Das histórias menores de uma geração solitária.

September 26, 2017 | Autor: Erly Vieira Jr | Categoria: Chinese Cinema, World Cinema, Jia Zhangke, Contemporary Cinema
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Prazeres Desconhecidos (2002)

Das histórias menores de uma geração solitária
Erly Vieira Jr
junho de 2014

A resignação dos jovens protagonistas de Prazeres Desconhecidos (Rèn xiāo yáo, 2002), que tentam sobreviver no anonimato de um cotidiano sem maiores perspectivas, sintetiza todo um estado das coisas na China contemporânea, ao qual o filme de Jia Zhangke lança um olhar minucioso e despido de maiores utopias. Afinal, a realidade de uma cidade de médio porte, no interior do país, parece bastante distante do que diz a letra da canção pop chinesa "Ren Xiao Yao" (2001), em que o filme por vezes parece gravitar – e da qual ele toma emprestado seu nome original. Ao invés de estar com a alma "liberta de quaisquer amarras" através do amor, como diz a tradução literal do título da canção, talvez a liberdade seja, para os jovens protagonistas do longa, bem mais difícil de alcançar do que se imagina. A citação de cunho hedonista que a personagem Qiao Qiao faz a um trecho do poema homônimo (escrito pelo filósofo Chuang Tzu há mais de dois mil anos), onde você é "livre para fazer o que se quiser", soa tão irônica quanto a escolha de seu amigo Bin Bin em cantar essa mesma canção ao ser confrontado por um policial na delegacia, após sua fracassada e patética tentativa de assaltar um banco munido de uma bomba.
No filme, acompanhamos o dia a dia de três jovens em torno de 20 anos e suas perambulações pela provinciana cidade de Datong, no nordeste da China. Além de Qiao Qiao, dançarina e amante de um contrabandista de bebidas, temos os amigos Xiao Ji (que nutre uma paixão pela dançarina) e Bin Bin, ambos desempregados. Os três são frutos diretos da "Política do Filho Único", mecanismo radical de controle de natalidade adotado em 1979 pelo governo chinês para evitar o risco de superpopulação. Trata-se de uma geração que cresceu sem irmãos tendo os brinquedos e programas televisivos como únicos companheiros no silêncio dos apartamentos vazios, enquanto seus pais passavam o dia inteiro fora de casa trabalhando. Solidão e isolamento parecem transbordar desses personagens, numa juventude que mescla as dificuldades de comunicação interpessoal com uma forte influência da cultura pop norte-americana, que chegava à China dos anos 90 em uma escala sem precedentes. Se as referências aos filmes ocidentais abundam – Pulp Fiction aparece não somente mencionado em uma conversa de restaurante, mas também na peruca inspirada no penteado de Uma Thurman no filme de Tarantino ou na música que toca na boate, sampleando o conhecidíssimo riff de guitarra de "Misrilou", de Dick Dale – elas também ampliam, aqui, a sensação de despertencimento e apatia que emana incessante do cotidiano dessa juventude.
A isso, soma-se a experiência de viver no xiancheng, o município periférico que faz parte da divisão administrativa do condado. Os filmes iniciais de Jia Zhangke constituem verdadeiras radiografias dos xianchengs da província de Shanxi – os dois primeiros, Pickpocket e Plataforma, são rodados em Fenyang, enquanto Prazeres desconhecidos tem como cenário a cidade industrial de médio porte Datong, cuja renda per capita de 2500 dólares (maior que a de Fenyang, que é de somente 1500) ainda se encontra bem distante dos 11 mil dólares anuais de um grande centro, como Shangai. Para o pesquisador Zhang Xudong, o xiancheng é a China proletária par excellence, com sua arquitetura disforme, suas imprecisas distinções entre rural e urbano, industrial e agrário, em constante alternância entre espaços em processo de demolição e outros sendo ressignificados ao sabor do capitalismo desenfreado que assola todo o país. Em seu artigo "Poética da desaparição", publicado em 2010 na New Left Review, Xudong afirma que no xiancheng "são travadas as batalhas mais brutais de uma transformação histórica na China, de forma silenciosa e invisível". É nesse contexto que toda essa juventude solitária busca extrair algum sentido da vida, algum tipo de esperança para além da ausência de perspectivas de um futuro sólido, que levam Xiao Ji a afirmar que a vida sequer deveria durar mais que 30 anos, dadas as poucas possibilidades que ela costuma oferecer.
O pesquisador espanhol Luis Miranda, em artigo escrito para o livro China siglo XXI: Desafios y dilemas de um nuevo cine independiente (volume por ele organizado em 2008), destaca, como uma constante na Sexta Geração do cinema chinês, a proliferação de referências a um mundo saturado de imagens de consumo. Miranda chega a se perguntar se existe algum filme dessa geração que não inclua, em alguma cena, a "contemplação sintomática" de uma tela de TV por personagens há muito alienados – como na potente e mais que atual cena em que se anuncia a escolha de Beijing como cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2008. Afinal, toda a pirotecnia que a cerimônia dirigida por Zhang Yimou apresentaria em alguns anos soa, no contexto do filme de Zhangke, extremamente distante do alcance dos olhos de crianças e adultos que brilham ao comemorar a tão aguardada escolha – sentimento que, curiosamente, Bin Bin e Xiao Ji parecem claramente não compartilhar.
