Das bases de dados genéticos na investigação criminal. O debate nas ciências sociais e estudos empíricos em Portugal

June 14, 2017 | Autor: Helena Machado | Categoria: Sociology, Social Sciences, DNA Evidence and Databases
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This chapter has been originally published as: Das bases de dados genéticos em investigação criminal. O debate nas ciências sociais e estudos empíricos em Portugal, in: Cunha, M.I., Do crime e do castigo: Temas e debates contemporâneos, Lisboa: Mundos Sociais; 163-179

Bases de dados genéticos na investigação criminal: O debate nas ciências sociais e estudos empíricos em Portugal Helena Machado Investigadora-coordenadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Introdução Por onde passa, o corpo humano deixa vestígios: cabelos, saliva e outros fluidos, pegadas… Esta materialidade corporal tem sido uma peça-chave na investigação criminal ao longo dos tempos. 1 A centralidade do corpo humano como base para identificar autores de crimes ganhou novos contornos nos últimos 25 anos, à medida que se foi generalizando, nos sistemas de justiça, a utilização da tecnologia de ADN para produção da chamada prova genética. Neste contexto, a tecnologia e os conhecimentos científicos que permitem estudar vestígios biológicos humanos suscetíveis de análise genética ganharam protagonismo nos imaginários coletivos sobre investigação criminal: séries televisivas do tipo Crime Scene Investigation (CSI) converteram a chamada tecnologia de ADN em herói no “combate ao crime” e numa “máquina da verdade”, que promete eliminar o erro judiciário e condenar os “verdadeiros culpados” (para uma perspetiva crítica destes pressupostos, ver Lynch et al., 2008, e Machado e Prainsack, 2014). A análise do ADN para finalidades de identificação de indivíduos é essencialmente usada para a identificar suspeitos, vítimas de crimes e vítimas de

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O presente trabalho recebeu o apoio das seguintes instituições: da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Projeto IF/00829/2013) e do Conselho Europeu de Investigação (Grant agreement n.º 64860).

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catástrofes, e para o estabelecimento dos laços de parentesco entre indivíduos. A credibilidade na eficácia do ADN como método de identificação reside no seu elevado potencial de individualização. A identificação de indivíduos pela tecnologia de ADN assenta na possibilidade de individualização facultada pela análise de extensas zonas genómicas a que se costuma chamar “ADN não codificante”. Estas zonas inter ou intragénicas mostram certas sequências que se supõe serem características de cada indivíduo e que produzem, assim, uma “impressão digital genética”, ou seja, uma estrutura biológica que é única em cada indivíduo (excetuando o caso dos gémeos monozigóticos, que do ponto de vista genético são um único indivíduo). Logo, a comparação das “impressões digitais ou dedadas genéticas” permite observar se diferentes amostras biológicas provieram do mesmo indivíduo ou de indivíduos diferentes; e ainda se há uma relação biológica entre os fornecedores de amostras comparadas. A investigação criminal socorre-se com frequência de outro tipo de bioinformação (informação retirada do corpo humano) para além dos perfis genéticos: por exemplo, impressões digitais ou imagens de videovigilância. Contudo, a utilização de perfis genéticos tem vindo a conquistar crescente espaço, nomeadamente na investigação criminal de natureza transnacional (aquela que ocorre quando dois ou mais países partilham informação para identificar um indivíduo ou grupos de indivíduos que se tenham movimentado entre diferentes jurisdições). Três motivos principais explicam a crescente popularidade que a informação genética tem vindo a conquistar no plano da investigação criminal: a sua portabilidade, o seu potencial informativo e a legitimidade científica de que goza a tecnologia de ADN. Em relação ao primeiro aspeto, a “portabilidade” do ADN, significa que a informação genética “viaja bem” entre fronteiras: pode ser automaticamente partilhada e comparada entre diferentes laboratórios que usem o mesmo sistema informático e tenham adotado os mesmos protocolos. Nos últimos anos, por via de operações policiais e governamentais de combate transnacional ao “terrorismo e criminalidade organizada”, a portabilidade de dados genéticos e a partilha de informação genética entre países tem vindo a assumir crescente relevância no controlo de populações – geneticamente identificáveis – consideradas “suspeitas” (Machado, 2015). A União Europeia criou um sistema para partilha de informação genética, automatizada, entre países: o chamado Tratado de Prüm (assinado em 2005 por sete 2

