DAS MEDIDAS CAUTELARES: A PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E SUA APLICABILIDADE EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO E DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

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DAS MEDIDAS CAUTELARES: A PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA COMO GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E SUA APLICABILIDADE EM FACE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CIDADÃO E DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

“Não há nada capaz de impedir que o Estado no qual se introduz o conceito de inimigo acabe em Estado absoluto” (Eugenio Raúl Zaffaroni)

Renê Fischer* RESUMO Partindo do referencial teórico da criminologia crítica, o presente artigo buscará verificar a legitimidade da medida cautelar de prisão preventiva com fulcro no conceito de “garantia da ordem pública”, prevista no Código de Processo Penal Brasileiro, diante de uma ordem constitucional consagradora de princípios, direitos e garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a presunção da inocência, o devido processo legal, e a não culpabilidade. A investigação da origem histórico-social dessa modalidade de prisão também será empreendida. No entanto, o estudo não se guiará somente pelo viés crítico, mas também buscará entender em que casos a prisão preventiva para garantia da ordem pública poderia ser justificada. PALAVRAS-CHAVE: Criminologia Crítica, Direito Processual Penal, Direito Penal, Medida Cautelar, Prisão Preventiva, Garantia da Ordem Pública, Prevenção Especial Negativa. SUMÁRIO: 1) Introdução: considerações acerca da prisão preventiva em face do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro; 2) Análise da garantia da ordem pública sob o prisma teórico da criminologia tradicional; 3) Análise da garantia da ordem pública sob o prisma teórico da criminologia crítica; 4) Conclusão.

*

Renê Fischer é Graduando em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e servidor público no Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina em Florianópolis-SC. Email:[email protected].

ABSTRACT

Based on the theoretical framework of critical criminology, this paper will seek to verify the legitimacy of the precautionary measure of remand with the core concept of “guarantee public order” under Brazilian Criminal Procedure Law, faced with a constitutional order that consecrate principles, fundamental rights and guarantees, such as human dignity, presumption of innocence, due process, and no guilt. The investigation of the socio-historical form of this prison will also be undertaken. However, the study will not only be guided by the critical bias, but also seek to understand in which cases the remand to guarantee public order could be justified.

KEYWORDS: Critical Criminology, Criminal Procedure Law, Criminal Law, Restraining, Arrest, Guarantee of Public Order, Negative Special Prevention.

SUMMARY: 1) Introduction: considerations about the arrest in the face of legal and constitutional Brazil; 2) Analysis of the guarantee of public order through the prism of traditional criminology theory, 3) Analysis of the guarantee of public order through the prism of critical criminology theory; 4) Conclusion.

1. Introdução: considerações acerca da prisão preventiva em face do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro

A prisão preventiva é uma medida cautelar de caráter instrumental para garantir a efetividade do processo penal (DELMANTO JÚNIOR, 1998, p. 156). Tem como objetivo prevenir que o réu considerado perigoso1 cometa novos crimes ou ainda que em liberdade prejudique a colheita de provas ou fuja (STF, 2013). É vedado, portanto, decretar uma prisão cautelar para a busca de fins penais, quais sejam, a prevenção especial e geral, visando infligir a punição da pessoa que sofre tal decretação (SANGUINÉ apud ANTUNES, 2006, p. 1). É necessário ainda, para a decretação de qualquer prisão cautelar, que o julgador fundamente a medida privativa da liberdade, com base no disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988, não bastando meras conjecturas ou fatos abstratos invocados pelo magistrado, sem se ater ao caso concreto, sob pena de nulidade de tal medida prisional (ANTUNES, 2006, p.1). Mas isso não é suficiente, sendo necessário também que estejam presentes, para a possibilidade da prisão preventiva, dois requisitos e quatro condições, sendo que uma destas deve coexistir com aqueles dois, que são os indícios suficientes de autoria, que "devem gerar convicção de que o foi o acusado o autor da infração, embora não haja certeza disso" (TOURINHO FILHO apud ANTUNES, 2006, p.1), e a materialidade do delito (prova da existência do crime) (ANTUNES, 2006, p.1). Partindo de tal premissa, uma das condições que enseja tal modalidade de prisão é a garantia da ordem pública, disposta no art. 312 do Código de Processo Penal, sendo que tal condição possibilita uma interpretação muito ampla em relação ao conceito de “ordem pública"2, gerando muita polêmica, chegando alguns autores até a considerar 1

