Das coisas que se pode fotografar

June 16, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Fotográfia, Fotografía, História da arte, Fotografia, Ideologia
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DAS COISAS QUE SE PODE FOTOGRAFAR por Waldísio Araújo

Surgimento fotografia

e

consolidação

da

A fotografia envolve, no mínimo, três processos técnicos distintos. Inicialmente, é preciso fazer com que a luz refletida pelos objetos incida sobre uma superfície. Tal processo existe mesmo naturalmente: faz parte do mecanismo do próprio olhar humano (com a formação provisória da imagem na retina) e pode ser vivenciado num quarto escuro separado da luz do sol por uma estreita fresta. Na pré-história da fotografia, é representada pela câmara escura, datada do século XVI, espécie de caixa dotada de um orifício pelo qual passa a luz que será projetada como imagem sobre um fundo plano. Contudo, esta imagem não adere por si mesma à superfície, embora possa servir de base a um esboço de desenhista ou pintor. Faltava, pois, o desenvolvimento de um segundo processo, o de fixação da luz ao plano de incidência, o que pode Fotografia de Heidersberger. Laederstraede, ser conseguido por reação química Copenhagen, 1935. entre os fótons luminosos e a matéria constituinte da superfície, feito atribuído a Niepce (1826), e consolidado por Daguerre (1835), mediante a obtenção de negativos (campos claros em lugar dos escuros, e vice-versa) reveláveis por processos químicos capazes de fazer aparecer a imagem correta, positiva. Originava-se assim a fotografia propriamente dita, e a primeira câmara, o “daguerreótipo”, seria apresentada, patenteada e divulgada a partir de 1839 e logo popularizada à medida em que se melhorava a qualidade da imagem e era diminuído o tempo de exposição necessário a sua fixação. Contudo, o daguerreótipo possuía a desvantagem de permitir apenas um exemplar, pela revelação da própria chapa exposta. Coube, então, a Talbot, a partir de 1840, com a invenção do “calótipo”, o mérito de dotar a fotografia de um terceiro processo, que permitiu a reprodução de um número indeterminado de cópias a partir de um único negativo. Assim se estabeleceu a via que conduziu à fotografia moderna, que consiste, essencialmente, como vimos, na projeção da luz refletida pelo

objeto sobre uma película localizada no fundo da câmara, na reação físico-química dos fótons com as substâncias que compõem a película fílmica e destas com outras substâncias, gerando uma imagem em negativo revelável em positivo, e na reprodução dessa imagem revelada na quantidade desejada de cópias, chamadas comumente “fotografias”. Condições de uma nova arte Embora não essenciais, outros desenvolvimentos técnicos, tais como a película gelatinosa ou a fotografia a cores, tornaram, em relativamente pouco tempo, mais portáteis e baratas as câmaras e mais atraentes e manuseáveis as fotos. De qualquer modo, já tínhamos, pela década de 30 do século XX um instrumento capaz de registrar coisas e eventos. No entanto, o mundo é vasto e diverso, e não é possível fotografá-lo todo, pois não somos deuses e não existem câmeras divinas. Nós, humanos, felizmente, necessitamos escolher, selecionar o que consideraremos digno de valor, e o fazemos de acordo com nossas visões de mundo particulares, nossas paixões, nossos medos, angústias, desejos, crenças, dúvidas, loucuras ou pecados; em suma, de acordo com a maneira que cada um tem de “enquadrar” o mundo em que se insere, de apoderar-se dele, de conquistá-lo, o que quer dizer dotá-lo de valor e reconhecer esse valor para nós; em outras palavras, amá-lo. Uma fotografia se faz, assim, com luz, reações químicas, enquadramento, valoração e amor. Mas as nossas formas particulares de enquadrar o mundo das coisas não são arbitrárias; caso contrário, a maior parte do que fotografássemos ou falássemos seria incompreensível para os outros. Na verdade, além da valoração a que nos referimos, nós vemos, conhecemos e mostramos as coisas através de linguagens que nos ensinaram desde sempre ou que inventamos, sendo elas as fronteiras do cognoscível. Claro que é maçante ter limites, mas sem eles não seríamos sequer humanos, o que quer dizer que não seríamos sociais, históricos. E tampouco existiriam artes, como a fotografia. Por outro lado, a vida social nos propõe ou impõe discursos já prontos, feitos com aquelas linguagens e que silenciosamente reafirmamos e com eles justificamos a maioria das nossas ações e pensamentos. Esses discursos, que dificilmente criticamos, perfazem visões de mundo artísticas, religiosas, antropológicas, cosmológicas e muitas outras, inclusive as que dizem respeito mais proximamente a nossas relações com os outros, ou seja, as éticas e as políticas. Fotografia, beleza e poder Aparentemente, a fotografia é a arte isenta, neutra, apolítica, imparcial, não manipulável, visto que após o clique o fotógrafo nada pode fazer para alterar o caminho da luz que sensibilizará a película e pouco sabe do destino que sua imagem terá nesse mundo. Correto, mas esses são apenas os caminhos mais curtos, sendo muito mais longos e importantes aqueles (inumeráveis) que conduzem o homem que fotografa a escolher seu tema e a enquadrá-lo, havendo ainda inúmeras possibilidades durante e pouco após a revelação. E depois há os infinitos modos pelos quais isso é visto ou compreendido por outras pessoas. Cabeças decepadas do bando de Lampião. 1938.

