Das disputas comuns à violência política. A análise das controvérsias e a sociologia dos conflitos (2010 / Trad 2012

October 9, 2017 | Autor: F. Chateauraynaud | Categoria: Political Sociology, Conflict Resolution, Controversy
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Das disputas comuns à violência política. A análise das controvérsias e a sociologia dos conflitos1

Francis Chateauraynaud2

As mudanças de paradigma que marcaram as ciências sociais desde os anos 1980 modificaram consideravelmente as categorias e as ferramentas de análise acerca daquilo que uma longa tradição havia catalogado sob o termo “conflito”.3 Se o “conflito social” fora construído bastante cedo como um objeto central da sociologia, a ponto de saturar o espaço conceitual da disciplina até o fim dos anos 1970, os novos sociólogos remeteram a noção de conflito ao aparato crítico herdado do marxismo. Na maioria das análises, conflito tornou-se sinônimo de falha de uma política ou de uma comunicação pública, isto quando não assimilado ao efeito, forçosamente negativo, de uma “resistência à mudança” de categorias sociais decadentes.4 Em sociologia e em ciência política, a imponente literatura que tratou do “espaço público” e em seguida da “democracia deliberativa” manifestou assim uma nítida preferência pelos modelos do acordo e do consenso, da coordenação e da justiça, percebendo os atores em sua preocupação com o “bemcomum”.5 Nessa literatura, toda ação pública, sendo submetida a uma injunção de legitimidade, supõe a formação de um acordo de alcance bastante geral ou, na falta deste, da produção de um compromisso aceitável, permitindo ligar atores heterogêneos a valores e interesses comuns. Disso decorre a proliferação, a partir da metade dos anos 1990, de temas supostamente transversais que vão da “equidade” à “governança” e ao “desenvolvimento sustentável”, passando pela “transparência”, o “compartilhamento de conhecimentos”, o “mundo em rede” e

                                                                                                                          1

[N. do E.] Tradução de Marcos de Aquino Santos ([email protected]) e revisão de Rubens Damasceno Morais sob orientação de Francis Chateauraynaud, a partir do documento de pesquisa “Des disputes ordinaires à la violence politique” (document de travail du GSPR. Paris: EHESS, 2008). Este texto é uma versão modificada de uma comunicação à jornada de estudos “Types of conflicts and forms of politicization”, realizada na University of Maine em 26 de junho de 2007, e organizada no quadro do programa ANR Conflipol. Posteriormente foi publicado como Des disputes ordinaires à la violence politique. L'analyse des controverses et la sociologie des conflits. In: Bourquin, Laurent & Hamon, Philippe (dirs.), La politisation. Conflits et construction du politique depuis le Moyen Âge. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2010, pp. 91-108. Agradecemos ao autor por autorizar a publicação do artigo em português. 2 Groupe de Sociologie Pragmatique et Réflexive, École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. 3 Simmel considerava o conflito uma das principais formas de estruturação do laço social. Simmel, Georg. Le Conflit. Paris: Circé, 1995. 4 Para um empreendimento recente de reabilitação do conflito no campo da sociologia do trabalho, ver Denis, J.-W. (org.), Le conflit en grève ? Tendances et perspectives de la conflictualité contemporaine. Paris: La Dispute, 2005. 5 Uma arqueologia dos modelos de acordo que dominaram as novas sociologias entre meados dos anos 1980 e o início do século XXI poderia apoiar-se nas sucessivas leituras que foram feitas das obras de John Rawls, de Jürgen Habermas e de Paul Ricoeur.

  seu “espírito cooperativo”, ou ainda a incontornável “democracia participativa”.6 Essa concepção consensualista do social viu nascer várias teorias do acordo, dentre as quais a corrente da “economia das convenções” e a famosa “sociologia das Cidades”.7 Os atores agiriam em nome de grandes princípios ou bens universais, contra os quais nenhuma crítica frontal é possível sem romper o pacto social e incidir em guerra civil. Somente outra Cidade que responda aos mesmos axiomas de universalidade pode permitir contestar a legitimidade de uma Cidade. Do ponto de vista da investigação em ciências sociais, tais abordagens apresentaram a virtude de convidar a tomar como objeto os meios da crítica, levando a examinar as ferramentas cognitivas e as normas morais sobre as quais se apoiam os atores para fazer valer uma contestação e obter ganho de causa. Mas, nesse trajeto, o estudo de múltiplas disputas e controvérsias tornou necessário o retorno a uma sociologia do conflito capaz de pensar o antagonismo, o qual não se reduz ao resultado infeliz de um litígio mal julgado, mas contém a expressão de uma desavença, o que Lyotard descrevia através da oposição entre dano (atinente à reparação) e erro (fator de incomensurabilidade).8 Partindo de um projeto de reequilíbrio entre “sociologia cínica” (tudo é relação de força) e “sociologia moral” (tudo decorre de princípios universalizáveis), proponho nesta curta contribuição mostrar como o conflito pode ser reinserido em uma sociologia das controvérsias e mobilizações coletivas, sugerindo pensar no mesmo quadro as provas de força e os repertórios argumentativos utilizados pelos atores.

Da microssociologia das disputas à análise das causas coletivas Nos anos 1980, impôs-se a ideia de que era preciso aproximar-se das modalidades práticas da ação a fim de romper com os grandes sistemas anteriores e não imputar aos atores motivos ou causas que lhes seriam estranhos. De maneira nenhuma restrito à sociologia, esse desvio de perspectiva também se fez sentir na antropologia e principalmente na história, com o advento da micro-história. Viu-se assim se desenvolver todo um movimento disposto a descrever nos mínimos detalhes os incidentes e as disputas da vida cotidiana, das querelas de vizinhança aos conflitos das pessoas no trabalho, passando por todos os tipos de litígios, como aqueles a respeito das qualidades dos objetos técnicos e seus usos. Fortemente influenciada pelas correntes interacionistas e etnometodológicas americanas, tal atitude privilegiava a análise das microssituações. Foi somente no fim dos anos

                                                                                                                          6 7 8

Blondiaux, Loïc. Le nouvel esprit de la démocratie. Paris: Seuil, 2008. Ver Boltanski, Luc & Thévenot, Laurent. De la justification. Paris: Gallimard, 1991. Lyotard, Jean-François. Le Différend. Paris: Éditions de Minuit, 1983.

