Das palavras aos actos num tratado de encenação italiano

September 21, 2017 | Autor: José Ferreira | Categoria: História E Teorias Do Teatro, História Do Teatro, Teatro, Direção, História Do Teatro
Share Embed


Descrição do Produto

DAS PALAVRAS AOS ACTOS NUM TRATADO DE ENCENAÇÃO ITALIANO ‘DEL CINQUECENTO’ JOSÉ ALBERTO FERREIRA UNIVERSIDADE DE ÉVORA

la scena [...] è il cimento delle comedie, et molte cose saranno belle da leggere che a doversi rappresentare riescono poi insipide; et cosí anco per lo contrario. Leão de’ Sommi* 1. Das palavras & dos actos É um ponto de reflexão obrigatório, na abordagem do fenómeno teatral, aquele que equaciona a relação entre o texto e a representação, a pena e a cena, as palavras e os actos. Relação sujeita a fortíssimas variações no plano da história como da estética, ela tem sido abordada por várias disciplinas, da semiótica — entre o aparato de cientificidade e a falência de muita da formalização dos seus modelos — a propostas mais recentes, nas quais convergem contributos da pragmática e da linguística textual, da frame análise, da etnometodologia e da sociologia, da antropologia, ou ainda a análise (histórica, contextual) do espectáculo (cfr. as propostas e enquadramentos contidos em Pavis, 1996, Herman, 1995). Mesmo com orientações distintas, todas as perspectivas têm contribuído para a abordagem desta relação, desde Aristóteles tomada em registo de oposição dicotómica — é conhecida a variável situação do espectáculo na Poética, onde ora é uma mais-valia Como esta imitação é executada por actores, em primeiro lugar o espectáculo cénico há-de ser necessariamente uma das partes da tragédia (Poética, 1449b 30)

ora apenas acidental ocorrência que não pertence ao poeta: Quanto ao espectáculo cénico, decerto que é o mais emocionante, mas também é o menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem representação e sem actores, pode a tragédia manifestar seus efeitos; além disso, a realização de um bom espectáculo mais depende do cenógrafo que do poeta (Poética, 1450b 16) (1). *

Todas as citações do texto de de’ Sommi são da edição de Ferruccio Marotti (1968), indicada na bibliografia. Cito seguido da página entre ( ), sem outra indicação. Todas as traduções são da minha responsabilidade. 1) Quando retoma o confronto da épica com a tragédia, equaciona ainda uma vez o espectáculo como vantagem, pois «a tragédia é superior porque contém todos os elementos da epopeia» e ainda «a melopeia e o espectáculo cénico, que acrescem a intensidade dos prazeres que lhes são próprios», 1462a 14). Vejase Barata, 1997 e ainda, para uma análise detalhada da questão em Aristoteles, De Marinis, 1991 e Kowzan, 1983).

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

1

Nos termos do Estagirita, a oposição lexis / opsis permanece sem resolução, e as suas consequências são bem conhecidas no panorama da reflexão teórica clássica, também massivamente o da cultura teatral europeia e ocidental, caucionando a vigência dos códigos do espectáculo teatral e os da textualidade como sistemas autónomos. Há já alguns anos que esta oposição tem vindo a ser esbatida, reconhecendo-se que «testo drammatico e messa in scena sono i due partners di un rapporto di collaborazione» no âmbito da qual o texto é apenas «una tecnica del teatro, interagente (e quindi strutturalmente omogenea con altre tecniche […])» (Ruffini, 1985: 24). Nas páginas que se seguem, procuro analisar o tratamento dessa equação no trabalho de Leão de’ Sommi (Yehuda Sommi di Portaleone), judeu mantuano vivendo entre 1525 ou 1527 e 1592, autor de comédias, encenador e, desde pelo menos 1567, responsável pelos espectáculos da corte dos Gonzaga, o primeiro teorizador do espectáculo da idade moderna. De’ Sommi é autor de um tratado significativamente intitulado Quattro dialoghi in materia di rappresentazioni sceniche, datável dos finais dos anos 60 ou dos anos 70 (2). Tiradas dos diálogos as palavras da epígrafe — para com elas afirma ser a cena o cimento das comédias e assim assinalar as distintas virtualidades do ler e do representar —, elas servem aqui como sinais do posicionamento do autor: entre a relação solidária texto / cena, e as distintas condições / consequências dessa relação. Segundo o seu editor italiano, o tratado dessomiano ocupa uma posição «excêntrica relativamente à da tratadística de base aristotélica e vitruviana» (Marotti, 1968: lxvi), as duas linhas dominantes da produção teórica quinhentista relativamente às quais traz um inaugural espaço de pensamento da prática teatral atento ao que, na relação entre as palavras e os actos, concretiza de forma específica — e sublinho essa especificidade que em de Sommi reveste uma dimensão claramente profissional (que é a sua) — concretiza de forma específica, dizia, a produção do espectáculo. Nesta leitura dos Diálogos procuro assinalar o que em de’ Sommi aparece como proposta de articulação dos diferentes sistemas do espectáculo teatral (texto, aparato cénico, figurino, iluminação, modalidades do trabalho do actor), sinalizando as condições reveladoras do que bem pode designar-se como a sua teátrica.

2. O lugar da tratadística A época é, como disse Szondi, a do nascimento do drama moderno, tempo que a historiografia italiana costuma designar como o tempo da «invenção do teatro» (Cruciani & Seragnoli, 1987). O arco de tempo que vai de meados do século XV com a recuperação filológica e arqueológica do teatro antigo e a sua cristalização na 2)

Sobre a data e os problemas de datação cfr. Marotti, 1968: 77-79. Os dialoghi permaneceram manuscritos até ao séc. XIX, altura em que foram parcialmente editados. O manuscrito (e uma cópia) tem na portada a indicação 1556, mas Marotti, ponderando dados internos do texto, refuta a admissibilidade dessa data, deslocando-a para os anos 70 e 80. Cfr. ainda Marotti para a história da edição (1968: xvxxvi).

