interaç6es corn 0 seu meio ambiente. Ele é centrado sobre a ob ra, a criaçao, 0 artista, 0 meio da arte e a autodefiniçao da arte, mas nao cultiva as l6gicas isolacionistas e 0 hermetismo.

Sistemas heterônomos Os sistemas dialéticos Seria muito ambicioso querer apresentar as diferentes idéias dialéticas e mais ainda querer fazer sua slntese. Herac1ito (provavelmente), Platao, 33

Ana Mae Barbosa • Rejane Ga/viio Coutinho

Arist6teles, Descartes, Kant, Hegel e a reviravolta propos ta por Marx forneceram as versôes da dialética que mais nutriram as teorias da arte do século XX e continuam a lhes irrigar. Ligadas à idéia de passagem, de troca e de progressâo, as concepçôes dialéticas requerem simultaneamente: - uma operaçâo de distinçâo, de divisâo e de contradiçâo entre mo e

0

outro,

0

um e

0

0

mes-

outro, que elas tentam compreender, um pelo

outro, sem no entanto os separar; e - uma operaçâo de totalidade que reconhece a inseparabilidade das contradiçôes em que importa descobrir os prindpios de uniâo em uma categoria superior (pelo menos na versâo hegeliana). Seja a respeito das relaçôes entre natureza e cultura, inteligivel e sensivel, forma e conteudo, arte e ciências, arte e cultura, arte e lazer, uti! e inutil, as diferentes concepçôes da dialética acentuam mais ou menos radicalmente esta ou aquela parte do sistema. Algumas insistem sobre a contradiçâo; outras, sobre a negaçâo; outras, sobre

0

excedente; e outras

ainda, sobre a totalidade. Os sistemas dia16gicos ou auto-ecoorganizados cultural mente Segundo essa idéia, para a quai extraimos a modelizaçâo de Edgar Morin mais do que aquela de Michael Bakhtin, 0 sistema é decididamente ao mesmo tempo autônomo e dependente. Tai uniâo dos antagonismos permite pensar os prindpios organizadores (Morin & Le Moigne, 1999, p.255). Os sistemas engajados nessa relaçâo dial6gica positiva se aproveitam dela para se regenerar do interior e do exterior. Cada um é, por sua vez, complementar a seu meio e seu antagonista. Nesse sentido é possivel dizer que a cultura organiza 0 mundo organizando-se a si mesma, mas também que, de um lado, 0 sistema da arte e, do outro, a industria cultural estâo passando por um processo de auto-ecorreorganizaçâo, e eles ajudam a organizar 0 mundo cultural organizando-se internamente. Da mesma forma, é possivel dizer que, em sua oposiçâo, as artes "autônomas" e as artes heterônomas (em particular as industrias culturais e de criaçâo) contribuem para sua auto-ecorreorganizaçâo redproca. De acordo corn tal concepçâo, 0 sistema de arte é suficientemente autônomo por buscar energia, informaçôes e mesmo organizaçâo em seu meio 34

Arteleducaçcïo corna mediaçcïo culcural e social

ambiente cultural geral e em seu meio ambiente mais imediato, constituido pelas artes mais heterônomas das industrias culturais. Essas interaçoes servem ao mesmo tempo para a arte se regenerar e interagir corn seu meio ambiente. As distinçoes e as oposiçoes sâo mantidas, pois sâo consideradas produtivas, positivas, e nâo mais s6 negativas tendo em vista a estética negativa de Adorno. De seu lado, as industrias culturais e de criaçâ06 valorizam, sem duvida, a criatividade e a inovaçâo coma matéria-prima fundamental. Corn isso, elas vivem de um modo integrado à du alidade entre cultura e economia e levam em conta os sistemas artisticos autônomos, coma laborat6rios, fabricas de prot6tipos ou produtores de tendências nas quais se devem inspirar. Os sistemas alônomos A estrutura desses sistemas nâo permite que eles se organizem. Sua finalidade, sua organizaçâo e sua administraçâo dependem de um ou de varios sistemas decis6rios externos que impoem suas regras. Trata-se, portanto, de sistemas na verdade completamente subjugados que nâo podem se liberar das pressées da religiâo, da metafisica, da moral, da poHtica, dos mercados.

