Das \"Cartas a um jovem poeta\" para os \"Ensaios a um jovem literato\": Rilke e a literatura

May 23, 2017 | Autor: Caique Franchetto | Categoria: Literature, Teoría Literaria
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Das Cartas a um jovem poeta para os Ensaios a um jovem literato: Rilke e a literatura1

Caique R. Franchetto Universidade Estadual de Campina (IEL/Unicamp) E-mail: [email protected]

* Apesar de pouco citado pela teoria e história literária acadêmica, pelo menos nas universidades públicas do Estado de São Paulo, em contrapartida, circular nos meios literários mais alternativos e ainda ser um livro de boas vendas nas livrarias mais conceituadas, sobretudo nas grandes capitais, um dos nomes da literatura moderna é o poeta de língua alemã Rainer Maria Rilke (1875-1926) com suas famosas Cartas. Na pequena coleção de epístolas, Rilke recebe, lê e comenta as cartas, e os poemas transcritos nelas, do jovem poeta Kappus. Em seus comentários, percebemos suas condições de pobreza e de frágil saúde, que o leva a viajar e se isolar constantemente. Mas, o que mais chama atenção é a discussão do fazer poético de Kappus, que revela a concepção de literatura de Rilke e sua crítica ao fazer crítica literária – e esse é o ponto que mais nos interessa, pois, ele carrega também sua visão de mundo e de si. Escreve Rilke a seu jovem poeta: “Deixe-me fazer-lhe um pedido: leia o menor número possível de trabalhos críticos ou estéticos. Estes, ou são produtos de um ‘espírito de partidarismo, petrificados, privados de sentido na sua rigidez mortal, ou hábeis jogos verbais, inspirados numa opinião, agora, e no dia seguinte, em opinião contrária. Os trabalhos de arte são de uma solidão infinita: para os abordar, nada pior do que a crítica. Só o amor pode prendê-los, conservá-los, ser justo com eles. Dê sempre razão ao seu próprio sentimento, contra essas análises, esses resumos, esses preâmbulos. Mesmo que se iluda, o desenvolvimento natural da sua vida interior conduzi-lo-á, aos poucos, com o tempo, a um outro estado de conhecimento. Deixe que seus julgamentos tenham a sua evolução natural, silenciosa. [...] É necessário deixar cada impressão, cada germe de sentimento, amadurecer em si, na treva, no inexprimível, no inconsciente – essas regiões herméticas ao entendimento.” (Carta III – Viareggio, Pisa, Itália, 23 de abril de 1903, p. 50-51)2

Palavras sedutoras as de Rilke, exalando a liberdade resignada dos românticos que voltaria a ser apreciada na segunda metade do século XX. E o poeta não se equivoca ao todo. Todos nós, nos cursos de Letras, presamos pela leitura primeira das obras, mas, o excesso de leituras até díspares e o tempo demasiadamente curto nos impede, na maioria dos casos, de ler um romance balzaquiano ou proustiano, e acabamos nos debruçando nos capítulos, ensaios e artigos acadêmicos de vinte páginas que resumem e explicam uma determinada obra. Realidade esta infeliz, contudo, às vezes, é a única possibilidade de se conhecer literatura. Isso quando uma pessoa, que escolheu uma profissão mais técnica, tem como a única base literária (se ela existir) a que todos “aprendemos” no ensino regular, dada, em quase todos os casos, de maneira simplificada, descontextualizada, desatualizada e desmotivada. Adendos à parte, concordamos com Rilke de que a Literatura não é uma ciência, e sim, uma Arte a ser experimentada e apreciada subjetivamente, e cujos sentimentos e impressões devem ser mantidos apenas para si, como um segredo, e assim eles se apuram, “evoluem natural e silenciosamente”, como diria Rilke. E nós, literatos, professores, escritores e críticos, devemos ler,