Expressão que denota a insistência no uso do determinismo criminal, conceito do Positivismo

Criminológico, fundado na Itália do século XIX por Césare Lombroso, que defendia que o homem nasce determinado por causas biológicas, telúricas ou sociais à sociabilidade ou à criminalidade. Esse homem perigoso, determinado à criminalidade, deveria ser neutralizado não porque praticou necessariamente um ato criminoso, mas porque poderia cometê-lo no futuro (CASTRO, 2012, p. 13). 2

Conceito vago e aberto, recorrentemente definido como “tranquilidade” no meio social (LOPES Jr., 2012, p. 828).

que a preservação da ordem pública não está entre os objetivos da prisão cautelar, porque, na verdade trata-se de um dos escopos do processo principal cujo fim é especificamente o restabelecimento da situação de equilíbrio social e de ordem violados com a prática do delito (MACHADO apud ANTUNES, 2006, p.1). Não obstante o entendimento supracitado, o que se verifica nos decretos prisionais, com base na "ordem pública", tão invocada nas decisões dos pedidos de prisões cautelares, é sua utilização genérica e de modo abstrato, gerando uma grave insegurança jurídica (ANTUNES, 2006, p.1). É necessário, portanto, investigar sobre até que ponto as prisões preventivas com fulcro no conceito de “garantia da ordem pública” são conformes com os ditames constitucionais do Estado Democrático de Direito, como o princípio da presunção da inocência, do devido processo legal, e do princípio da não culpabilidade.

2. Análise da garantia da ordem pública sob o prisma teórico da criminologia tradicional

Vive-se hoje na era do direito da culpabilidade, onde o dolo e a culpa foram deslocados para o tipo penal, compondo o que se passou a denominar de “tipo complexo”. Desta feita, se houver uma ação, desprovida de dolo ou culpa, o fato será considerado atípico. A ação deve ser abrangida pela vontade do autor e deve ser ao fim punível. Sendo assim, o direito penal moderno deu um grande passo rumo a uma concepção do delito mais isenta de interferências estatais, onde a finalidade da ação humana, e não o indivíduo em si, é o principal foco de estudo e estrutura todos os demais elementos do delito. Ainda hoje, esta é a teoria com maior aceitação no âmbito do sistema jurídico romano-germânico. (MASI, 2012) No entanto, o Estado contemporâneo, surgido após a revolução burguesa de 1789, foi idealizado e está a serviço dessa mesma classe e do seu modo de acumulação de riquezas, o capitalismo.

Esse modo de produção caracteriza-se principalmente pela expropriação da mais-valia e pela dominação política do proletariado pela burguesia, legalmente proprietária dos meios de produção. Sobre o Estado moderno, discorre CASTRO (2007, p. 6): O Estado se revela como um aparelho contraditório de dominação política nas mãos da classe burguesa, ou dito de outro modo, o Estado não encarna aquele ideal universalizante que a teoria tradicional lhe empresta, mas sim uma realidade de particularização dos interesses de uma classe determinada. Já dizia Marx, no Manifesto, que “O executivo do Estado Moderno não é mais do que um comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa”.

