DAS DIMENSÕES TÉCNICAS ÀS SUBJETIVAS: O NECESSÁRIO DIÁLOGO SOBRE A QUALIDADE DOS ALIMENTOS

June 15, 2017 | Autor: Renata Menasche | Categoria: Life Style
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20 a 22 de agosto de 2008 Bento Gonçalves-RS

DAS DIMENSÕES TÉCNICAS ÀS SUBJETIVAS: O NECESSÁRIO DIÁLOGO SOBRE A QUALIDADE DOS ALIMENTOS F.T. Cruz1, R.Menasche2 1- Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS). Endereço: Avenida João Pessoa, 31, CEP 90040-000. Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: [email protected] 2- Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS) / Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro). Endereço: Avenida João Pessoa, 31, CEP 90040-000. Porto Alegre – RS – Brasil. E-mail: [email protected]

Resumo: A complexidade do tema qualidade dos alimentos aponta a necessidade do debate a partir de diferentes perspectivas, desde as que envolvem os aspectos técnicos, centrados principalmente nas questões higiênico-sanitárias, aos aspectos subjetivos, simbólicos, associados à cultura e a modos de vida específicos. Mais do que resultados, o trabalho pretende abordar diferentes enfoques que compõem a qualidade dos alimentos e o papel de produtores e consumidores nesse contexto, propondo o diálogo construtivo entre os profissionais das diferentes áreas que tomam o alimento por objeto, desde as abordagens técnicas às que privilegiam as dimensões sociais. Palavras-chave: dimensões da qualidade dos alimentos; produtores; consumidores Abstract: The complexity of the subject quality of food points to the necessity of the debate from different perspectives, from those involving the technical aspects, mainly focused on hygienicsanitary issues, to the subjective, symbolic aspects, associated with culture and specific life styles. Rather than presenting results, this paper aims at approaching different perspectives that make up the quality of food and the role of producers and consumers in that context. The authors propose a constructive dialogue among professionals that take food as an object, from the technical approaches to the ones in which the social dimensions are privileged. Keywords: quality dimensions of food; producers; consumers.

1. INTRODUÇÃO Pensar sobre a qualidade dos alimentos requer, em um primeiro momento, considerar as possíveis dimensões e abrangência do termo qualidade dos alimentos, bem como refletir a respeito dos critérios para avaliá-la. O quê define que um alimento seja de qualidade - ou tenha qualidade - e outro não? Tais proposições conduzem ao fato de que a qualidade não existe por si só: ela precisa de apoio, de referencial. Desse modo, ao mencionar a qualidade de um alimento, torna-se necessário explicitar qual qualidade está sendo julgada, ou ainda, que critérios estão sendo utilizados para avaliar a qualidade de um determinado alimento. Muchnik (2004) aponta contradições entre dois grandes enfoques da qualidade dos alimentos. Um desses enfoques estaria baseado em características objetivas, formalizadas através de critérios claramente identificados e quantificados. O outro, consideraria as múltiplas expectativas e percepções dos consumidores, seu caráter individual, subjetivo e não quantificável. Para esse autor (MUCHNIK, 2004, p.6), “cada componente da qualidade mobilizará valores, representações e critérios de avaliação diferentes segundo os consumidores potenciais”.

20 a 22 de agosto de 2008 Bento Gonçalves-RS Nesse sentido, segundo a noção de qualidade ampla, proposta por Prezotto (1999), a qualidade dos alimentos não estaria relacionada apenas aos aspectos formais, como o sanitário, o legal e o nutricional, mas envolveria também critérios não formais, como o ecológico, o social e o cultural. Desde a última década, a qualidade formal, centrada na questão sanitária e inocuidade dos alimentos, tem sido discutida em meio às recorrentes crises alimentares, como as relacionadas à vaca louca (Encefalopatia Espongiforme Bovina - BSE), à gripe aviária ou a episódios de adulteração de produtos. Como conseqüência de tais crises, percebe-se a crescente valorização de qualidades não formais dos alimentos, como as associadas à origem, modo de produção, tradição e cultura, entre outras. No presente trabalho, propomos refletir sobre o tema da qualidade dos alimentos, atentando a outras dimensões da qualidade que não apenas as formais. Procuramos apontar algumas das implicações que emergem a partir dessa perspectiva de análise, como as associadas à pequena produção e às atitudes dos consumidores em relação às suas escolhas alimentares.

