DARWIN, WALLACE, A SELEÇÃO NATURAL E O BRASIL

June 2, 2017 | Autor: Ildeu Moreira | Categoria: História da ciência
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DARWIN, WALLACE, A SELEÇÃO NATURAL E O BRASIL A verdade nasce no mundo somente em meio a resistências e provações; cada nova verdade é sempre recebida como indesejada. Esperar que o mundo receba uma nova verdade, ou mesmo uma verdade já antiga, sem questioná-la é buscar por um daqueles milagres que jamais ocorrem. [Alfred Wallace]

Ildeu de Castro Moreira Instituto de Física / UFRJ

No dia 1 de julho de 1858, uma sessão na Linnean Society, em Londres, deu partida a uma mudança radical em nossa visão de mundo. O impacto imediato do anúncio da nova teoria sobre a origem de plantas e animais foi modesto. Mas era o epicentro de um terremoto que, no ano seguinte, com a publicação da Origem das Espécies por meio da Seleção Natural de Darwin, atingiria não só as bases da biologia e da ciência em geral, mas também nossas concepções mais profundas sobre a vida e suas formas e sobre a origem do homem. Curiosamente a hipótese central desta teoria foi desenvolvida, de forma independente, dentro do contexto da ciência britânica, por dois cientistas: Charles Darwin e Alfred Wallace. Embora influenciados pelas obras de Thomas Malthus e Charles Lyell, tinham experiências, formações e origens sociais diferentes. Em comum, quando jovens, uma passagem longa pelos trópicos. Darwin, com 45 anos, cientista reservado e já amplamente conhecido, aristocrata e rico o suficiente para dedicar-se inteiramente a seus estudos e experimentos em biologia. Temeroso do impacto de suas concepções, durante anos escondera a idéia iconoclasta. Do outro lado do mundo, enfiado havia 4 anos nas selvas do Arquipélago Malaio estava Wallace. Com 35 anos, auto-didata e de família empobrecida, tivera de deixar a escola aos 14 anos para trabalhar e sobreviver. Extraordinário naturalista de campo, primeiro na Amazônia e depois na Indonésia, pioneiro da biogeografia, prolífico autor de idéias e livros, viveria até o início do século XX como socialista convicto e sempre atuante. Voltemos à Linnean Society. Foi lido ali um artigo de 18 páginas contendo: uma introdução, por Lyell e Joseph Hooker; um excerto de um manuscrito não publicado de Darwin; um trecho de uma carta sua, de 1857, para Asa Gray; e o manuscrito de Wallace “Sobre a tendência de variedades a se afastarem indefinidamente do tipo original”. A introdução afirmava: “Os artigos anexos (...) contêm os resultados das pesquisas de dois infatigáveis naturalistas, Sr. Charles Darwin e Sr. Alfred Wallace. Estes senhores, tendo ambos concebido de maneira independente e sem conhecimento mútuo a mesma e muito engenhosa teoria para explicar o aparecimento e a perpetuação de variedades e formas específicas em nosso planeta, podem reclamar com justiça o mérito de ser os pensadores originais desta importante linha de investigação...” Semanas antes, um Darwin assustado com a possibilidade de perder sua primazia em uma teoria que vinha perseguindo há anos, havia recebido uma carta de Wallace com um manuscrito, escrito em uma ilha distante, pouco depois de um intenso surto de febre. Darwin registraria: “Este ensaio continha exatamente a mesma teoria que o meu. (...) era admiravelmente formulado e muito claro.” Informados sobre seu dilema, seus amigos Lyell e Hooker, organizaram rapidamente a apresentação conjunta dos trabalhos. Muitas controvérsias têm surgido sobre este episódio e sobre os limites e aspectos éticos envolvidos. Mais do que discutir isto ou as razões que fizeram com que