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  1990 que se operou o retorno a formas de ação mais coletivas e a processos políticos mais longos que percorreram o que se chamou então de “arenas públicas”. Desde então, a lista das figuras tratadas não parou de se alongar, estendendo a casuística sociológica das disputas comuns até as mobilizações em escala mundial. Grandes casos de alerta e de controvérsia entraram assim no repertório das investigações empíricas.9 Tornou-se possível tratar, com as mesmas ferramentas, questões tão diversas quanto as que concernem ao amianto, à energia nuclear, à vaca louca, aos OGMs10, às nanotecnologias, à causa dos sans-papiers11, ao movimento dos pesquisadores, às polêmicas intelectuais como o caso Sokal, ou ainda à guerra de Kosovo ou do Iraque. Esses casos constituem um espaço de variação que permite uma comparação sistemática dos processos conflituosos e da maneira pela qual se desdobram os jogos de atores e de argumentos, da emergência dos primeiros alertas ou críticas à sua resolução. Ao fazer isto, o exame comparado de disputas de escala e amplitude variáveis tem por função não tanto forjar uma teoria unificada, mas elaborar hipóteses adaptáveis a respeito dos processos pelos quais microeventos podem ser transformados em crises coletivas. Esta atitude é realmente nova? A análise dos processos pelos quais agitações ou disputas são transformadas em questões ou problemas públicos deita longas raízes na literatura sociológica norte-americana.12 Seu ponto de origem foi situado

durante

muito

tempo

na

análise

dos

litígios

(disputing

process)

encontradiça ao fim dos anos 1970 em autores como Emerson ou Felstiner.13 Alguns anos mais tarde, com a ajuda de releituras e traduções, a paternidade dessa problemática do “público” foi transferida a John Dewey, e seu famoso trabalho The Public and Its Problems (1927), que influenciou fortemente os fundadores da escola de Chicago, principalmente Robert E. Park. É da obra deste último que Daniel Cefaï propõe extrair as fontes da sociologia das mobilizações e das teorias da ação coletiva

empregadas

ulteriormente

na

análise

dos

movimentos

sociais.14

Questionando noções forjadas desde a emergência da sociologia do comportamento

                                                                                                                          9

Três obras publicadas aproximadamente na mesma época marcam essa virada da “sociologia pragmática” na direção das questões e das causas de grande alcance: Chateauraynaud, Francis & Torny, Didier. Les Sombres précurseurs. Une sociologie pragmatique de l’alerte et du risque. Paris: Ed. de l’EHESS, 1999; Latour, Bruno. Les Politiques de La nature. Paris: La Découverte, 1999; Callon, Michel; Lascoumes, Pierre & Barthe, Yannick. Agir dans un monde incertain. Paris: Seuil, 2001. 10 [N. do E.] OGM é a sigla de Organismos Geneticamente Modificados, organismos manipulados geneticamente de modo a favorecer características desejadas, tais como cor, tamanho etc. 11 [N. T.] O termo sans-papiers refere-se aos habitantes estrangeiros do solo francês cuja permanência no país é considerada ilegal pelo fato de não possuírem um titre de séjour, documento necessário à sua regularização. 12 Hilgartner, Stephen & Bosk, Charles L. The Rise and Fall of Social Problems: A Public Arenas Model. American Journal of Sociology, jul. 1988, v. 94, nº 1, pp. 53-78. 13 Ver Emerson, Robert M. & Messinger, Sheldon L. The Micro-Politics of Trouble. Social Problems, 1977, nº 25, pp. 121-135; e principalmente Felstiner, William; Abel, Richard & Sarat, Austin. The Emergence and Transformation of Disputes. Naming, Blaming, Claming... Law and Society Review, 1980-1981, 15, 3-4, pp. 631-654. 14 Cefaï, Daniel. Pourquoi se mobilise-t-on? Les théories de l’action collective. Paris: La Découverte, 2007. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  coletivo e da “ecologia dos espaços públicos” oriunda de Chicago nos anos 19201930, Cefaï relê de maneira crítica a sociologia dos novos movimentos sociais de Alain Touraine, a teoria da mobilização de recursos, inspirada nos trabalhos de Mancur Olson ou nos de Anthony Oberschall, assim como a sociologia dos quadros de David Snow.15 Finalizando seu percurso na obra de Goffman, Cefaï agarra-se a quatro dimensões presentes na gênese de toda problemática pública: a importância das operações de “enquadramento” na definição do problema; o papel das “interações estratégicas” na evolução sequencial de sua definição; a dimensão dramatúrgica do funcionamento das organizações e de suas “cenografias”; e, enfim, a tensão ou a instabilidade entre duas concepções da ordem, vista tanto como uma “ordem negociada” quanto uma “ordem ritual” capaz de absorver a crítica e a mudança. Deste imenso panorama, o leitor assimila que a análise de um movimento ou de um conflito social pode ser construída a partir de uma multidão de perspectivas e de ferramentas, o que faz jus à profunda indeterminação que caracteriza as mobilizações em geral.16 A diversidade das abordagens permite a Cefaï, sobretudo, demarcar os limites de projetos sistemáticos, como o de McAdam, Tarrow e Tilly em torno da noção de “política contestatória”, programa quase estruturalista que visa incluir nas cartografias de vocação comparativa toda sorte de ações coletivas, das mais episódicas às mais marcantes, como as grandes revoluções, com a finalidade de extrair mecanismos bastante gerais.17 Para Cefaï, embora os autores consigam dessa maneira “circular livremente por paisagens de sociologia histórica ou de política

comparada”,

a

atitude

deles

tem

“em

compensação

um

menor

detalhamento na restituição do trabalho do sentido, em ação ou em situação” (p. 708). Ora, o problema que se apresenta hoje à sociologia é menos uma alternativa entre os níveis “micro” e “macro” do que uma maior precisão na confrontação dos planos descritivos e interpretativos. Abarcar o “sentido” supõe efetivamente restituir a série de provas pelas quais se formam e se deformam narrativas e argumentos, examinando-se o valor a eles atribuído pelas pessoas e pelos grupos. Além de desconfiar de toda forma de objetivação e de cartografia, o estudo das trajetórias de disputas e causas deve compatibilizar a apreensão dos campos de forças nos quais operam os atores, forças que eles buscam precisamente fazer atuar, com a compreensão do sentido por eles atribuído a suas ações, consoante uma atitude mais fenomenológica. A maneira pela qual microdomínios ou