Tomemos como exemplo uma foto macabra que mostra cabeças decapitadas de capangas do cangaceiro Lampião... De que fala ela? Outrora falava do castigo dado à desumanidade do poder do

cangaço; hoje fala da desumanidade dos poderes oficiais. De qualquer modo, fala sempre de poderes, pois é impossível não falar deles, tendo em vista que só falamos para exercê-los, e isso é verdade mesmo quando calamos, como ainda falam caladas, pela fotografia, aquelas cabeças destroncadas. E que poderes detém a fotografia? O de mostrar o que consideramos "belo", o de expressar o que consideramos "verdadeiro", o de tentar impor o que consideramos "bem". Logo, como todas as artes, ciências e filosofias, a fotografia fala do belo, do verdadeiro e do bem, e cada fotógrafo tem concepções diferentes acerca do que vêm a ser essas três coisas que, em conjunto, chamamos “visão-de-mundo”. Assim, a fotografia mais aparentemente neutra não está isenta de pensamento ou beleza, para o bem ou para o mal. Fotografamos porque valorizamos, isto é, submetemos o objeto a nossos juízos de valor. Ocorre, além disso, que certas pessoas dotam seus pensamentos de um alto nível de coerência e usam desta para, harmoniosamente, recriar o mundo, ou melhor, criar mundos novos em que o feio e o injusto são revelados, denunciados ou exorcizados... Pensemos, por exemplo, nas fotos de Sebastião Salgado que mostram enegrecidos trabalhadores de mina de carvão na Índia: para que viajar tanto para fotografar feios e sujos corpos seminus ao invés de fazer fotos de belos e embiquinados corpos femininos numa ensolarada praia de Maceió? Tudo fica, talvez, mais claro se buscarmos penetrar a consciência de Salgado, da qual suas obras são indícios preciosos... Eis que vivemos, diria talvez ele, num mundo economicamente globalizado em que matéria-prima, energia, tecnologia, capital e trabalho dispersam-se por toda parte. Com efeito, a fabricação de minha câmara, por exemplo, pode envolver trabalhadores de uma mina indiana, trabalhadores de uma usina siderúrgica japonesa, trabalhadores de uma fábrica de produtos plásticos belga e outros, tudo isso dominado por capital britânico e montado em Taiwan... Explora-se a mãode-obra barata dos indianos e suas jazidas minerais, para que seus trabalhadores chafurdem como minhocas nas entranhas do planeta em troca de um salário miserável, a fim de sustentar a rica indústria do Primeiro-Mundo e possibilitar tanto a fabricação de minha boa câmera Leica quanto minhas viagens pelo mundo em busca do prazer ou obrigação de fotografar. Minha arte consiste, pois, em render homenagem àqueles que a tornam mesmo possível e que a maioria de meus colegas recusa a fotografar e até a ver. Trata-se da apologia do trabalho humano, é verdade, mas mediante a denúncia das péssimas condições às quais ele está submetido e, por essa via, sua onipresença nos próprios atos de fotografar, revelar, imprimir, expor, contemplar ou distribuir imagens... Negando ou renegando o fascismo Talvez não seja propriamente essa a visão de mundo de Salgado, aquilo que ele gostaria de dizer, mas expressa uma verdade que não se pode ocultar, a de que é impossível não dizer algo, ainda que se o diga falsamente, e é exatamente por isso que não existem pessoas apolíticas. E a fotografia exerce um poder junto ao imaginário atual somente comparável ao do texto escrito, a tal ponto que a grande mídia costuma aproximar ambos, como se a verdade fosse tão dificilmente reconhecível que necessitasse repetir-se de todas as maneiras possíveis. Como exemplo temos que determinado jornal nos fala, por escrito, da visita de um candidato a deputado a uma comunidade pobre de subúrbio; ao lado do texto, vemos uma foto do candidato sorridente com uma criança feia, suja e magra nos braços, enquanto recebe uma palmadinha no ombro por parte de um popular... Por que não imprimir apenas o texto? Ou por que não substituí-lo por várias fotos relativas à visita? Para que duplicar a incompetência ou fraqueza do político diante dos problemas sociais? Na verdade, o objetivo,