inicialmente, uma obra para nos deixarmos possuir por seu valor estético, entorpecendo-nos pelas primeiras emoções, sejam elas a euforia ou a raiva. Contudo, é a partir da referência a Rilke que discuto o caráter do ensaio. Ao invés de fazer teoria, história ou crítica literária, pretendo fazer uma leitura e análise que seria base para um literato. E quando digo “literato” não falo do leitor amador, que usa do livro como distração, mas sim, do “bela-letrista”, do crítico e do artista, que não apenas lê literatura, mas tudo aquilo que seriam as antigas Belas-Letras e hoje chamamos de Filosofia, Humanidades, Teoria Literária, Crítica de Arte, Estética, História e etc. Ou seja, leremos como Rilke aconselha ao jovem poeta, entretanto, ao lado de um autor e obra, estará uma outra obra e autor, pois, uma bagagem literária é, antes de tudo, humanística e crítica. ** Se até então, enquanto justifico os objetivos desse projeto e comento um pequeno fragmento de uma das Cartas de R. M. Rilke, deixo-o como uma importante dica de leitura e, a seguir, reafirmarei comentando dois poemas dele. Acredito que o interesse desses ensaios seja ir além das primeiras impressões, para que se possa desenvolver a leitura de maneira teórica, crítica e histórica, indicando também teóricos, críticos e historiadores que sejam oportunos à discussão. Esse movimento propõe que seja feita uma leitura que atualize outras leituras, compreendendo a autonomia estética do autor e da linguagem, sem deixar de considerar a relação autor-obra-leitor como uma construção e condição sócio-histórica. Esse processo conciliatório é realizado por Antoine Compagnon em seu livro O demônio da Teoria, no qual o conceito de literatura e a teoria literária, bem como os epítetos literário e literariedade, são discutidos por perspectivas históricas (a História Literária e a Filologia) e as estéticas (Teoria e Crítica da Literatura) que ora se anulam e ora se complementam. Dentre as categorias que constituem o literário, segundo Compagnon, estão: a literariedade (o discurso literário, que pode ser o poético-metafórico ou o ficcional da narrativa e do teatro, em outras palavras, a mimèsis ou representação), o autor, o leitor, o mundo (o que representa e do que fala) e o estilo (como representa e como fala).3 Como então analisar a literatura sem cair nas armadilhas das perspectivas teóricas ou sem ser taxativo como o senso comum, como diria Compagnon? Se pensarmos a função da leitura e do leitor e a diferença do leitor comum e do leitor que também é autor e/ou crítico, veremos a diferença entre uma leitura subjetiva, dada apenas pela experiência, e a analítica, que busca sentir o objeto literário para comentá-lo e criticá-lo. “Em contraste com essa primeira leitura de amadores e de ledores, a leitura pretensamente culta, atenta, conforme a expectativa do teto, é uma leitura que se nega ela própria como leitura”4

Não diria uma leitura “pretensamente culta”, e sim atenta, cujas primeiras impressões e a experiência subjetiva se desenvolvam criticamente, discutindo não apenas o texto, como seu contexto – e o mesmo se equivale ao crítico literário. Então, a partir dessa resolução, podemos ler a obra de Rilke e de Compagnon, tentando achar o meio termo analítico, mesmo que identifiquemos as preferências teóricas e metodológicas de cada autor, bem como as nossas, e foi esse movimento que ensaiei fazer d’O demônio da teoria, ao tentar localizar e discutir os pontos sintéticos e conciliatórios de Compagnon.

Um dos pontos mais polêmicos e controversos, que incendeia os debates dentro e fora das salas, engloba tudo aquilo que é externo ao texto: o autor, o contexto e o leitor, sendo o primeiro motivo para teses como a da morte do autor (para os formalistas russos e estruturalistas franceses) e da consciência histórica do autor (para os marxistas da Escola de Frankfurt e os psicanalistas). Para Compagnon, “Ora, do ponto de vista da apreensão do ato de consciência que representa a escritura como expressão de um querer-dizer, qualquer documento – uma carta, uma nota – pode ser tão importante quanto um poema ou um romance [...] e esta consciência não tem muito a ver com uma biografia nem com uma intenção reflexiva ou premeditada, mas corresponde às estruturas profundas de uma visão de mundo, a uma consciência de si e a uma consciência do mundo através dessa consciência de si, ou ainda a uma intenção em ato.”5