                                                                                                                          15

Oberschall, Anthony. Social Conflicts and Social Movements. Englewood Cliffs, New Jersey: PrenticeHall In, 1973; Snow, David et alii. Frame alignment processes, micromobilization and movement participation. American Sociological Review, 1986, 51, pp. 464-481. 16 Para um estado da arte dos anos 1990, ver Neveu, Erik. Sociologie des mouvements sociaux. Paris: La découverte, 2005 (1ª ed. 1996). 17 McAdam, Doug; Tarrow, Sidney G. & Tilly, Charles. Dynamics of Contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  localidades são afetados por causas mais globais, e reciprocamente, o modo como processos de transformação alimentam-se de eventos locais, supõe uma nova linguagem de descrição, visto que os próprios protagonistas não deixam de teorizar ou interpretar os processos em tela e de jogar com as diferentes escalas.18 A análise de longos processos de alerta mostrou a dimensão heurística de semelhante abordagem.19 Um alerta interpela instâncias que teriam poder sobre o futuro, embora produza exigências diferentes segundo os dispositivos nos quais é posto à prova, isto é, levado em conta, qualificado, discutido ou simplesmente tratado. Se a figura mais corrente é a da conversão do alerta em um debate ou em uma controvérsia quando o mesmo atinge a arena pública, tal figura pode também contribuir para a expressão de uma rixa ou mesmo de um conflito ao fazer surgirem construções incompatíveis do laço social – como no caso dos conflitos de organização em que se formam oposições vigorosas pelas quais o responsável pelo projeto normalmente não espera.

Uma balística sociológica das causas individuais e coletivas Como os atores chegam a mobilizar-se em torno de uma causa dotando-a de um poder de expressão e, em certos casos, cumprindo as exigências de uma função de universalização? Cada vez mais controvérsias e conflitos evoluem sob o olhar de uma “comunidade internacional”, mesmo se esta permanece puramente virtual.20 Mas em vez de validar a teoria neo-kantiana do cosmopolitismo, considerado como um imperativo a priori, a observação das trajetórias assumidas pelas diferentes causas (ambientais, econômicas, humanitárias ou políticas, como a do Tibet, por exemplo) expõe a importância de um longo trabalho político de vinculação de diferentes localidades à escala “global”.21 Neste raciocínio a noção de “causa” não teria sido posta no lugar da de “conflito”? Não, na medida em que o princípio, a sucessão e o encerramento de um conflito supõem fazer os atores aderirem a uma causa, quer se trate de construir um inimigo comum, deslocar uma relação de forças modificando as alianças, ou chegar a um acordo de paz. As formas de conflito são assim reintroduzidas no decurso das provas através das quais se qualificam,

e

se

requalificam,

atores

e

argumentos,

eventos

e

mundos

sucessivamente afetados por uma causa. Tecnicamente, a identificação do que está

                                                                                                                          18

Lepetit, Bernard. De l'échelle en histoire. In: Revel, Jacques (dir.), Jeux d'échelles la micro analyse à l'expérience. Paris: Ed. l’EHESS/Seuil/Gallimard, 1996. 19 Chateauraynaud, F. & Torny, D. Les Sombres précurseurs, op. cit. 20 Beck, Ulrich. Qu’est-ce que le cosmopolitisme? Paris: Aubier, 2006. 21 Para um belo exemplo de acompanhamento da trajetória de um “conflito”, ver o caso das caricaturas de Maomé descritas por Jeanne Favret-Saada em Comment produire une crise mondiale avec douze petits dessins. Paris: Les prairies ordinaires, 2007. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  a atuar nos processos de convergência (consenso) ou divergência (dissenso) passa pela

reunião

de

múltiplas

reconstituições

observadas

em

um

período

suficientemente longo. Mas qual é o grau de formalização que pode atingir essa versão da sociologia das mobilizações? Três figuras dominantes estão disponíveis para tratar a questão de o que é que separa as causas bem-sucedidas das causas perdidas. Há primeiramente a ideia de que tudo atua em localidades, contextos ou dispositivos situados e de que somente uma atenção aos microprocessos permite dar conta do que torna bem-sucedida uma causa e lhe confere, se for o caso, um caráter exemplar que a faz digna de se manifestar. Outra hipótese, inspirada na vulgarização da teoria do caos, destaca a preeminência da intervenção de uma infinidade de eventos que entram em contato entre si e produzem as condições favoráveis à emergência de uma causa, cujo êxito se deve a poucas coisas, já que o processo pelo qual ela é transportada é ele mesmo frágil, aleatório ou singular. Enfim, uma teoria mais dura, mas também mais clássica, considera que os sistemas sociais repousam em estruturas profundas que sobredeterminam as condições de possibilidade de deslocamentos ou transformações: de fato, como as crises, os conflitos, em sua maior parte, são operadores da transição entre dois estados das estruturas sociais. Cada um dos três esquemas interpretativos precedentes isola uma das dimensões do problema, que podem ser integradas sob a forma de uma balística sociológica, baseada no estudo das trajetórias de atores e argumentos, cuja marcha supõe um trabalho político particular. É para observar esse trabalho político que convém descrever quatro momentos essenciais: as condições de emergência de uma causa e a propensão ou, se quisermos, a direção que lhe é dada pelos que a captam e pelos que a produzem; as disputas relativas aos tipos de prova e de argumentação exigidos para que a causa seja movida; a natureza das arenas ou dos palcos de ação pelos quais ela transita e nos quais se opera, ou não, a coligação ou a separação de diferentes entidades, assim como a formação de enunciados coletivos; enfim, a organização das instâncias e dos porta-vozes capazes, ou não, de conferir à causa um poder de expressão suficiente para assegurar não somente que ela seja posta na agenda política, como também a sua inscrição durável na série dos problemas públicos constituídos. Desenvolver uma balística das causas individuais ou coletivas supõe em todo caso levar em conta os dois aspectos ou os dois flancos que formam, de um lado, o alvo que pretendem atingir e, de outro, a trajetória efetiva que elas assumem.

O que é uma mobilização bem-sucedida?