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

2

cenotecnia do edifício teatral (concretizada na edificação do Teatro Olímpico de Vicenza (1585), iniciado por mão de Palladio, e terminado pela de Vincenzo Scamozzi) é atravessado por linhas fortes de interrogação das fontes e por um continuado esforço de teorização do nascente teatro. 2.1. De um lado está a exegese vitruviana, orientada para a restituição do teatro antigo, desde o círculo romano dos pomponianos aos seus sucessivos editores e comentadores (L. B. Alberti, Pelegrino Prisciani, fra Giocondo Cesare Cesariano, Giambattista Caporali e a edição mais definitiva de Monsenhor D. Barbaro (todos editados em Marotti, 1974), a que não podem deixar de se associar as edições do Onomasticon (de Pólux), e as dos gramáticos latinos (Donato, Diomedes, Evâncio). À reflexão em torno da arquitectura, nuclear na exumação da cena clássica, interessaram fontes históricas, a pintura, a arqueologia, não a adequação da cena teatral à representação de um dado texto dramático. 2.2. A teorização dramatúrgica, por seu lado, ensimesmada nos mecanismos de comentário e glosa e amplificação da Poética, impedia de pensar o que tomava como ‘mais próprio do corago que do poeta’, dando por autónomo o texto trágico nos seus efeitos e virtudes. Ao espectáculo não atendiam as razões do poeta. A tratadística versava as regras de género (tragédia / comédia, partes e sua proporção, natureza das personagens e da fábula, unidades) e a natureza dos efeitos sociais e ideológicos do drama. São bem conhecidos os prolongamentos deste programa e o alcance da sua vigência na cultura ocidental (cfr. e.g. Roubine, 1990). Com raríssimas excepções, de resto não sistemáticas, nunca estes pólos de tensão se cruzaram. Descuraram uns a reflexão sobre as relações que a cena estabelece com os textos («nunca se coloca o problema cénico em relação com exigências dramatúrgicas específicas», Marotti, 1974: 223-24), e nem mesmo a consciência eminentemente prática da cena ultrapassava o seu valor autónomo perante a representação. Desdenharam os editores, comentadores e glosadores da herança aristotélica de abandonar o preceito da autonomia do texto e de pensar a concretização do espectáculo em si, como «rapporto di collaborazione». 2.3. Claro que a prática matizou algum tanto esta oposição. Basta recordar o prólogo da comédia como lugar teórico (cfr. Bonora, 1971). Veja-se a abertura daquele prólogo exemplar que escreveu o cortesão Castiglione para La Calandria, do cardeal Bibbiena (representada primeiramente em Urbino em 1513, editada em 1521; o prólogo do Castiglione supre a ausência do do autor): Vós sereis hoje espectadores duma nova comédia intitulada Calandria: em prosa, não em verso; moderna, não antiga; vulgar, não latina. […] Representado-vos a comédia coisas familiarmente feitas e ditas, não pareceu [bem] ao autor usar o verso; considerando que se fala em prosa […] Não é latina; pois que, devendo-se recitar a muitos, de que não são todos doutos, o autor, que procura sumamente agradar-vos, quis fazê-la em vulgar […]. (Borlenghi, I: 59-60)

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

3

Basta o pouco que transcrevo para evidenciar a explicitação teorética que ocupa o prólogo e que faz dele um instrumento privilegiado para a investigação das ideias sobre o teatro renascentista italiano. Mas veja-se que o campo teatral que cruza palavras e actos se reduz aqui a poucos aspectos, como a tópica afirmação da novidade e da recusa do latim, a familiaridade da matéria ou a opção pelo verso, aspecto que de’ Sommi toma como exemplar, citando a esse respeito o Bibbiena. O campo aqui exposto não inclui, por exemplo, o actor, figura nuclear dessa relação. Mas outros textos há que se lhe referem, incluindo-o nessa tradição que, não sendo ainda a profissional que dará os cómicos da arte, se alimenta de diletantes de dentro dos quais, lentamente, se destacam pré-profissionais, pagos e procurados pelas competências específicas que os caracterizam, casos de, por exemplo, Angelo Beolco, o Ruzante, do Barlacchia, em Florença, ou de Francesco de’ Nobili, dito Cherea a partir do Eunuco de Terêncio (cfr. Baratto, 19772: 52s). Veja-se um passo do prólogo à comédia Saltuzza (ed. 1551), de Andrea Calmo (autor e actor veneziano, nascido c. 1509), que se recusa assim a falar (falando) dos actores: Dos actores não falo, porque serão por vós depois perdoados, por não estarem habituados a semelhantes tramas. Bem vos digo que todos eles, de boamente tomaram o encargo, para vosso entretenimento, como melhor sabem. Resta-me pedir que não façais barulho, para vosso bem. (Borlenghi, II: 783-84)