2. MATERIAL E MÉTODOS Os resultados da pesquisa desenvolvida por Cruz (2007) junto a agroindústrias familiares no sul de Santa Catarina, Brasil, apontam que, mais que o tamanho da estrutura para o processamento, a adoção de práticas e atitudes higiênicas durante a produção dos alimentos são condições que, além de determinantes para a produção de alimentos de qualidade sanitária, permitem conciliar as características do processo tradicional. É partindo desse entendimento e de revisão de bibliografia recente sobre o tema que propomos refletir sobre a qualidade dos alimentos. Na análise, procuramos contemplar tanto a perspectiva legal, baseada em parâmetros quantitativos e técnicos, quanto a subjetiva, que reflete aspectos simbólicos e culturais envolvidos na produção e consumo de alimentos. Para isso, abordamos desde os aspectos técnicos, balizados especialmente pelos parâmetros higiênicosanitários, até temas relativos à sociologia do consumo.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO O termo qualidade dos alimentos, embora corriqueiramente mencionado, envolve significados bastante complexos. A começar pela conotação da palavra qualidade que, como alertam Harvey et al. (2005), assume imediatamente uma valoração positiva. Contudo, se precedida por adjetivos como má ou inferior, a qualidade passa a assumir valoração negativa, uma não-recomendação ao produto. Os autores sugerem, então, tratá-la com cuidado e senso crítico, já que "o termo ‘qualidade’ envolve firmemente, embora não de forma inextricável, o empírico e o normativo: ele se refere a atributos particulares (qualidades) de um produto e ao mesmo tempo estabelece um julgamento pressupostamente positivo” (HARVEY et al., 2005, p. 2). Nesse sentido, a qualidade não é vista como propriedade intrínseca dos alimentos e necessita, portanto, de um ponto de apoio, um referencial que, como indica Muchnick (2004), se estabelece a partir da relação entre o produto e o critério pelo qual ele está sendo julgado. Para Harvey et al. (2005), cada alimento possui diferentes atributos de qualidade e, ainda, apresentar um dos possíveis atributos não diz nada sobre os demais. Lembrando o caso dos alimentos saborosos mas não saudáveis, os autores reconhecem, inclusive, que um alimento pode ser bom em relação a uma qualidade não o sendo em relação a outra. A partir da industrialização dos gêneros alimentícios, com os processos de produção e distribuição de alimentos operados em grande escala pelo sistema industrial, a qualidade dos alimentos passou a ser estreitamente relacionada a aspectos sanitários - de inocuidade -, baseados na escala de produção e na estrutura das grandes indústrias de alimentos.

20 a 22 de agosto de 2008 Bento Gonçalves-RS Tal visão de qualidade julga que, para assegurar o cumprimento das exigências sanitárias e, assim, garantir a segurança alimentar1, as estruturas devam ter um tamanho mínimo - geralmente muito maiores que a necessidade da escala produtiva da pequena produção - e ser cada vez mais automatizadas, os equipamentos adotados elaborados com materiais que dificultem ou impeçam contaminações e permitam fácil higienização. Ao mesmo tempo em que as exigências legais e normas sanitárias em termos de estrutura e instalações são rígidas, as recentes crises alimentares, ocorridas no âmbito da produção industrial de alimentos, colocam em xeque a validade do sistema de controle de alimentos produzidos em escala industrial, gerando um ambiente de desconfiança da população em relação a esse modo produção. Do mesmo modo que sugerido no estudo de La Soudière do caso francês (1995), em pesquisa realizada em Porto Alegre (Menasche, 2003), pôde-se observar que, entre moradores da capital gaúcha entrevistados a respeito de seus hábitos e preferências alimentares, o natural e o rural são, como reflexo da desconfiança ante o moderno/industrial, identificados como autênticos. Desse modo, ao mesmo tempo em que se percebe a queda de confiança dos consumidores nos processos de produção de alimentos padronizados pela indústria agroalimentar, percebe-se correspondente crescimento na demanda por alimentos de outro tipo, cuja procedência e/ou processo de produção seriam conhecidos do consumidor, alimentos produzidos localmente, a partir de procedimentos avaliados como ambiental, social e economicamente sustentáveis, enraizados em um território e em uma cultura. Ao tomar a qualidade dos alimentos somente a partir de critérios técnicos, normatizados a partir da escala de produção industrial, as práticas tradicionais de produção de alimentos, vinculadas a modos de vida específicos, são muitas vezes colocadas à margem do setor de produção de alimentos, encontrando dificuldades até para a regularização dos empreendimentos e, assim, vendo-se na condição de clandestinas. Mior (2005) argumenta que, em contraste com as noções de qualidade superior dos produtos de grandes empresas de alimentos, novas noções de qualidade têm tomado em conta as relações entre produtos agrícolas e consumidores. Assim, a relação com o produtor e a valorização de produtos regionais passam a constituir atributos de qualidade e diferenciação de alimentos. Diante dessa situação de inflexão entre distintos sistemas de produção de alimentos, as percepções de qualidade, atitudes e critérios de escolha dos consumidores podem se constituir em interessantes pistas para repensar a qualidade dos alimentos e os critérios necessários para julgá-la. Maluf (2004), ao analisar o sistema agroalimentar brasileiro, aponta que parecem coexistir diferentes tendências: a padronização e a diferenciação no consumo de alimentos. Se, por um lado, há continuidade na concentração do processamento agroindustrial e da produção em grande escala, por outro, valoriza-se produtos com atributos diferenciados de qualidade, criando oportunidades acessíveis aos agricultores de pequeno e médio porte. A ressignificação da qualidade dos alimentos apontada aqui é reforçada por movimentos de consumidores, como o Slow Food, que relacionam a qualidade dos alimentos a parâmetros organolépticos, ambientais e sociais, ou seja, produtos bons (no sentido do sabor do alimento), limpos (no sentido ambiental e da sustentabilidade) e justos (no sentido social e econômico) 2.