países), também conhecido por Schengen III. O FBI adotou um sistema similar, recebendo informação genética de países de todo o mundo. 2 O Tratado de Prüm obriga a que todos os países da União Europeia que não tenham uma base de dados genéticos a estabeleçam. Em março de 2014, dez países já partilhavam a informação contida nas respetivas bases de dados genéticos nacionais (Conselho da União Europeia, DAPIX, 2014). Se a União Europeia prosseguir – como tudo leva a crer que sim – neste projeto biopolítico, os perfis genéticos de mais de dez milhões de indivíduos serão comparados e cruzados de forma contínua, automática e numa base quotidiana (Prainsack e Toom, 2010, 2013; Santos, Machado e Silva, 2013). Um segundo fator a destacar na explicação da crescente popularidade e utilização da tecnologia de ADN na investigação criminal prende-se com o facto de este tipo de informação ter o potencial de gerar outra informação além daquela que inicialmente se procurava alcançar. Isto acontece, por exemplo, quando não se consegue obter uma coincidência entre uma amostra colhida em cena de crime e os perfis genéticos inseridos numa determinada base de dados. Nesta circunstância, pode-se utilizar a análise genética para obter outro tipo de informação “indireta”: é o caso da chamada pesquisa familiar e da inferência ou estimativa de características físicas do dador de amostra biológica. A chamada pesquisa familiar é realizada quando um perfil obtido de uma cena de crime não coincide com nenhum perfil da base de dados, mas obtiveram-se coincidências “parciais” de perfis genéticos. Isto pode significar que a amostra da cena de crime foi deixada por um parente biológico de um indivíduo cujo perfil, inserido na base de dados, coincide parcialmente com os vestígios biológicos encontrados na cena do crime. Por via da análise das coincidências parciais os investigadores procuram, pela tal “pesquisa familiar”, encontrar um suspeito. Os desafios éticos desta prática são muito complexos, na medida em que suscita problemas de intrusão na privacidade e na presunção de inocência dos familiares de indivíduos que têm os seus perfis genéticos em bases de dados, e que, nesse âmbito, serão alvo de escrutínio da parte dos investigadores criminais (para uma discussão detalhada, consultar Nuffield Council on Bioethics, 2007).

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FBI é a sigla de Federal Bureau of Investigation. É uma agência do Departamento de Justiça do governo dos EUA.

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A análise de perfis genéticos permite ainda prever determinadas características físicas do dador de amostra biológica (Costa e Souto, 2014), que poderão ser úteis para identificar um suspeito. Também a inferência de características fenotípicas a partir da análise de ADN suscita questões éticas complexas. Um dos assuntos em discussão diz respeito à eventual violação do direito à privacidade pela descoberta da ancestralidade biogeográfica, que pode nem ser sequer conhecida do próprio indivíduo em causa. Outra questão em debate corresponde à possibilidade de que perfis de ancestralidade biogeográfica que reflitam filiação étnica sirvam para reforçar apriorismos que coloquem os indivíduos que correspondam a um determinado perfil biogeográfico sob maior vigilância policial. Quanto a este assunto os especialistas defendem que a análise dos dados de previsão fornecidos deve ser cuidadosa, e que todo o processo de implementação dos métodos de previsão deve ser acompanhado de avaliações de preconceitos e estereótipos que possam existir no seio das forças policiais e de eventuais correções através de campanhas educacionais (Costa e Souto, 2014). Um terceiro e último motivo que explica o aumento da importância conferida à informação genética na investigação criminal é o seu estatuto científico. Na perspetiva de muitos investigadores criminais (e também de cientistas forenses, de magistrados e do público em geral), a tecnologia de ADN e as bases de dados genéticos forenses geram, alegadamente, informação “mais científica” e “mais capaz” de identificar um infrator de forma célere e credível. As ciências sociais têm desenvolvido uma postura crítica em relação às implicações societais e políticas derivadas do estatuto excecional de certeza ontológica e matemática que ganharam as tecnologias genéticas nas sociedades contemporâneas. Esta “genetização” da vida social e a subsequente “genetização” da investigação criminal segue os desígnios daquilo que Theodore Porter (1996), historiador da ciência norte-americano, designou “objetividade mecânica”, para se referir à crescente autoridade e poder simbólicos dos “números impessoais” e da estatística em diversas esferas da vida social, política e económica, em detrimento da experiência e avaliação humanas (tidas por “subjetivas”). Nas últimas duas décadas tem crescido o número e a dimensão das bases de dados genéticos utilizadas no domínio da investigação criminal. Estima-se que existam hoje cerca de 60 bases de dados genéticos forenses operacionais, em diversas partes do mundo (com maior prevalência na América do Norte e na Europa). Embora não haja

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dados precisos, estima-se também que cerca de 34 países estejam a implementar as respetivas bases de dados forenses nacionais (Machado e Silva, 2014a). As ciências sociais não se rendem ingenuamente a estas histórias de sucesso da tecnologia de ADN, cada vez mais vulgares em sociedades em que a mística associada aos genes tende a imperar. O presente texto visa, precisamente, desconstruir essa credulidade em torno da genética forense, explicada por se tratar de ciência acoplada a promessas de luta contra o crime. Por outras palavras, este capítulo tem como objetivo mapear e analisar sucintamente as principais interrogações colocadas pelas ciências sociais ao mito da infalibilidade e da produção de certezas na identificação de infratores criminais. Numa primeira parte, far-se-á uma síntese das principais linhas orientadoras da literatura dos estudos sociais da ciência e tecnologia sobre a utilização, no sistema de justiça criminal, de tecnologias de identificação de indivíduos por perfis genéticos, vulgarmente conhecidas por tecnologia de ADN, e de bases de dados informatizadas contendo informação genética (as chamadas bases de dados genéticos forenses). Numa segunda parte, apresenta-se a legislação sobre o funcionamento da base de dados de perfis genéticos em Portugal. Numa terceira e última parte, discutem-se os principais resultados alcançados em estudos sobre esta matéria realizados no nosso país. O debate nas ciências sociais Impera um quadro ideológico pautado por crenças que a governação de populações consideradas suspeitas e perigosas será tanto mais eficaz quanto mais se utilizarem sistemas tecnológicos e científicos de vigilância. Neste contexto, as bases de dados genéticos forenses são encaradas por políticos e cientistas forenses como instrumentos que podem trazer grandes benefícios à sociedade pelo seu potencial de resolver crimes mais rapidamente e com maiores certezas, e também atuando como uma ferramenta que pode prevenir erros judiciários e dissuadir potenciais ofensores criminais. Nos últimos anos, as ciências sociais, em particular no seio dos chamados “estudos sociais da ciência e tecnologia”, têm analisado as implicações societais, políticas, culturais e éticas da utilização crescente da tecnologia de ADN e das bases de dados genéticos forenses em atividades do sistema de justiça criminal. Uma boa parte desse debate centra-se na análise e discussão dos contextos do Reino Unido e dos EUA. O motivo para que tal aconteça é simples: foi nestes países que este tipo de 5