Aliás, se a mídia eletrônica é capaz de anunciar, para todos os lares da China continental, os diversos eventos históricos daquele ano de 2001, como o anúncio das Olimpíadas e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, cabe lembrar que as vidas do trio de protagonistas parecem passar ao largo disso tudo. À medida em que tais eventos passam a constituir um tênue pano de fundo, o que nos é apresentado em primeiro plano é um enclave de intimidade recortado em meio aos devires da própria História (aqui com um irônico H maiúsculo). Talvez caiba aqui usar o termo "histórias menores", adaptando a ideia de "literatura menor" proposta por Deleuze e Guattari a respeito da literatura de Kafka. Falo de um tipo de narrativa historiográfica que, ao centrar-se naqueles que estão às margens dos processos históricos, apoia-se nos usos que uma minoria faz de uma "língua menor", resistindo à lógica hegemônica e subvertendo os discursos históricos institucionalizados ao produzir neles protuberâncias e embaraços. No caso dessa mitologia contemporânea da pós-modernidade de uma economia chinesa forjada a todo vapor, somos apresentados a seu reverso: acompanhamos as inúmeras tensões e cicatrizações com diversos graus de queloides que se impõem nos projetos de vida precocemente frustrados dos habitantes do xiancheng.
Em Prazeres desconhecidos, testemunhamos as existências sem maiores ambições desses jovens de quase vinte anos de idade, cujos afetos são incessantemente captados por um espaço-tempo narrativo que emula o fluir do próprio cotidiano, com suas pequenas e desimportantes esperas e hesitações, as ações repetidas corriqueiramente, os gestos mais banais – como o de levantar o casaco por sobre a cabeça para protegê-la do sol, tal Qiao Qiao em diversas cenas. E é o mosaico desses microeventos que nos torna íntimos dos personagens: partilhando aos poucos por um olhar curioso que revela os pequenos mistérios dos protagonistas e a dimensão humana da vida em Datong, culminando em pequenas apoteoses, como a cena em que a dançarina, abandonada por seu amante, abandona aos prantos a peruca que lhe dava ares de Mia Wallace, ainda que delicadamente kitsch.
Essa sobrevivência de cada dia é retratada, na pulsação do aqui e agora, por uma câmera que segue os personagens e que continua a filmar depois que eles saem de cena. Uma câmera que busca capturar o lento escoar do tempo em planos-sequência gerais, verdadeiros tableaux encadeados como "vagões", "blocos de granito indivisíveis", nos quais o tempo escoa "como uma hemorragia interna" – e aqui, as expressões em aspas são retiradas do antológico artigo "C'est quoi ce plan?", de Jean Marc Lalanne, publicado na Cahiers du Cinema (n. 569, 06/2002), um dos textos que ajudaram a dar forma à ideia de um "cinema do fluxo" contemporâneo, tão popular na década passada entre uma importante parcela da crítica cinematográfica brasileira.
Retomando o texto de Luis Miranda, podemos perceber como este filme dá continuidade ao estilo de filmagem adotado pelo cineasta em seu longa anterior, Plataforma (Zhàntái, 2000): cenas que começam e terminam em uma mesma tomada, sem cortes; uma "horizontalidade das imagens e dos relatos", em que os corpos são filmados a uma certa distância, observando-os silenciosamente enquanto se tenta "condensar ao mesmo tempo a vitalidade do cotidiano e as determinações da história"; a construção do relato a partir de uma soma de fragmentos (planos-sequência), cujas elipses temporais intersequenciais são variáveis importantíssimas; e, na banda sonora, o uso do "ruído de fundo" de forma descontínua e invasiva. Esse último elemento acaba por funcionar como um registro paralelo que intensifica ao mesmo tempo o comentário social e a experiência sensorial que Jia Zhangke propõe partilhar com o espectador. Todas as inserções têm uma dimensão simbólica e sensória intensa, das notícias transmitidas pelos diversos televisores ligados em cena aos sons que saem dos alto-falantes nas estações e nas ruas (como o anúncio da loteria), passando pelos ruídos da construção civil e até mesmo pelo cantor (interpretado pelo próprio cineasta) que repete, desafinadamente, a plenos pulmões, um conhecido trecho de ópera italiana.
Em diversas entrevistas concedidas nos últimos anos, Jia Zhangke tem reforçado a relação entre seus personagens e os espaços que eles percorrem e ocupam cotidianamente. Não à toa, a paisagem é, em seus filmes, um dado tão fundamental quanto os personagens. Os planos gerais de longa duração, por vezes traduzidos em varreduras panorâmicas, são essenciais para provocar no espectador a sensação de uma atmosfera impregnada tanto pelos escombros produzidos a cada prédio demolido quanto pelo abandono de cada galpão ou fábrica desativada registrados pela câmera.
A cidade de Datong, situada na mesma província que Fenyang, cidade natal de Zhangke, surge na filmografia do cineasta um ano antes do longa, quando ele filma o curta-metragem In Public (Gōng gōng cháng sǔo, 2001). A flexibilidade de produção e a liberdade de movimento proporcionados pelo vídeo digital foram fundamentais para que o formato DVCam fosse adotado em Prazeres desconhecidos, incorporando tanto suas vantagens quanto as limitações técnicas de resolução de imagem e cor – numa espécie de imagem "lavada" que amplia a atmosfera de melancólica solidão que parece emanar do filme o tempo todo, em claro contraste com o pálido desejo de uma outra existência, expresso nos versos que Bin Bin canta sem maiores empolgações, ao final do filme, nos quais propõe-se, enfim, "desaparecer com o vento para se desfrutar do prazer desconhecido".

. Esse texto foi produzido especialmente para a mostra Jia Zhangke.

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