3. Os antecedentes — Robortello, Trissino, Giraldi Cinzio. Mas venhamos às patranhas, para roubar o dito mirandino. Em nenhuma destas três possibilidades a reflexão se verte sobre as relações entre a cena e a pena, as palavras e os actos. Estamos num século XVI que ora navega pela teoria com Aristóteles à vista (e às vezes metendo-se-lhe por dentro), ora se perdia de amores por uma Roma restaurada e ilustrada (evoco o título arqueológico de F. Biondo) bebida sobretudo nas páginas de Vitrúvio. Entre a tratadística poética e a arquitectónica, as práticas apenas miravam ao público e ao projecto de recuperação do teatro antigo da elite. Excepções, ainda que em molde hesitante e de efeitos mitigados, são as que se afirmam com Robortello (1548, Explicationes de satyra,de epigrammate, de comoedia, de elegia) e com Trissino (La quinta e la sesta divisione della poetica, 1546 c.), mas ainda sob o signo do comentário de poética (cfr. Marotti, 1974: 223s). Por meados de 500, é Giambattista Giraldi Cinzio quem prescruta mais consequentemente as relações entre a cena e a pena (3). Cinzio teoriza a relação entre as palavras e os actos, pondera as relações entre o texto e a representação, evidenciando uma fortíssima consciência do que há entre os dois. Por exemplo ao afirmar que

3)

Nomeadamente num texto escrito em 1543, mas editado apenas onze anos mais tarde (Discorso sulle tragedie, 1554). Sobre o trabalho teórico de Giraldi Cinzio pode ler-se a síntese apresentada em Attolini, 1988: 205-212.

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

4

[O aparato], apesar de não entrar na fábula e de não ser parte nem do nó nem da solução, é necessário à representação. Pois com o aparato se imita a verdadeira acção, e a [acção] põe aos olhos do espectador claríssima [manifestissima]. E embora não seja ofício do poeta, mas empresa do corago, isto é, daquele a quem é confiado cuidado de todo o aparelho de cena, deve também o poeta procurar que se veja, ao baixar da cortina [como na época se fazia], cena digna da representação da fábula, seja ela cómica ou trágica. Àquela convém a popular, a esta a magnífica e real. (Borlenghi, I: 1025)

Noutro passo faz valer o critério do decorum entre o actor e o papel a representar, ao mesmo tempo que assinala a novidade do vestir cénico como um factor de relevo na comunicação teatral: [os actores devem] ter movimentos, palavras e vestes convenientes à acção que se representa […] porque se os actores cómicos [istrioni comici] fossem vestidos com grandes e magníficas vestes, seriam tão inconvenientes como se se vestissem os actores trágicos [della tragedia] de cidadãos [privati citadini]. E não será senão bem que numa e noutra cena [i. é, trágica e cómica] sejam as vestes dos actores de lugares distantes. Pois a novidade do vestir gera admiração, e faz o espectador mais atento ao espectáculo, o que não aconteceria se visse os actores vestidos com vestes que todos os dias tem diante dos olhos. (Borlenghi, I: 1026)

Os elementos aqui apontados não são senão parciais, mas permitem evidenciar o papel que a valorização do espectáculo vai tendo, na «procura de um equilíbrio entre texto e cena» (Atollini, 1988: 211). Porém, permanece ainda sob o signo do «tratado de poética no qual estão disseminados, de forma ainda não orgânica […] notas e considerações heterogéneas exactamente na medida em que são relativas ao espectáculo» (Attolini, 1988: 207). Só em de’ Sommi encontramos, de forma clara e sem margem para dúvidas, a primeira abordagem teórica do espectáculo, num tratado cuja elaboração resulta da experiência prática e conduz a esse posicionamento que já se disse «excêntrico» no contexto renascentista.

4. Os Quatro diálogos — uma descrição Os quatro diálogos datam, tanto quanto é possível saber-se, de entre 1560 e 1575. Envolvem três interlocutores: Santino e Massimiano, figuras da interrogação, e Verídico, que pode tomar-se como alter ego de de’ Sommi, depositário de saberes que caucionam todas as respostas com um saber de experiência feito. 4.1. Os dois primeiros diálogos seguem um iter recorrente da tratadística. O primeiro aborda, lançando mão das fontes clássicas, a origem da comédia, que Verídico define «secondo la sentenza de’ piú savii», como una imitazione overo essemplar ritratto de la vita umana, dove si hanno a tassar i vizii per fuggirli, et ad approvar le virtú per imitarle (12).

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

5

Mas esta resposta com caução dos sábios serve logo para, retomando ainda as hipóteses relativas aos cantos nocturnos de vitupério contra os opressores na Grécia antiga, introduzir no iter um desvio qualitativo, avançando ainda a hipótese da origem divina da comédia, através de Moisés e da escrita do Livro de Job (14-5). Verídico esclarece ainda as fontes da tragédia (a História ou a fábula), as diferenças entre tragédia e comédia (4), com insistente diferenciação da natureza das personagens com critérios — qualidade das personagens, variações estilísticas e natureza da matéria — que remontam à tratadística da comédia de Donato ou Evâncio. Assinalo a clara — e pioneira — refutação da concepção actancial da teoria da comédia, pela qual se que opunha o lieto fine ao doloroso na tragédia, concepção que de’ Sommi rejeita (5): il fin lieto, o il doglioso non è quello che dà al poema il nome di tragico o di comico, ma sí ben la qualità de i personaggi introdottovi, et gli accidenti che per entro vi occorrono (17).

De modo também agudo e com uma insistência que atravessa todo o tratado, articula a dimensão chave da mimese com as categorias da verosimilhança e do decoro horaciano, já que sempre il poeta ha da rappresentare le cose (come dice Aristotile) nel più perfetto modo che li sia possibile; […] più che ad ogni altra cosa bisogna che miri il poeta, però che se egli non darà il suo più perfetto et naturale essere a tutti i personaggi che egli vorrà introdure, invano si potrà persuadere di far cosa degna di lode. Ma li bisogna applicare ad ognuno (come ben n’ insegna Orazio nella sua poetica) le qualità che sono proprie dell’ età, del grado et della professione sua, et dello stato anco in che ciascuno si trova, nel modo piú degno di imitazione (17-8).