quase todo o mérito seja hoje injustamente atribuído quase exclusivamente a Darwin, nos importa mencionar alguns aspectos que têm sido pouco lembrados. Na ciência não são incomuns as descobertas e invenções múltiplas; exemplos como o cálculo, a seleção natural, a transmissão eletromagnética sem fio e o conceito de energia comprovam essa possibilidade. Isto parece surpreendente porque freqüentemente se desconhece o caráter cumulativo, altamente interativo da ciência, bem como sua natureza social e a influência do contexto tecnológico e cultural subjacente. No caso de Darwin e Wallace trata-se de um exemplo particularmente singular de co-autoria de uma teoria que envolvia uma mudança radical de paradigma porque nunca houve qualquer rusga pública entre eles, ao contrário da disputa entre Newton e Leibniz, por exemplo. Wallace fez mesmo o papel de anti-marketing pessoal ao destacar sempre que a contribuição de Darwin teria sido muito mais importante do que a sua. O exemplo de amizade e de respeito mútuo entre os dois, ao longo de toda a vida, deve merecer uma referência especial, inclusive por sua raridade nos meios científicos em situações similares. Um aspecto interessante se refere ao fato de que Darwin e Wallace aprenderam bastante em suas passagens pelos trópicos, em particular pelo Brasil, tendo sido muito instigados pela biodiversidade local. Darwin, durante a viagem do Beagle, em 1832, ficou 5 meses no Brasil, quatro deles residindo em Botafogo e explorando o entorno do Rio de Janeiro. Wallace permaneceu de 1848 a 1852 na Amazônia. Os trópicos haveriam de se tornar, no século XIX, o palco privilegiado para o exame das teorias sobre a origem das espécies. Anos depois de Darwin e Wallace, Louis Agassiz, já conhecedor das formulações e argumentações de seus oponentes buscaria encontrar no Brasil (sem sucesso) evidências que justificassem a fixidez das espécies. Em Santa Catarina, no meio da Mata Atlântica, Fritz Müller, cientista, lavrador, professor primário e correspondente de Darwin, faria um trabalho importante de confirmação da teoria estudando os crustáceos. Darwin, empolgado com as maravilhas da natureza tropical, em Salvador e no Rio, registrou: “O deleite que se experimenta em momentos como esse confunde a mente; (…) deleite é, no entanto, um termo fraco para tais transportes de prazer…” Seu relato é repleto de adjetivos deslumbrados que exaltavam “a exuberância geral da vegetação”, “a beleza das flores” ou “o verde lustroso da folhagem”. A deslumbrante natureza foi o que mais chamou a atenção de Darwin em sua passagem pelo Brasil. Seu diário de bordo e as notas de viagem reunidas anos mais tarde no livro sobre a viagem do Beagle traduzem o encanto do jovem inglês com a luxuriante paisagem tropical. O impacto da natureza da América do Sul sobre ele foi decisivo. Para ele: “A viagem do Beagle foi sem dúvida o acontecimento mais importante de minha vida e determinou toda a minha carreira. (...) Nessa viagem tive a primeira formação ou educação verdadeira de minha mente. (...) As maravilhas das vegetações dos trópicos erguem-se hoje em minha lembrança de maneira mais vivida do que qualquer outra coisa.” A primeira frase de A Origem das Espécies confirma: “Quando eu estava a bordo do H.M.S. 'Beagle,' como naturalista, fiquei muito impressionado com certos fatos na distribuição dos habitantes da América do Sul e com as relações geológicas dos habitantes presentes com os do passado naquele continente. Estes fatos, me parecia, poderiam lançar alguma luz sobre a origem das espécies – aquele mistério dos mistérios, como foi chamado por um de nossos maiores filósofos.” As notas de viagem de Darwin refletem também sua visão sobre a sociedade brasileira. Em várias passagens, elas manifestam o humanismo do naturalista, que recrimina reiteradas vezes a escravidão contemplada por ele no país. Proveniente de uma família com forte tradição antiescravista, Darwin ficou ainda mais chocado quando

se deparou com a realidade brasileira. Em inúmeras passagens de seus livros, cartas e anotações, denuncia tais práticas e critica os argumentos dos defensores da escravidão. Algumas observações de Darwin expressam, no entanto, preconceitos e generalizações apressadas contra os brasileiros. Sua impaciência com a burocracia brasileira é compreensível. Mas revela profunda decepção com os modos rudes com que teria sido tratado por habitantes locais e que motivaram comentários pouco simpáticos à população brasileira em suas anotações. Mas é importante que o contexto seja também entendido. Darwin era um jovem inglês, de família rica, formado em Cambridge e que carregava uma visão ufanista sobre seu país. Às vezes, percebe-se também, julgava as pessoas pela sua aparência, pelos seus modos ou pela forma como se vestiam. Estes são hábitos que todos temos e dos quais é difícil escapar: olhar os outros através de nossos óculos culturais. Por outro lado, havia já uma animosidade entre os brasileiros e os ingleses em função muitas vezes das atitudes imperialistas e intervencionistas dos britânicos. E o Beagle era um navio da Marinha Britânica. É importante estar atento a isto para se entender o contexto dos comentários sociológicos ou antropológicos de Darwin sobre o Brasil e sua gente e não valorizá-los além do que o contexto histórico possibilita. Alguns artigos recentes em jornais e revistas brasileiros ignoram esta situação e dão ênfase a uma visão ideologicamente conservadora, e sempre destacada por elites interessadas ao longo dos séculos, de que o problema principal do país seria a natureza de seu povo, enquanto que sua vantagem seriam as riquezas naturais, esta última uma observação pertinente. Já as observações de Wallace no Brasil constituíram a senda inicial que o levaram também à teoria da seleção natural: “As três coisas que mais me impressionaram na Amazônia: A primeira foi a floresta virgem, imensa em todo canto, freqüentemente linda e mesmo sublime; [a segunda foi] a maravilhosa variedade e a rara beleza das borboletas e dos pássaros. Mesmo agora eu não posso relembrá-los sem um arrepio de admiração e espanto; a terceira e mais inesperada sensação de surpresa foi meu primeiro e vívido encontro com o homem em seus estado natural – com selvagens absolutamente não contaminados!” Decorrente de seu período na Amazônia, escreveu dois livros, dez artigos científicos e fez um belíssimo mapa sobre o Rio Negro. O conhecimento de índios e caçadores nativos foi usado por ele para fundamentar suas observações precursoras sobre a origem das espécies e seus estudos biogeográficos sobre a distribuição de macacos, de aves e de palmeiras. No seu trabalho sobre os macacos, no qual introduz a hipótese das ‘barreiras fluviais’, afirma: “Durante minha estada na região amazônica, aproveitei cada oportunidade para determinar os limites de algumas espécies, e logo descobri que o Amazonas, o Rio Negro e o Madeira formam limites, além dos quais certas espécies nunca passam. Os caçadores nativos estão perfeitamente a par deste fato,... (...) o mesmo fenômeno ocorre também com insetos e pássaros, como observei em muitos momentos.” O naufrágio do navio no qual retornava à Europa, em 1852, que fez com que Wallace perdesse todo o material que recolhera durante dois anos no Alto Rio Negro, com exceções de alguns desenhos de peixes e palmeiras, não esmoreceu o seu ânimo e ele partiu, pouco depois, para uma jornada de 8 anos na Indonésia. O mesmo aspecto das contribuições locais para o trabalho de campo, embora não tão evidente quanto em Wallace, sobressai das anotações feitas por Darwin em sua passagem pelo Brasil. Esses relatos mostram como o inglês foi auxiliado por habitantes locais em suas incursões pela mata e nas expedições para coleta de material biológico. Citemos apenas uma frase de Darwin sobre a ajuda que teve de um menino pobre do Rio de Janeiro: "Um mulato e um pequeno brasileiro me acompanharam. Este último era quase uma criança, mas vestido da mesma maneira com que descrevi seu irmão mais