tecnologia forense e as bases de dados informatizadas com informação de interesse para investigação criminal (contendo dados genéticos, impressões digitais, etc.) mais cedo se desenvolveram e mais se expandiram. A base de dados inglesa foi criada em 1995 (foi a primeira base de dados nacional do mundo) e conta hoje com cerca de nove milhões de perfis e amostras biológicas colhidas de sujeitos identificados e de cenas de crime: cerca de 10% da população residente em Inglaterra e no País de Gales está registada na base de dados nacional (Santos, Machado e Silva, 2013). Nos EUA, o FBI tem a custódia de uma base de dados de dimensão semelhante à base inglesa (a chamada base de dados Codis – Combined DNA Index System), mas possui redes de interconexão com bases de dados de vários países de mundo. Não é ainda do conhecimento público alguma informação fulcral sobre a extensão e o formato da partilha e interconexão de dados genéticos que é realizada pelo FBI com investigadores criminais em todo o globo: trata-se de um fenómeno social com potencial interesse para o enfoque dos cientistas sociais, num futuro breve. Alguns dos temas que têm recebido mais atenção da parte das ciências sociais são a respeito dos usos das bases de dados genéticos forenses: (1) implicações éticas e potenciais ameaças aos direitos humanos criadas pela recolha e informatização de informação genética em extensas bases de dados forenses; (2) impactos da presença da genética forense no direito e no sistema de justiça; (3) o desenvolvimento sóciohistórico da tecnologia de ADN e das bases de dados genéticos em diferentes países; (4) a forma como os meios de comunicação social apresentam estas tecnologias e como essa mediatização tem impactos nas atitudes públicas; (5) em anos mais recentes, têm surgido estudos, ainda escassos, sobre as perceções dos cidadãos, nomeadamente, a avaliação que fazem de riscos e benefícios das bases de dados genéticos com propósitos forenses. Passarei agora a referir alguns dos trabalhos mais marcantes nestas matérias. Duas obras de sociólogos que são basilares para traçar uma resenha histórica da utilização da ciência e da tecnologia na investigação criminal são as seguintes: estudo de referência do sociólogo Simon Cole (2001), que foca a evolução histórica das tecnologias de identificação criminal, estabelecendo paralelismos entre as impressões digitais e os perfis genéticos; e a pesquisa de Robin Williams e Paul Johnson (2008) sobre a incorporação da genética nas atividades policiais de investigação criminal, nomeadamente ao nível da evolução da base de dados inglesa – a UK National 6

Criminal Intelligence DNA Database (NDNAD) – que, pela sua dimensão e por conter os perfis de milhares de pessoas não condenadas (inclusive de crianças) tem sido alvo de acesos debates. Outro tema relacionado com a incorporação da tecnologia de ADN e das bases de dados genéticos no sistema de justiça criminal são as polémicas associadas à sua aplicação em casos criminais (especialmente alguns casos muito mediatizados). Emblemática desse conjunto de trabalhos é a discussão desenvolvida pela norteamericana Sheila Jasanoff (1997) sobre os desafios e dilemas presentes nas fronteiras entre a ciência forense e a esfera da lei, aspeto esse também largamente discutido em alguns trabalhos de Jay Aronson (2007), que desenvolveu uma abordagem histórica das primeiras tentativas e vicissitudes do uso de ADN nos tribunais dos EUA, e do caminho percorrido até esta tecnologia se tornar um sucesso sem precedentes em termos de prova judicial nos tribunais norte-americanos. Ainda no campo da evolução da tecnologia de ADN, da passagem de uma tecnologia que suscitava dúvidas de credibilidade (tanto na comunidade científica como nos tribunais) até se ter tornado uma espécie de “máquina da verdade” – a “prova das provas”, devido às suas características de “objetividade” e “infalibilidade –, é de salientar um estudo do sociólogo Michael Lynch e colegas (2008), que nos oferece uma perspetiva etnometodológica, que cruza aspetos micro (como, por exemplo, as atividades de laboratório associadas à tecnologia de ADN) com aspetos macro (relacionados, por exemplo, com a retórica da ciência orientada para os princípios da “verdade” e da “universalidade”). Outros estudos dão-nos uma perspetiva dos usos de tecnologias de ADN em diferentes países, nomeadamente, em sistemas de justiça de tipo inquisitorial.3 A obra coletiva Genetic Suspects: Global Governance of Forensic DNA Profiling and Databasing (Hindmarsh e Prainsack, 2010) reúne contribuições de académicos e especialistas de diferentes disciplinas e oriundos de várias partes do mundo, que discutem, a partir de contextos nacionais diferenciados, a história, a regulação, as aplicações práticas e as configurações do discurso político e do debate público sobre bases de dados genéticos com finalidades forenses e policiais. Ainda numa perspetiva 3