Este postulado projecta-se claramente na construção da acção cómica, que não colhe senão «cidadãos honrados» (6), bem como no explicitar as virtualidades pragmáticas e exemplares da comédia, cujo fim é a «instituzione humana» (7). Daqui resulta uma programática deslocação para o campo do decorum, para a teorização da adequação entre a representação e a coisa representada, e a ponderação das suas consequências dramáticas, enquadradas sob o signo do natural. La comedia […] non dovrà lassar dir parola né far atto ad alcuno, che sia contrario al grado et alla qualità sua, et però dico che, quantunque non par che si sconvenga

4)

«di queste [tragédias] i principali interlocutori hanno ad essere persone regali et con maestà introdote a gravi ragionamenti et a fatti terribili, con stile conforme alla lor grandeza; et nella comedia (che è solo uno essemplar ritratto de la vita civile) non vi si ha da introdure per principali nel soggeto altro che citadini onorati, con civil maniere introposti et con stile non dissimile alla natura loro, tassare i vizii et essaltar le virtú, cangiando la parte terribile del tragico nella piacevole leggiadria naturale del comico, il quale ha insieme da giovare con gli essempi, et da dilettare con le arguzie et con le piacevolezze» (16). 5) Esta concepção, herança medieva com prolongamentos vários, encontra-se assim declarada no prólogo da Comédia sobre a divisa da cidade de Coimbra, de Gil Vicente. Cfr. Tobar, 1986 e, para uma panorâmica de conjunto do quadro teórico, Kelly, 1993. 6) «nella comedia (che è solo uno essemplar ritratto de la vita civile) non vi si ha da introdure per principali nel soggeto altro che cittadini onorati, con civil maniere introposti et con stile non dissimile alla natura loro» (16). 7) «essendo il suo fine la instituzione umana, chiara cosa è che, quanto più ella avrà convenienza con la disposizione de l’ uomo, tanto nel suo essere avrà maggior perfezzione» (29).

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

6

introdur come sarebbe, per grazia di essempio, un servo malizioso et astuto, una fantesca baldanzosa et scaltra, un parasito adulatore et bugiardo, un vecchio sospettoso et avaro, sarebbe peró vizio intollerabile l’ aplicar cottali diffetti ad un giovane gentiluomo, ad uno studente nobile, ad una damigella onorata, o ad uno antico et saggio padre di famiglia. Ben è vero che si concede anco, et riesce leggiadrissimo, quando, per tassare uno errore, s’ introduce un personaggio qualificato, che di quello machiato sia, come sarebbe se per tassare un mal uso de’ nostri tempi (a’ quali sopra tutte le cose bisogna aver rispetto) si introducesse un medico, o vogliam dir un maestro da ricette, il quale facesse piú stima d’ uno scudo che de la salute d’ un uomo, aspirando sempre piú al guadagno che a far una cura onorata; overo se si introducesse un dottore di legge a tradire un suo cliente, corrotto dalla parte; o un vecchio che, per amore ribambito, facesse qualche scciochezza, o cose altre simili satiriche, le quali non solamente sono lecite, ma hanno molto del leggiadro, quando sono tirate in modo di danar il vizio, o scoprir le sceleratezze, per far accorto l’ uditore. Et per concludere dico che bisogna avertire di dare il suo naturale alle cose, et sempre a fine che sia giovevole ... (18-19).

Sublinho a circunstância natural defendida pelo autor neste passo que bem pode ler-se como inventário de reconhecíveis personagens da rica galeria da comédia quinhentista. É o natural que, no que se afirma como a vigência de um paradigma orientador da representação, e é nesse plano que ele sustenta, nos Diálogos, várias outras determinações: que não representem mais de três em cena (o preceito é horaciano, como se sabe), ou que se não recorra ao travestimento em cena (preceito aqui associado com a verosimilhança). A mesma origem para a recusa dos «lunghi raggionamenti», ou no proibir aos actores que se dirijam ao público, porque os espectadores «non sono sempre dove finge di esser il recitante» (19). Giraldi Cinzio apontava exactamente este facto para assumir que apenas o prólogo podia dirigir-se directamente aos espectadores. O paradigma do natural aponta ainda a medida da eficácia da comédia, preceito genológico fortemente vinculado a uma forma da expressão, a prosa, em detrimento de outra, o verso (lembre-se Bibbiena): tanto sarà tenuta piú bella una comedia […] quanto piú sarà imitatrice del naturale, et quanto piú, ingannando gli uditori, li farà parer di vedere succedere in effetto, a caso, quello che l’ uomo s’ ingegna di rappresentarli in atti, a studio; tanto piú dunque sarà suo proprio l’ esser tessuta in prosa che in versi, però che ben si sa che nel parlare familiare non si osserva numero di sillabe, et per diligente che sia lo istrione, non può far che recitando il verso, non sia spesse volte per verso conosciuto (20)

Verídico aconselha pois aos poetas que usem moderadamente o verso, tendo em conta que a comédia deve ser representada, por isso deve o poeta atender aos effetti e às parole non meno, cuidando, a bem dos actos cénicos, nas palavras. Deve pois evitar «versi di consonanti», zelar para que o fim da frase e o fim do verso não concidam, o que no recitar dará o útil efeito da prosa (22), razão que se diz de «convenienza» (23), onde o nosso dizer de hoje acha uma razão de performatividade, fundamento para que se exclua da cena cómica o verso esdrúxulo, que corre troppo veloce a terminarsi con un certo suono continovato, talmente che non si può fuggire che in esso non si conosca una certa catenatura et

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

7

rissonanza, che affettazione chiamar si potrebbe, rispetto al ragionar domestico che comunemente si costuma (21).