Estudos dos modos de difusao e de mediaçao É importante distinguir a difusâo, que indica 0 transporte da informaçâo pelas midias, e a mediaçâo, que é uma operaçâo semi6tica de traduçâo. Uma e outra sâo necessariamente ligadas, pois a formataçâo midiatica veicula sempre os interpretantes pela semi6tica de C. S. Peirce. Nesse sentido, ha sempre uma parte de mediaçâo nos processos de difusâo.

6 De acordo corn a definiçâo da Unesco (). "As industrias culturais incluem a ediçâo impress3 e a multimidia. a produçâo cinematogrâfica. audioyisual e fonogrâfica. assim coma 0 artesanato e 0 design. Certos paises estendem 0 conœito à arquitetura. às artes plâsticas. às artes do espetaculo. aos esportes. à fabricaçâo de instrumentos musicais. à publicidade e ao turismo cultural. Nesse casa estamos falando mais das 'industrias criatiyas' (creative industries) . Nos meios econômicos. elas sâo quaIificadas coma 'industrias em expansâo' (sunrise industTies). e nos meios tecnoJ6gkos. coma 'industrias de conteudo' (content industries)".

35

Ana Mae Barbosa • Rejane Galviio Coutinho

A difusao e a propagaçao Todos os sistemas que estudamos podem se caracterizar pelo seu modo de difusao de experiências, usos, habitos, comportamentos, valores e conhecimentos. Os mais fechados privilegiam os movimentos centdpetos e os processos de reforço interno de sua identidade e de sua integridade. A rede nutre-se das informaçoes emitidas pela rede. Os sistemas mais aberros privilegiam diferentes modos de difusao, entre os quais figuram a irradiaçao espontânea, a emulaçao e a expansao, a reorganizaçao, a democratizaçao, a valorizaçao de todas as praticas.

As mediaçôes e a metamediaçao Oesde a primeira etapa de toda a produçao de signo, a mediaçao e a cultura estao associadas ao processo interpretativo. Se nos referirmos à estrutura do signo tal coma ela é definida por C. S. Peirce, um dos três componentes necessarios do signo funciona coma uma representaçao mediadora, um intérprete, um intercessor e um terceiro, que é proveniente de um conhecimento ja estavel, refletindo amplamente 0 conjunto de representaçoes e crenças que constitui a cultura. Em conseqüência, se 0 processo de mediaçao pelas instituiçoes culturais é imbricado em todas as operaçoes semi6ticas, a mediaçao pela cultura é um fenômeno elementar do pensamente e dos "intérpretes", aos quais C. S. Peirce faz referência e sao ativos em cada operaçao semi6tica. A mediaçâo é, entao, um processo de acompanhamento semi6tico e de inter-relaçâo semi6tica necessario que intervém em cada ocasiao de fabricaçao dos signos. A mediaçao da quai falamos neste capitulo nao é senac um tipo particular da mediaçao semi6tica elementar. 0 mediador (dispositivo, maquina ou humano), coma um intérprete, insinua-se no processo semi6tico elementar para Ihe inserir os interpretantes destinados a facilitar, desenvolver, efetivar, enriquecer, ampliar e mesmo questionar 0 processo interpretativo. o mediador profissional escolhe (e ajuda a escolher ou a elaborar) os interpretantes de acordo corn 0 tipo de mediaçao e seu porencial. Em conseqüência, um mediador cultural seleciona ou contribui para co-elaborar os interpretantes no campo cultural de sua referência, portanto, corn base na concepçâo que ele tem de cultura. 36

Arte/educaçao como mediaçao cultural e social

Obj'ta

Representaçôes e crenças do destinatario

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