Na tradição inquisitorial o juiz tem um papel predominante na condução do julgamento e na apreciação da prova, conduzindo os interrogatórios e decidindo quais são as provas aceites em julgamento. A diferença fundamental é que, enquanto num sistema adversarial há lugar a um confronto entre duas versões dos factos com a finalidade de resolução do litígio, no sistema inquisitorial a função do tribunal é “apurar a verdade”.

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comparativa – reunindo capítulos que abordam as bases de dados genéticos forenses no Reino Unido, Japão, Austrália, Alemanha e Itália – Krimsky e Simoncelli (2011) – em Genetic Justice: DNA Data Banks, Criminal Investigations, and Civil Liberties – oferecem uma análise da implementação deste tipo de bases de dados nestes países. Contudo, o enfoque desta obra é colocado predominantemente nas dimensões do direito, da ética e das liberdades civis, e as suas consequências para a cidadania. Outra obra a destacar é o livro organizado por David Lazer (2004) – DNA and the Criminal Justice System: The Technology of Justice –, que aborda as dimensões éticas e legais da presença da tecnologia de ADN no sistema de justiça criminal, em particular no contexto norte-americano, reunindo contributos de autores com diferentes formações disciplinares e provenientes de várias áreas de conhecimento. Os temas explorados nessa coletânea vão desde a importância do significado e do contexto do uso de ADN na cena de crime ao seu uso na análise pós-condenação, bem como nos aspetos sociais, legais e éticos associados às bases de dados genéticos. Por fim, o livro de Carole McCartney, Forensic Identification and Criminal Justice: Forensic Science, Justice and Risk (2006), baseado em entrevistas a profissionais do sistema de justiça criminal britânico, ilustra os usos práticos das tecnologias de ADN em várias dimensões da vida real, desde o trabalho de produção legislativa, à investigação criminal e às atividades dos tribunais. O livro de McCartney faz uma avaliação crítica das dimensões societais das bases de dados genéticos e da tecnologia de ADN, considerando as suas limitações técnicas e operacionais e discutindo os riscos e os impactos que virão a ter na forma como se fará investigação criminal no futuro. A autora refere que a centralidade conferida à genética pode vir a enviesar o rumo das investigações, por exemplo, desvalorizando elementos cruciais como a experiência empírica e a intuição do investigador tradicional em prol da (sobre)valorização da tecnologia de ADN. Em Portugal existe um conjunto de trabalhos que discutem estas questões a partir da perspetiva das ciências sociais e que serão sucintamente descritos mais à frente neste texto. Antes da apresentação da literatura relevante sobre o tema para o caso português, discutem-se, na próxima secção, aspetos legislativos e regulatórios da base nacional de dados genéticos com propósitos forenses. Legislação e regulação em Portugal 8

Em 2008, pela Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, foi criada em Portugal uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal. A base de dados funciona servindo de matriz para um conjunto de perfis genéticos determinados a partir de amostras biológicas recolhidas de um conjunto de indivíduos. Perante uma futura investigação criminal, os vestígios encontrados na cena de crime ou no corpo de uma vítima, por exemplo, poderão ser analisados e os respetivos perfis obtidos serão confrontados com os incluídos na base de dados genéticos forense, permitindo identificar a origem desse vestígio no caso de se verificar uma correspondência positiva. A criação e manutenção de uma base de dados forense deste tipo enquadra-se em disposições gerais da União Europeia, orientadas para a necessidade de cooperação no combate ao crime e na subsequente facilitação do acesso a diferentes tipos de dados entre países, em casos de crimes internacionais. Nesse contexto, têm sido desenvolvidos intensos esforços de construção de um sistema pan-europeu de partilha de informação genética e de outro tipo de dados com potencial interesse para a investigação criminal. Exemplo disso é o denominado Tratado de Prüm, de 2005, páginas atrás mencionado, bem como as subsequentes regulamentações europeias relativas a medidas de execução técnica e administrativa que deverão regular o intercâmbio de informações sobre perfis de ADN entre os sistemas de bases de dados genéticos forenses de todos os Estados-membros. De acordo com estas disposições, todos os 28 Estados-membros da UE deverão disponibilizar o acesso automatizado e recíproco às respetivas bases de dados nacionais no âmbito de “perfis de ADN”, de “dados dactiloscópicos” e de dados de “registo de matrícula de veículos”. Portugal encontra-se, por isso, vinculado à manutenção da respetiva base de dados genéticos forense nacional e à partilha da informação nela contida para assistir à investigação criminal levada a cabo em território português e em outros países. Sintetizando a legislação portuguesa referente aos princípios de criação e manutenção da base de dados e de regulação da recolha, tratamento e da conservação de amostras biológicas, importa salientar as seguintes características: A entidade responsável pela base de dados e por todas as suas operações é o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (n.º 1 do art. 16.º da Lei n.º 5/2008), instituição pública que funciona sob a supervisão direta do Ministério da Justiça e cuja missão consiste em facultar serviços forenses para os tribunais, 9