Por oposição, à tragédia está cometido o verso, «piú conforme alla gravità» do género (21), preceito que de’ Sommi não intenta contrariar. O verso é aqui emanação canónica, figura de majestade juntamente dramática e literária. E sintetiza de’ Sommi, de forma mais prática que a dos preceitos: «nelle parole come ne gli atti, bisogna servirsi di quei modi che riescono piú naturali et piú leggiadri» (23), pois que «il poeta comico poco grato riuscirebbe ne’ suoi componimenti, se non avesse i recitanti sufficienti da rappresentarli» (22). Que o mesmo é dizer que a dramaturgia se observa aqui em orgânica conjunção com as dinâmicas da cena, que a teoria serve à evidência da prática, que as acções que por palavras representam os poetas dramáticos não podem senão ser outra coisa quando se põem por figuras em cena, lugar de outras regras e outras necessidades. É ainda com a reflexão sobre o género cénico comédia que termina este diálogo, com de’ Sommi a defender a comédia de duplo argumento porque «tengono gli uditori piú desti et senza noia, con la varietà de i sucessi» (24), razões bem mais do espectáculo que da poesia, coisa que, na inversão basilar da Poética só não pode dizer-se antiaristotélica porque dizê-lo seria dizer outra coisa. 4.2. O segundo diálogo retoma a questão da divisão da comédia em cinco actos, e retoma a eficácia de um argumento simbólico e religioso: o homem microcosmo da criação divina, é dominado pelo número cinco (por exemplo, cinco sentidos, cinco extremidades do corpo). Depois as razões da fé: cinco livros da lei de Deus e de Salmos, cinco interlocutores de Job. Em suma, imagem da perfeição, que leva Massimiano a concluir que a comédia, ao cumprir o preceito dos cinco actos «deve então ser quase uma imagem ou retrato de um homem perfeito» (31). Descreve depois a qualidade das partes da comédia antes de, para finalizar, apontar preceitos atinentes ao ilícito verbal nas comédias. E é ainda sob o signo do espectáculo que a resposta vem, positiva: não são todos virtuosos os espectadores, e mal andaria o poeta que não agradasse ao espectador, como mal andaria o médico que não adoçasse um amargo remédio (35). E retomando a exemplaridade do corpo, também ele dotado de suas vergonhas, Verídico submete à proporção a presença de licenciosas expressões, que as honestas palavras devem cobrir como as roupas ao corpo. 4.3. Finalmente, os dois últimos diálogos. Eles aprofundam o alcance indubitável deste discurso sobre o fazer teatral. O diálogo terceiro analisa os preceitos de uma boa representação e explicita o que ao trabalho do actor respeita, começando por distinguir as normas de representação da comédia premeditada em oposição, claro, à improvisada, de que se não cura aqui. Tanto G. Cinzio como de’ Sommi se lhe referem, de resto, desfavoravelmente. Ao ponderar a escolha da comédia, que deve ser nova para surpresa do espectador, não porque afirme a sua modernidade (como a comédia que se dizia nova por oposição ao modelo antigo, no prólogo de Castiglione para La calandria) e em prosa, sem muitos

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

8

solilóquios ou longos episódios, corresponde a escolha dos actores, vozes e gestos dessa prosa. De’ Sommi aponta também as etapas de trabalho com os actores: depois de os escolher, tendo em conta a adequação do actor à personagem, de acordo com as regras do decorum já assinaladas, leva-os a ler em conjunto a comédia, assim «imprimendo a tutti nella mente la qualità del personaggio che hanno da imitare; et licenziati con questo, le do tempo di poter imparar le parti loro» (39). A importânica atribuída ao actor é tal que «piú importi aver boni recitanti che bella comedia, et che ’l sia il vero, abbiamo veduto molte volte riuscir meglio, al gusto de gl’ascoltanti, una comedia brutta, ma ben recitata, che una bella mal rappresentata» (39), como já Giraldi Cinzio propunha. Dos actores, que escolhe «avendo copia di uomini atti» (39), facto não despiciendo para entender o que pode significar o recrutamento do actor, quer de’ Sommi que sejam obedientes, de boa voz e boa pronúncia e de aspecto condicente com a figura que vão representar (39). A voz é, de qualquer modo, o principal critério, sempre segundo a adequação ao natural: de’ Sommi não daria «la parte di un vecchio ad uno che avesse la voce fanciullesca, né una parte da donna (e da donzella maxime) ad uno che avesse la voce grossa» (39). A voz é fundamental matéria sígnica perante o ‘efeito pretendido’: Et se io, poniam caso, avessi a far recitare un’ombra in una tragedia, cercarei una voce squillante per natura, o almeno atta, con un falsetto rtemante, far quello effetto che si richiede in tale rappresentazione» (3940).

De’ Sommi aconselha a representar em voz alta, mas sem gritar. O actor deve evitar o falar afectado, ter boa dicção e recitar pausadamente, cuidando de esprimere con tardità ben tutte le parole fin all’ultime silabe, senza lasciarsi manar la voce, come molti fanno, onde spesso lo spettatore perde con gran dispiacere la conclusione della sentenza (41).