Ora, o “pode ser” grifado é bem sugestivo. Ele induz a ideia de possibilidade do que pode ou não pode ser importante para a análise de um texto literário. Por exemplo, logo menos iniciarei a leitura de dois poemas de Rilke. Uma carta, nota, ou qualquer outro documento, não seria necessário para o tipo de leitura que faremos. Todavia, entender o processo metafórico do individualismo moderno presente nos poemas exige que entendamos qual é a consciência de mundo e a consciência de si do poeta. E para alcançarmos essa leitura, deveremos procurar no texto as referências linguísticas, históricas e culturais do autor em comunhão com as nossas mesmas referências enquanto leitor-crítico. Nesse momento, o argumento do discurso histórico da literatura é interessante, pois “a literatura muda porque a história muda em torno dela. Literaturas diferentes correspondem a momentos históricos diferentes”6. *** Voltando a Rilke em suas Cartas ao jovem poeta Kappus, qual seria, portanto, a concepção do fazer literário? Nas cartas vemos Rilke dizer como deveria fazer o jovem poeta, mas, e em seus próprios poemas? Como se dá sua poética e sua literariedade? Selecionei dois poemas para lermos e introduzirmos a discussão: O Cisne Este sacrifício de avançar pelos feixes do irrealizado lembra um cisne, altivo a caminhar. E a morte – esse nada mais buscar do chão diariamente repisado – lembra a sua angústia de pousar sobre as águas que o recebem mansas e cedem sob ele, em suaves tranças de marolas que cercá-lo vêm; enquanto ele, calmo e independente, segue sempre majestosamente como ao seu capricho lhe convém.

A Pantera Varando a grade, a nada mais se agarra o olhar tomando dum torpor profundo: para ela é como se houvesse mil barras e, atrás dessas mil barras, nenhum mundo. Seu firme andar de passos gráceis, dentro dum círculo talvez muito apertado, é uma dança de força em cujo centro ergue-se um grande anseio atordoado. De raro em raro, só, o véu das pupilas abre-se sem ruído – e deixa entrar a imagem, que sobre, pelas tranquilas patas, ao coração, para aí ficar.7

Não farei, nesse primeiro momento, uma leitura dos elementos estruturais que compõem ambos poemas: verso, rima, estrofe; nem os contextualizarei em uma tradição determinada. O que nos importa é a sua literariedade, isto é, seu discurso poético que, através da metáfora, revela sua principal característica: o individualismo na literatura moderna.