Ministério Público, órgãos de polícia criminal e entidades que intervêm no sistema de administração de justiça. O Instituto é responsável por transmitir às autoridades judiciais competentes os resultados de análises de perfis genéticos concretizadas no âmbito da base de dados genéticos forense ( art. 19.º da Lei n.º 5/2008). No exercício das suas funções relativas à base de dados de perfis de ADN, o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses é fiscalizado por uma entidade independente – o Conselho de Fiscalização – e deve consultar a Comissão Nacional de Proteção de Dados para quaisquer esclarecimentos quanto ao tratamento de dados pessoais, devendo cumprir as deliberações dessa Comissão nesta matéria (n.º 2 do art. 17.º da Lei n.º 5/2008). Existem seis tipos de ficheiros na base de dados de perfis de ADN para identificação civil e criminal (n.º 1 do art. 15.º da Lei n.º 5/2008): (1) ficheiros de voluntários, (2) amostras-problema para identificação civil, (3) amostras-problema para identificação criminal, (4) amostras-referência, (5) amostras de profissionais que procedam à recolha e análise de material genético, e (6) de informação retirada de amostra colhida em indivíduo condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a três anos, mediante despacho do juiz e após trânsito em julgado. No caso dos voluntários, familiares e profissionais (cujos perfis servem fins de exclusão), a lei portuguesa estipula que tanto os perfis de ADN como os dados pessoais correspondentes a estes indivíduos só podem ser incluídos na base de dados através do consentimento voluntário, escrito e informado (alíneas a e b do n.º 1 do art. 18.º da Lei n.º 5/2008). As amostras provenientes de arguidos e indivíduos condenados podem ser recolhidas sem o seu consentimento, no entanto, a lei estabelece que os indivíduos têm o direito de ser informados sobre o conteúdo e eventuais usos da sua informação genética. A recolha de amostras para finalidades de investigação criminal requer uma ordem do juiz, ou um pedido da defesa (n.º 1 do art. 8.º da Lei n.º 5/2008). A inclusão de perfis de ADN na base de dados requer sempre a ordem de um juiz (art. 18.º da Lei n.º 5/2008). Ou seja, mesmo que um indivíduo seja condenado por um crime grave punível com uma pena igual ou superior ao limite estipulado, o seu perfil de ADN (mesmo que tenha sido previamente obtido e usado como prova) não é automaticamente incluído na base de dados. Apenas após sentença definitiva é que o

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juiz poderá, ou não, ordenar a inclusão de perfil de um indivíduo condenado na base de dados de perfis de ADN. Os perfis genéticos são eliminados da base de dados nas seguintes situações: os perfis provenientes de amostras recolhidas da cena de crime, que não coincidam com o perfil do acusado, são eliminados 20 anos depois dessa mesma recolha (n.º 1 do art. 26.º da Lei n.º 5/2008); e os perfis de condenados são eliminados aquando o cancelamento definitivo dos registos criminais, até um máximo de dez anos após a sentença ter sido cumprida (alínea f do n.º 1 do art. 26.º da Lei n.º 5/2008). Os perfis de voluntários e familiares de pessoas desaparecidas são retidos por um período de tempo ilimitado exceto se revogarem o seu consentimento prévio, e os perfis de cadáveres são eliminados depois da sua identificação (alínea c do n.º 1 do art. 26.º da Lei n.º 5/2008). A gestão da base de dados de perfis genéticos em Portugal tem-se desenvolvido num enquadramento jurídico-legal e operacional que suscita dificuldades à expansão deste instrumento de apoio à investigação criminal. De facto, Portugal tem uma das leis de funcionamento e organização da base de dados genéticos com propósitos forenses mais restritivas da Europa (Machado e Silva, 2010; Santos, Machado e Silva, 2013) e tem desenvolvido muito lentamente o volume de informação contido na mesma – em fevereiro de 2015, a base de dados genéticos forense continha apenas 4894 perfis de ADN (https://www.cfbdadosadn.pt), quando a expectativa, no momento da criação da mesma (fevereiro de 2008), era de serem inseridos anualmente cerca de 6000 perfis. O facto de a Lei n.º 5/2008 apresentar um conjunto de disposições que confere, como referido anteriormente, total controlo e poder de decisão aos juízes na construção da base de dados de perfis genéticos, na medida em que estes são os responsáveis por ordenar a recolha de amostra, significa que se procurou garantir condições para uma proteção reforçada dos direitos humanos fundamentais e prevenir eventuais abusos no acesso e utilização de dados por parte de entidades policiais. Contudo, parece ser diminuta a adesão dos juízes à base de dados de perfis genéticos, uma vez que é ainda muito limitado o número de ordens judiciais de inserção do perfil de um condenado na referida base de dados. Por outro lado, a atual legislação estabelece critérios muito circunscritos relativos ao processo de comunicação de resultados da análise genética: a entidade que detém a custódia da base de dados – o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses – apenas comunica o 11

resultado da análise ao juiz, o qual, por sua vez, apenas transmite essa informação ao Ministério Público ou aos órgãos de polícia criminal, caso entenda necessário, e mediante apresentação de requerimento fundamentado (alíneas a e b do n.º 1 do art. 19.º da Lei n.º 5/2008). Na perspetiva dos operadores policiais, este facto tem dificultado o trabalho de investigação criminal, comprometendo, do ponto de vista destes atores sociais, a eficiência da base de dados de perfis de ADN forense (Costa, 2014; Machado e Costa, 2012; Santos, Costa e Machado, 2012).