O tratadista avança inclusive um conjunto de motivos para dar expressão aos «efficaci effetti» da representação (que bem podem ler-se depois como estereótipos). Aconselha ele, num excerto que, apesar de longo, merece a leitura: non basterà ad uno che faccia la parte (poniam caso) d’uno avaro, il tener sempre la man su la scarsella, in tentar spesso se li è caduta la chiave de lo scrigno; ma bisogna anco che sappia, occorrendo, imitar la smania che egli avrà (essempli grazia), intendendo che ’l figliiolo li abbia involato il grano. Et se farà la parte di un servo, in occasione d’una subita allegrezza saper spicar a tempo un salto garbato, in occasione di dolore stracciare un fazzoletto co’ denti, in caso di disperazione trar via il capello, o simili altri eficaci effetti, che danno spirito al recitare. Et se farà la parte di uno sciocco, oltre al risponder mal a proposito (il che gl’insegnarà il poeta con le parole) bisogna che, a certi tempi, sappia far anco di piú lo scimonito, pigliar delle mosche, cercar de’ pulci, et altre cosí fatte sciochezze. Et se farà la parte di una serva, nell’uscir di casa, saper scotersi la gonella lascivamente, se la ocasion lo comporta, over mordersi un dito per

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

9

isdegno, etsimili cose che il poeta, nella testura della favola, non può esplicitamente insegnare (41-42).

Coisas que não vêm do poeta mas da linguagem do espectáculo, nesta amostragem de efeitos da cena que, pese embora a recusa dessomiana em falar da comédia improvisada, lhe ficam bem perto. O texto e a cena cumprem aqui um encontro capital, num contexto bem claro: as competências do actor e maxime de quem o dirige são da ordem da complementaridade e da adequação, da interacção dos sistemas. A teoria do actor dessomiana sustenta ainda alguns preceitos, desde o que afirma que actor não se aprende, «bisogna nascersi» (42), valorizando a natural aptidão para o exercício da arte, às condições do recitar do actor, que deve ser «svegliatissimo» (46), ao elogio das comédias ‘mudas’, exemplo ‘maravilhoso’ da «corporale eloquenza», ao valorizar da qualidade dos movimentos, ágeis, e dos gestos cuidados, tudo segundo o natural (46-48). É que a comédia faz-se de «atti et di parole» e «l’una di queste parti principali è del poeta, et l’altra è dello istrione» (47). A teoria dessommiana aborda ainda o fundamental relevo que têm, na representação, os figurinos, em primeiro lugar submetidos ao preceito da adequação. Mais importante ainda, é insistir de’ Sommi na qualificação dos figurinos, que não devem ser quotidianos — opor quotidiano à representação é valorizar a circunstância modelar do dispositivo que o espectáculo actualiza. De’ Sommi esforça-se por vestir os actores tão nobremente quanto possível: tratando-se de um servo, veste-o com a nobreza pedida pelo estado do senhor, porque assim se valoriza a reputação da comédia (48). Como Cinzio, também o tratadista mantuano acentua o valor de estranheza do vestir das figuras. Primeiro pela variedade, veste as personagens «entre si diferentíssimos» 49; depois usando cores abertas e claras, o menos negro possível (49-50); transformando os actores, de modo a não serem iguais a si (por via do público, que os não deve reconhecer); valorizando vestidos bárbaros e inusitados, e assim ganhando o público (50), sempre sob a capa do verosímil. Depois de algumas notações mais em torno do figurino (da tragédia e da pastoral), é a abertura da representação que vem a ocupar o resto deste terceiro diálogo, centrado na figura do prólogo. Desde o abrir da cortina, acompanhado de estratégias sonoras de focalização (estampidos, toque de trompas, etc.), aos modos de fazer actorial do prólogo — não voltar as costas ou caminhar falando, adoptar uma atitude verosímil na relação com o espectador, que é uma forma de sinalizar, como em Cinzio, o isolamento da ficção, o que pode dizer-se como sua autonomização —, é a dinâmica da linguagem do espectáculo que aqui se analisa na sua dimensão específica e histórica. Mesmo quando abordada através de pequenas questões práticas, entre segredos do métier e procedimentos de trabalho, como quando aponta a existência de uma lista onde aponta não só tudo o necessário à representação como a sequências de entradas e saídas de cena, para que tudo aconteça a tempo (54), está sempre em jogo uma analítica da linguagem do espectáculo. 4.4. O último diálogo centra-se num tema caro a de’ Sommi, e nuclear para o funcionamento da cena teatral: os aparatos, a iluminação artificiosa (mais do que

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

10

artificial), os aparatos excêntricos (marítimos, abertos, pastoral). Como já no dialogo anterior, é através da própria linguagem cénica que se equaciona o funcionamento do espectáculo. Convirá recordar desde já que o aparato é, neste contexto, a mais expressiva das novidades que inventa o teatro em idade humanística, e as descrições dos aparatos têm nos relatos um particular sabor de novidade e festa (8), como por vezes aconteceu com os fantasiosos intermezzi, mais apreciados que a própria comédia (cfr. Baratto, 19772: 49). O diálogo abre com o elogio da eficácia da pintura, quer dizer, da cena pintada, por Massimiano e Santino. Verídico propõe-se falar dos aparatos em geral, pois não é arquitecto nem pintor de profissão. E retoma logo o vôo doutrinário ao exigir dos cenários que sejam o mais belos possível (60), a bem da grandeza modelar do teatro antigo que as comédias modernas evocam. Mas antes dos aparatos, há que esclarecer a origem e as razões da iluminação, campo onde o nosso autor teve a primazia, pois frequentemente se lhe atribui a proeza de conceber uma iluminação psicológica. Conta ele: io mi son trovato a condur una volta, tra le altre, una tragedia, et essendo stata la scena allumata giocondissimamente per tutto il tempo che i sucessi de la istoria furono allegri, quando cominciò poi il primo caso dolente della inopinata morte d’una reina, onde il coro esclamando, stupiva come il sole potesse patire di veder tanto male, feci (si come avevo preparato) che in quello istante la maggior parte de i lumi de la scena che non servivano alla prospettiva furono velati o spenti; la qual cosa cagionò un profondissimo orrore nel petto degli spettatori. Il che riuscí mirabilmente, per universle giudicio (64).