No primeiro poema, “O Cisne”, o discurso literário se introduz pela antagônica relação entre o cisne, que nos remete à imagem de um animal nobre e imaculado, vinculado a paisagens – lagos – bucólicas, com a morte, que seria o oposto desse quadro natural, inclusive a visão negativa das ações do cisne em achar o avançar um sacrifício e ser uma angústia pousar sobre a água. Nas segunda e terceira estrofes, a morte, até então emparelhada à imagem do cisne, revela-se nas águas que envolvem o cisne, e seria a morte materializada nas ondulações da água que transformariam o pousar e seguir em algo tortuoso e angustiante, mesmo que o nobre animal siga majestoso sobre a ela. Se fecharmos o livro e esquecermos o texto, esse poema não faria sentido, entretanto, se pensarmos que o poeta, ou pelo menos o eu-lírico ausente textualmente aqui que pelo menos vê e relata essa cena, projeta-se nesse cisne – e vale a pena relembrar a figura do cisne na literatura romântica, sendo ele uma figura mitológica de transformação, de beleza e purificação – uma segunda imagem, até então camuflada pela metáfora poética, surge o eu-lírico se apresenta, pois, é para ele, enquanto um indivíduo moderno, que é sacrificante, angustiante, tortuoso seguir por um “chão diariamente repisado” que nos conduz à morte. O segundo poema, “A Pantera”, possui versos densos, enigmáticos e angustiantes para um literato iniciante. Muitas são as suas interpretações, e arriscarei uma simples. Assim como em “O Cisne”, esse poema inicia-se por uma contradição: a pantera, um animal selvagem, presa, isolada, sem qualquer perspectiva. A maneira da construção dos versos em enjambement e uma estrutura de rimas internas e ritmo sonoro lento (que seria mais perceptível em sua língua e versão originais, pois, a presente tradução da edição da qual me utilizo é fraca) coloca-nos em frente à pantera enjaulada, vendo-a passar firme e tranquila de um lado a outro enquanto não tira seu intenso rosto, demasiadamente fixo em seu leitor. E nós nos hipnotizamos por esse olhar profundo que nos imerge em sua subjetivamente. Esse hipnótico e intenso movimento ao seu interior, conduz-nos à sua alma, se pensarmos no cliché de que o olhar é uma espécie de portal para a alma; e é lá onde eclode a força da vontade de liberdade, instinto natural da pantera. Por fim, temos os veros finais: “e deixa entrar / a imagem, que sobe, pelas tranquilas / patas, ao coração, para aí ficar”, que evoca outra característica do fazer poético de Rilke: a construção e sobreposição de imagens. Se a primeira imagem é a da pantera enjaulada, a segunda imagem é a de vermos pelo reflexo do olhar da pantera nós mesmos e o mundo de fora – em uma espécie de mise en abyme – em contraste ao mundo vazio de dentro da jaula. O que é de fora, simbolizando a liberdade do instinto natural da pantera, entra por seus olhos e se instala no coração, na alma. Seria a pantera outra projeção do poeta enquanto indivíduo moderno? Essa é uma comparação consensual na literatura romântica e moderna. Um poema, anterior ao de Rilke, de Charles Baudelaire fez a mesma comparação. Leiamo-nos: O albatroz Às vezes, por prazer, os homens da equipagem Pegam um albatroz, imensa ave dos mares, Que acompanha, indolente parceiro de viagem, O navio a singrar por glaucos patamares. Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés, O monarca do azul, canhestro e envergonhado, Deixa pender, qual par de remos junto aos pés, As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça Esse viajante agora flácido e acanhado! Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça, Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado! O Poeta se compara ao príncipe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar; Exilado no chão, em meio à turba obscura, As asas de gigante impendem-no de andar.8

Apesar da tradução de Ivan Junqueira não privilegiar a construção da imagem, do som e do sentido do poema, atravancando o verso, tanto o cisne e a pantera de Rilke como o albatroz de

Baudelaire são projeções do poeta em um animal magnânimo que se vê preso: pelas águas da morte, pelas grades da jaula e pelo convés dos marinheiros. Qual seria, portanto, a visão do mundo desses poetas? O mundo material, para o poeta moderno de postura ainda romântica, limita e aprisiona a alma do gênio, permitindo apenas viver, como diria Novalis em um de seus fragmentos, o cotidiano ordinário. E a visão do poeta de si? Provavelmente a de um gênio privado de sua liberdade, cambaleando entre grades e chãos diariamente repisados. **** Por fim, tanto um literato quanto um artista hoje circulam por diversas esferas da arte da mídia cultural. E cabe à nossa geração lê-las e discuti-las mesmo quando o debate se apresente vazio, cansativo ou ofensivo – sobretudo pelo excesso ódio e de “verdades” nas redes virtuais do debate público.

Notas Ensaio publicado originalmente em “Ensaios a um jovem literato”, em 20 de janeiro de 2017. Disponível em: . 1

2

In. RILKE, Rainer Maria. Alguns poemas & Cartas a um jovem poeta. Trad. Geir Campos, Fernando Jorge e outros. Sel. Maura Sardinha. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. Coleção Clássicos de Ouro. 3

Ver. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Trad. Cleonice P. B. Mourão e Consuelo F. Santiago. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 4

COMPAGNON, Op. cit., p. 138. Além da obra do autor francês, inúmeros outros trabalhos, sobretudo Lector in fabula, de Umberto Eco discutem o papel e os tipos de leituras e de leitores acerca da literatura. 5

COMPAGNON, Op. cit., p. 64-65, grifo próprio.

6

COMPAGNON, Op. cit., p. 194.

7

In. RILKE, Alguns poemas..., op. cit., p. 20-21.

8

In. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Trad., introd. e notas Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. Ed. especial Saraiva de Bolso, p. 135-137.

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