Desafios sociológicos da utilização da tecnologia de ADN e da base de dados genéticos forense em Portugal Na presente secção deste capítulo, discutem-se sucintamente os resultados obtidos em quatro estudos realizados em Portugal sobre os seguintes tópicos: (1) as representações sociais de políticos e de especialistas de direito e da genética forense; (2) as perceções de investigadores criminais; (3) os olhares de reclusos; (4) as perspetivas públicas (as opiniões dos cidadãos). As perspetivas de peritos forenses, especialistas do direito e políticos A análise dos discursos de peritos em genética forense e direito, e de atores políticos acerca da criação de uma base de dados de perfis de ADN em Portugal (Machado, 2011) permite constatar o predomínio de três tipos principais de argumentação: a ciência como suporte de uma justiça simultaneamente mais eficaz e mais credível; a necessidade de acompanhar o percurso de países mais desenvolvidos em matéria de investigação criminal e de cooperação transfronteiriça; e, por fim, o contributo para o “bem comum” ou proteção da sociedade. Deste modo, a retórica utilizada para a reivindicação da legitimidade da criação de uma base de dados de perfis de ADN em Portugal pode ser sintetizada em três patamares: (1) mobilização política e governamental dos recursos e ações dos peritos do campo jurídico e do campo científico; (2) autoafirmação da autonomia dos peritos e distanciamento face a atores mais desapossados no campo da investigação criminal; (3) convocação dos leigos para participarem na luta contra o crime e de consolidação e defesa da segurança pública, mas na posição de servidores de um projeto coletivo que em simultâneo os convoca e os transcende, em nome da desejável confiança no

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Estado, doravante apoiado na ideologia da neutralidade, na verdade da ciência e na vocação da justiça para a igualdade e defesa dos cidadãos. Estes resultados vêm colocar em destaque a ausência da incorporação de mecanismos de participação e avaliação cívicas dos modos de organização e manutenção dos dados genéticos, surgindo o Estado como garante único do interesse público. Entrecruzando-se assim a autoridade política com a autoridade jurídicocientífica, são secundarizadas de modo autoritário as epistemologias cívicas possíveis. Neste contexto, afigura-se essencial a disseminação de informação junto dos cidadãos, de modo a promover mecanismos de participação cívica efetiva na governabilidade da informação genética. As perceções de investigadores criminais Estudos realizados sobre a visão de atores do sistema de justiça criminal e da área da ciência forense sobre a utilização da tecnologia de ADN nas práticas de investigação criminal em Portugal (Costa, 2014; Machado e Costa, 2012; Santos, 2014, 2015; Santos, Costa e Machado, 2012) permitem discutir alguns contornos das configurações locais criadas pela utilização daquela tecnologia nessa investigação. Nesse mesmo contexto assinalam-se discrepâncias entre as realidades locais – legislação, estrutura organizacional da investigação criminal, cultura judiciária e práticas policiais – e os imaginários coletivos (“globais”) que encaram a tecnologia de ADN como o instrumento mais eficaz na identificação de criminosos. As tensões entre as contingências locais da aplicação dessa tecnologia na investigação criminal e a natureza “global” da genética forense tornam-se mais visíveis em sociedades como a portuguesa. De facto, países como Portugal têm histórias de governação da ciência e da tecnologia e modalidades de construção da confiança pública bastante distintas das sociedades e culturas de onde a tecnologia de ADN é originária (Reino Unido e Estados Unidos). O que retratam os estudos sociológicos levados a cabo em Portugal sobre esta matéria é que a realidade da utilização da tecnologia de ADN na investigação criminal em Portugal parece afastar-se dos modelos de “biolegalidade” e de “imaginário forense” (Machado e Costa, 2012) projetados por países que conheceram já uma ampla utilização dessa tecnologia na investigação criminal (Costa, 2012) devido a três ordens de fatores: (1) falta de formação técnico-científica e de recursos materiais para uma adequada recolha de vestígios de cena de crime da parte da PSP e da GNR; 13