Trata-se também de evidenciar o papel da luz na construção de atmosferas (usando pequenos espelhos reflectores na perspectiva), resolvendo ao mesmo tempo as questões práticas (exaustão dos fumos, vidros de cor que protegem os olhos dos espectadores, focalização da atenção do espectador acentuando a escuridão da sala e «facendo splendidissima la scena» (66). De’ Sommi esclarece depois os tipos de aparatos, com relevo para os da pastoral cuja cena, por se representar no verão, de dia e ao aberto, bastará que seja elevada e verdejante (66). la favola pastorale si avrà da rappresentare di estate, come par che piú si convenga, in loco aperto, et di giorno, bastarà che la sua scena sia eminente et verdeggiante, et che, nello scoprirsi, porga vaghezza a’ 8)

Leia-se a carta de Bernardino Prosperi dirigida a Isabel d’Este, sobre o aparato da Cassaria do Ariosto (em Ferrara): «Mas o que foi melhor de todas estas festas e representações, foi a cena onde se representaram, a qual fez um Mastro Peregrino pintor que está com o Senhor, que é uma contracta [sic] perspectiva de uma terra com casas, igrejas, torres, campanis e jardins, que uma pessoa não se pode saciar pelas diversas coisas que lá estão, todas do engenho e bem feitas, a qual não creio que se perca, mas que a guardarão para outra vez» (Bernardino Prosperi, carta de 8 de março de 1508, dirigida a Isabel d’Este, filha de Hércole I, e agora marquesa de Mântua; apud Stauble, «Scenografia» em Cruciani & Seragnoli, 1987: 73).

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

11

veditori. Et questo si fa agevolmente, rappresentando con le frondi e co i fiori, et con gl’arbori fruttuosi, le staggioni piú alegre, ponendo tra’ rami di avrii uccelli, che co l’canto incitano la letizia, fcendo anco alle volte erarvi sopra conigli o lepri, et altre cose simili, che rappresentino il naturale delle campagne gioconde, et de’ boschi solitarii; et che con giudicio siano finti quei monti, quelle valli, quei tugurii, quei fonti e quegli antri od altre cose tali che vi occorrono facendo i lontani con le osservazioni propettive, et lasciar dinanzi tanto piano, aguisa di un prato fiorito, per recitarvi sopra ordinariamente, quanto è larga una gran scena. (66-67).

Se, ao invés, for de noite, evite-se mostrar /deixar à vista os lumes e tire-se partido da pintura. Mas de’ Sommi confessa não ser este o seu território, e cala…

5. A cena ibérica: abertura e interioridade Já vai longo este percurso, mas não quero deixar de referir dois tipos de aparatos que poderiam dizer-se heterotópicos, assinalando assim o que neles é manifestação de uma distinta espacialidade por relação com a prática cénica renascentista: os aparatos marítimos e os aparatos abertos. Eles têm para nós, em Portugal, já não apenas do ponto de vista da teorização da prática cénica, mas da pertinência histórica, uma importância especial, desde logo por se referirem ao contexto ibérico e português. Noto que os passos que vou citar exibem um forte valor testemunhal, e pressupõem a aceitação de um facto ainda por comprovar documentalmente: o de que de’ Sommi tenha viajado (ao menos) por Portugal e Espanha, segundo afirma o autor do tratado. Este facto não foi ainda comprovado, mas para o editor moderno, F. Marotti, tais referências, já que não colidem com os dados biográficos conhecidos, são «prova della sua effetiva presenza in quei luoghi» (1968: xxxii). Proponho então uma ‘suspensão da descrença’ científica quanto a esta hipótese. À pergunta sobre o que são aparatos marítimos responde Verídico: Come quello che non ha molti anni in Portugallo vid’io rappresentare, che lo aparato non era altro che una grande nave nel porto di Rodi, il qual fece un bellissimo vedere, sí perché vi era figurato il gran colosso che anticamente si dice essere stato sopra quel porto, in mezzo alle gambe del quale entravano i legni, et sí per la varietà de i personaggi che secondo la diversità delle occasioni, ora recitavano su’l lito, et ora su la nave (67).

Tratando-se de autor cuja experiência e cujo domínio das artes cénicas não carece de mais confirmações, teria todo o interesse identificar o espectáculo a que se refere o autor dos Dialoghi, que ficaria assim qualificado por um juízo legitimante, ainda que não ortodoxo. Lembro o episódio do torneio de Xabregas, realizado em 1552 para armar cavaleiro o príncipe D. João, filho de D. João III e pai de D. Sebastião, que pode tomarse como exemplo, tendo em conta a cena marítima que o acolheu e a constante intervenção de naves, transformadas com prodigalidade nos mais espantosos seres. Ou, embora episódio mais tardio, as entradas régias de 1619, de que temos um dos mais conhecidos ícones portugueses de práticas teatrais de aparato efémero nas gravuras de

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

12

João Batista Lavanha, episódio integrável no contexto das práticas de aparato marítimo. Seguem-se as perguntas sobre as «scene sfacciate o aperte, che dicono essersi alcune volte usate, et massimamente in Ispagna» (67). A resposta não se faz esperar, e tais cenas são definidas pelo tratadista assim: Benché paia di certa vaghezza il vedersi in scena una camera aperta, ben parata, dentro alla quale (dirò cosí per essempio) uno amante si consulti con una ruffiana, et che paia aver del verisimile, è però tanto fuori del naturale essere la stanza senza il muro dinanzi […] che a me pare non molto convenirsi, oltra che non so se il recitare in quel loco si potrà dire che sia in scena (68).