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Todo processo de mobilização agrega pelo menos dois movimentos ou duas operações que têm por virtude romper com a ordem cotidiana: a expressão de uma indignação ou uma denúncia em face de uma decisão, reforma ou evento inaceitável, e a constituição de uma prova de força através de uma ação coletiva. Isto permite compreender por que a questão da forma adequada de debate e a da produção do consenso são secundárias na imensa literatura suscitada pela sociologia da mobilização. Na maior parte dos casos, supõe-se que os atores estejam convencidos e que eles não procurarão persuadir seus adversários com argumentos e razões, mas somente através de ações espetaculares ou de demonstrações de força para impor negociações. Em um site de “pesquisadores indignados”, podia-se ler na primavera de 2008: “nesse momento já se discutiu o suficiente, a argumentação não acaba, todos pela obstrução do conselho de administração do CNRS!”. Observa-se assim um uso paradoxal do “debate” nos movimentos sociais: trata-se menos de confrontar argumentos através de uma deliberação autêntica do que intensificar a mobilização e concentrar as forças a fim de dirigi-las contra um alvo comum. Resta então que é preciso poder ao menos convencer terceiros ou indecisos a tomar partido deles!22 Além disso, uma vez que os processos se complexificam, outros tipos de provas se intercalam entre os debates públicos e as mobilizações coletivas: os recursos judiciais são, com efeito, frequentes, e vêm modificar o processo de contestação – como no caso dos processos contra os que destroem plantações de transgênicos, pessoas que fazem do tribunal um dispositivo de expressão. Os procedimentos de debate público podem (e devem) ser descritos e analisados em tensão com as duas outras formas predominantes que são as provas de força e os processos jurídicos. A deliberação pode ser então comparada a duas outras modalidades: a mobilização (que organiza os termos da confrontação) e a contestação (que engaja a causa em um processo de judicialização). As provas de força ocorrem em ambiente aberto e os casos jurídicos em ambiente fechado; os debates desenvolvem-se em uma zona intermediária, daí a função que lhes é frequentemente atribuída, de evitar ao mesmo tempo o endurecimento dos conflitos e a acumulação dos processos legais... Quando se discorre a seu respeito no espaço público com regularidade, pode-se dizer que uma causa conseguiu atravessar uma espécie de portal invisível sobre cujas propriedades se debruçaram diversos sociólogos e cientistas políticos,

                                                                                                                          22

Em seu estudo argumentativo sobre os debates acerca das para-ciências, Marianne Doury mostrou como, sabendo que jamais conseguiria convencer seu adversário, cada um dos protagonistas busca fazer o público aderir à sua causa. A retórica nasce precisamente dessa necessidade de persuadir um terceiro, que pode ser um juiz, de que o adversário está errado. Ver Doury, Marianne. Le débat immobile. Paris: Kimé, 1997. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  que falam à vontade em “carreiras dos problemas públicos”.23 Ninguém sabe, entretanto, calcular a probabilidade de que uma causa individual ou coletiva mobilize ou dê resultado. Tanto que a mirada dos atores pode mudar no decorrer do próprio processo de mobilização. Se, ao contrário, todos os objetivos são fixados, em um contexto de proliferação de queixas e ações defensivas de todos os tipos, que afetam a todos os setores da vida social, a probabilidade de sucesso parece a priori bastante fraca. Ex post, encontram-se frequentemente explicações “evidentes” para o sucesso de uma mobilização nas condições adequadas para acontecer, em uma configuração política favorável ou ainda no senso tático de atores capazes de acumularem os recursos adequados no “formato” correto de ação coletiva.24 Tais processos teleológicos realmente fazem parte da formação das grandes causas e questões? Intuitivamente, a trajetória de uma causa, quer se trate de um alerta, de uma acusação ou de uma reivindicação, não interessa senão àqueles que a defendem, e eventualmente àqueles que venham a suportá-la – sendo levados a fazer concessões. Segundo o bom e velho modelo de Mancur Olson, a estimativa, mesmo que aproximativa, do custo de uma ação deveria bastar para desencorajar os mais intrépidos manifestantes.25 Ora, nada disso se observa: muitas causas de bom senso não dão resultado mesmo depois de repetidas tentativas, enquanto diversas mobilizações acabam logrando êxito em torno de temas inéditos ou até então pouco promissores. Mas sabe-se que uma mobilização, mesmo bem-sucedida, não garante por si mesma o sucesso da causa: dão testemunho disso as multidões que se levantaram em todo o planeta no fim de 2002 e início de 2003 contra o projeto americano da guerra no Iraque. Não somente a guerra aconteceu, acionada em condições muito pouco conformes aos critérios do direito internacional, como a situação por ela engendrada teve ainda um duradouro agravamento, produzindo efeitos acentuados sobre a situação afegã, enquanto suscitava, em escala mundial, um profundo sentimento de impotência. É preciso dizer que os movimentos pacifistas possuem numerosos fracassos no seu histórico, ao menos se se considerarem as tentativas de impedir guerras antes que elas tenham desenvolvido o espectro, renovado incessantemente, dos horrores e das abominações.26

                                                                                                                          23

Posso aqui somente evocar a imensa literatura consagrada aos movimentos sociais e aos repertórios da ação coletiva. Dois clássicos: Gusfield, Joseph. The Culture of Public Problems. Drinking-Driving and the Symbolic Order. Chicago: The University of Chicago Press, 1981; McAdam, Doug. Political process and the development of Black insurgency (1930-1970). Chicago: The University of Chicago Press, 1982. 24 Ver a este respeito Cefaï, Daniel & Trom, Danny (orgs.). Les Formes de l'action collective, Raisons pratiques. Paris: Ed. de l'EHESS, 2001. 25 Olson, Mancur. Logique de l'action collective. Paris: PUF, 1978. 26 Ver McCollum Feeley, Francis (dir). Les mouvements pacifistes américains et français, hier et aujourd’hui. Chambéry: Université de Savoie, 2007. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  Jogos de atores e jogos de argumentos Se tudo depende das forças que se conseguem ou não deslocar, qual a pertinência de se fazer da análise argumentativa a pedra de toque da sociologia das controvérsias e conflitos? O “argumento” pode se tornar a unidade mínima de significação e assumir o lugar do “ator” que ainda figura no centro dos paradigmas contemporâneos? Como fazer para tratar simetricamente as lógicas de atores e as lógicas argumentativas? Em sociologia, esta abordagem está longe de ser considerada natural. Para além de uma simples opção metodológica, ela é suspeita de adotar como pano de fundo a filosofia política desenvolvida por Jürgen Habermas em sua ética da comunicação.27 Desde sua difusão nos anos 1980, a teoria da ação comunicativa tem engendrado um forte ceticismo dentre os sociólogos de campo em sua maior parte, incluindo os especialistas das formas de concertação e de debate público.28 Essa teoria efetivamente concede um papel decisivo à deliberação autêntica, que preconiza a discussão válida. Ela se supunha capaz de responder à constatação de uma separação cada vez mais abissal entre o “sistema” e o “mundo vivido”, isto é, entre as regulações econômicas ou técnicas e as formas comuns da experiência social. Concebida por Habermas como uma reformulação da crítica marxista da reificação das relações humanas, essa oposição não convenceu os sociólogos, que realçaram a impossibilidade prática de isolar como duas esferas distintas um espaço público autenticamente deliberativo e um mundo de poderes ou de cálculos dominado por uma lógica instrumental. Se as numerosas objeções formuladas contra o modelo habermasiano levam a adotar uma forma de “realismo” sociológico, a simples refutação da ideia de uma força intrínseca dos argumentos não pode sustentar o enredo inteiro. Pois múltiplas provas deixam os atores em face de uma exigência argumentativa: mesmo sendo sempre possível esquivar-se das provas e contornar essa exigência, poucos atores descritos pela sociologia renunciam a priori, e para qualquer situação, a ter bons argumentos, a ser capaz de defender seu ponto de vista ou a dispor de boas razões para sustentar uma causa que os afeta. Necessita-se, portanto, de uma concepção gradual da argumentação na qual a formação dos jogos de atores e dos jogos de argumentos seja tratada dinamicamente, em um quadro teórico livre das antigas querelas entre idealistas e realistas. No esquema sociológico dominante, a racionalidade do ator não consiste em desenvolver de maneira crítica uma argumentação aceitável, mas reside em sua capacidade de capturar os elementos que lhe são favoráveis ativando o espaço de