(2) ambiguidade da lei e difícil aplicação prática no que toca à definição clara de competências de investigação criminal; (3) restrições legais ao uso e ao acesso a informação armazenada na base de dados de perfis de ADN tutelada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses e falta de operacionalidade desse tipo de instrumento de apoio à investigação criminal (Santos, Costa e Machado, 2012). Ou seja, a presença da prova de ADN no sistema de justiça criminal português situa-se num contexto complexo que articula as particularidades de uma legislação restritiva, as tentativas de globalização e harmonização de procedimentos técnicos na gestão da cena de crime e no trabalho laboratorial de análise de vestígios e uma cultura jurídica, profissional e criminológica com especificidades e particularidades de caráter nacional e local. Os olhares de reclusos A visão dos reclusos em Portugal sobre a tecnologia de ADN e bases de dados genéticos para investigação criminal (Machado e Prainsack, 2014; Machado, 2012) reflete, em diferentes modalidades, o posicionamento deste grupo social no sistema de justiça criminal. Conjuga-se a noção que o ADN é infalível na identificação de indivíduos, com representações sociais marcadas pela negatividade e suspeição em relação à ação policial e dos tribunais. Não é a tecnologia em si mesma que desperta dúvidas, mas a ação humana – pela probabilidade de erro, mas também, e sobretudo, pelas más intenções, que podem conduzir a que, na perspetiva dos reclusos, os investigadores criminais possam “plantar” vestígios de ADN em cena de crime, com o propósito de incriminar alguém de quem suspeitam a priori. O “pragmatismo genómico criminal” (Machado, 2012), expressão que aqui se utiliza para caraterizar o imaginário do ADN que é projetado por aqueles que foram alvo de deteção, captura e encarceramento (mesmo que não tenham sido envolvidos em utilização de ADN), é construído com base em processos identitários marcados pelo estigma da reclusão (Machado, Santos e Silva, 2011). Simultaneamente, este imaginário do ADN reflete processos sociais de reprodução de desigualdades: tal como sustenta Troy Duster (2006), a avaliação dos usos da tecnologia de ADN evidencia as desigualdades sociais reproduzidas pelo sistema de justiça criminal, reportando este autor, tendo por referência os EUA, de que forma a convicção da neutralidade do usos policiais da tecnologia de ADN na investigação criminal é mais frequente em brancos do que em 14

negros, o que se explica pela profunda estratificação social do sistema penitenciário desse país, que absorve maioritariamente afro-americanos. Da mesma forma, as bases de dados genéticos forenses apresentam uma sobrerrepresentação de minorias étnicas, o que faz supor práticas discriminatórias da polícia, no desenrolar de atividades de detenção, a que se juntam e acumulam ações similarmente preconceituosas de outros atores judiciais ao longo do processo de acusação, julgamento e determinação de sentenças (Nuffield Council on Bioethics, 2007; Skinner, 2013). A tecnologia de ADN vem, do ponto de vista dos reclusos, trazer novos desafios à sua condição de condenados pelo sistema de justiça. Por um lado, abre a possibilidade, se usada de modo adequado, de provar a inocência e de escapar a procedimentos incriminatórios e tendenciosos da polícia. Por outro lado, o cenário da sua utilização para incriminar, vem tornar os reclusos possíveis reféns das amarras da tecnologia de ADN como “máquina da verdade”. Erros humanos ou ações malintencionadas podem conduzir a que a prova de ADN – entendida como infalível na identificação de indivíduos por parte dos operadores do sistema de justiça – reduza drasticamente as margens de negociação. Neste sentido, o ADN é encarado como uma espécie de algema tecnológica: “amarra” os suspeitos da prática de crime com a chave da “objetividade” e da “neutralidade” da ciência. Perspetivas públicas Os resultados apurados através de um inquérito por questionário aplicado a cidadãos em Portugal sobre as atitudes públicas relativas à criação e expansão de uma base de dados nacional de perfis de ADN com objetivos forenses (Machado e Silva, 2014b; Machado, Maciel e Silva, 2013) evidenciaram que o acesso à informação sobre este tema é profundamente seletivo, por via do nível de escolaridade e/ou área profissional: foram os participantes mais escolarizados e com profissões ligadas ao sistema de justiça quem mais frequentemente reportou ter conhecimento sobre a existência da referida base de dados. Além disso, a principal fonte de informação mencionada foi a formação académica. É ainda de salientar que a quase totalidade dos participantes considerou que a população portuguesa não está adequadamente informada sobre o tema e que a informação só chegou a algumas pessoas. Uma parte significativa dos inquiridos considerou que a (escassa) informação divulgada foi insuficiente e de baixa 15

qualidade, concordando com o envolvimento dos meios de comunicação social na divulgação de informação sobre esta base de dados, nomeadamente através de debates televisivos sobre o tema. Estes elementos corroboram a constatação de que a disseminação de informação sobre a base de dados genéticos para finalidades forenses na esfera pública é limitada. As opiniões da quase totalidade dos inquiridos quanto à regulação da inserção e remoção de perfis genéticos da base de dados e do acesso à mesma revelaram uma tendência muito menos restritiva do que a que consta da presente Lei n.º 5/2008. Os dados apurados indicam que a maioria dos inquiridos concordou com a inserção do perfil de ADN de todos os condenados na base de dados e com a sua permanência por tempo indeterminado ou até à morte do indivíduo. A esmagadora maioria considerou que a Polícia Judiciária devia ter acesso direto à base de dados de perfis genéticos com propósitos forenses; embora seja também de destacar, a este propósito, que a maioria dos inquiridos considerou que as consultas à base de dados criminal portuguesa devem estar sempre dependentes da ordem de um juiz. Os inquiridos demonstraram valorizar em várias vertentes o envolvimento dos cidadãos na construção e na governação da base de dados de perfis genéticos com propósitos forenses. Esta postura de “cidadania ativa” revelou-se em diferentes respostas, sendo de destacar que a esmagadora maioria dos participantes considerou muito importante o envolvimento dos cidadãos em geral no debate sobre o tema da base de dados, tendo-se ainda constatado existir uma elevada recetividade à inserção do próprio perfil na base de dados de ADN, disposição frequentemente justificada com valores de altruísmo e de perceção de responsabilidade individual na contribuição para ajudar a justiça e/ou a sociedade em geral. Esta motivação dos cidadãos para colaborar na construção da base de dados vai ao encontro do espírito da Lei n.º 5/2008, na medida em que esta prevê e destaca o papel do cidadão comum ao definir, no n.º 1 do artigo 6.º, que a base de dados de perfis genéticos com propósitos forenses será construída “[…] de modo faseado e gradual, a partir da recolha de amostras em voluntários, para o que devem prestar o seu consentimento livre, informado e escrito”. Um outro estudo sobre perspetivas públicas em Portugal, de caráter exploratório, partiu da organização de dois grupos focais com estudantes universitários que frequentavam licenciaturas das áreas científicas das ciências 16