Igualmente, essa paulatina acumulação de bens por um grupo social através da apropriação da riqueza produzida pelo trabalho do outro resulta em uma crescente discrepância de meios de subsistência. Destarte, a luta por melhores condições de vida e o justo levante dos trabalhadores diante da desigualdade social é uma consequência natural deste processo. Porém, ante o clamor dos trabalhadores por justiça social, a razão burguesa reage erguendo um eficiente aparato repressor, amparado juridicamente pelo Direito Penal e Processual Penal e operado pelo Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia e Sistema Prisional. Sobre isso, destaca CASTRO (2007, p. 7): A violência estrutural do modo de produção capitalista exige a formação de um forte Aparelho Repressivo de Estado, com a finalidade de cumprir duas funções básicas: a) manter, através da violência institucional, a dominação de classes, ou dito de outro modo, reproduzir a violência estrutural; e b) conter, através da força, as manifestações individuais violentas (crimes), que se constituem, salvo casos patológicos, em reações ao sistema de violência estrutural capitalista. O furto, o roubo, o tráfico de drogas, em suma, quase todas as espécies de crimes praticados isoladamente na sociedade são reações a um sistema de distribuição desigual de oportunidades sociais, bem como do rebaixamento dos níveis de sociabilidade em consequência da fetichização da mercadoria, da reificação do indivíduo, e do individualismo burguês que reduzem a condição humana a uma simples condição mercadológica.

Neste sentido, o sistema jurídico do estado contemporâneo, baseado no positivismo jurídico, vigora com a função precípua de manter este injusto status quo social. Acerca deste sistema jurídico, expõe CASTRO (2007, p. 3): O positivismo, enquanto razão burguesa congelada, juridicizante, demonstrou o horror do capitalismo a aparição de “cabos soltos no tráfico de mercadorias”. O lucro, a expropriação de mais-valia, o conflito capital “versus” trabalho assalariado, a circulação mercantil, os aparatos de dominação política e jurídica, absolutamente tudo deveria ser congelado na

lei, como estabelecimento das regras do jogo burguês. O princípio da segurança jurídica significaria então a possibilidade de a burguesia estabelecer calculabilidade e previsibilidade para suas ações comerciais, sem a arbitrária intervenção de quem quer que fosse, longe, portanto, das intempéries políticas. Segurança jurídica seria sinônimo de regras do jogo determinadas de antemão.

A criminologia seguiu o mesmo caminho e no século XIX, em meio à transformação do Estado Liberal em Estado Intervencionista, elaborou um critério pseudo-científico para justificar a repressão: simplesmente taxar de perigosos aqueles que se opõem à exploração, conforme explica CASTRO (2007, p. 13): [...] no capitalismo “social”, que determina os rumos da economia através do Estado, o livre arbítrio sofre uma depreciação, cedendo lugar ao determinismo criminal: o homem nasceria determinado por causas biológicas, telúricas ou sociais à sociabilidade ou à criminalidade. [...] Césare Lombroso, considerado o fundador da Escola Positiva Italiana, realizava suas macabras pesquisas de medição craniana e outras verificações de ordem biológica, tendo como objeto, reclusos no sistema penitenciário italiano, ou seja, a clientela do sistema prisional, que sempre foi o proletariado e o sub-proletariado. Com isto ocultava os processos de seleção criminal que reproduzem a luta de classes ao nível superestrutural do sistema penal, encarcerando os membros das classes dominadas e ocultando a criminalidade dos membros das classes dominantes. Formula-se a concepção de “defesa social” que, consistindo na defesa da sociedade contra o crime, nada mais traduz que a defesa da sociedade burguesa contra os despossuídos de toda a ordem.

Assim, sendo o sistema capitalista em sua forma mais predatória o modo de produção em voga nos países periféricos como o Brasil, não surpreende o fato do perigosismo ainda estar presente em nosso sistema jurídico-penal. Neste sentido, conceitos abstratos e abertos, como a “garantia da ordem pública”, são utilizados até hoje para justificar prisões preventivas destes indivíduos considerados perigosos pelo sistema. É o que destaca ZAFFARONI (2007, p. 70): A característica mais destacada do poder punitivo latino-americano atual em relação ao aprisionamento é que a grande maioria – aproximadamente ¾ – dos presos está submetida a medidas de contenção, porque são processados não condenados. Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém, segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. Falando mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem sentença firme, apenas por presunção de periculosidade.