consciente ou não, é transformar fraqueza, burrice e estupidez em aparência de fortaleza, inteligência e justiça, a partir da insistente redundância do falso. Ao lado, porém, dessa retórica de fachada da imprensa, criadora artificial de "verdades" de mão única, devemos considerar o contrário: que texto e imagem não podem e não devem dizer uma só coisa nem a mesma coisa dentre muitas, pois que se submetem a linguagens múltiplas e distintas. O texto também pode fazer ver sem os olhos; a imagem também pode ser lida sem palavras, e a tradução fiel de uma linguagem a outra – a da fotografia para a da literatura, ou vice-versa – é impossível: a imagem não mostrou (o texto, sim) que a esposa do deputado estava, fora da foto, a abraçar outra criança não menos feia, suja, magra e pobre; o texto não mostrou que o sorriso do deputado não era convincente e que havia, afixada num muro em segundo plano a inscrição “Compre os carnês do baú da felicidade”... A fotografia nega por si própria o axioma fundamental do fascismo: o de que haveria por trás de cada acontecimento um problema único para o qual um única resposta seria a verdadeira, condenando-se como falsa ou criminosa a sua negação e a própria recusa a posicionar-se diante do problema. A fotografia tem uma bela história, e humanos como Niepce, Daguerre ou Talbot merecem seu lugar no panteão da humanidade, pelos avanços técnicos que proporcionaram. Além disso, a fotografia é, em grande parte, a história dos tempos recentes, visto que não gostamos de saber de acontecimentos não documentados fotograficamente, e a maioria dos “leitores” dos jornais e revistas só olham mesmo as imagens. Acima de tudo, a fotografia conquistou seu lugar como arte respeitável e gerou grandes artistas, enriquecedores do patrimônio cultural da humanidade, como Salgado, Robert Capa ou Henri Cartier-Bresson. E são estes, mais que os anteriores, os que sugerem que há muito mais coisas entre o mundo e o cérebro – passando pela câmara – do que nossa pobre retina é capaz de fotografar.

Por Waldísio Araújo www.waldisio.com

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