sociais e humanas e das ciências naturais e exatas (Machado, Martins e Matos, 2013). Os discursos dos estudantes projetam representações sociais que se fundamentam em expectativas, valores e modalidades de hierarquização social dirigidas a três dimensões da vida em sociedade: ponderação dos direitos e responsabilidades individuais face ao que é considerado benéfico para a sociedade e para o interesse coletivo; níveis de confiança depositada nas instituições sociais e, em particular, no sistema de justiça e investigação criminal e na medicina; e hierarquização de saberes e conhecimentos disciplinares, nomeadamente, entre a área científica das ciências exatas e naturais e a área científica das ciências sociais e humanas. Este último aspeto serve de referencial simbólico pelo qual os estudantes se posicionam face ao tema. Os resultados revelaram a complexidade e aparente ambivalência das perceções públicas sobre os benefícios e riscos da utilização da tecnologia de ADN e das bases de dados genéticos para investigar o crime e prevenir a criminalidade. Enquanto os benefícios mais frequentemente apontados se orientaram por elevadas expectativas quanto à capacidade da ciência e da tecnologia para produzirem conhecimento e modalidades de vigilância capazes de contribuir para combater o crime e tornar as atividades do sistema de justiça criminal mais céleres e eficazes, a identificação dos riscos, por seu turno, surgiu associada sobretudo à opinião de que existe falta de segurança e controlo no acesso à informação contida na base de dados, e a receios sobre eventuais usos futuros que se desviem dos propósitos para os quais aquela foi criada. Conclusão A trajetória crescentemente global de expansão da utilização da tecnologia de ADN e de bases de dados genéticos nas atividades do sistema de justiça tem vindo a alterar a natureza do conhecimento gerido e processado no sistema penal, num sentido que vai ao encontro das características culturais da dita “sociedade da informação”. Ou seja, o tipo de conhecimento gerado e manuseado pela tecnologia de ADN e bases de dados de perfis genéticos adequa-se a características de “objetividade” e de “portabilidade”, de forma a tornar-se um tipo de conhecimento reconhecível por uma cultura baseada no armazenamento de informação em computadores. Esta cultura faz desaparecer o corpo enquanto entidade material, ao mesmo tempo que se alimenta de informação 17

digital construída a partir de dados físicos e biológicos colhidos do corpo (perfis genéticos, mas também outro tipo de informação, como impressões digitais, scan da íris ou imagens colhidas de câmaras de videovigilância). Daqui emergem conexões entre identidades sociais e ideologias de ordem social, eficiência e segurança que podem vir a marcar profundamente a cidadania do século XXI. As ciências sociais necessitam, pois, de novos instrumentos teóricos que permitam analisar “novas” e “velhas” formas de cidadania que se interpenetram em modalidades de “cidadania genética”. Este conceito ganhou popularidade no seio dos estudos sociais da ciência na última década, a partir de estudos sobre a crescente importância da genómica na medicina. Contudo, importa considerar também, no plano da aplicação da genética forense nos sistemas de justiça, a genetização das relações sociais e os seus impactos nas configurações de privacidade, dignidade humana e direitos civis. A separação que tem imperado entre as aplicações da genómica e da genética no campo médico e no campo da investigação criminal deve, pois, ser ultrapassada. Um bom exemplo das potencialidades de alargar o olhar às interconexões entre a área médica e a área forense são os acelerados desenvolvimentos da partilha transnacional de informação genética entre países. No campo médico, esta partilha de informação tem como objetivo desenvolver a pesquisa do genoma humano com vista à descoberta de novas drogas e terapias para doenças. Este fenómeno tem suscitado amplo debate académico e político em torno dos potenciais riscos para dignidade genética humana e benefícios para a saúde e bem-estar. Em relação à partilha transnacional de informação genética no âmbito do combate à criminalidade e terrorismo organizado, o debate em torno das implicações na esfera dos direitos humanos é ainda emergente. Haverá, assim, que ultrapassar separações rígidas entre os campos de aplicação da genética e da genómica, de modo a captar a complexidade das interconexões e a diluição de fronteiras que se vislumbram. Referências bibliográficas Aronson, Jay (2007), Genetic Witness: Science, Law, and Controversy in the Making of DNA Profiling, Piscataway, NJ, Rutgers University Press. Cole, Simon (2001), Suspect Identities: A History of Fingerprinting and Criminal Identification, Harvard, Harvard University Press.

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