                                                                                                                          27

Habermas, Jürgen. Théorie de l’agir communicationnel. Paris: Fayard, 1987 [1981]. Ver Revel, Martine et alii (org.). Le débat public: une expérience française de démocratie participative. Paris: La découverte, 2007.

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  cálculo correto: trata-se, para ele, de identificar as forças contra as quais a luta seria vã, e de reconhecer, no mesmo movimento, as fraquezas de seus adversários ou concorrentes. Dito de outro modo, a trajetória das causas, o sucesso das ações coletivas e a performatividade dos argumentos encontrariam seu princípio na arte de deslocar as forças e de minimizar o custo ou o sacrifício necessário para tanto. Por esta razão é que, desde The Strategy of Conflict (1960), de Thomas C. Schelling, as abordagens marcadas pela noção de “estratégia”, sob a forma da teoria da “mobilização de recursos” ou a das “estruturas de oportunidades políticas”, tendem a impor seu quadro de análise como o único que possa ser verdadeiramente realista.29 Múltiplos atores tendem a partilhar esta concepção, sobretudo

quando

estão

em

posição

de

porta-vozes

ou

no

comando

de

organizações, como atualmente as grandes ONGs, capazes de desenvolver verdadeiras pautas de ações coletivas e de abrir janelas de oportunidade que se apresentam, de um país a outro, como agendas políticas ou concorrências midiáticas. Posto isso de lado, esses atores, contrariamente a muitos sociólogos ou cientistas políticos, reconhecem a possibilidade de momentos de verdade durante os quais os meios de ação e de julgamento são postos à prova de uma performance argumentativa: efetivamente, existem situações nas quais todos os argumentos são impertinentes e em que a capacidade de invenção argumentativa e de resistência à crítica é decisiva. O paradigma deste tensionamento das forças e dos argumentos foi durante muito tempo visualizado nos debates políticos entre os candidatos em campanha eleitoral, mas o repertório das provas de verdade é desempenhado em quadros bem diferentes, dentre eles, e principalmente, os intercâmbios da vida cotidiana. Em que contextos e sob que condições os atores interessam-se em jogar plenamente o jogo da argumentação e, portanto, em argumentar sinceramente ao se engajarem em uma prova de verdade? O que determina o alcance de um argumento? Além da questão de saber se são as forças acumuladas ou as maneiras de argumentar em momentos cruciais que produzem as diferenças dentro de um conjunto de causas ou mobilizações, há ainda aquela que consiste em interrogar a trajetória dos próprios argumentos. Algumas formas de raciocínio atingem, com efeito, um grau de visibilidade e de presença no espaço público suficiente para contribuir na modificação das categorias e das representações comuns. Ao introduzir a argumentação, descobre-se assim a ideia de uma balística sociológica que torna mais explícita a trajetória dos atores e das forças que eles ganham ou perdem no decorrer das provas. Em suma, assim procedendo, o que se faz é

                                                                                                                          29

Ver, em contrapartida, as críticas conduzidas em defesa da inventividade dos atores por Jasper, James M. The Art of Moral Protest: Culture, Biography, and Creativity in Social Movements. Chicago: University of Chicago Press, 1997. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  novamente desenvolver uma problemática bastante antiga. De fato, entre as questões recorrentes das ciências sociais, aquela acerca da efetividade dos argumentos e das razões, do alcance dos valores e dos princípios, sem dúvida foi a mais discutida, porque ela reativa um velho dilema de filosofia política que opõe cinismo e moral.30 Esse dilema pode dar lugar a múltiplas reformulações e a infinitas conjecturas, mas assume um aspecto mais técnico a cada vez que se pergunta se o que determina o sucesso de uma causa diz respeito antes de tudo aos interesses daqueles que ela alista, às modalidades práticas de organização das arenas públicas, à qualidade dos argumentos empregados pelos que a apoiam, à estrutura da agenda política, ou ainda a forças mais ou menos opacas, mais ou menos mensuráveis, que escapam a toda intencionalidade direta e que permitem diferentes interpretações, essencialmente a posteriori, como quando, por exemplo, o resultado de um processo é atribuído à influência de uma máfia.31 Um paradigma que se tornou dominante nas últimas décadas foi transformado, desse ponto de vista, em verdadeiro lugar-comum. Pois tudo pode ser finalmente interpretado em termos de “rede”: o êxito de um projeto, de um argumento ou de uma ação repousaria na densidade da malha de conexões heterogêneas que a ele subjazem; aproveitando ao mesmo tempo a fluidez dos laços e a solidez dos nós, a mobilização em rede permitiria a múltiplos atores, que não precisam se comunicar diretamente e nem ao menos se compreender, agir em conjunto e compelir seus adversários ou inimigos, ou simplesmente seus interlocutores, a mudar de posição. Em certas nuanças, o modelo subjacente é bastante próximo daquele da economia da

estandardização:

simples

considerações

de

custo

e

medida

de

esforço

conduziriam múltiplos atores a adotar apressadamente a opção que se oferece a eles, o que influenciaria as escolhas de novos atores e assim sucessivamente, dando ao conjunto a aparência de um perfeito alinhamento! O fracasso seria explicado pela figura inversa: uma vez que cada laço demanda um trabalho de discussão, de interpretação e de negociação, ele tem o efeito de tornar manifestas divergências mais ou menos fundamentais, o que aumenta a propensão à fragmentação e inibe a capacidade de mobilização. Além do acompanhamento empírico das trajetórias, tal abordagem permite compreender

o

que

empurra

os

atores

ao

conflito?

