Das Façanhas Delinquenciais Infantis

Share Embed


Descrição do Produto

Aqueles meninos tinham coisas em comum: gostavam de interferir negativamente em espaços públicos [furar pneus de carros, depredar orelhões, quebrar vidros de hospitais, entupir a pia das escolas com papel e deixar a torneira ligada, etc, etc], eram agressivos, molestavam animais e muitas "façanhas" do gênero. Eu tive a oportunidade de ver um deles chegar ao posto de saúde, que estava sendo pintado e presenciei quando ele "deu uma voadora" na parede com tinta fresca: deixou a marca de seus pés ali. Seu pai deu uma risada gostosa. Parecia ter orgulho do menino. Estava ali por encaminhamento da escola. Pelo pai, não haveria razão de seu filho procurar um psicólogo.


Os pais desses meninos costumavam ter um comportamento razoavelmente semelhante: se não tinham explícito orgulho dos filhos [e muitos tinham, e como tinham!], subestimavam a gravidade de seu comportamento, no estilo "mais tarde isso passa". No tempo do meu pai se dizia: "quando casar, ele sara". Será?

Eu resolvi agrupar esses simpáticos garotos num único grupo: sua primeira tarefa seria "tolerar uns aos outros". Quando os vi juntos, pensei na imagem daquelas chaves esportivas, como em grupos futebolísticos, onde alguns times caem em chaves muito fortes, no tocante à competitividade. São os chamados "grupos da morte". Aqueles meninos eram do seguinte gênero: se houvesse qualquer "jogo de presidente", todos queriam ser presidente. Ou, no máximo [como me disse um deles], "vice-presidente, desde que eu sente na cadeira do presidente" [!].

Beleza.

Quando agrupei os meninos naquele grupo, com pais e mães para me fazerem a apresentação de seus filhos, e eles puderam ver o olhar de cada um para os demais, eu lhes fiz uma pequena pergunta inaugural: "Queridos pais, se vocês pudessem escolher apenas um dos outros meninos para passarem um final de semana na casa e vocês, qual deles escolheriam?" Nenhum deles escolheu nenhum. Repeti a pergunta aos meninos: nenhum deles escolheu nenhum. Aqui estava dada minha primeira mensagem ao senso de humor de alguns dos pais. Não acharam graça em nenhum dos outros garotos.


Prosseguindo nessa explicitação de como cada um era "engraçado" em seus feitos, e muitos desses feitos foram explicitados ali, vi nos garotos um sentimento ambivalente em relação a mim: "esse cara é esperto", com o que isso possa trazer de inspiração, competição ou "admiração-surpresa". Eu lhes falei que ali era "o grupo da morte", e eles riram. Mas eles sabiam que a agressividade e o exibicionismo entre eles não seria tão simples quanto em suas escolas ou casas. Todos eram espertos ali!

Havia aqueles que escondiam comida no vão do sofá, os que cortavam vestidos da mãe e cortinas da casa em represália a alguma coisa de que não gostaram, os que empurravam a própria mãe, o que deu uma cabeçada no óculos de um adulto, fingindo tropeçar, aqueles que roubavam dinheiro de cima da geladeira ou da carteira da mãe. Eu perguntei para um destes acostumados a roubar dinheiro: "o que você fez com o dinheiro da tua mãe da semana passada?" Eram cinquenta reais. Sua resposta foi: "com esse dinheiro dá pra comprar um monte de comida". Eu disse: "eu não perguntei o que dá pra comprar: eu perguntei o que você fez com o dinheiro". Ele deu um sorrisinho e disse: "esqueci". Os outros riram, porque usavam de expediente muito parecido diante de indagações. Menos inocentes do que suspeitam os que idealizam demais a infância.

O irmão de um deles já o deixara manusear uma arma. Outro já conhecia revistas e vídeos pornográficos desde os sete. E por aí vai.

Eu disse que ali era um grupo da morte, mas não de times fortes, somente. Era um grupo de times que davam carrinhos por detrás, que jogavam "duro", que "sabiam cometer faltas quando o juiz não estava vendo", que gostavam de cometer faltas e coisas parecidas. Que eram um time de jogadores que driblavam também o juiz, não só o adversário. E que não sabiam aceitar dribles ou que outro jogador fosse mais esperto ou habilidoso do que eles. E perguntei aos pais: "não é assim, pais?" Eles tinham de considerar se eram "juízes ausentes" ou "juízes parciais e coniventes". Mas isso sem que eu precisasse acusar-lhes de nada, apenas usando da metáfora futebolística que me ocorreu.

Eu dei as minhas regras. Se alguém ali não soubesse interagir, estaria fora do jogo do dia. Ficava no banco, assistindo os outros jogadores brincarem. Como dei a regra na frente dos pais, os meninos souberam que os pais acatavam e que eu tinha autoridade pra isso. E disse mais: que a cada sessão, um dos responsáveis de um deles entraria no ambiente, para que nenhum deles mentisse ao sair, do tipo: "o tio me bateu, o tio me xingou, o tio falou mal do você, pai", uma vez que eu "deduzia" que eles sabiam agir assim e estavam acostumados a isso. Mentiam com frequência. Diante da minha "antecipação a mais "uma possível proeza deles", algumas das mães e pais me olharam um pouco "encabulados"; os meninos ficaram menos constrangidos que seus pais: ficaram mais "surpresos" do que envergonhados, mas não vi em nenhum deles o costumeiro "olhar de triunfo".

Disse mais: que iria escrever uma carta ao professor de educação física de cada um deles, perguntando como era o comportamento de cada um nos esportes: se eram faltosos, se eram desleais, se agrediam os adversários. E mais: anunciei que podia solicitar a presença no posto de qualquer dos professores para conversar sobre o comportamento deles. E que pedia na carta, para eles prestarem atenção no comportamento dos meninos em "competições", se até ali não estivessem notado nada. Ou seja: se os professores também fossem "juízes desatentos ao jogo", eu estava ali lhes dando um lembrete.

Em datas como aniversários, o aniversariante não trazia bolo: os outros traziam os doces para ele. Sempre assim: cada um trazia coisas para o outro, no dia de festa do outro. E a festa virava de todos.

Para essas ocasiões especiais, todos os pais e mães estariam convidados.

Já era factível algum deles querer convidar o outro para irem às suas casas.

Todos esses meninos melhoraram muito ao longo do tempo. E seus pais deixaram de "rir à toa".



Marcelo Novaes

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.