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Nesse contexto, segurança alimentar é entendida do ponto de vista sanitário, de inocuidade. Vale mencionar a distinção que há entre os termos Food Safety e Food Security. O primeiro termo refere-se à segurança a partir da ótica microbiológica e sanitária, ou seja, um alimento que não ofereça riscos microbiológicos, químicos ou físicos (Forsythe, 2002). Já o termo Food Security refere-se à segurança alimentar a partir da perspectiva do acesso ao consumo de alimentos para a obtenção de alimentação adequada e saudável. Cabe mencionar que a última é a perspectiva adotada pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – CONSEA (ver: https://www.planalto.gov.br/Consea/exec/index.cfm). 2

A esse respeito, ver: http://www.slowfoodbrasil.com/.

20 a 22 de agosto de 2008 Bento Gonçalves-RS

4. CONCLUSÕES O diálogo entre as dimensões técnicas e as dimensões subjetivas que compõem a qualidade dos alimentos constitui-se em desafio aos profissionais da área de alimentos. Tanto quanto produzir alimentos seguros do ponto de vista sanitário, é importante manter e valorizar os aspectos simbólicos e culturais. Compreender a qualidade dos alimentos como a integração das dimensões técnicas e subjetivas requer repensar as exigências em termos de estrutura e escala de produção, tornando-as condizentes com a realidade de pequenos produtores locais de alimentos. No que se refere à dimensão higiênico-sanitária, o cumprimento das exigências em termos de estrutura, instalações e equipamentos não deve ser tomado como fator determinante para a qualidade do produto final, uma vez que tal característica também decorre da adoção de práticas e atitudes higiênicas durante sua produção. Assim, mais do que no tamanho da estrutura para o processamento, é possível focar no processo, desde a produção da matéria-prima até o produto final, como condição para produzir alimentos que, além de qualidade sanitária, conservem características dos processos tradicionais, associados à cultura e aos modos de vida de pequenos agricultores. Cabe, então, o questionamento a respeito da possibilidade de conciliar as dimensões técnicas e subjetivas da qualidade, ampliando o espaço de pequenos produtores e de consumidores que, cada vez mais, buscam alimentos que não apenas contemplem requisitos técnicos associados ao processamento, mas também sejam vinculados a um território e/ou a um modo específico de produção, a uma cultura. As escolhas dos consumidores em relação aos alimentos - que ora priorizam o enfoque técnico, padronizado e higienista; ora priorizam o enfoque não formal, subjetivo, que considera os aspectos culturais e simbólicos da qualidade dos alimentos - podem constituir-se no ponto de confluência que estimule o diálogo entre as diferentes abordagens da qualidade, ao mesmo tempo em que configuramse em ponto de partida para o aprofundamento dos estudos sobre o complexo tema da qualidade dos alimentos.

5. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural/UFRGS, pelas reflexões sobre o tema qualidade dos alimentos.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CRUZ, Fabiana Thomé da. Qualidade e boas práticas de fabricação em um contexto de agroindústrias rurais de pequeno porte. 2007. 111 f. Dissertação (Mestrado em Agroecossistemas) – Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas, Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. FORSYTHE, Stephen J. Microbiologia da Segurança Alimentar. Porto Alegre: Artmed, 2002. 424p. HARVEY, Mark; MCMEEKIN, Andrew; WARDE, Alan. Qualities of food. New York: Palgrave, 2005. LA SOUDIÈRE, Martin de. Dis-moi où tu pousses: questions aux produits “locaux”, “régionaux”, de “terroir”, et à leurs consommateurs. In: EIZNER, Nicole (Org.). Voyage en alimentation. Paris: ARF, 1995. MALUF, Renato S. Mercados agroalimentares e agricultura familiar no Brasil: agregação de valor, cadeias integradas e circuitos regionais. Ensaios FEE. Porto Alegre, v. 25, n. 1, 2004, p. 229-322. MENASCHE, Renata. Os grãos da discórdia e o risco à mesa: um estudo antropológico das representações sociais sobre cultivos e alimentos transgênicos no Rio Grande do Sul. 2003. 287f. Tese

20 a 22 de agosto de 2008 Bento Gonçalves-RS (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. MIOR, Luiz Carlos. Agricultores familiares, agroindústrias e redes de desenvolvimento rural. Chapecó: Argos, 2005. 388 p. MUCHNIK, José. Identidade territorial dos alimentos: alimentar o corpo humano e o corpo social. In: CONGRESSO INTERNACIONAL AGROINDÚSTRIA RURAL E TERRITÓRIO, 2004, México. Anais... México, 2004. PREZOTTO, Leomar Luiz. A agroindústria rural de pequeno porte e o seu ambiente institucional relativo à legislação sanitária. 1999. 143f. Dissertação (Mestrado em Agroecossistemas) – Programa de Pós-Graduação em Agroecossistemas, Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.

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