Podem-se

distinguir

analiticamente três formas de engajamento que levam os atores ao confronto, desde que eles não sejam capazes de esvaziar a discussão pela relativização conjunta ou de encerrar a troca de argumentos transformando-a em nova disposição coletiva: a promessa (a palavra dada), a convenção (ou o contrato), e o

                                                                                                                          30

Lazzeri, Christian. Force et Justice dans la politique de Pascal. Paris: PUF, 1993. Gambetta, Diego. The Sicilian Mafia - The Business of Private Protection. Cambridge: Harvard University Press, 1993.

31

ENFOQUES v.11(1), março 2012

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211  

  mandato (ou a delegação política). Se se admite que o imperativo argumentativo provém do caráter instituidor de toda discussão, seu alcance muda radicalmente segundo o modo de engajamento das pessoas: a promessa diz respeito ao fato de se sustentar a palavra e, mais ainda, à manifestação crível de sua boa fé. Ora, basta nos servirmos de nossas múltiplas experiências de conversação, de disputa e de negociação para enxergarmos a que ponto o fato de argumentar nos engaja em uma forma de lealdade, sem a qual um rompimento da relação, ou mesmo o uso da violência, revela-se inevitável. Como se pode continuar a discussão com quem não para de mentir? É aceitável a trapaça em uma negociação? Pode-se encerrar pacificamente uma disputa depois de uma constatação mútua de má fé? No nível mais alto, no qual os estados de espírito das pessoas estão menos diretamente envolvidos, a convenção, ou o contrato, reúne as injunções que pesam sobre as pretensões dos protagonistas em conflito com dispositivos. Não se trata mais de qualificar inclinações pessoais, mas de entrar em acordo sobre jogos de obrigações. Quando esse acordo se revela impossível, a ascensão do conflito, que assume a forma de um conflito de interesses e pode ir até à ação radical, parece inelutável, a não ser que os protagonistas sejam capazes de instaurar um regime de indiferença através da dissociação de seus mundos – cuja aproximação os expõe à desavença. No terceiro andar do edifício encontra-se o mandato, dimensão explorada principalmente pela teoria política, que problematiza o estatuto da representação. Se o que interessa prioritariamente à sociologia é a maneira pela qual emergem, no decorrer de longos processos de mobilização, representantes dotados de um poder de expressão, o questionamento do representante instituído é evidentemente um fenômeno crucial na gênese das crises e dos conflitos. Em todos os casos, a entrada em crise de um sistema de representação abre duas séries de provas: uma série de confrontações e um trabalho político que visa à instalação de novos representantes, os quais, segundo a intensidade da crise, podem ser submetidos a um novo princípio de obrigação – como em toda mudança de constituição.32

Compreender a gênese de conflitos insolúveis Esses elementos teóricos permitem compreender concretamente a gênese dos conflitos? Podemos associar aos diferentes eventos ou disputas, que sobrevêm em todos os tipos de meios, características formais que explicam sua propensão a produzir conflitos ou crises? O conflito não está inscrito a priori em um conjunto de

                                                                                                                          32

Sobre as relações entre representação política e sociedade civil em Rousseau, ver Bruno Bernardi. Le príncipe d’obligation. Paris: Vrin/Ed. l’EHESS, 2007. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  condições ou em uma estrutura de posições, como a sociologia de Pierre Bourdieu, abertamente determinista, convidaria a pensar: ele passa por uma série de provas e mobilizações. As posições e as tomadas de posição elaboram-se no decorrer de longas séries de ações e eventos marcados pela incerteza, de modo que cada novo engajamento cria tantas aberturas de futuro quanto pontos de irreversibilidade. Desse ponto de vista, convém deixar à distância as tipologias muito rígidas: em face das múltiplas formas de vigilância e de alerta, de debates públicos e de controvérsias, de conflitos ou de crises, é mais fecundo pensar em termos de famílias de processos do que de categorias e tipos. Pois embora controvérsias ou conflitos apresentem semelhanças, não há duas trajetórias idênticas e isso muitas vezes é devido ao peso de antecedentes: embora pensado na mesma matriz, a dos escândalos sanitários, o caso do ar contaminado (o amianto) não poderia ter seguido o mesmo percurso que o do sangue contaminado (transfusão e HIV). Os quadros de análise devem, portanto, dedicar-se a descrever os encadeamentos, os deslocamentos ou as guinadas pelas quais os atores mudam seus modos de confrontação e a definição dos objetos em causa.33 Para bem compreender o que está em jogo, dediquemo-nos a um caso como aquele dos OGMs.34 Diferentes comentaristas estão de acordo ao dizerem que no caso das plantas transgênicas, na Europa e principalmente na França, a passagem para o conflito e a ação radical não era imediata, embora os anos 1997 e 1998 tivessem testemunhado o acúmulo de eventos, decisões e manobras que mudaram a trajetória e a natureza do problema, segundo os especialistas do caso. Se nos colocamos no fim do percurso, poderemos observar que o ano de 2008 foi marcado por uma presença ainda maior dos OGMs no espaço político-midiático francês, através da “crise legislativa” do mês de maio. Tudo indica que a lei de 2008, cuja genealogia é caracterizada pelo atraso da França na adoção de uma diretiva europeia de 2001, não atenuará a dimensão conflituosa do caso. A análise da longa série das provas públicas mostra, com efeito, que a querela dos OGMs ultrapassou os limites da simples “contrademocracia” para revelar de forma durável um conflito de valores e a incomensurabilidade de modos de existência.35 Para os atores envolvidos, a fórmula política da “coexistência” entre culturas de OGMs e sem OGMs, desenvolvida muito tardiamente (a partir de 2003), não se firma em nenhum

compromisso

aceitável.