velho. Nunca vi nada igual a seu poder de percepção. Muitos dos animais mais raros nas trilhas mais obscuras foram pegos por ele. Eu não ficaria tão bem servido se um besouro se tivesse transformado em traidor e se tornado meu ajudante, do que em ter encontrado um colaborador tão capaz neste pequeno companheiro.” As contribuições das culturas nativas de regiões distantes da Europa para o conhecimento científico adquirido, construído ou criado pelos naturalistas têm sido quase sempre desconsideradas pelos historiadores da ciência. O formato final das publicações científicas (em livros, relatórios ou artigos publicados) contribuiu, entre outros fatores, para o surgimento da imagem social do cientista europeu como heróidesbravador que, sobrevivendo a inúmeros perigos, e num esforço hercúleo e quase solitário, descobriu para a ciência novas espécies da flora e da fauna. Nossas considerações não pretendem minimizar méritos individuais de cientistas importantes, que muitas vezes deram a própria vida em função de um ideal. E também não se trata de substituir um mito por um outro: o do nativo que tudo conhece e que é espoliado pelo cientista estrangeiro, embora esta situação possa ter ocorrido em casos específicos. O que propomos é a construção de uma visão mais realista sobre as práticas da ciência naturalista. Talvez um exame mais cuidadoso dessas práticas possa levar eventualmente a uma reconceitualização de sua história, em que os aspectos eurocêntricos não sejam os únicos considerados. Deve-se levar certamente em conta a transmissão de conhecimentos no sentido inverso, do nativo para o naturalista, o que poderia contribuir para um entendimento melhor do funcionamento real da ciência e da tecnologia atuais. Vários eventos estão ocorrendo no Brasil e no mundo em comemoração aos 150 anos da formulação da teoria da seleção natural (2008) e, em 2009, aos duzentos anos do nascimento de Darwin e aos 150 anos da “Origem das Espécies”. Estão sendo organizados encontros científicos em várias cidades, como Salvador, Manaus, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre. Exposições sobre a evolução, a seleção natural, Darwin, Wallace, Fritz Müller, etc estão percorrendo muitas cidades brasileiras. Livros de/sobre Darwin e Wallace estão sendo publicados, assim como números especiais de revistas e reportagens em jornais e TVs. Muitas atividades estão sendo realizadas em escolas por todo o país. No Estado do Rio de Janeiro, a expedição Caminhos de Darwin, percorreu - no final de 2008 e com a participação de cientistas, professores, jornalistas e do tataraneto de Darwin, Randal Keynes - o mesmo trajeto que o naturalista fez quando esteve no Rio de Janeiro, em 1832. Doze municípios participaram do projeto que teve inauguração de placas comemorativas em cada cidade e uma intensa participação de estudantes, professores e da população local. É importante que todas estas comemorações estimulem o surgimento de um amplo movimento para debater, influenciar e transformar o ensino do tema da evolução biológica na educação básica no Brasil, com o envolvimento de universidades e instituições de pesquisa, secretarias, agências de fomento, entidades científicas etc. Um tema que, embora tenha empolgado pouco os cientistas presentes à sessão de 1 de julho de 1858 na Linnean Society, tem importância enorme na ciência e na cultura contemporâneas.

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