3. Análise da garantia da ordem pública sob o prisma teórico da criminologia crítica Opondo-se à Criminologia Tradicional, a Criminologia Crítica3 não questiona as causas dos crimes praticados, questiona porque determinadas pessoas são tratadas como criminosas, quais as consequências desse tratamento e qual sua legitimidade (SMANIO apud URBANSKI, 2010). Pergunta "quais os critérios, ou mecanismos de seleção das instâncias de controle social" (SMANIO apud URBANSKI, 2010). Partindo-se desse referencial teórico, deve-se colocar em cheque a legitimidade da medida cautelar de prisão preventiva com fulcro no conceito de “garantia da ordem pública” prevista no CPP, diante de uma ordem constitucional consagradora de princípios, direitos e garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a presunção da inocência, o devido processo legal, e a não culpabilidade. Em consonância com essa posição, versa LOPES Jr. (2012, p. 777) : No Brasil, a presunção de inocência está expressamente consagrada no art. 5º, LVII, da Constituição, sendo o princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através de seu nível de observância (eficácia). É fruto de uma evolução civilizatória do processo penal. Parafraseando GOLDSCHMIDT, se o processo penal é o termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de uma Constituição, a presunção de inocência é o ponto de maior tensão entre eles. É um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção protetora do indivíduo, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável, pois sem dúvida o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, sejam protegidos. Essa opção ideológica (pois eleição de valor), em se tratando de prisões cautelares, é da maior relevância, pois decorre da consciência de que o preço a ser pago pela prisão prematura e desnecessária de alguém inocente (pois ainda não existe sentença definitiva) é altíssimo, ainda mais no medieval sistema carcerário brasileiro.

Ainda, sobre a garantia da ordem pública, afirma LOPES Jr. (2012, p. 828) : a) Garantia da ordem pública: por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante, como mostraremos no próximo item, destinado à crítica. Não sem razão, por sua vagueza e abertura, é o fundamento preferido, até porque ninguém sabe ao certo o que quer dizer... Nessa linha, é recorrente a definição de risco para ordem pública como sinônimo de “clamor público”, de crime que gera um abalo social, uma comoção na comunidade, que perturba a sua “tranquilidade”. Alguns, fazendo uma confusão de conceitos ainda mais grosseira, invocam “gravidade” ou “brutalidade” do delito como fundamento da prisão preventiva. Também há quem recorra à “credibilidade das instituições” como fundamento legitimante da segregação, no sentido de que se não houver a prisão, o sistema de administração da justiça perderá 3

Este modelo de Criminologia teve origem no trabalho de Taylor, Walton e Young, "The New

Criminology", de 1973, o qual procura questionar a ordem social, atacar os fundamentos do castigo aplicado às minorias, e por consequência, a não punição do Estado (URBANSKI, 2010).

credibilidade. A prisão seria uma antídoto para a omissão do Poder Judiciário, Polícia e Ministério público. É prender para reafirmar a “crença” no aparelho estatal repressor.

Revela ainda LOPES Jr. (2012) que a prisão preventiva para garantia da ordem pública surgiu no regime autoritário nazista, corroborando o estudo histórico-jurídico do insigne penalista espanhol Francisco Muñoz Conde, que descreve, em sua obra Edmund Mezger e o direito penal do seu tempo, como Mezger participou das discussões em torno da Lei do Delinquente Perigoso de novembro de 1933, que introduziu no Código Penal alemão a medida de custódia de segurança, permitindo manter o indivíduo, após cumprida a pena, em um centro de trabalho por tempo indeterminado (MACHADO, 2005). Sobre isso, discorre LOPES Jr. (2012, p. 840):

Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois se trata de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do Direito para fazer valer seus atos prepotentes.