Os

múltiplos

atores

que

denunciaram

um

                                                                                                                          33

Para o caso da AIDS, ver Dodier, Nicolas. Leçons politiques de l’épidémie de sida. Paris: Ed. l’EHESS, 2003. 34 A análise desse caso baseia-se no tratamento informatizado de um corpus de 9.450 documentos distribuídos entre 1987 e 2008. 35 Ver Rosanvallon, Pierre. La contre-démocratie. La politique à l’âge de la défiance. Paris: Seuil, 2006. Sobre a mudança de regime da “controvérsia” em torno dos OGMs, ver Bonneuil, Christophe; Joly, Pierre-Benoît & Marris, Claire. Disentrenching experiment: the construction of GM-Crop field trials as a social problem. Science, Technology and Human Values, 2008, 33(2), pp. 201-229. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  “processo de colonização” baseado na tecnologia e no mercado, através da artificialização e da privatização dos seres vivos, ou então as tentativas de projetar o caso dos OGMs no modelo da “democracia técnica” ou da “gestão participativa das inovações tecnológicas”, tudo isso falhou.36 Basta observar as ações dos “ceifeiros voluntários” e as concertações “Grenelle Environnement”37 para constatar que a lógica de conflito tem triunfado. Uma vez que se mantenha a correta distância entre as duas alternativas – a da controvérsia (pacífica) e a do conflito (relativamente violento) – podemos apreender cronologicamente o vai e vem entre ações radicais e processos deliberativos, que pode conduzir na direção de um compromisso sólido ou então terminar em franca ruptura. Desse ponto de vista, a mobilização de atores alheios aos meios agrícolas e rurais contribuiu enormemente para a evolução do conflito. A expansão do movimento “anti-OGM” com o aparecimento de “ceifeiros voluntários”, a partir de 2004, engaja elementos da sociedade civil, o que nos distancia da figura inicial do cidadão-consumidor situado na ponta da cadeia. Outro elemento de conflituosidade desenvolveu-se a partir da série dos recursos judiciais: em vez de resolver o conflito, o direito alimenta-o ao fornecer arenas a todos os que põem diante de si um dever de “desobediência civil”. Através do direito, as formas de ação e de protesto suscitadas pelos OGMs compõem assim mais um laboratório para a evolução das relações entre força e legitimidade. Segue-se que esse caso, ainda mais do que outros, dá testemunho da incompletude do direito confrontado com o problema de hierarquização das normas (livre escolha do consumidor, biodiversidade, segurança sanitária e ambiental, normas comerciais, direitos de propriedade industrial, autoridade do Estado...). Se a crítica radical aos OGMs tem sua fonte nos modos de existência dos protagonistas e nos sistemas de valores que eles engajam, é algo lógico que o plano propriamente epistêmico, concernente aos conhecimentos e às técnicas da genética,

a

priori

mais

ajustado

à

forma

“controvérsia”,

tenha

sido

progressivamente destroçado entre um conflito ontológico (a respeito dos seres e seus meios) e um conflito axiológico (que engaja as definições do bem-comum). De uma só vez, em lugar da entrada progressiva em um regime de crítica reguladora e de deliberação pública, assiste-se à progressiva cristalização de posições críticas no longo prazo. Essa cristalização diz respeito à convergência de recursos críticos que transformam as controvérsias em verdadeiros “diálogos de surdos”.38 A história do

                                                                                                                          36

Joly, Pierre-Benoît; Marris, Claire & Hermitte, Marie-Angèle. A la recherche d'une "démocratie technique". Enseignements de la Conférence Citoyenne sur les OGM en France. Nature, Science et Société, 2003, v. 11(1), pp. 3-15. 37 [N. T.] Deliberações iniciadas pelo presidente Nicolas Sarkozy em maio de 2007, nas quais o Estado e os representantes da sociedade civil dialogam e estudam propostas a respeito do desenvolvimento sustentável e do meio ambiente. 38 Pode-se mostrar, desse ponto de vista, que a lógica da “controvérsia” esteve constantemente ligada a uma tradição polêmica, de modo que as passagens entre debates sobre argumentos, fatos e métodos, ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  caso dos OGMs mostra que as diferentes fontes da crítica podem não convergir para possibilitar uma forma de regulação – ao menos até 1998. A comparação é então novamente útil. Pois outros casos nos permitiram assistir ao teatro de uma ascensão da crítica radical e do que se chama de “ativismo” – denominação frequentemente recusada por diversos atores críticos. É o caso, por exemplo, do setor nuclear. Ao contrário das firmas produtoras de OGMs, a indústria nuclear pôde, sob a proteção do Estado, desenvolver suas instalações e seus programas antes que a crítica tivesse sido inteiramente desenvolvida.39 Embora o movimento antinuclear tente unificá-los em um mesmo dispositivo crítico, os motivadores de contestação são relativamente distribuídos segundo se trate de segurança das instalações, de exposição dos trabalhadores ou das populações, de escolha energética para o futuro, de gestão dos resíduos radioativos ou de proliferação das armas nucleares. O que está em jogo na separação ou na conjunção das formas de crítica é tornado mais explícito na tabela abaixo. Ela distingue quatro motivadores fundamentais de crítica, que cruzam duas dimensões: a natureza do dano, antecipado sob a forma de um risco ou realizado sob a forma de uma injustiça; o modo da crítica, que pode ter um objetivo regulador (melhorar um dispositivo ou uma medida) ou um objetivo radical (desenvolver a crise de um sistema e provocar uma mudança).

Alerta e controvérsia

Denúncia e mobilização

Apresentação de uma fonte de perigo ou de Injustiça sofrida por uma pessoa ou um risco Forma do dano

grupo

(o risco de disseminação é controvertido; o (agricultores submetidos aos interesses de princípio de precaução)

uma

empresa;

apicultores

vítimas

potenciais) Crítica reguladora de um dispositivo Forma da crítica

Crítica radical do sistema

(dificuldade de definir normas justas para ("um garantir concretamente a coexistência)

outro

mundo

é

possível";

altermundialismo)

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    de um lado, e conflitos pessoais, de grupos e de valores, de outro, são por assim dizer programadas nos quadros da argumentação pública. Ver Angenot, Marc. Dialogues de sourds. Traité de rhétorique antilogique. Paris: Mille et une nuits, 2008. 39 Hecht, Gabrielle. The Radiance of France – Nuclear Power and National Identity after World War II. Cambridge: The MIT Press, 1998. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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215  

o

  Quando, no fim de um processo de convergência crítica, pessoas ou grupos conseguem vincular, no mesmo movimento argumentativo, um sentimento de injustiça e a crítica radical de um sistema político, argumentos técnicos relativos ao nível de confiança em um dispositivo e uma lógica de inquietude e de alerta, então um conflito duradouro é inevitável. Não é qualquer disputa que pode entrar no molde procedimental da avaliação participativa. Para além do caso dos OGMs, a configuração geral, normalmente caracterizada por referência à complexidade, à incerteza, à governança e à necessária participação dos públicos, é marcada pela proliferação dos objetos de disputa e das arenas de confrontação. Desse ponto de vista, o conflito de classe, que permitia unificar as causas e as categorias, cedeu lugar a uma sucessão incontável de conflitos de todo tipo, que, na ausência de uma totalização bem-sucedida (como aquela tentada pelo movimento altermundialista a partir do encontro de Seattle em 1999), permanecem “às margens do mundo político”, de acordo com a fórmula de Jacques Rancière. Nessa configuração, vemos logicamente ascenderem conflitos de normas: ao testemunhar como a capacidade dos atores em hierarquizar as causas e os objetos vem sendo seriamente afetada, nossa época é marcada por um tipo de deslocamento permanente das fontes de preocupação coletiva, obliterando a construção da durabilidade de um trabalho político, o que provoca, em troca, novos conflitos.