A senda de modernidade do tratado parece aqui beliscar-se. Mas não se esqueça que a modernidade (também) é a do aparato cénico e a do lugar unitário, e que a comédia se sustenta na imitação natural, ao contrário do que pressupõe o espaço outro deste tipo de aparato. De resto, segundo Teresa Ferrer Valls, que dedicou à questão um trabalho (cfr. 1993: 181), este passo está mais perto do universo cenotécnico do teatro de Gil Vicente ou de Torres Naharro, do que do corral de comédias, como havia interpretado F. Marotti (1968: 68). Mas importa ainda, desse ponto de vista, o efeito de distância que aqui se assinala, entre a cena heterotópica de países periféricos e a da terra mãe, território privilegiado da invenção.

6. Concluo brevemente esta parcial anotação ao tratado dessomiano. Além de insistir na inaugural reflexão que sobre a cena aqui se cumpre, importa acrescentar, com F. Cruciani (1987), o quanto a concepção de teatro de de’ Sommi se verte numa eficácia modelar, feita de contiguidades: o teatro nasce de Deus e da cidade, o que faz dele privilegiado modelo, como modelo do homem perfeito é a comédia, concluíra já Massimiano (31; cfr. 4.2.). Ora essa perfeição só evidencia o lugar que no sistema têm o decoro, a verosimilhança e o natural, tripla formulação de um mesmo objectivo, que outro não é que o de garantir a adequação entre a coisa representada e a sociedade, simultaneamente a que acolhe, tutela e protege as representações. Recordar o que se disse quanto aos heterotópicos aparatos da cena ibérica, não faz senão confirmá-lo, e a natureza profissional do percurso dessomiano não deixa de ter aqui um peso tutelar. Das linhas destes Quatro diálogos, percorridas procurando responder ao que, no contexto da reflexão teórica sobre o teatro no Renascimento italiano, equaciona o insistente divórcio entre os discursos sobre a pena e as notícias sobre a cena, ficaram claras, creio, as razões que os afirmam excêntricos. Eles são-no exactamente na medida em que rompem essa fronteira, e abertamente deslocam o pensar as palavras quando se cruzam com o agir dos homens, com as vozes e gestos, com as vestes, ou a iluminação, ou os aparatos. Em suma, quando tomam o seu cimento.

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

13

Bibliografia 1. Borlenghi, Aldo (ed.) 1959 Commedie del cinquecento. Milão, Rizzoli. 2 vols. [cito Borlenghi, I ou II e página] de’ Sommi, Leão 1968 Quattro dialoghi in materia di rapresentazioni sceniche. Milão, Il Polifilo. Editado por e com uma introdução de F. Marotti. 2. Aristóteles [1990] Poética. Lisboa, INCM. Trad. de Eudoro de Sousa. Attolini, Giovanni 1988 Teatro e spettacolo nel Rinascimento. Roma / Bari, Laterza. Barata, José Oliveira 1997 «Drama», Biblos — Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa. Baratto, Mario 19772 La commedia del Cinquecento (aspetti e problemi). Vicenza, Neri Poza. Bonora, Ettore 1969 «La teoria del teatro negli scrittori del Cinquecento», Retorica e invenzione. Milão, Rizzoli: 145-184. Cruciani, Fabrizio 1987 «Il teatro e la festa», Cruciani, F. & Seragnoli, D. (eds.): 31-52. Cruciani, Fabrizio & Seragnoli, Daniele (eds.) 1987 Il teatro italiano nel Rinascimento. Bolonha, Il Mulino. De Marinis, Marco 1991 «Aristotele teorico dello spettacolo», Allegri (ed.), Teoria e storia della messinscena nel teatro antico. Génova, Costa & Nolan: 9-23. Ferrer Valls, Teresa 1993 Nobleza y espectáculo teatral (1535-1622). Estudio y documentos. Valência, UNED/ Universidad de Sevilla/ Universidad de València. Herman, Vimala 1995 Dramatic discourse. Dialogue as interaction in plays. Londres/ Nova Iorque, Routledge. Horácio [1984] Arte poética. Lisboa, Inquérito. Trad. de Rosado Fernandes. Kelly, Henry Ansgar 1993 Ideas and forms of tragedy from Aristotle to the Middle Ages. Cambridge, Cambridge University Press. Kowzan, Tadeusz 1983 «Aristote, théoricien de l’art du spectacle», Debusscher, G. & Van Crugten, A. (eds.), Théâtre de toujours d’Aristote à Kalisky. Hommages à Paul Delsemme. Bruxelas, Université de Bruxelles: 23-30. Marotti, Ferruccio 1968 «Introduzione», de' Sommi (ed.): XI-LXXIII.

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

14

1977

Storia documentaria del teatro italiano. Lo spettacolo dall' Umanesimo al Manierismo. Teoria e tecnica. Milão, Feltrinelli.

Pavis, Patrice 1996 L’analyse des spectacles: théâtre, mime, danse, danse-théâtre, cinéma. Paris, Nathan. Roubine, Jean-Jacques 1990 Introduction aux grandes théories du théâtre. Paris, Bordas. Ruffini, Franco 1985 «Testo/scena: drammaturgia dello spettacolo e dello spettatore», Versus (41): 21-40. Tobar, Maria Luisa 1986 «Toda comedia comienza en dolores. Notas en torno a la comedia de Gil Vicente», Nuovi Annali / Messina (4): 759-783.

IV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE LITERATURA COMPARADA

15

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.