Constata-se então que, vista sob um olhar crítico e humanitário, a prisão preventiva com fulcro no conceito de “garantia da ordem pública”, na forma como é efetuada hoje no Brasil, não está nem de longe em conformidade com uma ordem constitucional dita como consagradora de princípios, direitos e garantias fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a presunção da inocência, o devido processo legal, e a não culpabilidade. Em nosso país, esses importantes princípios constitucionais localizam-se quase que integralmente no discurso, principalmente em relação aos excluídos e explorados. Isso constatado, surge então o seguinte questionamento: essa modalidade de prisão preventiva poderia de alguma forma ser feita em conformidade com os ditames de um Estado Democrático de Direito? Sobre isso e tendo como base legislações processuais penais de outros países, destaca LOPES Jr. (2012, p. 845):

Feita a análise crítica, não se desconhece que – em situações (efetivamente excepcionais) – a prisão cautelar sob o argumento do “risco de reiteração” é admitida no direito comparado. […] Nessa linha, o art. 503 da Ley de Enjuiciamento Criminal (Espanha) admite a prisão, quando houver “motivos bastantes para crer responsável criminalmente a pessoa” e o delito tenha pena máxima igual ou superior a 2 anos. […] a reforma da Ley de Enjuiciamento Criminal (LECrim) ocorrida em 2003 suprimiu o “alarma social” e incorporou o “risco de reiteração delitiva” como causa da prisão cautelar. Interessante que essa mudança legislativa foi imposição da Sentença do Tribunal Constitucional n. 47/00 e, nessa decisão, o Tribunal especificou os fins constitucionalmente legítimos da prisão provisória e, entre eles, incluiu como causa a prisão para evitar reiteração delitiva, mas sublinhou: não se deve fundamentar em risco genérico que o imputado possa cometer outros crimes, pois isso faria com que a prisão provisional respondesse a um fim punitivo ou de antecipação da penal. Isso seria inconstitucional.

Nesta linha, complementa e conclui LOPES Jr. (2012, p. 847):

O Código de Processo Penal alemão, StPO, no seu §112 a, autoriza a detenção quando houver fundados motivos de que o agente tenha cometido, repetida ou continuadamente, delitos graves (existe uma enumeração desses delitos na lei) e se existem fatos que possam fundamentar a existência do perigo, de que, antes do processo, ele possa cometer mais delitos relevantes de mesma espécie ou continue com a prática do mesmo delito. […] Em que pese essas considerações, pensamos que a excepcional e cruel necessidade deveria dar lugar não à prisão preventiva por risco de reiteração, mas outras medidas restritivas aplicadas no âmbito da liberdade provisória, tais como monitoramento eletrônico, prisão domiciliar, ou proibição de permanência, de ausência ou de contratos (como previsto no art. 319).

Infere-se então pelas palavras de LOPES Jr. (2012) que é plenamente possível implementar medidas alternativas à prisão preventiva para garantia da ordem pública, visto que já existem alternativas tecnológicas para tanto. Porém, isso não ocorre por uma série de motivos, dentre eles: o fato das prisões preventivas servirem a um espetáculo midiático que espalha a propaganda de que os perigosos inimigos do sistema e da sociedade estão sendo severamente punidos, colocando ironicamente os explorados ao lado do seu maior algoz: o aparelho repressor a serviço do Estado burguês. Além disso, como demonstrado anteriormente, o Estado brasileiro, por opção política e ideológica, historicamente não prioriza investimentos em áreas de interesse dos trabalhadores e dos despossuídos, como a saúde, a segurança pública e a educação.

4. Conclusão

Assim, levando-se em consideração a austeridade do Estado brasileiro no tocante a gastos sociais, é preferível que, num curto prazo, a interpretação do dispositivo que prevê a prisão preventiva como garantia da ordem pública seja feita em nosso país nos moldes da interpretação feita pela corte constitucional espanhola. Ou ainda, que nossa legislação processual penal seja reformada para restringir a aplicação dessa modalidade de prisão preventiva a casos onde existam critérios concretos e objetivos para determinar se a liberdade de um indivíduo está ou não colocando em risco a existência dos demais, como é feito no supracitado código de processo penal alemão. Isso se justifica, pois em nossa ordem constitucional consagradora da dignidade humana, o direito a vida está acima do direito à liberdade.

Referências bibliográficas

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maio 2013.

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