A dinâmica das controvérsias e dos conflitos no prisma da análise socioinformática O movimento de reinserção da sociologia do conflito na análise das formas de controvérsia e mobilização não estaria completo sem um alicerce metodológico adequado. Por isso devo, em conclusão, dizer algumas palavras sobre os métodos e as técnicas de análise implicados no acompanhamento de longos processos. Dispomos doravante de uma série de estudos dirigidos sobre uma coleção coerente de corpus.40 Ao comparar casos como o do amianto, a energia nuclear, a “vaca louca”, os OGMs ou os pesticidas, ou ainda a causa dos sans-papiers, a dos trabalhadores intermitentes do meio artístico ou a dos pesquisadores, podem-se pôr em evidência as provas marcantes que fazem os atores atravessarem de um regime

a

outro.

Fazer

a

sociologia

de

grandes

casos

evolutivos

consiste

efetivamente em estudar as mudanças de escalas e de temporalidades, as configurações sociopolíticas, os atores e os argumentos que aí se expressam. A

                                                                                                                          40

Ver Chateauraynaud, Francis. Prospéro – Une technologie littéraire pour les sciences humaines. Paris: CNRS-Editions, 2003. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  maneira pela qual são elaboradas as predições ou as antecipações – um dos objetos das disputas sendo precisamente a determinação das aberturas de futuro – é examinada em detalhe: o que é julgado irremediável? Sobre o que podemos agir? Quais são as consequências das ações passadas, presentes ou futuras? Esta atitude repousa sobre uma dupla utilização das ferramentas informáticas: a delegação de funções

de

pesquisa

a

instrumentos

capazes

não

somente

de

sondar

as

propriedades dos corpus, como também de assegurar um mínimo de poder explicativo às argumentações a respeito de casos complexos sobre os quais os métodos clássicos não têm mais domínio; evitando a metrologia – como em estatística – atribui-se um papel decisivo à atitude de inserir múltiplos corpus e interpretações

em

redes,

de

maneira

a

favorecer

a

cooperação

entre

pesquisadores. Ao fazê-lo, a fim de conquistar um mínimo de “rendimento cognitivo”, o tipo de epistemologia envolvido nas pesquisas socioinformáticas implica certo número de rupturas: por exemplo, analisam-se não somente “discursos”, considerados como produções autônomas, mas processos nos quais eventos e ações individuais e coletivas são objeto de relatos e argumentações. A expressão baseada na linguagem é uma das pedras de toque da atividade social e política de nossos atores, mas evidentemente não constitui sua única forma de acesso

ao

mundo.

Se

a

linguagem

possui

a

propriedade

recursiva

de

constantemente se converter em objeto de si mesma, ela também fornece referências, traços e indícios, quadros e fórmulas, atinentes às experiências no mundo sensível, que ela torna manifestos sem com isso reduzi-los. Assim, partindo da linguagem dos atores, a análise fina dos processos desencadeados em grandes séries temporais permite examinar cinco dimensões essenciais. Em primeiro lugar, a expressão das tensões entre experiências sensíveis e expertises públicas, ou a maneira como domínios e atividades comuns adquirem ou não visibilidade e inteligibilidade durante os processos, sejam eles alertas, discussões públicas ou provas de força. O que aprendemos acerca da atividade dos trabalhadores intermitentes do meio artístico, sobre o mundo dos apicultores, sobre a vacinação de animais ou sobre os leitos de argila em uma região suscetível de receber uma zona de estocagem de resíduos nucleares? Como o “senso comum” é afetado pela “publicização” dos casos? Segue-se que mais um nível de preocupação é formado pelos modos de prova e de argumentação desenvolvidos pelos protagonistas e, em particular, pela maneira através da qual eles se dotam de um mínimo de “poder de expressão” (capacidade de convencimento à distância). As lógicas de confrontação ou as formas de debate introduzem suas injunções próprias que pesam sobre o que é uma prova tangível ou um bom argumento, um porta-voz legítimo ou uma regra indiscutível. Uma terceira dimensão diz respeito às

ENFOQUES v.11(1), março 2012

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  assimetrias de jurisdição entre os atores e à cristalização dessas assimetrias em grupos ou instituições – isto é, a maneira pela qual são dispostos poderes legítimos. Em todos os casos estudados, vemos como assimetrias entre os atores são feitas e desfeitas e como relações de poder e hierarquias institucionais se transformam. Quarta dimensão: somos levados a prestar particular atenção às modalidades temporais da ação e do julgamento ao examinarmos a produção das marcas de irreversibilidade e das aberturas de futuro: como se caracterizam os antecedentes? A partir de quando um estado de coisas é julgado irremediável? Quais são os horizontes da ação na configuração atual? Em que visões do futuro os atores se apoiam? Como a urgência ou o prazo são coletivamente elaborados e discutidos? Esta problemática reconcilia-se com a semântica histórica tal qual proposta por Reinhart Koselleck.41 Enfim, importa-nos a maneira pela qual as tecnologias modificam os modos de existência pública dos processos em causa e fornecem novos apoios críticos aos atores estudados – como é o caso hoje com a internet.

PARA CITAR ESSE ARTIGO CHATEAURAYNAUD, Francis. Das disputas comuns à violência política. A análise das controvérsias e a sociologia dos conflitos. Enfoques - revista dos alunos do PPGSA-UFRJ, v.11(1), março 2012. Online. pp. 201-218 http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br  

                                                                                                                          41

Koselleck, Reinhart. Le Futur passé. Contribution à la sémantique des temps historiques. Paris: Ed. de l’EHESS, 1990. ENFOQUES v.11(1), março 2012

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